Industrializacaoculturalcapitalismo Sales 2021
Industrializacaoculturalcapitalismo Sales 2021
Industrializacaoculturalcapitalismo Sales 2021
NATAL/RN
2021
MIZZAELY SUIANNY LACERDA DE SALES
Natal/RN
2021
Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN
Sistema de Bibliotecas - SISBI
Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial do Centro Ciências Sociais Aplicadas - CCSA
COMISSÃO EXAMINADORA:
__________________________________________
Prof. Dr. Henrique André Ramos Wellen
(Orientador – UFRN)
__________________________________________
Prof. Dr. Newton Narciso Gomes Junior
(Examinador Externo – UnB)
__________________________________________
Prof. Dr. Ranieri Carli de Oliveira
(Examinador Externo – UFF)
__________________________________________
Nos fragmentos deixados por Heráclito, pode-se ler que tudo existe em constante
mudança, que o conflito é o pai e o rei de todas as coisas. Lê-se também que vida ou
morte, sono ou vigília, juventude ou velhice são realidades que se transformam
umas nas outras. O fragmento n° 91, em especial, tornou-se famoso: nele se lê que
um homem não toma banho duas vezes no mesmo rio. Por quê? Porque da segunda
vez não será o mesmo homem e nem estará se banhando no mesmo rio (ambos terão
mudado). [...] Marx não era Heráclito, o Obscuro. Ele sabia que, quando um
homem se banha duas vezes num determinado rio, é inegável que a segunda vez o
homem terá mudado, o rio também terá sofrido alterações, mas apesar das
modificações o homem será o mesmo homem (e não um outro indivíduo qualquer) e
o rio será o mesmo rio (e não um outro rio qualquer)1.
1
Leandro Konder em O que é dialética, na publicação de 2008.
Ao Prof. Ranieri Carli por sua grande solicitude de aceitar, de imediato, o convite para
participar, duas vezes, da banca examinadora desta dissertação. Agradeço pela leitura atenta e
minuciosa do texto, pelas avaliações e sugestões dadas na qualificação e na defesa, com
profissionalismo e respeito às reflexões construídas.
Ao Prof. Marcelo Braz pela rica, longa e exaustiva análise realizada na ocasião do
Exame de Qualificação. Quero deixar registrado que o amadurecimento do processo de
investigação, que ganhou forma e conteúdo no termo “industrialização cultural”, se deu a
partir de uma de suas observações.
À Profa. Gláucia Russo pelos anos de acompanhamento na iniciação científica, cujas
experiências foram fundamentais para despertar em mim a vontade de continuar pesquisando.
Também devo agradecer pela orientação no momento de engatinhar nas primeiras
inquietações sobre a “indústria cultural” na sua relação com a infância.
À Camila Morais pela presença e amizade, compartilhando todas as alegrias e as
angústias dos processos acadêmicos e da vida. À Jessica Linhares pela amizade e
solidariedade durante o processo de seleção do mestrado e as mudanças de cidade.
À Maria Eiband por ter sido mais do que uma locadora: pela hospitalidade, afeto e
cuidado nos momentos em que precisei. À Arthur Vinícius e Luana Santos por terem sido
vizinhos prestativos, plenos de gentileza.
Às pessoas solidárias da UFRN. À Julliane Trindade pelo acolhimento solidário e
companhia na UFRN e nos primeiros dias de aventuras em Brasília. Agradeço, igualmente,
pelas indignações políticas e pensamentos críticos compartilhados. À Ozileia Cardoso pelos
inúmeros cafés tomados na UFRN, pelo afeto, conversas sinceras e conselhos sempre
certeiros. À Roberta Pedroni pelos abraços e diálogos acolhedores pelos corredores da
UFRN. À Burnier Sales pela partilha da vida de mestrando na universidade e nos momentos
alegres de lazer. À Lucinha, pela companhia nos almoços, incentivo acadêmico e por todas as
vezes que me direcionou quando precisei de alguma informação.
Às meninas da Colina e às pessoas solidárias da UnB. À Laísa Castro, agradeço pela
força, solidariedade nordestina, companhia diária na Colina, conversas motivacionais e
passeios. À Erika Kou pelo afeto, solidariedade latina e comida mexicana. À Manuela
Sanchez e Misael Júnior pela receptividade, por terem dividido a rotina na universidade e as
inquietações da academia, da política e da vida. Agradeço, no mais, pelos momentos
descontraídos e as comemorações. À Jorge Riveros agradeço pelos ensinamentos acadêmicos,
o diálogo incentivador e a disposição genuína de ajudar.
À Profa. Ilena Felipe Barros e à turma do Estágio de Docência Assistida pela grande
oportunidade que me deram de vivenciar a primeira experiência no processo de ensino-
aprendizagem da docência, com boa receptividade, paciência e entusiasmo.
À turma de mestrado, pelos lanches e trocas de conhecimento em sala de aula.
Aos trabalhadores geradores de excedente econômico, que financiaram esta pesquisa
por meio da Capes.
Todo esforço consequente para apresentar a realidade sem preconceitos, isto é,
com toda a sinceridade, ajuda-nos a avançar. Por si só, a sinceridade pode
representar de maneira apenas fragmentária a complexa realidade de nosso
tempo. Sem a sinceridade, contudo, não se pode fazer coisa alguma.
(Ernest Fischer).
(Paul Baran).
RESUMO
Esta dissertação teve como objetivo analisar as determinações econômicas que possibilitaram
as origens da industrialização cultural a partir de bibliografias que tratam das principais
tendências do capitalismo monopolista. Embora a industrialização cultural esteja presente na
realidade atual do século XXI, envolvendo a economia, a política e a cultura, a sua origem e,
portanto, o seu estudo, não aparecem nos dias de hoje. A sua investigação é iniciada no século
XX pelos filósofos alemães da Escola de Frankfurt, Theodor Adorno e Max Horkheimer, com
a publicação de Dialética do esclarecimento, em 1947. Nessa obra, ela aparece com um
sentido próprio sob o termo “indústria cultural”, apresentando-se, de modo central, como uma
expressão do avanço da razão instrumental presente na técnica fordista de produção em série
de produtos culturais voltados para o seu valor de troca. A preocupação dos frankfurtianos,
contudo, não estava direcionada para as origens materiais da industrialização cultural, na sua
constituição e no seu desenvolvimento. Mas, fundamentalmente, voltaram-se aos efeitos
sociais nos indivíduos, enquanto meio de controlá-los, manipulá-los e integrá-los na
sociedade capitalista, na medida em que padroniza ideias, predileções e hábitos de consumo.
Seguindo esse pensamento, seu trato analítico superdimensionou o poder de controle da
“indústria cultural”, demonstrando-se pessimista em relação às possibilidades de resistência
popular capazes de alcançar uma razão crítica emancipatória e suprimir a dominação do
homem pelo homem. Nesse sentido, percebeu-se que, dando ênfase aos efeitos sociais da
“indústria cultural”, os filósofos alemães se ausentaram de análises que considerem o
fundamento estrutural e a processualidade histórica da industrialização cultural, a partir das
particularidades e contradições do capitalismo monopolista, ainda que não tenham negado a
existência de determinações materiais. Diante disso, a presente investigação parte do seguinte
questionamento: a partir de uma análise das determinações econômicas, quais as origens da
industrialização cultural? Quanto aos objetivos específicos, a pesquisa concentrou-se em: i)
apreender os fundamentos do excedente econômico e da crise na transição da fase
concorrencial para a monopolista; ii) analisar o fordismo como processo de trabalho e
produção de mais-valia relativa na constituição da industrialização cultural; e iii) investigar
qual é a funcionalidade da industrialização cultural para a reprodução de capital, com foco nas
campanhas de vendas. Para tanto, à luz do materialismo histórico dialético, empreendeu-se
uma pesquisa teórica explicativa de tipo bibliográfica e natureza qualitativa, recorrendo-se a
bibliografias que versam sobre as principais tendências do capitalismo monopolista. Como
instrumento de coleta e produção de dados, fora utilizado um roteiro de leitura organizado em
eixos, com aplicação durante a leitura reflexiva das obras selecionadas. Concluiu-se que a
industrialização cultural se constituiu no período do imperialismo clássico e se desenvolveu
no capitalismo tardio. As suas condições originárias foram gestadas nos EUA e se alastraram
para a Europa, especialmente a Alemanha, na década de 1930. As principais tendências de sua
constituição e desenvolvimento são: i) a tentativa de realizar a mais-valia contida na
mercadoria, no âmbito da circulação, por meio de um esforço de vendas; e ii) a necessidade
do capital pelo controle de novos mercados. Identificou-se, ainda, que a industrialização
cultural tem uma dualidade própria da contradição entre capital e trabalho. Expressa, portanto,
a dialética entre o parasitismo do capital, via campanhas de vendas, e a necessidade de
consumo cultural dos trabalhadores por serviços artísticos humanistas. Tal necessidade
cultural não é criada pelo capital, mas, antes, pelas forças produtivas do trabalho.
This dissertation aimed to analyze the economic determinations that made possible the origins
of cultural industrialization from bibliographies that deal with the main tendencies of
monopoly capitalism. Although cultural industrialization is present in the current reality of the
21st century, involving economy, politics and culture, its origin and, therefore, its study, do
not appear today. His investigation began in the 20th century by the German philosophers of
the Frankfurt School, Theodor Adorno and Max Horkheimer, with the publication of
Dialectics of Enlightenment, in 1947. In this work, it appears with its own meaning under the
term "cultural industry", presenting itself, in a central way, as an expression of the
advancement of instrumental reason present in the Fordist technique of serial production of
cultural products aimed at their exchange value. The concern of the Frankfurtians, however,
was not directed towards the material origins of cultural industrialization, its constitution and
its development. But, fundamentally, they turned to the social effects on individuals, as a
means of controlling, manipulating and integrating them into capitalist society, as it
standardizes ideas, predilections and consumption habits. Following this thought, his
analytical approach overestimated the power of control of the “cultural industry”, showing
himself to be pessimistic in relation to the possibilities of popular resistance capable of
achieving an emancipatory critical reason and suppressing the domination of man by man. In
this sense, it was noticed that, emphasizing the social effects of the "cultural industry", the
German philosophers were absent from analyzes that consider the structural foundation and
the historical process of cultural industrialization, based on the particularities and
contradictions of monopoly capitalism, although they have not denied the existence of
material determinations. Therefore, this investigation starts from the following question: from
an analysis of economic determinations, what are the origins of cultural industrialization? As
for the specific objectives, the research focused on: i) capture the fundamentals of the
economic surplus and the crisis in the transition from the competitive to the monopolistic
phase; ii) analyze the fordism as a work process and production of relative surplus value in
the constitution of cultural industrialization; and iii) investigate what is the functionality of
cultural industrialization for capital reproduction, focusing on sales campaigns. Therefore, in
the light of dialectical historical materialism, an explanatory theoretical research of a
bibliographical type and qualitative nature was undertaken, using bibliographies that deal with
the main tendencies of monopoly capitalism. As an instrument for data collection and
production, a reading script organized in axes was used, with application during the reflective
reading of the selected works. It was concluded that cultural industrialization was constituted
in the period of classical imperialism and was developed in late capitalism. Its original
conditions were created in the USA and spread to Europe, especially in Germany, in the
1930s. The main trends of your constitution and development are: i) an attempt to realize the
surplus value contained in the merchandise, within the scope circulation, through a sales
effort; and ii) need for capital to control new markets. It was also identified that cultural
industrialization has a duality inherent to the contradiction between capital and labor.
Therefore, it expresses a dialectic between the parasitism of capital, via sales campaigns, and
the need for cultural consumption by workers for humanistic artistic services. Such cultural
need is not created by capital, but rather by the productive fource of work.
1 INTRODUÇÃO ............................................................................................................... 14
1 INTRODUÇÃO
Este estudo trata das origens da industrialização cultural e tem como objetivo
analisar as determinações econômicas que possibilitaram o seu surgimento a partir de
uma pesquisa teórica, de natureza qualitativa, com bibliografias que versam sobre as
principais tendências do capitalismo monopolista.
A predileção por pesquisar as determinações econômicas das origens da
industrialização cultural no capitalismo monopolista, especialmente, em obras que se
aproximam da crítica da economia política, se reveste de motivações acadêmicas,
profissionais, políticas, assim como teóricas e práticas. Partimos do entendimento,
primeiramente, de que este objeto de pesquisa é duplamente relevante para o Serviço
Social: como área de conhecimento e profissão.
Essas duas dimensões foram bem tratadas por Mota (2013) ao discutir sobre a
particularidade do Serviço Social brasileiro de ter se constituído, também, como uma
área de produção de conhecimento em meados da década de 1980 – quando a profissão,
no seu movimento de intencionar romper com Serviço Serviço tradicional, transita da
vertente estrutural-funcionalista para as vertentes histórico-críticas, construindo uma
ampla massa crítica no curso do desenvolvimento da pós-graduação na referida área.
Concordamos com a autora quando revela que há uma unidade entre a dimensão
da área de conhecimento e da profissão, mas não necessariamente uma identidade. Com
isso, não se trata de afirmar uma distinção entre teoria e prática. Noutro sentido,
significa tão somente o reconhecimento de “patamares diferenciados da intervenção
social do Serviço Social” (idem, p. 19), pois
(2017), Murad (2016) e Jorge (2013), assim como as dissertações de mestrado de Silva
(2015), Melo (2015), Lima (2014), Santos (2014) e Pimentel (2014).
O conjunto desses trabalhos localizou-se nos Programas de Pós-Graduações em
Serviço Social de quatro universidades: 1) Universidade Federal do Rio de Janeiro
(UFRJ), na área de concentração Cultura, Cidadania e Serviço Social; 2) Universidade
Federal de Juiz de Fora (UFJF), na área de concentração Questão Social, Território,
Política Social e Serviço Social; 3) Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita
Filho” (UNESP), na área de concentração Trabalho e Sociedade; 4) Universidade
Federal de Alagoas (UFAL), na área de concentração Serviço Social, Trabalho e
Questão Social.
Já nas demais áreas das ciências sociais aplicadas e ciências humanas e sociais, a
categoria “indústria cultural” apresentou uma vasta literatura, sobretudo no campo da
sociologia, filosofia, antropologia, artes cênicas, educação, psicologia, administração,
comunicação social e economia. Nesse amplo arsenal de produções científicas, destaca-
se a tese de doutorado em Economia de Bolaño (1998) intitulada Capital, Estado,
Indústria Cultural, que se mostrou próxima dos caminhos investigativos adotados neste
estudo.
Além das motivações acadêmicas e profissionais, há, ainda, uma motivação
política para investigar o objeto de pesquisa proposto. Como se sabe, o conhecimento
não se constrói neutro, desvinculado do modo de ser e estar no mundo daqueles que o
produzem. Ele não é fruto de uma abstração independente, mas é criado por seres
sociais reais, pertencentes a uma sociedade específica. Esta última, por sua vez, é
repleta de contradições e embates entre as classes sociais que convivem com interesses
distintos.
Para uns, a sociedade capitalista os beneficia, para tantos outros, é o seu algoz.
Nesse meio, nós, como pesquisadores, não estamos numa ilha deserta e não somos uma
tabula rasa. Na verdade, como seres sociais, carregamos conosco, diante da nossa
relação com a realidade, vivências e visões de mundo que podem estar em consonância
com a afirmação ou negação do atual modo de organização material da vida social.
No nosso caso, trata-se de uma perspectiva de negação que decorre de uma
construção de visões de mundo tanto por meio do contato teórico e prático com a
realidade social dos trabalhadores e de suas famílias ao longo da formação profissional
em Serviço Social, quanto a partir da nossa própria realidade e daqueles que estão à
nossa volta, os quais, de diferentes formas, também são atingidos pelas desigualdades
17
[...] começa-se “pelo real e pelo concreto”, que aparecem como dados;
pela análise, um e outro elementos são abstraídos e, progressivamente,
com o avanço da análise chega-se a conceitos, a abstrações que
remetem a determinações as mais simples. [...] depois de alcançar
aquelas “determinações mais simples”, “teríamos que voltar a fazer a
viagem de modo inverso, [...] mas desta vez não como uma
representação caótica de um todo, porém como uma rica totalidade de
determinações e relações diversas” (NETTO, 2011, p. 42-43, grifo do
autor).
2
Refere-se à Aufklärung, cuja tradução é esclarecimento, iluminismo ou ilustração. Em algumas
traduções, como a de Julia Elisabeth Levy, recorre-se ao termo iluminismo e o fragmento filosófico se
apresenta sob o título A indústria cultural – o Iluminismo como mistificação das massas. No nosso texto,
utilizamos a tradução de Guido Antonio de Almeida, pois concordamos com a concepção do tradutor.
Para ele, o termo expresso em Dialética do esclarecimento é usado para se remeter ao “processo de
“desencantamento do mundo”, pelo qual as pessoas se libertam do medo de uma natureza desconhecida”.
Portanto, “o esclarecimento de que falam não é, como o iluminismo, ou a ilustração, um movimento
filosófico ou uma época histórica determinados, mas [...] o processo de racionalização que prossegue na
filosofia e na ciência.” (1985, p. 07-08). Nesse sentido, se tivéssemos adotado a tradução literal de Julia
Elisabeth Levy, incorreríamos no erro fatal de seguir a perspectiva de que esses frankfurtianos seriam
anti-iluministas. Apesar de não se enquadrarem automaticamente nesse rol – discussão que pode ser
encontrada em Rouanet (1987) –, é notória a presença de elementos irracionalistas nos seus escritos.
Certamente, isso guarda conexões com o momento histórico da construção do pensamento desses autores,
acompanhado das influências pessimistas e irracionalistas da filosofia clássica alemã no século XX.
21
3
Em termos de causa e efeito, a causa do efeito social da padronização e do controle exercido, para esses
autores, localiza-se na razão instrumental contida na indústria cultural, que pode ser visualizada no
fordismo. No entanto, notamos que o fordismo é concebido por eles muito mais como um método
organizacional de produção do que criação e acumulação de mais-valia relativa situadas numa
determinada fase do desenvolvimento das forças produtivas.
22
4
No texto Tempo livre, de 1969, o indivíduo não aparece mais inteiramente integrado à sociedade.
Segundo Adorno (2016, p. 69-70): “as pessoas aceitam e consomem o que a indústria cultural lhes
oferece para o tempo livre, mas com um tipo de reserva, de forma semelhante à maneira como mesmo os
mais ingênuos não consideram reais os episódios oferecidos pelo teatro e pelo cinema. [...] É evidente que
ainda não se alcançou inteiramente a integração da consciência e do tempo livre. Os interesses reais do
indivíduo ainda são suficientemente fortes para, dentro de certos limites, resistir à apreensão [Sfassung]
total. Isto coincidiria com o prognóstico social, segundo o qual, uma sociedade, cujas contradições
fundamentais permanecem inalteradas, também não poderia ser totalmente integrada pela consciência. A
coisa não funciona assim tão sem dificuldades, e menos no tempo livre, que, sem dúvida, envolve as
pessoas, mas, segundo seu próprio conceito, não pode envolvê-las completamente sem que isso fosse
demasiado para elas. Renuncio a esboçar as consequências disso; penso, porém, que se vislumbra aí uma
chance de emancipação que poderia, enfim, contribuir algum dia com a sua parte para que o tempo livre
[Freizeit] se transforme em liberdade [Freizeit]”.
23
5
Com exceção da teoria produzida pelos fundadores do marxismo ocidental: Lukács, Korsch e Gramsci,
os quais continuavam vinculados ao movimento popular e, portanto, nos termos de Anderson (1984), não
se inserem nessa separação entre teoria e prática política.
6
Nos termos de Adorno (1998, p. 20), “Desde que toda associação político-econômica avançada passou a
considerar óbvio e evidente que o que importa é modificar o mundo, e que é bobagem ficar interpretando-
o, tornou-se difícil simplesmente invocar as Teses contra Feuerbach. A dialética inclui também a relação
entre ação e contemplação”.
25
7
Empresas europeias dos ramos cinematográfico, editorial e publicitário.
8
Embora a análise frankfurtiana esteja se referindo à razão instrumental capitalista que, de fato, é uma
razão acrítica e não-emancipatória, ela acaba se transformando numa aversão à razão instrumental em si –
que é necessária ao desenvolvimento das forças produtivas para satisfazer as necessidades humanas.
26
Como havia afirmado Marx (2008), a arte está ligada a certas formas de
desenvolvimento social e pressupõe a existência de condições sociais para o seu
florescimento, no processo de interação do homem com a natureza. A arte grega, por
exemplo, é compatível com a mitologia grega, ou seja, com uma determinada
concepção da natureza e das relações sociais que, por seu turno, desenvolveram-se a
partir de possibilidades derivadas do patamar de desenvolvimento das forças produtivas.
Por isso, questiona Marx (2008, p. 270-271): “A concepção da natureza e das
relações sociais, que se acham no fundo da imaginação grega, e portanto da arte grega, é
por acaso compatível com as máquinas automáticas, as estradas de ferro, as locomotivas
e o telégrafo elétrico?”. Ao final do parágrafo, ele conclui: “A arte grega não podia
surgir, em nenhum caso, em uma sociedade que exclui toda relação mitológica com a
natureza” (idem).
A reflexão de Marx nos permite pensar que, no nosso tempo, ainda que seja
possível apreciar a arte grega, surgiram novas formas artísticas e culturais hegemônicas.
O cinema, que tem atingido um público mais amplo, é uma delas. A sua existência
pressupõe uma nova forma de interação do homem com a natureza que corresponde a
certo nível de desenvolvimento das forças produtivas. Noutra forma de sociedade, esse
desenvolvimento tem ocorrido dentro de um modo de organização da vida material
orientado, primariamente, para a produção e reprodução de capitais.
Logo, partimos do pressuposto de que a industrialização cultural, como produto
da nossa época histórica, se realiza em uma estrutura fruto do trabalho produtivo
(aparelhagem técnica para comunicação e toda a infraestrutura que possibilita os
serviços), indicando o nível de desenvolvimento das forças produtivas. Ao mesmo
tempo, configura-se como uma alternativa de absorção de excedente econômico pelos
setores que empregam trabalho improdutivo, com a particularidade de que, neles, estão
presentes as atividades improdutivas necessárias (atividades artísticas e culturais) e as
improdutivas parasitárias (campanhas de vendas).
Com efeito, a industrialização cultural surge tendo como pano de fundo a
organização do processo trabalho em bases fordistas, as crises de superprodução e
superacumulação, a expansão do setor de serviços, o avanço dos meios de comunicação
e o crescimento das campanhas de vendas. Considerando todos esses aspectos, que
formam um todo articulado, estabelecemos três objetivos específicos para esta pesquisa:
i) Apreender os fundamentos do excedente econômico e da crise na transição da
fase concorrencial para a monopolista.
27
A indústria cultural como fenômeno social foi analisada por Theodor Adorno e
Max Horkheimer, pensadores da Escola de Frankfurt9, aparecendo pela primeira vez no
livro Dialética do Esclarecimento, em 1947. A obra, contudo, não tratou de um estudo
pormenorizado do processo de industrialização cultural, em sua constituição e
desenvolvimento. Na sua essência, ocupou-se de uma crítica à razão contemporânea e à
sociedade que a acompanha, tendo como objetivo primário de investigação, no geral, a
autodestruição do esclarecimento. Logo, a discussão da indústria cultural e, de modo
semelhante, as reflexões sobre o antissemitismo 10, se inserem nessa crítica mais ampla
enquanto elementos que estariam respaldando a regressão do esclarecimento.
No decorrer de seus escritos, os autores mostram que o processo de libertação do
homem em relação aos mitos possui um movimento contraditório entre o positivo e o
negativo, cujo elemento predominante é o negativo. Na busca pela superação das
superstições, que aparece de maneira explícita na racionalização da ciência e da
filosofia, eles identificam uma tendência de regressão às mistificações. Seguramente,
para esses filósofos, tal busca é visualizada como algo positivo 11 quando dá
credibilidade à razão, especialmente durante a ascensão do Iluminismo no século XVIII.
O problema identificado por eles, entretanto, está no fato de que “o conceito
desse pensamento [esclarecedor], tanto quanto as formas históricas concretas, as
instituições da sociedade com as quais está entrelaçado, contém o germe para a
regressão que hoje tem lugar por toda parte”. (idem, p. 13, grifo nosso). Para eles, ao
tornar-se pragmatizado, o pensamento esclarecido surge imbricado com uma forma
específica de sociedade – capitalista –, sem espaço para reflexão crítica e autocrítica dos
seus elementos destrutivos que impedem o progresso. Dessa forma, tende a ser
regressivo e indisposto à busca da verdade. Noutros termos, ao não ser conduzido por
9
A Escola de Frankfurt foi formada por um conjunto de pensadores, no século XX, de diferentes áreas do
conhecimento – filosofia, economia, direito, sociologia e psicanálise –, dentre os quais se destacam:
Walter Benjamin, Herbert Marcuse, Theodor Adorno, Max Horkheimer, Leo Löwenthal, Friedrich
Pollock, Jürgen Habermas e Erich Fromm, com suas diversas particularidades que os fazem ser
teoricamente e politicamente distintos. Inicialmente, na sua gênese, havia o objetivo de construir um
programa de pesquisa interdisciplinar de viés marxista. No geral, essa Escola é conhecida por elaborar
uma Teoria Crítica da Sociedade. Para uma análise crítica de suas contribuições e lacunas, consultar:
SLATER, Phil. Origem e significado da Escola de Frankfurt: uma perspectiva marxista. Tradução de
Alberto Oliva. Rio de Janeiro: Zahar, 1978.
10
Estamos nos referindo ao fragmento filosófico intitulado Elementos do antissemitismo: limites do
esclarecimento, que também compõe a obra citada.
11
Nas suas palavras: “Não alimentamos dúvida nenhuma – e nisso reside nossa petitio principii – de que
a liberdade na sociedade é inseparável do pensamento esclarecedor” (ADORNO; HORKHEIMER, 1985,
p. 13).
29
uma razão crítica, mas tão somente por uma razão meramente instrumental, o
esclarecimento acabou subordinando os seres humanos a uma nova mistificação.
Se antes o homem era dominado pela natureza, agora ele aprofunda a sua
condição de dominação pelo próprio homem – dominação do homem pelo homem –,
em uma sociedade administrada e integrada, onde predomina o desenvolvimento da
técnica que, por sua vez, é controlada por aqueles que detêm o poder econômico. Nessa
sociedade, o pensamento crítico e o discernimento (razão crítica e emancipatória) cedem
a uma nova forma de saber expressa pelo cálculo e pela técnica voltados a um
determinado fim útil (razão instrumental e dominadora). Esse saber,
12
A razão emancipatória diz respeito a uma racionalidade crítica, caudatária do projeto iluminista, que é
capaz de criticar processos sociais e fomentar a conscientização da sociedade em direção à liberdade e à
igualdade do gênero humano.
32
13
Grupos extensos de indivíduos que se uniam pelos seus laços consanguíneos, compartilhavam dos
mesmos hábitos, assim como possuíam interesses coletivos baseados na produção e distribuição
coletivizadas.
14
Entre as tarefas que competiam ao homem e à mulher, o trabalho produtivo como função do homem, ao
se constituir como fonte de enriquecimento privado, ganhou centralidade em detrimento do trabalho
doméstico exercido pela mulher. (ENGELS, 2012).
34
15
O próprio sentido da palavra família, entre os romanos, nasce atrelado à escravidão antiga patriarcal,
revelando as novas relações de poder entre senhores e escravos, bem como entre homens e mulheres. Nas
palavras de Engels (2012, p. 78), “Famulus quer dizer escravo doméstico e família é o conjunto de
escravos pertencentes a um mesmo homem”. Em Roma, fora utilizada para “designar um novo organismo
social, cujo chefe mantinha sob o seu poder a mulher, os filhos e certo número de escravos, com o pátrio
poder romano e o direito de vida e morte sobre todos eles”.
16
A discussão sobre arte será retomada no último capítulo desta dissertação.
35
trabalho para ter acesso a uma parcela ínfima dos meios de subsistência; e 2) a
concentração dos meios de produção nas mãos de uma classe: a burguesia.
São essas condições engendradas, na transição para o modo capitalista de
produção, que o excedente na sua forma privada ganha possibilidades para se
desenvolver privadamente. Mas, é importante fazermos o destaque sobre a
particularidade desse excedente no modo de produção supracitado. Nele, o excedente
tem uma particularidade que o difere dos modos anteriores de capturar excedente: há,
especialmente, a criação de mais-valia.
Como afirmaram Netto e Braz (2012), na produção mercantil capitalista
controlada pelo capitalista, diferentemente da produção mercantil simples controlada
pelo comerciante, os ganhos não vêm da circulação, mas da produção. Nessa forma de
produzir de modo capitalista, o dinheiro acrescido não é um lucro decorrente da
diferença de preços da compra e venda de uma mercadoria no mercado, tal qual ocorre
com o comerciante. Na verdade, “provém de um acréscimo de valor gerado, na
produção, pela intervenção da força de trabalho” (idem, 2012, p. 97, grifo dos autores).
Trata-se, agora, de uma busca primária por mais-valia obtida pela diferença de valores
“entre o valor produzido pelo operário e o valor da sua própria força de trabalho [isto é]
[...] as suas próprias despesas de manutenção” (MANDEL, 1975, p. 21, grifo nosso).
Em Mandel, a definição de excedente articula o seu caráter social, a forma que
ele assume no capitalismo e a perspectiva da diferença de valores. Nesse sentido, ele é
considerado um sobreproduto social, que é produzido pela classe produtora, mas é
apropriado pela classe dominante “seja sob a forma de produtos naturais, de
mercadorias destinadas a serem vendidas, ou ainda sob a forma de dinheiro” (idem, p.
05). Portanto, a mais-valia é uma das formas assumidas pelo excedente:
contrário. Contudo, Engels (2005) destaca que, devido os limites de seu tempo, com um
modo capitalista de produção ainda pouco desenvolvido, eles acabaram não captando e
demonstrando cientificamente as suas leis de funcionamento.
Coube à Karl Marx, ao se basear na economia política inglesa valendo-se dos
avanços de Adam Smith e David Ricardo, dar fundamentação científica. Ele dissecou
em seus pormenores o modo de funcionamento da produção e reprodução do capital e
de suas crises, apresentando as suas leis internas. Nesse sentido, a afirmação de Charles
Fourier de que “a superabundância converte-se em miséria e penúria” (ENGELS, 2005,
p. 83) é demonstrada por Marx na lei geral da acumulação capitalista, presente no
capítulo XXIII de O Capital, primeiro livro, publicado originalmente em 1867.
Essa lei explica como a operacionalização do modo capitalista de produção, no
seu movimento de acumulação de capital, incide na grande massa de operários que
vende a sua força de trabalho ao capitalista. Dentre os rebatimentos, ela fornece a
fundamentação sobre a persistência do desemprego, assim como das oscilações nos
salários. Estes últimos, dependendo da necessidade de valorização do capital, podem
tornar-se ainda mais incondizentes com o valor adequado para a manutenção da força
viva de trabalho.
Ao mesmo tempo, essa incidência ou, se quisermos, efeitos, só se tornam
visíveis, dentro da análise de Marx, na medida em que ele avança na investigação das
suas causas, encontradas no exame da dinâmica de reprodução ampliada da acumulação
de capital. É essa dinâmica que, buscando valorizar o capital, gera um excedente de
força de trabalho, de mercadorias e de capitais.
Por isso, o primeiro passo, para desvelar o excedente no modo capitalista de
produção, é entender como ele é intensificado no movimento da acumulação a partir das
modificações no que Marx (2014) chama de composição orgânica do capital, cujo
conteúdo revela, basicamente, os componentes de sua criação.
Como ele demonstrou, essa composição divide-se tanto do ponto de vista do
valor: a proporção dos capitais ou valores constante e variável aplicados (composição-
valor), quanto da matéria: proporção das massas vivas de meios de produção e
quantidade de força de trabalho aplicadas (composição-técnica). Entre essas
composições, “existe uma estreita correlação. Para expressá-la, chamo a composição de
valor do capital, porquanto é determinada pela composição técnica do capital e reflete
suas modificações, de composição orgânica do capital” (idem, p. 835-836, grifo nosso).
42
Isso significa que, nessa correlação entre matéria e valor apontada por Marx
(2014), é a matéria que determina o valor. O seu apontamento explicativo é puramente
lógico. O valor, para continuar se expandindo na forma de capitais, exige a ampliação
da matéria: mais massa de meios de produção e de força de trabalho. Entre essas duas
massas, esta última é determinante no processo de produção, pois é a sua massa que, ao
movimentar a massa de meios de produção, permite valorizar o capital anteriormente
aplicado.
Os meios de produção pressupõem, portanto, a transformação realizada pela
força de trabalho. Eles dependem disso tanto para existir quanto para se movimentar. E
é essa massa de força de trabalho em movimento que gera, então, uma mais-valia, cuja
transformação em capital permite ser utilizado na geração de uma nova mais-valia.
Por outro lado, o sentido dessa correlação entre matéria e valor, em Marx,
também se expressa no fato de que, ao mesmo tempo em que a utilização da força de
trabalho é uma necessidade para reproduzir e incrementar a mais-valia criada por ela,
também aparece como a necessidade de reprodução dessa força de trabalho. Uma vez
estando numa relação de dependência para se reproduzir, isto é, para consumir os meios
de subsistência e continuar movimentando-se e gerando a mais-valia contida na
mercadoria, a força de trabalho precisa ser continuamente revendida. Logo,
considerando essa correlação, diz Marx:
Nesse trecho, o pensador alemão nos indica com clareza a dinâmica inerente e
periódica da indústria moderna: ao expulsar trabalhadores, substituindo-os por novas
técnicas e máquinas para aumentar a produtividade, o trabalho do contingente humano
que permaneceu é intensificado. E, ao permitir uma nova expansão, os trabalhadores
disponíveis em “reserva” – os quais são imprescindíveis para um novo ciclo
expansionista – são incorporados novamente. Depois, são expulsos mais uma vez
durante os períodos de contração. Esse vai e vem, ao final, possibilita que um excedente
de força de trabalho esteja sempre de prontidão para ser utilizado, até mesmo por um
salário inferior àquele que anteriormente se recebia.
A partir dessas análises, é possível visualizar que a constante reprodução
ampliada da acumulação gera um excedente de valor (mais-valia) – criado por meio de
um excedente de tempo de trabalho realizado pela força de trabalho em movimento, o
qual é expresso em mercadorias e, por conseguinte, em capital – como também um
excedente na forma de força humana de trabalho.
Trata-se de uma dinâmica da expansão da acumulação do capital que tem na sua
essência a constante busca por capturar mais-valia e convertê-la em capital, utilizando-
se, para tanto, da intensificação da força de trabalho e, também, das invenções
tecnológicas, dentro do âmbito produtivo, para potencializar aquela captura. Temos, aí,
as condições postas à produção de um excedente crescente e, em contrapartida, uma
apropriação privada pelo capitalista, numa proporção maior, ao longo do
desenvolvimento das técnicas.
É nesse sentido que Engels (2010), ao escrever a introdução do texto Trabalho
Assalariado e Capital, na edição de 1891, acrescenta que “No estado atual da produção
[monopolista], a força de trabalho humana não produz só, num dia, um valor maior do
que ela própria possui e custa”, mas que, “a cada nova descoberta científica, a cada nova
invenção técnica, esse excedente do seu produto diário sobe acima dos seus custos
diários” (idem, p. 28, grifo nosso).
Ele chama atenção para a tendência crescente de ampliação do tempo de trabalho
excedente, enquanto o tempo de trabalho destinado à produção do valor da força de
trabalho diminui, isto é, menos tempo é necessário para produzir o valor equivalente aos
salários. Intensifica-se uma forma de extração de mais-valia: a mais-valia relativa, cuja
dinâmica, ao invés de se basear na extensão da jornada de trabalho tal qual a mais-valia
absoluta, se ampara em novas técnicas na produção que permitem essa ampliação de
excedente por meio de uma mudança na proporção das partes constitutivas da jornada
46
17
Essa discussão pode ser encontrada em Dialética da dependência, de Ruy Mauro Marini. Nessas trocas
entre países, o cientista social brasileiro revela que ocorre uma troca desigual. Opera-se uma
transferência de valor aos países capitalistas centrais.
47
18
Como indicamos na seção anterior, o trabalhador, desprovido desses meios, entra numa relação de
dependência com o capitalista quando o acesso aos meios de subsistência está hipotecado à sua condição
de assalariado.
48
E acrescenta posteriormente:
19
Expressão que significa “todo o resto mantendo-se constante”.
49
20
É composto por quatro fases indicadas por Netto e Braz (2012, p. 172): “a crise, a depressão, a
retomada e o auge”.
51
maiores taxas de lucro devido às condições existentes que permitem uma produção e
realização de mais-valia em maior grau. Como destaca Lenin,
do outro, a Espanha, que possuía o interesse de mantê-la como sua colônia. Com a
vitória dos EUA, o Tratado de Paris estabeleceu a concessão das ilhas espanholas de
Guam, Filipinas e Porto Rico aos norte-americanos. E, um ano após essa última guerra,
entre 1899 a 1902, eclode a Segunda Guerra Anglo-Boer entre o Império Britânico e as
Repúblicas de Transvaal e do Estado Livre de Orange, formadas pelos povos bôeres 21,
pelo controle da África do Sul. A vitória do Império Britânico lhe permitiu incorporar
os territórios sul-africanos sob o seu domínio.
Como se pode observar nessas guerras por colônias, as potências emergentes
também estavam se apropriando de territórios. Mas, as extensões territoriais apropriadas
pelas potências mais velhas, como a Inglaterra e a França, foram bem maiores. É
importante recordarmos que o imperialismo britânico exercia, nesse momento da
história, hegemonia mundial. O seu domínio era tão forte que ele chegou a ser visto por
todos os cantos do globo terrestre como um império onde “o sol nunca se põe” – de
fato, não havia pôr do sol para aqueles que estavam na linha de frente das guerras, assim
como para os operários ingleses e escravos subjugados nas colônias apropriadas.
Em Imperialismo, fase superior do capitalismo, Lenin já indica, em algumas
partes da obra, que a disparidade na expansão das colônias se inscreve dentro de uma
lógica que é imanente deste modo de produção capitalista: o desenvolvimento desigual
entre as empresas capitalistas e, mais amplamente, entre os países imperialistas, que se
desenvolvem com ritmos diferentes de expansão capitalista e, portanto, podem acumular
um volume maior ou menor de capital. Nas palavras desse autor,
21
Descendentes de colonos calvinistas da Holanda, Alemanha e França que se estabeleceram na África do
Sul.
53
22
“Além da Nicarágua, Cuba, Filipinas, Porto Rico e Guam, os Estados Unidos possuem e controlam o
Havaí, Samoa, Panamá, São Domingos, Haiti, Alaska e as Ilhas Virgens”. (HUBERMAN, 1978, p. 232).
54
23
Monopólios do petróleo, do capital financeiro e de diamantes, com origens norte-americana, alemã e
inglesa respectivamente.
55
26
O capital possui um “caráter processual [...] que é valor que busca valorizar-se, expandir-se – capital é
movimento, dinamizado pelas suas contradições”. Em paralelo, também é uma “relação social e as
relações sociais são, antes de mais, relações de essência histórica: são mutáveis, transformáveis.
Resultantes da ação dos homens, exercem sobre eles pressões e constrangimentos, acarretam efeitos e
consequências que independem da sua vontade; mas, igualmente, são alteráveis e alteradas pela vontade
coletiva e organizada das classes sociais”. (NETTO; BRAZ, 2012, p. 169, grifo dos autores).
58
uma queda tendencial da taxa de lucro. Mas, longe de permanecer nela e desencadear o
fim da produção de capital, influências se manifestam e tentam revertê-la por um
momento, quais sejam: i) aumento do grau da exploração do trabalho; ii) diminuição do
salário abaixo do seu valor real; iii) barateamento do capital constante; iv)
superpopulação relativa; v) comércio exterior; e vi) aumento do capital portador de
juros (MARX, 2017). É por isso que a crise, ao mesmo tempo em que explicita
contradições, se configura como um período de reinvenção.
Ao lado da queda tendencial da taxa de lucro, também se manifestam a anarquia
da produção e do mercado e o subconsumo das massas (NETTO; BRAZ, 2012). Em
relação à anarquia da produção-mercado, Wellen (2012) destaca que o interesse
individual de cada um dos capitalistas de aumentar a produtividade de sua empresa
colide com a incapacidade de absorção da produção global da classe capitalista pelo
mercado. Se, no seu interior, cada empresa pode controlar a produção e aumentar sua
capacidade produtiva, o mesmo não pode ocorrer externamente no mercado. Não há
como assegurar um retorno de vendas:
Como Wellen apontou, não existe uma forma de apropriação social da produção
social. As crises aparecem explicitando, então, a contradição estrutural do MPC entre a
59
produção social e a apropriação privada. Nesse sentido, não se trata de algo natural
decorrente de desastres ambientais, guerras ou pandemias, embora tais condições se
configurem como detonadores e tornem as contradições mais visíveis. No fundo, há
uma determinação econômica e social na crise capitalista que deriva da lógica do modo
de produzir e das relações sociais que são estabelecidas no entorno dessa produção entre
produtores e apropriadores.
Em se tratando do seu modo de produzir, é preciso distinguir dois processos da
dinâmica de acumulação que são interdependentes, mas se constituem como momentos
distintos: 1) a captura de mais-valia, no âmbito da produção; e 2) a sua realização na
esfera da circulação. Sendo momentos diferentes, a mais-valia não se realiza
imediatamente.
A realização da mais-valia depende, de fato, da capacidade de venda das
mercadorias. Ao mesmo tempo, aquela mais-valia já convertida e acumulada em capital
requer novos investimentos. Nesse sentido, uma superprodução de mercadorias pede
uma intensa capacidade de venda e, do mesmo modo, uma superacumulação de capitais
requer superinvestimentos.
No debate das crises, há perspectivas que enfatizam um ou outro polo para
explicá-las. Mandel (1990) traz essa discussão ao tratar das crises em A crise do
capital: os fatos e suas interpretação marxista. Ele indica que há duas escolas que se
confrontam: por um lado, a que explica as crises pelo “subconsumo das massas
(superprodução de bens de consumo)”. E, de outro, a escola que as explica pela
“superacumulação de capitais (insuficiência de lucro para continuar a expansão de
capital)” (idem, p. 209).
A crítica de Mandel refere-se ao isolamento dessas explicações, ao realçar um
polo em detrimento do outro, e a consequência disso: subsidiar saídas mecanicistas para
as crises. Enquanto aquela primeira abre brechas para uma saída pela via do aumento
dos salários para gerar capacidade de pagamento, na perspectiva keynesiana de criação
de demanda efetiva, aquela última pode recair nas alternativas do aumento dos
investimentos capitalistas e da redução salarial para retomar o crescimento dos lucros –
todas elas como possíveis soluções para a crise.
Para Mandel, ambas as escolas deram contribuições valiosas, mas o erro
cometido foi separar o que está organicamente ligado, uma vez que “O modo de
produção capitalista é, ao mesmo tempo, produção mercantil generalizada e produção
para o lucro das empresas” (MANDEL, 1990, p. 209). É, ainda, um “sistema voltado
60
27
Em O capitalismo tardio, esse pensador elucida que “O conceito de superacumulação não é jamais
absoluto, mas sempre relativo: não há nunca capital “em demasia”, em termos absolutos; há muito capital
em disponibilidade para que se atinja a taxa média social de lucros esperada”. (MANDEL, 1982, p. 75-
76).
61
expressam quando a crise já está acontecendo. Para encontrar a causa, é preciso definir e
entender o conteúdo da crise.
Tal conteúdo reporta-se à própria característica deste modo de produzir que
seria, a seu ver, o fundamento da crise: “Produção ilimitada de mercadorias,
consumidores abundantes e barreiras para o consumo, tudo isto provocado pelas
mesmas leis, pela dinâmica do capitalismo, este é o conteúdo do fenômeno crise”
(CARCANHOLO, 1996, p. 175, grifo do autor). E, a partir desse conteúdo da crise, é
possível chegar à sua causa:
Uma vez que a causa da crise se situa nessa contradição mais fundamental entre
produção social e realização privada, as alternativas à crise, no curso da história, não
foram capazes de eliminá-la, pois estiveram direcionadas às suas formas de
manifestações capitalistas, atuando também de forma capitalista na produção-venda e na
produção-consumo.
Na produção-venda, ocorre uma ampliação e controle dos mercados via
exportação de capitais e formação de monopólios, assim como um estímulo à venda. E,
na produção-consumo, atua-se tanto no estímulo à venda, quanto na geração da
capacidade de pagamento por meio do crédito e das iniciativas do Estado. Em tempos
de crise e retomada da acumulação, essa atuação pode se intensificar, não obstante ela
se faça presente continuamente.
Anteriormente, vimos que é necessário, para o excedente produzido
(mercadorias e capitais), encontrar um modo de realização no mercado. Se esse
excedente não se dirige, suficientemente, para as grandes massas, que convive com o
persistente subconsumo – decorrente daquela contradição mais fundamental –, para
onde, então, ele vai?
Baran e Sweezy (1978) nos entregam algumas pistas sobre isso, ao se
debruçarem sobre as formas alternativas de absorção do excedente no âmbito da
63
28
Para esses economistas, existe um problema, no capitalismo monopolista, em relação à tendência
decrescente da taxa de lucro, qual seja: considerar que as barreiras à expansão capitalista estão na
escassez de excedente para impulsionar a acumulação e não na sua abundância. Segundo eles, no
capitalismo monopolista, há uma substituição da lei da tendência decrescente da taxa de lucro pela lei do
excedente crescente. Eles tratam de maneira separada aquilo que se vincula de forma orgânica (produção
e circulação), como apontou anteriormente Mandel (1990). E acrescentaríamos, além disso, o fato de
associar a tendência decrescente da taxa de lucro com massa menor de excedente. Apesar das lacunas
existentes no debate da criação do excedente, a contribuição desses pensadores é pertinente ao tratar das
alternativas de absorção de um excedente crescente no âmbito da circulação, que também consiste numa
análise fundamental para o entendimento das saídas do capital para os setores improdutivos.
64
por mais-valia, na sua forma relativa, determinou uma das características do capitalismo
monopolista: o fato de obter, além do controle da escala da produção e do mercado,
maior controle sobre o processo de trabalho.
Na indústria produtiva, o objetivo desse último controle é potencializar a captura
de mais-valia relativa pela via da intensidade do movimento da força de trabalho em um
tempo menor. Evidentemente, ele não pode ser visto descolado, primeiramente, da
Grande Depressão que vigorou entre 1873/93 (MANDEL, 1982) e, posteriormente, da
estagnação de 1907/15 (BARAN; SWEEZY, 1978), as quais exigiram uma
reorganização do processo de trabalho.
Nos termos de Hobsbawm, se alterou o modus operandi, pois se percebeu que,
para “maximizar os lucros”, era necessário “racionalizar a produção e a direção das
empresas aplicando "métodos científicos" não só à tecnologia, mas também à
organização e aos cálculos” (1988, p. 52, grifo nosso). Os grandes monopólios
passaram a aderir à organização taylorista na produção capitalista.
A organização taylorista teve como principais métodos a transferência do
controle do processo de trabalho para um corpo de gerentes contratados; tempo e
movimento cronometrados; e o sistema de pagamento de salários por produção. Ela
surge entre meados de 1880 a 1890 com a formulação das ideias do norte-americano
Frederick Taylor a partir da sua experiência na indústria siderúrgica estadunidense
(HOBSBAWM, 1988).
Já o fordismo, nasce em 1913, idealizado pelo norte-americano Henry Ford,
tendo como principais características a produção em massa por meio da linha de
montagem, a elaboração de produtos homogêneos, a redução dos custos de produção e
do preço unitário de venda, o trabalho parcelado, as fábricas concentradas e
verticalizadas, combinando com os métodos tayloristas de controle (ANTUNES, 1998;
GOUNET, 1999). As fábricas de Ford introduziram as “oito horas e cincos dólares”
para estimular a elevação da produtividade do trabalho no menor tempo possível – fato
que dependia do ritmo do trabalhador – e, ao mesmo tempo, forçar um consumo em
massa. Constrói-se a perspectiva de que esse trabalhador, que trabalha com uma jornada
de trabalho reduzida, deverá dedicar o seu tempo livre a utilizar o seu salário,
consumindo no mercado a produção em massa.
A análise do papel do fordismo na industrialização cultural, portanto, tem como
ponto de partida, na investigação, a sua relação com dois eixos principais: do ponto de
vista do processo de trabalho, ou seja, em como o trabalho se organiza para produzir
66
E continua:
29
Trataremos sobre o desenvolvimento do mercado de consumo no capitalismo tardio na próxima seção.
70
E, por outro lado, a Primeira Guerra Mundial a partir de 1914, juntamente com a
produção de automóveis em bases taylorista-fordistas, no período da guerra, se
apresentaram como novos estímulos:
30
Em 1917, os EUA declara guerra contra a Alemanha.
71
aliados. O resultado desse surto de exportações foi que, ao terminar a guerra, esse país
se tornou uma potência imperialista de grande influência 31 no cenário mundial.
Com o desaparecimento do estímulo externo da guerra em 1918, foi o surto
automobilístico que serve como novo estímulo principal até 1929, tanto devido à
produção em massa do automóvel em si e a existência de mercados consumidores
externos, quanto aos efeitos que essa produção trazia para outros setores, promovendo
“suburbanização, construção de rodovias, indústrias derivadas etc.” (BARAN;
SWEEZY, 1978, p. 234). Além de atingir esses setores de maneira indireta, a produção
de automóveis aplicou, diretamente, investimentos no setor cultural. Henry Ford, por
exemplo, foi um grande investidor de produções cinematográficas próprias da Ford
Motor Company. Segundo França (2016, p. 60),
31
Segundo Huberman (1966, p. 230-232), “A América se tornava a maior força política e financeira do
mundo capitalista. Havia se transformado de país devedor em país que emprestava dinheiro. Era agora
uma nação credora. O capital em excesso foi empregado em oportunidades de investimento em todos os
recantos do globo, em países novos ou antigos. [...] Em 1900 calculava-se que os Estados Unidos
dispunham de 86 bilhões de dólares. Em 1929 calculava-se em 361 bilhões. O período que ia desde a
Guerra Civil até 1900 foi de grande expansão. Mas a expansão de 1900 a 1929 foi tão tremenda que fez
parecer que nos anos anteriores o país estivera estagnado”.
32
No português, “Como Henry Ford Faz Mil Carros por Dia”.
72
33
Algumas delas foram: In conversation with Helen Keller (1914); Henry Ford Camping (1921); Hurry
Slowly (1921); Industrial Working Conditions (1920); Texas Farm Boys Tour (1920); A Visit to the Ford
Motor Company (1917); A Century of Progress (1920); Democracy in Education (1919); Landmarks of
the American Revolution (1920) (FRANÇA, 2016).
73
uma vez que a mais-valia relativa criada na produção em massa requisitava uma
realização pelo consumo de mercadorias em massa.
Contudo, o setor privado somente poderia intervir na produção-consumo pela
mediação de uma relativa intervenção na produção-venda. Não conseguia por si só
elevar a capacidade de pagamento dos trabalhadores aumentando, suficientemente, os
empregos e salários ou utilizando aqueles esforços de vendas: fornecimento de crédito e
campanhas de vendas.
Tanto as campanhas de vendas, que alcançavam as grandes massas na
divulgação das mercadorias e atuavam no convencimento, como o próprio crédito, o
qual permitia alguma facilidade provisória nas possibilidades das vendas, ambos
dependiam da capacidade de pagamento. E essa capacidade, por sua vez, estava
dependente, dentre outros fatores, dos salários, do poder de compra dos trabalhadores.
Se esse poder de compra estava sendo ineficiente à produção em massa capitalista e se
essa mesma produção não conseguia resolver o desemprego crônico e absorver o
excedente de força de trabalho, o tratamento desses efeitos foi assumido, cada vez mais,
pelo Estado. Ele teria condições de executar uma saída macrossocial para minimizar os
entraves.
Nesse sentido, em 1926, o economista Keynes, antes de lançar a sua obra Teoria
Geral do Emprego, do Juro e da Moeda, em 1936, que viria a inspirar o keynesianismo,
já registrava suas críticas ao laissez-faire (no português, “deixe fazer”), revelando o
conflito entre o interesse privado e o social, em um artigo publicado. Tais críticas
demarcavam as causas dos “males econômicos” no interesse individual que nem sempre
coincidia com o interesse social sendo, portanto, frutos de aspectos morais individuais:
“do risco, da incerteza e da ignorância” de indivíduos particulares.
Considerando isso, apontou que a cura para os males na economia residiria fora
das atividades dos indivíduos, pois poderia ser do “interesse destes o agravamento da
doença”. Ele propôs, então, uma separação entre os serviços técnicos de caráter social e
aqueles de caráter individual. O Estado, concebido por ele como uma esfera “fora das
atividades dos indivíduos”, capaz de atingir o interesse social e fornecer serviços
técnicos para os males econômicos, ficaria encarregado de realizar, apenas, as funções
que deixaram de ser realizadas no âmbito individual pelo empresariado. Nos seus
termos,
74
34
Uma expressão semelhante é encontrada, originalmente, sob o termo “sociedade burocrática de
consumo dirigido” em A vida cotidiana no mundo moderno, de Lefebvre (1991), para designar o fato de a
sociedade do século XX ser dirigida por uma classe (burguesia) que, para efetuar a sua gestão, lança mão
de uma estratégia de classe de caráter integrador, cujas contradições levam à desintegração da classe
operária: gera-se um mal-estar na satisfação das necessidades, na medida em que ela oscila para a
insatisfação. Para ele, a sociedade é organizada repressivamente pela ideologia da tecnicidade e dos
especialistas estatais, pela ideologia da liberdade, pela ideologia do consumo e, sobretudo, pela realidade
desse consumo, que se revela vazio, desprovido de sentido. A obsolescência programada dos objetos e, ao
mesmo tempo, a obsolescência das motivações para consumi-los (via publicidade), ou seja, o estímulo à
efemeridade configura-se, para Lefebvre, uma estratégia de classe no cotidiano. Mas, pelas contradições
dessa estratégia, ao invés de gerar o bem-estar prometido, gera-se um mal-estar em relação à satisfação
das necessidades de consumo.
76
35
“Concentração da produção; monopólios resultantes dela; fusão ou junção dos bancos com a indústria:
tal é a história do aparecimento do capital financeiro e do conteúdo deste conceito. [...] O imperialismo,
ou domínio do capital financeiro, é o capitalismo no seu grau superior”. (LENIN, 2012, p. 75-89).
79
nas áreas da educação, saúde, moradia, cultura e lazer, que permitissem uma economia
futura dos gastos do governo ao diminuir indicadores sociais como o adoecimento, o
analfabetismo e a criminalidade (HUBERMAN, 1966).
Essa intervenção se expressou na criação do sistema de Seguridade Social,
fornecendo auxílios aos trabalhadores, e no estímulo à contratação de trabalhadores
desempregados. Eles foram incorporados ao trabalho, embora precarizado, em troca de
um salário de seguro ofertado pelo Estado, cujo valor correspondia a “19 dólares por
mês, para os operários não-qualificados, no sul, até 103,40 dólares por mês para
trabalhadores técnicos, no norte” (HUBERMAN, 1966, p. 252).
O conjunto da força de trabalho excedente, desempregada, fora utilizado para
construir diversas obras públicas, as quais acabaram estimulando a produção das
indústrias privadas que produziam os meios materiais necessários para a construção da
infraestrutura. Os impactos da incorporação da força de trabalho excedente pelo Estado
e da aplicação do excedente econômico, presente nas suas estruturas, dirigiram-se para o
aquecimento da produção industrial privada. Dessa forma, impulsionou a extração de
mais-valia, ao mesmo tempo em que gerou pouca capacidade de pagamento ao
trabalhador individual, mas, numa perspectiva global, somando-se o conjunto dos
trabalhadores, criou-se uma razoável capacidade de pagamento à economia capitalista,
vejamos:
para produzir uma nova mercadoria. Isso só ocorre quando o tempo útil de uma
máquina se encerra, o que pode levar alguns anos. Enquanto isso não acontece, “seu
valor irá se acumulando gradualmente na forma de um fundo monetário de reserva”
(idem, p. 244).
Já as matérias primas e materiais auxiliares, Marx destaca que elas possuem a
particularidade de percorrer todo o ciclo de rotação do capital. No consumo produtivo,
transferem todo o seu valor para a mercadoria. Essa mesma dinâmica ocorre com a
força de trabalho: ela é incorporada no processo de produção e, ao ser consumida
produtivamente, transfere o seu valor por inteiro à mercadoria produzida.
Nesse sentido, as matérias primas e a força de trabalho, consumidas
rapidamente, precisam ser continuamente repostas, isto é, recompradas para produzir
uma nova mercadoria. Elas são consideradas capital circulante, pois o seu valor
percorre todo o ciclo de rotação do capital: “Este [o valor] circula, portanto,
integralmente por intermédio do produto, converte-se em dinheiro e, a partir deste,
reconverte-se nos elementos de produção da mercadoria. Sua rotação não é
interrompida, como a do capital fixo” (MARX, 2014, p. 246, grifo nosso).
Considerando essas distinções, fica mais compreensível o objetivo de encurtar o
tempo de rotação do capital fixo aumentando a velocidade da máquina e diminuindo a
sua durabilidade para acumular o seu valor – que tem uma acumulação gradual como
vimos – mais rapidamente. Igualmente, é perceptível a pressão que isso impõe à
redução do tempo de rotação do capital circulante, requisitando a intensificação do
movimento da força de trabalho e de matérias primas, mas também exigindo estímulos
que atuem na rápida conversão da mercadoria em dinheiro. E isso só ocorre por meio da
concretização da venda.
Nessa esteira, a funcionalidade da terceira revolução tecnológica é,
primeiramente, acelerar a produtividade na esfera da produção e, também, fazer com
que as mercadorias circulem mais rapidamente na esfera da circulação. Para atingir essa
função, a tecnologia precisa penetrar, além da produção, na própria circulação na
forma de investimentos de capitais excedentes. Esse aspecto é importante para não
escorregarmos nos determinismos tecnológicos. A tecnologia somente penetra na
circulação pela mediação dos capitais excedentes.
Logo, a tendência de supercapitalização (capitais excedentes ociosos) que
predomina no capitalismo tardio é o elemento que permite a conformação do que
Mandel (1982) chamou de industrialização generalizada universal, atingindo a esfera
86
da reprodução. Tal termologia empregada pelo economista não pode ser confundida
com a produção industrial, propriamente dita, que cria mais-valia.
Em outra direção, significa a introdução, identificada por ele, da “mecanização”,
“padronização”, “super-especialização” e “fragmentação do trabalho” também na esfera
da circulação, mais especificamente, no interior dos serviços capitalistas. Ao assumir
essas características, os serviços se tornam industrializados no sentido de atuar, do
ponto de vista do processo de trabalho, nos moldes da produção industrial fordista-
taylorista, em termos de técnicas e métodos de organização da produção e do trabalho.
Também se assemelha quanto ao processo de concentração e centralização de capitais:
há os monopólios dos serviços de transporte, de comunicação, de educação, de saúde,
de cultura e lazer etc.
Essas características do fordismo-taylorismo foram detectadas por Adorno
dentro do sentido da “indústria cultural”, de modo que também não se refere a uma
produção industrial propriamente dita. Trata-se, na verdade, de um termo para se
remeter à padronização do produto e dos consumidores e à forma industrial de
organização do trabalho, marcada pelos altos investimentos em tecnologia. Nas suas
palavras:
37
O capital financeiro contém coágulos de capital industrial. A separação efetuada nesta análise é
inteiramente para fins de organização da exposição.
89
38
Sobre essa discussão, é válida a contribuição de Mészáros (1989) na obra Produção destrutiva e estado
capitalista. A partir dela, é possível a análise dessa tendência nos marcos do capitalismo contemporâneo.
90
E acrescenta:
disponíveis numa sociedade. Além disso, precisa garantir a dimensão qualitativa que
pressupõe não só a criação, mas, ainda, a satisfação das novas necessidades criadas.
Como não há, todavia, uma satisfação universal das novas necessidades criadas,
ele considera que há um retrocesso no capitalismo avançado, pois na medida em que
cria novas necessidades e elas não são satisfeitas, rompe-se com a produção voltada
para a necessidade, que fora predominante no estágio primitivo 39. Nesse sentido, é um
retrocesso em termos de relação entre a produtividade e a necessidade – dito de outra
forma: entre o volume de bens, as necessidades criadas no seu tempo histórico e a
satisfação delas.
Numa fase avançada como a fase monopolista do capitalismo, “sob as condições
de produção generalizada de mercadorias [...] o fetichismo da quantificação domina
completamente a dimensão qualitativa do processo de produção” (MÉSZÁROS, 2011,
p. 606). Dessa forma, a lógica de reprodução ampliada do capital, na circulação, exige e
prioriza quantitativamente a realização do máximo de mercadorias produzidas pela
mediação da venda, contudo, faz em uma sociedade tipicamente dividida em classes,
que convive com a persistente tendência ao subconsumo.
Noutras palavras, seguindo o “fetichismo da quantificação” a lógica da
reprodução ampliada de capital precisa incitar o consumo ampliado para promover as
vendas, ao mesmo tempo em que impõe limites à satisfação desse consumo. Diante
disso, são produzidas mercadorias de alta qualidade, mas com preços mais altos, e
mercadorias de qualidade inferior com preços relativamente menores, em comparação
com aquelas primeiras.
São, portanto, as mercadorias de menor qualidade que se dirigem ao consumo
parcial das grandes massas trabalhadoras, especialmente daqueles trabalhadores
envolvidos na extração de mais-valia absoluta. Já as mercadorias de maior qualidade,
também de maneira parcial, se dirigem para a camada de trabalhadores vinculada à
captura de mais-relativa, a qual possui maior poder aquisitivo.
Essa disparidade no consumo dos trabalhadores se expressa mais intensamente
no capitalismo tardio, pois é nessa fase que a mais valia relativa se generaliza –
39
Com essa análise, não se quer atribuir valoração ao estágio primitivo, caracterizando-o como ruim ou
bom, tampouco aspirar ao seu retorno, pois, com isso, se escorregaria nas amarras do socialismo utópico
em detrimento do socialismo científico. Trata-se, na verdade, de apontar apenas a tendência regressiva do
modo de produção atual que, ao avançar na mercantilização, retira a possibilidade de satisfazer as
necessidades criadas na sua época – inclusive, a satisfação daquelas necessidades mais básicas como a
alimentação, por exemplo, que, noutra época histórica, era uma necessidade imediata satisfeita.
93
articulada à mais valia absoluta 40 –, gerando uma camada de trabalhadores com maior
qualificação, melhores salários e jornadas menores, a chamada “aristocracia operária”
definida por Lenin (2012). É exatamente essa camada que apresenta condições
aquisitivas de participar, de fato, do mercado consumidor dos “30 anos dourados”. Por
outro lado, permanecem com um consumo inferior e de menor qualidade os operários
que produzem, sobretudo, as matérias primas e os bens de primeira necessidade. Esta
última camada, ao contrário, tem condições de trabalho mais precárias, baixos salários e
um poder de consumo menor, mas, continuam contribuindo para fornecer, a baixo
custo, os meios necessários à extração de mais-valia relativa (LESSA, 2013).
Nessa linha, tratando da diferenciação do consumo dos trabalhadores, com foco
na funcionalidade da política de valorização e desvalorização da força de trabalho,
Faleiros (2009) acrescenta à discussão ao mostrar, ainda, as distinções entre as
condições de trabalho e consumo dos trabalhadores atrelados ao setor monopolista41 e
aqueles que trabalham no setor concorrencial. Nos seus termos,
Nesse sentido,
40
Direcionando a análise aos trabalhadores produtivos, Lessa (2013, p. 103) revela: “Como, todavia, só
pode haver mais-valia relativa se houver sido produzida mais-valia absoluta, o desenvolvimento da
aristocracia operária será sempre acompanhado pelo desenvolvimento, nos países imperialistas e na
periferia do sistema (porém, de modo diferenciado, na periferia e no centro), do outro setor operário,
desqualificado e bem menos organizado, e que é a fonte da mais-valia absoluta, imprescindível ao
funcionamento de todo o sistema do capital”.
41
É necessário destacar que não são todos os trabalhadores do setor monopolista que convivem nessas
condições. Levando em consideração que o monopólio é composto por combinações entre setores
avançados e menos avançados, tanto da produção como da circulação, nem sempre haverá melhores
condições de trabalho no setor monopolista. A distinção é válida, portanto, ao comparar a parte do setor
monopolista que se dedica à extração de mais-valia relativa.
94
42
Refere-se à burguesia nascente.
43
Nas suas palavras, havia “uma corte numerosa e esplêndida, um grande estabelecimento eclesiástico,
grandes esquadras e exércitos, que em tempos de paz nada produzem, e em tempo de guerra nada
adquirem que possa compensar os gastos de sua manutenção, mesmo enquanto perdura a guerra. Essas
pessoas, que nada produzem, são mantidas pela produção do trabalho de terceiros” (SMITH, 1983, p.
294).
97
44
Esse trabalhador tem uma relação, duplamente, alienada com os capitalistas. Por um lado, é
despossuído enquanto classe trabalhadora, pois tudo que possui é a sua força de trabalho para vender e,
conseguindo vender, o seu consumo está limitado ao seu salário. Por outro, facilita a exploração da sua
classe pertencente, constituindo-se no braço direito dos capitalistas. A figura do gerente é mais fácil de
visualizar esse braço.
98
45
Na situação do enfermeiro do trabalho, o trabalho é impraticável sem um Equipamento Individual de
Proteção (EPI), um estetoscópio, um medidor de pressão arterial e demais materiais para a realização de
curativos. O trabalho do publicitário, por sua vez, depende fundamentalmente de um computador.
99
de propaganda. Para os autores supracitados, nessa situação seria mais simples separar
os custos de venda dos custos socialmente necessários, pois,
46
Por valorização entende-se o “Processo pelo qual o capital aumenta o seu próprio valor mediante
produção de mais-valia. Marx apresenta o processo de produção de mercadorias como uma unidade de
dois processos distintos – o processo de trabalho através do qual a força de trabalho produz valores de
uso, e o processo de valorização através do qual a força de trabalho produz um valor adicional ao superior
ao seu próprio valor”. (MANDEL, 1982, p. 416, grifo nosso).
103
mercadorias que contêm valor. Para isso, “A mudança de estado custa tempo e força de
trabalho, mas não para criar valor, e sim para transferir valor de uma forma a outra”
(MARX, 2014, p. 210, grifo nosso).
Um exemplo muito interessante dado por Marx para nos auxiliar a entender o
trabalho improdutivo, com foco na sua função de transferência de valor, é o ato de
compará-lo com o trabalho de combustão do carvão para a produção de calor. Ele
destaca, remetendo-se a uma reação química, que na combustão há a combinação de
elementos para alterar, fisicamente, o estado sólido do carvão ao estado gasoso. Deve-se
utilizar o carvão como combustível e combiná-lo com oxigênio para alcançar o estado
gasoso durante o processo de combustão. Nas suas palavras,
E desenvolve, posteriormente:
Na referida obra, Fischer, poeta e filósofo austríaco, revela que a função da arte,
desde as suas origens pré-históricas, esteve atrelada à luta pela sobrevivência humana,
sendo, portanto, tão antiga quanto o homem. Os pioneiros da arte foram homens que, na
sua relação com a natureza, buscaram fazer um instrumento alterando a forma de uma
pedra para lhes servir, e até mesmo se disfarçaram de animal a fim de melhorar a sua
técnica de caça para se alimentar.
47
Segundo Mandel (1975, p. 45), “Não é, pois, exato afirmar que é o capitalista que cria o emprego, visto
que é o operário que produziu a mais-valia, e é esta mais-valia produzida pelo operário que é capitalizada
pelo capitalista e utilizada normalmente para admitir operários suplementares”.
107
Isso significa que a arte foi, nas suas origens, fundada na centralidade do
trabalho e se configurou como trabalho que transforma o mundo e o próprio homem.
Ela o enriquece, despertando seus sentidos. Na pré-história, despertou o sentido de
poder sobre a natureza e os inimigos, por exemplo, por meio das danças tribais como
um ritual antes da caça; da pintura guerreira e dos gritos de guerra para tornar o homem
mais disposto ao combate; das pinturas de animais nas cavernas para dar ao homem
segurança durante a caça; e das cerimônias religiosas, que fortaleciam a ligação do
indivíduo com o coletivo. Nos termos de Fischer (1977, p. 47),
A arte não era uma produção individual e sim coletiva [...] em todas as
suas formas – a linguagem, a dança, os cantos rítmicos, as cerimônias
mágicas – era a atividade social par excellence, comum a todos e
elevando todos os homens acima da natureza, do mundo animal. A
arte nunca perdeu inteiramente esse caráter coletivo, mesmo muito
depois da quebra da comunidade primitiva e da sua substituição por
uma sociedade divida em classes.
48
Na arte anti-humanista, é possível até encontrar descrições verdadeiras sobre a sociedade capitalista e
os seus efeitos para a classe trabalhadora. Entretanto, nela, há uma aceitação dessa realidade e um
pessimismo que não permite apontar saídas para alterá-la. Nessa perspectiva, Fischer (1977) cita, como
grande expressão de um processo de decadência, na arte e na literatura, o niilismo. Na literatura, tem
como notável expoente Nietzsche. Em A destruição da razão, Lukács (2020) o chamou de “o fundador do
irracionalismo do período imperialista”, apontando o seu “[...] relativismo, pessimismo, nihilismo etc.
autocomplacente, narcisista e frívolo, mas que muitas vezes se converte [...] em um sincero estado de
desespero e, como consequência, numa atmosfera de rebeldia (messianismo etc.)” (idem, p. 276).
109
49
Realidade que já está acontecendo na forma de germes – que precisam se desenvolver – no nosso
cotidiano com a formação e o trabalho profissional dos comunicadores sociais. Alguns deles são cientes
de sua função social e outros ainda estão submersos nas ideologias da decadência capitalista.
110
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
51
A industrialização cultural nasce na fase do imperialismo clássico, mas se desenvolve no capitalismo
tardio.
52
A circulação, inclusive, pode penetrar na produção sem, contudo, deixar de ser circulação. Por
exemplo, as campanhas de vendas podem se constituir como um setor dentro da indústria produtiva,
atuando no planejamento de um veículo para torna-lo mais vendável. Mas, mesmo assim, não perde a sua
função de esforço de vendas, ou seja, a sua função de intermediário para a realização da mais-valia, como
nos mostrou os fundamentos dados por Marx (2014).
114
REFERÊNCIAS
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116
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2. ed. São Paulo: Expressão Popular, 2012.
_____. Introdução de F. Engels para a edição de 1891. In: MARX, Karl. Trabalho
assalariado e capital & salário, preço e lucro. 2. ed. São Paulo: Expressão Popular,
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_____. História da riqueza dos EUA. (Nós, o povo). Tradução de Mary Fonseca. 2.
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_____. Uma introdução ao fascismo. 2. ed. São Paulo: Expressão Popular, 2009.
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Boitempo, 2017.
_____. Salário, preço e lucro. In: MARX, Karl. Trabalho assalariado e capital &
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SMITH, A. A Riqueza das Nações. v. I, Tradução de Luiz João Baraúna. São Paulo:
Abril Cultural, 1983.