Luiz Gama Poesia
Luiz Gama Poesia
Luiz Gama Poesia
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Luiz Gama autor, leitor, editor: A muitos escapou o efeito polifônico sob a ironia sutil e crua presente nos
versos aqui colocados em epígrafe. Na realidade, o poeta faz ecoar discursos e
crenças enraizadas entre os brancos, convencidos da incapacidade congênita dos
revisitando as Primeiras Trovas negros para as atividades do espírito, cegos, portanto, às consequências mutila-
doras da escravidão: “Na terra que rege o branco,/ Nos privam té de pensar!...
Burlescas de 1859 e 1861 Ao peso do cativeiro/ Perdemos razão e tino,/ Sofrendo barbaridades,/ Em
nome do Ser Divino” (Gama, 2000, p.33). Ele estava ciente de encarnar um
contraexemplo das teorias pseudocientíficas de há muito disseminadas no Oci-
LIGIA FONSECA FERREIRA I dente sobre as desigualdades raciais. Prova de que os negros eram “naturalmen-
te inferiores aos brancos”, apoiava-se, segundo Hume, na constatação de não
haver entre eles “nem artes, nem ciências” (Hume apud Honour, 1989, p.241).
Não borres um livro,
Tão belo e tão fino, Desmentindo o filósofo iluminista, o tom ligeiro adotado por Gama, trinta anos
Não sejas pateta, antes da Abolição, expõe os preconceitos que atingem milhares de africanos e
Sandeu e mofino. afrodescendentes sobre os quais pesa o estigma da cor e da escravidão, feridas
abertas na pele de outros autores negros. Assim, com sua obra, o “Orfeu de
Ciências e Letras Carapinha” adquire um passaporte para o mundo das “letras” e das “ciências”.
Não são para ti;
Sua voz antecipa Cruz e Sousa e Lima Barreto e abre o veio da literatura negra
Pretinho da Costa
Não é gente aqui. brasileira.
(Luiz Gama) Revisitar as edições das PTB publicadas ainda em vida do autor nos dá a
possibilidade de fruir seus textos e observar aspectos detectáveis apenas quando
Negro sabido, negro atrevido os textos passam por uma transformação, antes de tomarem a forma de um “ob-
(Ditado brasileiro) jeto-livro” que apresenta a obra, garante sua presença no mundo, determina em
princípio a maneira como e por quem será consumida, ou seja, sua recepção. Do
H
á 160 anos, num Brasil escravocrata, formado em sua maioria por afri- final do século XIX ao início do século XXI, essas edições eram de difícil acesso,
canos e seus descendentes, surge em São Paulo a primeira edição das sobretudo a primeira, mais referida do que efetivamente consultada por alguns
Primeiras Trovas Burlescas de Getulino (1859), de Luiz Gonzaga Pinto estudiosos de Luiz Gama.1 De alguns anos para cá, a situação inverte-se, graças à
da Gama (BA 1830 – SP 1882). Dois anos depois, é publicada no Rio de Janeiro disponiblização de obras raras em acervos digitais. Porém, a leitura em suportes
a segunda e última edição “correcta e augmentada”. Em pleno período român- digital suscita algumas indagações: o que realmente se lê na tela? Um “texto”?
tico, durante o qual o negro-escravo desponta como tema na poesia ou persona- Diante das opções, qual edição escolher? Que diferenças, textuais ou não textuais,
gem no romance, as Primeiras Trovas Burlescas (PTB) inscrevem uma figura até aparecem de uma edição a outra? Como explicá-las? etc. É difícil responder
então ausente da produção literária brasileira: o negro autor, que se enuncia e essas perguntas, como é difícil colocar-se na mente do leitor confrontado com
deseja ser visto enquanto tal (“negro sou”). O pseudônimo estampado na capa o luxo e os riscos da era digital. Lembremos que, sem demasiado aprofundar
não é fortuito: “Getulino” deriva de “Getúlia”, território da África do Norte, questões teóricas ou metodológicas, uma vez transformados em “livro”, os tex-
entre as atuais Argélia e Mauritânia, habitada pelos “getulos” na Antiguidade. O tos acompanham-se de uma série de elementos verbais/discursivos (nome do
autor assumia de cara sua origem africana. autor, título, dedicatórias, prefácios, notas, epígrafes etc) e não verbais (formato,
Tal fato encerra ineditismo e transgressão. Gama nasceu livre em 21 de diagramação, ilustrações etc). Esses “paratextos editoriais” (Genette, 2009), aos
junho de 1830, filho da africana Luiza Mahin. O pai de origem portuguesa quais nem sempre atentamos, podem influir na leitura, levantar questões que
vende-o aos dez anos como escravo. Nessa condição chega a São Paulo, onde transcendem uma análise apenas centrada no texto. Uma obra em forma de
vive oito anos de escravidão. Para um indivíduo como ele, tornar-se homem de livro, e particularmente quando distantes no tempo, precisa ainda ser aprecia-
letras era algo improvável, numa época em que, escravizado ou não, negro não da em seu contexto mais amplo (histórico, social, político, literário, editorial).
toma a palavra, não lê, não (se) escreve. A despeito disso, um ex-escravo atreve- Mesmo sem manuscritos, é possível encontrar pistas sobre processos de criação
-se a “borrar” as páginas brancas de um livro e posicionar-se como observador subjacentes à produção editorial. Uma obra tampouco termina ao ser impressa
crítico da sociedade brasileira no Segundo Império. e publicada, sobretudo se envolver reescrita e outras alterações textuais e para-
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textuais direcionadas a uma publicação posterior. As transformações da obra, do municipal, foi condenado por desacato a um insultuoso oficial a 39 dias de
texto à materialidade do suporte, têm sido alvo de recentes reflexões e propostas prisão onde “passava os dias lendo”. Para ele, que jamais frequentou escolas,
metodológicas para uma “genética pós-editorial” (Mahrer, 2017). e acreditava que a “inteligência repele diplomas, como Deus repele a escravi-
À luz dessas reflexões, neste artigo pretende-se, pelo cotejo das duas pri- dão” (Gama, 2011b, p.136), o esforço precisava ser hercúleo para incluir-se ao
meiras edições das PTB, acompanhar nascimento, formação e evolução de um restrito círculo de letrados no Brasil, verdadeira “ilha flutuante num oceano de
autor, desde o início envolvido na organização e produção editorial de seus analfabetos” (Fausto, 1994, p.184).
livros, na realidade uma obra “dupla”, por trazer ali poemas do amigo José Bo- Aos 18 anos, o jovem praça teve um encontro determinante. Procurou
nifácio, o moço (1827-1886). Considerando-se que um autor é antes de tudo pelo conselheiro Francisco Maria Furtado de Mendonça (1812-1890), chefe de
um leitor, buscaremos identificar, por meio das epígrafes, leituras e modelos polícia da capital, catedrático da Faculdade de Direito, para que esse lhe dispen-
seguidos pelo novato poeta, em especial a obra do poeta português Faustino sasse os “primeiros lampejos da instrução primária”. O poderoso e controverso
Xavier de Novais (1820-1869). Por fim, observaremos as mudanças e as etapas figurão acolhe o jovem negro animado de uma “vontade inabalável de instruir-
(textuais e não textuais) percorridas de uma edição a outra, buscando nos basti- -se”, e por quase vinte anos foi seu “protetor”, “amigo” e perfeito “mestre”
dores paratextuais a presença do autor, leitor e “editor” Luiz Gama, que se mos- (ibidem). O convívio era quase diário durante os anos em que serviu como
tra sempre atento à recepção de sua obra em momentos e contextos diferentes, ordenança e, em seguida, como amanuense no gabinete chefe de polícia a partir
adivinhando as representações e expectativas desconfiadas acerca de um poeta de 1856. Uma de suas tarefas é copiar documentos, e às vezes, em horas de folga
atípico para os moldes sociais e intelectuais dos letrados de seu tempo. do serviço militar, ele o faz para o escritório de um escrivão público. O trabalho
Como se sabe, a filiação de Luiz Gama, mestiço biológico e cultural, sin- na importante repartição de Furtado de Mendonça propicia ao expansivo ama-
tetiza uma das matrizes nacionais de sua época: em seu corpo corre sangue da nuense travar conhecimento com “doutores” e familiarizar-se com o mundo e o
África e de Portugal, miscigenação àquela altura longe de ser celebrada. Será saber jurídico. Ler e escrever entrava no âmago das atividades abraçadas pelo fu-
interessante notar como, em sua criação, o poeta luso-afro-brasileiro absorve, turo jornalista e advogado Luiz Gama até o fim da vida. Mas naquele momento,
mescla, transforma e inclui e dá voz a elementos presentes em sua própria ge- importava ampliar conhecimentos. Furtado de Mendonça deve ter-lhe facilitado
nealogia. o acesso à Biblioteca da Faculdade de Direito, da qual era bibliotecário-chefe e,
Mas quem era Luiz Gama antes de 1859? provavelmente, sua biblioteca pessoal (Menucci, 1938, p.55). Considerando-
Em busca do saber e da liberdade, ou da liberdade de saber -se o profundo conhecimento jurídico e a competência técnica futuramente de-
O estudo é o melhor entretenimento, e monstrados em processos e comentários jurídicos publicados na imprensa, Luiz
o livro o melhor amigo. Gama deve ter mergulhado na leitura da obra mais renomada de seu benfeitor – o
Repertório Geral das Leis do Brasil (1808-1862).
(Carta ao filho, 1870)
Dos anos que precedem o encontro com Furtado de Mendonça até 1859,
Em 1880, na célebre carta a Lúcio de Mendonça, um dos raros senão
as leituras de Luiz Gama são diversas e não muito diferentes das realizadas pelos
único relato de um ex-escravo brasileiro, Luiz Gama relembra a “amizade ínti-
letrados e “doutores” de seu entorno: obras jurídicas, história, filosofia, literatu-
ma” com Antonio Rodrigo do Prado Junior, estudante residente na casa de seu
ra, especialmente poesia clássica e romântica, sátiras latinas e portuguesas etc. O
senhor, com o qual aprendera “as primeiras letras” em 1847 (Gama, 2011a,
perfil de Luiz Gama leitor se desenha num simples levantamento das referências
p.202). Começava ali uma prodigiosa aventura para o adolescente de espírito
presentes nas PTB de onde se pode depreender o âmbito das leituras, gostos
vivo e curioso que, no ano seguinte, resgata “secretamente” a liberdade jurí-
e tendências ideológicas do poeta autodidata que deseja colocar-se à altura do
dica, sem suspeitar até onde chegaria no universo da leitura e da escrita. Nesse
nível cultural de seus leitores:
sentido, seu caso assemelha-se ao dos afro-americanos como Harriet Jacobs,
Frederick Douglass e Williams Wells Brown, para os quais a conquista do saber 1) Escritores citados nas epígrafes: os portugueses Augusto Emílio Zaluar,
acompanhou-se da conquista da liberdade. Instruíam-se para provar sua capa- Camões, Cândido Lusitano, Faustino Xavier de Novais, Nicolau Tolentino; o
cidade de expressar-se em linguagem rica de virtudes literárias, sem a qual não luso-brasileiro Gregório de Matos; os brasileiros Bernardo Guimarães, Junquei-
teriam desempenhado um papel histórico na vida política de seu país. ra Freire; o poeta latino Tíbulo e o francês Boileau.
Luiz Gama, lembravam seus contemporâneos, tinha sempre um livro nas 2) Escritores e obras citadas nos poemas: Aretino, Ariosto, Buffon, Cou-
mãos. Desenvolveu não só o hábito como a paixão irrefreável pela leitura mes- vier, Dante, Homero, Lamartine, Paul de Kock, [Robert Joseph] Pothier, Schil-
mo em situações adversas. Em 1854, depois de servir seis anos como soldado ler, [Torquato] Tasso; Alcorão e Arte de Furtar.
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3) Personagens da literatura citados nos poemas: Dom Quixote, Gulliver, lugar de honra, em seguida ao “Prólogo”, poema de abertura em que o autor
Sancho Pança. apresenta a si e a sua obra (temas, gênero, valores morais, visão ideológica). A
4) Outros (personagens históricos, filósofos, pintores, músicos: Aníbal, escolha da sequência, porém, não é fortuita. Não se indica o autor do texto,
Bonaparte, Caravaggio, [Júlio] César, Columela, Constantino, Euclides, Mo- logo as primeiras linhas podem dar a impressão de tratar-se ali de versos saídos
zart, Paganini, Plínio, Rossini, Savigny. da lavra, da vida e da voz de Luiz Gama:
Não é puro acaso se todos os autores em epígrafes são de língua portu- Escravo – não, não morri
guesa. Ao contrário dos homens cultos de seu tempo, Luiz Gama não domina Nos ferros da escravidão;
outros idiomas e não esconde isso. Ele não passara pelo ensino formal onde Lá nos palmares vivi,
Tenho livre o coração!
desde cedo aprendia-se “a” língua estrangeira por excelência, o francês. Con-
Nas minhas carnes rasgadas,
temporâneos de Luiz Gama, Castro Alves, Rui Barbosa, Ferreira de Menezes Nas faces ensanguentadas
e o mais convicto “afrancesado”, Joaquim Nabuco, leem autores franceses no Sinto as torturas de cá;
original. Luiz Gama os lê em traduções publicadas em Portugal ou no Brasil, Deste corpo desgraçado
mantendo-se de contínuo atualizado sobre as principais obras e correntes de Meu espírito soltado
pensamento produzidas na Europa. É o caso de Vida de Jesus (1863), de Ernest Não partiu – ficou-me lá!...
Renan, obra de repercussão mundial por sua abordagem racionalista e antirreli- (Gama, 2000, p.162)
giosa do cristianismo, e que no Brasil marcou figuras tão díspares social, racial e O asterisco ao lado do título remete à nota que por fim esclarece:
ideologicamente como Dom Pedro II, Joaquim Nabuco e Luiz Gama, confor-
me já tratamos anteriormente (Ferreira, 2007). Esta bela produção foi-nos dada pelo seu ilustre autor o Exmo. Sr. Dr.
As estrofes a seguir aludem, em pinceladas autobiográficas, à formação José Bonifácio de Andrada e Silva; publicamo-la na frente de nosso obs-
curo volume para nos servir de Abracadabra, nos mares tempestuosos das
do principiante, preocupado (por real insegurança ou afetação) em ajustar, ou
censuras e nas hórridas ambages do sórdido egoísmo dos monopolistas.
baixar, a expectativa dos seus cultos leitores. Em linguagem elaboradamente
(Gama, 1859, p.12)
coloquial, o novo “autor” que, pretensamente não quer ser visto assim, falha
discursivamente em alcançar seu intento, insiste no que o distingue cultural e Homem de convicção liberal, antimonarquista e abolicionista, o sobrinho
linguisticamente de seu público, servindo-se de linguagem coloquial caracterís- do Patriarca da Independência, cujo nome herdara, incluía-se decerto entre os
ticas de suas trovas : amigos que incentivam Luiz Gama a publicar seus poemas, aliás nada ingênuos
(“Não falo das flores/ Dos prados não falo/ [...] Nem das travessuras/ Do
Não tenho sabença, terno Cupido”), porém visando claramente a sociedade e a política imperial, o
Não campo de autor; sistema escravocrata, o mundo jurídico, a hipocrisia racial etc. A função “caba-
Apenas me conto lística” consistia em proteger o poeta negro e ex-escravo de eventuais represálias
Por um falador. de quantos se sentissem visados pelo seu riso moralizador.
Mais do que valorizar seu próprio trabalho, o autor das PTB enxergou
Das línguas estranhas uma oportunidade de trazer ao conhecimento público os poemas escritos pelo
Nem uma aprendi, amigo, intelectual de prestígio e poeta, havia mais de uma década. O ano 1850
Em nosso idioma representa um divisor de águas na história da escravidão. A promulgação da Lei
Sou – Kikiriki.2
Eusébio de Queirós, extinguindo o tráfico negreiro, acende a esperança nos
(Gama, 2000, p.88) antiescravistas. A questão produz impactos na produção literária brasileira, feita
por homens igualmente envolvidos nos rumos políticos do país.
José Bonifácio, o moço: amigo, abracadabra e santelmo Nas PTB de 1861, edição “correcta e augmentada”, os 39 textos poéticos
Ao revisitar as PTB deparamos com dois autores, com duas obras em uma. de Luiz Gama acompanham-se de dez poemas, reunidos no final do volume
Em 1859, além de seus 23 poemas, Luiz Gama inclui três composições com o título “Poesias do Exm. Sr. Dr. José Bonifácio de Andrada e Silva”.3 Um
de José Bonifácio de Andrada e Silva, o moço (1827-1886), datadas de 1850: novo texto de apresentação – “A quem ler” justifica ao novo – e para Luiz Gama
“Saudades do Escravo”, “O tropeiro” e “Calabar”. A primeira delas aparece em desconhecido – público da Corte a inserção dos poemas do amigo, cujo nome
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evoca sua alta estirpe, a família dos “Andradas”. Num estilo mais elegante e com haver menção, em notas biográficas como as do site da Academia Brasileira de
modéstia própria ao gênero e às circunstâncias, Gama confessa seu desejo e ne- Letras, à sua íntima amizade com o satirista negro que jocosamente tratava o
cessidade de contar com a proteção de um “padrinho”, que o protegesse como amigo, loiro e de olhos azuis, de Mister José.
“Santo Elmo”, padroeiro dos marinheiros, nos mares nunca dantes navegados Difícil precisar quando Luiz Gama teria começado a redigir seus poemas.
do meio literário da Corte. Ao informar que recebera de presente as poesias que No entanto, é possível imaginar que só as submetera à apreciação de José Boni-
agora “editava”, ciente de sua importância do ponto de vista literário e político fácio depois de maio de 1858, quando esse retorna a São Paulo. Quanto a este
(tem-se ali o germe de uma poesia “engajada” na defesa do escravo, da abolição último, os poemas ofertados a Luiz Gama para figurarem na primeira edição das
e do ideário liberal), Luiz Gama fala dos laços privilegiados, no plano pessoal e PTB foram escritos em 1850 pelo segundoanista de direito. Templo da ideologia
intelectual, que há tempos o uniam ao prestigioso poeta e político: liberal, sob as arcadas surgiram as primeiras manifestações poéticas tratando do
Estou por demais convencido do pouco que valem [as minhas], e por isso tema do escravo, anunciadoras da poesia condoreira. Luiz Gama não ignorava
lancei mão das lindas poesias, que fazem parte deste volume, escritas pelo essas produções e as aproveitar na sua própria criação, apropriando-se de temas
Exmo. Sr. Dr. José Bonifácio de Andrade e Silva, para servirem-me de san- e construindo relações intertextuais. Seu poema “Cemitério de São Benedito”
telmo nesta empresa temerária. (1859, 1861) recebe como epígrafe a seguinte estrofe de “À sepultura de um
Estas belíssimas produções foram-me ofertadas pelo seu ilustre e modesto escravo”, na versão publicada primeira edição de Cantos da Solidão (1852) de
autor, sem a menor tenção de as ver impressas; e eu o acompanharia nesse Bernardo Guimarães: “Também do escravo a humilde sepultura / Um gemido
propósito, a não ser coagido pela eminente necessidade, em que me vejo, de merece de saudade:/ Ah caia sobre ela uma só lágrima / De gratidão ao menos”
abrigar-me sob os auspícios de um valioso padrinho. (Gama, 1861, p.13) (Gama, 2000, p.153). O tema do escravo não é frequente nas PTB, e invali-
A referência feita por um escritor novato a um “padrinho” literário, prá- da qualquer tentativa de considerar sua poesia como “abolicionista”. Porém,
tica frequente na vida literária, deve ser bem compreendida. A despeito das di- a imagem fixada no texto da epígrafe inspira ao poeta ex-escravo versos que o
ferenças sociais e raciais, os dois homens compartilhariam até o final da vida as autorizariam a figurar entre os precursores daquela corrente que aparecerá, mais
mesmas ideias e afinidades políticas, éticas e estéticas. Uma relação respeitosa nitidamente, no final da década seguinte:
entre iguais. Não há subserviência do Negro ao Branco, mas sim gestos de ca- Aqui não se ergue altar ou trono d’ouro
valheiros. Herdeiros das Luzes, ambos abraçam e põem em prática os ideais Ao torpe mercador de carne humana.
Liberdade, Igualdade e Fraternidade. Aqui se curva o filho respeitoso
Nascido em Bordéus, José Bonifácio fez direito em São Paulo de 1849 Ante a lousa materna, e o pranto em fio
a 1853, na turma de Álvares de Azevedo. Seu livro de poemas líricos e épico- Cai-lhe dos olhos revelando mudo
-liricos, Rosas e Goivos (1849), é primeira obra literária publicada em São Paulo. A história do passado. Aqui nas sombras
Da funda escuridão do horror eterno,
De 1854 a 1855 leciona na faculdade paulista, antes de assumir por três anos
Dos braços de uma cruz pende o mistério,
um novo cargo na faculdade de direito de Recife. Retorna à capital paulista em Faz-se o cetro bordão, andrajo a túnica,
1858, onde assume a cadeira de direito criminal, especialidade abraçada na dé- Mendigo o rei, o potentado escravo!
cada pelo “advogado provisionado” e autodidata Luiz Gama. Embora não haja (Gama, 2000, p. 154)
indicações precisas, é provável que os dois tenham se conhecido pouco antes
Com “Saudades do escravo”, uma das primeiras composições românticas
da partida de José Bonifácio para o Nordeste (Faria, 1944, p.177). São jovens
voltadas para o tema do escravo e da escravidão, coube a José Bonifácio inau-
ainda – 25 a 28 anos – para adivinhar o papel preponderante que viriam a desem-
gurar tal temática, dezoito anos antes da máxima expressão alcançada em Os
penhar nos rumos das campanhas abolicionista e republicana. Logo, a amizade
Escravos, por seu discípulo Castro Alves em 1868.4 É, aliás, nessa data que o
se trava bem antes de José Bonifácio encabeçar o movimento liberal de oposição
poeta baiano, estudante em São Paulo, compõe o eloquente poema e o declama
liberal à monarquia e defender o fim da escravidão. Saudado como primus inter
num meeting festivo, organizado pelos alunos de direito, para saudar o retorno à
pares dos oradores brasileiros nos últimos trinta anos do Império, teve influência
cidade e à docência do então deputado José Bonifácio, deposto do cargo, após a
marcante junto a membros da última geração liberal, como seus ex-alunos Cas-
queda do governo liberal de Zacarias de Góes. Luiz Gama não deve ter faltado à
tro Alves, Rui Barbosa, Ferreira de Menezes e Joaquim Nabuco. Em São Paulo,
homenagem ao amigo, emocionando-se como todos os presentes à declamação
o “devotado” Luiz Gama faz parte do pequeno círculo que frequentava a casa
de seu conterrâneo. “Saudades do escravo” introduz a voz em primeira pessoa
de José Bonifácio (ibidem, p.197). É intrigante, portanto, o fato de quase nunca
de um escravo dotado de humanidade. Tem-se a dicotomia explorada poste-
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riormente por outros autores: escravo do corpo e liberdade da alma; exílio na submeter-se a uma outra forma de escravidão, ele que, desde as PTB, não escon-
escravidão vivida no Brasil e sonho de evasão rumo à África imaginária. Nas PTB, de seus pendores antimonarquistas.
tais evocações transparecem nos versos melancólicos de “Coleirinho”, poema Dentre as grandes personalidades internacionais da primeira metade do
coroado por uma epígrafe de Tíbulo – “Assim o escravo agrilhoado canta” – su- século, Giuseppe Garibaldi, o mítico “herói de dois mundos”, fascinava ho-
gestiva da metáfora escravo-pássaro: mens como Luiz Gama e José Bonifácio por sua participação em insurreições
Canta, canta Coleirinho, republicanas no Brasil. À altura em que José Bonifácio escreve o poema, o ex-
Canta, canta, o mal quebranta; -marinheiro e militar italiano, atraído pelo socialismo de Saint-Simon, já havia
Canta, afoga mágoa tanta deixado o Brasil, onde permanecera de 1835 a 1842 e tivera atuação decisiva na
Nessa voz de dor partida Guerra dos Farrapos e na criação da República Catarinense. De volta à Itália no
[...] final dos anos 1840, é celebrado como um dos principais artífices da Unificação
Hoje triste já não trinas, Italiana. No último e mais longo poema publicado em 1859, o Andrada faz o
Como outrora nos palmares;
retrato épico de um “herói da liberdade” não só de nações, mas de escravos:
Hoje, escravo, nos solares
Não te embala a dúlia brisa. Vai seu caminho, herói da liberdade,
Audaz guiando a marcial coorte !
O tema dos dois outros poemas épico-líricos de José Bonifácio incluídos [...]
na edição das PTB em 1859 evoca figuras históricas reais e traduz a ideologia Sabem-lhe a vida ardente — essa epopéia,
daqueles brasileiros envolvidos na construção política e simbólica do país inde- Com sangue escrita ao trom da artilharia,
pendente havia menos de quatro décadas, e que, ao contrário das demais nações Nas planícies — nos montes — sobre a areia,
americanas, se fundara e perpetuara a dinastia de sua antiga metrópole. Ou nos mares à voz da ventania!
Em “Calabar”, o poeta inclui-se entre os primeiros a reabilitar a imagem [...]
do oficial do mestiço (mameluco, ao que parece) tido pela historiografia luso- Oh! vinde de Itália, oh! bravos,
Vinde honrar essa coragem;
-brasileira como “traidor”: desertara as tropas coloniais para lutar contra os por-
Vinde saudar na passagem
tugueses, no período da presença holandesa no século XVII. O personagem O vingador dos escravos!
conspurcado por mais de dois séculos5 é elevado a personagem-símbolo contra (Gama, 2000, p.172 e 173)
a opressão do colonizador, independentemente de qual fosse:
Depois de presentear seus poemas a Luiz Gama sem intenção de publicá-
Oh não vendeu-se, não! – ele era escravo
-los, José Bonifácio continuaria ofertando-lhe outros manuscritos, como a carta
Do jugo português – quis a vingança,
de 26 de abril de 1868 inicialmente destinada ao redator do periódico paulis-
Abriu sua alma às ambições de um bravo
E em nova escravidão bebeu a esp’rança! tano Democracia. A Guerra do Paraguai vivia momentos críticos, uma grande
[...] crise política prepara um golpe conservador. No documento, o então deputado
Calabar! Calabar! – foi a mentira externava seu ceticismo quanto às infrutíferas certezas do exército brasileiro an-
Que a maldição cuspiu em tua memória! tes da batalha de Humaitá. Vislumbrava o fracasso e confessava sua “consciência
[...] revoltada” diante de um país arrastado por uma política de destruição e fadado
A quem traíste, herói? na vil poeira ao “ridículo aos olhos da História”. Em 1880, Luiz Gama comunica o “precio-
Que juramento te prendia a fé?! so documento literário e político” ao editor José Maria Lisboa do Almanaque
Escravo por escravo – essa bandeira Literário de São Paulo para o ano de 1881 no intuito de divulgá-lo aos seus
Foi de um soldado – lá ficou de pé!... leitores (Gama, 1880, p.201-5).
[...]
Oh deixai-o morrer ! — d’este martírio Quem se sentisse tentado a aprofundar-se no estudo das relações existen-
Não alceis a calúnia ao grau da história ! tes entre Luiz Gama e José Bonifácio, o moço, encontraria, a meu ver, um grão
de semelhança com o sentimento resumido por Montaigne na célebre frase a
O tema e as intenções políticas subjacentes devem ter agradado o “de-
respeito de sua virtuosa amizade com La Boétie – “porque era ele, porque era
mocrata” negro que jamais se admite como “súdito” do “Império brasileiro/
eu” – em que cada qual mantém sua singularidade no equilíbrio entre recipro-
[que] Faz cousas de espantar o mundo inteiro” (Gama, 2000, p.18), ou seja,
cidade e complementaridade.
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Pelo exposto acima, não seria exagero afirmar que as primeiras edições São rimas de tarelo, atropeladas,
das PTB, preparadas por seu autor, dão outra contribuição fundamental para Sem metro, sem cadência e sem bitola
história literária e editorial no Brasil. A publicação de duas obras em um só livro, Que formam no papel um ziguezague,
nas duas edições do século XIX (em algumas edições póstumas no século XX, os Como os passos de rengo manquitola.
(Gama, 2000, p.7-8)
poemas de Bonifácio serão retirados), tem, por parte de seu principal autor, Luiz
Gama, intenções claras, de natureza política e literária. O “projeto editorial” A originalidade das PTB não se limita à hipotética habilidade do poeta
proposto aos leitores não faria sentido se as obras fossem desmembradas, pois em manipular linhas geométricas, mas ao caráter sui generis da obra dentro da
em muitos níveis se complementam, e não se trata aqui apenas dos respectivos produção literária brasileira e, particularmente, paulista.
“textos”. O livro de Gama talvez não tivesse existido sem o estímulo de Bonifá- No final dos anos 1850, a vida intelectual marca-se ainda fortemente pela
cio. Os poemas deste poderiam ter se perdido, ser desconhecidos dos leitores da mística indianista a alimentar projetos de fundação de uma literatura genuina-
época e atuais, não fosse a decisão de Luiz Gama de publicá-los como parte do mente brasileira quando surge o grande romance nacional – O Guarani (1857),
seu. Graças a iniciativas de ambas as partes, garantiu-se “materialidade” e “pre- de José de Alencar. Porém, outras manifestações então menos visíveis, por acon-
sença no mundo” aos dois objetos-livros das distintas edições das PTB, cuja di- tecer longe dos holofotes da Corte, vêm sendo hoje trazidas à tona, como a
vulgação ao longo do século XX foi vítima de revezes do tempo e da memória.6 emergência da autoria negra. No Maranhão, coincide com as PTB a publicação
De uma edição à outra: percursos de Úrsula, tido como primeiro romance abolicionista brasileiro, da escritora
Em 1859, sai a primeira edição das PTB, contendo 22 poemas de Luiz afrodescendente Maria Firmina dos Reis, É também de 1859, em gênero e estilo
Gama e três poemas de José Bonifácio, o moço. totalmente opostos às PTB, o volume Primaveras, obra única de Casimiro de
Abreu, poeta menor alçado a estatura maior, com direito a vaga na Academia
No poema de abertura (“Prólogo”), o novato autor expõe sua (falsamente
Brasileira da Letras, graças ao sucesso alcançado com poesias em linguagem sim-
tímida) postura, intenções, e natureza dos trôpegos versos de um livro que não
ples, dedicadas à saudade da infância, a natureza, o sentimentalismo religioso, o
promete a qualidade e perfeição de inigualáveis vates, mas sim o riso farto da sátira:
patriotismo difuso etc.
No meu cantinho
Além de inaugurar a carreira de um autor atípico, a primeira edição das
Encolhidinho,
PTB evoca as condições da produção editorial em São Paulo da época. Não há
Mansinho e quedo,
Banindo o medo comparação com a capital do Império, cuja hegemonia no setor é incontestável
Do torpe mundo, até 1880. A atividade editorial paulistana coincide com a criação dos cursos ju-
Tão furibundo, rídicos em 1827, sem resultados expressivos até o início dos anos 1850. Rosas
Em fria prosa e Goivos (1849), de José Bonifácio, o moço é a primeira obra literária publicada
Fastidiosa – em São Paulo. Três anos depois, vêm a lume os Cantos da Solidão, de Ber-
O que estou vendo nardo Guimarães, obra da qual Luiz Gama extrai, como já mencionado, uma
Vou descrevendo. das epígrafes das PTB. Ambos os livros foram impressos na Tipografia Liberal
Se de um quadrado de Joaquim Roberto de Azevedo Marques, proprietário do Correio Paulistano,
Fizer um ovo,
para o qual Luiz Gama escreveria regularmente dos anos 1860 ao final da vida,
Nisto dou provas
e com quem manteve estreita convivência enquanto “irmãos” na loja maçônica
De escritor novo.
América. Esses três nomes e o do tipógrafo Antonio Louzada Antunes refletem
Sobre as abas sentado do Parnaso, o envolvimento do “Orfeu de Carapinha” com o meio literário e editorial de
Pois que subir não pude ao alto cume, uma cidade considerada por viajantes estrangeiros, em meados dos anos 1850,
Qual pobre, de um Mosteiro à Portaria, como a “mais intelectual”, a “menos comercial” e com forte “cultura liberal”
De trovas fabriquei este volume. (Hallewell, 2005, p.300-1). À época, existem três tipografias e o amanuense da
Secretaria de Polícia confiará seu livro à mais ativa delas, a Tipografia Dois de
Vazias de saber, e de prosápia, Dezembro, propriedade de Louzada Antunes. Situada nas dependências do Pa-
Não tratam de Ariosto ou Lamartine lácio do Governo, onde trabalhava Luiz Gama, a empresa imprime atos oficiais,
Nem recendem as doces ambrosias
obras de natureza histórica ou jurídica, revistas acadêmicas como os Ensaios
De Lamiras famoso ou Aritine.
ESTUDOS AVANÇADOS 33 (96), 2019 119 120 ESTUDOS AVANÇADOS 33 (96), 2019
Literários do Ateneu. O tipógrafo e o poeta se reencontrarão, dez anos depois, atraído pela literatura portuguesa e sua abertura para a sátira, gênero cultivado
“irmãos” da mesma loja maçônica (Ferreira, 2001, p.143). de forma constante em Portugal desde a Idade Média. Em outras epígrafes das
O trabalho das tipografias paulistas, no entanto, deixava a desejar e a im- PTB, há citação de Camões (“A cativa”), de Nicolau Tolentino (“Os glutões”),
pressão, do ponto de vista financeiro e editorial, corria por conta do autor. Luiz Augusto Emílio Zaluar (“Quem sou eu”).
Gama teria arcado sozinho com as despesas para a publicação de seu livro? Rece- Quem o fez descobrir o poeta portuense com o qual de pronto se iden-
bera ajuda de amigos ou de seu poderoso “protetor”, o chefe da polícia Furtado tifica? Teria lido suas obras nas bibliotecas de Furtado de Mendonça? Na im-
de Mendonça? Seja como for, é provável que a primeira edição das Primeiras possiblidade de responder essas perguntas, têm-se ao menos elementos para
Trovas Burlescas não tenha ultrapassado mais de duzentos exemplares. Tratava- supor que as suas “grosseiras produções d’inculta mente/ em horas de pachorra
-se de uma obra de um principiante de parcos recursos, dirigida sobretudo aos construídas” foram redigidas entre 1856 e 1859. Aludindo ao seu processo cria-
leitores paulistanos, público em sua maioria masculino, formado por letrados, tivo, em poema que traz epígrafe de Faustino (“O álbum do Sr. Capitão João
acadêmicos e doutores direta ou indiretamente ligados à Faculdade de Direito e Soares”), o enunciador evoca os desafios enfrentados, antes de ceder ao esforço
a órgãos públicos como a repartição em que trabalhava o jovem autor. inútil de transformar em texto aceitável suas ideias “delirantes”:
Se, por desenfado,
* No meu triste lar,
Não se sabe como ou por que Luiz Gama teve a ideia dessa publicação. Com penas e tinta
Quando começou a escrever os seus? Quando os terminou? Com exceção de um Me ponho a brincar ;
único, os textos não são datados. É certo, porém, que a “Musa de Guiné”, invo-
Se acaso uma ideia,
cada em “Lá vai verso!” inspira-o até bem próximo dos preparativos da edição: o Que vaga perdida,
poema-dedicatória “No álbum do Sr. Capitão João Soares” é datado de “Janeiro Da minha cachola
de 1859”. No livro não há menção da data de término da impressão, mas possi- Faz sua guarida ;
velmente tenha ocorrido no final do ano. Em 7 de fevereiro de 1860, a Revista
Comercial de Santos comenta que “acaba de sair [...] em uma das tipografias da Se astuto demônio,
capital uma coleção de lindíssimas poesias chistosas, sob o título de Primeiras Finório birbante,
Trovas Burlescas de Getulino [...]” (Ferreira, 2001, p.211). Soprando na testa,
Outras pistas acerca do período de redação dos poemas são dadas por Me faz delirante ;
importante elemento paratextual – as epígrafes –, em geral negligenciadas por
E se dominado
quantos se interessam pelos escritos poéticos de Luiz Gama, focando exclusiva- Por esse rabino,
mente o “texto” dos poemas. A epígrafe, porém, como lembra Genette, não é Algumas sandices
mero ornamento. Sua presença indica a “época, o gênero ou a tendência de um Escrevo, sem tino,
escrito” e a época romântica fez grande uso desse modo particular de intertex-
tualidade, “imbuída de uma dimensão ‘polifônica’, pois o texto do epigrafador Depois refletindo
faz ecoar a voz do autor epigrafado” (Genette, 2009, p.141). No fofo aranzel,
Chama, pois, a atenção que, das dezoito epígrafes encontradas nas PTB, Em mil pedacinhos
onze, incluindo a capa, remetem a Faustino Xavier de Novais (1820-1869). Poeta Eu faço o papel.
satírico português de boa fama em seu país, onde era visto como continuador de (Gama, 2000, p.88-9)
Nicolau Tolentino, viveu no Rio de Janeiro de 1858 a 1869, ligando-se ao círculo A Luiz Gama não passou despercebido o uso abundante de epígrafes nos
de Machado de Assis, seu cunhado. Sua popularidade era imensa nessas plagas. próprios poemas de Faustino (Quadro 1), e a intenção de aprender e reproduzir
Termômetro disso, os oito mil exemplares do último livro lançado em Portugal o mesmo procedimento deve ter-lhe exigido um esforço de análise, a fim de
terem sido consumidos quase integralmente no Brasil (Cabral, 1988, p.452). compreender-lhes a origem, a função, a relação intertextual com o texto epigra-
Gama colhe suas citações em duas obras – Poesias (1856) e Novas poesias fado etc. A comparação de alguns aspectos comuns nas obras dos dois poetas é
(1858) (Quadro 1). A influência da visão do mundo e dos procedimentos poé- reveladora. Vejam-se, por exemplo, os título respectivos de alguns poemas de
ticos característicos do poeta portuense é inegável em Luiz Gama, aliás bastante Novais e de seu discípulo brasileiro:
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Poesias PTB incluída nos exemplares consultados, assinalam-se algumas gralhas: “sentilan-
tes” no lugar de “scintilantes”, esclarecendo que esse erro escapara em “alguns
Não é prólogo” “Prólogo” exemplares”; à “página 55, verso 5, sucia, leia-se – chusma”; à página 57, verso
15, o mar velho, leia-se – o Mar Vermelho” etc. O autor-editor neófito desco-
“As carapuças” “Sortimento de gorras para
bria os mistérios da arte tipográfica e solicita modestamente a compreensão dos
a gente do grande tom”
leitores, uma vez que
“No álbum do meu íntimo “No álbum do meu amigo Outros muito erros ter-nos-ão escapado, apesar do cuidado que pusemos
amigo Carlos N. P. Gandra” J. A. Silva Sobral” na revisão das provas; deles pedimos desculpa aos benévolos leitores.
Alguns pequenos defeitos de metrificação existem, que não corrigimos por
“A um aspirante a poeta” “A um vate enciclopédico” insignificantes, e justificáveis, atenta a nossa condição de principiante, e
carência de conhecimentos. (Gama, 1859)
“Que mundo este !” “Que mundo é este ?”
Apesar das imperfeições acima, os esforços de Getulino serão coroados
Faustino – e no seu bojo toda uma tradição portuguesa – foi claramente
de sucesso. Se a recepção de sua obra o preocupara em virtude de sua condição
uma das principais leituras na fase anterior à elaboração dos textos das PTB, e
de “escritor novo”, seus receios se revelariam inúteis. Pouco tempo depois de
modelo no qual “Getulino” mais se espelhou, imitando, “devorando”, transfor-
serem lançadas, em fevereiro 1860 a Revista Comercial de Santos recomendava
mando, quando não subvertendo, com tempero africano, o que era apenas ma-
aos seus leitores aquelas trovas “espirituosas”, marcadas pela sua “originalidade
triz “luso-brasileira”, como aponta a afiada análise de “Lá vai verso” (Marques,
humorística” e pelo “raro talento do autor”, portanto “dignas de ocupar um
2018, p.18-21):
lugar meritório na série de produções da literatura brasileira”.
Ó Musa de Guiné, cor de azeviche,
[...]
*
Empresta-me o cabaço d’urucungo,
Ensina-me a brandir tua marimba, Incentivado pela boa crítica e por amigos, Gama ousará ir mais longe e
Inspira-me a ciência da candimba, publica, em menos de dois anos, a segunda edição das PTB no Rio de Janeiro,
Às vias me conduz d’alta grandeza. centro nervoso e teatro das letras e da política no Brasil, onde se concentra o
[...] maior número de leitores e de pessoas influentes do país. Reeditar na corte uma
Quero que o mundo me encarando veja, obra antes publicada numa cidade até então culturalmente inexpressiva como
Um retumbante Orfeu de carapinha, São Paulo é uma verdadeira consagração.
Que a Lira desprezando, por mesquinha,
Luiz Gama foi à corte para acompanhar as etapas finais da confecção do
Ao som decanta de Marimba augusta.
livro, aproveitando a viagem para buscar pela última vez sua mãe, Luiza Mahin,
(Gama, 2000, p.10-11)
da qual fora brutalmente separado havia 24 anos (Gama, 2011a, p.200). Na ad-
Epígrafes e títulos aqui brevemente abordados sinalizam o potencial in- vertência ao leitor (“A quem ler”), datada de 28 de maio de 1861, Luiz Gama
vestigativo das relações intertextuais entre os dois autores ainda por fazer. Luiz informa ter dado a prelo as provas de sua obra acompanhadas do ideal a ser
Gama identificou-se, como Machado, com a “graça, a irreverência e o desas- impresso na Tipografia de Pinheiro & Cia, estabelecimento modesto onde serão
sombro da sátira de Faustino [...], com suas raízes fundas na tradição portugue- publicados alguns romances de José de Alencar nos anos 1860. Novamente, não
sa” (Guimarães, 2012, p.121). Para aprender e compreender-lhes as estruturas, se sabe por que intermédio Luiz Gama entrara em contato com esse profissio-
Luiz Gama mergulhou profundamente naquelas obras, razão pela qual arrisco- nal. O resultado da edição e do objeto-livro é incomparavelmente superior à de
-me a dizer que ele mereceria ser destacado como um dos primeiros leitores e 1859, graças à habilidade dos tipógrafos cariocas. Aliás, as duas experiências –
admiradores brasileiros do sátiro portuense. em São Paulo e no Rio – despertariam o interesse de Luiz Gama pela tipografia,
Outro paratexto nos informa que, depois de redigir seus textos, ele se o que lhe seria muito útil no futuro. Quando perde seu cargo na prefeitura de
ocupa pessoalmente da edição/impressão para transformá-los em livro e não es- polícia em 1868, ele exercerá o ofício de “aprendiz-compositor” na tipografia
conde dos leitores as dificuldades daquela tarefa realizada pela primeira vez. Os do jornal O Ipiranga (ibidem, p.203).
exemplares não foram impressos ao mesmo tempo, e ainda foi possível a Gama A edição “correcta e augmentada”, de 252 páginas, compõe-se de 39 po-
substituir palavras, corrigir grafia e alterar métrica. Nas “erratas” em folha avulsa emas, sendo vinte composições novas, ou seja, quase o dobro em relação à an-
ESTUDOS AVANÇADOS 33 (96), 2019 123 124 ESTUDOS AVANÇADOS 33 (96), 2019
teiror, da qual, por alguma razão (conselhos de amigos?), foram suprimidos três
1859 1861
Abrem-se as portas, Escancr’am-se as portas,
Entra o velhote ; Lá entra o velhote,
Qual de azeitonas, De negra azeitona
Grosso ancorote Redondo ancorote
No novo contexto, a esperança de Luiz Gama em atingir novos leitores,
na corte e em outras províncias, faz supor que a tiragem de seu livro superasse
a anterior: 400, 500 exemplares? Difícil saber. Porém, dentre seus eventuais lei-
tores na corte, certamente teria agradado ao satirista autodidata, agora não mais
Capa da primeira edição das Primeiras Trovas Burlescas de Getulino
tão principiante, saber que um exemplar das PTB chegara às mãos de Faustino, (São Paulo, 1859, 126p., 21x14 cm).
àquela altura estabelecido na cidade e em alguns círculos intelectuais.
ESTUDOS AVANÇADOS 33 (96), 2019 125 126 ESTUDOS AVANÇADOS 33 (96), 2019
A partir de novembro de 1869, Luiz Gama vive momento turbulento no
*
Depois 1861, Luiz Gama não abraçou outros projetos poéticos ou lite-
rários. No entanto, a escrita faria parte do cotidiano do advogado e jornalista.
Publicaria alguns poemas na imprensa entre 1865 e 1876 (Gama, 2000, p.289).
Outras tarefas o aguardavam aquele comunicador exímio que usou eficazmente
de todas os meios de sua época para divulgar e defender suas ideias. Cerca de
vinte anos mais tarde, o legendário abolicionista refere em duas palavras, mini-
mizando-lhe a importância, sua incomum passagem pela literatura: “Fiz versos”
(Gama, 2011a, p.203).
Ainda que reduzida – 51 poemas, incluindo aqueles publicados na im-
prensa entre 1864 e 1876 (Gama, 2000, p.220-9) –, a produção poética de
Luiz Gama se distingue por seu ecletismo, graças à variedade de gêneros (sátira
política e de costumes, paródias heróico-cômicas, bestialógico ou non-sens, poe-
mas líricos), de estilos (influências clássicas e romantismo), de temas (o mundo
às avessas, a corrupção dos políticos, a hipocrisia racial da sociedade imperial, o
preconceito racial, o anticlericalismo, a frivolidade feminina, a caricatura de tipos
sociais, a inépcia dos magistrados, o amor, o escravo), de linguagens e referên-
cias culturais (erudito X popular ou coloquial, africanismos).
Ainda que tenha afirmado o contrário com a ironia habitual em um de
seus poemas (“Faço versos, não sou vate”), uma musa original havia inspirado
Luiz Gama. Sua obra correu o risco de apagar-se no tempo, motivo que nos
Capa da segunda edição “correcta e augmentada” das Primeiras Trovas instiga a revisitá-la em sua companhia. E a (re)descobri-lo – autor, leitor, editor
Burlescas de Getulino (Rio de Janeiro, 1861, 232p., 17x11 cm). – nos bastidores paratextuais dos surpreendentes objetos-livros que diligente e
orgulhosamente em vida preparou.
ESTUDOS AVANÇADOS 33 (96), 2019 127 128 ESTUDOS AVANÇADOS 33 (96), 2019
Notas
Referências
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ESTUDOS AVANÇADOS 33 (96), 2019 129 130 ESTUDOS AVANÇADOS 33 (96), 2019
(Org.) Os Juristas na Formação do Estado-Nação Brasileiro. São Paulo: FGV Editora, resumo – Neste artigo pretende-se, pelo cotejo das duas primeiras edições das Primei-
2010. v.2, p.219-44. ras Trovas Burlescas de Luiz Gama, acompanhar nascimento, formação e evolução de
FERREIRA, L. F. (Org. apres. Notas) Com a palavra Luiz Gama. Poemas, artigos, car- um autor, desde o início envolvido na organização e produção editorial de seus livros.
tas, máximas. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2011. Trata-se, na realidade, de uma obra “dupla”, por trazer ali poemas de José Bonifácio, o
moço. Considerando-se que um autor é antes de tudo um leitor, buscaremos identificar,
GAMA, L. Primeiras Trovas Burlescas de Getulino. São Paulo: Typografia Dous de De-
através das epígrafes, as leituras e modelos seguidos pelo novato poeta, em especial a
zembro de Antonio Louzada Antunes, 1859. 129p.
obra do poeta português Faustino Xavier de Novais. Por fim, observaremos as mudan-
_______. Primeiras Trovas Burlescas de Getulino. 2.ed. correcta e augmentada. Rio de ças e as etapas (textuais e não textuais) percorridas de uma edição a outra, buscando nos
Janeiro: Typ. de Pinheiro e Cia., 1861. 252p. bastidores paratextuais a presença do autor, leitor e “editor” Luiz Gama.
_______. Uma carta [de José Bonifácio]. Almanack Litterario de São Paulo para o anno palavras-chave: Luiz Gama, Primeiras Trovas Burlescas, Faustino Xavier de Novais,
de 1881, publicado por José Maria Lisboa. São Paulo: Tipografia da “Província”, 1880. José Bonifácio, o moço, Paratexto editorial.
p.201-5.
abstract – By comparing the first two editions of Luiz Gama’s Primeiras Trovas Burles-
_______. Primeiras Trovas Burlescas & outros poemas de Luiz Gama. Ed., introd. e notas cas [First burlesque troves] , we follow the birth, formation and evolution of an author
Ligia Fonseca Ferreira. São Paulo: Martins Fontes, 2000. 388p. who, from the beginning, was involved in the organization and editorial production
_______. Carta a Lúcio de Mendonça, 25 de julho de 1880. In: FERREIRA, L. F. of his own books. Actually, it is a “double” work, for it also brings poems of José Bo-
(Org.) Com a palavra Luiz Gama. Poemas, artigos, cartas, máximas. São Paulo: Im- nifácio, the younger. Considering that an author is first and foremost a reader, we will
prensa Oficial, 2011a. p.202. seek to identify, through the epigraphs, the readings and models followed by the novice
_______. Pela última vez, Correio Paulistano, 3 de dezembro de 1869. In: FERREIRA, poet, especially the works of Portuguese poet Faustino Xavier de Novais. Finally, we
L. F. (Org.) Com a palavra Luiz Gama. Poemas, artigos, cartas, máximas. São Paulo: will follow the changes from one edition to the next and the stages (textual and non-
Imprensa Oficial, 2011b. -textual) of each one, searching in the paratextual background the manifestation of the
author, reader and “editor” Luiz Gama..
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Quadro 1 – Epígrafes de Faustino Xavier de Novais em poemas das PTB A um vate Quis um jovem marchar, só por mania, / Das letras pela senda
enciclopédico trabalhosa; / Diz-se Vate - mas prenda tão famosa / Ninguém
Título Epígrafes (grafia atualizada) nos versos seus a descobria. / Começa a dar patada, e tão bravia,
Prólogo / Prótase Embora um vate canhoto / Dos loucos aumente a lista, / Seja / Que logo (alçando a voz imperiosa) / Lhe brada a natureza
Cisne ou gafanhoto, / Não encontra quem resista / Dos seus : Chega à prosa ! / E o maldito a encostar-se à poesia ! (“A um
versos à leitura / Que diverte, inda que é dura! (“Pretensões”, aspirante a poeta”, idem, p.89)
Novas Poesias, [1858], 1881, p. 20)
No álbum do Sr Escrever num Álbum ! ... Credo ! / Expor-me à crítica austera!
Lá vai verso! Quero também ser poeta, / Bem pouco, ou nada me importa, / Capitão João Soares / E se um douto me impusera / Pena de longe degrêdo ! /
Se a minha veia é discreta, / Se a via que sigo é torta. (idem, Nada ... nada tenho mêdo / De ir a alguém desagradar: / Não
p.17) ponha o meu nome a par / Dos que têm estro e ciência: /
Amigo tem paciência : / Quem não tem não pode dar. (“No
álbum do meu íntimo amigo Carlos Nogueira Pinto Gandra”,
Sortimento de gorras Seja um sábio o fabricante, / Seja a fábrica mui rica, / Quem
idem, p.28)
para gente de grande carapuças fabrica / Sofre um dissabor constante; / Obra
tom pronta, voa errante, / Feita avulso, e sem medida; / Mas no
vôo suspendida, / Por qualquer que lhe apareça / Lá lhe fica na O Barão da Quando pilho um desses nobres, / Ricos só d’áureo metal
cabeça, / Té as orelhas metida. (“As carapuças”, idem, p.49) Borracheira / Mas d’espírito tão pobres / Que não possuem real, / Não
lhes saio do costado / - Sei que é trabalho badalo, / Porque a
pele dura tem; / Mas eu fico satisfeita, / Que o meu ferrão só
O velho namorado Pobre velho! Estás perdido / Se nesse couro tão duro, / Pôde
respeita / A virtude, e mais ninguém! (“A vespa”, Novas Poesias,
ainda fazer-te um furo / Uma seta de Cupido! / Desse mal
p.96-7).
acometido, / Remédio te não darão; / Que nessa idade a
paixão, / Bem que assim te não pareça, / É moléstia da cabeça,
/ Que não sente o coração. (“A um velho namorado”, Poesias, Novo sortimento de De repente, magoado / Da carapuça maldita, / Qual possesso,
1856, p.169) gorras para gente de o pobre grita / Contra o fabricante ousado ! / Debalde o
grande tom artista, coitado, / Já de receio convulso / Quer provar que
nobre impulso / O move, quando trabalha ! / _ A carapuça que
No álbum do meu Amigo ......../ Pedes um canto na lira, / A quem apenas lhe tira
talha / Ninguém crê ser feita avulso ! (“As carapuças”, idem,
amigo J. A. Silva / Sons de viola chuleira ? / Insistes dessa maneira ? / Não sabes
p.49-50)
Sobral que, por desgraça, / Por mais esforços que faça / Por ser vate é
sempre em vão ? / Não vês que mente o rifão : / Quem porfia
mata caça ? (“No álbum do meu íntimo amigo Carlos Nogueira
Pinto Gandra”, idem, p.28)
ESTUDOS AVANÇADOS 33 (96), 2019 133 134 ESTUDOS AVANÇADOS 33 (96), 2019
Quadro 2 – Poemas publicados nas edições de 1859 e 1861
ESTUDOS AVANÇADOS 33 (96), 2019 135 136 ESTUDOS AVANÇADOS 33 (96), 2019