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A Mensagem Entre Agostinho Da Silva e Fernando Pessoa

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NATÁRIO, Celeste; EPIFÂNIO, Renato.

A Mensagem: entre Agostinho da


Silva e Fernando Pessoa. In: Revista Épicas, Ano 1, N. 1, Jun 2017, p. 1-7.

A MENSAGEM: ENTRE AGOSTINHO DA SILVA E FERNANDO PESSOA


A MENSAGEM: BETWEEN AGOSTINHO DA SILVA AND FERNANDO PESSOA

Celeste Natário1
Renato Epifânio2

RESUMO: Procuraremos, neste texto, salientar algumas dimensões do poema épico de Fernando Pessoa, “A
Mensagem”, em diálogo com o filósofo luso-brasileiro Agostinho da Silva”.
Palavras-chave: Agostinho da Silva; Fernando Pessoa; Poesia Épica.

ABSTRACT: We will try in this text highlight some dimensions of the epic poem by Fernando Pessoa, "The Message", in
dialogue with the Luso-Brazilian philosopher Agostinho da Silva ".
Keywords: Agostinho da Silva; Fernando Pessoa; Epic Poetry.

1 Docente da Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Enquanto investigadora, tem-se dedicado, em particular, à filosofia e
cultura portuguesas, tendo publicado: O Pensamento Dialéctico de Leonardo Coimbra: reflexão sobre o seu valor antropológico
(1997); O Pensamento Filosófico de Raul Proença (2005); Entre Filosofia e Cultura: percursos pelo pensamento filosófico-poético
português nos séculos XIX e XX (2008); Itinerários do Pensamento Filosófico Português: da Origem da Nacionalidade do Século
XVIII (2010); Pascoaes: Saudade, Física e Metafísica (2010). Tem organizado múltiplos encontros científicos. Coordena o projecto de
investigação “Raízes e Horizontes da Filosofia e da Cultura em Portugal” (Instituto de Filosofia da Universidade do Porto).
2 Membro do Instituto de Filosofia da Universidade do Porto, da Direcção do Instituto de Filosofia Luso-Brasileira, da Sociedade da

Língua Portuguesa e da Associação Agostinho da Silva; investigador na área da “Filosofia em Portugal”, com dezenas de estudos
publicados, desenvolveu um projecto de pós-doutoramento sobre o pensamento de Agostinho da Silva, com o apoio da FCT:
Fundação para a Ciência e a Tecnologia, para além de ser responsável pelo Repertório da Bibliografia Filosófica Portuguesa:
www.bibliografiafilosofica.webnode.com; Licenciatura e Mestrado em Filosofia na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa;
doutorou-se, na mesma Faculdade, no dia 14 de Dezembro de 2004, com a dissertação Fundamentos e Firmamentos do pensamento
português contemporâneo: uma perspectiva a partir da visão de José Marinho; autor das obras Visões de Agostinho da Silva (2006),
Repertório da Bibliografia Filosófica Portuguesa (2007), Perspectivas sobre Agostinho da Silva (2008), Via aberta: de Marinho a
Pessoa, da Finisterra ao Oriente (2009), A Via Lusófona: um novo horizonte para Portugal (2010), Convergência Lusófona (2012/
2014/ 2016) e A Via Lusófona II (2015). Dirige a NOVA ÁGUIA: Revista de Cultura para o Século XXI e a Colecção de livros com o
mesmo nome (Zéfiro). Preside ao MIL: Movimento Internacional Lusófono desde a sua formalização jurídica (2010).
Desde as origens helénicas da invenção da língua pensante que o filosofar se recorta da narrativa
mítica pelos contornos de uma diversa poética que ousa o âmbito intermédio entre um apolíneo excesso de
falar “sem nada ditar” e um dionisíaco dizer que cala ou oculta tendo augural enigma. E se no mito a
inteligência era ainda sem fórmula mais como um perfume que se liberta da história livre como essência, já
nas formas pensadas de a conter se arrisca aos “rótulos” sem cheiro de ser, ou a ficar no hermético de um
difícil e dificultado acesso. Aliás, as estratégias do começo da dita linguagem filosófica vacilam ainda entre a
poética de um orfismo em que a música das palavras aceita tal logos, ou o número e a fórmula de rigor numa
idealidade pitagorizante que extreme a dialéctica verbal.
Vem esta reflexão a propósito do que pode entender-se, no caso de Agostinho da Silva, de modo
infindo como ele abre para além da palavra, sendo todavia nos limites desta e justamente pelo seu pendor
didáctico, explicativo, até social, e por isso também comunicativo e moral, que se determina a encenação
literária do seu saber3. Porém, o homem está além disto, a sua existência rica, de um “pensador à solta” e
vadio, transcende a obra escrita e falada ou que aí não se detecta4.
Óbvio que toda esta “vadiagem” ou apólogo da criatividade que tantas vezes é expressa tem origem
no vivo paradoxo de continuidade de um paradigma de produção na e pela língua, sem a ascese literária
(viática do silencia amoroso…), sem o sonho que seria seu de espontânea mutação, de autêntica
impecabilidade, afirmando por exemplo: “O Pai é previsível, o Filho é previsível. E o Espírito Santo? O Espírito
Santo é sempre definido na Teologia como imprevisível. É algo que voa por onde quer”5. Evidentemente que
se acumulariam aqui os paradoxos mas não o vamos valorizar agora. Contudo, a sua crítica à “monotonia”
em branco, de Pessoa ortónimo como ao destino de uma heteronímia meramente literária de um Agostinho
da Silva abrangente e universalista merecerá aturada análise.
“Aos amigos de Outros” dedica Agostinho Um Fernando Pessoa, escrito e publicado em Porto Alegre
em 1959 pelo Instituto Estadual do Livro. Considera Agostinho da Silva que a Mensagem não é apenas e “sem
dúvida a mais importante obra” de Pessoa, como a mais importante obra da cultura Portuguesa não só pela
inteligência como pelo entendimento.
O autor d’Um Fernando Pessoa tem sobretudo como análise a Mensagem nas suas três partes –
Brasão, Mar Português e O Encoberto –, que, como já defendemos em livro6, «correspondem às três
instâncias ôntico-temporais que, na Visão pessoana, delimitam o destino de Portugal. Como escreveu o
próprio Pessoa no seu “prefácio” à obra Quinto Império, de Augusto Ferreira Gomes: “Temos pois que a

3 Afirmava por exemplo, Agostinho da Silva: “o existir e o não existir ao mesmo tempo e, do meu ponto de vista, a união final das
coisas, e isto é paradoxal. Como no exemplo da geometria analítica, que já referi, esse mundo de paradoxos no qual posso pensar
simultaneamente os registos da extensão espacial e da matemática pura”, in Dispersos, Lisboa: ICALP, 1988, p. 133.
4 Numa entrevista ao Diário de Lisboa (19/04/1986), disse: “Cada pessoa deve ser total, completa e ter liberdade para o ser. Sempre

bati no ponto, para mim importantíssimo, da liberdade total, não condicionada: cada um ser aquilo que é (…). O homem foi feito,
para ser um poeta à solta, seja qual for a sua expressão poética. Pode ser a música, a literatura ou coisa nenhuma” (in Dispersos, ed.
cit., pp. 109 e 155).
5 In Ir à India sem abandonar Portugal. Considerações e outros textos, Lisboa: Assírio, 1994, p. 39.
6 Visões de Agostinho da Silva, Lisboa: Zéfiro, 2006, p. 22-30.

2
Nação Portuguesa percorre, em seu caminho imperial, três tempos (…).”7. No primeiro, como escreveu
Agostinho, trata-se ainda da “potência sem o acto”. No segundo, trata-se já do acto, da actualização da
potência, acto esse que, contudo, “não esgota [ainda] a potência”. No terceiro, finalmente, antecipa-se a
plena consumação do nosso destino…
Como recorda ainda o próprio Agostinho da Silva, inicia Fernando Pessoa o seu poema, a primeira
parte do seu poema, da sua Mensagem, por afirmar Portugal como o “rosto da Europa”8 – citemo-las:

“A Europa jaz, posta nos cotovelos:/ De Oriente a Ocidente jaz, fitando,/ E toldam-lhe românticos
cabelos/ Olhos gregos, lembrando.// O cotovelo esquerdo é recuado;/ o direito em ângulo
disposto./ Aquele diz Itália onde é pousado;/ Este diz Inglaterra onde, afastado,/ A mão sustenta,
em que se apoia o rosto.// Fita, com olhar esfíngico e fatal,/ O Ocidente, futuro do passado.// O
rosto com que fita é Portugal.” 9

A voz que assim se faz ouvir, se é que nós, na verdade, a ouvimos, é, segundo Agostinho da Silva,
muito mais do que a mera voz do poeta, a voz do próprio tempo, da nossa história, do nosso destino. Diz-nos
ela que “a Europa jaz”, reduzida que está ao que resta das “ruínas gregas”, à nostalgia de um “paraíso
perdido”, como que ancorada no impasse de um “regresso eternamente impossível”. Se assim é, importa,
contudo, levantar de novo as âncoras e (re)iniciar, a bordo desta “jangada de pedra”, a viagem. Como “praia,
pátria ocidental” por excelência, como “lugar da finisterra”, é Portugal, à luz desta visão, “a porta, a ponte
mítica” dessa viagem que só agora, enfim, se inicia…À luz desta visão, toda a nossa história foi, aliás, uma
paciente preparação para a concretização desse “destino espiritual que mal se desenha entre névoas e
sombras”.
Ao contrário do que é voz corrente, esse “destino espiritual” não se cumpriu, contudo, segundo
Agostinho da Silva, com as “Descobertas” – estas não foram nem a nossa “idade de ouro” nem, muito menos,
o nosso “último passo”10. Neste recorrente equívoco reside, aliás, para o autor d’ Um Fernando Pessoa, o
maior entrave à consumação da nossa demanda. Paradoxalmente, dir-se-ia, as “Descobertas” significaram o
nosso próprio “Encobrimento”. Eis, de resto, o que já foi denunciado por outros hermeneutas da nossa
tradição filosófica e cultural, como, nomeadamente, José Marinho, que chegou a escrever que estas, as

7 Quinto Império, pref. de Fernando Pessoa, Lisboa: A.M. Pereira, 2003 (2ª), p. 18.
8 A respeito da caracterização de Portugal como o “rosto da Europa”, ver em particular: Manuel J. Gandra, Da Face Oculta do Rosto
da Europa – Prolegómenos a uma História Mítica de Portugal, pref. de José Manuel Anes, Lisboa, Hugin, 1997 (sobretudo o primeiro
capítulo: “A Europa tem rosto?”, pp. 11-25).
9 Mensagem, in “Mensagem e outros poemas afins”, Mem Martins: Europa-América, 1990, p. 137. Destaque-se, nesta edição, a

magnífica introdução a toda a obra pessoana e, muito especialmente, a este poema que nos é feita por António Quadros.
10 Eis, igualmente, ainda a seu ver, a perspectiva de Pessoa – daí, a título de exemplo, estas suas palavras: “Mas eu suponho que

Fernando Pessoa pensa que Portugal não teve apenas um papel histórico num certo século, para mostrar ao mundo o que era o
mundo, que foi o que Portugal fez, mas que precisa continuar essa obra e passar agora a outro descobrimento muito mais importante,
que é o descobrimento da natureza humana e da sua realização plena. Que Portugal apenas descobriu os outros continentes, mas
que precisa agora que as pessoas descubram, não apenas o mundo que têm fora de si, mas o mundo que têm dentro de si.” [In Diário
de Notícias, Lisboa, 6/10/1994].

3
“Descobertas”, representaram, em grande medida, um “descobrir feito à periferia das coisas”11, senão
mesmo, como escreveu ainda, um “caminho para uma visão fechada”12.
Daí, aliás, ainda segundo Agostinho da Silva, todo o sentido da segunda parte da Mensagem. Sendo,
aparentemente, uma exaltação das “Descobertas”, da “Possessão dos Mares”, ela não narra ainda,
verdadeiramente, “a história de Portugal, mas apenas o seu interrompido prólogo”. A sua glória, se é que
glória teve, foi, tão-só, a de “ter mostrado que o mar é sempre o mesmo e que a sua posse nada significa de
vital” e de que “o que vale na empresa de buscar é a busca e não o encontro”13. Eis, de resto, a tese que o
autor da Reflexão à Margem da Literatura Portuguesa nos reiterou em múltiplas outras passagens da sua
obra – daí, a título de exemplo, a sua assumida “resolução de ser diferente, de tomar os rumos não
tentados”14, o seu assumido “prazer de embarcar, [de] embarcar sempre, acreditando cada vez menos nos
pontos de chegada”, de “embarcar num navio que nunca chegará, rumar por mapa e bússola ou goniómetro
para o porto que não existe”15.
Só assim, aliás, poderemos “ser tudo, como Deus”, assim cumprindo esse destino, esse “futuro”, por
Pessoa prefigurado em 1923 – nas suas palavras: “Esse futuro é sermos tudo. Quem, que seja português,
pode viver a estreiteza de uma só personalidade, de uma só nação, de uma só fé? Que português verdadeiro
pode, por exemplo, viver a estreiteza estéril do catolicismo, quando fora dele há que viver todos os
protestantismos, todos os credos orientais, todos os paganismos mortos e vivos, fundindo-os
portuguesmente no Paganismo Superior. Não queiramos que fora de nós fique um único deus! Absorvamos
os deuses todos! Conquistámos já o Mar: resta que conquistemos o Céu, ficando a terra para os Outros, os
eternamente Outros, os Outros de nascença, os europeus que não são europeus porque não são
portugueses. Ser tudo, de todas as maneiras, porque a verdade não pode estar em faltar ainda alguma
coisa!”16.
Este é um universalismo utópico? Decerto não foi e o universal do humanos do “Homem Universal”
que de forma clara e poética nos apresenta também esse outro vulto do pensamento português que foi
Teixeira de Pascoaes. Também esse universalismo que, de outro modo, mas não menor e tendo o mar como
inspiração, o universalizou como algo maior, superior no sentido de nele e com ele. Porém, como se pode

11 Cf. Aforismos sobre o que mais importa, “Obras de José Marinho”, vol. I, Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1994, p.
108: “Os portugueses fizeram a experiência negativa das viagens e sua ilusão no decurso dos círculos que se seguem à empresa do
Infante (...). A experiência negativa das viagens resulta de que o seu humanismo foi principalmente pragmático, o seu descobrir foi
feito à periferia das coisas.”.
12 Cf. Nova Interpretação do Sebastianismo e outros textos, “Obras de José Marinho”, vol. V, Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da

Moeda, 2003, p. 224. Isto apesar da sua inicial inspiração franciscana, de acordo com a tese de Jaime Cortesão que Marinho
expressamente refere [cf. ibid., p. 252].
13 Cf. Ensaios sobre Cultura e Literatura Portuguesa e Brasileira, Lisboa: Âncora, 2000 (doravante: ECLPB), vol. I, p. 94.
14 Cf. Diário de Alcestes. Lisboa: Ulmeiro, 1990 (2ª), p. 37.
15 Dado que, como escreveu ainda: “Não me tentam nada as estradas que vão de um ponto a outro, de que sabemos, à partida, a

quilometragem e a direcção; tentam-me as estradas que não vão dar a nenhum ponto (…).” [Sete Cartas a um Jovem Filósofo, Lisboa,
Ulmeiro, 1997 (2ª), pp. 35-36]. Daí ainda, nesta esteira, este seu conceito de filosofia: “Para o que ama a Verdade não há descanso
nem termo, porque a vê no próprio caminhar, a surpreende no esforço contínuo da marcha; o amor da Verdade não é um desejo de
chegar, mas o anseio de superar. Não me importa o resultado, mas o método.” [Glossas, in Textos e Ensaios Filosóficos, Lisboa,
Âncora, 1999, vol. I, p. 37].
16 Obras de Fernando Pessoa, Porto, Lello, 1986, vol. III, p. 703-704.

4
ser ainda na obra Visões de Agostinho da Silva, esse movimento ontológico de outração de si “de todas as
maneiras” implica o sacrifício de toda e qualquer substancialidade identitativa… Por isso, aliás, escreveu
Agostinho da Silva, na sua própria “Mensagem”, que “só então Portugal, por já não ser, será”17. Radica aqui
a singular ideação de Portugal de Agostinho da Silva, a sua ideação de Portugal não enquanto país mas
enquanto “ideia a difundir pelo mundo”18, ideação essa que Agostinho enunciou em diversas passagens da
sua obra, nomeadamente ao explicitar, ainda no seu Um Fernando Pessoa, a sua teoria das três ideias de
Portugal.
Assim, tal como ocorre no poema pessoano, corresponde o “primeiro Portugal” a uma primeira
instância ôntico-temporal: o ser-tempo em que Portugal visava ainda, tão-só, a plena delimitação das suas
fronteiras, da sua substancialidade identitativa. Eis o “primeiro Portugal” que Agostinho da Silva descreve
nos seguintes termos: “O primeiro Portugal foi o Portugal continental, o da defesa contra a Espanha, ou
melhor, contra Castela, e, porventura, sobretudo, o Portugal da velha unidade galaico-portuguesa, o Portugal
lírico e guerreiro das cantigas de amigo e das velhas trovas do cancioneiro popular; nele estiveram as raízes
mais profundas da nacionalidade e nele sempre residiram as inabaláveis bases daquele religioso amor da
liberdade que caracteriza Portugal como grei política (…).”19.
Se este foi, segundo o próprio Agostinho da Silva, o “primeiro Portugal” – aquele que, como dissemos,
visava ainda, tão-só, a plena delimitação das suas fronteiras, da sua substancialidade identitativa –, o
“segundo Portugal”, por sua vez, já não procurou ser apenas o que era, assim impondo a si e aos outros o
seu próprio ser, mas procurou igualmente “o para além de si”, assim iniciando a sua viagem – como logo de
seguida escreveu Agostinho: “Terminada, porém, a fase de expansão, outro Portugal entrou em jogo e muito
mais adaptado à sua tarefa do que o Portugal do Norte, demasiado rígido para as aventuras da miscigenação,
da tessitura económica e do nomadismo que não conhece limites, e, no entanto, firmaria fronteiras (…).”.
Daí, precisamente, a indelimitação do “terceiro Portugal”, ou seja, do Portugal que já não procura
“firmar fronteiras” – ainda nas palavras de Agostinho da Silva: “[Finalmente, o terceiro Portugal] É um
Portugal que não tem seu centro em parte alguma e cuja periferia será marcada pela expansão de sua língua
e da sua cultura de Pax in excelsis que ela levar consigo (…): [é] o Portugal da Hora, o Portugal de Bandarra,
de Vieira e da Mensagem (…).”20. Sê-lo-á mesmo, o Portugal da Mensagem?… A nosso ver sim, em grande
medida. Desde logo porque, tal como para Agostinho, para Pessoa, Portugal era, sobretudo, uma “ideia a
difundir pelo mundo” – não, ressalve-se, para converter os outros ao que nós somos mas, ao invés, para que
os outros sejam plenamente o que são e se reconheçam, também de modo pleno, em si próprios21.

17 Cf. “Mensagem”, in Dispersos, Lisboa, ICALP, 1989 (2ª), p. 697.


18 Cf. Reflexão…, in ECLPB, vol. I, p. 65.
19 Um Fernando Pessoa, in ECLPB, vol. I, pp. 95-96.
20 Ibid., p. 96.
21 Daí, aliás, a imagem que Pessoa nos propõe de Portugal enquanto “espelho”, ao prefigurar o que é, o que deve ser, a “arte

portuguesa” – nas suas palavras: “Arte portuguesa será aquela em que a Europa – entendendo por Europa principalmente a Grécia
antiga e o universo inteiro – se mire e se reconheça sem se lembrar do espelho. Só duas nações – a Grécia passada e o Portugal futuro
– receberam dos deuses a concessão de serem não só elas mas também todas as outras.” [Obras de Fernando Pessoa, ed. cit., vol.
III, p. 702].

5
*
O mesmo defende, a nosso ver, Agostinho da Silva, inclusivamente quando afirma que “Portugal só será
quando for o mundo inteiro e o mundo inteiro o for”22 – com estas palavras, com efeito, também não está
Agostinho a defender uma posição imperialista, de, dir-se-ia, portugalização do mundo. Longe disso.
Agostinho, aliás, tal como, de resto, Pessoa, sempre foi um amante do Múltiplo relativamente ao Uno, da
heterogeneidade relativamente à homogeneidade. Estranho seria, nessa medida, que defendesse a
homogeneização, ainda que portugalizante, do mundo. Ao invés, o que Agostinho defende é que cada um
de nós, por extensão, cada comunidade, se assuma, o mais possível, na sua relativa diferença. Não porque
essa diferença seja, de alguma forma, superior a qualquer outra. De modo algum. Tão-só só porque é nossa,
porque é ela que funda a nossa singularidade. Tão-só. Não se trata aqui, com efeito, de afirmar qualquer
espécie de superioridade de uma cultura relativamente às outras. Todas são igualmente verdadeiras, na
medida em que sejam genuínas. De resto, a verdade não está, à luz desta visão, em nenhuma cultura em
particular. De modo algum. Quanto muito está em todas: não – ressalve-se – na síntese de todas elas, mas
na pluralidade irredutível de todas elas.
Mas – perguntarão alguns – não afirmam Fernando Pessoa e Agostinho da Silva a superioridade da
nossa cultura, da “ideia de Portugal”?… Não exactamente, respondemos nós. O que Pessoa e Agostinho
defendem, mais exactamente, é a superioridade da ideia de que não há culturas superiores e de que, nessa
medida, nenhuma delas se deve sobrepor a qualquer outra, antes, ao invés, todas elas se devem plenamente
expressar. É essa, verdadeiramente, a “ideia a difundir pelo mundo”. Quanto a Portugal, cabe-lhe, não, de
todo, afirmar a sua superioridade – em si mesma, ilusória, como, de resto, a de qualquer outro país –, mas,
tão-só, a superioridade – real – desta ideia. É essa, em suma, a sua missão. Difundir a ideia de Quinto Império
enquanto, precisamente, o espaço-tempo em que cada um, por extensão, cada comunidade, se possa
assumir, em absoluto, na sua relativa diferença – não, de modo algum, afirmar-se como “cabeça” desse
Império23. De resto, o que desde logo caracteriza o Quinto Império, e o irredutivelmente distingue de todos
os outros, é o facto de ele não ter “cabeça” – como lapidarmente escreveu o próprio Agostinho a este
respeito, “paradoxalmente, apenas haverá um 5º Império se não existir um 5º Imperador”24. Replicar-se-á
que sem Imperador não pode haver Império. Eis a réplica que o próprio Agostinho parece aceitar ao ter-se
referido ao Quinto Império como “o tal Império do Espírito Santo que, no fim de contas, não é império
nenhum”25.
Por isso, enfim, sempre afirmou Roberto Pinto, um outro estudioso de Agostinho da Silva, que ele
amou e entendeu o seu povo brasileiro como poucos: “Sua esperança e confiança no destino do Brasil não

22 Cf. Dispersos, ed. cit., p. 255.


23 Ao contrário, aliás – como defende Agostinho no último parágrafo desta sua obra, esse Império “só poderá surgir quando Portugal,
sacrificando-se como Nação, apenas for um dos elementos de uma comunidade de língua portuguesa” [cf. Reflexão…, in ECLPB, vol.
I, p. 117].
24 Cf. ibid., p. 128.
25 Cf. ibid., p. 161.

6
tinha limites. Nunca existiu uma conjuntura histórica, pior que fosse, que abalasse essa certeza de que o povo
brasileiro formará consciência dos seus valores culturais e espirituais, constituirá uma sociedade justa e dará
uma grande contribuição humana ao mundo”. Na verdade, a obra Um Fernando Pessoa de Agostinho da Silva
corresponde em certa medida a um acentuar ainda maior dos vários Pessoas. Naturalmente que Agostinho
da Silva não fora um qualquer analista e leitor da obra de Fernando Pessoa. De certo modo, poderíamos até
afirmar que Agostinho e Pessoa, em grande medida, mas de diferentes formas e expressões, podem ser
entendidos como duas figuras em grande parte complementares sobretudo no essencial de suas Mensagens
e por isso de seu pensamento de “um Mundo a Haver”, o que de outra forma se poderia também expressar
pela fórmula que de suas obras resulta: o “Império só poderá surgir quando Portugal, sacrificando-se como
Nação, apenas for um dos elementos de uma comunidade de língua portuguesa”.
Eis a esperança e a utopia de duas das mais elevadas faces de quem da alma, do coração, da “pátria”
viu a língua portuguesa.

Referências bibliográficas

AGOSTINHO DA SILVA, George. Dispersos. Lisboa, ICALP, 1988.


______. Diário de Alcestes. Lisboa: Ulmeiro, 1990 (2ª).
______. Ir à India sem abandonar Portugal. Considerações e outros textos. Lisboa: Assírio, 1994.
______. Sete Cartas a um Jovem Filósofo. Lisboa: Ulmeiro, 1997 (2ª)
______. Ensaios sobre Cultura e Literatura Portuguesa e Brasileira. Lisboa: Âncora, 2000.
EPIFÂNIO, Renato. Visões de Agostinho da Silva. Lisboa: Zéfiro, 2006.
GANDRA, Manuel. Da Face Oculta do Rosto da Europa – Prolegómenos a uma História Mítica de Portugal.
Lisboa: Hugin, 1997.
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MARINHO, José. Aforismos sobre o que mais importa. “Obras de José Marinho”. vol. I, Lisboa: INCM, 1994.
______. Nova Interpretação do Sebastianismo e outros textos. “Obras de José Marinho”, vol. V, Lisboa:
INCM, 2003.
PESSOA, Fernando. Mensagem e outros poemas afins. Mem Martins: Europa-América, 1990.
______. Obras de Fernando Pessoa. Porto: Lello, 1986.

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