A Mensagem Entre Agostinho Da Silva e Fernando Pessoa
A Mensagem Entre Agostinho Da Silva e Fernando Pessoa
A Mensagem Entre Agostinho Da Silva e Fernando Pessoa
Celeste Natário1
Renato Epifânio2
RESUMO: Procuraremos, neste texto, salientar algumas dimensões do poema épico de Fernando Pessoa, “A
Mensagem”, em diálogo com o filósofo luso-brasileiro Agostinho da Silva”.
Palavras-chave: Agostinho da Silva; Fernando Pessoa; Poesia Épica.
ABSTRACT: We will try in this text highlight some dimensions of the epic poem by Fernando Pessoa, "The Message", in
dialogue with the Luso-Brazilian philosopher Agostinho da Silva ".
Keywords: Agostinho da Silva; Fernando Pessoa; Epic Poetry.
1 Docente da Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Enquanto investigadora, tem-se dedicado, em particular, à filosofia e
cultura portuguesas, tendo publicado: O Pensamento Dialéctico de Leonardo Coimbra: reflexão sobre o seu valor antropológico
(1997); O Pensamento Filosófico de Raul Proença (2005); Entre Filosofia e Cultura: percursos pelo pensamento filosófico-poético
português nos séculos XIX e XX (2008); Itinerários do Pensamento Filosófico Português: da Origem da Nacionalidade do Século
XVIII (2010); Pascoaes: Saudade, Física e Metafísica (2010). Tem organizado múltiplos encontros científicos. Coordena o projecto de
investigação “Raízes e Horizontes da Filosofia e da Cultura em Portugal” (Instituto de Filosofia da Universidade do Porto).
2 Membro do Instituto de Filosofia da Universidade do Porto, da Direcção do Instituto de Filosofia Luso-Brasileira, da Sociedade da
Língua Portuguesa e da Associação Agostinho da Silva; investigador na área da “Filosofia em Portugal”, com dezenas de estudos
publicados, desenvolveu um projecto de pós-doutoramento sobre o pensamento de Agostinho da Silva, com o apoio da FCT:
Fundação para a Ciência e a Tecnologia, para além de ser responsável pelo Repertório da Bibliografia Filosófica Portuguesa:
www.bibliografiafilosofica.webnode.com; Licenciatura e Mestrado em Filosofia na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa;
doutorou-se, na mesma Faculdade, no dia 14 de Dezembro de 2004, com a dissertação Fundamentos e Firmamentos do pensamento
português contemporâneo: uma perspectiva a partir da visão de José Marinho; autor das obras Visões de Agostinho da Silva (2006),
Repertório da Bibliografia Filosófica Portuguesa (2007), Perspectivas sobre Agostinho da Silva (2008), Via aberta: de Marinho a
Pessoa, da Finisterra ao Oriente (2009), A Via Lusófona: um novo horizonte para Portugal (2010), Convergência Lusófona (2012/
2014/ 2016) e A Via Lusófona II (2015). Dirige a NOVA ÁGUIA: Revista de Cultura para o Século XXI e a Colecção de livros com o
mesmo nome (Zéfiro). Preside ao MIL: Movimento Internacional Lusófono desde a sua formalização jurídica (2010).
Desde as origens helénicas da invenção da língua pensante que o filosofar se recorta da narrativa
mítica pelos contornos de uma diversa poética que ousa o âmbito intermédio entre um apolíneo excesso de
falar “sem nada ditar” e um dionisíaco dizer que cala ou oculta tendo augural enigma. E se no mito a
inteligência era ainda sem fórmula mais como um perfume que se liberta da história livre como essência, já
nas formas pensadas de a conter se arrisca aos “rótulos” sem cheiro de ser, ou a ficar no hermético de um
difícil e dificultado acesso. Aliás, as estratégias do começo da dita linguagem filosófica vacilam ainda entre a
poética de um orfismo em que a música das palavras aceita tal logos, ou o número e a fórmula de rigor numa
idealidade pitagorizante que extreme a dialéctica verbal.
Vem esta reflexão a propósito do que pode entender-se, no caso de Agostinho da Silva, de modo
infindo como ele abre para além da palavra, sendo todavia nos limites desta e justamente pelo seu pendor
didáctico, explicativo, até social, e por isso também comunicativo e moral, que se determina a encenação
literária do seu saber3. Porém, o homem está além disto, a sua existência rica, de um “pensador à solta” e
vadio, transcende a obra escrita e falada ou que aí não se detecta4.
Óbvio que toda esta “vadiagem” ou apólogo da criatividade que tantas vezes é expressa tem origem
no vivo paradoxo de continuidade de um paradigma de produção na e pela língua, sem a ascese literária
(viática do silencia amoroso…), sem o sonho que seria seu de espontânea mutação, de autêntica
impecabilidade, afirmando por exemplo: “O Pai é previsível, o Filho é previsível. E o Espírito Santo? O Espírito
Santo é sempre definido na Teologia como imprevisível. É algo que voa por onde quer”5. Evidentemente que
se acumulariam aqui os paradoxos mas não o vamos valorizar agora. Contudo, a sua crítica à “monotonia”
em branco, de Pessoa ortónimo como ao destino de uma heteronímia meramente literária de um Agostinho
da Silva abrangente e universalista merecerá aturada análise.
“Aos amigos de Outros” dedica Agostinho Um Fernando Pessoa, escrito e publicado em Porto Alegre
em 1959 pelo Instituto Estadual do Livro. Considera Agostinho da Silva que a Mensagem não é apenas e “sem
dúvida a mais importante obra” de Pessoa, como a mais importante obra da cultura Portuguesa não só pela
inteligência como pelo entendimento.
O autor d’Um Fernando Pessoa tem sobretudo como análise a Mensagem nas suas três partes –
Brasão, Mar Português e O Encoberto –, que, como já defendemos em livro6, «correspondem às três
instâncias ôntico-temporais que, na Visão pessoana, delimitam o destino de Portugal. Como escreveu o
próprio Pessoa no seu “prefácio” à obra Quinto Império, de Augusto Ferreira Gomes: “Temos pois que a
3 Afirmava por exemplo, Agostinho da Silva: “o existir e o não existir ao mesmo tempo e, do meu ponto de vista, a união final das
coisas, e isto é paradoxal. Como no exemplo da geometria analítica, que já referi, esse mundo de paradoxos no qual posso pensar
simultaneamente os registos da extensão espacial e da matemática pura”, in Dispersos, Lisboa: ICALP, 1988, p. 133.
4 Numa entrevista ao Diário de Lisboa (19/04/1986), disse: “Cada pessoa deve ser total, completa e ter liberdade para o ser. Sempre
bati no ponto, para mim importantíssimo, da liberdade total, não condicionada: cada um ser aquilo que é (…). O homem foi feito,
para ser um poeta à solta, seja qual for a sua expressão poética. Pode ser a música, a literatura ou coisa nenhuma” (in Dispersos, ed.
cit., pp. 109 e 155).
5 In Ir à India sem abandonar Portugal. Considerações e outros textos, Lisboa: Assírio, 1994, p. 39.
6 Visões de Agostinho da Silva, Lisboa: Zéfiro, 2006, p. 22-30.
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Nação Portuguesa percorre, em seu caminho imperial, três tempos (…).”7. No primeiro, como escreveu
Agostinho, trata-se ainda da “potência sem o acto”. No segundo, trata-se já do acto, da actualização da
potência, acto esse que, contudo, “não esgota [ainda] a potência”. No terceiro, finalmente, antecipa-se a
plena consumação do nosso destino…
Como recorda ainda o próprio Agostinho da Silva, inicia Fernando Pessoa o seu poema, a primeira
parte do seu poema, da sua Mensagem, por afirmar Portugal como o “rosto da Europa”8 – citemo-las:
“A Europa jaz, posta nos cotovelos:/ De Oriente a Ocidente jaz, fitando,/ E toldam-lhe românticos
cabelos/ Olhos gregos, lembrando.// O cotovelo esquerdo é recuado;/ o direito em ângulo
disposto./ Aquele diz Itália onde é pousado;/ Este diz Inglaterra onde, afastado,/ A mão sustenta,
em que se apoia o rosto.// Fita, com olhar esfíngico e fatal,/ O Ocidente, futuro do passado.// O
rosto com que fita é Portugal.” 9
A voz que assim se faz ouvir, se é que nós, na verdade, a ouvimos, é, segundo Agostinho da Silva,
muito mais do que a mera voz do poeta, a voz do próprio tempo, da nossa história, do nosso destino. Diz-nos
ela que “a Europa jaz”, reduzida que está ao que resta das “ruínas gregas”, à nostalgia de um “paraíso
perdido”, como que ancorada no impasse de um “regresso eternamente impossível”. Se assim é, importa,
contudo, levantar de novo as âncoras e (re)iniciar, a bordo desta “jangada de pedra”, a viagem. Como “praia,
pátria ocidental” por excelência, como “lugar da finisterra”, é Portugal, à luz desta visão, “a porta, a ponte
mítica” dessa viagem que só agora, enfim, se inicia…À luz desta visão, toda a nossa história foi, aliás, uma
paciente preparação para a concretização desse “destino espiritual que mal se desenha entre névoas e
sombras”.
Ao contrário do que é voz corrente, esse “destino espiritual” não se cumpriu, contudo, segundo
Agostinho da Silva, com as “Descobertas” – estas não foram nem a nossa “idade de ouro” nem, muito menos,
o nosso “último passo”10. Neste recorrente equívoco reside, aliás, para o autor d’ Um Fernando Pessoa, o
maior entrave à consumação da nossa demanda. Paradoxalmente, dir-se-ia, as “Descobertas” significaram o
nosso próprio “Encobrimento”. Eis, de resto, o que já foi denunciado por outros hermeneutas da nossa
tradição filosófica e cultural, como, nomeadamente, José Marinho, que chegou a escrever que estas, as
7 Quinto Império, pref. de Fernando Pessoa, Lisboa: A.M. Pereira, 2003 (2ª), p. 18.
8 A respeito da caracterização de Portugal como o “rosto da Europa”, ver em particular: Manuel J. Gandra, Da Face Oculta do Rosto
da Europa – Prolegómenos a uma História Mítica de Portugal, pref. de José Manuel Anes, Lisboa, Hugin, 1997 (sobretudo o primeiro
capítulo: “A Europa tem rosto?”, pp. 11-25).
9 Mensagem, in “Mensagem e outros poemas afins”, Mem Martins: Europa-América, 1990, p. 137. Destaque-se, nesta edição, a
magnífica introdução a toda a obra pessoana e, muito especialmente, a este poema que nos é feita por António Quadros.
10 Eis, igualmente, ainda a seu ver, a perspectiva de Pessoa – daí, a título de exemplo, estas suas palavras: “Mas eu suponho que
Fernando Pessoa pensa que Portugal não teve apenas um papel histórico num certo século, para mostrar ao mundo o que era o
mundo, que foi o que Portugal fez, mas que precisa continuar essa obra e passar agora a outro descobrimento muito mais importante,
que é o descobrimento da natureza humana e da sua realização plena. Que Portugal apenas descobriu os outros continentes, mas
que precisa agora que as pessoas descubram, não apenas o mundo que têm fora de si, mas o mundo que têm dentro de si.” [In Diário
de Notícias, Lisboa, 6/10/1994].
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“Descobertas”, representaram, em grande medida, um “descobrir feito à periferia das coisas”11, senão
mesmo, como escreveu ainda, um “caminho para uma visão fechada”12.
Daí, aliás, ainda segundo Agostinho da Silva, todo o sentido da segunda parte da Mensagem. Sendo,
aparentemente, uma exaltação das “Descobertas”, da “Possessão dos Mares”, ela não narra ainda,
verdadeiramente, “a história de Portugal, mas apenas o seu interrompido prólogo”. A sua glória, se é que
glória teve, foi, tão-só, a de “ter mostrado que o mar é sempre o mesmo e que a sua posse nada significa de
vital” e de que “o que vale na empresa de buscar é a busca e não o encontro”13. Eis, de resto, a tese que o
autor da Reflexão à Margem da Literatura Portuguesa nos reiterou em múltiplas outras passagens da sua
obra – daí, a título de exemplo, a sua assumida “resolução de ser diferente, de tomar os rumos não
tentados”14, o seu assumido “prazer de embarcar, [de] embarcar sempre, acreditando cada vez menos nos
pontos de chegada”, de “embarcar num navio que nunca chegará, rumar por mapa e bússola ou goniómetro
para o porto que não existe”15.
Só assim, aliás, poderemos “ser tudo, como Deus”, assim cumprindo esse destino, esse “futuro”, por
Pessoa prefigurado em 1923 – nas suas palavras: “Esse futuro é sermos tudo. Quem, que seja português,
pode viver a estreiteza de uma só personalidade, de uma só nação, de uma só fé? Que português verdadeiro
pode, por exemplo, viver a estreiteza estéril do catolicismo, quando fora dele há que viver todos os
protestantismos, todos os credos orientais, todos os paganismos mortos e vivos, fundindo-os
portuguesmente no Paganismo Superior. Não queiramos que fora de nós fique um único deus! Absorvamos
os deuses todos! Conquistámos já o Mar: resta que conquistemos o Céu, ficando a terra para os Outros, os
eternamente Outros, os Outros de nascença, os europeus que não são europeus porque não são
portugueses. Ser tudo, de todas as maneiras, porque a verdade não pode estar em faltar ainda alguma
coisa!”16.
Este é um universalismo utópico? Decerto não foi e o universal do humanos do “Homem Universal”
que de forma clara e poética nos apresenta também esse outro vulto do pensamento português que foi
Teixeira de Pascoaes. Também esse universalismo que, de outro modo, mas não menor e tendo o mar como
inspiração, o universalizou como algo maior, superior no sentido de nele e com ele. Porém, como se pode
11 Cf. Aforismos sobre o que mais importa, “Obras de José Marinho”, vol. I, Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1994, p.
108: “Os portugueses fizeram a experiência negativa das viagens e sua ilusão no decurso dos círculos que se seguem à empresa do
Infante (...). A experiência negativa das viagens resulta de que o seu humanismo foi principalmente pragmático, o seu descobrir foi
feito à periferia das coisas.”.
12 Cf. Nova Interpretação do Sebastianismo e outros textos, “Obras de José Marinho”, vol. V, Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da
Moeda, 2003, p. 224. Isto apesar da sua inicial inspiração franciscana, de acordo com a tese de Jaime Cortesão que Marinho
expressamente refere [cf. ibid., p. 252].
13 Cf. Ensaios sobre Cultura e Literatura Portuguesa e Brasileira, Lisboa: Âncora, 2000 (doravante: ECLPB), vol. I, p. 94.
14 Cf. Diário de Alcestes. Lisboa: Ulmeiro, 1990 (2ª), p. 37.
15 Dado que, como escreveu ainda: “Não me tentam nada as estradas que vão de um ponto a outro, de que sabemos, à partida, a
quilometragem e a direcção; tentam-me as estradas que não vão dar a nenhum ponto (…).” [Sete Cartas a um Jovem Filósofo, Lisboa,
Ulmeiro, 1997 (2ª), pp. 35-36]. Daí ainda, nesta esteira, este seu conceito de filosofia: “Para o que ama a Verdade não há descanso
nem termo, porque a vê no próprio caminhar, a surpreende no esforço contínuo da marcha; o amor da Verdade não é um desejo de
chegar, mas o anseio de superar. Não me importa o resultado, mas o método.” [Glossas, in Textos e Ensaios Filosóficos, Lisboa,
Âncora, 1999, vol. I, p. 37].
16 Obras de Fernando Pessoa, Porto, Lello, 1986, vol. III, p. 703-704.
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ser ainda na obra Visões de Agostinho da Silva, esse movimento ontológico de outração de si “de todas as
maneiras” implica o sacrifício de toda e qualquer substancialidade identitativa… Por isso, aliás, escreveu
Agostinho da Silva, na sua própria “Mensagem”, que “só então Portugal, por já não ser, será”17. Radica aqui
a singular ideação de Portugal de Agostinho da Silva, a sua ideação de Portugal não enquanto país mas
enquanto “ideia a difundir pelo mundo”18, ideação essa que Agostinho enunciou em diversas passagens da
sua obra, nomeadamente ao explicitar, ainda no seu Um Fernando Pessoa, a sua teoria das três ideias de
Portugal.
Assim, tal como ocorre no poema pessoano, corresponde o “primeiro Portugal” a uma primeira
instância ôntico-temporal: o ser-tempo em que Portugal visava ainda, tão-só, a plena delimitação das suas
fronteiras, da sua substancialidade identitativa. Eis o “primeiro Portugal” que Agostinho da Silva descreve
nos seguintes termos: “O primeiro Portugal foi o Portugal continental, o da defesa contra a Espanha, ou
melhor, contra Castela, e, porventura, sobretudo, o Portugal da velha unidade galaico-portuguesa, o Portugal
lírico e guerreiro das cantigas de amigo e das velhas trovas do cancioneiro popular; nele estiveram as raízes
mais profundas da nacionalidade e nele sempre residiram as inabaláveis bases daquele religioso amor da
liberdade que caracteriza Portugal como grei política (…).”19.
Se este foi, segundo o próprio Agostinho da Silva, o “primeiro Portugal” – aquele que, como dissemos,
visava ainda, tão-só, a plena delimitação das suas fronteiras, da sua substancialidade identitativa –, o
“segundo Portugal”, por sua vez, já não procurou ser apenas o que era, assim impondo a si e aos outros o
seu próprio ser, mas procurou igualmente “o para além de si”, assim iniciando a sua viagem – como logo de
seguida escreveu Agostinho: “Terminada, porém, a fase de expansão, outro Portugal entrou em jogo e muito
mais adaptado à sua tarefa do que o Portugal do Norte, demasiado rígido para as aventuras da miscigenação,
da tessitura económica e do nomadismo que não conhece limites, e, no entanto, firmaria fronteiras (…).”.
Daí, precisamente, a indelimitação do “terceiro Portugal”, ou seja, do Portugal que já não procura
“firmar fronteiras” – ainda nas palavras de Agostinho da Silva: “[Finalmente, o terceiro Portugal] É um
Portugal que não tem seu centro em parte alguma e cuja periferia será marcada pela expansão de sua língua
e da sua cultura de Pax in excelsis que ela levar consigo (…): [é] o Portugal da Hora, o Portugal de Bandarra,
de Vieira e da Mensagem (…).”20. Sê-lo-á mesmo, o Portugal da Mensagem?… A nosso ver sim, em grande
medida. Desde logo porque, tal como para Agostinho, para Pessoa, Portugal era, sobretudo, uma “ideia a
difundir pelo mundo” – não, ressalve-se, para converter os outros ao que nós somos mas, ao invés, para que
os outros sejam plenamente o que são e se reconheçam, também de modo pleno, em si próprios21.
portuguesa” – nas suas palavras: “Arte portuguesa será aquela em que a Europa – entendendo por Europa principalmente a Grécia
antiga e o universo inteiro – se mire e se reconheça sem se lembrar do espelho. Só duas nações – a Grécia passada e o Portugal futuro
– receberam dos deuses a concessão de serem não só elas mas também todas as outras.” [Obras de Fernando Pessoa, ed. cit., vol.
III, p. 702].
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O mesmo defende, a nosso ver, Agostinho da Silva, inclusivamente quando afirma que “Portugal só será
quando for o mundo inteiro e o mundo inteiro o for”22 – com estas palavras, com efeito, também não está
Agostinho a defender uma posição imperialista, de, dir-se-ia, portugalização do mundo. Longe disso.
Agostinho, aliás, tal como, de resto, Pessoa, sempre foi um amante do Múltiplo relativamente ao Uno, da
heterogeneidade relativamente à homogeneidade. Estranho seria, nessa medida, que defendesse a
homogeneização, ainda que portugalizante, do mundo. Ao invés, o que Agostinho defende é que cada um
de nós, por extensão, cada comunidade, se assuma, o mais possível, na sua relativa diferença. Não porque
essa diferença seja, de alguma forma, superior a qualquer outra. De modo algum. Tão-só só porque é nossa,
porque é ela que funda a nossa singularidade. Tão-só. Não se trata aqui, com efeito, de afirmar qualquer
espécie de superioridade de uma cultura relativamente às outras. Todas são igualmente verdadeiras, na
medida em que sejam genuínas. De resto, a verdade não está, à luz desta visão, em nenhuma cultura em
particular. De modo algum. Quanto muito está em todas: não – ressalve-se – na síntese de todas elas, mas
na pluralidade irredutível de todas elas.
Mas – perguntarão alguns – não afirmam Fernando Pessoa e Agostinho da Silva a superioridade da
nossa cultura, da “ideia de Portugal”?… Não exactamente, respondemos nós. O que Pessoa e Agostinho
defendem, mais exactamente, é a superioridade da ideia de que não há culturas superiores e de que, nessa
medida, nenhuma delas se deve sobrepor a qualquer outra, antes, ao invés, todas elas se devem plenamente
expressar. É essa, verdadeiramente, a “ideia a difundir pelo mundo”. Quanto a Portugal, cabe-lhe, não, de
todo, afirmar a sua superioridade – em si mesma, ilusória, como, de resto, a de qualquer outro país –, mas,
tão-só, a superioridade – real – desta ideia. É essa, em suma, a sua missão. Difundir a ideia de Quinto Império
enquanto, precisamente, o espaço-tempo em que cada um, por extensão, cada comunidade, se possa
assumir, em absoluto, na sua relativa diferença – não, de modo algum, afirmar-se como “cabeça” desse
Império23. De resto, o que desde logo caracteriza o Quinto Império, e o irredutivelmente distingue de todos
os outros, é o facto de ele não ter “cabeça” – como lapidarmente escreveu o próprio Agostinho a este
respeito, “paradoxalmente, apenas haverá um 5º Império se não existir um 5º Imperador”24. Replicar-se-á
que sem Imperador não pode haver Império. Eis a réplica que o próprio Agostinho parece aceitar ao ter-se
referido ao Quinto Império como “o tal Império do Espírito Santo que, no fim de contas, não é império
nenhum”25.
Por isso, enfim, sempre afirmou Roberto Pinto, um outro estudioso de Agostinho da Silva, que ele
amou e entendeu o seu povo brasileiro como poucos: “Sua esperança e confiança no destino do Brasil não
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tinha limites. Nunca existiu uma conjuntura histórica, pior que fosse, que abalasse essa certeza de que o povo
brasileiro formará consciência dos seus valores culturais e espirituais, constituirá uma sociedade justa e dará
uma grande contribuição humana ao mundo”. Na verdade, a obra Um Fernando Pessoa de Agostinho da Silva
corresponde em certa medida a um acentuar ainda maior dos vários Pessoas. Naturalmente que Agostinho
da Silva não fora um qualquer analista e leitor da obra de Fernando Pessoa. De certo modo, poderíamos até
afirmar que Agostinho e Pessoa, em grande medida, mas de diferentes formas e expressões, podem ser
entendidos como duas figuras em grande parte complementares sobretudo no essencial de suas Mensagens
e por isso de seu pensamento de “um Mundo a Haver”, o que de outra forma se poderia também expressar
pela fórmula que de suas obras resulta: o “Império só poderá surgir quando Portugal, sacrificando-se como
Nação, apenas for um dos elementos de uma comunidade de língua portuguesa”.
Eis a esperança e a utopia de duas das mais elevadas faces de quem da alma, do coração, da “pátria”
viu a língua portuguesa.
Referências bibliográficas