Ensaios Sobre o Tudo e o Nada

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Héctor Enrique Giana

ensaios
sobre o tudo
e o nada

- 2016 –
2016, by Héctor Enrique Giana - 1a. edição

Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução


total ou parcial de qualquer parte desta edição, por
qualquer meio, sem a expressa autorização do autor. A
violação dos direitos do autor (lei no. 5.998/73) é crime
estabelecido pelo artigo 184 do Código Penal.

FICHA CATALOGRÁFICA
CIP - Brasil

Giana, Héctor E.

ensaios sobre o tudo e o nada

São José dos Campos - SP, Edição do Autor

ISBN no. 978-85-919806-1-1

Índice para catálogo sistemático

1. ensaios sobre o tudo e o nada


Ficção e Contos Brasileiros
ensaios sobre o tudo e o nada

SUMÁRIO

PRÓLOGO .................................................................................................... 9
INTRODUÇÃO ............................................................................................ 16
FALTA DE INSPIRAÇÃO ............................................................................ 17
HOJE MELHOR DO QUE ONTEM ............................................................. 19
ACERCA DO DIÁLOGO COM PASCAL ..................................................... 21
DEVANEIOS SOLTOS ................................................................................ 24
DORMI REALMENTE? ............................................................................... 26
E POR FALAR EM SONHOS...................................................................... 28
Amiga ................................................................................................ 29
E POR FALAR EM SONHOS (2)... ............................................................. 32
EM TEMPO ................................................................................................. 35
SEM REMEDIO........................................................................................... 38
MAIS PASCAL ............................................................................................ 40
UM POUCO DE HISTÓRIA ........................................................................ 45
Reflexão do Tradutor das Reflexões, ou Texto para José... .............. 46
AS BALEIAS AMIGAS ................................................................................ 56
COMO CHEGUEI AO MUNDO ................................................................... 60
ENCONTRO COM ÉDOUARD SHURÉ ...................................................... 63
A IDÉIA DA MORTE ................................................................................... 70
DIÁLOGO COM BACON ............................................................................. 75
MAIS UMA HISTÓRIA... ............................................................................. 80
POETA? ...................................................................................................... 85
QUEM DISSE QUE EU MUDEI? ................................................................ 89
O EU E O DESENVOLVIMENTO INTERIOR ............................................. 92
O PARADOXO DO TEMPO ........................................................................ 95
O VINHO QUE NUNCA TOMEI .................................................................. 98
A VERDADE ............................................................................................. 102
ENCONTRO COM OS MÚSICOS ............................................................ 107

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ensaios sobre o tudo e o nada

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ensaios sobre o tudo e o nada

PRÓLOGO

Julia M. S. da Cunha, 22 anos


Antes de começar a ler, já me perguntei: “O que será que meu
avô está considerando como o tudo? E como o nada?”. Percebe-se
então que o leitor é levado ao caminho da filosofia desde o título do
livro.
“Ensaios sobre o tudo e o nada” começa de forma sutil e
delicada, como se estivéssemos navegando em águas calmas que
fluem vagarosamente, quando de repente nos vemos à beira de uma
imensa cascata que nos faz perder o chão e as certezas que
tínhamos sobre a vida. É aí que está a mágica de filosofar, de sair
da zona de conforto e afrontar o mundo à fora... e o mundo à
dentro.
Por meio de questionamentos o escritor nos inicia à filosofia. O
que estamos fazendo neste mundo? Qual a importância da nossa
existência? Que sou eu? Eu sou? Ou vou vir-a-ser? Aonde tudo isso
acaba? Estamos no meio de um processo chamado vida? Ou ela é
apenas o começo de algo muito maior? Ou o fim?
Mais uma vez meu avô nos faz sair do mundo alienado e
homogeneizado por uma cultura de pessoas cada vez mais céticas e
preguiçosas. A filosofia por traz deste livro é tão profunda que nos
leva ao nosso âmago, ao nosso universo particular e além de tudo,
nos ensina a deixar fluir nossos pensamentos sem colocar barreiras
nele, pois como dizia nosso ilustre mestre Albert Einstein “o
impossível existe até que alguém duvide e prove o contrário”.
Por isso convido a todos que buscam algo a mais da vida, algo
que talvez ainda esteja imperceptível aos nossos olhos, a ler

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ensaios sobre o tudo e o nada

“Ensaios sobre o tudo e o nada” e mergulhar nessa imensidão de


sonhos, de realidades e de sonhos-reais.
Vô, eu venho mergulhando com você nesse mundo paralelo
desde que nasci. Obrigada por me dar a mão e me fazer acreditar em
coisas julgadas inacreditáveis. Obrigada por também me fazer
duvidar delas... (ainda não consegui provar o contrário, então sigo
acreditando e duvidando). Hoje, filosofar faz parte do meu eu
interior e pode ter certeza que eu passarei está mágica do saber para
os meus filhos e assim por diante.
Com muito amor,
Sua neta Julia.

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ensaios sobre o tudo e o nada

Gabriel Soares de Lima, 20 anos


O livro com devaneios, momentos filosóficos do autor e até
alguns sonhos, entretém com anormais historias engraçadas e com
isso discorre sobre diversos assuntos a cerca do cotidiano, porém
sem ser monótono como o próprio cotidiano, filosofa também sobre
alguns mistérios do universo tais como a morte, o tempo e o
nascimento. Com simples historias divididas em pequenos capítulos
o autor faz com que o leitor saia do conforto da rotina e questione o
mundo em que vive.
Além disto com a ajuda da sua "maquina do tempo" o autor te
leva a lugares totalmente distintos e em épocas remotas com o
simples ato de mudar de pagina ou de parágrafo. Com isso o autor
possibilita ao leitor conhecer ilustres figuras da historia como o
filosofo Francis Bacon e o matemático Blaise Pascal, mas não só
conhecer como também adentrar em suas casas, conversar, conhecer
suas ideias e contra argumentá-las.
Todos os devaneios e viagens no tempo estão em historias
simples e interessantes, divididas em pequenos capítulos de um livro
curto mas que não deixa de entreter, divertir e ao mesmo tempo
levar a reflexão e fazer pensar.

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ensaios sobre o tudo e o nada

João Victor S. de Lima, 18 anos


Acredito no poder da palavra. Acredito em quão aberto e
sinestésico o mundo da escrita pode ser, trazendo consigo uma
carga enorme de sentimentos e emoções. No entanto, ao ler este
livro, surgiu em minha cabeça uma pergunta que não cabe em
apenas palavras... Afinal, quais as definições, de fato, para o
Ensaio e o sentido da vida? O costume de aceitar tudo o que nos é
imposto, tira-nos a liberdade de criatividade e imaginação,
atualmente. Por exemplo, por que, tão impossível, acariciar uma
baleia?
A alienação social que circunda o mundo em que vivemos, tem
como base a exclusão dos sentidos e instintos simples da vida. O
inimaginável, no entanto, é o que move esta obra, quebrando
paradigmas e situações, antes não acreditadas, que fazem com que
o leitor crie fatos em sua cabeça de proporções consideradas, no
mínimo, inconcebíveis pelo mundo fático.
Os significantes, compilados, geram significados um tanto
quanto pessoais. Desse modo, a interpretação do universo paralelo,
no qual fui posto quando li “Ensaios Sobre o Tudo e o Nada”, me
gerou uma certa duvida sobre o que, efetivamente é a vida no
âmbito real-filosófico. São os sonhos, verdadeiras formas de
comunicação com o mundo extraordinário? Melhor, O que seria o
mundo extraordinário? Pessoalmente, tentei responder a essas
perguntas em minha cabeça. Sequer, cheguei a alguma conclusão.
Destarte, esta obra, com certeza, inspira e instiga o lado mais
profundo e profano do ser humano. Traz o essencial do pensamento
filosófico ao invés de, somente, despertar o lado superficial de cada
um. Quem sabe, não acabamos de ensaiar a discussão sobre o tudo e
o nada?

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ensaios sobre o tudo e o nada

Pedro Enrique S. de Lima, 20 anos


É com grande respeito e vontade que escrevo este prefacio. É
uma honra escrever um prefacio para um autor tão inspirador como
este, um homem muito inteligente e vivido, com diversas estórias
para contar, e qualquer livro que tenha sido escrito por ele será uma
leitura gostosa que acrescentará os conhecimentos e a cultura do
leitor.
O livro, apresenta muitas estórias, fictícias e verdadeiras, que
acompanham o enredo de forma simples, e carregam consigo a
essência de um homem com muita experiência de vida. O livro veio
para espelhar em suas paginas o conteúdo da mente brilhante que é
a do autor, por isso sua leitura acrescenta o intelectual dos leitores.

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ensaios sobre o tudo e o nada

Carolina S. de Lima, 16 anos


É uma honra ter a oportunidade de prefaciar o livro do meu
avo, um homem inspirador, motivador e inteligente, que neste livro
nos traz à luz com suas historias nos ajudando a transpor uma
viagem entre o mundo imaginário e o real.
O livro nos mostra que nos sonhos não existem fronteiras nem
distancias e o tempo é elástico, não havendo limites nem barreiras,
pois somos livres para voar, sentir e chegar aonde queremos.
A leitura nos leva à busca pelo perfeito, pelo infinito.... e
principalmente ao auto conhecimento.
Sonhar é preciso sempre.... quem não sonha não vive.”

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ensaios sobre o tudo e o nada

Sophia, S. de Lima, 12 anos


Na hora que bati o olho na capa, eu me perguntei: o que ele
quer dizer como tudo? E como nada? Antes de começar a ler o livro
eu pensei: 'Meu avô é muito filósofo, então deve ser algo ligado à
filosofia.
No entanto, quando terminei de ler, eu estava certa! Ele
filosofa de várias coisas como os mistérios dos seres humanos
ligados à vida e a suas experiências, por exemplo.
Ele conta sobre os sonhos dele ligados ao que, de fato, é real
mas sempre com uma mensagem a ser passada, que serve, um tanto
quanto uma lição.
Enfim, adorei ler este livro e conhecer um pouco da sua mente
vovô.
Esperarei ansiosamente pelos próximos.

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ensaios sobre o tudo e o nada

INTRODUÇÃO
O título deste livro é sugestivo e às vezes pode confundir o leitor
mais desinformado. Se levarmos em conta a definição pura e simples,
podemos definir o ensaio como um texto que evidencia ideias e
reflexões do escritor, seus pontos de vista sobre assuntos variados e
pungentes.
A filosofia do tema, que trata ao mesmo tempo de tudo e de nada, já
podendo ser assuntos de muito ou de nenhum interesse por parte de
quem lê, não pretende ser uma verdade absoluta, mas discorrer acerca
das coisas simples da vida olhadas desde um ponto de vista diferente.
Tenho feito um grande esforço para conversar com pessoas mortas,
e neste livro foi possível, com resultados satisfatórios, já que o
interlocutor não pode se defender frente a nenhuma acusação nem
rebater nenhuma crítica. De qualquer maneira, valeu o diálogo
construído sobre os temas que eles bem entenderam em vida.
Também resolvi que o prefácio deste livro seria diferente. Sempre
chamamos alguém conhecido e respeitado para escrever sobre a obra,
esperando que os seus dizeres impulsionem sua distribuição. Em lugar
disto, chamei meus netos, os menores, os médios e os maiores, todos
os seis, para que escrevam aqui o que acham do relatado pelo avô. Por
um lado, exercito a sua leitura e, pelo outro e principal, tento despertar a
veia literária de escritor que existe em cada um de nós.
Acho que ninguém leu alguma única vez um livro de filho ou neto de
escritor, talvez por causa dos próprios progenitores que não os
incentivaram nem à leitura de sua própria obra nem insistiram em torná-
los escritores. Com esperança de poder depositar uma semente literária
nos meus, peço que leiam esta obra e teçam comentários acerca do
que acharam.
Espero igualmente que sejam magnânimos comigo, não pelo
parentesco que nos une, mas pela análise real da obra. O que eles
disserem será colocado, em suas palavras, sem mudar uma única
vírgula. Este será um exercício de duas vias, pois não tenho experiência
neste assunto.
Finalmente e agradecendo sempre, espero que o leitor aprecie a
obra e, se desejar, me retorne ao e-mail que deixo disponível, com
críticas e sugestões que possam acrescentar ideias para o próximo
livro.

Héctor Enrique Giana

16
ensaios sobre o tudo e o nada

FALTA DE INSPIRAÇÃO
Sentado frente a mim mesmo, tentando encontrar
palavras, arrancando inspiração do único lugar possível,
minha alma sofre a mudez do barulho silencioso de
minha pobre mente, que clama por frases e ideias
apelando ao cerne do meu ser. Bem em frente, está a
tela retangular do microcomputador, esbranquiçada pela
lauda vazia no centro dela, a qual espera pacientemente
que as letras apareçam lentamente a princípio e bem
depressa depois, objetivando compor algumas frases.
Não encontro nada... Em vão tento mergulhar
profundo em minhas lembranças ou relembrar sonhos
esquecidos que tragam um pouco de luz para esta nívea
página. O relógio do meu pulso, adiantado como sempre,
me olha risonho no seu rítmico caminhar rumo ao futuro.
Imagino que pense – se é que relógios pensam - que a
culpa da falta de tema se deva a não ter anotado os
sonhos sonhados em noites mal dormidas, e que a
mente, preguiçosa demais para deixar o corpo levantar-
se, convenceu a si mesma que ao amanhecer do outro
dia lembraria com detalhes, ou à falta de escrever os
pensamentos desordenados que por vezes acontecem.
Enfim, de nada vale lamentar o perdido. O tempo
continua passando e a folha ainda em branco do meu
ensaio possível continua no mesmo lugar, olhando
diretamente nos meus olhos e implorando que deposite
algumas letras sobre ela. É bem sabido por todos que
uma folha em branco nada tem a dizer e transita a
vergonha do nada! Será possível que este seja o ensaio
do nada?
Percebo, no entanto, que à medida que vou
pensando acerca da cruel natureza da mente em querer

17
ensaios sobre o tudo e o nada

fazer seu próprio caminho independentemente da


emoção e do sentimento, ideias novas vão surgindo e,
numa primeira análise, tornam-se viáveis para
desenvolvê-las desde um ponto de vista pouco literário
para ser transformado em ensaio. Mas não importa;
quem nesse mundo se importa com este tipo de
literatura? Haja vista que o que nos é oferecido para ler e
o que se encontra no dia-a-dia nas abarrotadas
prateleiras das bibliotecas e livrarias – cada vez menos
visitadas em função da nova moda da leitura virtual sem
o característico cheiro do tradicional papel - mal serve
para manter aceso o inútil barulho mental de quem lê,
quanto mais para causar algum tipo de pensamento mais
profundo e que mereça análise mais detalhada.
Estando o dia de hoje perdido para fazer prosa, já
que os pensamentos mal conseguem se expressar, vou
me despedindo até que a musa inspiradora resolva
fazer-se presente em minha vida. Talvez amanhã... ou
quem sabe quando.

18
ensaios sobre o tudo e o nada

HOJE MELHOR DO QUE ONTEM


Decidi apelar para o truque de recordar uma frase
qualquer e criar uma correspondência poética para o
futuro texto. Depois de buscar em minha memória e nada
encontrar, fui procurar nos livros da minha coleção. Oh,
que fonte de inspiração!! Frases ainda sem sentido
parecem mágicas e a inspiração sobre elas vai brotando
do coração como água do manancial. Plágio, dirão!
Quem sabe... todos plagiamos alguma coisa... sempre.
Mas neste caso, me isento do fato pela criatividade
ousada sobre uma frase antes dita.
O medo de escrever coisas que alguém já escreveu
se agiganta. Hoje, na Internet, encontramos todo tipo de
escrito – é a memória do Universo, como dizem - e o
temor de que alguém chegue e nos diga: “Isto eu escrevi
primeiro que você...”, leva-nos a um impasse de
consciência. Como ser original num mundo onde existem
zilhões de palavras e frases já ditas??
Abro o livro de Pascal que comecei a ler algum tempo
atrás. Lembro-me vagamente de haver lido algumas
frases de impacto e tento novamente encontrá-las para
começar a escrever algo. Como bem sei que Pascal não
mais está entre os vivos e seus eventuais descendentes
devem viver em outros territórios que não o Brasil, e
provavelmente nem sequer devem haver lido seus
escritos, arrisco emprestar-lhe uma frase para poder
desenvolver meu tema. Creio que ele não irá a se
incomodar em discutir comigo certos assuntos, mesmo
que o direito de resposta e de defesa lhe tenha sido
negado pela própria situação. Então, eu lhe darei voz...
Ele afirma que o exemplo de grandes homens muitas
vezes nos ultrapassa por pensarmos que somos menos

19
ensaios sobre o tudo e o nada

virtuosos do que eles, sendo que, –a pesar de tudo-, os


vícios que eles têm, pertencem à humanidade comum.
Por mais elevados que sejam - ou pareçam ser - não
estão suspensos no ar, alheios à nossa comum
humanidade. Se nos parecem maiores é porque suas
cabeças estão acima das nossas, mas seus pés
chafurdam na mesma lama que nós pisamos. Esta
condição nos torna iguais e deve nos tirar o peso da
vergonha...
Bem, essa é a ideia central de suas reflexões; cabe a
mim agora discorrer sobre o assunto sem parecer
ousado ao querer erguer minha cabeça acima da sua,
mas pensando nos pés que se encontram na mesma
terra. Quem sou eu para contestar Pascal? Quem me
dera a alegria de poder filosofar com ele frente a frente!
Mas isso é impossível e terei que me contentar em
simular esta conversa.
Como tenho liberdade de escolha, serei cada um de
nós em tempos diferentes e, quando a discussão for
conjunta e acalorada, limitar-me-ei a silenciar até que os
ânimos se acalmem.
Deixo para amanhã o início da história, pois temo que
seja longa e difícil. Os quase 400 anos de diferença
dificultarão bastante o diálogo!

20
ensaios sobre o tudo e o nada

ACERCA DO DIÁLOGO COM PASCAL


Bati à porta com a aldrava de bronze, simulando o
busto de um anjo. O barulho foi alto ecoando por dentro
da sala. Alguns instantes depois, a porta se abriu e
apareceu o mordomo com seu típico traje preto. Ele me
disse: “bon après-midi, Monsieur Pascal est en attente”.
Meu francês não é muito bom, mas mesmo assim
entendi que o homem estava me aguardando.
Entrei na antessala e pude ver na sala contígua um
homem de costas, sentado frente a uma mesa,
desenhando o que parecia ser figuras geométricas. De
repente voltou-se e me fez sinal para entrar e sentar-me
numa poltrona de couro marrom. Ele se levantou e
sentou-se à minha frente. À luz com reflexos dourados
que saía da lareira consegui ver seus cabelos compridos
e seu nariz aquilino, por debaixo de olhos pequenos,
mas vivazes. O lampião de azeite que servia para
iluminar seus escritos estava encoberto pelo seu corpo.
“Estava terminando um ensaio matemático” –disse.
“O senhor sabe que é minha ocupação habitual; nas
horas vagas costumo filosofar sobre a vida”.
Conhecia bem a ocupação habitual de Pascal como
matemático e físico, pelos numerosos trabalhos e
invenções que havia realizado, mas meu interesse era
meramente filosófico e levei a conversa para esse lado.
O mordomo voltou com uma bandeja com um bule de
chá e duas xícaras de fina porcelana de limoges, e a
depositou sobre uma mesinha estilo Luiz XIV, que era o
estilo que o governante do momento, o chamado Rei Sol,
havia usado e divulgado na sociedade que hoje visitava.

21
ensaios sobre o tudo e o nada

Depois do último gole de chá, agradecendo


polidamente o oferecimento, perguntei sem mais nem
menos: “Li uma frase sua que fala sobre a igualdade do
homem comum com o extraordinário”.
Não creio que quando, na década de 1620 Pascal
dava seus primeiros passos, poderia imaginar-se
conversando comigo hoje, alguém que vinha de um
futuro que nem concebia nem imaginava ser como é. Sei
que ele suspeitava que eu vinha de outro mundo, pelo
modo de olhar para mim, pelas roupas diferentes que eu
usava, pela franqueza com que o encarava numa época
de muito respeito aos pensadores... Mesmo sabendo que
ele havia sofrido a perda da mãe ainda quando era
criança e de ter suportado um pai zeloso e exigente com
sua educação, não dei trégua pela sua eventual retração
de espírito e propus uma conversa de igual para igual.
Poderia ter escolhido para a prosa um tema
matemático que ele tão bem desenvolveu, nas análises
geométricas e aritméticas e sobre as quais tenho certo
domínio, mas escolhi uma de suas frases teológico-
filosófica por ser menos censurável e com maior chance
de idealizar a situação em que me encontrava. De
repente, perguntei-lhe em quem se havia inspirado ao
proferir esta frase. Ele me olhou perplexo e desconfiado,
os longos cabelos cobrindo-lhe parcialmente o rosto
onde se destacava seu grande nariz aquilino, e
suspirando profundamente me insinuou que sendo
intensamente religioso não poderia simular a verdade,
dizendo a seguir que se tratava de Alexandre. Este
homem, a seu ver, era um exemplo de virtude e de
pecado, sendo que o primeiro traço o colocava acima
dos homens comuns, mas o segundo o igualava e o
humanizava tirando-lhe aquele véu de semideus.

22
ensaios sobre o tudo e o nada

A princípio tive que concordar com ele, mas retruquei


que o fato de haver sido o maior conquistador do mundo e
de ter sido discípulo direto de Aristóteles já o colocaria num
lugar de destaque, longe do comum dos mortais. Ele me
olhou novamente e disse concordar parcialmente comigo.
O que eu estaria esquecendo na minha análise era que o
desejo de poder e o compulsivo complexo de superioridade
que havia adquirido fez com que muitas das cidades por
ele conquistadas foram obrigadas a adotar seu nome, entre
outras manias de grandeza. Isto evidenciaria “seu pecado”.
Sugeri então que me desse uma razão para acreditar
que estes episódios desmerecessem o fato de haver se
tornado rei tão jovem, de um mundo em constante
expansão fruto de seus muitos méritos militares. Ele não
me deu; simplesmente me disse novamente que o
considerava um grande homem, mas pequeno em seu agir
inconsistente, o que o igualava a pessoas como ele mesmo
e como eu. A diferença estava em que o comum dos
homens nada realizou de grande e sua cabeça permanece
no nível humano ordinário, e que ao olhar para cima vê
destacada a cabeça dos grandes seres, mas que ao olhar
para baixo não vai diferenciá-los mais, já que todos
pisamos a mesma terra. O único ser conhecido que
literalmente se elevou da terra foi Jesus, e este sim era um
grande homem, cuja cabeça tocava o céu! Como sabia que
ele professava a religião católica, nada acrescentei ao
respeito.
Quando ia contra-argumentar disse-me que era hora de
ir à missa e que essa era uma prática que reafirmava sua
ideia; todos de joelhos no chão elevando suas preces para
o alto, onde residem os que não tocam a terra com seus
pés. Até o próprio Alexandre havia feito isso em relação à
divindade antes do cristianismo aparecer!

23
ensaios sobre o tudo e o nada

DEVANEIOS SOLTOS
O papo que tive com Pascal me deixou melhor; agora
me sentia leve e solto e podia comparar-me a grandes
homens porque sabia que, na terra, éramos todos iguais.
Na realidade a conversa foi mais para reafirmar meu
desejo do que para contestá-lo, já que a única forma de
ir adiante neste mundo é saber que somos todos iguais,
independentemente de posição social ou intelectual. Isto
nos dá ânimo novo para tentar crescer e fazer adiantar à
humanidade no caminho do desenvolvimento.
Pensei: como evitar o avanço de amor próprio e do
egoísmo, sabendo que caminhamos para a esfera do
super-homem? É só saber que para atravessar a última
porta todos temos que passar juntos, senão ninguém
passa. Então é o mesmo ir à frente ou ir atrás; é uma
questão de escolha pessoal, já que tendemos a ir ao
mesmo sítio e o caminho pode ser mais ou menos
sinuoso, dependendo de nossa escolha.
Uma vez me perguntaram sobre o tempo; o que
achava de viver mais ou menos anos. Lembrei-me do
conceito matemático do mais e menos infinito e do ponto
intermediário que sempre é zero. Então, um, cem ou mil
anos, na eternidade, é a mesma coisa. O importante não
é “quanto”, mas sim “como”, ou seja, viver tão
intensamente que não importe o ontem nem o amanhã;
somente o hoje.
Claro, irão dizer-me: então se é tudo o mesmo, para
que preocupar-se com as coisas? E eu repetirei o que
muitos já disseram: deram-nos a vida de presente por
algum motivo; alguém tinha um plano e desejava cumpri-
lo através de nós. A manifestação do espírito universal
se fez em pequenas porções, como para evitar a dor da

24
ensaios sobre o tudo e o nada

matéria. A ideia foi que cada pedaço apreendesse tudo o


que pudesse para depois compor o todo novamente,
com todas as informações reunidas na mente universal,
a maior “mentoteca” de todos os tempos. E permanece
ai, para ser consultada por todos, como um grande
computador, como a Internet, com coisas boas e ruins,
mas com a possibilidade do homem poder transcender e
elevar-se até o pináculo do universo.
Nesse mundo, o sono e a vigília fazem parte do todo.
Descansar é preciso, mas se pensarmos que passamos
mais de um terço de nossas vidas dormindo, na média
humana de 75 anos, perdemos 25. Claro, dirão que
descansar é necessário para a recuperação das forças
físicas, mas grandes homens aprendiam a dormir
acordados e se alheavam somente uma ou duas horas
por dia. Eles produziram muito mais do que nós, simples
mortais, e seu produto intelectual perdura e serve de
guia para o resto da humanidade.
E agora, como tenho pouco de grande homem, vou
dormir para recuperar minhas próprias forças. Como
dizem, amanhã será outro dia, e se a providência nos
regala um novo amanhecer, renovaremos as chances de
procurar nosso desenvolvimento... até o próximo sono.

25
ensaios sobre o tudo e o nada

DORMI REALMENTE?
Quando acordei, ou me dei conta de mim mesmo,
ainda era noite. O relógio eletrônico de números grandes
que comprei quando as cataratas de meus olhos não me
deixavam enxergar, marcava duas e dez. Mas como...,
se deitei pouco antes da uma hora da madrugada?
Então somente fechei meus olhos por uma hora e
pouco? Pois bem, como demorei quase meia hora para
pegar no sono, então realmente dormi muito pouco...
Toquei o lado direito da cama e lembrei que minha
companheira estava viajando. Um vazio enorme se
apoderou de mim e minha mente, -ah! essa mente!-
começou a rodopiar pelo mundo e não descansou mais
até que os primeiros raios de sol entraram pela janela
semi-aberta.
O que passou pela minha cabeça pensante em todo
esse tempo é algo que não dá para descrever. Planejei o
dia que estava amanhecendo, relembrei o dia anterior,
viajei por mundos indescritíveis pela riqueza de cores,
formas e odores, aqueles que só são possíveis no lusco-
fusco entre o sono e a vigília, enfim, tudo aquilo que
cabe numa mente que, na escuridão da noite e com todo
o tempo do mundo, pode pensar.
Passou pela minha mente também o fato de que era
muito comum em mim esse estado de coisas. O sono se
postergava e a mente aproveitava para tecer milhares de
situações que, no estado de vigília normal, não eram
possíveis. Soltar a mente era uma coisa que havia
aprendido desde criança por força das circunstâncias. Já
me havia tornado príncipe de um país formoso, um
importante homem de negócios, um poeta feliz da Idade
Média, podia voar por onde quisesse burlando a lei da

26
ensaios sobre o tudo e o nada

gravidade, flutuando e arremetendo quando quisesse


para lugares incríveis, enfim, minha liberdade de corpo e
de alma era total. Esta ilusão certamente seria quebrada
quando o sol chegasse e iluminasse meu quarto; isto
sempre acontecia, mas nunca dei importância ao fato
porque importava o resultado que, indelevelmente, ficava
registrado em meu espírito.
Nesse meio tempo, lembrava-me de um poema que
havia escrito em setembro de 94 - muitos anos atrás -
chamado “sonhei”, no qual também não tinha certeza se
havia dormido ou não, e que dizia:
Sonhei que sonhei
que ainda dormia.
No meio do sonho
acordado dormindo,
ou dormindo acordado,
eu desconhecia
se o sonho sonhado
qua agora ocorria,
é sonho desperto
ou desacordado,
ou então simplesmente
sonhei que sonhei
que ainda dormia
e ainda sonhei
que ainda dormia...
Esfreguei os olhos com as palmas das mãos, pensei
rapidamente e soltei uma exclamação: “agora eu não sou
ninguém! Vou andar que nem zumbi o dia todo!”
Que nada... fiquei fresco como uma folha de alface
recém retirada do pé! Nada de sono nem de preguiça.
Levantei-me de um salto, tomei banho e fui trabalhar.

27
ensaios sobre o tudo e o nada

E POR FALAR EM SONHOS...


No trabalho não consegui concentrar-me. Mil figuras
acudiam à minha mente querendo tentar explicar o
inexplicável.
Lembrei-me de uma imagem que me persegue há
muitos anos. Estava eu sentado em frente à televisão e
vi na tela uma senhora assistindo um filme em sua
própria TV. Dentro da tela do filme da TV da senhora, um
garoto, sentado em frente à sua própria tela de televisão,
também assistia alguma coisa que não pude distinguir
mais pelo tamanho reduzido da imagem. Durante anos
tentei deduzir o que significava esta louca imagem, mas
nunca consegui.
Uma coisa é certa: eu era consciente da existência da
mulher que assistia ao filme, e também do garoto do
filme dela, sendo que a mulher à sua vez era consciente
do garoto na tela de sua TV, mas não de mim, que a
estava assistindo. Ao mesmo tempo o garoto era
consciente de sua própria fita, mas não da senhora que o
assistia nem de mim, que assistia os dois. Bem, isso
significava certamente que eu poderia estar na tela de
alguma TV assistindo os filmes anteriores e por trás de
mim haveria alguém ou muitos outros me assistindo! Da
mesma forma que a senhora não sabia de minha
existência, nem o garoto, da existência da senhora, eu
também não poderia saber da existência daquele ou
daqueles que estavam me assistindo...
O pior de tudo foi constatar, pelo tempo do filme, que
a senhora em questão e o garoto da tela da senhora já
haviam morrido há alguns anos atrás. Claro que nesse
instante eles estavam vivos dentro de suas respectivas
telas mesmo que estivessem mortos a esse tempo na

28
ensaios sobre o tudo e o nada

minha vida de assistente de TV. Pensei rapidamente:


eles estão mortos e não sabem... e eu então? Será que
estou vivo somente nesta tela da vida, mas efetivamente
morri e não tenho consciência disso? E os outros? Onde
começa tudo e onde termina? Quantos há na minha
frente e quantos há por trás de mim? Lembrei
vagamente da teoria dos mundos paralelos e tentei
adaptar a imagem a ela; não consegui.
Talvez, pensei, nos sonhos ocorra o mesmo
fenômeno. Sonhamos com algo ou com alguém e lhe
damos vida no momento do sonho; quando acordamos,
o ser objeto do sonho morre até o próximo sonho, se o
trazemos de volta... E se alguém estiver “me sonhando”?
Como saber se o meu sonho não é o sonho transferido
por outro? Isto significa que se eu sou objeto do sonho
de alguém, na realidade eu não estou vivo, senão na
imaginação de quem me sonha. E se quem me sonha
morrer, eu morro junto com ele, já que minha existência
está a ele ligada. Que confusão, não é mesmo? Vai ver
que é precisamente por isso que não consigo dormir!
Recordei um poema sobre a sombra, que fiz há
algum tempo. Minha sombra vive porque eu vivo. No
momento em que eu morrer ela morre junto comigo:

Amiga
Sempre, desde que eu me lembro,
uma fiel amiga me acompanha,
discreta às vezes e outras evidente,
mas sempre perto, sempre atenta.

Nunca sequer me apontou um erro,


nem tampouco me disse nada ,
silenciosa e paciente, fiel e solidária,
nunca de mim se separou, nem nada...

29
ensaios sobre o tudo e o nada

Quando o dia amanhece, me segue,


quando cedo anoitece, me deixa,
do lado de fora, sempre me espera,
nada cobra, nada diz, nada reclama.

As vezes a sigo, pois muito me atrai,


outras vezes vem por trás, sorrateira,
sempre aos meus pés, como adorando
o que nunca teve, nem terá jamais.

Não gosta do escuro, sempre ausente


quando nuvens cobrem o sol radiante,
sempre ausente quando a tarde se inclina,
e só volta a aparecer na manhã seguinte.

Que sutil seu ar distante e efêmero,


está viva somente porque eu vivo,
que será dela no futuro, em breve,
quando a morte finalmente me leve!

Sombra amiga, amiga e companheira,


sentirei saudades quando não mais te ver,
e saberei, nesse momento angustiante,
que nunca mais também eu me verei.
Bem, poderão apreciar que minha vida (ou suposta
vida) não é nada fácil. Tentar entender o mundo onde
vivemos ou onde pensamos que vivemos é tarefa
hercúlea, com leve lembrança de loucura e de conflito
existencial. Para isso existem os psicólogos e os
psiquiatras: para tentar explicar-nos a realidade. Isso, é
claro, se não os convencemos do contrário e formarmos
um bom grupo de deficientes existenciais! Nesta matéria,
eles serão os mais loucos, já que carregam os traumas e
lembranças dos seus (im) pacientes.
Vejo muitos de meus amigos viverem felizes na terra
do faz de conta, da realidade mundana, na qual não
existem dúvidas nem incertezas sobre a vida e a morte,

30
ensaios sobre o tudo e o nada

e invejo a cada instante essa forma fácil de viver. Quem


é que em são juízo irá se questionar se está vivo ou
morto pelo simples fato de ligar a televisão ou deitar para
sonhar o sonho dos justos? Muito mais simples seria
alhear-se do mundo e viver cada instante como se
tivéssemos todos os instantes do universo à nossa
disposição.
Mas não posso, o destino quis que questionasse
tudo, até a vida e a morte. E o pior de tudo é que sei que
nunca irei desvendar este mistério e seguirei vivendo (ou
morrendo) com a angústia existencial de não saber quem
sou ou, se pelo menos, sou.
Neste devaneio todo, perdi a noção do tempo e já
está escuro novamente. Vou me recolher à minha sala
de TV para ver se "possibilito a vida de alguém"
assistindo um bom filme. Só espero que quem me estiver
assistindo não desligue o interruptor da sua TV, e se por
acaso o desligar, que rapidamente se recolha a seu sono
e me sonhe como antes, como sempre, com luxo de
detalhes, assim posso viver mais um pouco neste mundo
louco onde todos estamos, e poder seguir questionando
minha (in) existência até descobrir tudo aquilo que há
muito me atormenta.

31
ensaios sobre o tudo e o nada

E POR FALAR EM SONHOS (2)...


Liguei a TV e fiquei quase uma hora olhando para a
tela. Se me perguntarem o que vi direi que não lembro.
Minha cabeça ainda tentava entender o assunto dos
sonhos e nada do que passava em torno de mim fazia a
mínima diferença. Nada me importava e a obsessão
crescente de tentar entender o mundo que existia
através de mim mesmo não me deixava alternativa de
pensar em outra coisa.
Decidi deitar; quem sabe poderia sonhar algo que me
jogasse luz sobre a escuridão que me envolvia...
Creio que demorei umas duas horas para conciliar o
sono. Digo creio, porque meu sono é muito superficial e
nunca sei se durmo ou vigio.
De repente, vejo-me numa praça com bastante gente
indo e vindo; eu andando em direção de uma rua estreita
e escura, com minha carteira na mão. Mais ou menos no
meio do quarteirão percebi que um homem maltrapilho,
de uns cinqüenta e tantos anos me seguia, olhando
fixamente nas minhas costas. Pensei rapidamente que
queria minha carteira e apurei o passo. Ele também o fez
e começou a correr um pouco tentando me alcançar.
Num dado momento enfiou a sua mão no bolso da calça,
segurou um objeto e o arremessou contra mim sem me
acertar. Peguei o objeto do chão e o arremessei contra
ele. Ele gritou e me disse que porque havia lhe lançado
meu melhor perfume. Perfume? –pensei.. Obviamente
queria me distrair.
Quase ao fim da ruela encontrei com dois homens
mais jovens que observavam a cena. Um deles disse
que o que vinha no meu encalço demonstrava
tipicamente o desejo de me furtar. Disseram-me para

32
ensaios sobre o tudo e o nada

seguir adiante que eles o entreteriam para não me


alcançar. Acreditei e segui em frente até que a rua
começou a estreitar finalizando num portão de madeira.
Olhei para atrás e vi os três homens rindo
sorrateiramente, vindo em minha direção. Percebi então
que estavam combinados de antemão e que o ardil fazia
parte de um plano maior.
Sem pensar muito abri o portão e dei de cara com
uma ampla sala, sem mobília, acabando em um
corredor. Fechei o portão e segui adiante. Quando
cheguei ao corredor encontrei-me com mais quatro ou
cinco homens rindo da minha cara e falando que agora
não teria escapatória.
Corri por entre meio deles e saí a um pátio-jardim
com muita vegetação procurando uma suposta saída que
não existia. Percebi então que era o fim do caminho e,
sobressaltado, acordei. Que sonho estranho, -pensei.
Não gostei nada dele nem como terminava no final.
Como tenho facilidade para sonhar, mesmo desperto, ou
no lusco-fusco entre o sono e a vigília, fechei os olhos e
voltei propositalmente à praça do inicio do sonho. Lá
estava o homem maltrapilho olhando para mim como da
primeira vez. Em vez de seguir pela ruela, voltei-me para
ele e o encarei de frente. Ele se assustou e fugiu
correndo, provavelmente para procurar outro incauto que
o sonhasse e lhe desse vida. E eu troquei de historia
com a mesma facilidade com que havia sonhado a
primeira.
Sem poder dormir imaginei por que nos sonhos
vamos e voltamos no tempo e na história sem maiores
problemas, o que na vida real nos parece tão difícil.
Quando tomamos um caminho que não apreciamos
jamais podemos voltar atrás e caminhar outro sem o

33
ensaios sobre o tudo e o nada

assumir o custo do primeiro. Sabemos que existem


numerosas possibilidades, mas só uma vinga e se torna
real.
Deve ser por isso que existe tanta gente no mundo da
lua, que vive sonhando, alheada do mundo real pela
facilidade de acomodar as coisas sem custo aparente.
Dizia um grande amigo meu, PD Ouspensky, que o
homem pensa que sabe, ama, detesta, lê, escreve,
empreende guerras, enfim, faz coisas, mas que na
realidade nada faz, tudo acontece a si próprio, porque
ele não maneja sua própria vida. Então, sonha que vive
uma vida feliz e produtiva, mas não percebe que a
diferença entre o sonho e a vida real é um abismo
intransponível para quem não quer viver.
Por isso mesmo, tenho pavor do sono que sonha e
procuro permanecer na vigília do sonho para que eu
possa ditar as regras e não ser vivido por elas. Mas isso
é tema de outra história que relatarei e que ainda tem
seus inconvenientes, como veremos mais tarde.

34
ensaios sobre o tudo e o nada

EM TEMPO
Devo realmente pedir desculpas pela ausência destes
dias (talvez o leitor não perceba, porque a continuidade
do escrito é imediata, mas para mim, passaram-se mais
de 20 dias...). Acontece que viajei para o exterior e lá
não consegui escrever nada; visitas, passeios, enfim,
nem sentei frente ao teclado nem rabisquei palavra
alguma. Sentiram falta? Pois é, eu também,
principalmente porque eu cobro vida e sou real quando
vocês me lêem, caso contrário não sou mais do que
outro sonho...
Este devaneio me fez pensar na ocasião em que a
viagem para o exterior foi para fora de mim mesmo e não
para fora do país. Ah!... Esta viagem é muito mais difícil
e complicada do que aparenta, senão vejamos o
seguinte relato.
Numa primavera qualquer, lá pelos idos da década de
90 - no século que nos antecedeu - tentei projetar-me
fora de mim, conforme relatos esotéricos de pessoas que
o haviam feito. Tudo começou quando percebi que meu
exterior era somente visível através de meus olhos e que
quando os fechava, perdia contato com ele, o que me
levava a interiorizar-me cada vez mais, centrando-me em
mim mesmo, no próprio âmago de meu ser. Fato curioso
este, já que em mais de quarenta anos de vida era a
primeira vez que me ocorria pensar nisso. Sem me olhar,
sem ver meu corpo com meus próprios olhos, eu não era
real, ou pelo menos assim parecia. Claro que os demais
sentidos permaneciam intactos, mas eles estavam à
deriva sem o apoio da vista. Entendem, não? Imagine
alguém lhe oferecendo um copo d‟água tendo você que
experimentar o odor e o sabor sem ver. E se a água

35
ensaios sobre o tudo e o nada

estiver suja? Ou colorida? Quem iria beber em são juízo?


Como já falei, os sentidos são interdependentes...
Nestes pensamentos me encontrava quando decidi
sair de meu corpo e transitar conscientemente o meu
entorno exterior, quer dizer, maximizar meus sentidos
independentemente de meu ser físico. Não é nada fácil,
como disse antes, mas vale a tentativa pela experiência
que se ganha.
Vocês devem estar curiosos em saber como se faz
isto, não é? Pois bem, vou revelar o segredo. Há um
conhecimento relatado do estado de quase-morte.
Aquela fase ou condição em que você não está mais vivo
mas ainda não está morto... Bem, nesse estado, o
interior sai do corpo físico e se projeta para fora de si.
Claro, isto implica em aceitar que não somos uma
unidade indivisível, mas que somos constituídos pelo
menos por mais de um corpo, mais ou menos sutis ou
mais ou menos grosseiros, mas obrigatoriamente
interdependentes e não condicionados à união vital.
Quer dizer, se o corpo físico morre, por exemplo, o outro
não necessariamente morre junto com ele, senão
perguntem a qualquer ser religioso o qual, através de
diversas teorias, confirmará o que estou dizendo; como a
maioria da população do mundo acredita em alguma
forma de religião, não será difícil explicar e entender este
caso, só bastando aceitá-lo como verdadeiro.
Isto posto resta definir o método da viagem. Lembram
dos faquires? Dizem que eles suportam a mortificação
física porque ao sair do corpo não sentem a dor. Mas
este fato ainda não mostra como sair do corpo!
Vamos chamar a atenção ao fato de que quando
dormimos e sonhamos, as coisas parecem acontecer

36
ensaios sobre o tudo e o nada

fora de nós, mas de forma casual e involuntária. Lá


podemos ir e vir por grandes distâncias, estar em vários
lugares ao mesmo tempo, vivenciar coisas que
acontecem em outros lugares, enfim, independentizar
nossa ação do corpo físico. Mas como conseguir fazer
isto de modo consciente, sabendo a cada instante que
somos artífices de nossa ação? É simples, devemos
sonhar acordados! Isto nos levará ao mundo exterior e
nos permitirá dirigir nossas ações independentemente de
nosso corpo. E quando digo nos levará, estou afirmando
que somos o corpo sutil que falamos anteriormente e que
determina nossa real existência. Alguns chamam de
alma, espírito ou qualquer outra denominação que não
seja a física.
Não custa nada tentar. O primeiro que acontece é
perceber nosso corpo estático, estando nosso eu-mais-
sutil situado fora dele. Como se víssemos outra pessoa
dormindo e nós estivéssemos acordados, mas sabendo
que ambos somos um e o mesmo em situações
diferentes. Ai podemos tomar contato com nosso exterior
através da essência pura de nossa individualidade, sem
a intervenção incômoda de nosso ser mais grosseiro,
nosso corpo físico que tem fome, sede, necessidades e
que sofre por tudo!
Uma vez solto nosso eu-mais-sutil, podemos ficar à
vontade para locomover-nos e imaginar o que
quisermos, mesmo sem que seja real. O importante aqui
é liberar as possibilidades que são impossíveis de
realizar dentro de nós, no estado de vigília comum.
Como isto parece um sonho, voltar deste passeio não
é nada difícil. É como se estivéssemos acordando para a
vida, com a lembrança viva do objeto sonhado.

37
ensaios sobre o tudo e o nada

SEM REMÉDIO
Aqui bem que eu poderia mentir. Somos livres para
fazê-lo ou inventar historias verossímeis para tentar
minimizar o impacto de uma situação que nos oprime.
Quem poderá nos acusar de mentirosos por esconder
algo que não queremos dizer? A lei é clara ao respeito
disso: ninguém pode fazer provas contra sua própria
pessoa.
Enfim, acho que não vale a pena esconder o que
agora vou dizer, tanto porque acredito que ninguém liga
a mínima para meu desleixo. Pois é. Faz mais de um
mês que não escrevo nada...
Poderão dizer que é falta de inspiração, que não sou
um bom escritor, que não tenho consideração pelo
público ou que simplesmente sou relaxado. O que isso
muda para a situação real? Se eu não falasse, ninguém
ficaria sabendo, porque como disse antes, o tempo é tão
relativo que se demorasse um século para acabar esta
obra e não dissesse nada, ninguém ficaria sabendo e
todos, sem exceção, colocariam flores no meu túmulo a
título de gratidão pela pretensa obra ou me execrariam
sem piedade por motivos óbvios.
Claro, existe ainda a tristeza do esquecimento que
não é mais do que falta de memória provocada pela
ausência da leitura do livro ou pelo olvido proposital.
Como sabemos, nesta contenda sempre seremos
relegados, mesmo que isso doa, mas devemos aceitar o
fato de que até nós mesmos nos esquecemos às vezes;
senão, perguntem ao psiquiatra alemão Alois Alzheimer,
que citou esta característica humana no começo do
século passado, traduzida no declínio cognitivo que
padecemos quando nos acomete esta doença.

38
ensaios sobre o tudo e o nada

Não esqueçamos ainda que gregos e romanos


adoravam o deus do tempo, porque sabiam que o tempo
prevalece sobre qualquer outra coisa. Cronos, que
empunhando sua foice destruía tudo sem piedade,
chegando até castrar seu pai, enquanto que sua irmã
Mnemósine, deusa da memória, o enfrentava tentando
preservar um pouco do que ele destruía, nunca
conseguia preservar completamente os fatos. No final,
como antes dissemos, o tempo sempre vence a
memória.
Falo aqui do tempo e da memória porque são os dois
elementos necessários para a sobrevivência de uma
obra. Vejam, senão, a Ilíada, que Homero escreveu há
tantos anos atrás. Até hoje é tema de literatura e de
debate. Perdurou no tempo e na memória da
humanidade. Vejam a Bíblia e tantos outros livros
similares que, apesar do tempo em que foram escritos,
permanecem vivos até hoje.
Em verdade vos digo, emprestando a célebre frase de
Jesus, o Cristo, que esta delonga somente pretende
justificar minha declarada falta de critérios para criar boa
literatura, servindo também para desculpar uma próxima
vez que, com certeza, haverá.
Quem poderá dizer o contrário?

39
ensaios sobre o tudo e o nada

MAIS PASCAL
Depois do diálogo que tive com Pascal e de tê-lo
deixado para que fosse à missa, ponderei oportuno voltar
em outra oportunidade para falar de religião. Sabia, por
haver lido seus escritos, que era extremamente religioso
cristão e obcecado pela única religião possível: o
cristianismo, segundo suas próprias palavras. O que
mais me preocupava era o desprezo destemido que ele
possuía pelas outras vertentes religiosas, especialmente
pelos seguidores de Maomé.
Imbuído destes pensamentos, sem percebê-lo, estava
novamente à frente de sua residência.
Como antes, bati à porta com a aldrava de bronze
que simulava o busto de um anjo (propositalmente
colocado ali, pensei). Alguns instantes depois a porta se
abriu e apareceu o mesmo mordomo com seu típico traje
preto. Desta vez ele não disse nada e me olhou com um
ar de censura, como se estivesse a importunar seu amo
com minha visita inesperada. Disse a ele que gostaria
imensamente trocar umas palavras com Monsieur Pascal
para tratar de assuntos particulares.
Sem dizer palavra, desapareceu pelo corredor
dirigindo-se ao interior da casa, enquanto esperava na
porta. Poderia ter me convidado a adentrar na antessala,
mas achei que esse tipo de fineza não combinava com o
seu espírito carrancudo e sério.
Pouco tempo depois, voltou com ar resignado e
vencido e me disse que Monsieur Pascal poderia me
receber por pouco tempo já que teria logo mais outro
compromisso. Imediatamente pensei em outra missa,
mesmo que a hora não fosse apropriada para a
celebração, mas conhecendo-o, poderia ter ascendência

40
ensaios sobre o tudo e o nada

direta com o bispo local e este lhe poderia conceder este


privilégio.
Entrei na sala que já conhecia e vi Pascal sentado
frente à mesma mesa, escrevendo sobre um grosso
caderno irregularmente pautado, com sua tradicional
pena de ganso imergida em um pote de tinta preta. Sem
levantar os olhos do papel, fez-me sinal para sentar-me
na poltrona de couro marrom em que me havia recebido
anteriormente, deixando agora o caderno e a pena,
tampando com delicadeza o pote de tinta, para
finalmente levantar-se e sentar-se à minha frente.
Como na primeira vez, ele quis dar satisfação do que
estava fazendo, mais para ele próprio mudar de estado
de espírito do que para realmente explicar o que estava
fazendo antes. “Estava escrevendo um ensaio sobre
religião cristã e sua importância no mundo em que
vivemos. É muito triste ver por aí o descaso que se faz
da nossa religião, a tal ponto de perceber que o próprio
Jesus está, com certeza, aborrecido pelos rumos do
mundo que ele pensou em modificar, morrendo por ele.”
Não pude deixar de abrir um largo sorriso ante suas
palavras e percebi que ele se incomodou bastante, como
se eu estivesse debochando de suas afirmações. Disse a
ele imediatamente que o que acabara de dizer era
justamente o tema sobre o qual queria trocar ideias e
tentar entender melhor sua visão um pouco radical de
perceber o cristianismo...
Ele me interrompeu imediatamente e disse que havia
pensado muito sobre o assunto e que tinha numerosos
escritos que afirmavam esta colocação. Eu não poderia
dizer a ele que já havia lido seus “Pensamentos” já que
vinha de uma época diferente, mesmo que ele

41
ensaios sobre o tudo e o nada

suspeitasse. Isto causaria uma confusão mental muito


grande no meu anfitrião, então disse que gostaria de ler
ao respeito para inteirar-me melhor de sua posição.
Pascal disse que estava tudo desordenado e que
precisaria reclassificar. Lembrei-me então de Simone
Weil e seus “Pensamentos Desordenados Acerca do
Amor a Deus”. Quanto ainda teria que trabalhar e
escrever para chegar a um consenso!!
Perguntei a Pascal sobre uns comentários que ouvira
dizer nas rodas sociais em Paris, em que se dizia que ele
afirmava que Maomé não teria nenhuma autoridade
(como religioso). Ninguém testemunhava sobre ele no
mundo, ao contrário de Jesus Cristo que, além dos
conhecidos milagres, não promulgava em direito próprio,
mas era testemunhado a cada instante pelos seus. Claro
que não podia dizer que neste século o Islamismo
alcançava uma proporção numérica assombrosa e que
no futuro seria bem mais evidente...
Ele me olhou fundo nos olhos e como que cansado
me respondeu que o povo falava demais, ninguém tinha
fundamento teórico como ele próprio, já que ninguém se
esforçava para aprender, mas se dedicavam à fofoca e
maledicência sem beber nas fontes da sabedoria. Disse
ainda que Maomé atribui propriedade sobre o Alcorão,
mas ele próprio achava que seria similar aos Evangelhos
dos quatro Evangelistas. Além do mais, Maomé nunca foi
pré-anunciado como o Cristo, nunca fez milagres e
proibia que se lessem as escrituras judaicas. (Se Pascal
conhecesse um pouco de Árabe, saberia que Qur-ân –
Corão-, significa precisamente leitura!)
Não quis contradizê-lo, mas lembrei-me de uma
passagem de Coríntios, XII que ele mesmo havia
analisado anteriormente e que contradizia sua posição

42
ensaios sobre o tudo e o nada

antimaometana e antissemita, dos não seguidores de


Cristo. Ele dizia textualmente:
“ Não devemos amar senão a Deus, e não odiar
senão a nós mesmos.
Se o pé tivesse ignorado sempre que pertence a um
corpo, e se houvesse um corpo de que ele dependesse,
se só tivesse tido o conhecimento e o amor de si mesmo
e viesse a saber que pertence a um corpo, do qual
depende – que pesar, que remorsos de sua vida
passada por ter sido inútil ao corpo que lhe infundia a
vida e que poderia tê-lo aniquilado se o separasse de si
como o pé se separava dele! Que súplicas para ser
conservado! E com que submissão se deixaria governar
pela vontade que rege o corpo, a ponto de consentir em
ser amputado se isso fosse preciso! Do contrário, ele
perderia sua qualidade de membro, pois é necessário
que cada membro esteja pronto a perecer pelo corpo,
que é o único a quem todos devem a existência. ”
Provavelmente Pascal atribuía a seu Deus o papel de
único corpo, desconhecendo outros deuses possíveis,
com nomes e origens diversas dentro do monoteísmo
reinante à época. Disse a ele que talvez devesse
considerar esta possibilidade para não ser tão severo no
seu julgamento.
Sentia que ele achava no mínimo estranho que um
estrangeiro desconhecido e bem mais jovem, rebatesse
e criticasse suas ideias. Ele não disse nada sobre isto,
mas deu a entender quando respondeu.
“Meu jovem, admiro sua inteligência e interesse neste
assunto, mas permita-me dizer que já estou velho
demais para mudar toda a teoria e a crença que me
levaram a este ponto. Entendo que possa haver falhas e

43
ensaios sobre o tudo e o nada

lacunas nela, mas a posteridade se encarregará de


colocar as coisas no seu lugar. Por enquanto, irei
continuar escrevendo com base em minhas convicções e
espero que o futuro não me julgue tão severamente.
Você próprio é meu futuro e haverá outros como você
que contestarão o que digo. Mas uma coisa é certa, é
muito mais importante errar por haver tentado explicar
nosso mundo que deixar passar a vida em branco sem
haver-se preocupado por explicá-la. ”
O mordomo apareceu com uma bandeja com um bule
de chá e duas xícaras, e a depositou sobre a mesinha.
Pausadamente e sem pressa fomos bebendo o líquido
quente, cada qual envolvido em seus pensamentos,
olhando para o vazio.
Quando levantei meu rosto, vi à minha frente um
homem cansado, mas com princípios sólidos e disposto a
continuar explorando sua teoria. Havia muitas outras coisas
que gostaria de haver conversado com ele, com a
vantagem de até haver-me antecipado a seus escritos, já
que conhecia o que ele escreveria no futuro, mas achei
falta de educação tentar influenciar e interferir em seu
pensamento.
Sabia que provavelmente este seria o último contato
nosso e fiquei entristecido e penalizado em ver seu rosto
abatido. Ele também me olhou e me disse que apesar de
nossas eventuais diferenças havia gostado muito de falar
comigo. Uma dúvida lancinante lhe tocava a alma, mas não
tinha coragem de enfrentá-la. Mesmo assim me perguntou
como eu poderia saber tanto dele sem ser do lugar, sendo
bem mais jovem, e conhecer as próprias palavras que ele
pronunciara sem nunca havê-las publicado.
Eu dei de ombros e disse que era casualidade pura.

44
ensaios sobre o tudo e o nada

UM POUCO DE HISTÓRIA
Falamos em história de nós mesmos quando o futuro
que nos falta viver é bem menor do que o passado que já
vivemos. E como toda boa história começa com: ...era
uma vez..., não poderia começar a minha de outra
maneira.
Quando ainda tinha pouca idade, e como bom
expoente do ser humano pervertido em seu agir, acabei
“sendo convidado”, sem muita escolha de minha parte,
para um colégio interno perto da nossa cidade.
Relutei, debati-me, gritei, mas em vão; minha sorte
estava selada. Talvez se tivesse sido um garoto melhor
comportado poderia ter me livrado desta; mas não foi
bem assim e por isso estou contando esta história.
Com o tempo me dei conta de que não poderia ter
acontecido nada de melhor na minha parca existência.
Como cheguei a esta conclusão? direi isto mais adiante,
neste trabalho. Só vou adiantar agora que meu espírito
de escritor teve seu desabrochar neste lugar, no qual
ganhei minha primeira menção honrosa à prosa e à
poesia, por um trabalho, talvez o primeiro que fiz, a partir
de uma frase que o professor de literatura passou para
nós, a fim de desenvolver um tema com ele. A partir dali,
não parei mais. Pena não ter guardado todos meus
escritos... dariam um grande livro agora!
Falar em acaso? Em causalidade? Em destino?
Quem pode dizer? Chegar a este ponto com a convicção
de que esta era á única possibilidade real de acontecer
é, no mínimo, encorajador para o que me resta de vida.
O certo é que a história contada a seguir teve início
neste lugar.

45
ensaios sobre o tudo e o nada

Reflexão do Tradutor das Reflexões,


ou Texto para José...
E agora, José ?
A festa acabou,
a luz apagou,
o povo sumiu,
a noite esfriou.
e agora, José ?
e agora, você ?
você que é sem nome,
que zomba dos outros,
você que faz versos,
que ama, protesta,
e agora, José ?
“José” (1a. estrofe) –
Carlos Drumond de Andrade

A História Oficial
Quando no começo de 1965 ingressei como aluno
regular no Colégio Leo Bovisio, de San Ignácio, serras
de Córdoba, na Argentina, sem saber onde estava nem
que faria com minha discreta e curta vida, então com 14
anos de idade, não poderia imaginar a virada de 180
graus que ocorreria em minha busca interior depois de
viver essa marcante experiência.
Nascido no seio de uma tradicional família Judaico-
Cristã, misturada com ideologias da Ortodoxia Síria, nas
proximidades do Colégio, minha infância transcorreu
entre catecismos, corais eclesiásticos, fabricação de
hóstias e jogos infantis, além de haver sido coroinha e
declamado a missa em Latim. A presença de Deus em
meu espírito se limitava à obrigação de rezar antes de

46
ensaios sobre o tudo e o nada

dormir e assistir a missa de domingo, observando no


átrio do altar um quadro com a figura de um enorme
homem de cabelos brancos e olhar severo, flutuando
entre brancas nuvens, e preanunciando castigos
homéricos se não se seguissem seus preceitos.
Por outro lado, os Mestres estavam representados
por numerosas estátuas de barro ou madeira, pintadas
adequadamente, chamados Santos, e cuja história era
contada freqüentemente nas salas de aula da escola
eclesial.
O ingresso no “Leo Bovisio” (o colégio em questão)
foi mais devido à falta de paciência de meus pais de
tolerar-me em casa que de algum merecimento especial.
Desta maneira, quase com desagrado e sem vontade,
entrei no mundo das idéias de Dom Santiago Bovisio.
Não conheci o Mestre Santiago pessoalmente, mas
sim seus discípulos diretos, entre eles ao Senhor José,
Diretor do Colégio Leo Bovisio nessa ocasião.
O que mais me chamou a atenção desta gente recém
conhecida, se é que nessa idade algo pode chamar a
atenção de um garoto, foi a qualidade de vida, a postura
e a forma de repassar “ensinanças” a seus alunos, sem
evidenciar que se tratava de ensinamentos. Tudo era
diferente nas aulas, a forma de ditá-las, a maneira de
sentar-se, o respeito mútuo, a prática escolar, etc. Tudo
era novo e parecia que as tarefas e lições eram
aprendidas por osmose, por presença, por transferência
direta. Ninguém sabia qual era a diferença e ninguém
imaginava a implicação deste contato; somente os filhos
dos Filhos de Cafh, denominação dos seguidores desta
doutrina, tinham uma noção um pouco mais clara, por
influência de seus progenitores.

47
ensaios sobre o tudo e o nada

Cafh significa literalmente: Cavalheiros Americanos


do Fogo de Hes, nome simbólico de uma agrupação
esotérica, o que pode ser conferido em vários sites.
Em dois anos de estudo neste Colégio nunca soube
de que se tratava a história dos “Senhores”, apesar dos
vários comentários internos e externos e de algumas
manifestações observadas por alguns alunos de forma
desprevenida. (Senhores e Senhoritas constituía a
denominação dos integrantes das comunidades,
masculina e feminina respectivamente).
Quando minha mãe se inteirou pelos comentários que
estavam na boca de todos que no Leo Bovisio faziam
“lavagens cerebrais” a seus alunos, seu coração
maternal não pôde resistir, e preferiu retirar seu filho do
perigo potencial e não arriscar um eventual mal maior
daquele que existia antes do ingresso. Desta forma e
sem mais explicações, acabou meu contato com o
mundo novo que havia conhecido. Voltei para o “mundo
real”, o externo, aquele que todos costumamos viver.
Longe estava eu de imaginar que o destino me
reservaria novas emoções. Depois de terminado o curso
secundário, em Embalse de Rio Tercero, fui a estudar na
capital. Quem me levava frequentemente em automóvel
até Córdoba era nada menos que o Dr. M., advogado
regional que havia defendido Cafh de seus detratores.
Ele me comentava nestas viagens o destino das
comunidades, acontecido pela interferência do clero e
dos militares: os primeiros pensando num eventual culto
a Satã e os segundos pensando que se tratava de
alguma célula extremista que refugiava e acobertava os
revolucionários esquerdistas que existiam por ai.

48
ensaios sobre o tudo e o nada

Os estudos universitários e o contato com o meio


ambiente estudantil me levaram a aprofundar questões
sociais e a introduzir-me no mundo dos livros espirituais
e de cunho esotérico. Frequentei algumas escolas
filosóficas e políticas, o que foi modelando meu ser e
meu caráter. Sobre Cafh nada, nem sequer o nome, e
menos ainda o conteúdo. Era muito fechado o ambiente
para poder penetrar o para saber algo que jogasse
alguma luz sobre a escuridão da alma. Além do mais, a
essa altura, não conhecia a sigla nem o significado,
ficando a história do Colégio relegada a um segundo
plano no meu subconsciente, como uma lembrança.
O destino quis que pouco tempo depois de finalizar
meus estudos universitários tivesse que mudar-me para
o Brasil. Dois motivos concorreram para isso: um
existencial e outro essencial. O primeiro se refere a uma
informação recebida, dando conta de que haveria um
grupo militar atrás de mim, devido a atividades políticas
anteriores, mesmo sem haver participado de qualquer
eventual ato extremista. O outro, o essencial, refere-se a
outro ser que pela lei de predestinação estava por aqui,
aguardando-me. Assim, penso, o livre arbítrio me fez
tomar a determinação mais acertada para minha vida
futura. Dizem os Mestres que nada é por acaso;
Macktub, dizem os árabes, será o que deva ser. ...e
assim foi!
Em uma viagem de regresso à Argentina, depois de
haverem-se acalmado os ânimos persecutórios, no
aeroporto de São Paulo, encontramos casualmente o Sr.
J. Minha esposa quis entrar em contato, pois conhecia
sobremaneira as histórias do Leo Bovisio que lhe contara
no passado; assim se aproximou, junto com a minha
mãe, e estabeleceu o primeiro dos numerosos encontros

49
ensaios sobre o tudo e o nada

que tivemos. Posteriormente tornamos a encontrar-nos


no aeroporto junto a outros membros de Comunidade
que viajariam no mesmo voo que o nosso.
Em pouco tempo, éramos novos Filhos de Cafh e
colaboradores da Obra Social da Comunidade onde
viviam. Desta forma, sem demora, pudemos aprofundar
os conhecimentos sobre a doutrina e ter contato direto
com as comunidades. O destino também determinou que
durasse pouco tempo, somente alguns anos; a mudança
brusca de rumos, a mercantilização, a desorganização
de funções, a falta de exemplos práticos de Renúncia, a
abertura indiscriminada a novos membros sem o menor
critério de seleção, etc., etc., ajudou o desenlace de
nosso afastamento.
Foi doloroso, pois muitos anos de convicções e
exercícios ascéticos viram o fim do caminho oficial,
porém ajudou a pensar melhor e a rever posições e
principalmente a perceber que Cafh fazia muito tempo
que não existia mais, não da forma que o Fundador
havia determinado. Agora a ascética não dependia mais
do grupo e sim de cada um de nós.
De que forma poderíamos ter acesso às Ensinanças
no futuro? Quem nos ofereceria uma direção espiritual?
Os Filhos de Cafh, incluindo os de Comunidade, não
poderiam ter contato conosco devido a uma proibição
regulamentar, de tal forma que nos encontramos na mais
negra noite da alma, sem recursos e sem orientação. Por
sorte, encontramos uma saída honrosa: olhar para
dentro, ao profundo do coração, ao Eu Superior que
habita no centro de nosso espírito, e meditar sobre o
assunto. Esta prática nos reconfortou, e daí em diante
conseguimos seguir em frente com menos apoios, sem

50
ensaios sobre o tudo e o nada

as muletas mentais que nos acompanharam durante


muitos dos anos passados.
Uma noite na praia, vários anos depois, falando dos
tempos de antanho, a figura do Sr. J. se fez necessária a
nós, como se pressentíssemos a necessidade de um
contato imediato com ele, apesar do tempo transcorrido.
Movemos céu e terra, até que finalmente o encontramos
por meio de um amigo comum. A partir desse momento,
a história oficial começava a mudar, alguma coisa deixou
de ter sentido e outra, que era muito importante, cobrou
vida. Soubemos dos infortúnios e das terríveis
consequências que assolaram almas de entrega, sem
outro motivo que o de querer ser. Tornamo-nos por esta
razão, o elo perdido de uma corrente, fazendo uma ponte
entre um mundo devorador e assustador, cheio de
perigos e à espreita de oportunidades, e o mundo
mágico de uma Comunidade neo-formada, sofredora
pelas condições impostas e com possibilidades limitadas,
anímicas e físicas, de poder sobreviver.

O Passado Próximo
Quando, sem pretendê-lo, soubemos que todas as
Ensinanças de Dom Santiago estavam em Internet, à
disposição de quem quisesse vê-las, corremos ao
computador para verificar o fato. Que alegria imensa
poder verificar que toda esta preciosidade estava
disponível para a humanidade!
Corremos novamente para compartilhar com outros
amigos a boa nova, e ao encontrar entre eles as
dificuldades próprias da língua, vimo-nos na obrigação
de oferecer nossa contribuição para ajudar na tradução
para o português, desta obra maravilhosa. O Sr. J.,

51
ensaios sobre o tudo e o nada

consultado, deu seu apoio; enviamos então uma


mensagem ao site da Internet esperando resposta,
sabendo de antemão que o responsável pela mesma
havia sido o Diretor do Colégio Leo Bovisio quando
estudávamos lá, Sr. José.
Que surpresa agradável foi a de receber uma
resposta positiva, quase instantânea, por parte de José!
Que fantástica felicidade se apresentou de poder
colaborar com a Grande Obra! Que sorte que tivemos de
haver encontrado Discípulos Fieis em outros lugares do
mundo, comprometidos com a divulgação da Mensagem
da Renúncia!
Desta forma conheci o Sr. N., alma grande e forte,
comprometido com a Obra e que nos deu a oportunidade
de ser seu amigo. Despojado de toda ambição pessoal,
com grande dedicação e afinco, com forte presença de
espírito, demonstrou a fibra íntima de que são feitos os
homens de Renúncia. Este sim que é um Discípulo Fiel,
daqueles que o Mestre Santiago sempre falava em suas
Ensinanças!
A partir desse momento e por decisão compartilhada
por todos, me transformei no tradutor das Reflexões de
José, para o português. Tive, melhor que ninguém, o
privilégio de conhecer de perto o autor, e agora suas
idéias em obras, através de suas Reflexões acerca do
mundo, iluminadas pela tocha do pensamento vivo do
Mestre Santiago. Pude comprovar em sentimento a
necessidade imperiosa que teve José de divulgar a Obra
que o Mestre havia deixado para a humanidade, e que
se não fosse por esta medida, poderia estar totalmente
escondida e perdida em algum rincão do planeta.

52
ensaios sobre o tudo e o nada

O trabalho de traduzir um texto de uma língua para


outra é técnico e banal. Porém, a responsabilidade de
traduzir uma Ensinança Universal, ditada por um Mestre
de Sabedoria e resgatada por Discípulos Fieis, é tarefa
hercúlea, pois cai sobre os ombros de quem faz este
trabalho, o peso, a sagrada missão, a dedicação plena
ao objetivo solicitado, o compromisso de ser fiel ao texto
e à idéia passada e, principalmente, saber que não se
pode falhar.

O Presente
Hoje, depois de haver começado em 18 de julho de
2003, o trabalho chega ao fim. A missão encomendada
foi cumprida no tempo prometido. A tradução dos
Comentários e das Reflexões para o português está
completa. Falta somente incluir as últimas no site de
Internet para que cumpram sua tarefa nos países de
língua portuguesa.
Cabe a mim, por pura solicitação onírica, realizar
minha Reflexão como Tradutor das Reflexões; sem
pretensões literárias, sem técnicas de escritor, sem
vaidades pessoais e sem esperar nada por esta
Meditação Pública em forma de Carta Aberta.
Tendo lido todas as Reflexões de José com esmero,
em razão de ter que traduzi-las, ocorreu-me uma
pergunta, que a pesar de estar parcialmente respondida,
ficou dando voltas na minha cabeça até agora: Por que
começou a difusão desta Obra na Internet no ano 2000?
Supõe-se que o início da Era de Aquário começa neste
ano, porém se estivessem no site alguns anos antes
para preparar a chegada do novo signo, talvez fosse

53
ensaios sobre o tudo e o nada

melhor. Não estamos questionando nada; trata-se de


uma pergunta que ficou sem resposta.
A coragem demonstrada na publicação para todo o
mundo desta Obra monumental é sem dúvida o marco
do início de um novo modo de pensar e de viver. Há aqui
material suficiente para que o homem consiga sua
liberação e se for suficientemente experto como para
aproveitar o estudo destas Ensinanças, não teremos que
esperar muito tempo para ver os primeiros resultados da
troca de Raças.
O que se resgata é que afortunadamente um ser
percebeu a importância de divulgar esta Obra e, sem
escrúpulos nem melindres, apesar das proibições dos
que achavam deter a exclusividade da Obra, resolveu
tomar sobre seus ombros a carga do julgamento histórico
de sua atitude; não que seja importante o desenlace das
opiniões formadas, senão que por este fato já mudou a
atitude de muitas almas que transitavam um caminho
vazio e sem perspectivas.
Houve muitos que trocaram de ideias e muitos outros
que trocarão. A Ensinança viva está vigente em seu mais
puro mérito, sem alterações, como o Mestre as ditou. As
Reflexões levam, através de sua análise objetiva e
temporal à luz das Ensinanças, a transitar um caminho
demarcado pela tradição esotérica, inexorável e sem
retorno; ainda há tempo de trabalhar para que seja
menos doloroso o futuro que se aproxima!

O Futuro
Não temos o dom da profecia. Temos o que nos
deixou o Mestre sem retoques nem subterfúgios. O que é

54
ensaios sobre o tudo e o nada

que realmente irá ocorrer e em que tempo? Somente os


Grandes Iniciados o podem saber. A nós resta a opção
de eleger o caminho a percorrer, a companhia que
iremos escolher, a bandeira que iremos levantar e como
nos prepararemos para receber o Homem Novo que está
chegando.

Hoje
José deixou este mundo há alguns anos e se juntou
ao Mestre para acompanhar os Discípulos Fieis. A Obra
continua em mãos de seguidores e se encontrará
repassada ao mundo, através de Internet, por mais 50
anos, pelo menos.
O final ainda não foi escrito fisicamente nesta era,
mas está predeterminado no mundo astral acompanhado
pelos Mestres. Resta a nos continuar fazendo o que nos
foi confiado.
MAKTUB!

55
ensaios sobre o tudo e o nada

AS BALEIAS AMIGAS
Sempre tive curiosidade e vontade de acariciar
baleias e me parece que é muito difícil fazê-lo no mundo
físico. Já nos sonhos ou no eu-mais-sutil é bem possível.
No dia em que saí de mim, de meu corpo físico, fui a
uma praia de um mar calmo e transparente. Estava
deitado num deck de madeira na beira da água e podia
ver a uns duzentos metros um penhasco ou coisa similar.
Apurei o olhar e a ilhota que via começou a mover-se.
Era um conjunto de enormes baleias as quais pareciam
dançar um balé com coreografia marítima, ou seja, ao
compasso das ondas do mar...
Fiquei estático olhando este quadro e não percebi o
tempo passar. Quando dei por mim já era escuro; o sol
se pondo às minhas costas por trás de uma pequena
cadeia montanhosa e algumas nuvens mais densas no
céu anunciavam uma iminente chuva.
As primeiras gotas de água bateram no meu rosto e
molharam minha cabeça. Dei um salto e fiquei de pé
disposto a partir em direção de um abrigo que havia
perto do local onde eu estava. Saí com pressa para
evitar a chuva, mas após os primeiros passos a água da
chuva deixara de cair. Parei e olhei para trás, em direção
ao mar, e para minha surpresa percebi uma baleia ao
lado do deck jorrando água para cima como um chafariz.
Esta era a chuva que imaginara...
Com um pouco de temor me aproximei dela e pude
ver seus olhos brilhantes olhando direto para mim
enquanto continuava a jorrar água para cima. Pareceu-
me ver um sorriso no seu rosto quando pulei novamente
para trás para me esquivar do jato, mas imediatamente
raciocinei que baleias não sorriem e pensei que minha

56
ensaios sobre o tudo e o nada

imaginação estava avançando demais no campo fértil


dos devaneios...
Como ela não saia do lugar, continuei aproximando-
me enquanto ela olhava fixamente os meus olhos. De
repente, piscou para mim e me fez um sinal para que eu
pulasse na água. Recuei... Baleias não fazem sinais aos
homens e esta não seria a exceção. O medo crescia em
mim e tomava conta de meus movimentos; não me
sentia livre para fazer o que tinha vontade de fazer.
Estava como que hipnotizado por ela!
E se ela realmente estivesse querendo que eu
entrasse na água para me mostrar que baleias, mesmo
sendo grandes, não são monstros? Se ficasse fora
poderia perder a maior oportunidade de minha vida, e se
pulasse, poderia perder a própria vida! Em um segundo
passaram pela minha mente uma série de situações de
risco pelas que havia atravessado e nenhuma terminou
em minha morte, então despejei o medo que me
paralisava e sem pensar duas vezes pulei na água do
mar, bem em frente dela.
Nossa mãe! Como era grande!! De cima do cais
parecia menor e o medo começou a voltar a mim.
Respirei fundo e dei umas braçadas em sua direção.
Pensei que ela fugiria, mas continuou ali me desafiando
a encostar nela, enquanto seus olhos não deixavam de
me seguir. Cheguei bem perto e estiquei meu braço; a
pele grossa e lisa de seu corpo escuro reagiu ao meu
contato e como que se contraiu e relaxou de novo umas
três ou quatro vezes. Não sei o que significava nem
pensei no assunto.
Continuei ali, acariciando essa pele que tantas vezes
havia sonhado acariciar e que agora estava acontecendo

57
ensaios sobre o tudo e o nada

tão real e presente. Não sentia a água em que meu


corpo estava mergulhado nem a temperatura nem o
medo de estar ali. Era eu um com ela, dois corpos
fundidos com um só objetivo... simplesmente estar.
Ouvi então um assobio longo e melódico que saia da
sua boca, e em poucos minutos, como se fosse um eco,
outros sons similares responderam esse canto. Os sons
se aproximavam cada vez mais, porém a escuridão da
noite não me deixava ver nada. Sentia o balançar das
ondas com esse peculiar estrondo que faz quando rompe
na praia e alguns sons de aves noturnas que
anunciavam o iminente recolhimento que acontece a
essa hora do dia, e me abandonei à experiência de estar
nesse momento e nesse lugar.
Do nada senti que algo me tocou por trás e me virei
instintivamente. Senti-me rodeado de outras baleias,
umas quatro ou cinco do mesmo tipo e tamanho que
minha amiga, que ainda permitia minhas carícias. Não
senti medo ou aflição, sentia-me uma delas!
O canto melancólico continuava quebrando o silêncio
da noite e me transportava a sonhos de infância.
Continuei a aproveitar essa experiência magnífica e
arrisquei a acariciar às outras. Parecia que estavam
esperando e tive a sensação de que gostavam disso.
Sem pressa, permaneci colado a elas até que o dia
começou a apresentar-se e o sol, vermelho, enorme,
apareceu na linha do horizonte do mar. Parecia que a
água ia escorrendo dele enquanto subia...
Olhei em volta e não vi mais o cais. Assustei-me
porque eu não nadava tão bem e se estivesse longe não
conseguiria chegar. Como que lendo meus pensamentos
as baleias amigas nadaram até a praia, juntas, e me

58
ensaios sobre o tudo e o nada

depositaram perto do cais. Deram meia volta e, soltando


todas um grande jato de água, foram para mar adentro,
afundando e aparecendo intermitentemente até que se
perderam no horizonte.
Abri os olhos lentamente, ainda deitado no deck do
cais, e tentei colocar meus pensamentos em ordem. Não
sabia ao certo se havia sonhado ou se havia realmente
vivido essa experiência marcante. Difícil determinar o
real do imaginário e o sonho se situa no lugar mais
afastado da realidade; nele podemos voar, saltar
distâncias enormes, acariciar baleias, viajar a lugares
longínquos, enfim, podemos fazer tudo o que quisermos
e que nossa imaginação permita.
Olhei para o horizonte do mar e vi ao longe, cinco
jatos de água, como chafarizes. Então sorri intimamente
e rumei para casa.

59
ensaios sobre o tudo e o nada

COMO CHEGUEI AO MUNDO


Agora que sou adulto e sei melhor das coisas, entendi
finalmente o termo “consciência coletiva”. Tenho certeza
de que, desde meu início, no projeto de vida que viria-a-
ser eu mesmo, participei dessa consciência. Explico
melhor:
Ao princípio minha incipiente vida não passava de
uma célula, às vezes masculina, outras vezes feminina.
Não havia dramas nem preconceitos; eu era feliz com o
que tinha.
Lembro-me das tentativas frustradas, quando numa
louca corrida por chegar em primeiro lugar, entre milhões
de competidores, o destino frustrante era um surrado
lençol, uma banheira vazia ou a relva de um parque da
cidade. Quando acontecia a sorte do destino certo à
procura da cara metade, que também era eu, outros
muitos competiam comigo a fim de fecundar e vir-a-ser
no mundo real.
Em todas as vezes eu me perdi, mas me reencontrei
novamente como se fosse o único. Sempre soube disso,
mas não me dava conta. Sempre a meu lado, outros eus
concorriam comigo.
E ai vem o confuso pensamento: como podia ser eu
mesmo a cada dia se no ontem eu me havia perdido? Se
o destino me reservava hoje me secar sobre um velho
lençol ou outro destino qualquer e desaparecer como
consciência viva, como é que amanhã, ou depois, ou
sempre, no preparo para a árdua luta de chegar primeiro,
era eu novamente? É mais, cada um de nos era eu; tinha
certeza disto, porque quando vinguei e me amalgamei na
úmida vida do seio materno, sabia que todos nós éramos
um!

60
ensaios sobre o tudo e o nada

Competia comigo mesmo?


Como disse no início, quem estava lá esperando por
mim era eu mesmo... Estranho, não é? Como ser a seta
e o alvo ao mesmo tempo?
Estava eu nadando e flutuando no espaço finito,
encerrado num tubo longo e sinuoso, avermelhado e
frágil, quando de repente, em louca disparada, um jato
esbranquiçado vem na minha direção com milhares de
seres em ziguezagueante corrida querendo me invadir.
Não sei se devo deixar... Será a morte? Alguma coisa
me disse que devo esperar. Muitas cabeças ovais e
arredondadas chegam perto do meu corpo penetrando
na interface da minha pele. Os rabinhos se movem em
desespero para impulsionar a cabeça para dentro de
mim. Posso contar dez ou doze deles na tentativa louca
de fecundar-me, mas sinto que um só vingará. Qual?
Não importa... todos somos eu, invasor e invadido, com o
objetivo final de completar a jornada.
Sei também que irá penetrar o mais preparado, o
melhor dos eus, assim como sendo único, como célula
feminina, sou a melhor.
Muitas vezes me frustrei também. Em quantas
ocasiões, mês após mês esperei em vão que a outra
metade de mim viesse me buscar! Quantas
oportunidades perdidas. Mas sempre era eu que estava
ali, esperando, torcendo para vir-a-ser.
E agora eu sou, vivo uma vida plena, perfeita, o que
inclui respiração, batimentos cardíacos, produção de
toda espécie de secreções, produção de emoções e
sentimentos e às vezes alguma espécie de cognição. E
quando olho para trás e vejo o caminho percorrido,

61
ensaios sobre o tudo e o nada

imagino-me ainda não sendo, ainda na louca corrida ou


na entediante espera.
Más isto é pura filosofia. Tentar entender a vida é
tarefa difícil se não impossível. Mas ao final, uma coisa é
certa: Eu já fui um óvulo e também fui um
espermatozóide. E agora... o que é que eu sou?
Sei que a vida irá a continuar por um longo tempo até
que a Essência Suprema decida que já é hora de partir.
Ninguém sabe como será a passagem, mas muitos
dizem que existe uma volta. Voltarei como eu mesmo?
Os que dizem que sabem, afirmam que a centelha
criada que anima o corpo físico é eterna e se repete pela
eternidade do mesmo modo, como que cumprindo um
plano pré-estabelecido. Dizem que o plano prevê um
aprendizado para compor a memória do Universo físico
na manifestação do incriado, até que a noite de Bhrama
aconteça novamente.
Se isto for verdade, já tenho um motivo transcendente
para ser e posso cumprir meu papel nesta fábula sem
prejuízo da minha própria história de vida.
Que assim seja!

62
ensaios sobre o tudo e o nada

ENCONTRO COM ÉDOUARD SCHURÉ


Corria a primavera do ano 1910 e eu estava em Paris
a passeio. Andava pelas ruas estreitas da Ile de La Cité,
depois de haver entrado na Catedral de Notre Dame e
ter feito uma oração pelas almas deste mundo que se
encontram perdidas na escuridão da noite, e que não
são poucas. Minutos antes havia visto passar por perto
um sujeito alto, ligeiramente despenteado, bigodes
compridos e encaracolados, aparentando uns 70 anos
de idade, vestindo o que parecia ser um meio fraque
negro, e que havia sido cumprimentado não muito
efusivamente pelo diácono da Catedral. Ele caminhava à
minha frente e se demorava no andar, pelo pensamento
que notadamente ocupava sua mente e que o tornava
alheado da realidade e do mundo à sua volta.
Fiquei curioso e tentei me aproximar, sempre
mantendo uma distância de uns quatro ou cinco metros,
o que me permitia observá-lo cuidadosamente sem ser
notado. Poucos minutos mais tarde, outra pessoa que
vinha andando pela estreita rua em sentido contrário o
cumprimentou entusiasticamente chamando-o de Irmão
Mestre. Minha curiosidade aumentou a tal ponto que não
consegui fingir mais e me aproximei definitivamente
deles perguntando sobre uma rua qualquer, alegando
que me encontrava perdido.
O primeiro homem, o que eu seguira, olhou-me
calmamente e me disse que havia pensado que eu fosse
um ladrão, já que o estava seguindo desde há alguns
quarteirões atrás, mas que por força do seu pensamento
não me havia dedicado maior atenção. Se eu fosse
ladrão e o roubasse, não tinha nada que pudesse me dar
e a questão teria morrido ali mesmo. Fiquei surpreso
pela sagacidade e observação do homem e comecei a

63
ensaios sobre o tudo e o nada

olhar de forma diferente para aquela figura


desengonçada.
Apresentou-se polidamente e pediu desculpas por
sua avaliação apressada de minha pessoa, e me disse
ainda que se não estivesse a caminho de encontrar um
amigo gostaria de trocar algumas palavras comigo, pois
lhe parecia diferente. Eu lhe confessei que não estava
perdido, mas que a curiosidade me impulsionou a fazer
contato, sem saber o que poderia acontecer depois.
Deu-me um cartão de visita e me disse que se eu
quisesse conversar com ele, estaria encantado em me
receber. Achei estranho que sem conhecer-me,
houvesse me convidado à sua casa para conversar, mas
como que lendo meu pensamento, afirmou-me que
raramente encontrava um estrangeiro e que pelo sotaque
parecia ser do Novo Mundo, ao que concordei
prontamente, dizendo que procedia do Brasil. Seu rosto
se iluminou e insistiu na visita. Eu não sabia o que
pensar...
Assim que nos separamos olhei o cartão onde estava
escrito seu nome: Édouard Schuré, advogado; mais
tarde descobri que nunca havia exercido sua profissão.
Imediatamente lembrei-me de sua obra prima, “Os
grandes Iniciados”, que havia lido pouco tempo atrás e
que me havia impactado sobremaneira, principalmente o
capítulo sobre Pitágoras e sua escola filosófica grega,
embora os outros não lhe ficassem atrás. Recordei que
sua escassa biografia mencionava que ele era Maçom e
que frequentava a Teosofia por conta de sua amizade
com Blavatsky e a Escola Antroposófica, pelo contato
com Steiner. Para mim, era uma grande oportunidade
poder trocar algumas ideias com ele e esclarecer alguns

64
ensaios sobre o tudo e o nada

pontos duvidosos. Quem melhor que o próprio autor,


sabidamente esotérico, para me elucidar a questão?
Alguns dias depois, seguindo o endereço marcado no
cartão, bati à porta de um casarão velho, não muito bem
cuidado. O próprio Schuré abriu a porta e, sem ocultar
sua satisfação, disse que estava esperando minha visita.
Fez-me entrar e, pelo estado do interior da vivenda,
percebi que não possuía criados e que ele não ligava
muito para a ordem e a limpeza. Disse-me que naquele
dia em que nos encontramos perto de Notre Dame tinha
um encontro com Wagner, o compositor alemão, de
quem era muito amigo e compartilhavam muitas ideias
esotéricas. Lembrei-me de meu Mestre que dizia que
quando escutava uma música de Wagner, formavam-se
coloridas catedrais de formosura sem igual, no plano
astral, e que ele podia facilmente acessar.
Uma poltrona surrada foi-me oferecida para sentar-
me e após recusar um chá que me ofereceu para beber,
começamos a conversar. Schuré arrancou dizendo que
adoraria conhecer o Brasil e pediu para que contasse
como era. Havia ouvido dizer que havia muitos nativos
indígenas perambulando pelas ruas das grandes cidades
e que não imaginava como isso poderia acontecer, já
que pela ferocidade da raça era por demais perigoso
para as pessoas que ali moravam. Perguntou se havia
trens e automóveis para transportar pessoas, como eram
as casas e edifícios públicos, enfim, tudo o que um ser
curioso poderia perguntar.
Depois de esclarecer todas essas questões, foi minha
vez de perguntar.
Havia lido em seus livros uma classificação humana
atribuída a Pitágoras e o que me chamava a atenção era

65
ensaios sobre o tudo e o nada

a forma como ele havia acessado estas informações, já


que o próprio Pitágoras e seus seguidores mais íntimos
não haviam deixado nada escrito. Ele me respondeu que
havia seres humanos especiais que conheciam toda a
história da humanidade sem nunca terem aberto um
livro. Isto se chama clarividência, disse-me.
Continuei perguntando em qual fonte se havia
baseado para afirmar que existem homens primitivos em
essência e outros mais evoluídos espiritualmente, os
quais podem ser separados em quatro categorias.
Ele afirmava que em primeiro lugar, na grande
maioria dos homens, a vontade age especialmente sobre
o corpo. São os que primam pelos instintos, apropriados
para os trabalhos corporais e para o desenvolvimento da
inteligência no mundo físico.
No segundo grau do desenvolvimento humano, a
vontade e a consciência, residem na alma, ou melhor, na
sensibilidade refletida pela inteligência, que constitui o
entendimento. Estes são os anímicos ou os passionais,
homens de guerra, artistas ou poetas. A grande maioria
dos homens de letras e dos sábios pertence a esta
classificação.
Em uma terceira classe de homens, muito mais raros,
a vontade criou o hábito de agir sobre o intelecto puro,
desembaraçando a inteligência da tirania das paixões e
dos limites da matéria. Estes são os intelectuais. Tais
homens são os heróis mártires da pátria, os poetas de
primeira ordem, os verdadeiros filósofos e os verdadeiros
sábios - aqueles, que, conforme Pitágoras e Platão,
deveriam governar a humanidade. A paixão não se
extingue neles, porque sem paixão nada se faz. O que
realmente acontece com eles é que as paixões se

66
ensaios sobre o tudo e o nada

tornaram servas da inteligência, enquanto que nas


categorias precedentes é que, a maior parte das vezes,
as paixões tornam serva à inteligência.
O mais elevado ideal humano é realizado por uma
quarta classe de homens, muito raros, que à realeza da
inteligência sobre a alma e sobre o instinto, aliam o do
exercício da vontade sobre todo o seu ser. Graças a
essa concentração maravilhosa, sua reta e pura
vontade, projetando-se sobre os outros, adquire uma
energia quase iluminada, uma magia dominadora e
criadora. Esses homens têm tido vários nomes na
história: são os primordiais, os adeptos, os grandes
iniciados, gênios sublimes que transformam a
Humanidade.
No final desta pergunta, vi um Schuré diferente,
olhando fixamente para mim como tentando entender
como eu poderia ter dito tudo aquilo de uma vez, coisas
que ele pensava não ser possível ao homem comum.
Sem tirar seus olhos dos meus me perguntou a que seita
eu pertencia, já que me preocupava com estas questões
filosóficas que diziam respeito aos estudiosos do
assunto. Eu não respondi de imediato. Ele continuou
olhando fixamente tentando adivinhar o que estava
acontecendo.
Aos pouco foi dizendo que era uma surpresa
encontrar alguém como eu, conhecedor de princípios
básicos do ocultismo, perguntando sobre coisas que
demoram séculos para serem entendidas, conforme
conversavam entre amigos, sendo que pela força do
esoterismo, não poderia compartilhar comigo. Disse
ainda que se eu consegui entender estes quatro tipos de
graus da humanidade, poderia ele acrescentar algumas
outras idéias para testar meu conhecimento. Por

67
ensaios sobre o tudo e o nada

enquanto, ele me considerava especial... mas tinha que


ter certeza.
Perguntou-me se conhecia a doutrina de Madame
Blavatsky, e após responder que havia lido A Doutrina
Secreta, Isis sem Véu e A Voz do Silêncio, vi que não
conseguiu esconder a cara de assombro. Disse-me que
se lhe respondesse que conhecia Steiner e sua obra,
ficaria muito surpreso. Disse a ele, sem pestanejar, que
conhecia e admirava a teoria antroposófica e que
concordava com ela no sentido de encontrar um elo
entre ciência e religião, de forma rápida. Concordava
também e acreditava na Pedagogia Waldorf que tenta
integrar de maneira total o desenvolvimento físico,
espiritual, intelectual e artístico dos alunos.
Ele continuava olhando fixamente para mim sem
entender o que estava acontecendo. Não podia imaginar
como alguém vindo do Brasil pudesse conhecer tanto
sobre coisas que estavam começando a ser discutidas
na Europa. Perguntou-me se por acaso eu era
clarividente. Disse que não. Ele balançava a cabeça de
um lado para o outro como tentando decifrar o misterio...
Sentindo muita pena dele, tive que lhe revelar a
verdade. Expliquei que era escritor e que estava
escrevendo um livro. Dentre os temas que me
ocupavam, estava a de visitar pessoas que marcaram,
de alguma forma, a humanidade. Confessei que nosso
tempo era diferente e que uma especial máquina do
tempo, a minha própria imaginação, permitia-me
deslocar-me pelo tempo e conversar com todos os que
fossem alvo de minha pesquisa. Disse ainda que lhe
revelava este segredo porque sabia que ele não iria
divulgá-lo, pelas características de sua formação.

68
ensaios sobre o tudo e o nada

Absorto em seus pensamentos, nem percebeu que eu


havia saído da casa, após um leve aceno de cabeça.
Não sei quanto tempo ele ficou assim, mas eu me retirei
e voltei para meu apartamento-hotel. Mais tarde procurei
na Internet se havia alguma referência na sua biografia
acerca de minha visita naquele tempo, mas nada
encontrei.
Sabia que iria voltar a encontrá-lo e conversar
bastante sobre outros assuntos. Seus livros me atraíam
e a paixão com que escrevia me fascinava.
Mas agora era chegado o momento de definir meu
próximo encontro. Podia ir e vir de e para qualquer lugar
no tempo e no espaço. Era só pensar em alguém e
minha imaginação me levaria até lá.
Precisava ter muito cuidado para não interferir no
andamento da História, porque isso poderia ter um efeito
devastador no mundo que conhecemos. Se mudasse o
passado, o presente poderia ser tão diferente que até eu
mesmo poderia não haver nascido. Não queria arriscar,
então me demorei bastante para escolher meu próximo
alvo. Ainda estou procurando...

69
ensaios sobre o tudo e o nada

A IDÉIA DA MORTE
Quando ainda era uma criança e brincava no pátio da
casa paterna, ou depois, nas ruas da pequena cidade
em que vivia, não tinha ideia do que era a morte. Nem
passava pela minha incipiente consciência quais seriam
as consequências e as diferenças entre estar vivo ou
estar morto. Desta forma, o passar dos dias era algo
natural e não me preocupava muito em como gastá-los:
tinha todo o tempo do mundo!
Havia três escolas na cidade que não possuía mais
do que três mil habitantes: uma Escola Federal, uma
Escola Estadual e uma Escola de Padres, da ordem de
Dom Bosco. Como minha família era religiosa, era de
bom tom que o menino aprendesse o catecismo e os
rumos de uma vida plena e saudável dentro dos
princípios cristãos. Por adição, ainda era um Seminário
no qual, jovens estudantes se tornavam Sacerdotes
Católicos. Minha família nunca me sugeriu que seguisse
a carreira eclesiástica e mais tarde agradeci por isto, já
que minha vocação era e continua sendo diferente.
Passei oito anos da minha infância aprendendo que
os bons garotos ganhavam a vida eterna, e sem saber
muito bem o que significava isto, esforçava-me
sobremaneira para ser bem comportado: não enfrentar
pais e professores, assistir a missa todos os dias,
comungar pelo menos uma vez por semana e aprender
todos os princípios básicos da educação cristã, sem
esquecer que, fazendo a novena de comunhão cada
primeira sexta-feira do mês, ganharia o céu por
acréscimo. Fiz oito vezes, uma a cada ano de escola, por
tanto já tenho garantida minha presença no céu pelo
menos por oito encarnações, se existirem, como dizem
os partidários de outras religiões.

70
ensaios sobre o tudo e o nada

Assim vivia e brincava neste mundo até que minha


consciência começou a se insinuar e a mostrar-me que
nem tudo o que aprendia tinha lógica, e que muitos
desses ensinamentos deveriam ser esclarecidos para
que o futuro fosse menos agressivo para com quem fala
alguma coisa sem fundamento, parecendo mais um mero
repetidor de conceitos do que um verdadeiro pensador.
Como os padres ensinavam, havia que pensar nas
coisas da vida e ter fé para aceitar o que não era muito
bem explicado.
Lembro que quando aprendi que Adão e Eva foram
os primeiros homem e mulher sobre a terra, e que
tiveram três filhos, Caim, Abel e Set e me atrevi a
perguntar como continuou o mundo, recebi como
resposta que isso não se pergunta, que havia que ter fé
em Deus e que, em castigo por insinuar coisas
estranhas, deveria juntar quinhentas formigas vermelhas
num frasco apropriado. Quando não havia formigas,
urtigas eram apropriadas para o mesmo fim!
Depois soube, estudando mais sobre o assunto,
consultando textos e trocando ideias com amigos, que o
casamento entre irmãos era, na época, “permitido”.
Antes dos 130 anos de existência, Adão e Eva tiveram
dois filhos: Caim e Abel. Aos 130 anos, Adão e Eva
geraram Set. Adão viveu até os 930 anos depois que Set
nasceu e teve filhos e filhas. A morte de Abel nas mãos
de Caim nunca foi bem explicada...
Na gênese bíblica só há histórias de homens. As
mulheres não entram na genealogia, a não ser por grau
de importância. Por conseguinte, não se sabe quantas
filhas foram geradas por Adão antes ou depois de seu
filho Set. O casamento entre irmãos fora permitido por
Deus para que a terra fosse povoada.

71
ensaios sobre o tudo e o nada

A ideia do pecado sempre me perseguiu e nunca


entendi o motivo pelo qual o “pecado” de Adão e Eva foi
e será cobrado de nós até o fim dos tempos, precisando
que um pouco de água benta, jorrada pelo sacerdote em
nossa pequena cabeça, pudesse nos livrar dele.
Antes dos meus dez anos meu avô materno nos
deixou para viver no céu junto a Deus, conforme a
explicação posterior do meu padre-professor. A correria
no quintal da casa da família, minha mãe chorando,
meus tios com semblante tenso e dolorido, amigos,
vizinhos, enfim, na pequena cidade a morte era um
acontecimento importante e quase todos queriam estar
presentes. Primeiro vi o corpo rígido estendido na cama
e pouco tempo depois, numa caixa de madeira escura e
lustrada, coberta internamente com lenços de brocado
branco e ouro, rodeada de candelabros prateados com
velas acesas e várias coroas de flores. Muita gente se
aproximava para vê-lo enquanto eu espreitava por trás
de uma cortina de veludo vermelha que separava a sala
de estar da sala de jantar. Esperava que a qualquer
momento meu avô levantasse a cabeça na minha
direção e me cumprimentasse, mas isso nunca
aconteceu. No cemitério, quando foi depositado em
cripta de mármore branca pertencente à família, que ele
próprio havia mandado construir e que por conta do
destino era seu primeiro habitante, senti a realidade nua
e crua. Não chorei; não conhecia ainda a dor da alma.
Não entendi no início que nunca mais o veria, já que
quem parte para outro plano vai sozinho e nunca volta,
pelo menos em estado físico. Depois de perguntar à
minha mãe pelo Vovô durante vários dias, e tendo a
mesma resposta sempre, decidi que poderia fazer uma

72
ensaios sobre o tudo e o nada

visita surpresa a ele, onde quer que ele estivesse, e


voltar para casa depois de matar saudades.
Quando revelei meus planos ao meu professor ele me
olhou fixamente e me disse que eu era um exemplo de
menino, e que no futuro Deus permitiria que me juntasse
a meu avô e, no fim, todos ressuscitariam após o Juízo
Final. Não entendi direito o termo nem a ideia, mas achei
que era bacana e que soava bem.
Pouco tempo depois, um homem, labutador do
campo, trabalhando na colheita de grãos, cortou o dedo
com a máquina empilhadeira. Chegou à cidade e foi
direto ao médico, o único que havia, trazendo o dedo
cortado embrulhado num pano sujo. O médico lhe disse
que era tarde para recuperá-lo. Estava definitivamente
perdido.
Como toda criança que se preze, minha curiosidade
era mais forte do que o temor que sentia e quis ver o
dedo cortado. Claro que não deixaram e o jogaram numa
sacola de gase e náilon e o depositaram no lixo. Não
entendi muito a situação, porque aos dez anos a gente
se pergunta coisas e ninguém responde direito. Por que
não teriam feito uma cerimônia parecida com a de meu
avô, com um pequeno caixão de madeira, velas e flores
e posteriormente – por que não o teriam enterrado para
que fosse viver com Deus no céu, e algum dia pudesse
se encontrar novamente com o senhor do campo?
Minha mãe, com toda a paciência do mundo, tentou
explicar-me a relação diversa que havia entre o todo e as
partes e a diferente forma de tratamento de ambas.
Mesmo não entendendo nada nessa época, esse foi o
ponto de partida para as numerosas e pouco profícuas
reuniões filosóficas que consumiram noites inteiras na

73
ensaios sobre o tudo e o nada

minha adolescência. Nem minha mãe nem eu nunca nos


convencemos da posição um do outro, mas o exercício
valeu a pena e formou em mim um espírito crítico e
aguçado.
Quase trinta anos depois morreu meu pai, mas já
entendia o significado e o sentido da morte e não me
pegou de surpresa. Como diabético empedernido, teria
seu pé amputado por causa da gangrena, mas nem me
passou pela cabeça o que seria feito com o pé cortado.
Não haveria um funeral para ele; disso tinha bastante
certeza a essa altura do campeonato.
Sabia perfeitamente que a morte era o começo de
uma nova dimensão de vida e não a achava tão
tenebrosa como antes. Aprendi a espreitar os sinais para
saber que havia uma continuidade sutil após o espírito
deixar a matéria e adentrar na esfera dos mundos
superiores.

74
ensaios sobre o tudo e o nada

DIÁLOGO COM BACON


Corria o ano de 1622 numa manhã fria de janeiro, em
Londres. Andava eu cabisbaixo, margeando o rio
Tamisa, aproximando-me de Westminster em devaneios
soltos acerca da vida, quando de repente ouvi alguém
chamar outro que caminhava em frente: -Sir Bacon...
Barão... A pessoa que andava à frente se deteve.
Trajava uma roupa marrom escura cingida na cintura por
um grosso cinto preto com fivela dourada. Usava um
cavanhaque espesso que se misturava com os longos
cabelos castanho escuros que se derramavam por baixo
de um chapéu de abas largas e copa alta. O grande nariz
aquilino lhe dava um ar sombrio, mas ao mesmo tempo
acolhedor.
Quando a moça que o chamava chegou perto, ele
descobriu a cabeça em sinal de cumprimento e curvou-
se levemente para frente. A moça flexionou os joelhos
levemente e abaixou a cabeça a modo de retribuição. Eu
também me detive e disfarçadamente tentei acompanhar
a conversa. Não conhecia nenhum dos dois, mas
arrisquei pensar que poderia tratar-se do grande filósofo
inglês, pelo nome pronunciado.
A conversa se desenvolveu em torno à apresentação
que o Maestro italiano Claudio Monteverdi havia exibido
no Teatro Real Covent Garden, que mais tarde seria o
Royal Opera House. O Veneziano, que havia assumido a
direção musical da Basílica de São Marcos em Veneza,
estava apresentando uma ópera chamada L‟Orfeu, uma
verdadeira obra-prima do gênero operístico, e que os
dois haviam assistido na véspera. Lamentei não haver
sabido para igualmente assisitir. Não é muito comum na
história poder assistir uma ópera dirigida pelo próprio
autor e mais nessa época do início do Barroco europeu.

75
ensaios sobre o tudo e o nada

Após mais algumas palavras fiquei sabendo que o


homem em questão era o próprio Sir Francis Bacon,
Chanceler do Reino Unido por convite de Sua Majestade
Jaime I e que ocupava uma importante cadeira no
Parlamento. Quando ficou sozinho novamente,
aproximei-me e tentei uma conversa. Queria tirar bom
partido dessa situação e insisti. Ele continuou andando
sem me dar muita atenção, até eu lhe dizer que estava
muito interessado em discutir seus Ensaios e a teoria
sobre Aristóteles. Foi como se um raio caísse sobre ele!
Parou, lívido, e olhou em minha direção. Conseguiu
balbuciar algumas palavras e meio sem jeito me
perguntou como eu sabia dos seus Ensaios se ainda os
estava escrevendo e não os havia publicado.
Pela minha expressão ele suspeitou que eu era um
espião e ficou com medo, até eu esclarecer que não era
nada disso, mas que conhecia muito bem sua trajetória e
sua obra. Não melhorou muito sua expressão, então o
aclamei dizendo que iria explicar tudo se tivesse uma
oportunidade. Marcamos um encontro para o outro dia
na sua sala particular no Parlamento. Mal podia esperar
pelo encontro, e essa noite, como muitas outras, não
dormi.
O Big Ben marcava 9 horas quando entrei pelo portão
principal da torre, de estilo neogótico, como o resto do
prédio. A antessala após o saguão era magnificamente
decorada. O teto pintado com motivos próprios
evidenciava no centro um lustre enorme com
aproximadamente cem castiçais com velas amarelas e
luzes cintilantes. Não pude deixar de pensar, sorrindo, no
trabalho que teria o pajem para acender e trocar as velas
todos os dias... Lâmpadas elétricas seriam bem menos
trabalhosas de instalar e manter! Mas não havia, ainda...

76
ensaios sobre o tudo e o nada

Ao fundo, várias portas de cada lado de um grande


corredor ostentavam em seus dintéis as iniciais ou
cargos de seus ocupantes. Procurei a do Chanceler e
não tardei em encontrá-la. Era a maior e estava situada
ao final do corredor.
A porta estava aberta e, no fundo da sala, atrás de
uma escrivaninha ricamente adornada com marchetaria
de madrepérola e filetes de ouro, sentado em sua
cadeira, estava Francis Bacon. Sem vestir o grosso
casaco parecia menor e mais frágil.
Fez-me sinal para sentar e começou dizendo: - Não
fosse a filosofia, não estaria eu vivo. Então comecemos a
conversar para evitar perdas de tempo, que muito
valorizo e que em meu caso, é muito curto. Concordei
com ele balançando minha cabeça e disse, sem mais: -
Eu não sou daqui nem deste tempo. Ele sorriu
ligeiramente como que intuindo ou sabendo sobre este
fato, e retrucou: - Então, já que o tempo não parece ser o
problema, vamos em frente. Nunca soube como ele
desconfiou que eu era um viajante do tempo, em alma e
em espírito, mas quem pode contradizer ou suspeitar da
declaração de um homem como Sir Bacon?!
- Eu li todos seus Ensaios e as obras científicas,
disse, e fiquei triste ao saber que dos seis livros que
originalmente vai produzir, da “Instauratio Magna
Scientiarum”, somente dois serão concluídos... Ele me
interrompeu dizendo: - Se o senhor vai me contar tudo
dessa forma, imagino que saberei até o dia e a hora de
minha morte... enfim, prefiro não saber. Vamos
conversar somente sobre os conteúdos e deixemos o
destino fazer sua parte sem incomodá-lo. Concordei.

77
ensaios sobre o tudo e o nada

Sabia que dos últimos quatro livros desta obra havia


deixado apenas rascunhos e manuscritos inacabados,
porém, mesmo incompleta, esta obra era considerada o
primeiro esboço racional da metodologia científica na
qual Bacon pretendia classificar as ciências, fazer uma
crítica ao método de Aristóteles e descrever o seu novo
método de interpretação e desmistificação da natureza.
Lamentavelmente a morte o surpreendeu antes de
acabar, o que provavelmente custou alguns anos no
ritmo de evolução de nosso planeta em relação ao
método científico.
Continuamos conversando durante mais duas horas e
pudemos tocar em pontos interessantes de sua obra. Por
exemplo, o fato de querer reorganizar o método científico
abrindo mão da teoria da hipótese, pecando por não dar
um viés matemático a seus assuntos. Provavelmente a
sua formação platônica de Harvard o impedia de se
transformar em um grande divisor das águas na ciência.
Claro que ele não concordava com minha teoria, senão o
rumo da história teria sido diferente. Além do mais, eu
estava em vantagem por conhecer o rumo das coisas até
nossos dias, o que ele ignorava totalmente.
Perguntei se havia pensado em renunciar à
Chancelaria, sabendo que em breve seria acusado de
corrupção e exonerado, mas ele me disse que não. Não
contei o motivo de minha pergunta para não ter que dizer
o que iria acontecer.
Insisti com ele em que tentasse escrever em bom
Inglês em lugar de Latim, mesmo que haja sido a língua
da época para os escritores se manifestarem, pois as
posteriores traduções nunca eram fieis aos originais. Ele
concordou, mas disse que a vida de relação mandava
nos costumes e que para imprimir novos rumos à

78
ensaios sobre o tudo e o nada

História teria que ser jovem e ele não era mais, com seus
quase 61 anos.
Estava chegando ao fim nossa conversa e notei um
certo ar de inveja em seu olhar. Como bom filósofo devia
estar imaginando como seria minha vida, conhecendo
um pouco da história de cada um dos personagens que
contribuíam com os destinos do mundo. Mesmo assim
não conseguia entender como era possível aquilo.
Viagem física no tempo? Ainda era cedo na história
para cogitar essa hipótese.
Conversa virtual? Quem poderia imaginar, numa
época não informatizada?
Sonho? Era pouco real e pouco provável, dadas as
circunstâncias.
Percebi que não conseguia entender e que sua
filosofia não podia explicar este fato. Tive pena dele, mas
não podia dizer que poderia escrever uma conversa
fictícia com algum antepassado, pois significaria
reescrever seus ensaios e mudar a história novamente.
Não podia fazer isso!
Ficamos em pé e me despedi dele com uma
inclinação de cabeça, como se usava na época. Ele fez o
mesmo e me disse, como que adivinhando meus
pensamentos:
- Eu ainda posso mudar minhas idéias. Triste não é
mudar de ideias, mas não ter idéias para mudar.

79
ensaios sobre o tudo e o nada

MAIS UMA HISTÓRIA...


Um dia qualquer na minha vida, eis que aparece uma
pessoa que eu mal conhecia e me pediu os ouvidos para
escutar sua história. Ponderei o pedido e achei que nada
perderia e ainda poderia prestar um importante serviço a
este ser humano que, pelo visto, estava precisando
muito desabafar. Alarguei meus ouvidos e me dispus a
escutar:
- Não sei como começar, disse. Há tantas histórias
numa só, que custa saber por onde iniciar a narrativa.
Há muitos e muitos anos nasci para a vida atual e,
desde pequeno, por influência familiar e do colégio
religioso o qual frequentava, aprendi a me doar. Não
tudo, mas parte daquilo que achava possuir. Assim
sempre foi norteada minha vida: quando criança, na
escola e na comunidade, quando adolescente e quando
adulto também. Nunca vou esquecer as vezes que
levava culpa por coisas que não provocava, para
defender outros, ou quando decidi lutar pelos que não
tinham condições de fazê-lo por qualquer motivo:
estudantes, porque não entendiam nada do mundo;
trabalhadores, porque sofriam as mazelas da profissão
sem condições de reclamar por isso; pais e mães de
família, porque não compreendiam o mundo onde viviam;
sacerdotes e místicos, porque não se engajavam em
nenhum movimento, enfim todos os que podia abranger
com meu entendimento de acordo à minha experiência
pontual. Trabalhei como voluntário em mil ações e não
ganhei nada por isso, só o reconhecimento da ação o
que era o melhor salário do mundo! Nesses tempos,
como agora, cada situação era uma história e elas se
sucediam da forma em que sucedem todas as histórias,
com começo, meio e fim.

80
ensaios sobre o tudo e o nada

Lembrar-se de todas é trabalho sobre-humano, então


conseguimos guardar as que marcaram a ferro e fogo
nossa vida; umas poucas, mas significativas, que
perambulam por nosso interior e vem à tona cada vez
que passamos por situações similares.
Não quer dizer com isto que nos colocamos no papel
de santos, nem de líderes nem de qualquer tipo de ser-
em-destaque. Nossa história é comum, como todas as
outras, e provavelmente, nem serão lembradas por quem
as lê, já que dizem respeito à vida individual de quem as
conta. Talvez possam servir de roteiro para histórias
similares e ajudem a melhor finalizar os resultados das
mesmas.
A esta altura da narração eu estava empolgado,
querendo saber mais sobre o assunto, que me parecia
por demais interessante. Percebia que o sujeito que
contava a história realmente estava se despindo de alma
e espírito e se abrindo a um desconhecido. Entendi que
isso era bom para ele, pois poderia botar tudo para fora
sem medo de um dia ser cobrado de nada.
- Uma delas que agora lembro, continuou, fala sobre
a amizade. Ah, a amizade!!! Quantas coisas lindas
guarda esta palavra... O que é a amizade senão colocar-
se sempre no lugar do outro e agir como se fosse feito
para nos mesmos? Amar indiscriminadamente e aceitar
deficiências nos outros, mas ao mesmo tempo, por
amizade, colocar as coisas no lugar quando saem do
controle e tendem a interferir na vida dos demais. Saber
a hora de dizer sim e a de dizer não! Isto não pode
abalar a amizade sincera, e se abala, é porque não o
era... Pois bem, isto aconteceu de verdade, na vida real.
Conto, então, a primeira história, mesmo que outro

81
ensaios sobre o tudo e o nada

amigo me disse uma vez que o bom orador, mais do que


contar a historia que vive, deve viver a historia que conta!
- Não vou dar nome às figuras humanas e situações,
disse, para não ferir susceptibilidades. Então, lá vai:
Corria um ano qualquer (o ano não tem a menor
importância) e eu me encontrava em terras distantes da
minha, por problemas que agora não vem ao caso. Nesta
situação, um amigo que havia permanecido na terra natal
me procurou para que eu desse uma força à sua família,
a qual estava necessitada de sair daquele lugar, por
problemas comuns e que não são pertinentes agora.
Ainda disse textualmente que sua esposa era a que
queria deixar a terra, mas ele próprio não se importava
muito, já que não estava interessado em seguir a
profissão, então um lugar ou outro seria o mesmo para
ele e sua conveniência pessoal. Estaria fazendo a
vontade dela, conforme suas palavras.
Trabalhei firme na procura de uma função adequada
como profissional para esta pessoa, esposa de meu
amigo, e consegui colocá-la para exercer sua profissão
de forma não convencional, já que sua documentação de
imigrante não existia e estava longe de tê-la. Outro
amigo, entendendo a situação, concordou em dar uma
força, mas como é comum nestes casos e como diz o
ditado, “por fora”.
Como não tinham recursos financeiros, a meu convite
foram morar comigo: meu amigo, sua esposa e dois
filhos, sendo que o outro permaneceu na terra natal por
causa de seus estudos.
Após seis meses de estadia em meu lar, a situação
era a seguinte: eu próprio e minha esposa levantávamos
todos os dias cedo para a labuta diária enquanto que

82
ensaios sobre o tudo e o nada

meu amigo, sua esposa e seus dois filhos desfrutavam


das benesses da minha residência, incluindo piscina,
comida e bebida à vontade, além dos passeios que lhes
proporcionávamos, mesmo que a esposa trabalhasse
uma ou duas vezes por semana e permanecesse na
letargia do laissez faire, laissez aller, laissez passer no
restante do tempo.
Insisti muitas vezes para que saíssem comigo de
manhã cedo para procurar alguma coisa a fazer, com o
argumento de que se não saíssem ambos a buscar
trabalho, ninguém viria procurá-los para nada. Não tive
nenhum resultado e as coisas continuaram iguais. Isto, é
claro, não estava certo, e decidi intervir e colocar as
coisas no lugar.
Ofereci a meu amigo um emprego na minha empresa,
emprego este que eu não precisava e que ele não
queria, por um bom salário e com a condição de mudar
de residência, saindo da minha, porque a situação já era
insustentável. Desta forma, aluguei um imóvel perto da
empresa, para que não tivesse despesas de locomoção,
fui avalista, o mobiliei, coloquei telefone e lazer, TV, som,
etc., alimentos e bebidas suficientes para um bom
tempo, e sugeri polidamente que fizessem sua parte já
que o seu próprio destino estaria nas mãos deles. A tudo
isto já havia passado um ano e nenhuma mudança de
atitude havia acontecido.
Eu já estava ficando ansioso com esta história e
pensava seriamente que o sujeito que a contava não
tinha habilidades para lidar com as situações que
descrevia. Creio que eu agiria de forma totalmente
diferente, pois amizade é uma coisa e abuso é outra! Eu
teria dado fim a esta situação muito antes...

83
ensaios sobre o tudo e o nada

Ele continuou: - Com o trabalho de meu amigo na


minha empresa arrumei mais confusão, já que ele só
queria ler o jornal, fumar, relaxar, e não estava disposto
a realizar o trabalho manual ao que estava destinado e
ainda por cima querer utilizar uma metodologia de
trabalho contrária às normas da empresa. Um dos
gerentes me lançou a seguinte frase a queima-roupa:
“ou ele ou eu!”. Não tive mais remédio de que
escolher. Pedi à minha esposa que falasse com ele para
não criar atritos nem ressentimentos e ofereci a ele um
salário igual durante os três próximos meses, sem que
ele precisasse aparecer na empresa, para ter tempo de
procurar outra atividade. Meu amigo, nessa época, já
havia completado seis meses de trabalho conosco...
Enfim, como diz o ditado, perdi o ouro e o mouro; ou
seja, o empregado não existia mais (apesar do salário
continuar sendo pago), e finalmente, após três meses de
presença física para retirar o cheque do salário, virou a
cara para mim e se declarou o meu mais ferrenho
inimigo! Nunca mais o vi nem me procurou para nada,
apesar de havê-lo visto algumas vezes pela cidade. Até
hoje não entendi o processo que leva os homens a tomar
determinadas atitudes, mas como diz outro amigo
conhecido de todos: “...existem mais coisas entre o céu
e a terra do que a vã filosofia consegue explicar”.
Resumindo, achei que tinha feito tudo o que um ser
humano poderia fazer por um amigo e acabei sendo o
vilão da história! Não consegui julgar o fato, por estar
emocionalmente envolvido nele. Mas como disse outro
amigo: “Os homens podem condenar-me, mas a
historia me absolverá!”
Fiquei calado. O que eu poderia dizer?

84
ensaios sobre o tudo e o nada

POETA?
Achei que eu era poeta ou coisa parecida. Nunca
pensei que minha poesia fosse parte do objeto e não do
sujeito, do outro, e não de mim.
Pequei o pecado capital mais insolente: o da soberba.
Senti na carne o desespero de não mais ser. Perdi a
esperança e perdi a mim mesmo.
Nunca saberei se escrevi alguma coisa ou se fui
escrito por ela; nunca - na solidão do não-ser - sentirei
paz; o néctar que nasce no âmago do espírito virou coisa
do passado, insosso, amargo, irremediavelmente sem
graça, e não por causa de mim, do que sou, mas por
aquilo que deixei de ser.
Não me arrependo; sei que não tenho direito ao
arrependimento porque nasci sabendo que isto um dia
aconteceria. Mas desde o alto de minha estúpida
soberba não me dei conta de que seria agora, neste
instante.
Não existe o tempo – dizem-me os que pensam que
sabem. Só existe a eternidade que brinca de fazer-nos
crer no temporal da vida. Só existe o eterno e o amor.
E eu, amei? O sentimento poético que brotava a
borbotões do meu peito era verdadeiro amor?
Dizem que o amor que ama não conhece fronteiras;
não pode enclausurar-se em um só coração e em um
espírito único. Ele transcende o tempo e o espaço e se
projeta pelo universo inteiro. Dizem...
Oh dádiva divina! Quem me dera poder tão só por um
instante amar assim! Quem me dera irradiar amor qual
estrela-pulsar que permeia tudo! Quem me dera ter a

85
ensaios sobre o tudo e o nada

graça de ser tão humanamente perfeito que não sofresse


a perda do amor correspondido!
E eu, ser imperfeito no amor, na vida e no tudo, ainda
amo a quimera do apego imaterial de quem já não está
conosco. Oh carne sem carne que incentivaste meu
egoísmo de amar-me por amar-te! Oh espírito errante
que nem sei se me escutas, mas mesmo assim te falo,
na esperança de que alguém te conte o que estou
sofrendo!. E sofro mais por saber que sofro por mim mais
do que por ti! Oh egoísmo de amor sem limites!
Dizem os que pensam que sabem, que a súplica
dedicada à alma que não possui corpo, atrasa seu
caminho. - Qual caminho, meu bem, se nunca na vida
andastes um passo sequer longe de minha companhia;
...nem eu andei sem a tua. - Qual caminho?
Vieste a este mundo primeiro e te foste primeiro
também. Sorte tua de não ter que ficar angustiando dias,
permanecendo noites em claro, amargando prejuízos
morais, confortando seres por uma ausência que dói.
Se ao menos tivéssemos a certeza do eterno futuro...
Se ao menos com um abrir e fechar de olhos
percebêssemos tudo, não haveria mais angstia nem
aflição, e poderíamos dedicar o resto de nossos dias a
procurar-nos novamente; ou então a abandonar-nos ao
acaso e permitir-nos a escolha de ser ou de não mais
ser.
Ainda estamos juntos?
Não sei mais se te sinto dentro de mim ou se nos dois
estamos fundidos e amalgamados no holocausto da
ilusão. Não te foste completamente; boa parte de ti ainda

86
ensaios sobre o tudo e o nada

permanece agarrada a minha alma, ou coisa parecida.


Ou talvez eu tenha ido junto e não percebi.
Nunca pensei que minha poesia precisasse tanto de
tua presença para sair do meu íntimo. Nunca pensei que
a minha poesia eras tu!
Mas mesmo assim, escrevo; não na pretensa ilusão
de transformar em poesia estas letras que juntas correm
a formar um texto, mas para consolo íntimo e fugaz da
alma.
Sinto-te em mim, mas sei que não estás. Oh ilusão do
apego que pretende manter para sempre a vida,
sabendo que isto é impossível! Sempre foi, e sempre
será...
A morte tem boa memória e nunca esqueceu
ninguém. Os que ultrapassam o limiar e enfrentam a
extinção do corpo físico afrontam outra realidade. Os que
ficam do lado de cá sofrem a perda, a solidão, a angústia
e o vazio existencial.
Não tem que ser assim! Não há direito de ser assim!
Quem é que pode encarar a vida carregando um
cadáver nas costas? Quem é que consegue andar com
uma bolsa de lembranças a tiracolo? Quem é que já não
pediu ao divino, ajuda para sobrelevar este peso?
Coragem... Há que pedir coragem para esquecer e
descarregar nosso fardo numa esquina qualquer. Que as
lembranças de cada objeto compartilhado sejam banidas
do coração. Quem poderá censurar este fato? Quem,
em são juízo, criticará esta ação?
Continuamos vivendo e esperando. O mesmo irá a
acontecer conosco. E assim, sucessivamente, até o fim
dos tempos.

87
ensaios sobre o tudo e o nada

É a lei; a terrível lei que devemos suportar com


estoicismo para não desfalecer. A lei que nos iguala, que
nos coloca no mesmo antro, na mesma situação, no
mesmo desespero. A lei que nos torna humanos...
Quem me dera desumanizar o mundo para evitar
sofrer! Quem me dera possuir um coração diferente para
cada dor...! e arrancá-lo e enterrá-lo junto ao morto para
não mais padecer...
Ah, se eu verdadeiramente fosse poeta, bem que
tentaria!
Mas não sou...

88
ensaios sobre o tudo e o nada

QUEM DISSE QUE EU MUDEI?


Quando abri os olhos e olhei para o relógio percebi
que era hora de acordar. Lá fora o trabalho esperava e,
de alguma maneira, já sabia o que iria fazer naquele dia;
afinal, a rotina seria a mesma, como todos os dias,
desde sempre, desde que tenho lembranças...
Pensei então: porque esse dia não poderia ser
diferente? Mesmo sendo dois de janeiro, o primeiro dia
„útil‟ do ano que estava se iniciando, mesmo por haver
prometido no final do dia 31 de dezembro do ano anterior
que este ano seria diferente, mesmo sabendo que todos
os anos acontecia a mesma coisa e logo me esquecia
das promessas realizadas a mim mesmo, tentei mudar...
Levantei cedo e em lugar de tomar banho - como
sempre o fazia - liguei a televisão no volume mais alto
possível, ainda de pijama e sem escovar os dentes.
Fui até a cozinha, abri a geladeira e me servi de um
grande copo de refrigerante, fiz pipocas no micro-ondas,
um sanduíche com bastante maionese no pão francês
amanhecido, e voltei ao meu quarto, a meu piquenique
particular, na frente do televisor.
Quando percebi já era quase meio dia; vesti umas
roupas esporte e sai procurando qualquer restaurante
por quilo, daqueles bem baratos que ficam em todas as
esquinas. Ainda nada de banho nem qualquer higiene
pessoal. Realmente era diferente!
Após o almoço, andei pelas ruas sem pressa, olhando
vitrines que em nada me interessavam, gastando o meu
tempo como bem entendia, sem preocupações de
horário, sem culpas de nenhum tipo; o meu primeiro dia

89
ensaios sobre o tudo e o nada

útil do ano novo. Isto sim que é uma verdadeira


mudança!
Sem me dar conta, pois o tempo ia passando
inexoravelmente, o sol se ocultando por trás dos prédios,
o manto do entardecer caindo sorrateiramente sobre a
cidade, decidi retornar ao lar. Lá, ninguém me esperava,
ninguém sabia de minha decisão, ninguém imaginava
que novo rumo havia tomado minha vida.
Cheguei cansado e com vontade de tomar um banho;
enchi a banheira com água morna e deitei com a cabeça
apoiada na borda. Adormeci logo...
Não sei quanto tempo passou, mas muito sonhei;
sonhos confusos que martelavam minha cabeça
procurando serem compreendidos pela mente racional.
Não sabia ao certo o que fazer com esta sensação.
Nesse instante o despertador tocou. Como sempre
fazia, esperei o segundo toque, dez minutos depois,
enquanto ordenava meus pensamentos. Aos poucos
lembrei-me de tudo o que tinha feito e abri lentamente os
olhos procurando uma toalha para secar meu corpo; o
quarto escuro e os lençóis mal arrumados, a cama seca
e macia, o ventilador girando na frente e o tradicional
canto do galo me fizeram compreender que havia
sonhado. Tudo havia sido um sonho! Nada, em
realidade, havia mudado!
Quedei pensando deitado, tentando descobrir alguma
lição neste meu sonho. Algo me dizia que pensar sobre o
assunto era um bom começo.
Realizei minha rotina como todos os dias, porém, o
pensamento sobre o sonho não saia de minha cabeça. O
que era importante para efetivamente mudar, qual atitude

90
ensaios sobre o tudo e o nada

seria a correta, o que deveria ser mudado, quais as


vantagens e desvantagens da eventual mudança, e
muitas outras perguntas rodopiavam em meu cérebro.
Passei dias, meses, o ano todo tentando descobrir
alguma coisa; era novamente fim de dezembro e outro
ano estava para começar. Olhei para trás,
retrospectivamente, verificando cada coisa importante
que pudesse haver marcado uma mudança em mim,
porém, nada encontrei de diferente; havia feito tudo
exatamente igual ao ano anterior, mesmo que as
pessoas a meu lado dissessem o contrário.
Foi ali que percebi! A mudança estava na essência,
não na existência. Não é o que planejamos fazer o que
faz a mudança acontecer, mas a atitude de querer mudar
nos prepara para outra dimensão de ação. Nós mesmos
quase que não percebemos; os que nos cercam podem
ver melhor, pois sentem a pujança da intenção.
Amigos: não forcem mudanças. Para realmente
mudar não há que querer mudar nada na sua rotina
diária; somente a reta intenção, na mais pura essência
do ser, permite a ação diferente.
Então mude você também, não mudando!

91
ensaios sobre o tudo e o nada

O EU E O DESENVOLVIMENTO INTERIOR
Quem é o EU, não importa, pode ser você ou eu. Na
verdade, somos todos nós. Falamos aqui do EU, como
sendo o EU superior, único, enquanto que o Eu inferior,
múltiplo, é o que prevalece em nós e nos domina.
Poderia ter sido qualquer um que formulasse as
mesmas perguntas e procurasse com afinco as
respostas necessárias. O importante, no entanto, é saber
que o EU propriamente dito não se encontra à vista e
deve ser procurado no fundo de cada ser. Ao encontrá-
lo e compreendê-lo, o homem morre como homem e
nasce para a eternidade. Desta forma, transforma-se em
divino, transcendendo sua humanidade.
Basta lembrar que o homem possui a capacidade real
de perguntar e de responder, já que lhe foi dada a
faculdade do raciocínio e, mesmo que adormecida, a
muito mais importante e necessária, a da intuição.
O fato é que o ser humano vive na superfície,
utilizando seu racional para tentar explicar os fatos
secundários, menos importantes, passageiros, e não se
dá conta que, explicando-se o principal, o secundário lhe
vem por acréscimo, como dádiva da própria vida.
Sendo o homem desconhecido de si mesmo, todas as
ações que sofre geram reações contrárias que ele não
pode controlar, e convence a si próprio de que pouco ou
nada pode fazer para obter o domínio das mesmas
reações que ele criou. Quando percebe este contra-
senso, sobrevém a desolação e o arrependimento e se
propõe então agir de forma diferente na próxima
oportunidade. Porém, nesta próxima oportunidade, o Eu
em evidência, o que está de plantão, já não é o mesmo
que realizou o propósito de mudar de atitude, pois o

92
ensaios sobre o tudo e o nada

homem é constituído de muitos Eus que mudam


continuamente de lugar, e o ciclo se reinicia e se repete
ao longo de toda sua vida.
Se o homem for perseverante em seus propósitos,
chega a descobrir que para mudar de atitude deve apelar
a um grande esforço de vontade para conseguir
escassos benefícios, já que a vida reclama dele, a cada
instante, uma posição. No entanto, se ele conseguir
deixar de viver no mundo para ser na eternidade, a rotina
diária não mais o afetará, e estará em condições de
comungar com o divino e com os planos superiores ou
supra-humanos. Isto se pode conseguir, dentre outras
coisas, através do exercício de meditação, que propicia
um clima de harmonia interior e permite a exposição dos
mais recônditos sentimentos e conflitos que o homem
possui, possibilitando conhecê-los e controlá-los.
O verdadeiro desenvolvimento interior não se mede
pelo número de ações realizadas ou palavras proferidas,
mas pela descoberta e controle dos inúmeros Eus que
constituem a alma do homem, sendo que o maior ou
menor grau de intensidade na consecução destes
parâmetros é o que determina a classificação dos tipos
humanos em estágios de desenvolvimento.
Paul Brunton dizia em seus escritos, que a linha geral
do desenvolvimento interior para a raça humana é, no
primeiro estágio, a ação correta, que inclui o dever, o
serviço e a responsabilidade. No segundo estágio,
aparece a devoção religiosa. Isso gera a adoração ao
poder superior, o aperfeiçoamento moral e a comunhão
sagrada. O terceiro estágio é místico e envolve a prática
da meditação para se obter uma comunhão mais íntima.
O quarto estágio é o despertar da necessidade de
compreender a verdade e de conhecer a realidade. O

93
ensaios sobre o tudo e o nada

resultado final é o sábio, que integra em si mesmo o


homem civilizado, o religioso, o místico e o filósofo.
Neste último estágio, pelo conhecimento da realidade
íntima do ser, estaremos em condições de transcender o
temporal e fixar-nos em uma dimensão diferente da que
vivemos, face-a-face com o divino. Exemplos de seres
excepcionais que conseguiram tal feito são abundantes.
Resta saber se a necessidade de transcender o
humano ocupa todos os homens por igual e de que
maneira. Verificamos com certo estupor que a maioria
dos seres humanos possui uma certa religiosidade que o
anima a tentar comungar com o divino, mas apesar das
infrutíferas tentativas, a aproximação com os planos
superiores e mais virtual do que real, está mais na sua
própria visão do que é na realidade. Ele ora muito, faz
promessas, conversa com Deus e com os Santos, mas
nada alcança de concreto em sua viagem interior.
Talvez a vida de oração seja conduzida por um Eu
diferente do Eu que promete, e diferente ainda daquele
que mantém uma conversa com o mundo espiritual. A
multiplicidade de Eus, separados na vida quotidiana, não
deixa espaço para a ascensão do espírito humano à
morada do EU Superior e, por conseguinte, ao mundo
divino.
O controle total dos Eus individuais é a condição
necessária para a transcendência. Viver na eternidade é
a conclusão lógica do processo de desenvolvimento do
EU Superior e a qualidade imprescindível para alcançar
o mundo Divino.

94
ensaios sobre o tudo e o nada

O PARADOXO DO TEMPO
Há muito tempo pretendo falar acerca do tempo, mas
falta-me tempo.
Este aparente jogo de palavras, talvez escrito de
forma gramaticalmente incorreta, mostra-nos a
ambiguidade do tema que agora nos ocupa.
A primeira referência ao tempo, na frase acima, diz
respeito ao tempo finito, àquele que se mede pelo relógio
em horas e minutos ou pelo calendário em meses ou
anos. É o chamado tempo humano.
Aqui o tempo físico flui como um manancial e a
humanidade se encontra mergulhada nele sem conseguir
segurá-lo. O homem nada pode fazer para apropriar-se
do momento, pois não lhe pertence. Faz parte do destino
ou da lei de prederteminação, e mesmo que queira, não
pode nem tem como mudar.
A segunda referência da frase é a do tempo infinito,
imensurável, ao eterno, que não tem começo nem fim. É
o tempo que pertence ao divino e que só podemos
alcançar pela nossa própria transcendência.
Impropriamente chamado de tempo, o estado de
eternidade, o tempo-sem-tempo, em vão tentaram defini-
lo os poetas, religiosos, físicos, místicos e filósofos, não
encontrando palavras dentro do linguajar humano que
pudessem evidenciar seu real significado. O mais
próximo que se conseguiu ponderar acerca do assunto,
foi pela idéia de Deus, eterno por natureza, sem princípio
nem fim, mas que coloca a discussão no campo do
virtual, já que sua definição depende da crença de quem
analisa o fato.

95
ensaios sobre o tudo e o nada

Ao falar de eternidade podemos imaginar que o


tempo flui de maneira tão discreta que tende ao não-
tempo, quer dizer, à sua inexistência real. Neste ponto, a
idéia de quietude e permanência surge como figura mais
adequada para explicar este raciocínio.
No mesmo momento, surge a hipótese de imaginar
como é que algo finito e temporal, como é o homem,
pode compreender algo infinito e atemporal, como é a
eternidade. Isto gera dúvidas e desesperança.
Por mais longos que sejam nossos devaneios
empenhados em resolver esta questão, caminhamos em
círculos que vão se ampliando pelo acréscimo de novas
experiências, à medida que passa o tempo, o qual já
vimos que não nos pertence. E novamente mergulhamos
inconscientemente na primeira referência do tempo
mencionada anteriormente, o tempo finito.
Finalmente, a terceira referência é a do tempo
instantâneo, do dia-a-dia, individual para cada ser em
função da organização de sua vida. É o tempo de cada
indivíduo e pertence só a ele.
Este é verdadeiramente o único tempo que depende
de nós, aquele que podemos manejar e predeterminar
em função de nossas atividades diárias. É o tempo do
relógio, da necessidade que temos de sermos donos de
nossas ações, de cumprir compromissos estabelecidos
com anterioridade, de tentar sentir-nos menos finitos e,
definitivamente, de apostar em alongar nossa vida física.
Longe de ser uma questão resolvida, o ser humano
caminha rumo a algum lugar no futuro, onde a idéia de
tempo se torna irrelevante. Se for real ou virtual, finito ou
infinito, não tem a menor importância, desde que
possamos estar conscientes como unidade individual

96
ensaios sobre o tudo e o nada

para conhecer o resultado final deste enigma que


consome, lastimavelmente, nosso tempo.
Em tempo: Dizem os estudiosos do assunto que
haverá tempo, a seu devido tempo, que o homem
descobrirá os segredos do tempo.

97
ensaios sobre o tudo e o nada

O VINHO QUE NUNCA TOMEI


Não era muito tarde ainda e quase não havia
claridade no ambiente, mesmo sendo verão e o sol só se
esconder depois das 20 horas. A luz da lâmpada do
abajur da mesinha de canto iluminava o lugar próximo.
Estava sentado no sofá de casa relendo um livro pela
quarta vez; mesmo tendo uma fileira de uns vinte livros
novos para ler, este era muito bom e a cada leitura novos
horizontes se abriam para minha mente.
Sem perceber a hora passar, devorava literalmente o
livro. O capítulo quinto falava da psicologia humana em
tempo de crise existencial e era particularmente
interessante porque colocava em claro muitas situações
quotidianas que vivia neste tempo. Aprendia muito a lidar
com o estresse do dia-a-dia nas mais diversas situações
e conseguia acomodar minha vida às perspectivas
futuras como se fosse num filme. Podia diagnosticar e
planejar a ação conforme a necessidade.
Olhei o relógio de pulso e verifiquei que já era tarde.
Marcava 21 horas e era tempo prudente de parar para
fazer outra coisa. Pensei em preparar algum lanche e
lembrei que havia comprado cogumelos na feira;
cogumelos fatiados puxados na manteiga e regados com
molho de soja e gengibre parecia uma boa pedida. Mãos
à obra!
Enquanto aprontava a iguaria comecei a pensar em
que vinho deveria tomar para harmonizar com o prato.
Pensei em várias marcas e uvas diferentes e não
consegui encontrar uma que satisfizesse minha vontade.
Pouco tempo atrás havia concluído um curso sobre
vinhos e tinha material suficiente para analisar e escolher

98
ensaios sobre o tudo e o nada

com destreza e sabedoria qual vinho poderia harmonizar


melhor com o prato que estava preparando.
Enquanto pensava, lembrei-me de haver lido sobre a
origem dos cogumelos, como haviam aparecido no
mundo conforme a tradição oral, como se cultivava e,
claro, como se preparava para obter um suculento e
delicioso prato.
Como os cogumelos in natura nascem e crescem a
partir da decadência da matéria orgânica das florestas e
aparentemente brotam do nada, sem nascer de
sementes como acontece com arbustos e frutos, sempre
se tornou um mistério, um questionamento entre
naturalistas gregos e romanos, no passado. Os romanos
acreditavam que os cogumelos e, principalmente as
trufas, eram frutos dos relâmpagos, um presente dos
deuses, tratando-os como iguaria. Mesmo assim, lembro
que o primeiro relato romano escrito sobre cogumelos
falava na morte de uma mãe e de seus três filhos,
envenenados por esses fungos. Além do mais, os
cogumelos eram usados em rituais religiosos pelos
egípcios. Eles acreditavam que as misteriosas estruturas
guardavam os segredos da imortalidade. Fungos
alucinógenos também teriam sido utilizados por
curandeiros de antigas civilizações.
Dentro de todas as variedades conhecidas de fungos
comestíveis no país, havia escolhido o Shiitake por ser
cultivado por um amigo meu, o que me dava garantia de
procedência.
Nesses devaneios estava quando lembrei que
enquanto cozinhava o alimento poderia buscar na minha
pequena adega algum rótulo que pudesse acompanhar o
prato. Abri a portinhola e retirei uma garrafa de um

99
ensaios sobre o tudo e o nada

Malbec francês; pensei que a fortaleza desta uva faria


desaparecer o gosto do meu Shiitake. Devolvi a garrafa e
puxei mais algumas até encontrar um Pinot Noir, varietal
puro, ano 2010, na temperatura ideal de serviço.
Havia um rose espanhol na adega que poderia
combinar também, mas meu paladar estava mais
acostumado ao tinto, então o desconsiderei.
Peguei a garrafa escolhida e fui para a sala de jantar.
Procurei o abridor de garrafas e o corta-gotas que
sempre colocava, depois de haver levado algumas
broncas da minha esposa por haver manchado a toalha
de mesa com gotas de vinho...
Como acontece nos melhores filmes de terror, justo
nessa fatídica hora toca o telefone. Era minha mãe, que
liga todos os dias para ter notícias de seu filho, apesar
dos meus mais de sessenta anos de idade. Quem
poderia negar atendimento a uma mãe tão atenciosa e
querida? Disse-me que estava ligando por Skype e eu
não atendia, e perguntou por que não ia agora ao
computador para me conectar e falar com ela.
Seu pedido é uma ordem, disse a ela sorrindo para
meus botões. E lá fui eu, a toque de caixa, sentando
frente ao computador e ligando a telinha em questão.
Falamos bastante sobre tudo, mas não conseguimos
resolver o problema do mundo, como se diz em jargão
popular quando se fala sobre nada!
Dei um salto da cadeira ao sentir o primeiro cheiro de
queimado, e lembrei que havia deixado o fogo aceso.
Sem me despedir, gritei que minha comida estava
queimando e corri para a cozinha. A panela de inox
estava preta por fora e uma espécie de carvão
amassado estava dentro. A fumaça escura subia para o

100
ensaios sobre o tudo e o nada

teto que estava enevoado e opaco. Desliguei o fogo e


com os braços caídos ao longo do corpo, soltos, sem
forças, amargurei-me pelo descuido de haver esquecido
o que estava fazendo.
Nada mais poderia fazer essa noite. Era tarde e não
tinha tempo nem vontade de começar de novo. Olhei
para o vinho que estava sobre a mesa posta para o
jantar e com pesar decidi não abrir a garrafa; pura raiva!
Lembrei que dentro de pouco tempo haveria a troca
de guarda da vigilância do prédio, então, em um ato de
pura irracionalidade, peguei a garrafa e levei para o
vigilante que estava saindo. Ele olhou perplexo, sem
entender, mas expliquei que tive vontade de dar a ele
essa garrafa para que tomasse em casa com sua família.
Agradeceu e com os olhos brilhantes de pensar em não
sei que coisas, pegou sua bicicleta e foi embora.
Quando entrei novamente em meu apartamento o
telefone estava tocando. Atendi prontamente. Era minha
mãe que, com remorso por haver me distraído, estava
pedindo desculpas. Brinquei com ela dizendo que não
tinha fome mesmo e que alguns cogumelos a mais ou a
menos na minha vida não fariam nenhuma diferença.
Pareceu ficar mais tranquila e me desejou sorte e muitos
anos de vida, mesmo que pela raiva que passei tivesse
perdido uns dez anos.
E como diz o antigo ditado popular, fiquei sem o pão
e sem o bolo. Não comi nem bebi nesse dia. Liguei a
televisão e coloquei em qualquer programa que
tampouco assisti. Quando soou o relógio de parede
avisando que era meia noite, desliguei a televisão e fui
deitar.
Tampouco consegui dormir.

101
ensaios sobre o tudo e o nada

A VERDADE
Falar sobre a verdade não é tarefa fácil, já que
centenas de filósofos, ensaístas, poetas e escritores em
geral tentaram esclarecer seu significado. Arrisco ser
repetitivo em alguns aspectos, mas é impossível hoje em
dia escrever algo absolutamente inédito, que ninguém
tenha ousado dizer nem cogitado pensar. Tanto é
verdade dizer isto, que as milhares de bibliotecas
públicas e privadas no mundo, as editoras mais ocultas e
distantes do planeta e a tão falada e utilizada Internet
possuem milhares, senão milhões, de definições e
explicações para o tema "verdade".
Definitivamente trata-se de saber se existe ou não
verdade no sentido literal da palavra e se ela existir
mesmo, se é do tipo absoluta ou relativa. A importância
deste tema é fundamental para conseguir levar uma vida
melhor e mais tranquila e para propiciar paz a todos os
seres humanos que se digladiam diariamente por este
motivo. Quem já, em são juízo, não defendeu uma
posição até as últimas consequências por achá-la
verdadeira, chegando até se indispor com amigos,
parentes e muitas vezes com o próprio par?
A verdade se torna uma posse que possui quem acha
que a tem. Como dizem que a verdade é uma só, então
a sua posse nos torna especiais, com o domínio da
razão pura e com a sabedoria absoluta sobre o tema da
verdade em questão; ninguém pode negá-la nem
discordar de nossa posição da verdade, porque isso
significaria enfrentar os deuses e se colocar no patamar
mais baixo da ciência do conhecimento, pela ignorância
do saber. Como é que o outro não se dá conta de algo
tão óbvio como é a nossa verdade? Como é que não
percebe seu erro?

102
ensaios sobre o tudo e o nada

Concordar com o outro acerca de matéria diferente


desta verdade nos priva automaticamente de sua posse.
Passa a ser propriedade do outro que a percebeu
primeiro. Se não consigo defender a ideia deste fato, ela
própria morre para mim e passa a pertencer ao outro por
direito. Quem é que consegue viver sem uma verdade
própria? Já pensou andar pelas ruas da cidade e as
pessoas olharem para você como um homem-sem-
verdade?
Para entender melhor o tema que nos ocupa vamos
tentar revisar o nascimento de uma verdade.
No início da vida a verdade aparece por acaso, como
exercício de tentativa e erro; não há pensamento nem
premeditação sobre ela, mas basta intuir que, por
exemplo, o choro nos traz prazeres tais como a comida,
a atenção plena, a saciedade, a necessidade básica
atendida, etc, então o chorar se torna nossa verdade.
Toda vez que sentimos alguma falta, choramos, por não
saber expressar-nos de outra maneira e defendemos
esta verdade. Isto deixa de acontecer quando nossos
pais percebem que temos suficiente capacidade para
procurar satisfazer sozinhos estas necessidades, quando
aprendemos a falar e a pedir em lugar de chorar, quando
definitivamente, começamos a nos tornar independentes.
Nessa fase começa a aparecer o pensamento de
forma ainda rudimentar, mas que nos traz uma ideia do
que fazer em cada circunstância para ter um lucro
emocional. Para isso, inventamos uma verdade que na
realidade é uma mentira, mas que nos satisfaz e nos traz
como consequência uma alegria artificial, mas que
parece verdadeira para quem olha de fora. Quando essa
verdade-mentira passa a ser defendida com unhas e
dentes, incorpora-se a nós como grande verdade e

103
ensaios sobre o tudo e o nada

passamos então a acreditar nela como se fosse parte de


nossa existência. Criamos desta forma, uma nova vida,
emprestada, pela nova verdade que nos possui. Desta
forma, minha verdade sou eu. Passo a existir através da
verdade que eu fabriquei para me sentir melhor, e quem
tentar arrancá-la de mim se torna meu algoz.
Muitas vezes mentimos para ficarmos maiores do que
em realidade somos. Como se, para ficar mais alto do
que os colegas, usássemos salto alto, ou como se
tivéssemos enfrentado medos e situações de terror sem
nos abalarmos, aparentemente. Sair sozinho, por
exemplo, na silenciosa escuridão da noite tenebrosa e
voltar com um sorriso nos lábios, assegurando não haver
sentido nenhum temor. Aqui nasce o super-homem que
todos pretendemos ser, e a mentira-verdade se presta
para afiançar esta idéia. Não tem a máxima que diz que
homem que é homem não chora? Quem inventou isso?
Homem chora, sim; é muito bom que assim seja!
Então, um tempo depois crescemos e nos tornamos
adolescentes, adultos, entramos na dita melhor idade
que é uma forma carinhosa e simpática de chamar a
velhice, e nos preparamos para deixar este mundo. Se
vamos de repente, sem aviso prévio, levamos a verdade-
mentira para o túmulo. Não sei se os mortos pensam ou
se há outro mundo após abandonarmos este, mas se
arrependimento matasse, a imediata percepção das
nossas verdades-mentiras nos matariam de novo... mas
enfim, como já estamos mortos, nada mais importa. E se
temos tempo de pensar antes, se a morte nos dá uma
trégua para colocarmos as coisas em dia, tentamos
desfazer as verdades-mentiras, pelo menos para nós
mesmos. Raramente temos coragem de declarar ao
outro que todo o tempo passado vivemos na mentira pela

104
ensaios sobre o tudo e o nada

criação de nossa verdade particular que se fez carne em


nós e nos dominou completamente. Álvaro de Campos,
no seu Poema em Linha Reta, “...E eu, tantas vezes
reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil, Eu tantas
vezes irrespondivelmente parasita, Indesculpavelmente
sujo,...” conseguiu finalmente dizer a verdade aos quatro
ventos, embora só tenha existido na mente de Fernando
Pessoa que teve que criá-lo para este fim..., outra
verdade-mentira?
E se a verdade não existisse? Se tudo fosse mentira
ou absoluta falta de verdade? Os bons costumes, a
moral, o amor, a amizade, e todo tipo de relação inter-
humana estariam fadados ao insucesso. Concebamos
por um instante um mundo imaginário onde não existisse
a verdade. Ninguém precisaria evidenciar nada para
ninguém nem se importaria com a opinião alheia, as leis
da física e da química, da termodinâmica, da mecânica,
da eletricidade, do movimento, da gravidade, da entropia,
dentre outras não aconteceriam da forma em que
acontecem, pois a verdade física seria ilusória. Não
haveria um padrão absoluto e as coisas funcionariam por
integração instantânea. Falamos aqui de verdades
universais que independem da vontade humana para
acontecer, mas que são incontestavelmente evidentes e
determinadas.
Se entendermos por verdade tudo aquilo que
acontece e que pode ser reproduzido e verificado, aquilo
que definimos majoritariamente como certo, aquilo que
convencionamos em ser uma realidade, a mentira como
forma de vida e de relação está fora de cogitação.
Mesmo mentindo relativamente, simulando situações,
colocando-nos fora da realidade para emplacar alguma
idéia que sabemos não ser adequada, a verdade sempre

105
ensaios sobre o tudo e o nada

prevalece. Eu posso tentar me passar como super-


homem, mas na realidade não o sou. Posso tentar
inventar uma história de mim mesmo, mas na realidade
nunca aconteceu e no fundo é um conto criado com um
objetivo espúrio. Posso acreditar ou não na existência de
Deus, mas o fato independe da minha crença. Posso
depositar esperanças na realização de um desejo e
torcer as situações para que ele aconteça de fato, mas
de fato, ele nunca existiu de forma independente, só foi
criado pela minha ação.
Enfim, tudo o que estou agora escrevendo pode ser
certo ou errado, mas a quem interessa? De qualquer
forma o objetivo desta conversa é despertar curiosidade
para o fato e fazer todo o mundo pensar um pouco.
De verdade!

106
ensaios sobre o tudo e o nada

ENCONTRO COM OS MÚSICOS


Fiquei sabendo do concerto que o mestre musical
Nelson Freire estava dando no Brasil, especificamente
em São Paulo. Desde pequeno ouço música clássica e
aprecio muito os bons intérpretes; então decidi ir e
procurei alguém que me acompanhasse para não ficar
sozinho e poder comentar os trechos importantes da
peça musical.
Quando vi o programa, meu coração deu um salto:
Concerto para Piano e Orquestra No. 2 em Do Menor,
Op. 18 de Rachmaninoff e a Rapsódia sobre um tema de
Paganini, na variação No. 18, do mesmo autor.
Particularmente admirava Rachmaninoff pela sua
maestria na criação destas peças e não podia perder a
função. O Freire morava na Europa e poucas vezes
vinha ao Brasil, então a oportunidade era única.
Como vivemos numa época moderna, como bom
internauta, entrei no site da Sala São Paulo para verificar
dia e hora da apresentação e poder comprar meu
ingresso. Devo dizer que ninguém queria me
acompanhar, então teria que ir sozinho. Não podia
perder o espetáculo por nada deste mundo!
Não consegui acesso à bilheteria pelo que tive que
telefonar para perguntar detalhes e efetuar a compra. O
atendente, do outro lado da linha, hesitou um pouco pela
minha pergunta, antes de responder. Disse-me que os
ingressos estavam esgotados desde a semana anterior e
que lamentava, mas que haveria outros espetáculos na
próxima semana, com outros músicos de peso. Agradeci
polidamente e desliguei o telefone.
Creio que minha frustração era evidente, pois minha
companheira me perguntou se havia acontecido alguma

107
ensaios sobre o tudo e o nada

coisa. Expliquei o caso e ela me recomendou ter


paciência. Disse que iria assim mesmo e que ficaria na
porta esperando alguma desistência, pois sempre
acontece de alguém desistir em cima da hora.
Lá fui eu num sábado depois do almoço, já que a
função era às 20:30 h. e devia antes procurar algum
hotel para pernoitar depois do espetáculo. Depois de
realizado o check in e deixado a pequena mala de
viagem no quarto do hotel, sai em direção í Sala São
Paulo e me dirigi à bilheteria. A moça que atendia
perguntou o que desejava e lhe disse que meu maior
desejo era assistir à peça do Freire. Como já sabia, ela
me disse que não havia mais ingressos, mas eu repliquei
que esperava que alguém desistisse e pudesse ficar com
esse ingresso. Ela me disse que teria em conta meu
pedido e que se alguém aparecesse nessa condição
reservaria o ingresso para mim. Combinei regressar às
19 hs., pois fiquei pouco à vontade para pedir o seu
número de celular para ligar mais tarde.
Caminhei por aí, sem rumo, tomei um café num bar
próximo e pontualmente às 19 h. postei-me na porta da
bilheteria esperando verificar alguma desistência. A
moça me reconheceu e fez um sinal de negativa com a
cabeça, sinal que ninguém havia vindo, para minha
tristeza. Mas eu não era homem de desistir!
Passada meia hora e vendo que nada acontecia,
bolei um plano na minha cabeça, que poderia dar certo.
Caminhei em direção da entrada e falei com o guarda
que precisava dar um recado ao Nelson Freire. Ele me
disse que o camarim dele estava trancado por dentro e
não poderia interromper. Disse que era importante e que
trazia uma mensagem de uma grande amiga dela,
pianista também, e companheira de jornada, chamada

108
ensaios sobre o tudo e o nada

Martha Argerich. Disse a ele que a Martha iria ficar


chateada, mas que teria que entender... Ao ouvir esse
nome artístico bem conhecido o guarda me disse para
aguardar que veria o que podia fazer.
Dentro d pouco tempo voltou e disse que o Sr. Nelson
Freire me aguardava no camarim. Dirigi meus passos
para lá ao compasso de meu coração que batia
loucamente. Encontrar-me com Freire cara a cara e
ainda antes de um concerto, parecia um sonho!
A porta estava entreaberta, mas mesmo assim bati
devagar e pausadamente. Uma voz de dentro da
pequena sala pediu para entrar. O pianista estava em pé
me esperando e quando me viu me deu um abraço e
disse para sentar. Perguntou sobre a Martha e eu dei o
recado. Sabia que eles não se encontravam há algum
tempo e aproveitei para inventar uma historia plausível.
Ele me disse que a considerava uma grande pianista,
melhor do que ele mesmo. Muito esforçada e de muito
brilho interior. Disse a ele que concordava com tudo,
menos no que se refere à qualidade do pianista; era
muito difícil escolher entre ambos, e ainda de quebra,
citei o Daniel Baremboim e o Facundo Ramirez como
amigos meus que também tocavam divinamente.
Ele ficou muito entusiasmado por que éramos amigos
comuns a todos eles e me perguntou como os
conhecera. Disse a ele que em uma outra ocasião
poderíamos conversar mais sobre o assunto, que era
chegada a hora de ele se apresentar. Perguntou onde
estaria sentado e lhe disse que não havia conseguido
ingresso. Enfiou a mão no bolso do paletó e tirou um
ingresso na plateia, na primeira fila.

109
ensaios sobre o tudo e o nada

Agradeci muito e disse que havia sido um grande


privilégio haver conversado frente a frente com ele. Deu-
me um cartão com os dados dele e insistiu para que
entrasse em contato. Mandou abraços para a Martha e
para o Daniel, e quando lhe disse que iria a Buenos Aires
para assistir o concerto deles, ficou muito alegre e
mandou recomendações aos dois.
Saí dali com a sensação de haver estado no céu!
Quando percebi que havia mentido um bocado para
conseguir este feito, consolei-me pensando que o fim
justifica os meios... pelo menos, neste caso. Segui para o
saguão principal e o público já estava entrando. Entrei na
fila, mostrei o ingresso e me encaminharam para uma
porta de acesso na frente do teatro. Sentei na cadeira
correspondente e em poucos minutos começou o
espetáculo.
Quando Freire entrou, uma ovação com aplausos
estrondosos confirmaram a enorme aceitação pública
deste grande pianista brasileiro. Antes de sentar-se ao
piano, acenou diretamente para mim e levantou um
braço em sinal de amizade. Senti-me orgulhoso e corei
levemente por causa disso. As primeiras notas
melodiosas do concerto ecoaram pela sala e a doce
melodia criava estruturas imaginárias pairando acima da
plateia; virei-me para um lado e abri os olhos. A música
vinda da televisão, no canal de clássicos, deixou-me
desconcertado. Mas apesar de haver sido um sonho,
estava feliz.

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ensaios sobre o tudo e o nada

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