Imbricações Entre Gênero, Religião e

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IMBRICAÇÕES ENTRE GÊNERO, RELIGIÃO E

LAICIDADE: ANÁLISE A PARTIR DA ATUAÇÃO


DOS/AS PARLAMENTARES EVANGÉLICOS/AS
NO CONGRESSO NACIONAL
NA 54ª LEGISLATURA
Emerson Roberto da Costa*

RESUMO
Dentre as diversas esferas brasileiras afetadas pelos vetores priva-
dos da religião, encontra-se o Estado nacional, que se declara laico.
Estando então a laicidade estatal brasileira problematizada pela
atuação de religiosos na esfera pública, além de compreender os de-
safios inerentes e a formatação que esse processo adquire, torna-se
significativamente relevante analisar os contornos que as questões
de gênero adquirem a partir dessa imbricação. Assim, tendo por
referência a atuação do conjunto de parlamentares federais que se
declaravam evangélicos/as na 54ª Legislatura, este artigo propõe-
-se a identificar os limites da laicidade no Brasil a partir da agenda
parlamentar como, por exemplo, a atuação desses sujeitos frente à
propositura e aprovação de projetos de leis e políticas públicas que
contrariam os preceitos religiosos, sobretudo dos temas e aportes
ligados às sexualidades e direitos reprodutivos.
Palavras-chave: Religião. Laicidade. Gênero. Evangélicos/as. Esfera
pública.

ABSTRACT
Among the different Brazilian spheres affected by the private vectors
of religion, there is the national state that declares itself secular.
Being the Brazilian state secularity problematized by the role of re-
ligious people in the public sphere, in addition to understanding the

* Doutor em Ciências da Religião pela Universidade Metodista de São Paulo (UMESP).


Membro do Grupo de Estudos de Gênero e Religião Mandrágora/NETMAL e do Nú-
cleo de Pesquisas Socioantropológicas da Religião e de Gênero do Programa de Pós-
-Graduação em Ciências das Religiões da Universidade Federal da Paraíba (UFPB).

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inherent challenges and the formatting that this process acquires,
it becomes significantly relevant analyzing the contours that the
gender issues acquired from this imbrication. Thus, with reference
to the performance of the group of federal parliamentarians who
declared themselves evangelicals in the 54th Legislature, this article
proposes to identify the edges of secularity in Brazil from the par-
liamentary agenda, such as the performance of these subjects front
to the proposal and approval of projects of laws and public policies
that contravene the religious precepts, especially of themes and
contributions related to sexualities and reproductive rights.
Keywords: Religion. Secularity. Gender. Evangelicals. Public sphere.

RESUMEN
Entre las diversas esferas brasileñas afectadas por los vectores pri-
vados de la religión, se encuentra el Estado nacional que se declara
laico. Estando entonces la laicidad estatal brasileña problematizada
por la actuación de religiosos en la esfera pública, además de com-
prender los desafíos inherentes y el formato que ese proceso adquie-
re, resulta significativamente relevante analizar los contornos que
las cuestiones de género adquieren a partir de esa imbricación. Así,
teniendo por referencia la actuación del conjunto de parlamentarios
federales que se declaraban evangélicos/as en la 54ª Legislatura, ese
artículo se propone identificar los límites de la laicidad en Brasil a
partir de la agenda parlamentaria como, por ejemplo, la actuación
de esos sujetos frente a la proposición y aprobación de proyectos
de leyes y políticas públicas que contrarían los preceptos religiosos,
sobre todo de los temas y aportes ligados a las sexualidades y dere-
chos reproductivos.
Palabras clave: Religión. Laicidad. Género. Evangélicos. Esfera pública.

INTRODUÇÃO
Resultante da tese República Federativa Evangélica: uma análise
de gênero sobre a laicidade no Brasil a partir da atuação dos/as par-
lamentares evangélicos/as no Congresso Nacional no exercício da 54ª
Legislatura, defendida no âmbito do Programa de Pós-Graduação em
Ciências da Religião (PPGCR), da Universidade Metodista de São Paulo
(UMESP), metodologicamente, a construção deste artigo baseia-se em
pesquisa bibliográfica com leitura e interpretação do referencial teórico,
para compreender a relação entre gênero, religião e laicidade, além da

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aplicação de entrevista semiestruturada e diretiva, junto a parlamentares
em exercício na 54ª Legislatura.
Sem pretensões de construção histórica e linear, inicialmente
revisamos os modelos da laicidade para demonstrar como a laicidade
assume aspectos diversos a depender das múltiplas variáveis do con-
texto sociocultural no qual é construída. Não se trata de estabelecer
modelos paradigmáticos, mas de indicar a pluralidade multidimensional
do fenômeno que, mesmo partindo de um eixo estruturante requisita
elementos mínimos para caracterizá-lo como tal e possibilita a admissão
de predicados específicos e conjunturais. Em seguida, apresentamos a
compreensão dos/as deputados/as sobre o processo social da laicidade
vivenciada no Brasil e, em considerações finais, indicamos potenciais
limites para a laicidade estatal brasileira a partir das proposições dos/
as parlamentares com pertença evangélica nas questões ligadas às
sexualidades e aos direitos reprodutivos.

LAICIDADE COMO IDEAL: PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS


As produções acadêmicas que refletem sobre a laicidade são cres-
centes e pujantes. Desde a ótica jurista, passando pela compreensão
histórica e social, múltiplas perspectivas debatem como a laicidade se
caracteriza, quais são os modelos e o que de fato se opera no contexto
brasileiro.
Ambíguo, polissêmico, multidimensional (por abranger aspectos
políticos, jurídicos e sociais), sem fronteiras rígidas e cujo processo de
desenvolvimento social precede o conceito são características que com-
plexificam a desafiante tarefa de interpretar a laicidade e/ou traçar um
roteiro que a defina com precisão. Segundo Roberto Blancarte (2011),
embora o termo tenha parentesco com princípios do liberalismo político
e da democracia moderna, como a liberdade de consciência equivalente
à igualdade de tratamento dos cidadãos/ãs no campo do exercício con-
fessional, a separação entre Igreja e Estado e entre religião e política, a
liberdade e a tolerância religiosas e a pluralidade, o que o caracteriza,
fundamentalmente, é que a legitimidade das instituições políticas, em
especial do Estado, repousa na soberania popular e não em confissões
religiosas. Micheline Milot (2009) propõe que, dentre esses fatores,

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os elementos fundamentais que vão caracterizar e estruturar a laicida-
de são, independente do contexto histórico e das variáveis sociais, a
igualdade de tratamento aos cidadãos/ãs que tenham ou não religião,
a liberdade de consciência, a neutralidade (e não isenção) estatal em
matéria de fé e a separação entre Igreja e Estado.
À medida que proporciona, a todas as confissões, liberdade de
religião e de culto, sem implantar em relação às mesmas nem estrutu-
ras de privilégios nem de controle, o Estado laico não apenas preserva
a autonomia do poder civil de qualquer tipo de ingerência religiosa,
mas, ato contínuo, resguarda a liberdade das agremiações religiosas
em suas relações com o poder temporal que, por sua vez, não possui
a prerrogativa para impor a qualquer sujeito alguma confissão. Nessa
perspectiva, a laicidade estatal passa a interessar aos grupos religiosos
minoritários que encontram nesse método as garantias básicas para
o exercício da liberdade religiosa. Se rejeitados estão os regimes teo-
cráticos, no Estado laico também são recusadas as possibilidades que
subjugam as práticas religiosas ou as colocam sob a tutela e a serviço
da máquina estatal. O Estado não dispõe sobre matéria de fé, enquanto
a religião deve limitar sua atuação no campo que lhe é próprio, a saber:
promover a livre adesão dos/as cidadãos/as sendo que, aqueles/as que
se abstiverem de tal associação simplesmente não pertencerão aos seus
quadros, sem sanções (prerrogativa exclusiva do Estado), incorporação
sob força ou ameaça e obrigatoriedade de confissão (Norberto BOBBIO,
Nicola MATTEUCCI & Gianfranco PASQUINO, 2010, p. 670).
Assumimos que, para além do aspecto jurídico, a laicidade estatal
não deve ser compreendida como uma simples oposição à religião en-
quanto tal (cf. Danièle HERVIEU-LÉGER, 1999), mas à tutela clerical que
a instituição religiosa tenta impor sobre o poder político. A laicidade
deve distinguir e separar o domínio público, em que o sujeito exerce a
cidadania, e o domínio privado, espaço no qual ocorre o exercício das
liberdades individuais e coexistem as diferenças. Porquanto deve-se re-
afirmar que o Estado é livre no seu domínio (a política) e incompetente
em matéria religiosa; as instituições religiosas, por sua vez, reduzem o
seu campo ao religioso, vista a sua incompetência no político (esfera
da res publica). Pertencendo a todos os indivíduos, o espaço público

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torna-se indivisível: nenhum/a cidadão/ã ou grupo deve impor as suas
convicções a outrem.
Por sua vez, ao Estado laico reserva-se a proibição de intervenção
nas formas de organização coletiva. Não se opõe à liberdade de ex-
pressão, visto que essa está na origem e é requisito estruturante para
o exercício da laicidade. Consideramos como potencialmente válida a
assertiva de que ter um Estado laico não implica o desaparecimento da
religião, ao contrário, nele (Estado Laico) deve-se garantir a liberdade
e o pluralismo religioso como um direito das pessoas, porquanto deve
ser neutro em matéria religiosa considerando que, legislar legitimado
por determinados princípios fundamentados em doutrinas religiosas,
pode sugerir a supressão da liberdade, da diversidade e a ausência de
limites entre o público e o estatal.
Ainda que a laicidade não atue especificamente como processo
de exclusão ou como elemento de combate entre religião e política,
pode ser considerada como equação fundamental que proporciona aos
sujeitos viver coletiva e individualmente a liberdade, a pluralidade e
suas crenças. Nesse sentido, assim como anticlericalismo não significa,
necessariamente, irreligiosidade, o termo laico não deve ser tomado
como sinônimo de incrédulo. A relação não é de contraposição, mas de
autonomia recíproca entre duas correntes (religião e política) distintas
da ação humana, conforme Norberto Bobbio, Nicola Matteucci & Gian-
franco Pasquino (2010, p. 670).
Deve-se, entretanto, destacar a diferenciação de laicismo e laici-
dade, sendo o primeiro caracterizado como doutrina ou ideologia que
tende a fazer da laicidade um combate contra a presença pública da
religião (Micheline MILOT, 2009, p. 12). Culturalmente, a laicidade ultra-
passa os limites da ideologia e se constitui um método, cuja meta é a
desconstrução de todas as ideologias. A principal razão desse método
seria eximir as instituições públicas e a sociedade civil de toda interfe-
rência exercida por organizações confessionais, a separação jurídica
entre o Estado e o grupo religioso dominante e a garantia de liberdade
dos/as cidadãos/ãs perante esses poderes (Norberto BOBBIO, Nicola
MATTEUCCI & Gianfranco PASQUINO, 2010, p. 670).

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Diante dessa problematização, os aportes teóricos propostos por
Jean Baubérot (2004; 2007 e 2011) são conteúdos indispensáveis para
a compreensão da laicidade. Em contraposição ao recorrente modelo
monolítico de separação entre a religião e política – público e privado,
o principal atributo da laicidade é sua potencialidade em se apresentar
como realidade viva, complexa, constantemente renovada, mesmo
que assolada por contradições da História e pela passagem do tempo.
Mas urgem novas questões. Pode a laicidade planear, arquitetar e/ou
impor sua própra trajetória? Ela é formatada socialmente, assim como
as religiões, o individualismo do nosso tempo, a crise das instituições
e a transformação do Estado-nação?
Roberto Blancarte (2006, p. 32-33) ratifica posicionamento con-
sensual na literatura, indicando que o termo latino laicidade não tem
tradução direta nas línguas anglo-saxônicas. Além da questão linguística,
há uma questão cultural envolvida no termo Estado laico. E no contexto
europeu, laicidade é entendida como elemento relacionado diretamente
com a França e não corresponde, necessariamente, a outros países. Exa-
tamente por isso, é sugestiva a distinção entre fenômeno e conceito. Essa
noção aparece na França, em 1870, mas é possível identificar a laicidade
como construção concreta muito antes disso em outras sociedades.
Assim, é sugestivo isolar o caso francês, com o devido reconhecimento
que a separação Igreja – Estado e República adotada pelos franceses
tornou-se um modelo paradigmático adotado por diversos Estados
Nações (Roberto BLANCARTE, 2006, p. 33).
Mas quando se pode falar de Estado laico? Esse Estado pode ou não
exigir separação da religião, pode ter ou não relações com tolerância.
O próprio caso francês mostra que pode haver um regime de cultos
públicos reconhecidos sem haver laicidade neste momento. Então, qual
é o ponto de ruptura? Isto se dá “quando se passa de um regime cujas
instituições políticas estão legitimadas pelo sagrado, a um regime cujas
instituições políticas – o Estado, não apenas o governo – já não tem uma
forma de legitimidade sagrada” (Roberto BLANCARTE, 2006, p. 34).
Já para Demetrio Velasco (2006, p. 21), a laicidade não tem relação
apenas com a religião institucionalizada, mas também com a questão
do nacionalismo. A evolução semântica do conceito de laicidade car-

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rega em si a sua complexa historicidade (polissemia nas sociedades
modernas e seculares). O termo laico se opõe, de forma geral, ao que
é clerical. Mas na França só aparece na Constituição de 1946 quando
o seu artigo 1º afirma que a França é “uma república indivisível, laica,
democrática e social” (a lei de separação de 1905 não coloca esse ter-
mo). O modelo francês define laicidade como: a) distinção de domínio
(entre Estado, igrejas e indivíduos); b) subtração da influência (do Estado
e da Igreja sobre o indivíduo e a sociedade, com o desmantelamento
da cristandade); c) exclusão por substituição (combate contra a religião
como superstição em nome de uma nova fé laica, racionalista e eman-
cipada), conforme Demetrio Velasco (2006, p. 24). O último se refere
a um laicismo agressivo e militante, que busca eliminar a presença da
religião na vida social em nome da liberdade, paralelo ao paradigma da
secularização entendido como a eliminação da religião da vida pública.
Todavia, Demetrio Velasco (2006) aproxima-se de Roberto Blancarte
(2006 e 2011), ao propor que a forma francesa não é a única para se en-
tender a laicidade, nem sequer reflete exatamente o que foi a laicidade
na história da França. A laicidade não indica formas jurídicas e políticas
de organizar as relações entre religião e sociedade, ou entre igrejas e
Estado, mas, sobretudo, maneiras de pensar e viver a liberdade e a fé,
o pluralismo e a convivência (Demetrio VELASCO, 2006, p. 24).
Na França, a laicidade e a secularização da política são fenômenos
concomitantes, ambas reconhecendo o âmbito autônomo e indepen-
dente do religioso (Demetrio VELASCO, 2006, p. 25). A tolerância e a
liberdade de consciência, pilares de um nascente espírito laico, aparecem
na França, pela primeira vez, de forma provisória e imperfeita, com o
Edito de Nantes (Henrique IV, 1598), revogado mais tarde por Luiz XIV,
o Rei-Sol. Nessa época, a França era um lugar inóspito para o progresso
do espírito laico, devido ao absolutismo real, ao galicanismo, à intransi-
gência católica (jesuítas, jansenistas), entre outros. Daí a radicalização
da Revolução Francesa, que a princípio não era antimonárquica nem
anticatólica, mas tomou um rumo cada vez mais laicista e descristia-
nizador. O poder revolucionário se legitimava somente pela vontade
soberana dos cidadãos e por sua proclamação de direitos e liberdade,
e não pela referência a valores religiosos e, menos ainda, pelas auto-

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ridades sagradas segundo o direito divino. A concordata bonapartista
(com a reação do ultramontanismo católico) e a condução da revolu-
ção por forças conservadoras colocaram em difícil situação oposta os
defensores do Estado laico mais coerente contra a autonomia da Igreja
e os partidários do clericalismo e o uso dos serviços públicos para fins
religiosos (Demetrio VELASCO, 2006, p. 26).
Com a República (1870), inicia-se o segundo limiar da laicidade
(escola e moral laicas e o projeto de separação entre Igreja e Estado
que culminará em 1905, com a ruptura unilateral com a Concordata e o
rompimento de relações com Roma – ponto sem retorno). Passou-se
da distinção de domínio para a subtração e a substituição. Embora essas
interpretações fossem incompatíveis em vários campos, não esteve em
questão a crença em Deus nem a existência das instituições religiosas.
Demetrio Velasco (2006, p. 28) aponta uma estratégia por parte dos
católicos moderados – hipótese e tese. A primeira refere-se à tolerância/
concessão temporal frente à segunda, única fundada na verdade e não
no erro. A própria lei de separação foi assim interpretada, já que as as-
sociações católicas usaram de um princípio democrático estabelecido, o
registro de organizações civis religiosas, para se ajustarem a um princípio
hierárquico. Tratava-se de um Estado laico que não reconhecia verdade
revelada alguma ou religião verdadeira, mas, ao contrário, reconhecia
a existência de associações com seus direitos específicos no marco do
pluralismo democrático, sem que esse marco fosse determinante no
funcionamento daquelas. A intransigência do papado criou uma situa-
ção paradoxal com o Estado que, assim, se viu obrigado a financiar o
culto devido ao vazio jurídico que se criou. Por conseguinte, a teórica
separação radical, inicialmente, além de incompleta, fez-se inaplicável
na prática, possibilitando um compromisso equilibrado entre dois an-
tagonistas irredutíveis.
Nos anos 20, houve uma reaproximação das esferas política e reli-
giosa por diversos motivos, sobretudo depois da grande divergência em
relação ao estatuto das congregações católicas e em relação às escolas.
Em 1945, o episcopado aceita finalmente a laicidade (apoio dos laicistas
e dos católicos que aceitam a laicidade aberta). Nesse sentido, pode-se
estabelecer que a laicidade francesa tenta articular como princípios: a

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unidade republicana, o respeito ao pluralismo das tradições filosóficas
e religiosas e a liberdade de consciência.
A perseguição contra religiosos na Inglaterra levou muitos colonos a
valorizarem a liberdade de consciência acima das fidelidades e pertenças
(Demetrio VELASCO, 2006, p. 29). Isso não excluiu formas exclusivistas
que ameaçaram a vida democrática, mas nunca a ponto de se chegar à
lógica irredutível entre religião e revolução como na França.
Por seu turno, a laicidade norte-americana é expressão da secu-
larização da vida social, entendida como emancipação e diferenciação
estrutural das esferas seculares (política, economia, ciência) diante da
esfera religiosa. Não indica, exatamente, privatização da religião e sua
falta de significado para a vida pública. Não há um laicismo secularista
e inimigo da religião, como no modelo francês. Já a construção da mo-
dernidade na Espanha reflete um processo de radicalização induzida
pelo paradigma francês (Demetrio VELASCO, 2006, p. 34). A partir de
uma tradição autônoma, foi anticlerical sem ter sido antirreligiosa com
duplo frenesi: clericalismo x anticlericalismo.
A crescente afirmação do pluralismo social que, por sua vez, agu-
diza a complexidade do real, obriga a reformular boa parte das teorias
e análises, entre elas as da secularização das sociedades e, portanto,
os discursos sobre o significado e o alcance da laicidade republicana
que, historicamente, estão vinculados a um conceito de autonomia
excessivamente individualista e ao Estado-Nação demasiado centralista
e uniformizador.
A forma como religiões, ideologias e humanismos tratam questões
relacionadas com o sentido da vida humana em sociedade tem posto
em crise o sentido emancipatório da razão, da ciência e do progresso,
que o Estado moderno, em boa medida, havia tomado ao seu cargo, tal
como foi entendido o discurso laico e republicano francês. A república
não está mais ameaçada pelo catolicismo ultramontano ou pelo fun-
damentalismo religioso, mas pelo papel que deve cumprir a laicidade
republicana em sociedades seculares e plurais, cujo principal problema
é a anemia ética e o clima de indiferença que contaminam seus siste-
mas democráticos. Paradoxalmente, é esse clima que tem provocado
o retorno de fundamentalismos e dogmatismos que assumem senhas

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identitárias e se projetam com políticas da mesma forma (Demetrio
VELASCO, 2006, p. 37).
Se a laicidade é, por um lado, uma expressão singular dos processos
de secularização das sociedades modernas que se traduzem em uma
forma concreta de entender e organizar as relações entre a sociedade
e a religião, ou entre o Estado e as igrejas, e, por outro, é “um espaço
de liberdade pública, aberta a todos e a cada um, quaisquer que sejam
suas convicções e crenças” (Demetrio VELASCO, 2006, p. 40) que obriga
o sujeito a passar do paradigma dos poderes ao paradigma das liber-
dades públicas, o desafio principal é o sentido último da secularização
e os limites do exercício das liberdades públicas.
Conforme Demetrio Velasco (2006), o Estado tem a obrigação de
controlar o exercício das liberdades religiosas e das liberdades públicas,
para que não se instrumentalizem de forma perversa a ponto de serem
penalizadas por critérios democráticos. As instituições religiosas talvez
possam assumir como horizonte hermenêutico de seu exercício dos direi-
tos públicos o potencial dos direitos fundamentais, como os interpreta
a lógica democrática, em consonância com o conceito de liberdade na
república: liberdade como não dominação (Demetrio VELASCO, 2006,
p. 41). Assim, a laicidade bem entendida não pode se confundir com a
isenção do Estado. Ele deve intervir nas situações de dominação, seja
no público, seja no privado, já que esta não é legítima em forma alguma
(Demetrio VELASCO, 2006, p. 41). Nessa perspectiva, torna-se cada vez
mais decisiva a atuação do Estado na gestão e racionalização do debate
e saberes em torno da delimitação prática do exercício da liberdade
individual, dos direitos sexuais e reprodutivos, da pluralidade, da diversi-
dade, igualdade e autonomia dos sujeitos com o propósito de construir
um tipo de laicidade mediadora (Danièle HERVIEU-LÉGER, 2005).
Devidamente contextualizados, os tipos ideais tipificados por Jean
Baubérot e Micheline Milot (2011, p. 73-120) – laicidade separatista na
qual o marco principal é a separação entre Igreja e Estado; laicidade
autoritária interposta quando o equilíbrio estatal estiver ameaçado
por poderes religiosos; laicidade anticlerical, que objetiva a autonomia
estatal em contraposição às agremiações/tradições historicamente
instituídas e que exatamente por isso pautam e limitam a esfera pú-

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blica; laicidade de fé cívica que ocupa espaços em substituição a va-
lores religiosos impostos, tornando as crenças facultativas; laicidade
de reconhecimento em defesa das escolhas e liberdades individuais e
laicidade de colaboração que pode solicitar ou aceitar a colaboração
pontual das instituições religiosas – têm valor primordial com a validade
de constituir o fenômeno como laicidades, dadas as múltiplas formas
assumidas e condicionadas pelos limiares do tempo e seus indicadores
correspondentes, motivo pelo qual a construção social da laicidade no
Brasil deve ser revisada levando-se em conta os aspectos históricos da
relação entre Estado e religião.
Pablo da Silveira (2004) amplia esse debate ao propor outras três
concepções tipológicas em consonância aos tipos ideais estruturados
por Jean Baubérot (1990). Aponta os métodos da laicidade de combate,
que entende a religião como atitude irracional que só pode ser tolerada
na medida em que suas práticas circunscrevem aos limites do templo
e/ou da casa, da laicidade de abstenção que, mesmo anticlerical não é
antirreligiosa, logo não tem dificuldade em reconhecer que o sujeito
crente pode ser ao mesmo tempo um indivíduo racional e democrata
e, por fim, aponta a concepção da laicidade plural que, embora consi-
dere a separação entre o Estado e a religião, assume o compromisso
do diálogo e a capacidade de assumir o diferente, inclusive o campo
religioso (Pablo da SILVEIRA, 2004, p. 203-207).
Assim, torna-se significativamente válido tomar o conceito de
laicidades – conforme proposto por Jean Baubérot e Micheline Milot
(2011) – fator que possibilita o reconhecimento das múltiplas configu-
rações assumidas pelo fenômeno, tendo como fatores estruturantes
e bases fundamentais (elementos obrigatórios) apenas a liberdade de
consciência; igualdade entre convicções religiosas e filosóficas; sepa-
ração entre o Estado e Igreja e/ou autonomia política; e a neutralidade
estatal. Desse modo, as laicidades não assumiriam formas estáticas,
lineares e imutáveis, mas estariam configuradas em consonância com
as demandas históricas e sociais do contexto em que estão inseridas
(Jean BAUBÉROT; Micheline MILOT, 2011, p. 76-80).

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DA DIFERENCIAÇÃO ENTRE LAICIDADE E SECULARIZAÇÃO
Embora a literatura especializada distinga laicidade e secularização
(José CASANOVA, 1994; Ricardo MARIANO, 2011, entre outros), em de-
terminadas circunstâncias históricas os processos podem apresentar
características que os aproximam. Daí a potencialidade para interpreta-
ções reduzidas ou análises conjunturais que intercambiam os conceitos
– como se sinônimos fossem – para explicar fenômenos distintos.
Ao refletir sobre a distinção entre os dois conceitos, Dario Paulo Bar-
rera Rivera (2015, 20) propõe que “a laicização corresponde a um enfoque
institucional, enquanto a secularização comporta um enfoque cultural”,
ou seja, a secularização implica a perda da autoridade na dimensão do
saber sagrado, bem como, na esfera dos valores. Nas sociedades secula-
rizadas, a religião não tem mais o monopólio da produção normativa de
valores e saberes, função essa exercida por múltiplas instituições como
a escola pública, as ciências, a medicina e os meios de comunicação e
cuja credibilidade é continuamente colocada à prova pela difusão intensa
da informação (eletrônica e em tempo real) e sob a pressão de outros
campos de atividade social (econômico, intelectual, artísticos etc.). Essa
religião deixa de ser defendida pelo Estado, que adota uma ordem neutra
sem compromissos com qualquer agremiação religiosa.
Embora partindo do mesmo princípio, percebe-se que os proces-
sos da secularização e da laicidade são distintos. Além disso, uma so-
ciedade secularizada não requer, necessariamente, a laicidade estatal
(por exemplo, o caso da Inglaterra e Dinamarca). O contrário também
é verdadeiro. Embora institucionalmente laico, determinado Estado
pode, ainda, comportar uma sociedade mais ou menos secularizada,
a depender da perspectiva (por exemplo, Estados Unidos e Turquia).
O mais frequente é que os dois processos se cruzem e se conjuguem
sem seguir, obrigatoriamente, o mesmo rumo, evolução e dinâmica
(Micheline MILOT, 2009, p. 30).
Para Micheline Milot (2009, p. 29), a secularização manifesta-se
como um processo sociocultural progressivo – dentre outras tantas
transformações socioculturais – e sem conflitos importantes. Mesmo
que a religião possa manter-se como fornecedora de sentido para par-
cela da população, para outros sujeitos não terá qualquer significado

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ou poderá, ainda, dentro de amplo conjunto simbólico sofrer arranjos
variados e ser formatada de acordo com a demanda e conveniência
dos sujeitos. Além disso, em países que passaram pela substituição da
legitimidade, se desconhece a palavra laicidade, como por exemplo, na
Dinamarca, nunca houve separação Igreja-Estado, e as formas de legi-
timação política dependem cada vez menos das instituições religiosas.
Por sua vez, a laicidade raramente se desenvolve sem engendrar
relações de forças e suscitar debates sociais, já que modifica o funcio-
namento das instituições políticas e religiosas. Isso pode ser exempli-
ficado pelas controvérsias oriundas da laicização do ensino público,
considerando que o abandono da inspiração educacional confessional
poderá parecer inconcebível para determinados grupos. De igual modo,
a laicidade não afeta a todas as instituições e a todos os aspectos da
regulação política de maneira uniforme e simultaneamente (Micheline
MILOT, 2009, p. 29-30). Pode haver, por exemplo, a laicização do direito
matrimonial antes da laicização da educação, a laicização dos registros
civis antes do calendário, ou vice-versa.
Na perspectiva de Roberto Blancarte (2006, p. 34), as principais
vantagens para esse entendimento residem na possibilidade de esta-
belecer democracia e laicidade como construções sociais e não apenas
resultantes de decretos ou por razões históricas isoladas, logo são pro-
cessos em construção e, portanto, sempre inacabados. Se inacabado
é, trata-se de uma transição, pois há muitas formas de democracia (e
também de laicidades) e o Estado permanece com diversos elemen-
tos de sacralidade, ou substituição de sacralidade, motivo pelo qual
a laicidade adquire cores especiais com contornos bem particulares a
depender do cenário analisado, como pode ser percebido na América
Latina. Vejamos especificidades na construção do modelo brasileiro
apresentadas a seguir.

PANORAMA DO DESENVOLVIMENTO HISTÓRICO-SOCIAL DO PRO-


CESSO DA LAICIDADE NO BRASIL
A Constituição do Império, promulgada em 1824, em seu artigo 5º
estabelecia que: “A Religião Catholica Apostolica Romana continuará
a ser a Religião do Imperio. Todas as outras Religiões serão permitidas

Mandrágora, v.23. n. 2, 2017, p. 151-178 163


com seu culto domestico, ou particular em casas para isso destinadas,
sem fórma alguma exterior do Templo” (cf. Constituição Politica do
Imperio do Brazil de 25/03/1824).
Com o advento da primeira Constituição Republicana em 1891 – ini-
ciada com a instalação da Assembleia Constituinte em novembro de 1890
e promulgada em 24 de fevereiro de 1891 – foi estabelecida a liberdade
de culto, a laicização do ensino em escolas públicas e o casamento civil,
o fim da subvenção religiosa, a secularização dos cemitérios, além da
transferência para a máquina estatal de funções atribuídas ao clero
católico, por exemplo, a emissão de atestados de óbito e da certidão
de nascimento (cf. Constituição da República dos Estados Unidos do
Brasil de 24 de fevereiro de 1891).
As Cartas Constituintes de 1891 e 1937 não fizeram menção à invo-
cação da proteção de Deus nos seus preâmbulos, inserção executada
nas Cartas promulgadas em 1934, 1946, 1967 e 1988, no entanto, tal
expressão não tem valor normativo, não se trata de norma de reprodu-
ção obrigatória nas Constituições estaduais e não estabelece vinculação
com qualquer grupo religioso, ainda que tais normativas não diminuam
o valor da funcionalidade simbólica dessa formulação, segundo enten-
dimento do Supremo Tribunal Federal no julgamento em 15/08/2002
da Ação Direta de Inconstitucionalidade – ADI 2.076. A ementa, o
acórdão, o relatório e os votos dos ministros que julgaram a ADI 2.076
estão disponíveis em: <http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.
jsp?docTP=AC&docID=375324> (Acesso em: dez./ 2015).
Conforme Joana Zylbersztajn (2012, p. 20-21), as reações contrárias
à separação entre Igreja e Estado, estabelecida em 1890-1891, foram
notórias, principalmente por parte do clero católico e o resultado de
tais reivindicações pode ser observado na construção da Constituição
de 1934 (cf. Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil de
16 de julho de 1934) que – entre outros temas – estabelecia a validade
civil dos casamentos celebrados por sacerdotes, a admissibilidade da
manutenção de cemitérios particulares por associações religiosas e o
reconhecimento do ensino religioso. Contudo, o texto da Constituição
dos Estados Unidos do Brasil de 10 de novembro de 1937 fez algumas
revisões e previu o caráter secular dos cemitérios (art. 122, §4º.) sem

164 Mandrágora, v.23. n. 2, 2017, p. 151-178


qualquer alusão à administração por ente religioso, bem como, não
disciplinou sobre o casamento religioso. Embora a Constituição de 1934
tivesse mantido o dispositivo quanto à separação entre a Igreja e o Es-
tado, essa previsão indicava a possibilidade da cooperação, conforme
o Artigo 17:

Artigo 17. É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos


Municípios: II – estabelecer, subvencionar ou embaraçar o exercício
de cultos religiosos; III – ter relação de aliança ou dependência com
qualquer culto, ou igreja sem prejuízo da colaboração recíproca em
prol do interesse coletivo. (Constituição dos Estados Unidos do Brasil,
de 10 de novembro de 1937, Art. 17.)

Ainda, segundo Joana Zylbersztajn (2012, p. 24), a regulação da se-


paração entre Igreja e Estado, executada de forma restrita no texto da
Constituição de 1934, foi normatizada de modo amplo em 1946 (art. 31,
II e III da Constituição dos Estados Unidos do Brasil de 18 de setembro
de 1946). Entre outros elementos, foram mantidos os termos relativos
à liberdade de consciência e crença, o exercício de culto, o caráter jurí-
dico das associações religiosas, além de incluir a escusa de consciência
no dispositivo sobre a determinação da impossibilidade da privação
de direitos por motivos de convicção religiosa. O texto de 1946 intro-
duziu, novamente, a regulamentação acerca da situação da prestação
do serviço militar por religiosos (Art. 181, §2º.), manteve a previsão a
respeito do direito de o trabalhador gozar os feriados religiosos (Art.
157, VI) e voltou a sistematizar os efeitos do casamento religioso (Joana
ZYLBERSZTAJN, 2012, p. 24).
Os textos da Constituição da República Federativa do Brasil de 1967
e da Emenda Constitucional Nº. 1, de 17 de outubro de 1969 (elaborados
no contexto da ditadura militar), não trouxeram grandes inovações nos
quesitos relacionados ao campo religioso, embora fossem restritivos
quanto às liberdades. O texto da Constituição da República Federativa
do Brasil de 1988 (elaborado na conjuntura da redemocratização), ainda
que não faça referência explícita ao princípio da laicidade estatal, no
Artigo 19, I dispõe que:

Mandrágora, v.23. n. 2, 2017, p. 151-178 165


Artigo 19, I – é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e
aos Municípios estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-
-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus
representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na
forma da lei, a colaboração de interesse público. (Constituição da
República Federativa do Brasil, de 1988, Art. 19, I.)

Entre os vários dispositivos tipificados, a Constituição Federal de


1988 mantém o reconhecimento civil para as celebrações executadas
por religiosos (Art. 226, §2º.) e as previsões da imunidade tributária a
quaisquer templos (Art. 150, VI, b) e do ensino religioso facultativo (Art.
210, §1º.). Vale destacar a reconhecida inspiração democrática inserida
na carta constituinte em garantia às liberdades e igualdade, inclusive à
liberdade de culto, de crença e de consciência.
É evidente, como já apontado, que o processo da laicidade não
se restringe aos aspectos jurídicos, bem como, não se dá simples-
mente por força da imposição legal. No entanto, é salutar identificar
a influência da legislação na construção social da laicidade. Como
bem observa Dario Paulo Barrera Rivera (2015, p. 26), a legislação
brasileira que estabelece a separação entre religião e Estado é ante-
rior à francesa (1905) entendimento que, também, pode ser aplicado
aos modelos uruguaio (1917) e mexicano (1857), porquanto o evento
brasileiro pode ser tomado como de significativa representatividade
em termos políticos, jurídicos e sócio-históricos.
Ainda que constantemente a laicidade estatal tenha sido burlada e
obstaculizada para impedir os efeitos em sua plenitude, Dario Paulo Bar-
rera Rivera (2015, p. 26) indica esse fato como referencial indispensável
para, em perspectiva histórica, analisar a evolução da laicidade estatal
brasileira e as tensões próprias de um campo religioso multifacetado,
plural, fragmentado, diverso e multiforme.
Emerge, então, a necessidade de questionar a possiblidade de
convivência social em contextos plurais sem a mediação da laicidade
problematizada pela complexidade de conjugar as demandas oriundas
desse cenário com a vivência concreta da democracia e da igualdade,
já que ainda na contemporaneidade há grupos minoritários que legiti-

166 Mandrágora, v.23. n. 2, 2017, p. 151-178


mamente reivindicam o princípio da liberdade religiosa, de consciência
e de não pertença que, useiro e vezeiro, a eles são negados.
Por essa razão, manifesta-se a pertinência em estabelecer a laici-
dade estatal como um processo que, por definição, é um movimento
que implica variações de ritmo, de sentido, de direção, de avanço ou
recuo e mesmo de intervalos de imobilização, porquanto não caminha
unicamente em progressão e o percurso não é tão-somente avante
e linear, como se pode depreender quando os aspectos jurídicos são
tomados como únicos referenciais.
À vista disso, a pluralidade religiosa no Brasil, o crescimento da
adesão aos grupos evangélicos e o êxito eleitoral dessas agremiações
nos pleitos recentes são elementos que reconfiguram completamente
o caráter laico do Estado brasileiro. Ainda que não sejam complemen-
tares entre si ou obrigatoriamente derivantes, deve-se reconhecer que
a conexão entre os eventos (crescimento de evangélicos mais o êxito
eleitoral) influencia, definitivamente, a forma e o significado da laicida-
de estatal brasileira. O acúmulo de capital simbólico e o crescimento
quantitativo aliado ao reposicionamento estratégico de determinados
grupos religiosos têm proporcionado o desenvolvimento de projetos de
atuação na política partidária com a clara intenção de pautar as ações
legislativas com assuntos inerentes aos interesses da agremiação de
acordo com os códigos da sua crença, como demonstrado por Dario
Paulo Barrera Rivera (2015, p. 32).
Amplificado pelos meios de comunicação, por intensa atuação nas
mídias sociais e eletrônicas e ocupação de múltiplos espaços, os grupos
religiosos, sobretudo do conjunto pentecostal, têm conseguido obter
expressivo sucesso nas disputas eleitorais com presença significativa nas
casas legislativas nas esferas municipal, estadual e federal. É evidente
que o crescimento de fiéis captado pelo Censo realizado pelo IBGE
impacta diretamente nesse êxito eleitoral (Dario Paulo Barrera RIVE-
RA, 2015, p. 28-33). Tal ativismo tem alvo e interesses bem específicos,
especialmente pelas questões relacionadas ao controle dos corpos, à
moral sexual e aos direitos reprodutivos, como será demonstrado nos
tópicos seguintes. Da parte de líderes religiosos/as há o recrudescimen-
to dos discursos, da violência simbólica e da desconstrução do outro

Mandrágora, v.23. n. 2, 2017, p. 151-178 167


que, na necessidade de angariar novos/as seguidores/as em arena tão
competitiva, a virulência do ativismo e da propaganda torna-se marca
sob os auspícios da liberdade de expressão.

A LAICIDADE ESTATAL BRASILEIRA SEGUNDO A DEFINIÇÃO DOS/


AS PARLAMENTARES FEDERAIS EVANGÉLICOS/AS
A partir do percurso até aqui delineado, torna-se sugestiva a com-
preensão de alguns parlamentares da bancada evangélica quanto à
postura do Estado laico, já que não defendem publicamente o estabele-
cimento de um Estado religioso, mas querem que a sua presença tenha
a mesma forma e legitimidade que outros grupos de opinião e pressão
têm sobre o Estado. Embora definam a laicidade como a separação ou
a independência do Estado em relação à religião, a atuação de atores
políticos na esfera pública a partir da sua pertença religiosa não pode
e não deve ser negada ou impedida pelo Estado.
Igualmente, é recorrente encontrar discursos de religiosos evan-
gélicos (parlamentares ou não) com argumentos que relacionam e/
ou igualam laicidade (separação entre o Estado e religião) a laicismo
(negação e/ou retração da presença do religioso na esfera pública)
reivindicando a prerrogativa da religião desfrutar do espaço social e
atuar na esfera pública em condição de equivalência com os demais
grupos e movimentos sociais sem, necessariamente, afrontar o caráter
laico do Estado.
Em contrapartida, as demandas que reivindicam relações igualitá-
rias no acesso e nas relações entre religião e o Estado configuram-se
como imposição de valores, privilégios, discursos e ações de um grupo
religioso sobre os demais, fortalecimento de determinadas instituições
e marginalização das demais crenças, a considerar o tamanho do capital
político e simbólico acumulado.
Paradoxalmente, é ideia predominante entre os/as parlamentares
entrevistados/as que a separação entre o universo estatal (esfera pú-
blica) e as religiões (esfera privada) é condição nucleica para o pleno
exercício da democracia, para a garantia de direitos das minorias, fiança
da pluralidade religiosa e promoção da liberdade de crença, pelo que
articulam a regulação e o redimensionamento da religião no espaço pú-

168 Mandrágora, v.23. n. 2, 2017, p. 151-178


blico (secularização) e a laicidade do Estado e os conectam de maneira
bem peculiar para defender a presença da religião no espaço público.
Embora a totalidade do conjunto de parlamentares entrevistados/as
reconheça a separação na forma da lei entre religião e Estado, bem
como, a admissão que esse processo aconteça pelo viés da laicidade,
o entendimento do conceito é bem variado com posicionamentos que,
se não equivocados, apresentam imprecisão na forma, no conteúdo e
na aplicação. Senão vejamos. A partir das manifestações apresentadas
para a questão “O que o/a Sr./Sra. entende por laicidade?” temos o
seguinte inventário:

Parlamentar Posicionamento
“Por exemplo, meu partido pode seguir uma orientação, mas devido
Bruna Furlan
a minha religião eu sou liberada para seguir o que a minha convicção
/ PSDB – SP
me diz a fazer. Então em temas religiosos, nós somos liberados. Então
(entrevista
isso também é uma forma de dizer que a política e os partidos aceitam,
realizada em
que não é tão laico assim, já que nós podemos votar de acordo com
São Paulo no dia
as nossas convicções religiosas. Então há uma liberdade religiosa no
14/11/13)
parlamento.”
“Eu acho que isso é próprio do Brasil. Eu acho isso muito bom. Eu gosto
Laercio de
de dizer que meu país é um país laico. Eu gosto porque nós somos
Oliveira / SD –
todos irmãos. Eu quero pregar as boas novas de Jesus pra todo mundo
SE (entrevista
que eu puder. Mas eu quero pregar no nosso ambiente de convivência.
realizada em
Eu não quero que ele me ache melhor do que ele, de jeito nenhum.
Brasília no dia
Pelo contrário, eu quero que ele sinta que eu estou ali do lado dele,
12/03/14)
convivendo com ele.”
“Então, a gente até compreende que o poder público por, vamos dizer,
por ser um representante de todos os segmentos de uma sociedade,
tem que ser laica, ela não pode ser tendenciosa nem para um lado nem
para outro, mas isso é entre aspas isso é hipocrisia, porque o governo
tem que ser laico, mas ele tem que seguir a ideologia da maioria cristã.
Eu não posso aceitar, vamos dizer, uma, um... deixa eu usar a palavra...
Takayama / PSC uma ditadura de maioria, mas também não posso aceitar a imposição
– PR (entrevista de uma minoria ruidosa, como o LGBT eles... Direitos humanos cada um
realizada em pensa como acha que deve pensar ou, a gente chama isso na, como
Brasília no dia cristão como livre arbítrio, cada um pensa o que quer. Agora, tem
26/03/14) que ser respeitada a maioria, né. E é o que nós não vemos. Basta um
camarada aqui ter posição firme para eles chamarem a gente de, colocar
a pecha de fundamentalista, é. Bom. Mas essa palavra fundamentalista
tem a conotação de fanático, entendeu? E a gente não pode aceitar isso.
Mas infelizmente é assim. Então as forças se delineiem, vamos dizer se
acentuam e se delineiam.”

Mandrágora, v.23. n. 2, 2017, p. 151-178 169


Benedita da “O Estado é laico porque ele tem responsabilidades com todos, ele tem
Silva / PT – RJ responsabilidade plural. O Estado não pode discriminar. O Estado desde
(entrevista que você como cidadão se organiza e busca esse seu direito ao Estado
realizada em compete realizá-lo.”
Brasília no dia
08/04/14)
“A gente vive num país laico, mas quando a gente quer fazer uma
grande, um grande, uma grande movimentação nós não podemos
utilizar dinheiro público. Porque o estado é laico e o dinheiro público
Marcelo Aguiar não pode ir para a igreja, nem católica, nem evangélica, nenhum tipo de
/ DEM – SP religião. O estado é laico, mas eles podem gastar milhões com tantas
(entrevista outras necessidades que aparecem que não vão trazer nenhum beneficio
realizada em para o Brasil e quando é, sei lá, um evento que vai trazer paz, amor, algo
Brasília no dia social a gente se depara em algumas, em alguns entraves. Isso aí vai ser
26/03/14) uma luta ainda pela frente, porque, como o estado é laico, como tá na
constituição, a gente não pode fazer parte daquilo, muitas vezes, que ia
trazer um crescimento pra nós, né.”
Andreia Zito “A laicidade distingue e separa o domínio público, onde se exerce
/ PSDB – RJ a cidadania, do domínio privado, onde se exercem as liberdades
(entrevista individuais do pensamento, da consciência e da convicção. A laicidade,
realizada por assim entendo, garante a todos nós o direito de adoção de uma
e-mail em convicção, de mudar de convicção ou de não adotar nenhuma.”
10/04/14)
“A nossa laicidade ela é muito tênue, a diferença da presença do Estado
na vida do cidadão e da igreja ela é muito tênue. Nós somos um país que
viemos de quase quinhentos anos de boa parte desse país, desse tempo,
foi dominado por uma religião. Nós sabemos que cada loteamento a
parte nobre, os centros, as matrizes, as catedrais eram destinados pra
uma religião. Sabemos que até o final do século retrasado nós tínhamos
religião oficial no país. As igrejas eram subvencionadas, elas podiam receber
recursos, doações, imóveis do governo.”
“Eu penso que a nossa laicidade de fato, podemos ter um marco na
Jeferson Campos constituição de 88. São aí 25 e poucos, 25 anos aproximadamente só que
/ PSD – SP temos essa laicidade realmente regulamentada. E ela ainda é muito, ela
(entrevista vai muito ainda da cabeça do legislador.”
realizada em “Nós temos, por exemplo, um recurso gasto no carnaval pra uma escola
Brasília no dia de samba que vai pra avenida falar de uma entidade, por exemplo, de uma
26/03/14) religião afro e ali se fala de entidades, se veste como entidade, a música
canta sobre a entidade, não é. Mais na nossa cidade também, em Sorocaba,
o Ministério Público e a justiça está questionando o porquê há um recurso
para a Marcha para Jesus ou para um festival de música gospel. Então
você pode, não se aceita como cultura, e nós aprovamos um projeto aqui
que a música gospel é uma música cultural, porque afinal de contas ela
também transmite uma cultura, dos evangélicos. Como a cultura católica,
como a cultura afro.”

170 Mandrágora, v.23. n. 2, 2017, p. 151-178


“Aqui nós temos a bancada dos ruralistas, e quem manda os ruralistas pra
cá? Os próprios ruralistas. Aqui dentro nós temos a bancada do comércio,
nós temos a bancada dos médicos, nós temos a bancada feminina. E porque
não ter uma bancada religiosa se a religião está intrínseca em nosso país?”
Marco Feliciano / “Se confunde muito estado laico e estado laicista. O estado brasileiro,
PSC – SP o estado democrático de direito brasileiro é um estado laico, ele não é
laicista. O estado laico o resumo, ou a principal, como é que eu posso
(entrevista dizer... O significado do estado laico é exatamente o contrário do que pensa
realizada em todas as pessoas que por ignorância não entendam. Por que eles acham
Brasília no dia que como o estado é laico a religião tem que ser colocada de lado. Não é
09/04/14) assim. O estado laico ele protege o direito, ele protege a minha liberdade
de culto, a sua, e de todas as demais religiões. Ou seja, ele não impede
ninguém. O estado brasileiro é um estado laico mais não é um estado ateu.”

Se possível fosse aferir em termos qualitativos a variação sobre a


operacionalidade da laicidade na perspectiva do conjunto de parlamenta-
res entrevistados/as, teríamos: a laicidade entendida como cooperação;
a laicidade ignorada em defesa dos interesses da maioria ou, ainda, a
laicidade atenuada. A questão legal é ressaltada de forma recorrente, no
entanto, é comum a defesa dos interesses de pretensa maioria, ou seja,
a laicidade deve ser ignorada todas as vezes que as crenças do grupo
religioso majoritário forem confrontadas. O elemento mais invocado
refere-se à liberdade de culto, ignorando-se a liberdade de consciência
e a de não pertença. Essa reivindicação é sugestiva, pois não está re-
lacionada à liberdade de culto do outro. É a defesa do seu direito, do
espaço conquistado e do capital acumulado, portanto a liberdade deve
ser proporcional ao espaço ocupado, logo quanto maior o empodera-
mento do grupo tanto mais direitos lhes serão devidos, como pode ser
observado na manifestação do deputado Takayama:

Eu tenho a seguinte concepção: alguns dizem que o povo é laico.


Não. O estado é laico, mas o povo brasileiro é cristão. Então, eu acho
que eu tenho, mais ou menos, 70 a 80% entre católicos e evangélicos
no Brasil, e são cristãos. Que eles querem a defesa dos valores da
família, embasados no ensino bíblico cristão. Ora, ninguém grita por
eles, é uma omissão total, busca-se os votos dos evangélicos e dos
católicos, mas não defende a tese da, vamos dizer, do idealismo ba-
seado dentro dos ensinos de Cristo, então eu estou aqui exatamente
para gritar o que eles querem que a gente grite, porque eu entendo

Mandrágora, v.23. n. 2, 2017, p. 151-178 171


que o deputado é um representante, ele tem que falar aquilo que o
segmento que o elegeu fala, pensar como pensa o segmento dele,
defender as teses dele. É isso que eu faço. (Takayama: PSC – PR,
entrevista realizada em Brasília no dia 26/03/14.)

Percebe-se que a atuação parlamentar pautada pela pertença


religiosa é considerada plausível e os/as parlamentares evangélicos/as
não apontam qualquer impedimento em impor para a sociedade suas
crenças quando o exercício parlamentar é legitimado pela pertença
religiosa, pois não se reconhecem como agentes do Estado, como nos
informa o deputado Jean Wyllys:

Esses sujeitos religiosos quando entram na estrutura pública abusam


dessa presença. Não entram nessa arena com uma postura reflexiva
como eu disse e levando em conta toda essa diversidade. Muito pelo
contrário, entram com espírito autoritário, com uma leitura funda-
mentalista e dogmática. E isso é inadmissível, porque isso solapa a
laicidade. Concordar com a presença do ponto de vista religioso na
arena, na esfera pública não quer dizer compactuar com a presença
de símbolos religiosos nas instituições públicas. Tem que ser tirado
os símbolos religiosos. Tem que ser tirado em nome da laicidade do
Estado. Ninguém é obrigado a abandonar a sua fé privada, mas a
ostentação pública de uma religião num país plurirreligioso é uma
ofensa à laicidade. E isso não deve acontecer. Não deveria acontecer,
entendeu? Acho que toda tentativa autoritária de impor dogmas como
leis a um conjunto de uma população plural tem que ser rechaçado. O
que não quer dizer que a população religiosa tenha que abrir mão de
uma representação. Não, ela pode ter uma representação. Desde que
ela se dê conta, desde que o representante se dê conta do mundo
que ele está lidando. (Jean Wyllys: PSOL – RJ, entrevista realizada
em Brasília no dia 12/03/14.)

Nesse sentido, tem-se um processo laico minimizado ou atenuado,


já que não há neutralidade estatal em matéria legislativa pautada pelos/
as parlamentares evangélicos/as, mas a imposição de sentidos através
da atividade legislativa privilegiando uma crença em detrimento às de-
mais. Em linhas gerais, na visão desses/as parlamentares o processo de
construção social da laicidade resultaria um modelo que combinaria a
laicidade de cooperação, minimizada ou simplesmente alienada.

172 Mandrágora, v.23. n. 2, 2017, p. 151-178


A LAICIDADE PAUTADA PELA MORAL EVANGÉLICA: A AGENDA DA
FPE NA 54ª LEGISLATURA EM PERSPECTIVA DE GÊNERO
Para esta análise, vamos considerar os projetos de leis e outras
proposições apresentadas e/ou requeridas pelos/as parlamentares
evangélicos/as na 54ª Legislatura relacionadas especificamente aos di-
reitos reprodutivos e à sexualidade. Deve-se ressaltar que há pesquisas
disponíveis que retratam a influência de valores religiosos na legislação
brasileira a partir de diferentes perspectivas e recortes. Citamos, por
exemplo, a coletânea Valores Religiosos e Legislação no Brasil – a trami-
tação de projetos de lei sobre temas morais controversos (Luiz Fernando
Dias DUARTE et al., 2009) que apresenta os resultados da pesquisa inti-
tulada “Entre o público e o privado: influência dos valores religiosos na
proposição e tramitação de Projetos de Lei”, desenvolvida no Núcleo
de Pesquisa “Sujeito, interação e mudança: problemas e perspectivas
na sociedade brasileira” (sediado no Programa de Pós-Graduação em
Antropologia Social, Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de
Janeiro, UFRJ), sob a coordenação geral do Prof. Luiz Fernando Dias
Duarte, no período de setembro de 2006 a agosto de 2007. A investi-
gação consistiu na análise da influência dos valores religiosos na ela-
boração, proposição, aprovação e recusa de projetos de lei na Câmara
dos Deputados e nas Assembleias Legislativas dos Estados do Rio de
Janeiro e São Paulo, de todos os projetos catalogados e disponíveis para
consulta on-line visando à composição de banco de dados e distribuídos
para análise nas áreas temáticas do projeto.
Nossa consulta foi realizada na base de dados do Congresso Na-
cional e o acesso a esse material foi executado através do serviço de
busca disponível em: http://www.camara.leg.br/sileg/default.asp. A
consulta pode ser feita por intermédio de duas ferramentas distintas,
a saber: pelo número da proposição ou pela pesquisa avançada a partir
das seguintes variáveis: tipo, número, situação, assunto, autor, relator,
tramitação, data e órgão e que podem ser escolhidos isoladamente ou
conjugados.
Optamos por utilizar o filtro de consulta pesquisa completa por as-
sunto a partir das seguintes palavras-chave: gênero, religião, laicidade,
aborto, direitos reprodutivos, estatuto da família, família, nascituro,

Mandrágora, v.23. n. 2, 2017, p. 151-178 173


homossexual, homossexuais, gay, gays, homossexualidade, homosse-
xualidades, lésbica, lésbicas, homoafetividade, heterossexual, heteros-
sexuais, travesti, travestis, transexual, transexuais, orientação sexual,
casamento igualitário, união civil e homofobia considerando todas as
proposições apresentadas no período histórico compreendido entre
01/01/2011 a 31/12/2014 (início e término do período legislativo) com
consulta para cada palavra-chave e sem a conjugação de temas.
Sabe-se que tais temas também são pautados pelos demais par-
lamentares, seja no âmbito individual, das frentes parlamentares, das
bancadas temáticas ou partidárias. No entanto, consideramos ser
pertinente identificar essas proposituras levando-se em conta que nas
falas dos/as parlamentares evangélicos/as entrevistados/as esses temas
são abordados exclusivamente a partir de seus princípios religiosos,
logo pretensiosamente absolutos e inquestionáveis desconsiderando
experiências que ofereçam entendimentos que confrontam os padrões
estruturados a partir da moral religiosa adotada, sobretudo àqueles re-
lacionados ao aborto e às sexualidades, daí a justificativa pelas palavras
que orientaram a busca.
Por exemplo, ao ser questionado sobre a influência da pertença reli-
giosa na atividade parlamentar, o deputado Jefferson Campos declarou:

Nas questões que envolvem sua fé sim. Não é? Algumas atitudes que
podem de alguma forma prejudicar ou comprometer a atuação deste
ou daquele grupo religioso. E aqui nós vemos que há leis, há norma-
tivas aqui que de alguma forma interfeririam. Ou premeditadamente
ou sem essa premeditação, mais aparece sempre e há muitos, muitas
leis tramitando que podem de alguma forma querer tolher a nossa
ação ou nos prejudicar. E eu vejo efetivamente a presença desta,
desse grupo de trabalho quando diz respeito a sua fé.

Por exemplo, há um projeto, um projeto que eu posso citar aqui


hoje, que tramita na casa, que tenta proibir as concessionárias de rádio
e televisão de alugar ou vender espaços para terceiros, né. Este tema
que afetaria profundamente a nossa atividade, porque é sabido que
a atividade religiosa ela cresceu muito a partir do momento em que
teve acesso aos meios de comunicação, né. A partir da década de 80
começaram a surgir programas televisivos, rádios, arrendamentos ou

174 Mandrágora, v.23. n. 2, 2017, p. 151-178


compras. Agora a igreja não possa ser detentora da concessão, mais
ela começou a ter acesso a essa, esses meios de comunicação e isso
facilitou, isso fez com que a mensagem transmitida apenas dentro das
igrejas pudesse chegar até os nosso fiéis ou aqueles que pretendessem
ser fieis. Então são projetos dessa natureza que muitas vezes ferem ou
se chocam com a mensagem que nós pregamos dentro da igreja e que
nós entendemos ser boa para o povo brasileiro. (Jefferson Campos:
PSD – SP, entrevista realizada em Brasília no dia 26/03/14.)

Para a mesma questão, o deputado Marco Feliciano posicionou-se


da seguinte forma:

Bom, como eu disse, ao entrar aqui dentro movido pelo senso de


defesa da igreja, do cristianismo e da família, porque minha base aqui
é família, e vi o PL 122 eu me apavorei duas vezes mais, porque no dia
02 de novembro... no dia 02 de fevereiro de 2011 quando eu assumi
coloquei minha equipe para vasculhar aqui dentro se havia mais al-
gum tipo de projeto que poderia ferir a família e a liberdade da igreja
cristã, não apenas, porque defendendo a liberdade da igreja cristã
acabaria defendendo a liberdade de todas as demais. Descobrimos
aqui mais de 900 projetos que feriam de maneira subliminar alguns e
outros de forma direta a liberdade de expressão, a liberdade de culto
e a desconstrução da família. E aí, fiquei muito mais apavorado. E isso
me motivou e comecei a entender que é preciso que nós tenhamos
aqui, dentro da casa do povo pessoas que representam a igreja. E
porque não a igreja? Nós não temos um estado democrático? Estado
democrático de direito da a liberdade disso. Eu não voto, então quem
foi votar em mim não foi a instituição igreja, mas quem votou em
mim foi um membro da igreja que é um cidadão exercendo seu pleno
direito de cidadania (Marco Feliciano: PSC – SP, entrevista realizada
em Brasília no dia 09/04/14.)

Podemos exemplificar, ainda, com o entendimento do deputado


Takayama:

Eu vejo aqui um confronto nítido, que se acentua, entre os valores


daqueles que não são cristãos ou cristãos – eu brinco aqui dizendo
que tem o gay enrustido e o gay assumido, como também tem o
cristão enrustido e o cristão assumido então, a bancada evangélica

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na verdade é uma bancada de cristãos assumidos. E é bom que a
gente vem descobrindo, também, agora que os católicos assumidos
se somam conosco, os valores são iguais.
Nós estamos aqui para mantermos a nossa posição, porque do jeito
que a coisa ta indo ai, nós vamos viver o que dentro de poucos anos?
A sociedade que não sabe o que quer. O ser humano esta perdendo
a identidade, por causa da falta de firmeza. E eles ficam bravos nessa
parte quando alguém tem que entender isso ó: se você quer ter um
partido forte tem que ter um doutrinamento forte, da mesma for-
ma se você quer ter uma igreja forte, um Brasil cristão, tem que ter
gente com posições, né, embasada. Você não constrói uma casa em
areia, você constrói uma casa em rocha. Nós temos que ter a nossa
posição, essa é minha posição. Ai querem botar pecha na gente de,
como é que é? Fundamentalista, de fanático, a gente não tá nem
aí. Não vamos perder tempo porque essa é uma guerra constante
(Takayama PSC – PR, entrevista realizada em Brasília no dia 26/03/14.)

Na fala do deputado Takayama pode-se identificar parte da estra-


tégia da FPE, a saber: a patrulha em relação aos evangélicos/as eleitos/
as ou não, mas que não se alinham com a postura da FPE. Ou seja, nem
todos/as os/as cristãos/as possuem prerrogativa para falar em nome
do grupo religioso, pois, em seu entendimento são legítimos apenas
os discursos alinhados ao paradigma conservador e fundamentalista.
Para além do jeito de ser e fazer da FPE, suas estratégias políticas e
atuação no parlamento, por ora é importante apontar que, dos resulta-
dos consolidados da consulta na base de dados do Congresso Nacional
filtramos apenas proposituras relacionadas à sexualidade e direitos re-
produtivos, por conseguinte as demais proposituras apresentadas pelos/
as parlamentares evangélicos/as não foram integradas à base de dados.
Temos, então, 63 projetos de leis, 06 indicações, 19 projetos de decretos
legislativos, 03 propostas de emendas à Constituição, 01 projeto de lei
complementar, 01 projeto de resolução, 01 requerimento de instituição
de CPI, 174 requerimentos e 198 requerimentos de informações.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Problematizada pelo elemento tempo e espaço, a laicidade asse-
melha-se ao percurso de um rio que assume aspectos diversificados de
acordo com as múltiplas variáveis, ou seja, às vezes acredita-se que o

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debate tenha diminuído ou mesmo acabado, contudo novamente re-
nasce, por muitas vezes de pontos e lugares não esperados. Debates
que podem se transformar inexplicavelmente em embates cercados
de incompreensões, desentendimentos, conflitos, ódio, que por outras
vezes, é seguido de apaziguamento e até mesmo esquecido, como pode
ser observado nos recentes eventos que compõem o cenário político
brasileiro.
Embora as posturas dos/as parlamentares ligados à FPE sejam ge-
ralmente controversas e ligadas a polêmicas, pode-se estabelecer que
o cenário da disputa é marcado pela campanha antiabortiva, contra a
criminalização da homofobia e contra a agenda que trata dos direitos
ligados à sexualidade. Quando analisadas as justificativas para tais pro-
jetos de leis apresentados pelo espectro evangélico, é possível identifi-
car que possuem significativa carga de misoginia, são eminentemente
heteronormativos e reguladores da sexualidade.
É importante apontar o caráter reativo do ativismo religioso fun-
damentalista diante dos avanços alcançados pelos movimentos sociais
no campo feminista, no conjunto dos direitos humanos e da diversidade
sexual. Assim, duas chaves de leitura são elucidativas e referenciais para
analisar a atuação da FPE, a saber: direitos reprodutivos e sexualidade,
considerando que a regulação dos corpos e a autonomia dos sujeitos
são temas que geralmente movimentam a pauta legislativa e motivam
a atuação dos/as parlamentares evangélicos/as.

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(Doutorado em Direito) – Departamento de Direito do Estado, Faculdade de Direito da
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submetido em: 6-11-2017


Aceito em: 11-11-2017

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