Tge.4.7. KANT. A Liberdade, o Individuo e A Republica

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 12

C onta-se que as donas de casa de Kõnigsberg, na Prússia, acerta-

vam seus relógios pela passagem de Kant pelas ruas. Verdade


ou não, a anedota descreve o homem. Em sua longa vida, Kant
jamais quebrou a rotina do seu trabalho como professor da univer-
sidade local, e jamais afastou-se da sua pequena cidade, onde nas-
ceu em 1724 e onde morreu, solteiro, aos 79 anos.
Não há, pois, muito o que dizer sobre a vida do filósofo. Cos-
tuma-se fazer referência à sua origem modesta - seu pai era seleiro
- e ao ambiente de tranqüila austeridade e disciplina do protestan-
tismo pietista, no qual foi educado. Desde cedo aprendeu a desde-
nhar a dogmática religiosa e a cultivar a integridade pessoal como
norma suprema de conduta. É bem possível que esses primeiros
anos tenham-no influenciado na vida e na obra. Sua vida foi regrada
e uniforme. Sua filosofia moral é uma celebração da dignidade indi-
vidual.
O contraste entre a vida tranqüila de Kant convulsões da
história européia em seu tempo permite-nos vislumbrar as condi-
ções de trabalho dos intelectuais sob o absolutismo ilustrado. No
longo reinado de Frederico, o Grande, morto em 1786, a Prússia
conheceu um período de prosperidade e modernização administra-
tiva. Nesse quadro, e sob a vigilância do príncipe, floresceu a vida
intelectual e protegeu-se a universidade. Segundo o próprio Kant,
50 OS CLÁSSICOS DA POLÍTICA KANT: A LIBERDADE, O INDIVÍDUO E A REPÚBLICA 51

tal era o lema de Frederico 11 no trato com os cidadãos letrados: "Ra- causa", por exemplo, não pode ser provado (embora possa ser con-
ciocinem quando quiserem e sobre o que quiserem, mas obedeçam". firmado) pela experiência; mas, sem ele, a experiência da natureza,
Kant foi um espectador atento e emocionado do grande drama e portanto a ciência da física, seria impossível. Da mesma forma,
revolucionário europeu. A Revolução Francesa entusiasmou-o; a a metafísica da moral estabelece que, embora não seja possível pro-
decapitação de Luís XVI encheu-o de horror. Seus escritos, rigoro- var que o ser humano, enquanto ser racional, é livre, sem a idéia
sos e sistemáticos, sobre as condições de inteligibilidade do mundo de liberdade, a experiência e o conhecimento do mundo moral
e da vida moral, refletem, no espírito e tantas vezes na letra, os desa- impossíveis (cf. GMM, p. 115).
fios imensos de sua época: dar forma racional a um novo mundo A metafísica da moral, como filosofia moral pura, é dividida
nascente das entranhas da Europa milenar; contrapor às incertezas em duas partes. A primeira diz respeito à justiça; a segunda, à vir-
da nova Europa plebéia, individualista, leiga, e contudo irreversível, tude. Ambas tratam das leis da liberdade, por oposição às leis da
algumas certezas de razão capazes de restabelecer, ao menos no pen- natureza; mas a moralidade pelo tipo de
samento, a sociabilidade dilacerada e a paz entre as nações. motivo pelo qual normas são cumpridas. A mera conformidade
Kant não era um aristocrata, nem um revolucionário; não da ação à norma caracteriza a legalidade; para que a ação seja
teve participação política de qualquer tipo. Era um scholar. Sua moral, é preciso que a ação se realize pelo dever. As leis jurídicas
reputação intelectual era enorme. Sabe-se, por testemunho de seus
são externas ao indivíduo, e podem coagi-lo ao seu cumprimento.
alunos, que suas aulas eram eruditas e vivas. A seus cursos acorriam
As leis morais, tornando obrigatórias certas ações, fazem ao mesmo
pessoas de toda Alemanha. Suas principais obras, em particular
tempo da obrigação o móbil do seu cumprimento (cf. MEl, p. 19;
suas três grandes Críticas - da Razão pura, da Razão prática e
Terra, passim).
do Juizo - são obras da maturidade. Elas foram publicadas em
O binômio interioridadelexterioridade, próprio do jusnatura-
1787, 1788 e 1790, respectivamente, entre os seus sessenta e setenta
lismo e da ilustração implica, no plano político, a delimitação do
anos, Costumava queixar-se da brevidade da vida; temia faltar-lhe
tempo para completar sua obra. Em todo caso, a julgar pelo lugar poder público e a afirmação vigorosa do indivíduo face a ele. Trata-
que ocupa na hierarquia dos grandes 'pensadores, sua vida foi exem- se de eliminar do pensamento jurídico a exigência de conformidade
plarmente produtiva. interna às leis do Estado, e de definir a esfera inviolável da consciên-
cia individual (cf. Bobbio, 1984, p. 57-8). "A chave da filosofia
moral e política de Kant", escreveu um comentador, "é a sua con-
cepção da dignidade do indivíduo" (cf. Ladd, p. IX). A dignidade
A filosofia da moral O conhecimento racional, diz (valor intrínseco, sem equivalente ou preço) do homem está em que,
e a dignidade do indivíduo Kant, versa sobre objetos ou como ser racional, não obedece senão às leis que ele próprio estabe-
sobre suas próprias leis. Há leceu. O homem "é fim de si mesmo" (cf. GMM, p. 102). Tal é o
dois gêneros de objetos: a natureza, que é o objeto da física, e a fundamento do seu direito inato à liberdade, e de todos os demais
liberdade, que é o objeto da filosofia moral ou ética. O conheci- direitos políticos, bem como, em última análise, dos imperativos
mento das leis da própria razão, por sua vez, constitui a lógica; morais da república e da paz.
esse conhecimento é puramente formal, isto é, independente da expe- Toda a filosofia kantiana do direito, da política e da história
riência. A física e a ética lidam com o mundo objetivo. Mas o conhe- repousa sobre essa concepção dos homens como seres morais: eles
cimento empírico nesses dois grandes ramos da filosofia tem seu devem organizar-se segundo o direito, adotar a forma republicana
fundamento em corpos de princípios puros, que a razão de governo e estabelecer a paz internacional, porque tais são coman-
previamente a qualquer experiência; esses princípios, definidos a dos a priori da razão, e não porque sejam úteis. Cabe, portanto,
priori, são a condição de possibilidade de qualquer experiência neste ponto, uma breve referência à doutrina do imperativo categó-
racional (cf. GMM. p. 55). A ciência desses principios Kant - . rico, que é a pedra angular de todo o edifício da filosofia moral
mina metafisica. O princípio segundo o qual "todo evento tem uma de Kant.
52 OS CLÁSSICOS DA POLfTI CA
KANT: A LIBERDADE . O INDIViDUO E A REPÚBLICA 53

o imperativo A norma moral tem a forma de um imperativo já esboçado antes sobre a dignidade do indivíduo . Se o agente racio-
categórico categórico. O comando nela contido assinala a nal é verdadeiramente um fim em si mesmo, ele deve ser o autor
relação entre um dever ser que a razão define das leis que observa, e é isso que constitui seu supremo valor (cf.
objetivamente e os móveis humanos, os quais, por sua constituição GMM, p. 98; Paton, p. 34-5). Ora, obedecer às suas próprias leis
subjetiva, não conduzem necessariamente à realização daquela fina- é ser livre. Segue-se um pequeno resumo da doutrina kantiana de
lidade moral. O comando moral é categórico porque as ações a ele liberdade.
conformes são objetivamente necessárias, independentemente da
sua finalidade material ou substantiva particular. Nisso reside sua
diferença com respeito aos imperativos hipotéticos, que definem a Antes, porém, cabe um breve comentário sobre o contexto
necessidade de uma certa ação para a consecução de um objetivo polêmico dessa doutrina. Kant opõe-se explicitamente ao utilitarismo
desejado pelo indivíduo (cf. GMM, p. 81-2). A necessidade objetiva como doutrina moral em que as leis reguladoras do comportamento
do comando categórico faz referência a que o dever moral vale são instrumentais com respeito valores materiais das ações
para todos os homens enquanto seres racionais; o móbil, ou princí- humanas, ou com respeito ao objetivo universal de "felicidade".
pio subjetivo da ação, que pode variar segundo a situação ou o indi- Se os valores são associados às inclinações subjetivas, sustenta
víduo, não determina o valor moral da ação. A conduta moral, por- Kant, ainda que sob a forma genérica de "felicidade", eles não são
tanto, é vinculada a uma norma universal. O critério para a defini- (por isso mesmo) definidos pela razão, e, se os homens deixam-se
ção da boa conduta é formal: a moralidade da ação consiste preci- orientar por eles, não são livres. Só a conduta racionalmente fun-
samente na sua universalidade segundo a razão (que implica a dese- dada é compatível com a dignidade humana (cf. Murphy, p. 38-40
jabilidade da sua universalização). A matéria e a forma do comando e 44). Além disso, a moral utilitarista é incompatível com a justiça
se interpenetram: 'o móbil é a própria desejabilidade de universaliza- (sobre a qual falará abaixo) . A definição empírica, e portanto
ção (cf. Paton, p. 52; GMM, p. 136-7).- Essa interpenetração se arbitrária, do que seja bom ou mau para os homens, leva a uma
deve a que as ações humanas têm sempre conteúdos substantivos. situação em que aqueles que têm o poder de impor tal definição
Assim se compreende a fórmula kantiana da Lei Universal, ou impe- oprimem os que dela discordam . Compreende-se também que, defi- ,I
rativo categórico: "Aja sempre em conformidade com o princípio nido o que é "bom" e o que é "mau" por aqueles que têm o poder ]'1

de fazê-lo, tudo o mais, e em particular a ordem jurídica, torna-se I


subjetivo, tal que, para você, ele deva ao mesmo tempo transfor-
mar-se em lei universal" (cf. GMM, p. 88). instrumento dos valores adotados. Ora, a constituição jurídica,
Os motivos materiais de nossas ações serão, pois, aceitos ou como veremos, é ela mesma um imperativo moral, e portanto um
rejeitados segundo possamos ou não desejar que se constituam em valor em si.
leis internamente vinculantes . O imperativo "não mentirás", por
exemplo, não deve ser obedecido em razão das conseqüências do
seu cumprimento - pode-se, aliás, imaginar situações em que seja
vantajoso mentir - mas porque não poderíamos racionalmente A liberdade externa A liberdade, em Kant, é a liberdade
desejar que a mentira, e não a verdade, se transformasse em norma e -a autonomia de agir segundo leis. As leis descrevem
geral de conduta. relações de causa e efeito. Portanto
os homens são livres quando causados a agir. Como se resolve o
A fórmula geral de moralidade enunciada acima não decorre
aparente paradoxo? Nos seres racionais a causa das ações é o seu
da observação empírica da natureza humana; ela é um enunciado
próprio arbítrio (por oposição ao mero desejo ou inclinação que
a priori da razão. Dela se deduz uma outra idéia: a de que, sendo
não são objetos de escolha). Num primeiro sentido, portanto, a
universais, as normas morais que nos conduzem são elaboradas por
liberdade é a ausência de determinações externas do comportamento.
nós mesmos enquanto seres racionais. Ou seja: a humanidade, e Esse é o conceito negativo de liberdade. Daí decorre uma definição.
cada um de nós, é um fim em si mesmo. Retoma-se o argumento "mais rica e mais fértil". Se as ações são causadas, obedecem a
54 OS CLÁSSICOS DA POLlTICA A o O
leis (que são "as condições limitantes da liberdade de ação") (cf. e inclinações que impedem a adequação da conduta aos comandos
GMM, p. 98 e 114). A liberdade da vontade não é determinada por da razão; a liberdade jurídica consiste em não ser impedido externa-
leis da natureza; mas nem por isso escapam ao império de um certo mente de exercer seu próprio arbítrio.
tipo de leis. Se assim não fosse, as ações humanas seriam não-causa- Como não podia deixar de ser, Kant não está interessado no
das, e o conceito de "liberdade da vontade" seria contraditório con- direito positivo, mas na idéia, ou no conceito universal a priori do
sigo mesmo. A liberdade tem leis; e se essas leis não são externa- direito. O objeto da reflexão são as relações interpessoais, ou a socia-
mente impostas, só podem ser auto-impostas. Esse é o conceito posi- bilidade. A questão é esta: qual é o princípio da legislação que
tivo de liberdade; ele designa a liberdade como autonomia, ou a ordena as relações interpessoais segundo a justiça? Se a justiça é o
propriedade dos seres racionais de legislarem para si próprios. A "conjunto das condições sob as quais o arbítrio de um pode ser
legislação racional é por sua própria natureza uma legislação univer- unido ao arbítrio de outro segundo uma lei universal de liberdade",
sal. Ora, as leis universais são as leis morais (cf. Acton, p. 45-6; o princípio, ou a " lei universal do direito", é o seguinte: "Age exter-
GMM, p. 114). Liberdade e moralidade e - antecipando as proje- namente de tal maneira que o livre uso de teu arbítrio possa coexis- l]
,

ções dessa vinculação conceitual - política e universalidade são tir com a liberdade de cada um segundo uma lei universal" (cf.
indissociáveis. MEl, p. 34-5). A relação jurídica diz respeito, antes de mais nada,
,.
ii ! As observações feitas até aqui tratam, ainda que de modo à relação externa com o outro . Essa relação envolve dois sujeitos
sumário, dos fundamentos da filosofia moral de Kant, e introduzem capazes e responsáveis, cujas pretensões sobre um objeto devem ser
o exame da sua doutrina do direito. Esse exame, por sua vez, é juridicamente coordenadas. O móbil da ação de cada é a preten-
indispensável para a compreensão do conceito kantiano da transi- são externamente manifestada; no ato jurídico, não interessa saber
ção do estado de natureza à sociedade civil. qual é a pretensão interna de cada um. Enfim, declaradas as preten-
sões, a justiça da transação não se avalia pelos benefícios que cada
um tira dela. Não tem sentido, por exemplo, dizer que tal operação
de compra e venda "foi injusta porque o preço foi muito alto". O
A doutrina Normalmente, o direito é "o corpo daquelas leis que importa é a forma do ato jurídico: a conformidade a uma norma
do direito susceptíveis de tornar-se externas, isto é, externa- que se aplica a todos, e cujo princípio (ou juridicidade) está em garan-
mente promulgadas" (cf. MEl, p. 33). Toda e tir aos dois contratantes o livre uso dos seus arbítrios (cf. MEl , p,
qualquer lei impõe deveres; mas o cumprimento desses deveres 34; Terra, p. 51-2). Convém atentar para as implicações políticas
pode ou não ser coativamente exigido. No primeiro caso, trata-se gerais da doutrina kantiana do direito. Em outras concepções, o
de leis morais; no segundo, de normas jurídicas. Nesse argumento, direito subordina-se a certos valores materiais: a ordem pública (como
a moral abrange o direito (cf. Terra, p. 51-2; Bobbio, 1984, p. 65-6). em Hobbes, ou nas várias modalidades do pensamento autoritário),
O fundamento de ambos os tipos de leis é a autonomia da vontade,
e a referência a esse fundamento moral é constitutiva do direito.
ou a igualdade (como, por exemplo, nas concepções que erigem a
"justiça social", as reformas de estrutura ou o bem-estar social
!
Mas isso não autoriza a dizer lei positiva deva como valores supremos da ação legislativa do Estado). Segundo
se internamente aos sujeitos. Uma coisa não implica a outra. Ideal- Kant, a sociedade se organiza conforme a justiça, quando, nela,
mente , pode-se supor uma situação em que as duas esferas se super- cada um tem a liberdade de fazer o que quiser, contanto que não
ponham, e em que, portanto, a conformidade à lei positiva mani- interfira na liberdade dos demais. Kant é possivelmente o mais sólido
feste externamente a conformidade interna ao dever que ela expli- e radical teórico do liberalismo. A relação entre a sua filosofia
cita . Mas o controle imperfeito da razão sobre as paixões impede moral, aqui resumida, e sua filosofia política pode. ser definida
que isso ocorra. Tal é a irremovível condição humana. A distinção numa frase: o direito, como legislação constitutiva da sociedade
subsiste. Quanto aos deveres morais, os homens são responsáveis justa e matéria por excelência da atividade política, realiza, no plano
perante si mesmos; na esfera jurídica, são responsáveis perante os das relações sociais, aquilo que constitui essencialmente o homem:
demais . A liberdade moral se alcança pela eliminação dos desejos a liberdade, tanto no sentido negativo como positivo do termo.
56 OS CLÁSSICOS DA POLfTlCA KANT: A LIBERDADE , O INDIVIDUO E A REPÚBLICA 57

As normas jurídicas são universais; elas obrigam a todos, inde- trastado ao estado de sociedade, mas à sociedade civil, porque no
pendentemente de condições de nascimento, riqueza etc. Quem viola estado de natureza pode haver uma sociedade, mas não uma socie-
a liberdade de outrem ofende a todos os demais, e por todos será dade civil" (cf. MEJ, p. 48). A armação sistemática do argumento
coagido a conformar-se à lei e compensar os danos causados. A subseqüente pressupõe essa distinção.
coerção é parte integrante do direito; a liberdade, paradoxalmente,
requer a coerção. Duas são as condições para o uso justo da coer-
ção. A primeira é a seguinte: "Se um certo exercício da liberdade
é um obstáculo à liberdade [de outrem] segundo as leis universais O direito privado: O ponto de partida é a distinção entre
[isto é, se é injusto], então o uso da coerção para opor-se a ele [... ] a fundamentacão a posse física e a posse inteligível. A
é justo" (cf. MEJ, p. 35-6). A segunda decorre da universalidade jurídica do posse jurídica corresponde a esta última:
das leis violadas: a coerção só é justa quando exercida pela vontade e do "teu" " ter direito a um objeto significa que o
geral do povo unido numa sociedade civil (cf. MEJ, p. 65). uso do que é meu por outra pessoa,
mesmo quando eu não o esteja utilizando, constitui uma ofensa.
A posse empírica, por sua vez, é fortuita e baseada na vontade uni-
lateral do possuidor. Como se observa, a posse jurídica "faz abstra-
Direito privado Como jusnaturalista, Kant distingue entre ção de todas as condições da posse empírica no espaço e no tem-
e direito público a lei natural e a lei positiva (segundo a fon- po" (seu caráter fortuito e sua unilateralidade). Ela é puramente
te) e entre direitos inatos e adquiridos (se- racional. Ora, a possibilidade de proibir legitimamente o uso do
gundo sua exigibilidade dependa ou não do seu acolhimento na lei meu objeto por parte de todos os demais, mesmo quando não o uti-
positiva). As leis naturais se deduzem de princípios a priori; elas lizo, pressupõe, necessariamente, o acordo de todos os demais. É
não requerem promulgação pública e constituem o direito privado. 'necessário , portanto, pensar que, originalmente, todos têm a posse
As segundas expressam a vontade do legislador. São promulgadas coletiva de todos os bens, e que a base legal da posse individual é
e constituem o direito público. Não se poderia, com certeza, dedu- o ato da vontade coletiva que a autoriza (cf. MEJ, p. 56-60; Mar-
zir da distinção entre as fontes do direito natural e do direito posi- cuse, p. 85-7).
tivo que esses dois ramos constituem corpos jurídicos dissociados Tudo isso nos ensina que no estado de natureza os homens não
um do outro, e menos ainda que Kant sustenta, direito público, se relacionam apenas segundo a força de cada um. Se assim fosse,
uma tese do positivismo jurídico. A vontade do legislador, em não haveria posse jurídica. Contudo, os homeas são dotados de razão
Kant, não é o arbítrio do poder estatal, mas a vontade geral do e de paixões. O estado de natureza é instável: "Não há nele um juiz
povo unido na sociedade civil. Embora tenham fontes diferentes, com competência para decidir com força de lei as controvérsias sobre
portanto, o direito privado e o direito público têm o mesmo funda- direitos" . Por essa razão, a posse de jure no estado de natureza é sem-
mento: a autonomia da vontade. Por isso mesmo, as várias partes pre provisória. Para que seja definitiva, ou peremptória, deve ser
da filosofia moral de Kant possuem uma "forma arquitetônica"; garantida por uma autoridade superior (cf. MEJ, p. 76-7).
elas constituem um "sistema". O direito público, ou positivo, não
é idêntico ao direito natural; mas é necessário pressupor a existên-
cia de um nexo sistemático entre eles, através do qual o princípio
comum da justiça como liberdade opera, em grau maior ou menor, A constituicão O direito público é o direito positivo,
na esfera do direito positivo e constitui, dessa forma, a sua juridici- da sociedade civil emanado do legislador para a regulação
dade (cf. MEJ, p. 47-8; Ferraz Jr., p. 7-23). A distinção kantiana e o direito público dos negócios privados (justiça comutati-
o entre direito privado e público ressalta a existência, no estado de va) e das relações entre a autoridade
natureza, de um certo tipo de sociabilidade natural derivada da pública e os cidadãos (justiça distributiva). Os indivíduos que se rela-
racionalidade humana: "O estado de natureza não é oposto e con- cionam em conformidade com leis publicamente promulgadas cons-
OS CLÁSSICOS DA POLÍTICA
KANT : A LIBERDADE. O INDIVÍDUO E A REPÚBLICA 59

tituem uma sociedade civil (status civilis); vista como um todo em mentam, imperfeitos que sejam; dela procuram aproximar-se e
relação aos membros individuais, a sociedade civil se denomina dela participam. Em conseqüência, os cidadãos não podem opor-
Estado (civitas) (cf. MEl, p, 75). Os termos "sociedade civil" e "Es- se aos seus governantes em qualquer hipótese. A teoria kantiana
tado", portanto, referem-se ao mesmo objeto, considerado de pon- da obrigação política, vinculada à sua concepção apriorística do
tos de vista distintos. contrato, estabelece o dever de obediência às leis vigentes, ainda
A transição à sociedade civil é um dever universal e objetivo, que elas sejam injustas. Nisso, ele difere de Hobbes, para quem as
porque decorre de uma idéia a priori da razão. É certo que os leis do soberano são sempre justas, e por isso devem ser respeitadas,
homens no estado de natureza tendem a hostilizar-se; mas a passa- e de Locke, que admite o direito de resistência no caso de leis injustas.
gem de um estado a outro não obedece a motivos de utilidade. Kant retorna a essa questão em várias passagens, não sem
Trata-se de um imperativo moral: o estado civil é a realização da uma certa vacilação e flutuação do argumento. Aqui ele declara:
idéia de liberdade tanto no sentido negativo como positivo. "A mais leve tentativa [de rebelar-se contra o chefe do Estado] é
Pressupondo-se necessariamente a juridicidade provisória do alta traição, e a um traidor dessa espécie [00'] não pode ser aplicada
estado natural, o ato pelo qual se "constitui" o Estado é o contrato pena menor que a morte". Ali, ele admite que o destronamento
originário, concebido como idéia a priori da razão: sem essa idéia, do monarca pode ser escusável, embora não permissível: "O povo
não se poderia pensar um legislador encarregado de zelar pelo bem poderia ter pelo menos alguma desculpa por forçar [o destronamen-
comum, nem cidadãos que se submetem voluntariamente às leis to] invocando o direito de necessidade (casus necessitatis) " . O argu-
vigentes. Em outras palavras, "somente a idéia daquele ato permite- mento básico da recusa do direito de revolução, contudo, persiste,
nos conceber a legitimidade do Estado" (cf. MEl, p. 80). É irrele- e apresenta-se em três versões.
vante, portanto, saber se tal contrato foi ou não realizado de fato A primeira é a seguinte: "Para que o povo possa julgar a
na história (cf. MEl, p. lII). Aliás, para sermos precisos, contrato suprema autoridade política [... ] que tem a força da lei, deve ser con-
originário não "constitui" a sociedade; ele. a explica tal como ela siderado como já unificado sob a vontade legislativa geral; portan-
deve ser. A idéia do contrato remete não à origem mas ao padrão to" - em virtude do pacto originário sem o qual não se poderia con-
racional da sociedade, isto é, remete a algo fora da história, e não ceber o povo dessa maneira - "seu julgamento não poderia diferir
no passado. Kant é claro sobre esse ponto na seguinte passagem: do julgamento do presente chefe de Estado" (cf. ME], p. 84).
"[O contrato originário] não é o princípio que estabelece o Estado; Numa interpretação menos rígida, poderíamos dizer que, se há Esta-
antes, é o princípio do governo político e contém o ideal da legisla- do, ele contém um princípio de ordem segundo leis, e, por pior que
ção, da administração e da justiça pública legal" (cf. Ladd, p. XXX; seja, deve ser resguardado, porque representa um progresso em dire-
Terra, p. 55). ção ao Estado ideal. A segunda versão está na "Paz perpétua". Se
os direitos do povo são violados, não há injustiça em depor o sobe-
rano. Mas se o povo fracassa é punido, também não pode reclamar
de injustiça. A questão, em termos dos fundamentos da justiça,
A negação do direito Esse procedimento metodológico tem decide-se como se segue. Nenhuma Constituição pode outorgar ao
de resistência ou de desdobramentos teóricos e políticos povo o direito à revolta, sob pena de contradizer-se a si própria. Por-
revolução muito importantes. Kant afirma que tanto, a revolta é ilegal. Isso se demonstra como se segue: se a revolta
a base da legitimidade é o consenso; ocorrer, ela tem de ser secretamente preparada. O chefe do Estado,
mas o consenso é entendido como suposto teórico necessário. Com ao contrário, afirma publicamente seu poder supremo, incontrastá-
isso, a latitude de interpretação do fenômeno numa situação con- vel; tal é a sua obrigação, porque ele deve comandar o povo contra
creta qualquer é infinita. Na exposição do argumento, não se faz agressões externas. Ora, o princípio da publicidade é constitutivo
sequer a distinção entre consenso explícito e tácito, como em Locke; do direito público, e, por conseguinte, na situação de revolta, confron-
se há Estado, há consenso. Na mesma ordem de considerações, se tam-se uma vontade particular e uma vontade geral. O sucesso even-
o contrato é uma idéia, todos os Estados existentes nela se funda/ tual de urna revolta apenas demonstra que a necessária suposição
60 OS CLÁSSICOS DA POLlTlCA
KANT: A LIBERDADE, o INDIViDUO E A REPÚBLI CA 61

de que o soberano detinha, efetivamente, o poder Supremo era falsa, A reconciliação dos homens consigo mesmos enquanto seres livres
e a questão da justiça não se coloca (cf. PP, p. 130-1). A terceira necessita a promulgação pública das leis universais, que manifesta
versão do argumento encontra-se em "Sobre o ditado popular... ":
a disposição de todos e de cada um de viver em liberdade.
[A idéia do contrato originário] obriga todo legislador a considerar Essa construção teórica tem notáveis implicações políticas,
suas leis como podendo ter sido emanadas da vontade coletiva de já esboçadas acima. No sistema kantiano, nega-se às autoridades
todo o povo, e a presumir que todo sujeito, enquanto ele deseja ser
um cidadão, contribuiu por 'seu voto à formação da vontade legisla.
públicas o dever e o direito de promover a felicidade, o bem-estar
tiva. Tal é a pedra de toque da legitimidade de toda lei pública. Se, ou, de modo geral, os objetivos materiais da vida individual
com efeito, essa lei é tal que seja impossível que todo o povo possa social. A razão disso é a seguinte: a legislação deve assentar sobre
dar a ela seu assentimento [se, por exemplo, ela decreta que uma princípios universais e estáveis , ao passo que as preferências subje-
classe determinada de sujeitos deve ter hereditariamente o privilég io
da nobreza], essa lei não é justa. Mas se for simplesmente possível
tivas são variáveis de indivíduo a indi víduo e cambiantes no tem-
que o povo a aprove, então temos o dever de conslderá-Ia justa [...] po . Além disso, a ninguém é dado o direito de prescrever a outrem
(ct, TP, p. 39-40). a receita da sua felicidade. O que deve , então, fazer o Estado?
A possibilidade ou impossibilidade de que uma lei seja justa se ava- Ao Estado incumbe promover o bem público; o bem público é a
lia por referência aos princípios racionais do direito, e não à efetiva manutenção da juridicidade das relações interpessoais. Nas pala-
manifestação popular sobre a questão . O exemplo que nos dá Kant vras de Kant:
no mesmo ensaio ilustra o ponto . No caso de decretação de um A máxima salus publica, suprema civitatis lex est permanece em
imposto de guerra proporcional a todos, o povo não pode opor-se sua validez imutável e em sua autoridade; mas o bem públ ico , que
sob argumento de que a guerra não lhe parece indispensável, por- deve ser atendido acima de tudo, é precisamente a const ituição
que " não lhe compete emitir juízo sobre a questão". Mas se o legal que garante a cada um sua liberdade através da lei. Com isso,
imposto recair sobre alguns e não sobre outros, a lei é injusta e continua licito a cada um buscar sua felicidade como lhe aprouver,
pode ser contestada (cf. TP, p, 39-40). sempre que não viole a liberdade geral em conformidade com a lei
e, portanto, o direito dos outros consorciados (cf. TP, p, 40).

Essa passagem expande e esclarece a fórmula adotada por Kant


nos Elementos: "As leis do direito público referem-se apenas à
I:
o Estado liberal Kant , como Rousseau, recusa o dilema forma jurídica da convivência entre os homens" (cf. MEl, p. 71;
hobbesiano: liberdade sem paz ou paz Bobbio, 1984, p. 135).
mediante submissão ao Estado. Ambos compatibilizam teoricamente Em dois casos o Estado é autorizado a adotar políticas de
os dois termos (liberdade e Estado) mediante o conceito de autono- conteúdo substantivo . A autoridade pública deve prover a subsis-
mia : as leis do soberano são as leis que nos demos a nós próprios . tência dos que não podem viver por seus próprios meios (porque
Mas há entre os dois autores uma diferença fundamental. Rousseau a sua própria existência depende de que eles façam parte da socie-
formula uma certa versão de um Estado democrático; Kant é um dade , dela recebendo proteção e cuidado). Se, fora disso, "o
teórico do liberalismo (cf. Bobbio, 1979, p. 68). Kant conceb e o Estado estabeleceu leis que visam diretamente a felicidade [o bem-
Estado como um instrumento (necessário) da liberdade de sujeitos estar dos cidadãos, da população etc.], isso se faz a título
individuais. Rousseau descreve o surgimento de um Eu comum sobe- de estabelecimento de uma constituição civil, mas como meio
rano; liberdade se identifica com autonomia, que do ponto de vista para garantir o Estado jurídico [... ] para que o povo exista como
do indivíduo se exerce somente na medida em que integra o sujeito república". Compreende-se que, não sendo um dever constitutivo
coletivo . Em Kant, a autonomia deduz-se da liberdade do Estado, essas medidas dependem exclusivamente do julga-
e a preserva e garante . A liberdade como não impedimento no mento pessoal (prudência) do governante (cf. MEl, p . 92-3; TP ,
estado de natureza é precária, e requer o exercício da auto no ' .
p. 40-1).
62 OS CLÁSSICOS DA POLÍTICA KANT: A LIBERDAD E. ,O INDIVÍDUO E A REPÚBLICA 63

A cidadania Quando unidos para legislar, os membros da dessa Constituição? Na Constituição legítima, ou republicana (a) a
sociedade civil são denominados cidadãos. São lei é autônoma, isto é, manifesta a vontade do povo, e não a von-
características dos cidadãos a autonomia (capacidade de conduzir- tade de indivíduos ou grupos particulares e (b) cada pessoa tem a
se segundo seu próprio arbítrio), a igualdade perante a lei (não se posse do que é seu peremptoriamente, visto que pode valer-se da
diferenciam entre si quanto ao nascimento ou fortuna) e a indepen- coação pública para garantir seus direitos. O princípio da Constitui-
dência (capacidade de sustentar-se a si próprios) (cf. MEJ, p, 78-9; ção republicana é a liberdade; nela se conjugam a soberania popu-
TP, p. 30; PP, p. 93-4). Essa concepção de cidadania tem por base lar (a vontade legislativa autônoma) e a soberania do indivíduo na
os direitos inatos à liberdade e à igualdade. Trata-se, naturalmente, esfera juridicamente limitada dos seus interesses e valores particula-
de uma idéia reguladora; mas ela tem conseqüências práticas imedia- res (cf. MEJ, p. 111-3; PP, p. 93-7).
tas. Nenhuma Constituição, por exemplo, poderia autorizar a escra- A república é a melhor Constituição do ponto de vista do
vidão, por ser ela absolutamente incompatível com os princípios modo de funcionamento da sociedade (forma regiminis), indepen-
da justiça. Nesse sentido, o dispositivo constitucional de reconheci- dentemente de quem governa (forma impedi) (cf. PP, p. 95). A
mento da cidadania parece ser auto-aplicável. Mas ele o é apenas rigor, o Estado pode ser monárquico, aristocrático ou democrático; I
em parte. De fato, estabelecida a sociedade segundo o direito, nem o que importa é que seja republicano. A república opõe-se ao despo-
todos os seus membros qualificam-se para a atuação política atra- tismo, não à monarquia (cf. PP, p. 96-7). Pois bem: o princípio
vés do voto, ou seja, para a cidadania ativa . Não se qualificam os político do republicanismo é a separação entre os poderes executivo
que vivem sob a proteção ou sob as ordens de outrem, como .os (a administração) e legislativo. No despotismo, o soberano executa
empregados , os menores e as mulheres; esses são cidadãos passivos. as leis que ele mesmo decretou.
Temos aqui uma óbvia contradição entre o conceito puro de cidada- Essa questão requer alguma elaboração. Como se observou
nia e o conceito de cidadania passiva, ou entre as leis do direito acima, o bem do Estado como união do povo segundo suas próprias
natural e as do direito positivo. Kant tenta resolver essa contradi-
ção pela reafirmação do atributo da igualdade em nova formulação :
leis (civitas) - por oposição ao bem individual - é sua autonomia
com respeito a todo e qualquer interesse particular ou poder externo. II
'li
[,
por igualdade deve-se entender a igualdade de oportunidades. "As Em outras palavras, para que se preserve a liberdade política, é
leis vigentes", diz Kant, "não podem ser incompatíveis com as leis necessário que a esfera pública mantenha-se rigorosamente imune
naturais da liberdade e da igualdade que corresponde a essa igual- a influências particulares ou privadas. Para que esse supremo valor , .'
dade , segundo as quais todos podem elevar-se da situação de cida- político (que é ao mesmo tempo moral e jurídico) se realize , é impe-
dãos passivos ao de cidadãos ativos" (cf. MEJ, p. 80). rativo que ele assuma a forma que a razão a priori lhe recomenda.
I.
Essa forma é a tripartição do poder estatal. Em resumo , a dedução
é a seguinte: o legislativo (a autoridade soberana) emite puros
comandos universais, ou leis. O governante (rex, princeps) , ele
A república A melhor forma de Estado - o Estado ideal _ mesmo submetido às leis, não pode legislar; ele executa os coman-
é a república. Seria talvez ocioso, a essa altura, dos gerais em situações cambiantes, através de decretos e regulamen-
alertar para que a "república" kantiana é uma idéia objetivamente tos. O judiciário aplica a lei a casos individuais após julgamento
necessária e universalmente válida; seus atributos são deduzidos de pelo júri. A dedução é silogística: uma premissa maior, uma menor
princípios a priori, e não inferidos de observações empíricas. Não e a conclusão (cf. MEJ, p. 78-84). Essa arquitetura-polítíca pro-
obstante, essa idéia, como de resto todas as idéias da filosofia moral move a cooperação entre os poderes - pode-se supor que Kant
de Kant, tem conseqüências práticas, no sentido de importarem aluda aqui a ganhos de eficiência no desempenho estatal - e impede
comandos aos cidadãos e aos governantes. Kant é muito claro a res- que um poder usurpe as atribuições do outro e instaure o despotismo.
peito disso: a república é o "esptrito do contrato originário", pelo Pode-se sustentar que a principal lição da dedução kantiana
qual os governantes se obrigam a aproximar-se, praticamente, da/ da forma regiminis é a demonstração da irracionalidade (e da imo-
idéia de uma Constituição política legítima. Quais são os ralidade) do despotismo enquanto poder indeterminado . A soberania
64 OS C LÁSSICOS DA POLÍTICA
KANT: A LIBERDADE, o INDIVIDUO E A REPÚBLICA 65

é una; mas em Kant é uma unidade determinada . Ela se constitui


e por isso não lhes é permitido, segundo um princípio de justiça,

I
como síntese dos seus momentos particulares (os três poderes) . Os agir por instigação direta de seus eleitores.
poderes negam-se mutuamente ("subordinam-se" uns aos outros);
a soberania do Estado contém, portanto, sua própria negação. Isso,
na prática, significa que o poder do Estado é mediado por institui-
ções essas instituições são necessariamente representativas, A filosofia da história No plano mais geral da filosofia
porque a soberania já não se encontra encarnada numa só pessoa, como progresso da da história, Kant procura demons-
num só órgão do Estado, numa só classe. Se a vontade geral se humanidade trar que a humanidade progride e
compõe de várias partes, é evidente que sua unidade só pode ser que o progresso humano só pode
representada. O despotismo, pelo contrário, é uma vontade indeter- ser um aperfeiçoamento moral. Mas como garantir que progredi-
i

minada, não contraditória; o déspota é a unidade abstrata do povo, mos se não somos "inerente e inalteravelmente bons"? Curiosa- ,I
sob forma, por exemplo, do monarca absoluto por direito divino mente, Kant admite que, para demonstrar a nossa predisposição
ou da vontade popular tal como foi concebida em certos momentos ao progresso moral, é necessário buscar na história um evento com- I
da Revolução Francesa. probatório. Esse evento deve ter sido produzido pelos homens
As conclusões a que chegou Kant não eram novidade no agindo livremente. Ademais, não se deve considerá-lo como causa
momento em que ele escrevia. O interesse de sua obra está, entre do progresso, no sentido de que, ocorrendo, s éguem-se avanços prá- I'

outras coisas, na fundamentação que dá à república, na polêmica ticos imediatos e previsíveis. Esse evento será tão-somente um signo
implícita com Rousseau e na afirmação da primazia do indivíduo da predisposição moral dos homens ao progresso, cujos efeitos,
(no que se contraporia a Hobbes e, depois, a Hegel e a Marx). A embora não previsíveis no tempo, se farão sentir inevitavelmente
propósito, caberia recordar o princípio orientador de todo o edifí- na história. E qual é esse evento? É a simpatia pela causa da liber-
cio político kantiano. A forma republicana realiza o imperativo dade nos grandes confrontos revolucionários. A simpatia é um bom
categórico da vida social: "A combinação [das relações de coorde- signo porque ' ela é universal (manifesta-se em todos os países) e
I
nação e subordinação entre os poderes] assegura a cada um o que desinteressada (em vários países, manifestá-la atrai a repressão polí-
é justo e de direito" (cf. MEJ, p. 81). tica). Naturalmente, Kant tem em mente a Revolução Francesa,
Para encerrar esta seção sobre a república, cabe uma referên- que desperta no coração dos espectadores uma simpatia que "raia
cia às condições da mudança política. Já sabemos que Kant nega o entusiasmo": escolhemos entusiasticamente o lado da justiça (pois
terminantemente ao povo o direito à revolução. Como conciliar, todo povo tem o direito de dar -se uma Constituição) e da república
portanto, a constatação de imperfeições constitucionais e o dever (porque é a melhor Constituição e porque ela cria obstáculos à
de aperfeiçoar as constituições no sentido republicano? A resposta guerra ofensiva) (cf. "An old question ... ", p. 142-6).
é simples: as reformas necessárias devem ser efetuadas pelo sobera- Num outro trabalho, o progresso se apresenta como passagem
no, através do poder legislativo, e só por ele. Os dois processos são do estado de tutela à maioridade: o aprendizado da razão (cf.
qualitativamente distintos: a revolução altera, ou substitui, a Cons- "What is enlightenment?", p. 4). Nessa versão, o procedimento é
tituição pela via direta da insurreição popular; as reformas são dedutivo e as conclusões são muito otimistas. A história universal,
introduzidas pelos poderes estabelecidos, por via institucional, mesmo em suma, é a história natural do progresso da razão, tal como se
que envolvam a deposição do chefe do executivo (cf. MEJ, p. 88). observa no ensaio Idéia para uma história universal.. organizado
em forma de nove teses encadeadas. A primeira tese, com suas res-
Com base na sua concepção de reforma, Kant opõe-se ao "direito
sonâncias aristotélicas, já deixa entrever o percurso e o resultado
de oposição popular" através de deputados. Uma coisa é o sobe-
do argumento: "Todas as capacidades naturais de uma criatura são
rano, a vontade unida do povo; outra coisa é o povo, que se com-
destinadas a desenvolver-se completamente até a sua finalidade natu-
põe de opiniões interesses particulares diversos ("a unanimidade/
ral". Trata-se, portanto, de um processo inevitável. A segunda tese
só se alcança na guerra"). Cada deputado encarna aquela
sustenta que o desenvolvimento das faculdades racionais se observa
66 OS CLÁSSICOS DA POLÍTICA
KANT: A LIBERDADE, o INDIVÍDUO E A REPÚBLICA 67

na raça humana como um todo, e não em trajetórias individuais. momento necessano da guerra: são as guerras que, "depois de
A terceira tese apresenta o progresso como racionalização do mundo,
devastações, revoluções e até a completa exaustão, conduzem [os
e em particular das relações sociais e políticas, tal como indicam
homens] àquilo que a razão poderia ter ensinado a eles desde o iní-
as teses subseqüentes. A história humana tende para o "Estado per-
feitamente constituído" (cf. Idea, p. 11-26). cio [... ]" (cf. Idea, p. 18-9).
O entendimento kantiano do "antagonismo natural" é bas-
tante peculiar no campo do jusnaturalismo. Em Hobbes, Rousseau
e Locke, o antagonismo tem signo negativo, seja porque é a antí-
A dialética kantiana tese da sociabilidade, seja porque não traz nada de bom. O antago-
Importa reter aqui o significado geral
da história nismo kantiano não é incompatível com a sociabilidade natural nem
do pensamento kantiano sobre o pro-
com a sociedade civil - nisso ele se diferencia dos dois primeiros
gresso humano: a política, como ati-
vidade de elaboração e aperfeiçoamento constitucional, é um pro- autores citados. Ademais - e nisso ele se diferencia dos três -, ele
cesso de racionalização das relações entre os homens e entre os Esta- atribui ao antagonismo humano uma função positiva: a competição
dos. Mas o progresso não é um processo rápido, nem indolor. Ele e a guerra não se relacionam à justiça e à paz como termos imedia-
é lento, enganoso e sobretudo contraditório. A humanidade avança tamente antitéticos, mas como mediações do progresso. Não seria
por efeito da contraditoriedade das opiniões, dos interesses particu- excessivo descobrir no pensamento kantiano sobre a história uma
lares e dos interesses nacionais. espécie de "dialética da ilustração", em que a razão progride não
As opiniões devem entrechocar-se livremente. Kant defende pelo confronto da razão consigo própria, como em Hegel, mas pela
esse ponto de vista em "O que é a ilustração?". Mas o que signi- negatividade persistente das paixões humanas. Note-se, enfim, que
a dedução kantiana de padrões ideais - que na política em particu-
I
fica exatamente isso? Desde logo, é preciso não nos enganarmos I
com o que se poderia denominar "a ilusão revolucionária". O povo lar funcionam como idéias reguladoras que se impõem praticamente I
rebelado, sob a liderança de políticos ilustrados, pode derrubar aos governantes - não parece conduzir a afirmação de que eles se
um tirano, mas não altera seu nível cultural (cf. Idea, p. 93). realizarão fatal e concretamente na história. Antes, pode-se argüir
Em conseqüência, "novos preconceitos substituirão os antigos para que o hiato entre a razão e a matéria da existência social é elemento
atrelar as grandes massas ignorantes" (cf. "What is enlightenment?", constitutivo do sistema kantiano.
p. 5). O verdadeiro caminho é a liberdade, e, concretamente, a liber- A filosofia de Kant sobre os móveis do progresso é um elogio
dade de opinião e de imprensa. O soberano não é divino, e pode da divergência e da competição. O homem kantiano se assemelha
errar; é necessário, portanto, conceder aos cidadãos, com o beneplá- ao homem que, em Adam Smith, por exemplo, visa maximizar seu
cito do próprio soberano, o direito de emitir publicamente suas opi- lucro no mercado e, ao fazê-lo, promove a prosperidade geral. A
niões e a liberdade de escrever. O alargamento do debate público é natureza, para um, o mercado, para outro, desempenham ambos
condição do progresso (cf. TP, p. 47-8). a função de "mão invisível". Desse ponto de vista, Kant é o mais
Outra mola do progresso é o conflito de interesses individuais, "moderno" dos pensadores liberais clássicos. Ele não apenas declara
bem como de interesses nacionais. Aqui, o progresso aparece como a soberania do indivíduo como legitima filosoficamente o indivíduo
mera resultante não intencional da interação humana; ele manifesta empreendedor. Não se trata, é claro, para o autor, de celebrar o
uma "finalidade secreta da natureza". Sem o "natural antagonismo interesse particular enquanto tal, mas de reconciliar os particularis-
entre os homens", escreve Kant, "todas as excelentes capacidades mos em choque com a idéia de uma sociedade justa. No plano da
naturais da humanidade permaneceriam para sempre adormecidas teoria do direito, a sociedade justa (a sociedade regulada por leis
[ ... ] agradeçamos, portanto, à natureza, pela incompatibilidade, emanadas da vontade geral) é pressuposta, e as ações individuais
pela cruel vaidade competitiva, pelo insaciável desejo de posse e manifestam apenas a subjetividade de cada um no exercício de sua
dominação (próprios dos homens)" (cf. Idea, p. 16). Da mesma liberdade negativa. No plano da teoria da história, a sociedade ideal
forma, o progresso em direção à paz internacional contém em si o emerge progressivamente das ações individuais enquanto exercício
68 OS CLÁSSICOS DA POLÍTICA KANT: A LIBERDADE. O INDIVIDUO E A REPÚBLICA 69

da liberdade natural, pré-contratual, a qual, se não instaura imedia- titui um soberano por sobre os Estados nacionais; por isso, ele
tamente um estado de perfeita injustiça, envolve, não obstante, a pode ser desfeito, e deve ser refeito de tempos em tempos (cf.
expropriação, o domínio e a guerra (relações de poder). MEl, p. 116).
A relativa materialização da idéia da paz aparece também na
reflexão sobre os fatores que contribuem para o fim das guerras.
por um lado, a paz depende de que em cada país os povos tenham-
A confederação o
pensamento kantiano sobre as rela- se organizado em sociedade jurídica. Se o pacto originário em cada
dos Estados livres ções entre os Estados nacionais não des- país cria a república, o pacto que constitui a Liga das Nações pres-
e a paz toa arquitetonicamente de sua filosofia supõe a república como regime político nos países contratantes. A
política. Mas nele se produz um deslo- razão disso é simples: ao povo não interessa a guerra e, quando
camento de ênfase. A história se desenrola, é verdade, segundo a pode manifestar-se livremente sobre a questão, declara-se contra ela
lei natural do progresso moral; mas a intervenção política delibe- (cf. PP, p. 94-5). Nesse argumento, Kant associa o processo da paz \

rada segundo a razão faz-se necessária para que se evitem as guer- ao longo e contraditório processo natural de constituição do Estado
ras. Aqui as idéias parecem encarnar-se, irresistivelmente, sob o segundo a justiça. Isso não-impede, contudo, o chamamento à ação
impacto da violência tremenda da história. política intencional. Ainda que possamos entrever na formação da
Em seu ensaio "Paz perpétua", de 1795, Kant instrui os Liga das Nações o trabalho paciente da natureza, a intervenção polí-
homens ilustrados do seu tempo sobre a necessidade a priori da paz. tica se faz necessária: "O estado de paz deve ser estabelecido" (cf.
Assim como incumbe aos indivíduos constituir-se em sociedade civil, PP, p. 92). E bem à maneira da Ilustração, Kant reserva aos filóso-
é dever dos Estados, enquanto pessoas morais, pactar entre si o fim fos um papel bem determinado no processo de estabelecimento da
das hostilidades de acordo com a razão e estabelecer, dessa forma, paz. No pacto entre os Estados, ele recomenda a inclusão de uma
a comunidade jurídica internacional. Há, todavia, entre os dois con- cláusula secreta - ela deve ser secreta para não causar constrangi-
mento aos governantes - dispondo que "a opinião dos filósofos
"

'\ tratos - o nacional e o internacional - algumas diferenças. Em


primeiro lugar, o tom é fatidicamente hobbesiano: "O estado de seja considerada pelos Estados beligerantes" (cf. PP, p. 115).
,i
paz entre os homens vivendo lado a lado não é o estado natural; o A relação entre política e moral se explicita nessa passagem,
estado natural é um estado de guerra" (cf. PP, p. 92). e nas páginas que se seguem. Se se deduz que o dever moral é ines-
Pode-se supor que esse tom pessimista reflita o quadro de capável, não se pode ao mesmo tempo dizer que não é possível cum-
incessantes guerras na Europa, que Kant tem sob os olhos. O "es- pri-lo: não há, portanto, conflito entre moral e política. Mas esses
tado natural de guerra" nesse contexto refere-se às relações entre dois conceitos não são idênticos. A moral refere-se à doutrina teó-
Estados, .às quais Kant parece negar qualquer traço de juridicidade, rica do direito; a política, à doutrina prática do direito. A política,
mesmo provisória. Por conseguinte, o estado de natureza nessa pas- orientando-se pelos mandamentos incondicionais da razão, envolve
sagem parece conceber-se numa zona de penumbra entre a idéia e a escolha prudente dos meios adequados à consecução dos seus fins.
o fato. De fato, não é de esperar, nem é desejável, que "os reis filosofem
A segunda diferença tem íntima relação com a primeira. e os filósofos reinem". Kant justifica sua posição dizendo que o
Embora definindo a paz como um princípio moral a priori - "a poder corrompe o livre julgamento da razão. Pode-se .acrescentar:
razão moral prática dentro de nós comanda irresistivelmente: não os filósofos, em sua "pureza de pombas", corromperiam a necessá-
haverá guerra" (cf. MEl, p. 128) - a cessação efetiva das hostili- ria "astúcia das serpentes políticas" (cf. PP, p. 116-7). Idéia e rea-
dades requer um acordo real, e não simplesmente ideal, entre as lidade mantêm-se externas uma à outra. A essa tradição intelectual
potências. O princípio da paz deve materializar-se efetivamente se associarão Bernstein e Weber, entre outros. A reunificação do
numa "confederação dos Estados livres", segundo a idéia de uma ideal e do racional será obra de Hegel, Marx e Rosa Luxemburg,
"Liga das Nações para a paz". Enfim, a Liga das Nações não cons- cada um a sua maneira.

/
71
KANT: A LIBERDADE. O INDIVIDUO E A REP ÚBLICA
70 OS CLÁSSICOS DA POLÍTICA

MURPHY, J . G . Kant, the philosophy of right. London , Macmillan , 1970.


Bibliografia PATON, H. J. An aly sis of the ar guments . In : KANT , E . Groundwork of the
metaphysic of morais. Tr ad. do alemão de H. 1. Paton (1. ed ., 1948).
New York, Harpe r and Row , 1964.
ACTON , H . B. Kant 's moral philo sophy . London, Macmillan , 1970. TERRA, R . R. A distinção entre direito e ética na filoso fia kantiana . Filoso-
BECK, L. W. Editor' s introducti on. In: KANT, E . On history . Indi an apoli s, f ia n. 4 , LPM , Unicamp e UFRGS, out . de 1987.
Bobbs Merrill, 1977.
BOBBIO , N . Direito e Estado no pensamento de Emanuel Kant. Br asília ,
UnB , 1984.
_ _ o II modelo gius nat uralístico. In : _ _ & BOVERO, M . Società e Stato
nel/a f ilosofia politica moderna. Mil an o , II Saggiatore, 1979 .
FERRAZ JR., Tercio S. Conceito de sistema no direito . São Paulo, Edusp
e Revista do s Tribunais, 1976.
KANT , E . Groundw ork of lhe metaphysic of moraIs (GMM ). Trad. do ale-
mão de H. J. Paton (i. ed., 1948). New York , Harper a nd Ro w, 1964.
_ _ o The metaphysical elements of justice (MEJ). Tr ad . do 'a lemão de
John Ladd (1. ed., 1965) . New York, Bobbs Merrill, 1965.

li
. H andschriftliche Na chlas s (HN) . VI, Band XIX di Gesamm elte
Scriften. Apud LADO, J . Tr an slator 's introduction. In: KANT, E. Th é
metaphysical elements of j ustice. New Yo rk, Bobbs Merrill, 1965 . ,
p. XX X .
_ _ o Sur I'e xp ression coura nte: il se pent que cela soit ju ste en th éorie ,
ma is en practiqu e, cela ne va nt rien . In. - _ _ Théorie et practique
o

(TP ). Trad . do alem ão de L. Guillermit. P ari s, J. Vrin , 1972.


__ o What isenlightenm ent. In: _ _ On history . Trad . do alem ão de
o

Lewis White Beck, Robert E. Anc hor e Emil L. Fac kenheim (I . ed.,
1957). Indianapolis, Bobbs Merrill, 1977 .
_ _ o Idea fo r a uni ver sal histo ry fro m a cosmopolitan point o f view .
(ld ea) Ih : _ _ o _

_ _ o P erpetuaI pea ce (P P ). In : _ _ o _

_ _ . An old q uestion ra ised again : is the human ra ce constantly progress-


ing ? In: _ _ o

_ _ o Text os seletos. Ediç ão bilíng üe, com tr ad . de Raimundo Vier e Flo-


rian o de Sou sa Fernandes, e introd . de Emma nuel Carneiro Leão . Petró-
poli s, Voze s, 1974.
o Idéia de uma história universal de um ponto de vista cosmopolita.
Edi ção bilingüe, o rg. po r Ricardo R. Terra, trad . de Rodrigo Naves e
Ricardo R . Terra, com comentários de Ricardo R . Terr a ,. Gér ard Lebrun
e Jo sé A rthur Giannotti. Sã o Paulo, Brasiliense, 1986.
LADO , J . T ranslator 's introduction. In: KANT , E . The metaphysical ele-
ments of ju stice. New York, Bobbs Merrill, 1965.
MARCUSE, H . A study on authority . In : _ _ o From Luther to Popper .
London, Verso , 1983.

Você também pode gostar