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O periodo nacionalista de Cláudio Santoro:

estilo e estrutura (1949-1960)


Sergio Nogueira Mendes

Resumo: Artista de obra extensa e variada, Cláudio Santoro afastou-se


gradativamente de sua escrita atonal-dodecafônica, por volta de meados da década
de quarenta, para converter-se, após o advento do “Congresso de Praga”, a uma
expressão musical de claro conteúdo nacionalista. O presente trabalho pretende
demonstrar, através da análise de obras do período e de documentação selecionada
no arquivo pessoal do compositor, algumas das principais características estilísticas
e estruturais deste idioma nacionalista. Serão trazidos à baila, conjuntamente, além
dos procedimentos técnicos empregados na manipulação de um material harmônico
e melódico específico, também o discurso estético-ideológico do compositor base-
ado no normativismo do Realismo Socialista.

O Congresso de Praga
Lógica conseqüência das transformações estéticas ocorridas durante
os anos de transição, o ingresso de Santoro no movimento musical naciona-
lista está diretamente relacionado ao “II Congresso Internacional de Com-
positores e Críticos Musicais”, evento realizado em Praga, entre os dias 20
e 29 de maio de 1948. Se, por um lado, parte do material composicional
empregado em obras anteriores já antecipava alguns dos elementos que se
tornariam característicos nesta nova fase, por outro lado, a conversão esté-
tica definitiva somente viria a ocorrer após o evento, quando Santoro decide
pela completa adoção das orientações ali estabelecidas, fundamentadas nos
valores estéticos do Realismo Socialista.1 O trecho a seguir, extraído de sua
correspondência, é bastante revelador neste sentido.

1
Estabelecido pelo estado soviético como modelo oficial artístico, as premissas
estéticas do “Realismo Socialista” centravam-se na tese de que as artes deveriam
abordar suas temáticas sempre de forma otimista, glorificando as idéias políticas e
sociais do Partido Comunista. De acordo com os artigos lançados no Pravda, “a
única música aceitável e considerada digna para as classes trabalhadoras deveria
caracterizar-se por sua acessibilidade, melodiosidade (tunefulness), tradicionalismo
estilístico, otimismo e inspiração folclórica.”. MCKAY, Cory. http://www.music.mcgill.

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Na Europa, no Congresso de Praga, minha conferência é uma
condenação ao dodecafonismo, mas com alguma esperança em
sua técnica o que hoje chego a conclusões de inteiro abandono
da mesma. Assim como fui o primeiro brasileiro a adotar esta
técnica, quero ser também o primeiro a abandoná-lo. O grande
movimento na Europa atual é o novo Humanismo na arte. Quero
ser conseqüente com minhas idéias de fazer uma arte que con-
tenha os anseios de nosso povo. Para isto terei que falar a sua
linguagem para que seja entendido. (1948.ACS:3)2
Marxista convicto e filiado ao PCB, Santoro defenderia em seu artigo,
especialmente elaborado para o evento, Oú va la Musique? Le Problème du
Compositeur Contemporain dans sa Position Sociale (1948.ACS:1) a tese
de que a ortodoxia dodecafônica, prática adotada por inúmeros compositores
progressistas, correspondia a um “movimento extremista”, “própria dos pri-
meiros impulsos”. O momento, segundo afirma, era de se procurar dar conti-
nuidade ao desenvolvimento do atonalismo livre e evitar-se “certos exageros”
referentes à aplicação da técnica dos doze sons.
Acredito que as pesquisas e as experiências na técnica dos
doze sons são importantes, principalmente no que concerne
em auxiliar o desenvolvimento da forma. Porque, com a dilata-
ção da expressão, sua renovação para uma tendência pró-
atonalismo, portanto de abandono da tonalidade, entra-se em
crise. [...] daí a importância que dou ao princípio do
dodecafonismo que talvez possa satisfazer em parte as neces-
sidades exigidas por esta nova expressão. (1948.ACS:1)
Para sua surpresa, a defesa que empreendera do atonalismo como
reflexo de uma evolução social deflagrada pelo avanço do mundo socialista
sequer fora considerada. Tal como ficou estabelecido no Congresso, a pos-
tura estética de um compositor engajado na causa comunista estava direta-
mente condicionada à compreensão da arte pelo povo, o que pode ser ob-
servado nos discursos de Denis Bartha (1948.ACS:1) e Zofia Lissa
(1948.ACS:1), pesquisadores que defenderam, respectivamente, tanto a
necessidade da convivência “in loco” com os detentores da tradição musi-
cal folclórica, quanto o desenvolvimento de um gênero musical moderno,
mas de compreensão imediata.

2
A abreviatura ACS refere-se ao Arquivo Cláudio Santoro, coleção depositada no
Departamento de Música da Unb, contendo extensa e variada documentação pes-
soal do compositor. Os documentos citados neste trabalho estão classificados em
três segmentos: 1-artigos; 2-depoimentos; 3- Correspondência. Desta forma, a indi-
cação (1948. ACS:3) corresponderá, nas referencias bibliográficas, a uma corres-
pondência específica listada neste ano.

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Divulgação dos princípios
Encarregado pela seção plenária, de “realizar as idéias” contidas no
Manifesto de Praga, Santoro defenderia no artigo Problema da Música
Contemporânea Brasileira em Face das Resoluções e Apelo do Con-
gresso de Compositores de Praga (1948) a tese de que as dificuldades
enfrentadas pela música contemporânea não eram de ordem técnica, mas
sim, um problema de conteúdo, já que qualquer discussão técnica tornava-
se estéril diante do que foi realmente considerado premente naquele mo-
mento: “um trabalho que venha de encontro aos anseios da sociedade nova,
aos anseios da classe laboriosa, e que seja a expressão da verdadeira cultu-
ra popular, arte para todos, arte com raízes no povo e nas tradições nacio-
nais”(1948: 235)
O trecho a seguir expõe claramente a diferença entre seu ponto de
vista inicial, quando considerou o atonalismo o elemento principal da arte
revolucionária, e aquele que adotaria em seguida. Segundo Santoro, as obras
musicais modernas, verdadeiramente revolucionárias, deveriam basear-se,
não nas últimas manifestações artísticas decadentes da burguesia, mas nos
elementos oriundos daquela que era a verdadeira classe revolucionária: o
proletariado.
De fato, antes do advento do socialismo, o artista dava a im-
pressão de estar na frente e de impulsionar o desenvolvimen-
to da sociedade, porque o povo não estando no poder, êle
representava de fato a vanguarda. Mas hoje nos países soci-
alistas, o povo estando no poder, a classe revolucionária está
na frente; o artista que marcha ao lado do proletariado deve
estar na linha do progresso e não ao lado das tendências da
última fase da burguesia (1948:236).
Em Problemas da Música Contemporânea Brasileira e o Fato
Histórico Social (1948b.ACS:1), Santoro elabora, pela primeira vez, um
pequeno resumo das noções que no seu entender deveriam caracterizar a
arte musical da nova sociedade. Desta vez, aparecem lado a lado, além das
teses defendidas por Denis Bartha e Zófia Lissa, a exigência do “conteúdo
positivo”, qual seja, uma idéia temática exterior à obra, capaz de motivar o
compositor em determinada direção, provocando associações mentais pre-
viamente esperadas nos ouvintes.
Recapitulando teremos chegado a conclusão que são três os
problemas fundamentais: 1o) Creação de uma arte que não
sendo super-intelectualizada, também não deve ser
popularesca. Um gênero intermediário, com o fito de trazer as
massas a compreensão da arte em geral, e preparando outros-
sim, as bases de uma nova expressão musical, acabando com

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a diferença aos poucos entre arte popular e a chamada arte
erudita. 2o) Estudo aprofundado do folclore para dele tirar-
mos a técnica necessária à unidade da creação musical. 3o)
Conteúdo positivo baseado nos sentimentos elevados do
homem. (Novo humanismo) (1948b.ACS:1).

Desenvolvimento do novo estilo


Após a permanência de um ano em Paris, onde se dedicou, principal-
mente, ao estudo de regência orquestral, Santoro retornaria ao Brasil deci-
dido a abandonar definitivamente a função que ocupara como violinista da
Orquestra Sinfônica Brasileira. Entendendo que sua nova atuação no meio
musical brasileiro deveria estar à altura das habilidades recentemente ad-
quiridas, passa a pleitear o cargo de regente adjunto da OSB, além de co-
brar de Villa-Lobos a promessa que este lhe fizera de introduzi-lo nos qua-
dros do Conservatório Brasileiro.
Tendo sido-lhe recusadas ambas funções, decepcionado com o meio
musical brasileiro, Santoro decide arrendar a fazenda do sogro com o intuito
de ajuntar algum dinheiro para retornar o mais breve possível ao continente
europeu. A malfadada empreitada agropecuária estender-se-ia por todo ano
de 1949 e, já no início de 1950, estaria de volta à cidade do Rio de Janeiro
onde tenta retomar suas atividades musicais como violinista de estante. Ao
contrário do que se possa imaginar, o período em que esteve afastado do
meio musical gerenciando a fazenda no interior de São Paulo não foi dos
mais proveitosos no terreno da composição musical. As novas orientações
estéticas adotadas a partir do Congresso de Praga não se materializaram de
imediato, o que levou Santoro a considerar o ano de 1949 um período de
crise profunda.
De acordo com sugestões do compositor, em decorrência das trans-
formações estilísticas geradas pela procura por uma forma mais pessoal de
expressão, o período nacionalista estaria dividido em dois momentos bastan-
te diferenciados. Estendendo-se até meados da década de cinqüenta, o pri-
meiro momento corresponderia à etapa inicial de pesquisa, em que tenta
reconhecer e apreender um suposto idioma musical brasileiro, o qual, paula-
tinamente, a custa de muito esforço, procura incorporá-lo intencionalmente
à sua expressão pessoal. Uma vez vencida esta etapa, tratar-se-ia, em um
segundo momento, do alcance da universalidade através de uma transfigu-
ração pessoal de tudo o que foi assimilado na fase anterior. Para descrever
e caracterizar esta etapa, Santoro se vale de expressões: “sair da linguagem
mais direta, popular e folclórica”; romper “com a idéia de que a música

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brasileira deve ser enraizada no folclore”; ir “muito além dos limites nacio-
nais” e etc. As obras relacionadas na citação a seguir, todas compostas em
1955, evidenciam o início da segunda etapa por volta deste mesmo ano.
Compuz [...] uma nova Sonata para piano solo que os amigos
pianistas consideram uma obra de importância no terreno da
sonata brasileira por se colocar num plano internacional apezar
das características nacionais da obra sem cair nas eternas dan-
ças... Creio também que consegui nesta obra alguma cousa
nova neste sentido bem como o Quarteto N. 4 [...] Nestas duas
obras como já na Sinfonia N. 5 começo uma nova fase em que
os elementos nacionais deixam de ser intencionais para pas-
sar a uma transfiguração não somente pessoal como também
de plano superior e que se possa dizer isto é uma Sonata, que
pode ser colocada no plano internacional da creação contem-
porânea, mas deve ser de autor brasileiro. Esta penetração da
essência das nossas características de povo que se cristaliza
como cultura própria, creio é o ponto importante para nós
creadores e que devemos passar desta fase que foi necessária
de pesquiza para entrarmos no plano das idéias e do pensa-
mento creador mais profundo. (1956b.ACS:3)
Anos mais tarde, ao reavaliar o conjunto de sua produção nacionalista,
Santoro demonstraria claramente as profundas reservas que passou a ter
com as obras escritas durante os primeiros anos da fase nacionalista. Ao
afastar-se de sua espontânea escrita cromática, a forma como mais fluen-
temente se expressara até então, para dedicar-se à pesquisa e à assimila-
ção das constâncias da música brasileira, teria composto, segundo suas pa-
lavras, “obras muito ruins”. Somente após um longo período de adaptação,
teria elaborado estruturas mais sólidas. De acordo com sua avaliação, o
domínio deste novo estilo ocorrera de forma gradativa, o que, de certa for-
ma, teria interferido na qualidade de diversas obras.
Eu renego só aquilo que eu fiz de ruim, a minha música ruim.
As obras que eu considero ruins eu já quis destruí-las, [...] a
minha vontade era destruir cinqüenta por cento da minha pro-
dução, [...] eu acho que a minha fase nacionalista, [...] foi uma
fase importante na minha carreira, que me deu solidez de escri-
tura e provou a mim mesmo que eu era capaz de fazer uma
música tradicional também, não só a vanguarda. Não é de
todas as obras que eu considero importantes da minha fase
nacionalista. As primeiras obras, por exemplo, eu acho muito
ruins. A Sétima Sinfonia eu acho que é a obra do período
nacionalista mais importante em matéria de música sinfônica.
Depois dela a Sexta Sinfonia, é menor, que a idéia é um pouco
diferente; segue em caráter decrescente a Quinta e a Quarta
(1989.ACS:2).

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Melodias modais
No que concerne especificamente à elaboração melódica, em um pri-
meiro momento, Santoro tomará as escalas modais como o principal mate-
rial para a construção de grande parte de suas melodias nacionalistas, ainda
que o recurso aos elementos tonais, tanto diatônicos, quanto cromáticos,
também possam ser encontrados. Via de regra, é apresentada, no início da
obra, uma idéia temática claramente estabelecida, calcada em escalas modais
isentas de qualquer alteração cromática.

Exemplo 1 – melodia modal diatônica

Livre dos estereótipos harmônicos do sistema tonal clássico, tal como


a relação dominante-tônica gerada pelo emprego da sensível, as melodias
modais que predominaram neste período possibilitaram o emprego no acom-
panhamento de um vocabulário harmônico amplo, contendo, desde forma-
ções triádicas tradicionais, acrescidas ou não de dissonâncias variadas, até
as harmonias baseadas na superposição intervalar de quartas e quintas. A
simplicidade e maleabilidade tonal, uma das principais características destas
melodias, permitiu, por outro lado, o emprego de acordes inteiramente estra-
nhos ao centro tonal estabelecido.
Nos compassos inicias da Paulistana n. 5 (1953) são empregados na
harmonização da melodia baseada na escala mixolídia de ré, apenas quatro
acordes. Dois deles, o acorde de Fá# menor (3ª inversão) e o acorde de Si
bemol (c/ 7ª e 13ª), não pertencem à escala do modo empregado. Decorrem,
tão somente, da intenção de relacionar ao contexto da melodia modal entida-
des harmônicas distanciadas entre si e à escala modal empregada. Interessa
ao compositor incorporar ao ambiente modal um “colorido” harmônico inusi-
tado, cuja principal missão é ampliar as possibilidades expressivas da melodia.

Exemplo 2 – Harmonização c/ acordes estranhos ao modo

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Exemplo 3 – Escala modal e acordes alterados

Ainda que tal procedimento esteja presente na obra de um grande


número de compositores da primeira metade do século XX, é lícito lembrar
que foi justamente Bela Bartók, um dos três principais modelos referenciais
estilísticos de Santoro neste período,3 o primeiro compositor a discutir mais
profundamente o aproveitamento do material modal oriundo da música po-
pular-folclórica na música culta. A técnica de harmonização, tantas vezes
utilizada por Santoro neste período, aparece descrita detalhadamente por
Bartók(1985) em um dos seus inúmeros artigos sobre música popular.
Tomemos como exemplo uma melodia desenvolvida somente
sobre dois graus sucessivos. Percebe-se, claramente, que es-
tes dois graus constrangem muito menos a invenção do acom-
panhamento, em comparação, ao que poderia obrigar, por exem-
plo, uma melodia sobre quatro graus. Além disso, nas melodi-
as primitivas, não há referencia alguma a uma concatenação
estereotipada de tríades. Este fato negativo não significa mais
do que a ausência de certas sujeições, e então, pelo contrário,
uma grande liberdade de movimento: naturalmente, para quem
saiba mover-se. Assim, esta liberdade permite dar vida às me-
lodias nos modos mais diversos e ainda recorrendo aos acor-
des das tonalidades mais distantes (Bartók 1985:93).

Melodias tonais diatônicas


Mais raras do que as anteriores, as melodias tonais neste período apa-
recem nas obras mais variadas e, de um modo geral, podem ser separadas
em duas vertentes. A primeira se assemelha às melodias das canções popu-
lares urbanas mais sofisticadas das décadas de cinqüenta e sessenta. Na
obra de Santoro, tal tendência pode ser observada nas diversas canções
compostas durante o período e em peças para piano de curta duração. As
do segundo grupo seguem o padrão estilístico das melodias modais e
correspondem ao esforço do compositor em desenvolver um estilo pessoal

3
Além da obra e das idéias de Béla Bartók, Santoro cita, por diversas vezes, a impor-
tância, em seu desenvolvimento, das teorias composicionais e acústicas de Hindemith.
Quanto à música brasileira, aparecem em destaque Villa-lobos e C. Guarnieri.
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calcado no que classificava como as “substancias melódicas básicas” da
música folclórica.
No exemplo a seguir, extraído do Prelúdio no. 2 (2ª Série) (1957), o
primeiro modelo de melodia tonal aparece harmonizado com acordes do II e
V graus da escala de Lá bemol Maior, modulando, a partir do oitavo compas-
so, para a subdominante através da conversão do V grau de Lá bemol em II
grau da nova tonalidade. A cadencia harmônica V-I em Ré bemol, nos dois
últimos compassos do trecho, confirma a modulação para esta tonalidade.

Exemplo 4 – melodia tonal c/ estereótipos harmônicos

Tanto a forma do encadeamento, quanto o conteúdo dos acordes em-


pregados, correspondem às estruturas estereotipadas que ocorrem predo-
minantemente na canção popular urbana, a provável referencia de Santoro
nestes prelúdios. Corrobora esta observação, o fato deste prelúdio, em sua
versão para canto e piano, integrar um ciclo de canções cujos textos foram
fornecidos pelo poeta Vinícius de Moraes, figura proeminente no movimen-
to musical da bossa-nova.
Na Paulistana no.1 (1953) temos o exemplo da outra tendência men-
cionada acima. Com suas figuras rítmicas sincopadas e o movimento des-
cendente por graus conjuntos cadenciando na mediante, algumas das princi-
pais características da música folclórica nacional, tal como aponta Mário de
Andrade (1972), a melodia é ambientada com acordes em posição aberta,
baseados na superposição dos intervalos de quintas justas. Somado a isto,
ainda que a melodia permaneça centrada sobre Ré bemol maior, em mo-
mento algum, o compositor faz uso da função da dominante, o que seria de
fundamental importância para o estabelecimento do tradicional arcabouço
harmônico do tonalismo.
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Exemplo 5 – Melodia tonal c/ constâncias nacionalistas

A insistência durante os 26 compassos da peça, sobre os acordes do I,


IV, VI e II graus provoca, no ouvinte, a impressão de tratar-se exclusiva-
mente de material melódico modal. A importância concedida ao acorde do
IV grau (sol bemol) faz com que ouçamos este acorde como uma tônica
estabelecida sobre o modo lídio. Por tratar-se de uma melodia em que se
procura trazer à tona a suposta atmosfera da música folclórica, a ambientação
harmônica, isenta da relação dominante-tônica, se concentra justamente sobre
aquelas funções harmônicas que, por si só, são incapazes de estabelecer
uma estrutura harmônica desprovida de ambigüidades tonais.

Melodias tonais cromáticas


Uma vez vencida a etapa que classificou como “intencional”, ou seja,
o período marcado pela busca deliberada da “essência” musical brasileira,
Santoro passaria a investir em um modelo melódico mais flexível, não mais
baseado em escalas diatônicas tonais ou modais, mas, voltado para as pos-
sibilidades mais amplas da gama cromática. Neste caso, observa-se o em-
prego do cromatismo como forma de se evitar a monotonia e as trivialidades
geradas pelo emprego abusivo de escalas diatônicas. Outra característica
diferenciadora e complementar é a permanência das figurações rítmicas
sincopadas assegurando o caráter nacionalista das melodias deste período.
Nos compassos iniciais da Sonata no.3 p/ Piano (1955), o motivo
melódico estabelecido no primeiro compasso será imediatamente repetido
por mais duas vezes. Na última repetição (comp. 3), momento em que al-
cança seu conteúdo integral, forma-se um conjunto diatônico de quatro no-
tas, oriundo do ciclo das quintas (sib, mib, láb, réb), o qual se estabelecerá
como um verdadeiro eixo tonal de maior estabilidade, acomodando, no inte-
rior de suas relações, o cromatismo que complementa o motivo.
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Exemplo 6 – Cromatismo melódico

Exemplo 7 – Eixo tonal diatônico/ inserção cromática.

Nos compassos seguintes, o mesmo eixo tonal se manterá atuante, en-


quanto a expansão do cromatismo resultará no emprego de 11 dentre os doze
semitons. Ainda que a passagem esteja firmemente centrada em mi bemol, as
constantes alterações aplicadas em alguns graus da escala (2º, 3º,6º) impedem
que se estabeleça a exata definição da variante modal empregada.

Ostinatos
Disseminados por toda sua produção nacionalista, os motivos de acom-
panhamento em forma de ostinato cumprem em Santoro, nada mais do que
sua função tradicional: propiciar o “fundo harmônico” e a “atmosfera” pro-
pícia à sobreposição de outras tantas idéias. Em virtude da repetição obsti-
nada da entidade harmônica inequivocamente estabelecida, o núcleo tonal
ali formado determinará a funcionalidade de todo e qualquer elemento cro-
mático sobreposto àquele contexto. Em geral, os ostinatos de Santoro es-
tão elaborados em torno de uma figura rítmica bastante pronunciada, com
seu conteúdo variando entre, uma nota pedal, um acorde ressonante, ou a
combinação de dois ou mais acordes.

Exemplo 8 – Ostinatos característicos

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Na Sonata IV p/ Violino e Piano (1951), este efeito pode ser obser-
vado na medida em que o ostinato do acompanhamento, criado a partir de
um fragmento da escala lídia de Ré bemol,4 propicia a estabilidade necessá-
ria ao emprego funcional de toda a escala cromática. Quatro das cinco
notas que compõem o ostinato serão empregadas na melodia como pontos
de convergência e repouso de todo o movimento cromático contido em cada
um dos segmentos demarcados: (a)sib, (b)fá, (c)sol, (d)láb.

Exemplo 9 – Ostinato harmônico e cromatismo melódico

Intercâmbio modal
O intercâmbio modal também aparece como uma das técnicas
freqüentemente empregadas por Santoro neste período. Definido por
Persichetti (1985) como uma troca de modos, sem que o centro tonal seja
alterado, esta técnica é geralmente praticada por Santoro em sobreposição
às figuras de ostinato, uma vez que tais figurações tem como uma de suas

4
Podemos compreender o acorde do ostinato como derivado da escala lídia de réb:
(réb, mib, fá, sol, láb, sib, dó). Cinco destas notas serão empregadas no acorde, o
qual, poderá ser catalogado como uma tríade de réb com 6ª e 11ª+ acrescentadas.

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principais missões o estabelecimento de um pólo tonal estável que, de um
modo geral, acolherá as variações impostas à linha melódica.
Na entrada do Allegro da Sinfonia Brasília, o ostinato, composto
pela articulação rítmica irregular da nota mi, assegurará a permanência do
centro tonal em torno deste pólo, enquanto se observa, na melodia, o
intercambio dos modos frígio e mixolídio.

Exemplo 10 – Ostinato e intercâmbio modal

Cromatismo polimodal
No exemplo a seguir, na verdade, uma derivação da técnica descrita
no item anterior, temos uma aplicação literal de um dos procedimentos
composicionais discutido detalhadamente por Bartok em suas “Conferênci-
as de Harvard”.5 Servindo-se da expressão “cromatismo polimodal”, Bartok
descreverá o procedimento em que diversas, ou até mesmo, todas as notas
da gama cromática, podem ser empregadas igualmente em um único trecho
como conseqüência da utilização simultânea de modos diferentes baseados
em uma mesma fundamental. Trata-se, de acordo com sua avaliação, de
uma manipulação do cromatismo inteiramente diferenciada da prática se-
melhante dos períodos estéticos anteriores.
Obtemos como resultado da superposição de um pentacorde
lídio e um frígio sobre uma nota fundamental comum, um
pentacorde diatônico, preenchido por todos os graus altera-
dos em sustenidos e bemóis. Entretanto, estes graus aparen-
temente cromáticos em sustenidos e bemóis são, em suas fun-
ções, totalmente diferentes dos graus dos acordes alterados
dos estilos cromáticos dos períodos anteriores. Uma nota cro-

5
As “Conferencias de Harvard” (Harvard Lectures) aparecem no livro editado por
Suchoff Bela Bartok Essays. 1992 - University of Nebraska Press

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maticamente alterada de um acorde está em relação direta com
sua forma não-alterada; trata-se de uma transição conduzindo
à nota respectiva do acorde seguinte. Em nosso cromatismo
polimodal, entretanto, os sustenidos e bemóis não são de for-
ma alguma tomados como graus alterados; são ingredientes
de uma escala modal diatônica. [Bartók: “The New Hungarian
Art Music. 1942-43] Apud: (Vinton. 1966:239)
Nos compassos iniciais da Sinfonia no.7 Brasília (1959/60), obser-
va-se a inserção das notas cromáticas dó#, ré# e sol#, claramente assenta-
das sobre a escala dórica de lá. ao final de cada uma das semi-frases.
Como síntese final, obter-se-á um total de dez notas da gama cromática
como resultado da fusão dos modos dórico e lídio baseados em lá.

Exemplo 11 – Melodia modal policromática

Exemplo 12 – Policromatismo: modos dórico/lídio

Paralelismo
No que tange ao emprego específico de técnicas polifônicas, é certo
que a música nacionalista de Santoro não prima por esta característica, o
que não implica dizer que não ocorram linhas melódicas em contraponto.
De um modo geral, a textura polifônica aparece em um número reduzido de
obras em trechos muito curtos e delimitados. Tal constatação já havia sido
apontada por Nadia Boulanger (1960:3, ACS) quando Santoro, novamente
interessado pelos conselhos de sua ex-orientadora, envia-lhe algumas de
suas últimas produções a fim de que a mesma pudesse avaliar a qualidade
destas obras. Ainda que acentuasse a “força vital’ e a “poesia particular”
das obras nacionalistas, Boulanger não deixou de verificar, por outro lado, o
“excesso de paralelismo” e a “ausência de polifonia”.

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A movimentação paralela de vozes constituiu-se, neste período, um
dos principais recursos encontrados por Santoro para a elaboração de um
acompanhamento livre das amarras da harmonia funcional. Neste caso, o
interesse do compositor volta-se muito mais para o “colorido” sonoro, pro-
veniente das propriedades físicas do intervalo empregado, do que para o seu
grau de tensão específico. Quanto aos acordes resultantes, aqui entendidos
como conseqüência do movimento da linha do acompanhamento, estes não
mais serão percebidos em função de seu significado funcional harmônico.
Em resumo, trata-se de uma técnica de harmonização muito mais vinculada
a princípios horizontais do que verticais.
Nas três passagens a seguir,6 o paralelismo do acompanhamento é
colocado em prática de distintas formas, cada uma explorando o “colorido”
particular de um intervalo. Enquanto, nos dois primeiro exemplos, valoriza-
se a terça maior e a quarta justa respectivamente, no exemplo seguinte, o
intervalo de sétima menor, localizado entre as vozes de baixo e tenor, se
mantém rigorosamente paralelo. Nesta passagem, cabe à voz de contralto
executar as alterações necessárias ao ajustamento da harmonia e melodia.

Exemplo 13 – Paralelismo em terças.

Exemplo 14 – Paralelismo em quartas justas

6
Ex.13 - Sinfonia No.7, I/17-26. (1959-60), Ex. 14 - Sonata (Fantasia)No.4, p/ Piano.
I/17-24.(1957), ex. 15 - Sonata (Fantasia) No.4 p/ Piano. I/161-165. (1957).
142 Ictus 08-2
Exemplo 15 – Paralelismo em sétimas menores

“Two-voice framework”
De textura predominantemente homofônica, o período nacionalista de
Santoro tem como uma de suas principais características o acompanha-
mento harmônico realizado a partir de um amplo vocabulário de acordes.
Percebe-se, no entanto, que o controle da continuidade lógica das seqüênci-
as harmônicas é efetuado, menos pelo conteúdo interno e vertical de cada
acorde, do que pelas variações de tensão geradas pela movimentação hori-
zontal da voz do baixo. Na medida em que, pela elevação do grau de densi-
dade, os acordes tornam-se gradativamente mais instáveis e indefinidos, a
determinação de seu significado estrutural parece subordinar-se diretamen-
te à forma como a voz mais grave é conduzida. Por sua vez, as vozes
centrais exercerão pouca influência no estabelecimento da funcionalidade,
já que o conteúdo interno dos acordes está mais diretamente relacionado à
variação da densidade textural.
Segundo podemos supor, este aspecto em particular da técnica de
harmonização de Santoro está diretamente relacionado ao princípio denomi-
nado Two-voice framework, demonstrado por Hindemith (1945) em seu
método de análise e composição musical. Segundo o compositor alemão, o
desenvolvimento harmônico tende a ocorrer no interior de uma moldura
espacial (spatial frame), formada pela voz do baixo e pela voz superior mais
importante. Considerando que estas duas vozes são determinantes no esta-
belecimento da clareza e inteligibilidade de qualquer obra, para Hindemith,
seria de se esperar que formassem, entre si, uma peça independente à duas
vozes, de escrita clara e equilibrada, não necessitando de mais nada para
completá-la. Quanto às vozes centrais, tal como já observamos em Santoro,
dirá o compositor alemão:
A progressão da moldura à duas vozes (two-voice framework)
é inteiramente independente das outras notas do acorde. Na
verdade, as vozes internas pertencem ao quadro tonal, tanto
quanto as vozes externas, mas influenciam estas últimas, tan-
to quanto o baço ou o fígado influenciam a aparência externa
do homem. [....] O caminho de um acorde no espaço é afetado

Ictus 08-2 143


muito pouco pelas notas internas; sua forma é determinada
mais pela progressão melódica presente na moldura à duas
vozes. (Hindemith1945:114)
Temos no Prelúdio no. 10, (2ª série) (1957), um possível exemplo das
duas principais formas de movimentação da voz do baixo na música naciona-
lista de Santoro: (1) intervalos de quarta ou quinta justas; (2) intervalos por
grau conjuntos, ou terças maiores, ou menores. Enquanto a primeira
corresponderá à sensação de permanência, estabilização e conclusão, a se-
gunda será utilizada com o intuito de remeter o ouvinte à idéia de flutuação e
continuidade.

Exemplo 16 – Movimento do baixo: estabilização/flutuação harmônica.

Exemplo 17 – Esqueleto harmônico

Exemplo 18 – Material melódico.

Do primeiro ao quarto compasso, o movimento do baixo está baseado tão


somente no intervalo de quarta justa, em que são articuladas as funções de
dominante e tônica. Enquanto a melodia permanece fixa delineando um possível
modo dórico em mi bemol, a harmonia, baseada no movimento de quarta justa
no baixo, restringe-se aos acordes do V e I graus, ainda que ambos alterados: o
144 Ictus 08-2
acorde da dominante aparece sem a sua terça (ré bequadro), enquanto o acorde
da tônica é transformado em uma dominante com 9ª aumentada.
No quinto compasso, a estabilidade verificada anteriormente se des-
faz na medida em que o baixo passa a se movimentar pelos intervalos de
grau conjunto e terça. Neste momento, enquanto a melodia se afasta da
tonalidade principal, a harmonia terminará por dirigir-se à dominante, sem
antes transitar pelo acorde do II grau de Mi bemol. Tal como se observa no
esquema reduzido, enquanto o segundo grau é alcançado por um acorde
estranho à tonalidade, através de um movimento por grau conjunto no baixo,
um acorde igualmente distante do ponto de vista tonal fará a mediação entre
o II e V graus através dos intervalos de terça maior e menor. Finalmente, no
compasso seis, será restabelecido o movimento de quartas no baixo, suge-
rindo, uma cadencia conclusiva através das funções de dominante e tônica.

Resumo
O período nacionalista de Santoro deve ser compreendido como o
momento em que os anseios estéticos e ideológicos, manifestados durante o
período de transição, se materializam em sua forma definitiva. Neste per-
curso histórico, a participação do compositor no “II Congresso Internacio-
nal de Compositores e Críticos Musicais” atuou como um estimulo
determinante em sua aproximação dos princípios estéticos do nacionalismo
musical abrigados sob a bandeira do realismo socialista. Durante o evento,
dá-se a substituição da tese do atonalismo, como reflexo de uma evolução
social deflagrada pelo avanço do socialismo, pela crença de que a postura
estética do compositor engajado na causa comunista fundamentava-se na
compreensão da arte pelo povo.
Durante os primeiros anos da fase nacionalista, momento de adequa-
ção às novas diretrizes estéticas, Santoro ocupar-se-ia do desenvolvimento
de uma forma de expressão compatível com os novos ideais. Desta forma,
no que se refere à elaboração melódica, durante toda a primeira metade de
sua década nacionalista, procuraria corresponder, da forma mais clara e
direta possível, às expectativas estéticas estabelecidas em Praga. Neste
primeiro momento, ao qual se referia como o período marcado pela busca
deliberada da “essência” musical brasileira, observamos a elaboração de
obras através do emprego de um material mais simples e de fácil assimila-
ção, tal como as melodias modais ou tonais desprovidas de alteração.
Por volta da segunda metade da década, período em que afirma ter
alcançado a elaboração de obras verdadeiramente convincentes, Santoro

Ictus 08-2 145


iniciaria um novo processo de transformações estilísticas, no qual, segundo
o compositor, os elementos nacionais, já transfigurados, ascenderiam ao plano
internacional da criação contemporânea. Convencido de que os resultados
alcançados na primeira fase teriam deixado à desejar do ponto de vista
estético, Santoro passaria a investir em um modelo melódico mais comple-
xo, não mais baseado em escalas diatônicas tonais ou modais mas, voltado
para as possibilidades mais amplas da gama cromática, em que observare-
mos o emprego de técnicas específicas como o intercâmbio modal e o
cromatismo polimodal.
O presente trabalho não se propõe a abarcar tudo o quanto o compo-
sitor tenha levado a cabo em seu período nacionalista. Esta tarefa exigiria
uma pesquisa muito mais detalhada e específica, o que, de forma alguma, se
enquadra em nossos propósitos. Através da análise do contexto histórico e
dos procedimentos técnicos mais significativos, em razão da freqüência com
que ocorrem na obras do período, nos limitamos unicamente à descrição do
que seriam as principais características de um suposto idioma nacionalista
deste compositor.

146 Ictus 08-2


Referências bibliográficas

Andrade, Mário de. 1972. Ensaio sobre a música brasileira. São Paulo:
Livraria Martins/INL

Bártok, Bela. 1985. “La Influencia de la Música Campesina sobre la Músi-


ca Culta Moderna”. In Escritos sobre música popular. Mexico, DF:
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Hindemith, Paul. 1945. Craft of Musical Composition. London: Schott.

Mckay, Cory. Political influences on the music of Shostakovich.Ontário,


Canadá:University of Guelph. Departments of Music and Computer
Science. Disponível em <http://www.music.mcgill>.

Persichetti, Vincent. 1985.Armonia del Siglo XX. Madrid: Real Musical.

Santoro. Cláudio. 1948. “Problema da Música Contemporânea Brasileira


em Face das Resoluções e Apelo do Congresso de Praga”. Funda-
mentos 2. São Paulo: 233-240 (agosto)

Vinton, John. 1966. “Bartók on His Own Music” Journal of the American
Musicological Society 19: 232-243 (Summer)

“Arquivo Cláudio Santoro”


1-Artigos:

Bartha, Denis. 1948. L’Influence de la Musique Populaire sur la Musique.

Santoro, Cláudio.1948a. Oú va la Musique? “Le Problème du Compositeur


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Zofia, Lissa. 1948. Les Fonctions Sociales de la Musique Artistique et


Populaire.

Ictus 08-2 147


2- Depoimentos e entrevistas:

Santoro, Cláudio. 1989. Depoimento concedido ao MIS. São Paulo, 22 ago.

3- Correspondência:

Boulanger, Nádia.1960. Correspondência a Cláudio Santoro. (28/09/1960)

Santoro, Cláudio.1948. Correspondência a Vasco Mariz: (25/10/1948)

_________. 1956a. Correspondência à David Appleby. (7/05/56)

_________. 1956b.Correspondência a Curt Lange. (20/11/56)

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