Cidade Oculta - A Vila Operária, Ana Tomas

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Cidade Oculta – A Vila Operária

Ana Leonor Tomás/Prof. Doutora Arquitecta – Estabelecimento de Ensino Superior de


Setúbal da Dinensino
Bairro de Belém, Rua 3 – nº 1, 1400-345 Lisboa, almt@netcabo.pt

VAZIOS ÚTEIS – Seminário Estudos Urbanos – ISCTE/ Julho 2007

CIDADE OCULTA – A Vila Operária

A Vila Operária, entendida como argumento narrativo do facto arquitectónico, surge no


âmbito do tema - Vazios Úteis - através do estudo crítico da sua arquitectura, num apelo ao
sentido de identidade e consciência cultural, fazendo prevalecer a especificidade da sua
relação tipo-morfológica mais comum, enquanto forma de colonização interna do quarteirão.
Na cidade oculta, através da organização do espaço e da forma construída, os camponeses
tornados operários, imprimiram um traço de ruralidade, humanizando um espaço abstracto
reflectido na casa, também esta inscrita num processo de transformação, tornando-se o
intervalo cronológico admitido (1870-1930), fundamental para entender o momento
contemporâneo da cidade e da sua arquitectura.

Pretende-se por um lado aprofundar os meios e modos da sua génese, o entendimento das suas
relações tipo-morfológicas e a sistematização das suas características tipológicas. Da leitura
tipo-morfológica sobre o objecto em questão, ressalta a especificidade do seu enquadramento,
sendo no seu carácter marginal e por vezes oculto relativamente à estrutura urbana em que se
insere, que parcialmente reside a sua singularidade.

O reconhecimento de uma estrutura compositiva específica induz uma reflexão mais ampla
baseada no intercâmbio entre as práticas vernaculares e eruditas da arquitectura e o modo como
estes dois campos se influenciaram mutuamente ao longo de vários séculos, no universo
específico da arquitectura portuguesa.

Vila Macieira (1890) – Estrutura compositiva baseada no quadrado e no retângulo !2.

Apreendida na dimensão de tipo arquitectónico é ainda possível observar a sua adequação a


posteriores contextos. A arquitectura surge assim, numa perspectiva universal enquanto

1
organismo vivo, capaz de sobreviver adaptando-se a todas as mudanças que lhe são
exteriores, que em cada passo ou tipologia concreta, respondem a uma informação genética de
ordem interna superior. A sua realidade é o devir que a faz ressurgir sucessivamente.

Contexto Oitocentista – a estrutura funcional da cidade


Do Pátio à Vila Operária

“Los primeros estudios científicos sobre las ciudades surgieron en la segunda mitad del siglo
pasado, frutos del pensamiento higienista, precedente directo de las teorías urbanísticas
contemporáneas. Nacidos como reacción al entorno social e cívico creado por la Revolución
Industrial, se hallan impregnados desde su origen de un cierto carácter de conocimiento para
la acción que transmitirán al urbanismo posterior, conformador de la ciudad actual”(Pozo y
Barajas, 1996).

O quadro de intervenções arquitectónicas que marcaram a cidade oitocentista, reflecte a


profunda contradição do seu universo social. O contingente migratório oriundo do meio rural
improvisou as suas próprias soluções de habitação, elegendo o Pátio, como primeira solução
neste domínio.
O Pátio tal como é entendido no final do século XIX, consiste na apropriação espontânea de
estruturas pré-existentes, formando um conjunto heterogéneo de escala e conformação
diversas. As formas de ocupação são condicionadas pela natureza dos espaços residuais,
estendendo-se de logradouros de edifícios e palácios arruinados, a conventos desafectados,
quintas e pátios de antigas casas senhoriais em zonas rurais. Apesar da dificuldade em definir
tipologias precisas, é possível distinguir os que surgiram da ocupação espontânea de um
logradouro ou dos pátios de palácios e claustros de conventos, dos que foram construídos com
essa finalidade.
Os Pátios distribuem-se por toda a extensão da cidade, com maior concentração nos bairros
antigos, de construção mais densa, e nas zonas periféricas que outrora constituíam a franja
rural da cidade (Ameixoeira, Olivais, Chelas , Lumiar, Charneca, Benfica), abrangendo
também as novas áreas de implantação industrial (Alcântara, Marvila, e Beato).

A falta de condições mínimas de higiene que de um modo geral caracterizou toda a cidade
oitocentista, resultou em fortes surtos epidémicos, sentidos particularmente nas zonas
ocupadas pelas classes laboriosas. As designadas doenças da habitação atingiram
preferencialmente as classes mais desfavorecidas que oriundas do meio rural não possuíam
em relação à cidade, as necessárias defesas. As elevadas taxas de mortalidade constituíram o
argumento do discurso de higienistas e reformadores sociais, que ao longo do século XIX
defenderam o combate à chaga da habitação operária, implementando o debate da casa
barata e salubre.
O levantamento da situação foi feito através de Inquéritos à habitação, destacando-se o
Inquérito Industrial de 1881 e o Inquérito aos Pateos de Lisboa, elaborado em duas partes
(Prado e Ruiz, 1902;1905).
A escassez ou pouca objectividade do enquadramento legal elege o Regulamento de
Salubridade das Edificações Urbanas1, como uma das principais normativas. O discurso
higienista estende-se igualmente à cidade através das orientações que em termos urbanísticos
acompanham a legislação que serve de enquadramento aos Planos Gerais de Melhoramentos
da Capital2, ecoando as preocupações que se fazem sentir por toda a Europa.

1
Regulamento Geral de Salubridade das Edificações Urbanas (Condições Higiénicas a adoptar nas construções
dos prédios), aprovado por decreto de 14 de Fev. de 1903.
2
“No decurso do ultimo quartel do século XIX, Lisboa tinha desenvolvido um conjunto de estudos sob a
orientação de Frederico Ressano Garcia, que vêm a integrar o Plano Geral de Melhoramentos de 1904. Em
1927, J.C. Forestier desloca-se à capital como consultor do Município, para colaborar na elaboração de um novo
2
Estrutura urbana

A vertente segregacionista associada a este período, determina a existência de áreas da cidade


às quais estão atribuídas funções específicas. Assim, constituem-se os primeiros bairros
industriais, aos quais está significativamente associada a implantação da habitação operária.
Embora disseminadas por toda a área urbana, as Vilas acompanham a implantação das zonas
de forte concentração industrial em particular ao longo do vale de Alcântara a ocidente e do
vale de Chelas a oriente, reforçando numa primeira fase a relação da cidade com o rio.
Concentradas igualmente nos bairros antigos, num processo de densificação da malha urbana
tradicional, estender-se-iam posteriormente para zonas de baixo valor fundiário na influência
directa das primeiras, como foi o caso da escarpa dos Prazeres e Campolide a ocidente, Graça
e Penha de França a oriente.

Entendida numa vertente abstracta enquanto cidade industrial, Lisboa organiza-se de acordo
com parâmetros de funcionalidade. As obras do porto de Lisboa, o estabelecimento de vias
férreas urbanas e suburbanas, em particular a Via de Cintura, juntamente com a definição do
novo perímetro urbano através do traçado da 1.ª Estrada de Circunvalação (1852), serão as
principais condicionantes de todo o processo de urbanização e industrialização da cidade; o
estabelecimento da rede de transportes acentua a relação com o rio, pois a área vocacionada
ao comércio desenvolve-se na zona próxima ribeirinha dependente do tráfego fluvial,
sobretudo o tráfego marítimo além Atlântico.
Neste contexto é necessário atender às transformações sociais, culturais e económicas que
desencadearam os diferentes processos de formação/transformação sobre o tecido urbano.
Profundamente classista, Lisboa vive nesta época, uma “dupla realidade” (Madeira
Rodrigues, 1979). A cidade laboriosa cresce sobre si própria, num processo de densificação
das áreas mais antigas, ou estende-se às periferias pouco valorizadas subordinada à
proximidade das áreas industriais. Paralelamente, em resposta aos preceitos urbanísticos
higienistas e à vontade de uma classe social emergente, a cidade cresce para Norte, originando
novos bairros residenciais, baseados numa prática comum que elege o quarteirão oitocentista,
resultante do traçado ortogonal e do loteamento informado pela referência normativa que
corresponde à implementação de uma nova tipologia arquitectónica (o edifício residencial de
rendimento), introduzindo no tecido urbano, profundas transformações tipo-morfológicas.

A um modo empírico de fazer cidade, associado aos problemas de habitação das designadas
classes laboriosas, corresponde uma forma racional e planificada, orientada pelos poderes
públicos e dirigida às classes dominantes. As classes menos favorecidas, não vão ser alvo de
qualquer política concertada por parte da administração central ou municipal. A resposta a
este problema surge no sector privado, como uma possibilidade de rentabilização dos terrenos
pouco valorizados, através do investimento de pequenos capitais na construção de
alojamentos precários.
Apesar dos inúmeros projectos lei que se sucederam ao primeiro Inquérito Industrial (1881),
a que vem somar-se a esperança nascida da implantação da República, a instabilidade sócio-
política foi adiando progressivamente a intervenção do Estado neste domínio. O problema da
habitação para as classes mais desfavorecidas vai ser resolvido por construtores privados e em
menor escala por industriais, sociedades filantrópicas e cooperativas prediais.

Plano Geral de Melhoramentos, concebendo uma nova expansão da cidade para norte, numa linguagem que
Lisboa não conhecia” in Lôbo, M. S. (1972) Planos de Urbanização – A Época de Duarte Pacheco,
(DGOTDU/FAUP Publicações) 13.
3
Promoção do alojamento operário

Inaugurando o programa da casa económica e sadia, as construções levantam-se inicialmente


sob a responsabilidade de dois tipos de senhorios: os donos de fábricas e armazéns; os
modestos e ricos proprietários de terrenos urbanos. No primeiro caso as habitações destinam-
se prioritariamente aos operários das empresas, rentabilizando e fixando a mão-de-obra. O
Inquérito Industrial de 1881 incluía uma secção subordinada ao tema, Condições de Aprendiz
e do Operário, habitação, escolas e instituições operárias, na qual se perguntava
expressamente: “A Fábrica tem habitações para operários? Máximo e mínimo de rendas”3.
Neste contexto destaca-se o papel de algumas empresas tais como a pioneira Companhia
Lisbonense de Fiação e Tecidos, que em 1873 constrói um pequeno número de habitações
próximo da fábrica da Companhia, em Alcântara; segue-se a Companhia Lisbonense de
Estamparia e Tinturaria de Algodões, que ergue em 1885 na Quinta do Carimba (Rua da
Fábrica da Pólvora em Alcântara) um bairro para operários. O exemplo mais expressivo é
promovido pela Companhia de Fabrico de Algodões de Xabregas, fundada em 1858, que
ergue em 1887 a Vila Flamiano, no recinto da Fábrica de Fiação e Tecidos de Xabregas
(Fábrica da Samaritana). Neste âmbito, recorda ainda António de Azevedo, a fundação do
primeiro grande núcleo fabril (o Real Colégio das Manufacturas e o Bairro Fabril das
Amoreiras) no contexto dos projectos pombalinos de fomento manufactureiro e
simultaneamente inserido nos planos de reconstrução e reestruturação da cidade após o
terramoto. Ligado à Real Fábrica das Sedas, este núcleo visava em termos programáticos,
concentrar no mesmo local, unidades de produção industrial e núcleos de habitação para
artesãos, a partir de um plano que previa a edificação de 470 casas, das quais se elevaram 60
habitações entre 1759 e 1769.

Como expressão das motivações e filosofias filantrópicas dos seus promotores, destacamos o
exemplo paradigmático do Bairro/Vila Grandella, reflectindo na habitação, a hierarquia do
local de trabalho. Cada tipologia era destinada a um estatuto específico dentro da
“Organização Grandella”. A fábrica e o Bairro Operário de Benfica /Vila Grandella, integram
o complexo industrial e comercial monopolista, associando unidades fabris (que abastecem os
armazéns comerciais da Rua do Carmo) à habitação para os trabalhadores. O Bairro recriava
um mundo de ordem, vacilando entre a casa e a fábrica, perseguindo a pacificação de uma
classe que se sentia explorada e que emergia para a realidade da sua força económica.
As Companhias e Sociedades Construtoras constituem-se em sociedades anónimas de
accionistas, visando a obtenção de lucros com os empreendimentos imobiliários. Destacam-se
neste universo, a Cooperativa Popular de Construção Predial (1893), a Cooperativa e
Instrução (1898) e a Ocidental 1.º de Janeiro (1901). No quadro associativista, evidencia-se o
papel da Companhia Comercial Construtora, criada em 1890, que irá levar a cabo a
construção do Bairro Operário dos Barbadinhos concluído em 1892.

A vila Operária

Refere Maria João Madeira Rodrigues, centrando-se no caso de Lisboa, que “A vila, na
ausência de um programa de habitação social, deve ser vista como um ensaio de solução,
cristalizada num tempo e conservando o seu sentido nesse tempo. (...) A vila pode ser
considerada, a partir dos últimos anos da década de 70, como uma forma de colonização
interna, ocupando novos espaços, operando a transformação de áreas rústicas e levando mais
tarde a sua influência, a áreas cuja carga histórica anterior é exemplar” (Madeira Rodrigues,
1979).

3
Inquérito Industrial de 1881, 2.ª parte, Livro 1.º, 1881-1883, 19-20.
4
A Vila operária surge como modelo de habitação multifamiliar intensiva para famílias de
baixos rendimentos, racionalizada de raíz, numa resposta clara aos problemas de saúde
pública, associados à falta de salubridade das habitações.
Pretende ser útil, económica e simples, fornecendo um espaço salubre e habitável.
Situada à margem da estrutura urbana em que se insere, surge frequentemente implantada no
interior do quarteirão, dado que o “negócio consistia em rentabilizar espaços no interior dos
quarteirões, os quais, segundo critérios do urbanismo convencional, não são edificáveis”
(Madeira Rodrigues, 1979).

Vila Rodrigues (1902)

A marginalidade destas estruturas é reconhecida no Regulamento Camarário de 1930 (que


proíbe a construção de novas vilas, regulamentando as existentes) no Capítulo XII (Das
Edificações interiores ou vilas), Art. 235.º, definindo-as como “grupos de edificações
destinadas a uma ou mais moradias, construídas em recintos que tenham comunicação directa
ou indirecta com a via pública por meio de serventia”4; evidenciando a importância dada às
serventias como forma de articulação com o espaço público.
A relação tipo-morfológica mais comum (interior do quarteirão), sublinha o sentido da cidade
enquanto lugar habitável em detrimento da sua estrutura funcional, acentuando o valor do
espaço construído, acomodado a um lugar pré-estabelecido, que se traduz num sistema de
ocupação relativamente fechado.

Dissimulada no tecido urbano através do seu sistema de implantação no interior do quarteirão,


ou visível no espaço público em zonas mais segregadas da cidade, a Vila operária assume-se
como estrutura marginal, voltando costas à malha urbana, através de uma organização em
redor de um espaço comum semi-privado, através do qual se acede às habitações.
Característica comum às construções com fins lucrativos, a racionalização do espaço
traduzida no aproveitamento máximo da área disponível constitui a qualidade dominante.
Pretende-se construir o maior número possível de fogos, reduzidos a áreas mínimas e
concentrar o espaço livre, inútil ou pouco lucrativo. Esta exigência, particularmente
expressiva quando a Vila se implanta no interior de um quarteirão, resulta numa organização
espacial em que as habitações se agrupam à volta do terreno, ocupando todo o seu perímetro,
com acesso através de um espaço central. Este espaço central funcionando como um corredor,
ou mais desafogado funcionando como um pátio, torna-se o prolongamento da casa em
contraponto à exiguidade das habitações, constituindo o suporte espacial de uma vivência
comunitária. Esta forma de organização em redor de um espaço comum de tipo pátio, a partir
do qual se acede à habitação, elege-a como modelo de transição entre o rural e o urbano.

4
Regulamento Geral da Construção Urbana para a Cidade de Lisboa – Disposição aprova em 28 de Agosto de
1930 (Edicto de 6 de Dez. de 1930), in Nobre, S.M.P., (1972)Legislação Camarária de Lisboa , (Imprensa
Nacional, Lisboa) 282.
5
Módulo bifamiliar (pré-existência) Vila Mendonça (1912) - pormenor de vãos e divisão do módulo

O sistema distributivo é resolvido através de escadas e galerias exteriores, no sentido de


reduzir os espaços não directamente rentáveis. Os módulos bifamiliares das habitações
(geralmente divididas em quatro partes) organizam-se à volta de todo o perímetro do terreno e
as áreas mínimas dos compartimentos bem como a articulação dos mesmos, reflectem os
enunciados do Regulamento de Salubridade das Edificações Urbanas (Condições Higiénicas
a adoptar nas Construções dos Prédios).

A forma de agrupamento resultante da justaposição de módulos, vulgarmente designada correnteza,


é comum desde tempos remotos, estendendo-se às primeiras realizações dos Bairros Económicos do
Estado Novo.
Um dos testemunhos mais antigos, de casas em correnteza, obedecendo a um modelo único,
refere-se à fundação de uma vila de raíz, marco simbólico da programação urbana portuguesa
– a vila do Infante, em Sagres. Nesta vila concebida como vila muralhada “(...) as casas
desenhavam-se em correnteza adjacente ao plano sul da muralha que lhes servia de fundo.
Apenas com cobertura de uma água e vãos igualmente espaçados, cada uma das casas tinha
chaminé própria de igual volumetria cilíndrica, funcionando a cisterna ameiada como módulo
do sistema” (Correia, 2001).

Cabos de S. Vicente e Sagres (século XVI) Rua das Necessidades - correnteza


in Leite, D. (1955-59) História dos Descobrimentos
(Vol. I, Ed. Cosmos, Lisboa) 208.

Na cidade de Lisboa, surgem vários exemplares desta forma de agrupamento, construídos no


século XVIII, ou na primeira metade de oitocentos. A sua presença é bastante expressiva nas
construções destinadas a alojar os trabalhadores de algumas instituições, como é o caso dos
palácios. Trata-se geralmente da adição de pequenas unidades de dois pisos, com dois ou
quatro fogos no total, que se alinham ao longo de uma rua (servindo de exemplo os conjuntos
associados ao palácio de Belém e ao palácio das Necessidades). Igualmente no âmbito da
arquitectura popular nas regiões a Sul de Portugal, podemos destacar as correntezas do Vale
do Sado e os conjuntos para trabalhadores dos núcleos piscatórios da Fuseta e Olhão. Como
exemplo de excepção surge nos arredores de Mafra o conjunto de casas para trabalhadores
agrícolas da herdade da Picanceira.

6
Conjunto de casas para trabajadores
agrícolas – (Herdade da Picanceira),
in Arquitectura Popular, 1980, p. 414.

Apesar da sua finalidade expressa, enquanto “edificação multifamiliar intensiva, construída


pela iniciativa privada e destinada a famílias de baixos rendimentos”, (Pereira, 2002) a Vila
operária apresenta algumas variantes tipológicas, que tendo em atenção o modo como se
articulam com a via pública e tomando como base a proposta de classificação de Nuno
Teotónio Pereira, permitem a definição de cinco grupos tipológicos distintos:

Formando correntezas ao longo das vias de acesso


No interior do quarteirão formando pátio ou rua
Em comunicação directa com a rua formando pátio
Em comunicação directa com a Via Pública formando Rua
Em edifícios de estrutura diversificada

A Vila Operária – No interior do quarteirão formando pátio

São particularmente numerosos os exemplos em que num mesmo lote de terreno, se


constróem duas tipologias distintas, sugerindo uma hierarquia social traduzida ao nível do
próprio lote. Assim, confrontando-se com a via pública surge um prédio corrente para a
burguesia, residência frequente do proprietário.
No interior do quarteirão, nas traseiras deste edifício, desenvolve-se a Vila, cujo acesso pode
ser feito de três modos:
À ilharga do prédio através de um corredor lateral a descoberto, situação que conduz
geralmente a esquemas de ocupação assimétrica, ou obriga a fazer cotovelos para contornar o
prédio; a eixo do lote, também através de corredor a céu aberto, que é prolongado em linha
recta através do pátio; através de passagem aberta por vezes em arco, sob o próprio prédio,
aproveitando toda a extensão da frente para a construção.
Qualquer dos modos de acesso referidos é vulgarmente resguardado por um portão de ferro,
ostentando uma placa com o nome da Vila. Esta indicação toponímica constitui um atributo
importante deste tipo de edificações, permitindo aos construtores o cunho de uma marca
pessoal.

A construção da Vila no interior do quarteirão pode ser feita paralelamente à consolidação do


mesmo; noutros casos ocupando os interstícios do quarteirão já consolidado, a Vila operária
estabelece-se num logradouro geralmente de forma irregular, produto de uma urbanística de
“rapidez forçada”. A uma área máxima de ocupação interior, com forte compartimentação,
produzindo numerosos fogos, contrapõe-se um espaço único e restrito no logradouro, como
representação exterior, concentrando todas as actividades colectivas, bem como todo o
sistema distributivo.

A Vila operária entre vernáculo e o erudito

7
Ao entendimento das suas relações tipo-morfológicas e sistematização das suas características
tipológicas, acresce o reconhecimento de uma estrutura compositiva específica, introduzindo
uma reflexão mais ampla sobre as práticas arquitectónicas eruditas e vernaculares e o modo
como estas se interpenetram no campo específico da arquitectura portuguesa.
A racionalização do espaço e dos processos construtivos, directamente associada ao tipo de
promotores envolvidos, assim como a procura de resposta a condições mínimas de
salubridade, condicionaram um modelo de habitação, cujas características nos remetem numa
primeira leitura para um universo de cariz ruralizante, adequado à origem dos seus potenciais
destinatários. Exprime-se aparentemente numa expressão vernacular, cujos valores formais
dominantes são a clareza, ordem, proporção e simplicidade, entendidos como específicos e
correspondendo a uma visão da arquitectura portuguesa, base dos argumentos que conduziram
Kubler ao conceito de arquitectura chã5(Kubler, 1972).

A associação imediata a universos vernaculares, facto a que não é alheia a ausência do


arquitecto na sua concepção, é reforçada pela presença de indicadores tais como o
dimensionamento de certos elementos construtivos, referenciados a antigos sistemas como o
sistema craveiro português.
Admitindo ou não, as suas raízes vernaculares, verificamos através da sua leitura em termos
planimétricos e altimétricos, a existência de uma regra compositiva, baseada em relações de
proporcionalidade apoiada na utilização dos rectângulos dinâmicos, pertencente a uma
tradição clássica de ordenamento compositivo, suportado eventualmente pela prática artesanal
da produção dos materiais de construção em uso.
Essa prática, perdida no decurso do processo de transformação dos valores e dos sistemas
construtivos introduzido na sequência do Movimento Moderno, envolverá saberes de suporte
tradicional, no verdadeiro sentido etimológico da palavra - transmissão oral - provavelmente
provenientes das antigas guildas de construtores, que atravessaram a cultura edificatória, da
Idade Média aos finais do século XIX, sobretudo nos artefactos construídos de menor
erudição, pertencentes ao domínio da arquitectura dita corrente.
Acompanhando a antiga organização dos mesteres na cidade de Lisboa e a história dos
Regimentos dos diversos ofícios, verificamos que a reforma de 1572 inicia um período da
história da regulamentação dos ofícios que se estende ao terramoto de 1755 e que apesar dos
regimentos do século XIX serem raros, existiram até 1834, vários acrescentamentos que
comprovam o prosseguimento da vida corporativa.

Torna-se provável a existência de uma “erudição tradicional” na prática do vernáculo


português, que transmigrou por via operativa medieval europeia e nacional, em paralelo com a
via especulativa ou “genuinamente” erudita, reajustada e sistematizada, quer no período
Manuelino, Joanino ou ainda Pombalino, até aos primórdios do século XX, através da prática
dos velhos artesãos ou construtores.
Qual o âmbito da arquitectura erudita em Portugal e onde termina a classificação de popular?
Se por um lado a arquitectura dita popular se resume à aplicação de soluções sóbrias e
rudimentares de grande imutabilidade dependente das condições naturais da região, visando a
satisfação funcional de necessidades básicas, por outro lado, reflecte muitas vezes, marcadas
influências urbanas e cultas, com preocupações decorativas e de representação.

A arquitectura portuguesa, porventura ligada a um vernáculo que transcende épocas,


categorias estilísticas e situações sócio-económicas, combina esta vasta herança com as fortes
persistências classicizantes, transmitidas por via consuetudinária através de sucessivas

5
“As alterações ocorridas em Portugal no período 1520-1580 são pois do mesmo nível da que se operou na
presente centúria, quando o gosto decorado e ecléctico sobrevivente dos fins do século XIX cedeu ao
racionalismo e à necessidade económica mediante o abandono da superfície superdecorada. (...) Aproveitando a
idéia de Júlio de Castilho do «estilo chão» designei-a por arquitectura «chã»”, in Kubler, G. (1972), Entre as
Especiarias e os Diamantes 1521-1706, (Veja, Lisboa) 3.
8
gerações de construtores e pedreiros e por via escolar, através de gerações de engenheiros
militares e arquitectos.
A esta constatação, não são alheios factores como a dinâmica corporativa, registada desde
muito cedo, através da organização dos mesteirais; a existência de normativas referentes à
estandardização de materiais e elementos construtivos; e o modo fortemente centralizado
como foram enunciados os princípios que aplicados à arquitectura erudita, através de uma
arquitectura serial ou de programa, terão posteriormente sido estendidos à arquitectura
corrente. Ainda a influencia da arquitectura militar e a presença do engenheiro militar,
poderão explicar parcialmente o forte pendor pragmático e despojado da arquitectura
portuguesa.

As grandes reformas Manuelinas entendem pela primeira vez a cidade enquanto organismo
global, implementando as bases de uma praxis arquitectónica e urbanística, a partir do
estabelecimento de uma arquitectura de programa, baseada em relações métricas de base
proporcional. São enviadas para todo o país normas arquitectónicas e urbanísticas sob a forma
de regimentos, contratos de obras e cartas régias, que emitidas a partir de um núcleo central,
diluem progressivamente as autonomias estéticas e as práticas construtivas de tradição
medieval por que se regiam os diferentes estaleiros e obras régias.
É assim divulgada uma praxis arquitectónica e urbana de programa, cujos conteúdos estéticos
manifestam uma teorização de inspiração aritmética com aplicação de séries numéricas –
6,12,15,24 e 30 – de base proporcional. Pela primeira vez nestes regimentos e contratos de
obra é proposta a sistematização da largura do nembo e a determinação de vãos rectos,
quadrados por cima, em métricas de quadrado, duplo quadrado e rectângulos proporcionais.
Com uma forte insistência, os vãos de sacada são definidos nas medidas de 6x12 ou 5x10 (o
duplo quadrado), medidas estas que se perpetuam ao longo de todo o período moderno.
Igualmente são propostas séries numéricas para vários blocos de arquitectura de programa,
estabelecendo relações geométricas entre o alçado e a planta (altura, largura e profundidade
do lote).

Dos finais do século XVI, resulta a definição de uma arquitectura de fachadas iguais, com
volumetrias simples, vãos normalizados, sacadas com dois palmos, afirmando-se uma
tipologia teorizada em métricas proporcionais e elementos construtivos estandardizados.
É ainda elaborado um Regimento “...dos carpenteiros e pedreiros e braceiros e aprendizes e
call e tijolo e madeira e pregadura...” que regula a qualidade, preço e medida dos materiais
de construção, determinando a estandardização de elementos construtivos. (Carita, 1999).
No período Pombalino, novamente um poder fortemente centralizado condicionou a aplicação
de uma normatividade, veiculada através de uma arquitectura de programa imposta através do
“prédio de rendimento”, motivando o aparecimento de um novo sistema de produção serial,
ainda que sob influência dos valores estéticos iluministas; as zonas atingidas pelo terramoto
constituíram a prioridade das acções desenvolvidas pelo governo de Pombal, destacando-se
no conjunto de planos elaborados para diferentes zonas da cidade, o emblemático plano da
Baixa.

Herdeiro da experiência de reconstrução de Lisboa, refira-se o plano de Vila Real de Santo


António, edificado simultaneamente com a criação em 1773 da Companhia Geral de Pescarias
Reais do Reino do Algarve, reflectindo os mesmos princípios teóricos que orientaram o
traçado de outras cidades contemporâneas no Brasil.

Trata-se de um traçado ortogonal regular, simétrico, com uma praça central quadrada
funcionando como elemento gerador do plano, construída com edifícios que obedecem ao
mesmo programa. Decorrente do sistema de uniformização estandardizada, a arquitectura
sintetiza-se em quatro grandes tipos de fachadas uniformizadas.

9
“Toda a pedra de cantaria oriunda das pedreiras que forneciam as obras de reedificação de
Lisboa, veio da Corte já talhada e aparelhada, pronta para ser aplicada. (...) os cunhais, socos e
degraus de todas as casas de 1.º andar, as pilastras da Alfândega, as pilastras, socos e frontão
da Igreja. Também os guarnecimentos dos vãos, com um palmo de espessura como os de
Lisboa, chegaram já talhados e aparelhados, prontos para serem colocados nos locais
previstos nos projectos. Iriam guarnecer vãos que na sua totalidade formam um pequeno
número de modelos: vãos de 12/6 palmos (portas da Praça e da Baixa-Mar e janelas de
sacada); de 8/6 palmos (janelas do 1.º andar da Praça); de 7/6 palmos (janelas do rés-do-chão
da Praça); de 5/6 (janelas das casas térreas); de 5/8 (janelas laterais e traseiras do primeiro
andar da Baixa-Mar e traseiras do 1.º andar da Praça); 5/10 (portas das casas térreas); de
12/10 (portões de salgas, armazéns e similares). Para além destes modelos de forma
rectangular ficam apenas os dois tipos de portais barrocos da Baixa-Mar e da Praça.
Por exemplo, uma pedra de 8 palmos tanto servia para verga de porta de Praça e Baixa-Mar,
como de peitoril de janela de rés-do-chão ou peitoril, verga e ombreira de janelas do 1.º andar
da Praça. E as pedras de 7 palmos, além de servirem de verga de porta e peitoril de janelas das
casas térreas, serviam ainda para ombreira das janelas do rés-do-chão da Praça e de alizares,
vergas e ombreiras das janelas laterais e traseiras da Baixa-Mar e trapeiras da Praça” (Correia,
1984).

Cabe ainda referir o sistema de composição arquitectónica utilizado nos blocos de edifícios
que integram o plano do Bairro Fabril das Amoreiras, com base na leitura de Walter Rossa.
O esquema do alçado resume-se a um par de janelas em rectângulos de !2 no piso superior;
uma janela próxima do quadrado e uma porta em duplo quadrado no rés-do-chão. Um
quadrado de cerca de trinta e dois palmos, define o alçado de uma casa, estando a cumeeira a
uma altura, que com o plano da fachada, completa mais uma vez um rectângulo !2. Os trinta
e dois palmos exactos relativos às oito casas que constituem a frente de cada quarteirão,
dariam duzentos e cinquenta e seis palmos, valor próximo dos duzentos e sessenta cotados na
planta. Seiscentos e quarenta (para o comprimento da praça) divididos pelos quarenta da
largura das ruas dão dezasseis; dezasseis é o número de lotes por quarteirão tipo, dezasseis
palmos é o lado de cada quadrado onde se insere um vão da fachada que por sua vez se
compõe (incluindo as guarnições de cantaria) a partir de um quadrado com oito palmos de
lado; a largura das ruas é cinco vezes oito palmos.
Em planta, cada lote ocupa na profundidade !2 da largura, o que faz com que o corte em
profundidade do edifício nos dê também um rectângulo !2, que ao nível do topo da cumeeira
é também um quadrado.

Bairro das Águas Livres – Casas do projecto Pombalino Praça das Amoreiras, N.ºs 25 a 32.
in Rossa, W. (1998) 125.

Relativamente à Vila operária verifica-se o seguinte:


Os temas geométricos que servem de suporte compositivo quer em termos planimétricos, quer
em termos altimétricos, são apoiados num traçado a partir do quadrado (ad quadratum) e de
alguns rectângulos dinâmicos dele derivados: o duplo quadrado (proporção de 1 para 2) e o
rectângulo !2 (utilizando para o lado menor o comprimento do lado do quadrado matricial e
cujo lado maior resulta do rebatimento da sua diagonal). Em casos isolados foi também
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identificada a proporção áurea (1 por (!5+1)/2, ou seja 1/") e o falso quadrado (1 por !3/2, ou
seja, o rectângulo que contém o triângulo equilateral);

Vila Dias – Composição apoiada no rectângulo !2.

Esta situação verifica-se quer no ordenamento e parcelamento do sistema morfológico do


conjunto edificado, incluindo os espaços exteriores inerentes, quer na composição interna de
cada unidade tipológica (parcela) e na sua subdivisão; sublinhando a relação entre o alçado e a
planta. Do mesmo modo e com suporte no mesmo sistema geométrico matricial, são
dedutíveis os elementos compositivos das fachadas, nomeadamente os vãos.

A persistência do tipo arquitectónico

A Vila operária constitui a génese do percurso estabelecido em torno das questões ligadas à
prática da habitação social, iniciando em Lisboa por intermédio da iniciativa privada uma
primeira actuação neste domínio, seguida pelas designadas “vilas à escala urbana” que “(...)
pelo volume de edificação, ou pela complexidade da sua estrutura, atingem uma escala que as
impõe ao nível do espaço da cidade, constituindo neste último caso um sistema viário que,
sem perder o carácter segregado, ganha uma dimensão urbana. É assim que surgem
verdadeiras unidades de habitação horizontal, como o Bairro Estrela D`Ouro, ou conjuntos
massivos de blocos em altura, como o Bairro Clemente Vicente”(Pereira, 1999).

Bairro Estrela D` Ouro – Unidades em U.

Depois de 1910, os republicanos, fazendo valer a sua dedicação à causa operária sob a
designação de bairros sociais, desencadeiam uma intervenção pública sistematizada neste
domínio, pondo em andamento uma máquina administrativa reguladora da produção
habitacional; surgem assim os bairros sociais da Ajuda e Arco do Cego, que acabam por ser
concluídos no contexto das Casas Económicas criado pelo Estado Novo, inaugurando a
intervenção directa do Estado em colaboração com as Câmaras Municipais, os corpos
administrativos e os organismos corporativos. Nesta sequência surge a Federação de Caixas
de Previdência – Habitações Económicas, que entre os anos 40 e 60 se constitui como

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principal promotor de habitação social, estreando-se com a construção do Bairro de Alvalade.
Paralelamente ao seu funcionamento, estabelece-se na Câmara Municipal o GTH – Gabinete
Técnico de Habitação, responsável pelo lançamento das grandes operações urbanísticas de
Olivais e Chelas. A continuidade destas operações poderá ser avaliada através do Fundo de
Fomento da Habitação, por via dos Planos Integrados. O SAAL, pelas suas características,
desde o contexto político à relação estabelecida entre projectista e destinatário, constitui-se
como excepção, constituindo as cooperativas e as grandes operações de realojamento os elos
mais recentes neste percurso centenário.

Na sua dimensão de tipo arquitectónico e admitindo com Caniggia que “un determinado
entorno cívico que tenga caracteres de unidad cultural, tiende a realizar homogéneamente las
estruturas edilícias de las que se sirve; queremos decir que en una misma época y en un
mismo lugar las estruturas realizadas, sí actúan para resolver exigencias similares, tienden a
ser idénticas; y en un mismo lugar las estructuras que se suceden en el tiempo tienden a
modificarse unitariamente, a excepción de traumas o intervenciones externas, y a conformar
lo que denominamos processo tipológico” (Caniggia, 1973), verificamos que a Vila operária
sobrevive nas experiências que imediatamente lhe sucederam e das quais destacamos o Bairro
Estrela D`Ouro; na sua adaptação morfológica aos bairros periféricos do pós-guerra e ainda
através da persistência de elementos formalizadores tais como a galeria, largamente divulgada
nas propostas desenvolvidas entre 1947 e 1972 no contexto específico do movimento
moderno.

Bairro Clemente Vicente – Sistema distributivo Pantera-cor-de-rosa in Revista Arquitectura, N.º 141(III)1981.

“Era a euforia da galeria. O esquerdo/direito era considerado muito individualista; os vizinhos


não se conhecem, não se relacionam. A galeria era uma bandeira. Todos a comunicar entre si.
O Chombart de Lauwe deu uma explicação, e foi muito importante o que ele disse: as classes
bem instaladas criam as suas amizades pela cidade, pelo país mesmo; enquanto as com
menores recursos têm que se limitar à vizinhança. São obrigadas à entreajuda. Então
pensámos que o que estávamos a fazer era obrigá-los a fixarem-se nessa condição de pobreza.
Ou obrigá-los à ascensão”(Pereira, 2002).

“As últimas e já raras realizações da iniciativa privada na construção de Vilas datam da


década de 20. É assim que, com a construção dos primeiros bairros sociais de iniciativa
oficial, se dá uma espécie de passagem de testemunho na tentativa de construção de casas
para estratos populares. Tentativa que não vai ter grande sucesso, já que desde o início do
século a população de mais fracos recursos se via obrigada a habitar os chamados “bairros de
lata”, constituídos por barracas improvisadas. Estes bairros vão alastrando ao longo do século,
apesar de alguns terem sido demolidos, com o realojamento das populações em casas
provisórias que muitas vezes duravam décadas.
Mais tarde nos anos 50, começam a constuir-se não já na cidade de Lisboa, mas na sua
periferia os chamados “bairros clandestinos, à margem de qualquer licenciamento camarário,
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onde curiosamente vêm reproduzir-se algumas tipologias de construção características das
vilas operárias (...)”(Pereira, 1994).

A tipologia é abordada como uma ferramenta precisa e analítica, proporcionando uma base
racional no processo de concepção, enquanto que a ideia de tipo se prende com uma procura
de sentido mais lacta, estabelecendo uma ideia de continuidade histórica, tida como necessária
ao conferir à arquitectura um sentido dentro de uma determinada cultura.
O tipo surge “(...)mas que como un recuento a posteriori de semejanzas en objectos de un
conjunto, como aquél sistema de nociones correlativas (dimensiones, materiales, forma, usos,
etc.) que son el bagage de la experiencia antecedente en la actuación de cada individuo, y que
constiuyen su patrimonio cultural, la base de cada formulación específica, el proyecto no
debujado pero mentalmente existente, que atenderá a la creación de cada objecto futuro. El
tipo puede considerarse así una prefiguración sintética del objecto, una síntesis a priori. Bajo
estas premissas podemos aislar comportamientos tipificados, codificados y por tanto
reconocibles para nosotros, en un cierto intervalo espacial y temporal. También podemos
verificar la variación de esos comportamientos al cambiar tal intervalo. Podremos, por tanto,
reconstruir una serie de procesos tipológicos que conectan objectos análogos de diversas
épocas, rastreando las mutaciones en la codificación espontánea de los tipos”.(Pozo y Barajas,
1996).

A essência dos conceitos de morfologia e de tipo que directa ou indirectamente influenciam


os agentes da teoria e da prática da Arquitectura e da Arquitectura da Cidade no contexto
ocidental pode situar-se um pouco anteriormente, através do extenso trabalho de Goethe,
sobre a Metamorfose das Plantas. Tudo o que é vivo se escapa, deixando uma marca de vazio
na sua retenção ou fixação. A morfologia é o termo designado por Goethe para a maneira
adequada de estudar as características dos seres vivos. Tudo o que vive, se apresenta aos
sentidos como inacabado, numa acepção positiva do termo. Nenhuma fase do
desenvolvimento de um organismo vivo é esse mesmo organismo: a sua realidade é o devir,
que as faz sucessivamente surgir. Assim, tudo o que vive, existe em permanente metamorfose.

Referências:

Carita, H. (1999), Lisboa Manuelina e a Formação de Modelos Urbanísticos da Época


Moderna 1495-1521 (Livros Horizonte, Col. Cidade de Lisboa, Lisboa).

Correia, J.E.C.H. (2001), ´A importância da Arquitectura de Programa na História do


Urbanismo Português`, Actas do V Colóquio Luso-Brasileiro de História de Arte
(Universidade do Algarve, Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Faro) 162.

Goethe, J.W. (1992) La Métamorphose des plantes et autres écrits botaniques (Triades, 3º Ed.,
Paris).

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Kubler, G. (1972) A Arquitectura Portuguesa Chã – entre as Especiarias e os diamantes 1521-
1706 (Col. Artes/História, Ed. Vega, Lisboa).

Lôbo, M. S. (1995) Planos de Urbanização – A Época de Duarte Pacheco (DGOTDU/FAUP


Publicações, Porto).

Madeira Rodrigues, M. J. (1979) ´Tradição, Transição e Mudança, a produção do espaço


urbano na Lisboa oitocentista`, Separata do Boletim Cultural (Assembleia Distrital de Lisboa,
III Série, N.º 84, Lisboa) 41.

Pozo y Barajas (1996) Arrabales de Sevilla – Morfogénesis y Transformación – El Arrabal de


los Humeros (Universidad de Sevilla/Consejería de Obras Públicas y Transportes/Fundación
Fundo de cultura de Sevilla, Sevilla) 13; 135; Cf. Caniggia, G. (1973) 67.

Pereira, N. T. (1994) ´Pátios e Vilas de Lisboa, 1870-1930: a promoção privada do


alojamento operário`, Análise social - Revista do Instituto de Ciências sociais da
Universidade de Lisboa, Vol. XXIX, 512-513.

Pereira, N. T. e Buarque, I. (1995) Prédios e Vilas de Lisboa (Livros Horizonte, Lisboa) 348.

Pereira, N. T. (2002) ´Pátios e Vilas de Lisboa, 1870-1930`, Jornal Arquitectos N.º 204, 38.

Rossa, W. (1998), Além da Baixa – Indícios de Planeamento Urbano na Lisboa Setecentista


(IPPAR, Arte e Património, Lisboa) 125.

Prado, A. de S e Ruiz A. J. M. (1902;1905) Inquérito aos Pateos de Lisboa (Imprensa


Nacional, Lisboa).

Nota: Autoria das imagens em que não é referenciada a fonte.

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