Cleonice Rosa Do Nascimento Servo
Cleonice Rosa Do Nascimento Servo
Cleonice Rosa Do Nascimento Servo
PUC-SP
MESTRADO EM HISTÓRIA
SÃO PAULO
2016
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
(1964 – 1980)
MESTRADO EM HISTÓRIA
SÃO PAULO
2016
Nome: SERVO, Cleonice Rosa do Nascimento
Dissertação apresentada ao
Programa de Estudos Pós-Graduados
em História da Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo,
como exigência parcial para
obtenção do título de Mestre em
História Social, sob a orientação do
Prof. Dr. Antonio Rago Filho.
Banca Examinadora
Dedico este trabalho à memória de
1
Achei graça ao ler um trecho bem-humorado de E. Thompson, em um dos volumes de
sua mais conhecida obra. Tomei a liberdade de parodiá-lo neste espaço, com a devida
referência acadêmica. THOMPSON, Edward Palmer. A formação da classe operária
inglesa: A Árvore da Liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. p.14.
5
Obrigada àqueles que dedicaram um período do seu tempo para
conversar sobre o que sabem desta história: ao Frei Betto, pela acolhida
em sua residência e disponibilidade em contar sua experiência na Pastoral
Operária da Diocese de Santo André; ao Padre Oscar Beozzo, pela lucidez
com que nos explicou alguns aspectos do Concílio Vaticano II e as
influências da Igreja do Brasil; ao Padre Edvaldo Pereira, grande amigo,
que proporcionou este encontro. Agradeço ao Padre José Mahon, que
dedicou uma tarde inteira para falar sobre um passado de luta, mas de
muita fé e esperança. A Dom Cláudio Hummes, pela entrevista, concedida
na Rádio Imaculada Conceição, e que se transformou em uma fonte
importante para este trabalho. Sua atuação nesta Diocese jamais será
esquecida.
Agradeço a oportunidade de pesquisar no CPV, um lugar para
respirar história. À Luísa que, com zelo, acompanha e contribui para que
este espaço de memória ainda resista em São Paulo. Ao Jornal Diário do
Grande ABC, por permitir investigar em seus arquivos. Ao Centro de
Memória de São Bernardo do Campo, que emprestou livros e permitiu
escanear documentos e fotografias para integrar este trabalho, agradeço a
gentileza da funcionária Angélica. Ao CEDIC-PUCSP, CPDoc FGV, Brown
University (Estados Unidos), que se empenham em disponibilizar ao
público documentação importante sobre a história do Brasil.
À Prof. Paula, pelas aulas maravilhosas do curso de História e pelo
incentivo para que eu tentasse ingressar no mestrado da PUC-SP. Ao Prof.
Fernando Camargo, pela amizade e contribuição valiosa.
A todos os colegas de curso com os quais tive a oportunidade de
partilhar aprendizado, experiências e amizade: João Teófilo, Daniella, Ana,
Kiki... Sucesso a todos!
Ao amigo Paulo Henrique, pela presença carinhosa. Nossos cafés
filosóficos ecoaram também nestas páginas. Encontrá-lo no meio deste
caminho foi um presente da vida. Sua inteligência e clareza me ajudaram
6
a organizar melhor as ideias e a encontrar saída para os problemas,
fossem estes acadêmicos ou não. Obrigada.
Agradeço aos Professores do Mestrado em História da PUC-SP, que,
de fato, participam de todo processo de construção e elaboração da
pesquisa com sugestões, conversas e muito carinho também. Em especial,
Prof.ª Estefânia, Prof.ª Maria do Rosário, Prof. Heloisa, Prof.ª Olga, Prof.ª
Izilda, Prof. Amílcar.
Aos Professores Luís Antônio Dias e Fabiana Scoleso que,
criteriosamente, me avaliaram na banca de qualificação e lançaram luz
sobre esta pesquisa. Obrigada por aceitarem estar nesta banca de defesa.
Ao Professor Antonio Rago, com admiração. Agradeço pela
orientação neste período, pela força nos momentos difíceis, pelas
conversas sobre o trabalho e sobre a vida. Uma mente brilhante e um
coração que transborda generosidade.
Agradeço a Capes e ao CNPq, que incentivaram e viabilizaram a
concretização deste desafio concedendo bolsas estudos, sem as quais este
feito não seria possível.
A todos os amigos que em algum momento partilharam desta
trajetória. Obrigada.
Pela vida e suas contradições, presente de um Deus que jamais
desiste de amar.
7
RESUMO
8
ABSTRACT
This paper explore some issues experienced within the Roman Catholic
Diocese of Santo André, located in the region known as the largest
industrial park of Latin America, ABC Paulista, at the metropolitan area of
the city of Sao Paulo, between 1964 and 1980, period of Civil-Military
Dictatorship in Brazil. For this analysis, we considered social initiatives
discussed, above all, from the Second Vatican Council, and
with more vehemence, in Latin America, in the meetings of the Episcopal
Conferences of Medellin, 1968, and Puebla, 1979.
The Don Jorge Marcos de Oliveira and Don Claudio Hummes initiatives
influenced the actions of the working class in ABC Paulista and
participated in the process of reorganization of labor unions in the late
1970’s, resulting in big strike movements that, therefore, reflected in the
process of political opening.
9
SIGLAS E ABREVIAÇÕES
10
LISTA DE FIGURAS
11
LISTA DE FOTOS
12
ANEXOS
13
SUMÁRIO
Introdução .................................................................................. 15
14
INTRODUÇÃO
2
O atual bispo da Diocese de Santo André é Dom Pedro Carlos Cipollini (2015-).
Precedido por Dom Nelson Westrupp (2003-2015), Dom Décio Pereira (1997-2003), Dom
Claudio Hummes (1975-1996) e Dom Jorge Marcos de Oliveira (1954-1975).
3
DE DIREITO CANÔNICO, CÓDIGO. Promulgado por João Paulo II, Papa. cân. 375*-§ 1-
2; São Paulo: Loyola, 2001.
4
Papa Francisco assumiu seu pontificado em 13 de Março de 2013.
5
A pobreza de Francisco de Assis se traduziu para além da esfera material. Para ele, ser
pobre era também ser despojado, desapegado, controlar o egoísmo que mora
9
é jesuíta, mesma ordem religiosa que há 500 anos, com colonizadores
europeus, avançou neste território e imperou um catolicismo sobre povos
autóctones que se perpetuou para as gerações posteriores, inaugurando a
tradição do “continente cristão”, presente até hoje. Em visita à América do
Sul, em julho de 2015, ao participar do II Encontro Mundial dos
Movimentos Populares, na Bolívia, Francisco pediu perdão pelas ações da
Igreja contra os povos indígenas neste continente, no período de
colonização. Segue o trecho do discurso:
naturalmente no homem. Mas não era uma aceitação inócua da realidade social.
Francisco transcendeu a esfera humana, para buscar no Deus em que acreditava as
respostas para as angústias de cada ser. No artigo em que analisa as Admoestações de
Francisco de Assis, Victor Silva assinala as características do discurso do santo católico e
o modo como ele interagiu com as formas sociais da cidade, lugar, por excelência de
seus sermões. “Francisco de Assis se relaciona estreitamente com o excluído a ponto de
nomear a si e a todos os irmãos franciscanos como o menor da sociedade – irmãos
menores – prontos a servirem aquele que é leproso, pobre, enfim, os que ficam à
margem da sociedade”. Seu discurso é também resposta do “homem urbano em busca
de uma identidade, de uma tradição e de um propósito de vida”. SILVA, Victor Augustus
G. Francisco de Assis e a pobreza franciscana: a fundação de um discurso. História,
Questões e Debates, v. 43, 2005.
6
A íntegra do texto do Discurso do Papa Francisco para o II Encontro Mundial dos
Movimentos Populares, no dia 9 de Julho de 2015, está disponível online em:
http://w2.vatican.va/content/francesco/pt/speeches/2015/july/documents/papa-francesco_20150709_bolivia-
movimenti-popolari.html. Acesso em: Julho/ 2015.
10
seus antecessores (jesuítas e papas) e, por duas vezes, faz referência a
João Paulo II, canonizado no correr de seu pontificado. João Paulo II
elaborou o pedido de desculpas no contexto do encontro da CELAM, em
Santo Domingo – República Dominicana, em 19927, realizado no período
de comemorações do Descobrimento da América. No entanto, exatamente
oito anos antes, naquela mesma cidade, durante sua homilia, falou sobre
o “caráter providencial do descobrimento e evangelização da América”,
citando Leão XIII que, em 1892, se referiu à chegada de Colombo ao
continente como a “maior e mais maravilhosa ação humana que jamais
existiu”.8 Bento XVI, em 2007, após sua viagem ao Brasil, também para
um encontro da CELAM, fez uma rápida inferência à questão histórica das
investidas da Igreja contra os povos da América no início da colonização:
a recordação de um passado glorioso não pode ignorar as sombras que
acompanharam a obra de evangelização do continente latino-americano.9
É certo que, Wojtyla10 e Ratzinger11, dominaram a arte da eloquência em
seus pontificados e eram admirados pelo conhecimento dentro e fora do
contexto religioso e, por isso, se tornaram interlocutores na sociedade. Tal
como seus dois antecessores, Francisco também tem se mostrado um
importante mediador no mundo. No entanto, no caso que mencionamos,
vai para além de uma necessidade de cumprir um discurso protocolar.
Diante de uma plateia de camponeses, trabalhadores, sem-terra, sem
teto, indígenas, pela primeira vez, um papa reconhece que é preciso
sobrepor a “ditadura sútil” imposta pelo capital que, escraviza e arruína a
sociedade. Desta forma, ao trazer para este mesmo discurso o recolhedor
de lixo, o limpador, o artesão, o vendedor ambulante, o índio, este
7
LOWY, Michael. A Guerra dos Deuses: Religião e política na América Latina. Petrópolis:
Editora Vozes, 2000. p. 218.
8
Idem.
9
Audiência Geral em 23 de Maio de 2007. Disponível em:
http://w2.vatican.va/content/benedict-xvi/pt/audiences/2007/documents/hf_ben-
xvi_aud_20070523.html
10
Karol Jósef Wojtyla é o nome original do papa polonês João Paulo II. Esteve à frente da
Igreja Católica por 26 anos, entre 1978 e 2005.
11
Ratzinger é sobrenome do papa alemão Bento XVI. Seu nome de origem é Joseph
Aloisius Ratzinger. Ele dirigiu a Igreja Católica a partir de 2005 e em 2013, pediu a
renúncia sendo sucedido por Francisco.
11
reconhecimento parece ganhar um novo sentido e, de certa maneira, se
torna mais tangível, ainda que não apague as marcas nem transforme o
passado.
Francisco, desde que iniciou seu pontificado, traz consigo a marca
da reconciliação. Este signo esteve presente também durante sua visita ao
Brasil em 2013; nas duas encíclicas que escreveu12; nas audiências
públicas e restritas em que recebeu e ouviu líderes de governos, antigos
desafetos da Igreja Católica, pessoas afastadas da instituição; na viagem
a Cuba; no processo de organizar e tornar pública questões financeiras
vaticanas; na iniciativa e colaboração às ações de investigação e punição
a religiosos acusados de pedofilia; em sua direta intervenção nas questões
migratórias. Seria possível preencher aqui algumas páginas sobre a
conduta do atual Papa da Igreja Católica Romana, mas não é o caso.
Basta que este preâmbulo provoque alguns questionamentos, que
apontem para os paradoxos da instituição, fatores que perpassam dois
milênios de história e religião.
O biênio 2014-2015 sustentou alguns memoriais importantes para
este trabalho. Os cinquenta anos do Golpe Militar no Brasil, cinquenta
anos de conclusão do Concilio Vaticano II e, como apontado
anteriormente, sessenta anos de criação da Diocese de Santo André.
É certo que efemérides são essencialmente pontos de referências,
que tendem a cristalizar a história de certas instituições e sociedades,
marcar um tempo com suas contradições ou, como entende Hobsbawm,
“inculcar certos valores e normas de comportamento através da repetição,
12
As chamadas Cartas Encíclicas são documentos oficiais escritos, eventualmente, pelo
Papa em exercício, com o intuito de despertar a atenção e instruir - especialmente os
cristãos católicos, mas também toda a sociedade - sobre determinada temática, seja de
contexto doutrinário, moral, político, social ou econômico. Papa Francisco escreveu duas
encíclicas: a primeira, “Lumen Fidei” (Sobre a Fé), foi publicada poucos meses após o
início de seu pontificado, em 29 de Junho de 2013; a segunda, “Laudato Si” (Louvado
seja), um apelo à sociedade sobre a questão ambiental, teve seu texto divulgado em 18
de Junho de 2015. Ambas estão disponíveis online, respectivamente, em:
http://m.vatican.va/content/francesco/pt/encyclicals/documents/papa-
francesco_20130629_enciclica-lumen-fidei.html e
http://w2.vatican.va/content/francesco/pt/encyclicals/documents/papa-
francesco_20150524_enciclica-laudato-si.html.
12
o que implica, automaticamente, uma continuidade em relação ao
passado”.13 Quando nos referimos à questão do Golpe, não é possível
tratá-lo como um fato comemorativo, mas é um marco. Algumas
universidades e outras entidades, ao organizarem ações para discutir os
50 anos do evento de 64, trataram-no como uma descomemoração14, ou
seja, um ato na contramão do episódio, partindo de uma leitura crítica
desta realidade histórica. Isso aponta para um novo modo de se
considerar a história e, conforme Carlos Fico, relevante para fomentar a
discussão, ainda que, no caso do golpe e seus desdobramentos, deva ser
entendido como um “fato importante, embora não grato”15.
Quanto ao Concílio Vaticano II, transcorrido meio século de seu
término, esta discussão se torna lógica e interessante neste momento em
que um não europeu assume o cargo mais importante da Igreja Católica e
desperta atenção ao tratar de temas cotidianos e complexos, sob um
ângulo pouco explorado por seus antecessores pós-conciliares. Francisco
parece estar injetando nas estruturas desta instituição cristã uma dose de
vigor, extraída em boa medida do Vaticano II.
Sob a ótica de renovação das estruturas internas da igreja, pode-
se considerar que o Concílio foi um divisor de águas para a Igreja
Católica:
13
HOBSBAWM, Eric; RANGER, Terence (org.). A invenção das tradições. São Paulo: Paz e
Terra, 2012. p. 12.
14
O Núcleo de Estudos Culturais: Histórias, Memórias e Perspectivas do Presente da
PUC-SP, em parceria com a Diretoria Regional de Educação, da Prefeitura de São Paulo,
promoveu o evento Descomemorando o Golpe. As atividades do evento aconteceram
entre os dias 8 e 10 de Abril de 2014.
15
FICO, Carlos. Versões e controvérsias sobre 1964 e a ditadura militar. Revista
Brasileira de História, v. 24, n. 47, p. 29-60, 2004.
16
BEOZZO, José Oscar. A Igreja do Brasil no Concílio Vaticano II: 1959-1965. São Paulo:
Paulinas, 2005. p. 49.
13
É certo que avaliar a Igreja Católica somente sob o prisma pré e
pós-conciliar é uma forma simplista de estudar uma instituição de história
milenar e que, entre acertos e erros, contribuiu na formação teórica e
metodológica de algumas das ciências que hoje conhecemos. Não é nossa
intenção estudar o fenômeno do cristianismo, do catolicismo, da religião
ou atravessar os séculos de história da igreja, mas é imprescindível nos
deter na problemática do Concílio Vaticano II e, a partir dela, perceber
seu alcance nos limites da própria religião, como também seu emprego na
esfera cotidiana de cada indivíduo, participante ou não do contexto
religioso-cristão.
O que foi o Concílio Vaticano II? Apenas uma página da história
sem muita aplicação na prática da vida social? Suas resoluções teriam se
perdido no limiar dos anos oitenta? Ou podemos falar de um trabalho que
se concretizou aos poucos e, especialmente nos países latinos, revitalizou
o modo de estar e fazer história junto do povo?
Dom Claudio Hummes, um dos personagens desta história, o
segundo bispo da Diocese de Santo André, entende que, sobretudo, o
novo formato de celebração da missa, para o povo católico, tenha sido
fator mais perceptível do Concílio. Em entrevista, dirigida à veiculação em
uma emissora de rádio católica do ABC, ele assim afirmou:
“O que o povo mais viu e gostou, e viveu no dia a dia, foi a missa
em português, e a missa virada para o povo. Quer dizer, a missa
teve uma reforma muito grande. Também se tornou mais claro.
Mais... muito mais simples!”.17
17
HUMMES, Claudio. Cardeal Arcebispo emérito da Arquidiocese de São Paulo, Prefeito
Emérito da Congregação para o Clero. Esteve à frente da Diocese de Santo André por 21
nos, entre 1975 e 1996. Entrevista concedida à autora em 12 de Agosto de 2013, nos
estúdios da Rádio Imaculada Conceição, em São Bernardo do Campo, para veiculação
nesta emissora e, gentilmente, cedida para uso nesta pesquisa.
14
Os documentos resultantes das Conferências do CELAM – Conselho
Episcopal Latino Americano – realizadas em Medellín e Puebla18
contribuem para responder estas questões no horizonte da América
Latina. E, de fato, é o efeito que o Vaticano II produziu neste âmbito
territorial que consideramos na produção desta pesquisa. De que maneira
a Igreja trabalhou suas decisões conciliares em um continente já marcado
por uma história de exploração e colonização e, no momento do nosso
recorte, submetido a ditaduras e aos desígnios do capitalismo que, como
bem apresenta René Dreifuss, ganhara ampla aprovação nos setores da
classe média e no meio empresarial19?
No Brasil, entre controvérsias, a Igreja estabeleceu uma
plataforma de atuação, determinante para importantes embates que
refletiram no país. Delimitando ainda mais este campo de estudo
chegamos a São Paulo, que se tornou uma das referências urbanas do
Sudeste, polo industrial e fomento da economia nacional. Um estado com
características díspares seja na formação de sua população, na
diversidade de sua cultura ou na evidente divisão entre pobres e ricos,
operário e patrão. Este local foi espaço para a presença de uma igreja
também heterogênea, admitindo política e religião, conservadores e
progressistas, padre e povo, fora do altar, vivendo as concepções do dia-
a-dia, dispostos na vida em construção, dentro de uma sociedade regida
pelos ditames de um governo autocrático burguês.
18
CELAM – Conselho Episcopal Latino Americano foi criado em 1955 pelo Papa Pio XII
com a finalidade de promover uma interação entre os bispos das 22 Conferências
episcopais na América Latina. As reuniões são convocadas pelo Papa em decorrência da
necessidade de se tratar questões de cunho Pastoral da Igreja Católica referentes ao
território. Até hoje foram realizadas cinco assembleias do CELAM: em 1955, 1968, 1979,
1992 e 2007. Este trabalho busca nas reflexões e documentos resultantes de Medellín
(1968) e Puebla (1979) pistas para a compreensão da recepção do Concílio no âmbito
latino-americano.
19
Dreifuss considera esta categoria como uma “intelligentsia empresarial” (grifo do
autor), formada, sobretudo, por industriais, banqueiros e comerciantes. Ver DREIFUSS,
René A. 1964: A conquista do Estado: ação política, poder e golpe de classe. Petrópolis:
Vozes, 2008. p. 78.
15
O Golpe, suas interpretações e articulações
20
DE MELO, Demian Bezerra. Revisão e revisionismo historiográfico: os embates sobre o
passado e as disputas políticas contemporâneas. Marx e o Marxismo, v. 1, n. 1, p. 49-74,
2013.
21
Idem.
16
econômica dependente, situação plenamente ratificada pela burguesia
brasileira, identificada em Florestan Fernandes como “verdadeiras
‘vanguardas políticas’ do mundo capitalista” 22
. Para o golpe de 1964, essa
burguesia pareceu jogar para não perder. Planejou, articulou, aguardou a
chance histórica.
Ao final do governo de Juscelino Kubitscheck as primeiras sementes
do Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais - IPES e do Instituto Brasileiro
de Ação Democrática – IBAD foram lançadas23. Em novembro de 1961, o
IPES foi oficialmente reconhecido com o apoio de integrantes da Igreja
Católica, entre eles, o Arcebispo do Rio de Janeiro, Dom Jayme de Barros
Câmara. Sob a fachada de uma organização preocupada com o futuro e o
progresso do país, o IPES garantiu seu espaço, sob argumentos de:
22
Ver FERNANDES, Florestan. A Revolução Burguesa no Brasil: Ensaio de Interpretação
Sociológica. Rio de Janeiro: Editora Guanabara, 1987. p. 294.
23
DREIFUSS, op. cit., p. 174.
24
Idem, p. 176
25
Idem.
17
A burguesia viu no IPES/IBAD um aliado e, em março de 1964,
enxergou a ocasião sem a desperdiçar, como nos lembra Florestan
Fernandes:
26
FERNANDES, op. cit., p. 218.
27
Idem, p. 310.
28
Idem, p. 296.
29
RAGO FILHO, Antonio. O ardil do politicismo: do bonapartismo à auto-reforma da
autocracia burguesa. Projeto História (PUCSP), São Paulo, v. 2, p. 139-167.
18
diferentes formas de comprometimento e apreensão do contexto político e
social por fiéis, comunidades religiosas, clero e membros do episcopado.
Nas primeiras investidas dos militares na intenção de uma tomada
de poder, uma parcela da igreja se mostrava favorável30, tanto que as
Marchas da Família com Deus pela Liberdade tiveram êxito e, pode-se
dizer, foram decisivas para o Golpe de 1964.
Em 19 de Março de 1964, milhares de pessoas saíram em passeata
pelas ruas de São Paulo, para protestar contra o teor do discurso e
propostas de reformas de base de João Goulart, anunciadas no Comício da
Central do Brasil, em 13 de Março. Skidmore sugere que Goulart, diante
da pouca expectativa de ver aprovadas no Congresso quaisquer de suas
propostas de reformas, decidiu acolher a sugestão de alguns políticos
“nacionalistas radicais” e levar diretamente ao povo suas ideias. Essa
atitude foi considerada um claro afrontamento ao Congresso, estopim
para uma guerra velada. 31
Para a oposição e representantes da Igreja Católica, as iniciativas
do governo transformariam o Brasil num país comunista e ateu, de modo
que, ao ser convocada, a Marcha da Família com Deus pela Liberdade,
rapidamente ganhou vulto e aprovação da população conservadora do
país. Os setores da burguesia brasileira se aproveitaram da iniciativa e a
legitimaram com intensa campanha publicitária, divulgação através de
jornais32, associações religiosas e cívicas, anticomunistas e partidos
políticos. A organização do evento se deu, sobretudo, através da ação de
30
Conforme Thomas Skidmore, “a hierarquia da Igreja foi outra fonte de opinião de elite
que apoiou a intervenção militar. Em manifesto de 26 de maio um grupo de bispos
influentes elogiou o golpe notando que ‘as forças armadas intervieram a tempo de
impedir a implantação de um regime bolchevista em nosso país’”. SKIDIMORE, Thomas.
Brasil: De Castello a Tancredo (1964 – 1985). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989. p. 64.
31
Idem, p. 41.
32
O Jornal “O Estado de S. Paulo” em sua edição do dia 19 de Março de 1965, um ano
após a realização das Marchas da Família com Deus pela Liberdade, dedicou páginas
inteiras para relembrar o êxito que tiveram tais eventos no processo que culminou com a
“Revolução de Março”. Curiosamente, nesta mesma edição fora publicado um “Manifesto
à Nação” exaltando o regime instaurado e convocando a nação a zelar pelos direitos
constitucionais, entre eles: o ‘direito de expressão de pensamento’, o ‘direito de
representação’ e o ‘direito de locomoção’. Veículos de informações como o jornal acima
mencionado também tiveram papel relevante na concretização do Golpe Militar de 1964.
19
organismos como a Campanha da Mulher pela Democracia - CAMDE,
fundada no Rio de Janeiro, por padres católicos e esposas de empresários
cariocas; e da União Cívica Feminina - UCF, fundada por mulheres de
empresários e militares de São Paulo, em 1962. Estas entidades foram
amparadas financeiramente pelo IPES, além de garantirem aprovação
declarada do Governador do Estado de São Paulo, Adhemar de Barros e
sua esposa, Leonor Mendes de Barros, apoio estratégico para um
movimento com linha de frente formada majoritariamente por mulheres.
Sobre a participação feminina nas Marchas da Família, Solange de
Deus Simões atribui três papéis importantes para o subsequente sucesso
do Golpe: “terem sido as primeiras a agir; terem encorajado ‘homens sem
coragem’; terem incentivado e apelado para as Forças Armadas.” 33
As
passeatas pediam democracia, liberdade e um governo cristão através de
uma intervenção.
Com referência ao apoio da Igreja, é preciso considerar que não se
tratava de um consenso, e não foram poucos os religiosos e mesmo leigos
que, suspeitando da iminência de uma ação golpista, se posicionaram
contrários. No ABC não aconteceram marchas com o apoio oficial da
Igreja Católica, ainda que haja relato sobre a realização de um evento
após o Golpe, na Praça do Carmo, em Santo André, para comemorar seu
êxito34. Em entrevista, Dom Jorge Marcos explicou como se posicionou
sobre o fato:
33
SIMÕES, Solange de Deus. Deus, Pátria e Família: as mulheres no golpe de 1964.
Petrópolis: Vozes, 1985. p. 96.
34
SOBRINHO, Felipe Cosme Damião. Catolicismo e Militarismo no ABC Paulista: 1964 -
1985. 137 f. Monografia (Bacharelado em Teologia) Pontifícia Faculdade de Teologia
Nossa Senhora Assunção, São Paulo, 2009. p. 60.
35
OLIVEIRA, D. Jorge apud SOBRINHO, Felipe Cosme Damião. op. cit. p. 61.
20
Um dos padres com os quais conversamos, Padre José Mahon, ao
ser perguntado se teria participado de alguma, respondeu:
A dinâmica da pesquisa
36
MAHON, José. Padre da Ordem dos Filhos da Caridade. Entrevista realizada em
Janeiro/2015.
21
poupado por enfrentar os generais, nem mesmo uma das mais
respeitadas instituições no Brasil: a Igreja Católica.
Porém, falar de atuação da ‘Igreja’ na Ditadura Civil-Militar37 no
Brasil pode soar superficial se não houver o aprofundamento necessário
através de pesquisas em locais e situações específicas, considerando que
não foram poucas as regiões e ocasiões que dispuseram de sua
interferência e mediação. Dom Pedro Casaldáliga recebeu inúmeras
ameaças de morte por defender os trabalhadores rurais do Araguaia.
Helder Câmara ascendeu como um dos nomes na luta contra a repressão
e a favor da democracia, respeitado internacionalmente. Na arquidiocese
de São Paulo, o Cardeal Arns corria porões de delegacias na busca de
presos políticos, afrontando polícia e governo pelos direitos humanos. Se
pensarmos na ala conservadora da igreja, também é possível discorrer
sobre numerosas situações com pesquisas que apontam as atividades e
influência eclesial no campo político neste período. Sem contar os
movimentos como Ação Católica - AC, Ação Popular - AP, Comunidades
Eclesiais de Base – CEB’s, Organizações de Juventude, de trabalhadores,
de mulheres e tantos mais, fontes inesgotáveis de história ao longo da
ditadura. Neste trabalho, abordamos a práxis da Diocese de Santo André
37
As recentes pesquisas sobre o período 1964-1985 apontam para uma presente disputa
da memória. Os estudos sobre o Golpe e a Ditadura se iniciaram nos anos 90, mas
apenas recentemente se intensificou a produção bibliográfica sobre o tema. Antes da
década de 1960 a historiografia estava voltada para temas antropológicos, sobre
colonialismo, descobrimento etc. Houve, então, um deslocamento da discussão da
historiografia para um viés marxista-economicista. Com a Escola dos Analles acontece
uma transição da escola documental (dos Institutos Históricos) para uma história
preocupada com fatos presentes. Através desta renovação é possível ver o deslocamento
de paradigmas e atenções mais voltadas para temáticas emergentes. No entanto, a
abordagem do período ditatorial era quase uma exclusividade das Ciências Políticas, da
Sociologia e, atualmente, compõe pesquisas de praticamente todas as áreas e com muita
ênfase na historiografia. Esta preocupação da História atual com o tema levantou
diversas discussões e também suscitou algumas questões polêmicas e revisionistas como
a tese do “golpe dentro do golpe” ou da “ditadura branda”. Enfim, o aprofundamento da
problemática permitiu uma análise mais apurada não apenas dos fatos, mas também dos
agentes envolvidos na ação que findou em um Golpe em 1964. De forma que, hoje,
podemos traçar um diagnostico que nos permita, do ponto de vista histórico, não apenas
revisar, mas também esclarecer aspectos deste período ainda atingidos por certo
obscurantismo. Importante lembrar que as novas pesquisas, já nos permitem falar, não
apenas em um Golpe que culminou em Ditadura Militar, mas em uma ação conjunta,
Civil-Militar. FICO, Carlos. Versões e controvérsias sobre 1964 e a Ditadura Militar.
Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 24, n. 47, p. 29-60, 2004.
22
entre os anos de 1968 e 1980, tendo como parâmetro de ação o Concílio
Vaticano II, conhecido como a ‘Primavera da Igreja’38.
Pensar o envolvimento da Igreja Católica implicava, porém, certo
desprendimento pessoal com a entidade. Após trabalhar por muitos anos
dentro de movimento diretamente vinculado à Igreja39, era preciso
compreender mais profundamente sua história, seus conceitos, seus
documentos e sua influência na sociedade daquele momento, de forma
que passamos a investigar esta atuação também para além dos cânones
católicos, seus tratados e regras. Quando se está muito ligado a um
objeto que se pretende estudar é custoso apreendê-lo sem uma medida
de sentimento particular que não interfira na compreensão da
generalidade. Portanto, durante este processo, buscamos a parcela
necessária de distanciamento sugerida nos escritos de Walter Benjamin40,
a fim de desenvolver uma análise e narrativa coerentes com o cuidado de
encontrar as peças que formam o cenário com seus personagens e
motivações de suas atuações.
38
Quem primeiro valeu-se da expressão “Primavera da Igreja”, como referência ao
Concílio Vaticano II, foi o Papa João XXIII: “A todo momento ele deixava transparecer
seu entusiasmo e otimismo, sua alegria e contentamento, saudando essa iniciativa com
imagens que evocavam sua infância nos campos de Soto Il Monte. Não se cansava de
comparar o Concílio à primavera e às suas flores: ‘A ideia do Concílio não amadureceu
como fruto de prolongada consideração, mas qual flor espontânea de inesperada
primavera’”. BEOZZO, José Oscar. O Concílio Vaticano II: etapa preparatória. In:
Vaticano II: 40 anos depois, São Paulo: Paulus, 2005.
39
Como funcionária por quase 20 anos da Organização Religiosa Milícia da Imaculada,
que mantém a Rádio Imaculada Conceição 1490 AM, instalada na cidade de São
Bernardo do Campo, Diocese de Santo André, pude apreender conhecimentos sobre a
Igreja Católica, sua historia, sua missão, seus delineamentos, movimentos e
personagens. A organização à qual me refiro é uma referência nos meios de comunicação
católicos, principalmente por conseguir acolher a ‘fala’ de todos os setores da igreja no
Brasil, abrindo espaço para um diálogo construtivo e de respeito em torno dos
ensinamentos religiosos, articulando a vivência cristã à realidade e contemporaneidade
social.
40
Benjamin, ao discorrer sobre o conceito de história, propõe um ‘distanciamento’ do
estudioso ao seu objeto. Tal distancia permitiria ao historiador uma análise ‘a
contrapelo’, reconhecendo todos os sujeitos envolvidos no contexto, de forma especial,
aqueles que ficaram à margem da narrativa oficial, promovendo uma justa percepção
desta memória cultural. Ver BENJAMIN, Walter. Sobre o Conceito da História. In: Magia e
Técnica, Arte e Política: Ensaios sobre literatura e história da Cultura. São Paulo:
Brasiliense, 2012. Obras Escolhidas, v. 1. p. 244.
23
Pesquisar o passado, mesmo que seja um passado recente, é um
desafio. Afinal, não é possível ter ao certo a dimensão exata da
problemática que viveram os indivíduos daquele tempo, e, à medida que
os indícios deste passado chegam até nós, fazemos uma reconstrução e
interpretação desta história através de fragmentos de memórias. Edward
Thompson, diante da investigação a respeito dos trabalhadores ingleses e
seu comportamento frente ao novo industrialismo, adverte: “eles viveram
nesses tempos de aguda perturbação social, e nós não. Suas aspirações
eram válidas nos termos de sua própria experiência” .
41
41
THOMPSON. Edward Palmer. A Formação da Classe Operária Inglesa: A Árvore da
Liberdade. 4ª Edição. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 1987. p. 13.
24
A renovação de uma Igreja centralizadora veio no momento
propício. Alinhar-se ao movimento geral era quase uma condição num
século que concebeu duas grandes guerras, além de um conflito ideológico
que suscitou um combate tão forte quanto as armas da Segunda Guerra
Mundial. A Igreja que até a Revolução Francesa se considerara portadora
das repostas do mundo, já não encontrava na Bíblia e nem em seus
cânones explicações para as questões da modernidade42. Estas iam desde
a nova formatação política e econômica do mundo às de ordem moral e
propriamente religiosa. Considerando que as transformações do século XX
‘para todo planeta foram tão profundas quanto irreversíveis’, como afirma
Hobsbawm43, este fator pesou na decisão de também direcionar a
instituição para um novo processo.
Os resultados não demoraram muito a ser percebidos. A
convocação do Concílio Vaticano II foi uma iniciativa neste processo e foi
também impulso para mudanças almejadas especialmente pelos setores
progressistas da Igreja. Na América Latina, onde reside nosso interesse de
estudo, as determinações pós-conciliares surtiram efeitos práticos na
sociedade após 1968, ano em que foi realizada a Conferência de Medellín,
evento que melhor traduziu para o continente as principais questões de
ordem social. O Brasil de 1968 viu também o recrudescimento da Ditadura
Militar através do Ato Institucional n.º 5.44 A esta altura já era de
conhecimento da Igreja brasileira as violações de direitos humanos no
país45. Estava claro o suficiente a que viera a ditadura dos militares e para
quem estavam governando.
42
“A tendência geral do período desde 1789 até 1848 foi, portanto, de uma enfática
secularização. A ciência se achava em crescente conflito com as Escrituras, à medida que
se aventurava pelos caminhos da evolução”. HOBSBAWM, Eric. A Era das Revoluções:
1789 – 1848. São Paulo: Paz e Terra, 2012. p. 352.
43
HOBSBAWM, Eric. A Era dos Extremos: O Breve Século XX. São Paulo: Companhia das
Letras, 1995. p. 18.
44
A CELAM (Conferência Episcopal Latino Americana) realizada em Medellín, Colômbia,
aconteceu entre 26 de agosto e 6 de setembro de 1968. No mesmo ano, em 13 de
Dezembro o General Costa e Silva decretou o AI-5.
45
Em 1969 fora preparado um relatório com acusações diretas ao governo brasileiro com
a descrição de todo tipo de maus tratos a presos políticos e perseguições em todo o país,
este dossiê foi entregue ao Papa Paulo VI e Roma também se apressou repreender tais
25
Em Medellín, fora apresentada em tom de denúncia a situação de
miséria de alguns países da América Latina. Os participantes puderam ver,
através de fotos, uma realidade escondida pelos governos ditatoriais. A
plateia que assistia à apresentação pasmou-se. Para muitos, as cenas
eram uma triste novidade.46
Religião, política e sociedade se encontravam, se reconheciam, se
estranhavam e se hostilizavam.47 Setores mais progressistas da Igreja
Católica puderam respirar uma teologia mais libertadora e mais humana
avançando na consciência de uma sociedade com mais igualdade. Essa
teologia emanava, sobretudo, da prática pastoral, mas também era fruto
de um novo modelo teórico, assimilado por teólogos latinos em seus
estudos nos institutos de teologia da Europa. Desta fusão resultou uma
teologia de “reflexão crítica”, interpretada em Gustavo Gutiérrez, como
“um pensamento crítico de si mesmo, de seus próprios fundamentos. Só
esse pode fazer dela um discurso não ingênuo, consciente de si, em plena
posse de seus instrumentos conceptuais”.48
Este pensamento incomodava militares, burguesia e a ala
conservadora católica brasileira; todos estes se armaram como puderam a
fim de combater a evolução daquilo que era considerado como ‘teorias
socialistas’ e subversivas, que se disseminavam como catequese no meio
do povo por meio de estudos bíblicos, homilias, discursos, reuniões
paroquiais e através de grupos como a Juventude Operária Católica e
Juventude Universitária Católica (JOC e JUC), as Comunidades Eclesiais de
Base (CEB) e Ação Popular (AP).49
práticas. Ver: SKIDMORE, Thomas. Brasil: de Getúlio a Castelo. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, v. 8, 1982. p. 179.
46
SYDOW, Evanize; FERRI, Marilda. Dom Paulo Evaristo Arns: um homem amado e
perseguido. Editora Vozes, 1999. p. 88.
47
Vale lembrar que este trabalho se limita a analisar a atuação da Igreja Católica dentro
do período estabelecido. No entanto, não se pode esquecer-se da ação de lideranças
religiosas de praticamente todas as denominações, cristãs ou não, que se empenharam
na luta contra os desmandos da Ditadura Militar Brasileira.
48
GUTIÉRREZ, Gustavo. Teologia da Libertação: Perspectivas. Petrópolis: Vozes, 1986. p.
23.
49
O Movimento da AP (Ação Popular) tem sua origem em Belo Horizonte MG, em 1962 e
descende de outros movimentos cristãos como a JUC (Juventude Universitária Católica).
26
A presença destes movimentos não era exatamente uma novidade.
A estrutura do que conhecemos como JUC, por exemplo, antecede,
inclusive, a Ação Católica, considerada fonte formadora para as futuras
pastorais e organizações populares ligadas à Igreja50.
Interessante também refletir sobre a Teologia da Libertação que
surge na porção latino-americana, com entusiastas em vários países. No
Brasil, uma das referências é Leonardo Boff. Seu livro Jesus Cristo
Libertador, escrito em 1970, foi motivo de divisão e perseguição, ao
sustentar a ideia de um novo modelo de pregação, em que o Cristo é
associado diretamente a alguém que fomenta uma atitude de libertação.
O eixo desta nova teologia não está nos sacramentos, mas na leitura e
interpretação bíblica, participação na comunidade, compromisso social e
uma direta atuação dos leigos como sujeitos neste processo.
Estas características foram associadas como propensão àquilo que a
igreja mais se empenhara em combater naquele século: o marxismo. E
embora não se tratasse de uma teologia marxista, algo que seria
contraditório a uma proposta e experiência religiosa, a Teologia da
Libertação toma como referencial de análise a dialética de Marx, a fim de
As CEBs são comunidades ligadas a Igreja Católica, cujo pensamento e reflexão estão
vinculados à teologia da libertação. Tiveram maior evidência e atuação entre os anos de
1970 e 1980 no Brasil e na América Latina. Sandra Portuense nos oferece um bom
trabalho ao tratar da atuação da Ação Popular no âmbito do ABC Paulista. Sua
investigação está centrada em repercutir a experiência de integrantes do movimento
entre as décadas de 1950 e 1970, mas a autora traça um histórico da trajetória do
movimento, que contribui para compreendermos melhor seus objetivos. Cf. PORTUENSE
DE CARVALHO, Sandra A. Experiências de Solidariedade e Política – CB-22 – A Ação
Popular no Jardim Zaíra (1958-1970). 184 f. Dissertação (Mestrado em História Social)
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2013. Outra pesquisa muito
interessante é a da historiadora Maria Blassioli. Sua dissertação de mestrado sobre a
ação da JOC na Diocese de Santo André recompõe um percurso importante para a
compreensão do movimento e sua influência na questão operária. Cf. MORAES, Maria
Blassioli. A Ação Social Católica e a Luta Operária: a experiência dos jovens operários
católicos em Santo André (1954 - 1964). 207 f. Dissertação (Mestrado em História
Social) Universidade de São Paulo, São Paulo, 2003.
50
Os primeiros passos da Juventude Universitária Católica são dados no início da década
de 1930. Nesta época era conhecida como Ação Universitária Católica. Em 1935, a AUC é
incorporada como uma das seções da Ação Católica, oficializada no Brasil, com o objetivo
de formação dos leigos para uma atuação cristã na família e na sociedade.
Descreveremos melhor estes movimentos no segundo capítulo desta dissertação. Ver:
MAINWARING, Scott. Igreja Católica e Política no Brasil: 1916-1985. São Paulo: Editora
Brasiliense, 1989. p. 84.
27
observar a sociedade, perceber suas contradições, combater injustiças e
propor ações que promovam os indivíduos, neste caso, até mesmo como
seguimento ao apelo de Medellín, os pobres. Tratava-se de uma fé com
engajamento social.
As ideias da Teologia da Libertação alçaram voo com as
Comunidades Eclesiais de Base e outros movimentos de pastoral social,
mas foram duramente repreendidas e rejeitadas por boa parte da igreja e
seus apoiadores chegaram a ser perseguidos no período de
recrudescimento da Ditadura Militar.
51
Cf. VIER, Frederico; KLOPPENBURG, Boaventura. Compêndio do Vaticano II:
Constituições, Decretos e Declarações. Petrópolis: Vozes, 1974. p. 15.
52
Para outras informações sobre o Concílio Vaticano I, consultar: SOUZA, Ney;
GONÇALVES, Paulo Sérgio L. Catolicismo e Sociedade Contemporânea: Do Concílio
Vaticano I ao contexto histórico-teológico do Concílio Vaticano II. São Paulo: Paulus,
2013. p. 77.
53
Instituído no Concílio Vaticano I, o Dogma da Infalibilidade Papal, de acordo com o
Código de Direito Canônico, torna-se aplicável quando: o Papa fala sobre a Fé e os
costumes; o Papa fala para toda a igreja; o Papa fala utilizando-se do Poder que,
segundo a tradição católica, foi dado a São Pedro, o primeiro dos Papas; o Papa se
pronuncia de forma definitiva sobre uma questão, condenando expressamente a ideia
contrária. Conforme o Cânone 749, parágrafo primeiro, “em virtude do seu cargo, o
Sumo Pontífice goza de infalibilidade no magistério quando, como supremo Pastor e
Doutor de todos os fiéis, a quem pertence confirmar na fé os seus irmãos, proclama por
um acto definitivo que tem de ser aceite uma doutrina acerca da fé ou dos costumes.”
28
Trata-se – dizia sua Santidade – de completar a doutrina que o
Concílio Vaticano I se propunha enunciar, mas que, sendo
interrompido por obstáculos exteriores, como sabeis, não pode
definir senão sua primeira parte... Temos de completar a
exposição desta doutrina para explicar o pensamento de Cristo
sobre sua Igreja (...). De muitas outras questões deverá tratar o
Concílio; mas o ensino conciliar a respeito da Igreja parece-Nos de
especial gravidade.54
As Fontes
55
DELGADO, Lucilia de Almeida N. História Oral: Memória, tempo, identidades. Belo
Horizonte: Autêntica, 2010. p. 9.
56
Idem, p. 49.
30
abordado57. Igualmente, visa promover a fala destas pessoas como
sujeitos desta memória. Particularmente, nesta análise, nos limitamos à
alocução de alguns padres e religiosos que participaram de momentos
significativos da vida diocesana de Santo André e compartilharam conosco
sua compreensão e lembranças do período. Tivemos algumas conversas
mais informais com outros sacerdotes, religiosos e leigos da região que
contribuíram para nortear nosso caminho de pesquisa, mas ao visitarmos
Padre José Mahon, em Santo André e Frei Sebastião Quaglio, em São
Bernardo do Campo, tivemos acesso, com mais detalhes, a algumas das
histórias que retratam a atuação desta igreja nas sete cidades que
compõem a Diocese. Ambos conheceram e trabalharam com os dois
primeiros bispos de Santo André.
Em outro momento, encontramos o religioso, escritor e ativista
político Frei Betto, que nos recebeu em sua casa e falou sobre sua
experiência junto a Dom Claudio Hummes, quando por este, foi convidado
a conduzir e orientar a Pastoral Operária na diocese, permanecendo à
frente do movimento entre os anos de 1979 e 2002.
Cabe, no entanto, esclarecer que, por motivo do prazo, aliado ao
volume de informações que precisávamos assimilar no âmbito da
atividade de pesquisa, não foi possível trabalhar com maior quantidade de
relatos, incluindo o grupo de leigos58, indispensável neste processo
histórico.
Não obstante, acreditamos que este fator não tenha gerado
prejuízos ao resultado da pesquisa. Na carência destes testemunhos,
recorremos a outros estudos que, discutindo este processo histórico na
57
“Embora a história oral sempre seja associada com a ‘micro história’ devido ao seu
enfoque nas vidas individuais e seu modo de transmissão, o trabalho de seus
historiadores varia amplamente. A disposição dos caracteres pode ir da história de vida
de um indivíduo à reconstrução do cerne de um processo envolvendo milhões de
pessoas”. PORTELLI, Alessandro. História oral como gênero. Projeto História. Revista do
Programa de Estudos Pós-Graduados de História, São Paulo, n. 22, p. 9-36, Jun. 2001. p.
27.
58
Para a Igreja Católica, Apostólica e Romana, o leigo é a pessoa batizada na religião e
que não prestou os votos de pobreza, obediência e castidade, necessários para a vida
religiosa consagrada ou o sacramento da Ordem, direcionado para a vida sacerdotal.
31
diocese de Santo André, partindo de categorias específicas, se utilizaram
da metodologia da oralidade, para compor suas análises. É o caso, por
exemplo, de Sandra Portuense que, discutindo em sua dissertação de
mestrado as relações e tensões de um grupo da Ação Popular nesta
diocese, encontrou na narrativa dos integrantes deste movimento, a
motivação e o delineamento de seu trabalho, além de fornecer pistas para
pesquisas futuras.59
Cada vez mais a “história oral” se apresenta como um território
fértil na produção historiográfica. Alessandro Portelli, legitimado por sua
experiência neste recurso metodológico, observa a narrativa como um
“gênero de discurso no qual a palavra oral e a escrita se desenvolvem
conjuntamente, de forma a cada uma falar para a outra sobre o
passado”60 e acrescenta que este é, ao mesmo tempo, um discurso
“histórico” e “dialógico”.61 Em nossas poucas investidas por este campo
nesta pesquisa, foi possível perceber a complexidade em tomar as fontes
orais como instrumentos de análise. Para aqueles que apreciam e tem
vocação para ouvir, a “história oral” é uma forma aprazível de construção
da memória, e é, na mesma medida, desafio de leitura de um passado,
contado em meio a subjetividades, emoções e tensões, particularidades
que, requerem do historiador uma postura de discernimento e crítica, a
fim de conduzir estes diálogos com a coerência necessária à sua
abordagem, porém, com o devido respeito e consideração ao seu
narrador.
[...] recordar e contar já é interpretar. A subjetividade, o trabalho
através do qual as pessoas constroem e atribuem significado à
própria experiência e à própria identidade, constitui por si mesmo
59
PORTUENSE DE CARVALHO, Sandra A. Experiências de Solidariedade e Política – CB-22
– A Ação Popular no Jardim Zaíra (1958-1970). 184 f. Dissertação (Mestrado em História
Social) Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2013.
60
Cf. PORTELLI, op. cit., p. 13.
61
Id., p. 10-11. Portelli lança luz para a questão da postura do historiador diante do que
ouve, compreende e transporta para seu texto. “A expressão ‘história oral’, por
conseguinte, contém uma ambivalência que (...), refere-se simultaneamente ao que os
historiadores ouvem (as fontes orais) e ao que dizem ou escrevem. Num plano mais
convincente, remete ao que a fonte e o historiador fazem juntos no momento de seu
encontro na entrevista”. (grifos do autor)
32
o argumento, o fim mesmo do discurso. Excluir ou exorcizar a
subjetividade como se fosse somente uma fantasiosa interferência
na objetividade factual do testemunho, quer dizer, em última
instância, torcer o significado dos fatos narrados.62
62
PORTELLI, Alessandro apud PORTUENSE, Sandra. op. cit. p. 27.
63
GASPAROTTO, Alessandra. O Terror Renegado: Uma reflexão sobre os episódios de
retratação pública protagonizados por integrantes de organizações de combate à
Ditadura Civil-Militar no Brasil (1970 - 1975). 271 f. Dissertação (Mestrado em História
Social) Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2008. Em 2010
Gasparotto teve sua dissertação publicada em livro e ganhou o prêmio “Memórias
Reveladas”, projeto vinculado ao Arquivo Nacional do Ministério da Justiça, com objetivo
de resguardar e favorecer o conhecimento geral e a pesquisa sobre as lutas políticas
entre 1964 e 1985.
64
WILLIAMS, Raymond. Cultura e Materialismo. São Paulo: Editora Unesp, 2005.
33
comunicação, historicamente em transformação, possuem relações
históricas variáveis com o complexo geral das forças produtivas e
com as relações sociais.65
65
Idem, p. 69.
66
Brown Digital Repository: https://repository.library.brown.edu/studio/
34
sentido de acelerar a digitalização de documentos de valor histórico, e
permitir, cada vez mais, o acesso do público em geral.
Nosso estudo buscou informações em Centros de Pesquisa,
localizados no espaço da Diocese de Santo André, Jornal Diário do Grande
ABC, referência para os sete municípios que compõem a região, arquivos
de igrejas, Projeto Brasil Nunca Mais, que tem se empenhado em
promover uma ampla divulgação dos documentos do período de Ditadura
Militar, Centro de Pesquisa Vergueiro (CPV), Centro de Documentação e
Informação Científica (CEDIC-PUCSP) e Centro de Pesquisa e
Documentação Histórica (CPDoc FGV).
67
OLIVEIRA, Jorge M. Dom Jorge, 25 anos de Grande ABC (Primeira Parte). Entrevista
concedida a Ademir Médici. Diário do Grande ABC, 21 out. 1979. Caderno C.
35
e sociais que se desenvolveram no bojo desta igreja; as transformações
socioeconômicas e propostas da Igreja frente às contradições que se
deram neste espaço e recorte; e a constituição de uma classe operária
que encontrou no espaço religioso e eclesial a salvaguarda para suas
lutas, resistência e reivindicações.
Como dissemos, trata-se da construção de uma narrativa que não
teria sentido e valor para as ciências humanas, se não convergisse de um
processo histórico. Portanto, situamos nosso objeto de estudo “A Diocese
de Santo André” entre dois importantes eventos que, ao mesmo tempo
formam um cenário e participam ao longo de toda a nossa análise: O
Concílio Vaticano II (1962-1965) e a Ditadura Militar no Brasil (1964-
1985).
Considerando que o recorte desta pesquisa compreende o período
de 1964 a 1980, é oportuno destacar que algumas colocações,
observações ou referências que se achem fora deste intervalo, tem a
funcionalidade de contribuir para uma compreensão conjuntural do tema
de estudo. De maneira que, por exemplo, no primeiro capítulo,
discorremos brevemente sobre a formação dos municípios do ABC
Paulista, para entender sua vocação industrial e operária e, da mesma
forma, recorremos a uma síntese de como se constituiu o Concílio
Vaticano II, a fim de apresentar e situar a Igreja Católica nos trâmites da
sociedade contemporânea.
A tônica da Ditadura Militar Brasileira tem atraído a atenção de
muitos pesquisadores e suscitado debates importantes para a
historiografia, está alinhada às discussões postas nesta produção, de sorte
que, à medida que situamos a problemática e desafios da Diocese de
Santo André, vamos apurando as demandas referentes à ditadura e
posicionando-as na circunstância de nossa análise.
36
É certo que não se pode deixar de valorizar os resultados
alcançados com a formação da Comissão da Verdade no Brasil68 que,
empenhada em apurar os crimes cometidos ao longo deste período de
repressão da Ditadura Civil Militar, trouxe a público documentos
importantes para a pesquisa histórica deste período. A classe operária e
os movimentos populares sofreram sistematicamente a repressão.
Infelizmente, nada pode pagar o valor da vida e muitos a perderam,
lutando por liberdade e direitos comuns.
Infelizmente, em razão das demandas de fonte e informações, não
foi possível integrar neste trabalho a discussão sobre a Anistia, que ocorre
em fins da década de 1970, uma das bandeiras e motivo de debates entre
os trabalhadores do ABC e da própria Igreja Católica no Brasil. A decisão
de um indulto amplo, geral e irrestrito, beneficiou a camada dos que,
deliberadamente, perpetraram e favoreceram a permanência daquele
sistema repressor e arbitrário e que, atendendo majoritariamente
interesses do capital e da burguesia nacional, desconsideraram a grave
situação do trabalhador, do camponês, do estudante, das camadas
populares, e abafaram a voz de quem se posicionou contrariamente.
Procuramos entender esta classe de trabalhadores do ABC a partir
da metodologia de Edward Thompson, percebendo que este grupo faz-se
a partir de um reconhecimento muito particular de si, de suas contendas,
angústia, necessidades e até da própria cultura. Diferente, é verdade,
daquela classe operária britânica do século XIX, formada em outro
momento histórico, em outra cultura e sob outras demandas, mas que,
mantêm o ponto comum do reconhecimento de si como um corpo vivo,
cuja vitalidade vem da luta a se travar contra patrões e ao próprio
capitalismo.
68
A Comissão da Verdade Brasileira foi uma inciativa oficializada pela Lei 12528/2011,
cujos trabalhos começaram a 16 de maio de 2012. A conclusão da análise e apuração
histórica do período da Ditadura Militar Brasileira se deu em 16 de Dezembro de 2014. O
resultado deste trabalho consta em relatório oficial em três tomos, disponível para
consulta pública.
37
A consciência de classe que o operário, nesta região, vai
incorporando à medida que avançam suas lutas em comum, deve-se
também a uma disposição da própria igreja católica da Diocese de Santo
André, que aceita abrir as portas e salas de suas paróquias para o diálogo
e planejamento de ação do trabalhador, principalmente no período de
maior repressão do sistema ditatorial, quando associações e sindicatos
são fechados, manifestações populares são proibidas e os meios de
imprensa são censurados de contradizer o governo. Existe, então, uma
percepção de que há uma luta em processo, em comum, entre diferentes
setores operários e intersindicais.
As chamadas Semanas do Trabalhador, que aconteceram ao final
dos anos 1970 e ao longo dos anos 1980, na Matriz de São Bernardo do
Campo, foram muito bem participadas e se tornaram um ponto de
referência para o trabalhador que já vinha de uma prática de
reivindicações, de greves, mas que, em muitos casos, ainda tinha certa
carência de um conteúdo teórico ou propriamente um entendimento da
subjetividade de suas ações. Estas Semanas eram promovidas pela
Pastoral Operária e outros organismos da diocese e tinham, então, o
objetivo principal de agregar conhecimento às atividades de luta e
resistência da classe trabalhadora na região.
Abordaremos mais detalhadamente a questão operária, os
sindicatos e a influência da igreja no processo de luta dos trabalhadores
entre 1970 e 1980 no terceiro capítulo, mas por hora, nos interessa deixar
já registrado de que maneira esta igreja participou da construção de uma
consciência desta classe, vinculando os elementos próprios da religião
como a oração, seguimento ao Evangelho e à doutrina, a participação na
missa, na vida em comunidade, nos grupos e pastorais à realidade de vida
de seus fiéis, considerando os desafios que se apresentavam em tempos
de grande dificuldade social e econômica, associada à restrição de sua
liberdade, imposta como regra em tempos de uma Ditadura Civil Militar.
38
Sobre todas estas questões referentes ao contexto operário neste
espaço, abordaremos, sobretudo, em nosso terceiro capítulo, apoiados,
nas análises de Luís Flavio Rainho e Osvaldo Martines Bargas69; entrevista
realizada com Lula70, ainda como dirigente sindical; e na monografia do
Padre Felipe Cosme Damião Sobrinho, que desenvolveu uma aprofundada
pesquisas sobre a atuação da Diocese de Santo André entre os anos de
1964 e 1985.
69
RAINHO, Luís Flávio; BARGAS, Osvaldo Martines. As lutas operárias e sindicais dos
metalúrgicos em São Bernardo: 1977-1979. São Bernardo do Campo: Associação
Beneficente e Cultural dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo e Diadema, 1983.
70
LULA DA SILVA, Luiz I. Entrevista. Lula: Retrato de Corpo Inteiro. Revista Escrita
Ensaio. Ano. IV, n.8, p. 12-54, 1981
39
1 O ABC DA DIOCESE DE SANTO ANDRÉ:
AGGIORNAMENTO E MODERNIZAÇÃO
Abecê abecedário
Ópera operário
Pé no pé no chão
(Chico Buarque)71
71
BUARQUE, Chico. Música: Linha de Montagem. In: BUARQUE, Chico. Pedaço de Mim.
São Paulo: Universal Music. CD. “Essa canção ia ser apresentada ao público por Chico
Buarque, pela primeira vez, a 20 de abril e depois a 27 de abril de 1980, no Show de Vila
Euclides - espetáculo musical cuja renda seria encaminhada ao Fundo de Greve dos
Metalúrgicos. No entanto, o show - que iria ter lugar em São Bernardo, no Estádio de Vila
Euclides, foi proibido, duas vezes, pela Polícia Federal e pelo DEOPS de São Paulo, apesar
de terem sido vendidos mais de 100.000 mil ingressos”. Cf. MENEZES, Adélia Bezerra.
Desenho Mágico: Poesia e Política em Chico Buarque. São Paulo: Ateliê Editorial, 2002. p.
131.
40
da economia brasileira, mostram ao país que o caminho do
desenvolvimento passava por aquele conglomerado de cidades, maior
parque industrial da América Latina.72
As clareiras abertas pelos índios na mata virgem da Serra do Mar,
usadas pelas expedições de europeus no início da colonização, foram
aperfeiçoadas à medida do progresso e, principalmente, ao passo da
produção do capital. Da região que serviu de acampamento aos primeiros
colonizadores, após enfrentarem a íngreme “parede” da serra atlântica,
séculos mais tarde despontou um circuito de sete cidades: Santo André,
São Bernardo do Campo, São Caetano do Sul, Diadema, Mauá, Ribeirão
Pires e Rio Grande da Serra.
Por quatro séculos estas terras, pisadas pelas primeiras missões
jesuíticas, estiveram sob a tutela de outros bispados católicos, ao que se
refere à administração de igrejas, movimentos e fiéis da religião. Apenas
no século XX, em 1954, foi autorizada a criação de um setor episcopal
próprio para esta região: nascia a Diocese de Santo André.
Nos idos de 1954, o jovem bispo Dom Jorge Marcos de Oliveira, com
apenas 38 anos de idade, deixou o Rio de Janeiro com a responsabilidade
de inaugurar e assumir uma nova prelazia no estado de São Paulo: a
Diocese de Santo André, desmembrada, então, da Arquidiocese de São
Paulo, instituída pelo Papa Pio XII em 22 de Julho de 1954.73 A posse do
bispo, marcada para dia 12 de Setembro de 1954, foi notícia em vários
diários do estado de São Paulo.
72
“Thompson compreende que a classe e a consciência de classe vão formando-se
juntas: é uma formação imanente. [...] O fato é revelado em primeiro lugar pelo
crescimento da consciência de classe: a consciência e uma identidade de interesses entre
todos esses diversos grupos de trabalhadores, contra os interesses de outras classes. E,
em segundo lugar, no crescimento das formas correspondentes de organização política e
industrial”. VENDRAMINI, Célia Regina. Experiência e Coletividade em E. P. Thompson.
In: MÜLLER, Ricardo Gaspar; DUARTE, Adriano Luiz (Org.). E. P. Thompson: Política e
Paixão. Chapecó: Argos, 2012. p. 127-147.
73
SOBRINHO, Felipe Cosme Damião. op. cit. p. 39.
41
O Jornal Folha da Manhã publicou em sua edição de 12 de setembro
de 1954: “Com a presença do Cardeal Piazza, será instalada hoje a
Diocese de Santo André”.74 Também o Jornal “O Estado de São Paulo”
divulgou nota sobre o evento no caderno “Interior”. Segue imagem do
recorte:
Figura 1. Nota sobre a inauguração da Diocese de
Santo André.
74
FOLHA DA MANHÃ. São Paulo, ano 30, n. 9.347, 12 set. 1954. 6 cadernos.
75
O ESTADO DE SÃO PAULO, São Paulo, ano 75, n. 24.341, 12 set. 1954. 108p.
76
Diário do Grande ABC, “Os 30 anos da Diocese sem festas”, 12/09/1984, p.2.
42
A preparação para a ereção de nova Igreja Particular na região
deveria ser fruto de uma série de medidas realizadas: a elevação
de uma paróquia à Catedral; a construção de um Palácio Episcopal,
como na época era conhecida a residência dos ordinários
diocesanos; a edificação ou, pelo menos, o projeto de um
Seminário Menor; e paróquias edificadas.77
77
SOBRINHO, Felipe Cosme Damião. op. cit. p. 39.
78
DIOCESE DE SANTO ANDRÉ. Livro Tombo da Diocese de Santo André apud SOBRINHO,
Felipe. op. cit. p. 40.
79
MARTINS, Heloisa Helena T. de Souza. Igreja e Movimento Operário no ABC: 1954-
1975. São Paulo: Editora Hucitec, 1994. p.61.
80
Informação disponível em: http://governo-sp.jusbrasil.com.br/legislacao/224600/lei-
5285-59. Acesso em: Março/2015.
81
Para mais informações dos documentos sobre a formação da região, consultar
FERREIRA. Maria de Lourdes. Os arquivos da Administração Pública nos Municípios do
Grande ABC Paulista. 197 f. Dissertação (Mestrado em História Social) Universidade de
São Paulo, São Paulo, 2005.
43
FIGURA 2. Ilustração do Estado de São Paulo e a
região do ABC Paulista em colorido.
82
Este fator motivou a titulação da Rodovia concluída na década de 1950, cujo trajeto
interliga o que conhecemos por Baixada Santista a São Paulo, cortando a cidade de São
Bernardo do Campo no ABC.
44
Caio Prado, ao pesquisar as origens da cidade de São Paulo, mapeou
algumas características do planalto deste território, que favoreceram a
fixação do centro colonial português neste local:
83
PRADO JR, Caio. A cidade de São Paulo: geografia e história. São Paulo: Brasiliense,
1983. p. 13.
84
Cf. PRADO JR., op. cit., p. 15.
85
Cf. FERREIRA, op. cit., p. 15.
45
atividade agrícola e criação de animais. A área voltou a ser mais
frequentada e aos poucos um novo povoado passou ser constituído, mas
apenas em 1812, o bairro que passara a se chamar São Bernardo recebeu
autonomia e foi desmembrado da Freguesia da Sé. Dois anos depois se
iniciou a construção da Igreja Matriz que foi dedicada a Nossa Senhora da
Boa Viagem86.
No século XIX, a estrada da Serra do Mar era a principal
interligação Porto de Santos – Capital, mas passou a ser considerada
como empecilho para os fazendeiros que precisavam fazer o escoamento
do seu café com mais rapidez e menos custos. Então, no início dos anos
de 1860, começou a ser construída a primeira linha férrea em solo
paulista, a São Paulo Railway Company. A implantação ficara a cargo da
Companhia Inglesa de mesmo nome, que obteve por decreto imperial a
concessão de administração e exploração da ferrovia por 90 anos.87
A chegada dos trilhos na região contribuiu para sua transformação;
novas estradas foram abertas, povoados foram surgindo e a mão de obra
para a construção da ferrovia foi, em sua maioria, constituída por
trabalhadores imigrantes que passaram a morar nestes locais, formando
posteriormente núcleos coloniais, sendo que, próximos a estes, foram
criadas as estações de: Pilar (Mauá), São Caetano, Ribeirão Pires, Campo
Grande (Paranapiacaba) e a Estação São Bernardo88, responsável por
alavancar o desenvolvimento industrial em seu entorno.
Em 1889, a região conhecida como Freguesia de São Bernardo,
recebe autonomia de município e em 1938 passa a se chamar Santo
86
A Igreja começou a ser construída em 1814 e foi inaugurada em 1825. Adiante
veremos a importância desta igreja para os trabalhadores nos períodos das grandes
greves do ABC. Ver MEDICI, Ademir. São Bernardo do Campo 200 Anos Depois: A
História da Cidade Contada pelos seus Protagonistas. São Bernardo do Campo: PMSBC,
2012. p. 11.
87
Cf. MARTINS. Ana Luiza. História do Café. São Paulo: Contexto, 2008. p. 161
88
A estação São Bernardo inaugurada em 1867 é a atual Estação Santo André, cujo
nome foi alterado em 1910.
46
André. Nos anos de 1940 entra em curso uma nova divisão territorial e
em 1944 é instaurada a cidade de São Bernardo do Campo.89
A cidade de São Bernardo do Campo registra uma particularidade
que vale à pena ressaltarmos neste trabalho: trata-se da presença de
uma autoestrada, referência no Estado de São Paulo, que corta o
município e é justamente a sequência do trajeto realizado desde o século
XVI como interligação entre o Porto de Santos e o Interior, a Rodovia
Anchieta. A autopista, hoje sob concessão da Empresa Ecovias, foi
inaugurada na década de 1940 e, tal como os trilhos, também viabilizou
significativo aumento fabril no Grande ABC, mais especificamente da
indústria automobilística.
As obras da rodovia contaram com a mão de obra de trabalhadores
migrantes, sobretudo, do norte, nordeste e centro-oeste do país. A vinda
destes trabalhadores contribuiu para uma transformação no quadro
demográfico, cultural e econômico da região, pois com o fim das obras,
boa parte destes operários permaneceu nos acampamentos construídos
pelo Departamento de Estradas e Rodagem de São Paulo (DER), e
ingressaram posteriormente no trabalho dentro destas fábricas. A fim de
manter os operários mais próximos da Rodovia Anchieta em construção,
na década de 1940 o DER construiu cerca de 250 abrigos para os seus
trabalhadores. No entanto, após o término da obra, o acampamento
permaneceu e, posteriormente, se transformou numa das maiores favelas
de São Bernardo do Campo, muito próxima ao centro da cidade.90
89
Decreto Lei n.º 14.334 de 30 de novembro de 1944.
90
. Ver MEDICI, Ademir. São Bernardo do Campo 200 anos depois, p. 109. Embora muito
próxima à região central de São Bernardo, trata-se de uma comunidade pobre, fato
incomum em grandes cidades em que, cada vez mais, populações carentes são
empurradas para locais afastados do centro. O bairro ainda mantém o nome DER e, de
alguns anos para cá, está se transformando significativamente e participando da
paisagem urbana do município. De uma favela com todas as suas deficiências e
precariedades, o bairro hoje já conta com casas de alvenaria, linha de ônibus, ruas
asfaltadas, comércios, e as demais características de qualquer outra vila, porém ainda
não conteve o crescimento desordenado, mesmo tendo iniciado um processo de
realojamento no próprio local, através do CDHU. A Igreja Católica do bairro, dedicada a
Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, foi inaugurada sob as bênçãos do então bispo Dom
Claudio Hummes, em 1978 e, recentemente, recebeu autorização para atuar como
47
Quando D. Jorge Marcos chegou à diocese já havia uma
preocupação com o crescimento populacional no ABC. Com o
desenvolvimento industrial que se deu na região, a partir da década de
1950, novos bairros se constituíram nestas cidades e muitos de forma
desordenada. Vários destes bairros foram formados por famílias de
operários que trabalhavam nas fábricas da região e tinham em comum as
mesmas condições de vida: eram pobres, operários e com carências
sociais. Desta identidade comum “formaram-se valores, costumes e
práticas em defesa de um mesmo interesse”91. Maria Blassioli Moraes
entende que este foi um determinante para as lutas operárias que se
seguiriam nos anos de 1970. Pouco a pouco esta população acostumou-se
com a mobilização, em decorrência das necessidades sociais do ambiente
que viviam:
Os bairros do ABC, desde sua formação, apresentaram muitos
problemas, como a falta de condições básicas: sistema de esgotos,
água encanada, pavimentação, transporte público, entre outros.
Como resultado desta situação, a população mobilizou-se para
exigir reformas urbanas e as consequências foram maiores do que
se poderia pensar. Da identificação e ligação do homem com seu
bairro, surgiram várias expressões de luta e práticas sociais, desde
festas religiosas, folclóricas e regionais, até a organização de
trabalhos conjuntos à instituições formais como partidos,
sindicatos e Igreja Católica.92
93
MORAES, op. cit.
94
QUAGLIO, Sebastião Benito. Frade Franciscano Conventual. Chegou à Diocese de
Santo André em 1966. Assumiu a paróquia Santíssima Virgem em São Bernardo do
Campo e hoje é Diretor do movimento Milícia da Imaculada e da Rádio Imaculada
Conceição, situada também na cidade. Entrevista concedida em Janeiro/2015.
49
O cenário descrito por Frei Quaglio era o mesmo das outras
inúmeras favelas que cresciam nas cidades do ABC e, comumente,
acompanhadas por algum padre ou um grupo religioso, ao qual o povo
procurava se apoiar. Maria Blassioli descreve que o próprio bispo de Santo
André, Dom Jorge Marcos, participava de reuniões, produzia boletins
sobre saúde e condições de higiene visando conscientizar a população
moradora de favelas. Abaixo, um trecho de um destes boletins, em que
orienta sobre a questão do saneamento básico:
95
MORAES, op. cit.
96
O Plano de Metas foi elaborado por um Conselho de Desenvolvimento criado no início
do Governo Kubitscheck, em 1956. Com intuito geral de “elevar o quanto antes o padrão
de vida do povo, ao máximo compatível com as condições de equilíbrio econômico e
estabilidade social”; o plano também visava acelerar a industrialização no país, contando
com investimentos do setor público para viabilizar infraestrutura e oferecer estímulo às
atividades e investimentos privados. Para tal, buscou-se priorizar investimentos nos
setores de energia (42,4%), transporte (28,9%), alimentação (3,6%), indústrias de base
(22,3%) e educação (2,8%). Ver REZENDE, Cyro. Economia Brasileira Contemporânea.
São Paulo: Editora Contexto, 1999. p. 86-87.
50
importante parque industrial para o Brasil e para a América Latina, que
teve seu auge entre os anos 50 e 70.
Para uma ideia da dimensão da mudança provocada na região com o
fomento oferecido pelo governo Kubitscheck, apresentamos o relato do
Padre Emílio Rubens Chasseraux, então pároco da Igreja Nossa Senhora
das Dores em Santo André, em entrevista à Maria Gorete Frazão e Prof.
Ney de Souza, publicada no artigo Catolicismo no ABC Paulista:
97
Entrevista concedida em Maio de 2002 à historiadora Maria Gorete Frazão. Ver
FRAZÃO, Maria Gorete; DE SOUZA, Ney. Catolicismo no ABC Paulista: Da Doutrina Social
ao Movimento Popular. Revista de Teologia (RevEleTeo). ISSN 2177-952x, n.2, 2007.
Disponível em: http://revistas.pucsp.br/index.php/reveleteo/article/view/6756/4887.
Acesso em: Abril/2015.
51
nacional e dando margem também para as manifestações
populares entrarem em cena contra este sistema.98
98
SCOLESO, Fabiana. As formas políticas e organizacionais do “Novo Sindicalismo”: As
paralisações metalúrgicas de 1978, 1979 e 1980 no ABC Paulista. 217 f. Dissertação
(Mestrado em História) Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2003.
99
Ibid. p. 36.
100
MAINWARING, op. cit., p. 62.
52
Quando o Papa João XXIII101 (*1881†1963) idealizou promover um
concílio, em 1959, estava há menos de três meses no pontificado. A
reação ao anúncio não foi bem uma surpresa entre os bispos e cardeais,
mas, sobretudo, desconfiança. Isso por que, ao assumir a Cátedra de
Pedro, se conjecturava que aquele seria um ‘papa de transição’, “quase
desconhecido, bastante idoso”102, não causaria muito impacto no curso de
sucessões papais. Para espanto de todos, o italiano camponês de Sotto Il
Monte, província de Bergamo, que não se encontrava entre as listas de
mais cotados ao papado, surpreendeu e marcou a história.
No dia 25 de Janeiro, Festa de São Paulo e encerramento da
Semana de Orações pela Unidade dos Cristãos o papa havia convidado
alguns cardeais para acompanha-lo à celebração e, posteriormente, para
um consistório na Basílica de São Paulo Extramuros. Já estava
programado fazer o anúncio do Concílio aos cardeais e, em seguida,
divulgá-lo através da Rádio Vaticano. Diante da ocasião de festividades
relevantes para a Igreja, a cerimônia durou além do esperado e o que
aconteceu foi pitoresco, pois, quando João XXIII fez o comunicado oficial
aos cardeais, a imprensa e o povo já estavam sabendo de sua decisão em
promover um concílio103.
Esta curiosidade caracterizava um dos caminhos que Ângelo
Roncalli104 estava propondo para a igreja. Maior abertura, mais diálogo,
mais participação também nos instrumentos de comunicação de massa.
Tanto que um dos documentos resultantes do Vaticano II, Inter Mirifica,
propõe que a instituição esteja mais disposta a interagir com os meios, a
101
O Papa João XXIII iniciou seu pontificado em Outubro de 1958 e permaneceu à frente
da Igreja Católica até sua morte em Junho de 1963. Foi sucedido por outro italiano,
Giovanni Battista Montini, que adotou o nome pontifício de Paulo VI e focou suas
atenções na continuidade aos trabalhos do Vaticano II, encerrado em 1965.
102
VALENTINI, Demétrio. Revisitar o Concílio Vaticano II. São Paulo: Paulinas, 2011.
Coleção Revisitar o Concílio. p.13.
103
Esta informação é confirmada por teólogos estudantes do Concílio. Também está
descrita em artigo publicado no site da Revista National Catholic Reporter, de autoria de
Desmond Fisher, ex- editor do Jornal britânico The Catholic Herald.
http://ncronline.org/news/vatican/curial-horror-greeted-john-xxiiis-announcement-
ecumenical-council Consulta em: 20/01/2015
104
Nome de nascimento de João XXIII.
53
fim promover maior alcance de sua mensagem e melhor apreensão dos
novos formatos tecnológicos.105
Aggiornamento106. A palavra italiana que se traduz para a língua
portuguesa como “atualização”, resumiu bem a convocação do Vaticano II
e foi o próprio João XXIII quem a popularizou ao apresentar a proposta do
concílio. Outro termo que definiria sua realização é “diálogo”. Com
renovação e um novo jeito de se comunicar com o mundo moderno, a
igreja pretendia estar presente nesta nova sociedade repleta de
contradições das quais ela também precisava se modernizar.
Eis as palavras de João XXIII ao comunicar os cardeais de sua
proposta:
Veneráveis irmãos, amados filhos! Anunciamos a vocês, tremendo
um pouco de emoção, mas com humilde determinação neste
propósito, o nome e a proposta desta dupla celebração: de um
Sínodo Diocesano de Roma, e de um Concílio Ecumênico para a
Igreja Universal.107
105
PUNTEL, Joana T. Inter Mirifica: Texto e Comentário. São Paulo: Paulinas 2012
106
O Dicionário Michaelis (italiano-português) traz a seguinte tradução para a palavra
‘aggiornamento’: adiamento, demora, atualização. Esta última, ‘atualização’, melhor
define a proposta do Papa João XXIII ao convocar o Concílio Vaticano II.
107
Trecho do Discurso proferido por João XXIII a 25 de Janeiro de 1959 “Venerabili
Fratelli e Diletti Figli Nostri! Pronunciamo innanzi a voi, certo tremando un poco di
commozione, ma insieme con umile risolutezza di proposito, il nome e la proposta della
duplice celebrazione: di un Sinodo Diocesano per l'Urbe, e di un Concilio Ecumenico per
la Chiesa universale”. Disponível em: http://w2.vatican.va/content/john-
xxiii/it/speeches/1959/documents/hf_j-xxiii_spe_19590125_annuncio.html. Acesso em:
30/03/2015.
54
colocou em prática o Concílio de Trento108, portanto, compreendia que era
preciso um período para organizar o plano de ação, sistematizar as ideias
e propostas, discutir as atividades. E foram quase quatro anos de trabalho
de preparação.
Aggiornare não era um verbo novo no dicionário italiano, mas
pareceu intrigar o público de cardeais, principalmente por conta da
intimidade com que, o então bispo de Roma, tratou o termo para expor o
projeto que não mais abandonava seu pensamento.
João XXIII foi bem claro ao propor o Concílio. Este não seria um
Concílio para combater erros. Não se tratava de condenar heresias.
Seria um concílio para pôr em dia a Igreja. Era a “renovação”, o
aggiornamento, palavra italiana que a partir daí passou para o
dicionário universal, tanto foi repetida pelo Papa. Já era significativo
o fato de ter sido anunciado na semana de orações pela união dos
cristãos. Era intenção do Concílio promover a união e compreensão.
Este era o espírito. Faltava elencar os assuntos concretos a abordar.
Mas, o espírito existia. Faltava tomar corpo.109
108
VALENTINI, op. cit., p. 17.
109
VALENTINI, op. cit., p. 16.
55
serem trazidos para o Concílio110. Encerrada a fase de consultas ao
episcopado, foi realizada uma sistematização de todo material recolhido e
formadas comissões de preparação do Concílio, além da criação de um
novo organismo: o Secretariado para a União dos Cristãos.
Tratava-se de um Concílio Ecumênico. É verdade que concílios
ecumênicos não eram algo novo para a igreja. Até aquele momento duas
dezenas destes já haviam acontecido, e esta questão era, de certo,
paradoxal para as Igrejas orientais. Isso fica claro nesta explicação do
Padre Beozzo:
110
Conforme pesquisa realizada por BEOZZO, das 311 cartas enviadas pelo Cardeal
Tardini aos bispos em exercício no Brasil, foram encontradas referência de retorno com
sugestões de 133 consultados, sendo que 22 destes prelados responderam em conjunto,
formando oficialmente um total de 111 respostas.
111
BEOZZO, J. Oscar. Padres Conciliares Brasileiros no Vaticano II: 1959-1965. 463 f.
Tese (Doutorado em História Social) Universidade de São Paulo, São Paulo, 2001.
112
Id.
56
Em tempos de crise, a Igreja de João XXIII, insistente em se
manter o mais distante possível dos processos políticos que ferviam o
mundo, quando pouco se esperava estava imersa neste contexto. Ao
persuadir a hierarquia romana e ortodoxa para uma participação
ecumênica efetiva no Concílio, o papa abriu precedente para um diálogo
de caráter diplomático com as nações113, e este entendimento entre
estados se tornara tanto mais delicado, considerando-se as tensões
políticas e econômicas daquele momento. Com o desenrolar da Guerra
Fria e uma consequente divisão no mundo, nem mesmo a igreja ficara
fora deste processo e de suas sequelas.
Sabemos que o chamado “Comunismo Soviético” 114
perseguira fiéis
e líderes religiosos, afinal, a crença, numa análise sintética, era vista
como instrumento de alienação e afastamento do proletariado de seus
reais objetivos e, naquele momento, o fator da religião estaria associado
às questões do mundo capitalista.
István Mészáros, ao refletir sobre a experiência do socialismo
Soviético, conclui que este não teria alcançado o objetivo proposto em
Marx. Na ocasião em que se dera a Revolução Russa não havia condições
históricas para uma transição. O conteúdo dos escritos de Marx foi
assimilado, mas interpretado sem uma contextualização histórica. Não foi
possível um rompimento definitivo com o mundo capitalista em ascenção,
de forma que o comunismo não foi apreendido em escala global.
A chamada ‘teoria da alienação’, fomentada nos estudos da
esquerda marxista, foi potencialmente apreendida pelos governos
socialistas e compreendida em outro contexto, conferindo-lhe um valor
113
Id. Embora a Santa Sé seja um organismo de natureza religiosa e ideológica, com a
especificidade de ser porta voz da Igreja Católica, é reconhecida também como
instituição de direito público internacional e detém a condição de Estado, podendo
manifestar-se como órgão político diante de diferentes situações, “é membro de
praticamente todas as grandes organizações internacionais de caráter governamental ou
não governamental e goza de estatuto, igual ao da Suíça, de observador permanente nas
Nações Unidas”.
114
Ver MÉSZÁROS, István. A Crise Estrutural do Capital. São Paulo: Boitempo, 2011. p.
80.
57
extremado, resultando em atitudes de violência e autoritarismo contra
seguidores das religiões.
Marx, em seu tempo, ao constituir um pensamento sobre o
fenômeno da religião, a compreendeu como um produto do ser social bem
como de suas relações e que, mesmo processando um grau de
distanciamento da esfera materialista, do mundo real, onde se dá a
construção e contradições humanas, é também o “protesto” do ser, diante
de suas próprias misérias. Mas ainda assim era preciso superar o apego
ao plano religioso-espiritual para que o homem, no caso o proletariado,
com autoconsciência de suas capacidades, se tornasse senhor de sua
história.115
Atemorizada pela perseguição aos seus, a Igreja Católica enrijeceu-
se contra os sistemas socialistas, levantando um muro ante estas ideias
que não poderia, sob qualquer condição, ser transposto. Além disso, outro
elemento relevante neste discurso enfático contra o comunismo era a
questão da propriedade. Mesmo nos documentos pastorais com as
discussões mais apuradas da vida em sociedade, da política e direitos do
homem, a igreja não abandonara a concepção do direito da propriedade
privada que, segundo a instituição, estaria garantido também pelos
documentos por ela considerados como sagrados116, outro ponto de
dissenção neste enredo.
115
. Ver MARX, K. Crítica da Filosofia do Direito de Hegel, 1843. São Paulo: Boitempo,
2010. p. 145.
116
Mesmo a Encíclica Rerum novarum, referência para as questões relativas às condições
do trabalhador e sobre a sociedade, contesta a argumentação socialista da propriedade
privada: “Os Socialistas, para curar este mal, instigam nos pobres o ódio invejoso contra
os que possuem, e pretendem que toda a propriedade de bens particulares deve ser
suprimida, que os bens dum indivíduo qualquer devem ser comuns a todos, e que a sua
administração deve voltar para - os Municípios ou para o Estado. Mediante esta
transladação das propriedades e esta igual repartição das riquezas e das comodidades
que elas proporcionam entre os cidadãos, lisonjeiam-se de aplicar um remédio eficaz aos
males presentes. Mas semelhante teoria, longe de ser capaz de pôr termo ao conflito,
prejudicaria o operário se fosse posta em prática. Pelo contrário, é sumamente injusta,
por violar os direitos legítimos dos proprietários, viciar as funções do Estado e tender
para a subversão completa do edifício social” (grifos do autor). Cf. LEÃO XIII, Papa.
Rerum novarum. Carta Encíclica, 1891. Disponível em: http://w2.vatican.va/content/leo-
58
Diante da ideia de João XXIII com relação à participação das
chamadas Igrejas irmãs117, a Cúria Romana manteve um nível de
resistência, mas cedeu nutrida pela esperança de que a união entre
cristãos de diferentes denominações pudesse ser um avanço na luta
contra o comunismo118.
E, de fato, o correr da história mostra que o Vaticano II, ainda que
de forma indireta, viabilizou o início de um diálogo sobre a temática do
socialismo. Não mais apenas traçando julgamentos e condenações, mas
com discreto convite para que dentro e fora dos muros do catolicismo
houvesse disposição para rever determinadas concepções e usar de
tolerância, ainda que fosse por uma questão diplomática. O Papa do
Concílio, no decorrer de seu pontificado, buscou seguir a linha da
conciliação e deu mostras de certa transformação neste sentido na igreja,
conforme nos relata Ney de Souza:
119
SOUZA, Ney. Contexto e Desenvolvimento Histórico do Concílio Vaticano II. In:
GONÇALVES, P. S. L.; BOMBONATTO, V. I. (org.). Concílio Vaticano II: análise e
prospectivas. São Paulo: Paulinas, 2004.
120
BEOZZO, J. Oscar. Padres Conciliares Brasileiros no Vaticano II: 1959-1965. 463 f.
Tese (Doutorado em História Social) Universidade de São Paulo, São Paulo, 2001.
60
O grupo contava com D. Helder Câmara como um forte articulador.
Ele, durante o Concílio pouco se manifestou nas aulas, mas fez um bom
trabalho nos espaços informais de circulação do episcopado, como na
Casa Domus Mariae, onde ficaram hospedados os bispos brasileiros.121
A postura progressista do bispo de Santo André estava alinhada à
de Dom Hélder Câmara, que fora secretário da CNBB entre os anos de
1952 e 1964. Quando a Igreja do Brasil foi convocada para o Vaticano II,
a CNBB, sob seu secretariado, havia preparado as linhas de uma reflexão
que seria apresentada em 1963 como o “Plano de Emergência para a
Igreja do Brasil”. O documento surgiu em resposta a um pedido de João
XXIII para os episcopados da América Latina de elaboração de planos de
pastoral para suas igrejas locais. D. Câmara assim apresenta a produção:
“O Plano se justifica por si. Em sua parte pastoral inclui: Reforma
Paroquial; Reforma do Ministério Sacerdotal; Reforma dos Educandários;
Pastoral de Conjunto. Em sua parte econômico-social: Formação de
líderes; Frentes Agrárias e Sindicalização Rural; Educação de Base;
Aliança Eleitoral pela Família”.122
Foi da articulação de Dom Helder que nasceu um pequeno
organismo conhecido como Grupo da Pobreza. “O Grupo da Pobreza
denunciava a divisão entre a Igreja e os pobres, em particular os
operários, e pedia ao Concílio uma solução”.123 Com a ajuda deste grupo a
questão da situação dos países subdesenvolvidos entrou na agenda do
Vaticano II. Também deste grupo surge a iniciativa do Pacto das
Catacumbas, sugerindo uma vida simples, distante dos privilégios e do
poder, colocando em primeiro plano a opção preferencial pelos pobres,
iniciativa aderida também por Dom Jorge Marcos de Oliveira.
A relação entre igreja e povo, igreja e pobres está desde as
primeiras comunidades cristãs. Este vínculo descrito por todos os
121
RAMPON, Ivanir Antonio. O caminho espiritual de Dom Helder Câmara. São Paulo:
Paulinas, 2013. p.194.
122
CNBB. Plano de Emergência para a Igreja do Brasil. Cadernos da CNBB, n.1, 2ª
Edição. São Paulo: Paulinas, 1963. p.10.
123
Ibid., p. 204.
61
evangelistas bíblicos, em referência às atitudes de Jesus, foi incorporado à
doutrina da instituição católica como ensinamento e como prática, ou seja,
que os fiéis pudessem, mirando o exemplo do Cristo, dispor-se ao ato de
ajudar os mais pobres. No entanto, este exercício acontecia muito mais
num sentido assistencialista, na intenção de cumprir um preceito cristão e
não ser julgado socialmente e moralmente, do que propriamente
motivado por compaixão e desejo de trazer estes indivíduos para integrá-
los à comunidade. Existia uma barreira que não seria atravessada por
estes.
Nas palavras do teólogo Leonardo Boff: “a Igreja aparece como
uma Igreja para os pobres e não tanto com os pobres e dos pobres”. 124 A
partir do Concílio Vaticano II, especialmente na América Latina, cresce a
tendência em se refletir uma igreja com “opção preferencial pelos pobres”.
De modo que ‘pobre’ recebe uma nova conotação, incluindo, não mais
apenas aqueles desprovidos materialmente de recursos, mas também
quem está oprimido, quem sofre perseguição, quem se põe à frente na
defesa dos direitos, quem está marginalizado, excluído, enfim, uma
reinterpretação não apenas religiosa ou etimológica, mas histórica 125. Uma
nova compreensão que pretendia estabelecer finalmente a práxis de uma
igreja para, com e dos pobres.
Um dos objetivos do Concílio Vaticano II era oferecer uma
atualização para a Igreja, propondo participar das esferas socioculturais
nas quais o homem atua cotidianamente. No entanto, questionamos sobre
o quanto esteve a Igreja disposta para abrir-se às mudanças, sobre quais
eram estas mudanças e quem as promoveu. Além disso, nos interessamos
em saber sobre como estas transformações foram apresentadas à sua
população de fiéis, às suas comunidades religiosas e ao clero.
124
BOFF, Leonardo. Igreja: Carisma e Poder: Ensaios de uma Eclesiologia Militante.
Petrópolis: Editora Vozes, 1982. p. 19. A publicação deste trabalho custou ao teólogo um
ano de ‘silêncio obsequioso’, punição imposta pela Congregação da Doutrina da Fé, à
época presidida pelo Cardeal Joseph Ratzinger, depois Papa Bento XI. A obra se tornou
referência para a Teologia da Libertação.
125
GUTIÉRREZ, Gustavo. Teologia da Libertação: Perspectivas. Petrópolis: Vozes, 1986.
p. 362.
62
Pensando nisso, nos propusemos a buscar informações sobre a
atuação da Diocese de Santo André, no contexto da Ditadura Militar,
refletindo as resoluções conciliares. Passemos, então, a esta discussão.
126
OLIVEIRA, Jorge M. Dom Jorge, 25 anos de Grande ABC (Primeira Parte). Entrevista
concedida a Ademir Médici. Diário do Grande ABC.
127
Idem.
63
como “uma figura meio estranha” 128
entre os membros da CNBB, mas
parecia não temer muito as críticas nem se sentia intimidado, quando se
deparava com alguma situação da qual sentia que o povo estava sendo
prejudicado, alguma maneira encontrava para expor sua indignação.
Em determinada ocasião, o então Governador da Guanabara,
Carlos Lacerda, assim teria contestado, quando Dom Jorge Marcos se
levantou diante da discussão sobre reforma agrária. Disse o político: “os
bispos devem rezar e não pensar em reforma agrária”.129 O Bispo, porém,
não deixou sem resposta. Através das páginas do Jornal do Brasil,
replicou:
128
Ibid. MÉDICI, 1979.
129
MORAES, Dênis. A esquerda e o golpe de 64. São Paulo: Expressão Popular, 2011. p.
44.
130
Id.
131
“A Frente Nacional do Trabalho foi fundada em 29 de Maio de 1960 em São Paulo e
teve sede instalada em Santo André. Congregou advogados, padres, leigos católicos,
estudantes e trabalhadores que passaram a apoiar a luta operária. A ideia de sua
formação cristalizou-se depois de 1959, quando se deflagrou a greve da Indústria de
Cimento Portland de Perus. O advogado Mário de Carvalho de Jesus tornou-se o líder da
organização e passou a intermediar os acordos entre patrões e empregados em diversos
movimentos grevistas. A FNT com forte influência da Igreja Católica e da Doutrina Social
Católica deveria caminhar conforme os princípios da Igreja”. Cf. Maria Blassioli. A Ação
Católica e a Luta Operária: a experiência dos jovens católicos em Santo André (1954-
1964). 207 f. Dissertação (Mestrado em História Social) Universidade de São Paulo, São
Paulo, 2003. p.159.
64
Meu caro Carlos. Perdoe-me, mas tomei a liberdade de fazer
chegar às suas mãos alguns dos pontos que o trabalhador
brasileiro, de qualquer categoria, mas sobretudo o operário, há
tanto tempo espera ouvir.
Perdoe-me, ainda, mas o operariado já tem medo de promessas.
Apresente, não como promessas, mas como ideal seu –
identificado com o dele – pelo qual você trabalhará em qualquer
campo em que se encontrar.
Fraternalmente, D. Jorge.132
132
AVISTA-SE com Lacerda bispo de Santo André. O Estado de São Paulo, São Paulo, 22
fev. 1964. Primeira Página. Anexamos a este trabalho uma cópia desta matéria.
133
MORAES, Maria Blassioli. A Ação Católica e a Luta Operária: a experiência dos jovens
católicos em Santo André (1954-1964). 207 f. Dissertação (Mestrado em História Social)
Universidade de São Paulo, São Paulo, 2003. p.16.
Sobre a mudança da batina para o traje clerical simples e a reação do povo: “Os padres e
seminaristas apresentavam-se como gente comum. A maioria substituía a batina por
roupas laicas ou pelo menos chamativo traje clerical permitido pelas normas pós-
Vaticano II. Esse era um modo simples, mas eloquente de aproximar-se do povo. Poucos
gestos simbolizaram tão poderosamente a transformação do sacerdócio. Hoje em dia, a
visão de um homem na rua vestindo o hábito clerical seria tão desconcertante quanto,
nos anos 1960, a de um padre que não o usasse”. SERBIN, Kenneth P. Padres, Celibato e
Conflito Social: uma história da Igreja Católica no Brasil. São Paulo: Companhia das
Letras, 2008 p. 182.
65
construção das resoluções conciliares para o contingente latino-americano
acontece com o encontro da CELAM em Medellín, Colômbia, entre agosto e
setembro de 1968.
134
DUSSEL, Enrique D. Caminhos de Libertação Latino-Americana. V. 4: Reflexões para
uma teologia da Libertação. São Paulo: Edições Paulinas, 1984. p. 47.
135
Idem.
136
MARTINS, Heloisa. op. cit., p. 62.
66
Apesar de eu pregar única e exclusivamente a doutrina da Igreja,
das encíclicas, nunca eu preguei coisa alguma que não estivesse
perfeitamente clara nas encíclicas chamadas sociais, nos livros dos
melhores autores que interpretavam as doutrinas sociais, e depois
realmente no próprio Novo Testamento e Antigo Testamento. 137
Esse tom profético passou a ser, daí para a frente, a nota distintiva
da Igreja como uma das poucas instituições nacionais capazes de
enfrentar o Estado. Ela aparece como a defensora por excelência
dos direitos humanos, como a ‘voz dos que não têm voz’,
denunciando cada vez mais as violações da justiça, o desrespeito à
segurança, à propriedade e à vida dos camponeses, o não-
pagamento do salário justo aos operários, a não distribuição social
do produto do desenvolvimento econômico etc. 140
139
OLIVEIRA, Jorge M. Dom Jorge, 25 anos de Grande ABC (Primeira Parte). Entrevista
concedida a Ademir Médici. Diário do Grande ABC, 21 out. 1979. Caderno C.
140
ROMANO, Roberto. Brasil: Igreja contra Estado. São Paulo: Editora Kairós, 1979. p.
28.
68
episcopal que assumisse o setor. E, caso o bispo adotasse postura mais
rígida e conservadora, em algum momento, teria ao menos que refletir
sobre um modelo mais próximo da população e de suas realidades ou,
então, certamente teria um rebanho menor e muito menos engajado nas
propostas diocesanas. Além disso, mesmo que a Igreja, como instituição
religiosa, orientasse seu clero a recuar diante de questões políticas, o
momento exigia um posicionamento dos religiosos que lidavam
diretamente com o povo.
Sobre o envolvimento político da Igreja, a Gaudium et Spes, um
dos documentos frutos do Concílio Vaticano II, orienta:
141
LOPES, Geraldo. Gaudium et Spes: Texto e comentário. São Paulo: Paulinas, 2011. p.
181.
142
DINES, Alberto, FERNANES JR., Florestan, SALOMÃO, Nelma (organizadores).
Histórias do Poder: 100 anos de política no Brasil. Vol. 1. Militares, Igreja e Sociedade
Civil. São Paulo: Editora 34, 2000. P. 60.
69
Entre 1950 e 1960, a esquerda conseguiu expandir-se, sobretudo
com o PCB – Partido Comunista Brasileiro. Mesmo estando na ilegalidade,
os integrantes do PCB tinham acesso aos sindicatos e outras associações
da classe operária. Isso se deve também ao curto período em que pode
atuar legalmente na década de 1940 (entre 1945 e 1947) e, no ABC,
angariou simpatias para formar uma base, que se desenvolveu no mesmo
ritmo em que aumentou a classe trabalhadora.
Com tradição operária e sindical, sob influências do anarco-
sindicalismo143, esta região viu surgir uma igreja com personalidade
semelhante. Não assumindo os posicionamentos destes movimentos, mas
se mostrando combativa no que se refere às questões da classe
trabalhadora, de modo que, os movimentos cristão-católicos de orientação
social, que começam a ser formado neste espaço, assimilaram muito da
vanguarda das organizações já existentes.
A Encíclica Rerum Novarum, de Leão XIII, abriu um forte
precedente para que a instituição católica discutisse mais abertamente as
demandas da sociedade. Diante do avanço do socialismo, em fins do
século XIX, da Revolução Industrial e da premente situação do
proletariado, o Papa propunha que a Igreja ouvisse e acolhesse os apelos
143
Sobre a influência anarco-sindical na região do ABC Paulista, há informações de que o
trabalhador europeu, principalmente a comunidade italiana, desde o início do século 20,
apresentava resistência aos abusos do patronato, sofrendo repressão policial. Em
fevereiro de 1902, operários da fábrica de tecido Silva Seabra e Cia, do Bairro
Ipiranguinha, em Santo André, entraram em greve por melhores condições. A polícia foi
acionada para conter o movimento e, em 1906, novamente os trabalhadores se
organizaram por conta da diminuição do preço da mão-de-obra e exigência de que cada
operário produzisse diariamente 40 metros de tecido, sob pena de expulsão da fábrica. A
Federação Operária de São Paulo se mobilizou com a finalidade de orientar e oferecer
apoio aos operários. A polícia interveio, prendendo operários e as lideranças sindicais,
além de censurar outras manifestações de solidariedade. Em 1921, Alexandre Zanella,
italiano, foi deportado para a Itália porque liderava na região movimentos operários e
sindicais de trabalhadores das pedreiras. “Eram todos italianos os escarpelinos. A
influência do anarquismo era grande. Daí os choques. Comenta-se: as prisões eram
comuns; idem as fugas dos trabalhadores provocadas pelas tropas policiais, chamadas às
pedreiras para reprimir. Os detidos eram obrigados a caminhar desde as frentes de
trabalho até a capital, ao longo dos trilhos da São Paulo Railway. Os escarpelinos
fundaram o seu sindicato, em Ribeirão Pires”. Cf. MEDICE, Ademir. 1º de Maio e os
principais momentos da luta sindical em São Bernardo: 1902 – 1990. São Bernardo do
Campo: Prefeitura Municipal de São Bernardo do Campo, 1990.
70
da população operária. Foi também início de um processo de maior
autonomia ao leigo.
144
Cf. MAINWARING, Scott. Igreja Católica e Política no Brasil: 1916-1985. op. cit. p. 83.
145
Cf. Id.
146
Cf. Id.
71
integrantes teriam incorporado outros movimentos de convicções
alinhadas.147
A JOC e a ACO148, ao contrário, se fortaleceram na região. A JOC
deu início às suas atividades em fins da década de 40, antes mesmo da
criação da Diocese de Santo André, estando submetida à Federação do
Estado até 1955. Conforme Blassioli, tratava-se de movimento bastante
organizado. O processo de adesão de um novo militante, por exemplo,
passava pela observação de outros membros, para saber o bairro em que
morava, a fábrica onde trabalhava, o grau de interesse e compromisso
com os ideais e com espiritualidade, além da aprovação dos padres
assistentes, só após este protocolo o novo membro era oficialmente
aceito. A JOC tinha reuniões rotineiras, hinos, e os militantes deveriam
seguir uma disciplina de prática de vida cristã. Após a chegada de Dom
Jorge à diocese e, posteriormente com o apoio de um padre local,
Monsenhor José Benedito Antunes, a JOC se tornou um instrumento ainda
mais forte nas lutas da classe operária.149
Após a década de 1960 outras frentes foram surgindo como as APs,
as CEBs e o MEB – Movimento de Educação de Base. Mainwaring aposta
neste momento, que ele reconhece como o surgimento de uma igreja
popular (1960-1973), responsável pela consolidação de movimentos
populares católicos e, sublinhe-se, de protagonismo do leigo.
147
MORAES, Maria Blassioli. A Ação Social Católica e a Luta Operária: a experiência dos
jovens operários católicos em Santo André (1954 - 1964). op. cit., p. 25.
148
Sobre a ACO, a autora explica que “a geração de militantes que participou da JOC
durante a década de 1950 , afastou-se do movimento no início dos anos 60, sobretudo
porque estava assumindo casamento. Justamente no ano de 1962, os militantes
formaram a Ação Católica Operária (ACO) no ABC, organização que passou a reunir não
somente os moços ou somente as moças, mas a participação nas reuniões e nas
atividades sempre acontecia com a presença dos casais. Esta característica foi
responsável pelo aspecto familiar da ACO”. MORAES, Maria Blassioli. A Ação Social
Católica e a Luta Operária: a experiência dos jovens operários católicos em Santo André
(1954 - 1964). op. cit. Maior aprofundamento no tema dos movimentos da ACO e JOC,
cf. MARTINS, Heloisa Helena T. de Souza. Igreja e Movimento Operário no ABC: 1954-
1975. Op. cit.
149
MORAES, Maria Blassioli. A Ação Social Católica e a Luta Operária: a experiência dos
jovens operários católicos em Santo André (1954 - 1964). op. cit., p. 54.
72
No Jardim Zaíra, hoje região de Mauá, um grupo ligado à Ação
Popular150 se desenvolveu de maneira admirável entre os anos de 1968 e
1970, cujo dirigente era o sociólogo Betinho. Seus membros eram
politizados, conscientes das necessidades e capacidade de organização da
classe operária e contavam com o apoio da igreja local. Fundado no
episcopado de Dom Jorge Marcos, o movimento tinha respaldo do bispo,
porém, com o recrudescimento do Golpe, após 1968, passou a sofrer
constantes ameaças, teve integrantes presos e torturados e,
praticamente, passou para a condição de um movimento ilegal, mesmo
com suas origens vinculadas à Igreja Católica.151
Para os Movimentos Sociais, o ano de 1968 parece ter sido um
divisor de águas ao que se refere à sua atuação, e com uma particular
importância para as organizações de Juventude.
O radicalismo das ações juvenis, que se traduzia, algumas vezes,
num ataque à moralidade, continha um subjetivismo que apontava para o
desejo de algo que transcendesse a atmosfera de conflitos políticos,
militares, econômicos, ideológicos e “implícita ou explicitamente,
rejeitavam a ordenação histórica e há muito estabelecida das relações
humanas em sociedade, que as convenções e proibições sociais
expressavam, sancionavam e simbolizavam”.152 Se tratava, sem dúvida,
primeiro de uma revolução cultural, de costumes, mas era também a
150
Recorremos a MAINWARING para rapidamente compor um perfil do Movimento Ação
Popular: “Depois de sua criação em 1961, a Ação Católica Popular (AP) representou um
dos principais canais católicos para a atividade política de esquerda. A Ação Popular
expressava a tentativa dos católicos para criar uma sociedade justa quando já se tornara
mais difícil que tal tentativa ocorresse dentro das estruturas da Igreja. Na medida em
que surgiram as desavenças depois de 1961, muitos líderes da JUC quiseram criar um
movimento novo inspirado no cristianismo, mas fora da Igreja porque se sentiam
constrangidos por ela. Acreditava-se serem mais eficazes politicamente se atuassem
como um movimento autônomo. A AP rapidamente tornou-se uma das três maiores
organizações de esquerda na política brasileira, juntamente com o PCB e PCdoB. Mesmo
sendo uma pequena organização de aproximadamente 3000 membros, era bastante
influente. Membros da AP eram líderes na educação popular, no trabalho sindical e na
organização de camponeses”. Cf. MAINWARING, op. cit., p. 86.
151
PORTUENSE DE CARVALHO, Sandra A. Experiências de Solidariedade e Política – CB-
22 – A Ação Popular no Jardim Zaíra (1958 - 1970). 184 f. Dissertação (Mestrado em
História Social) Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2013.
152
HOBSBAWM, Eric. Era dos Extremos: O Breve Século XX. São Paulo: Companhia das
Letras, 1995. p. 327
73
elaboração de uma inquietação que se desdobraria para além da esfera
comportamental, principalmente para os países do Terceiro Mundo.153
Na cena internacional ferveu a revolução de Maio, na França, com a
força dos estudantes que atraíram para o movimento dois terços dos
trabalhadores de todo o país, um feito com dimensão de conquista154. Este
acontecimento gerou reflexos no mundo, e no Brasil foi como se trouxesse
aos grupos sociais, em especial para a juventude estudantil, um pouco da
vitalidade reprimida depois do Golpe de 1964. Muitos participantes
tiveram que se afastar de suas atividades por medo da repressão. E, no
geral, os grupos foram se diluindo, inclusive dentro da Igreja no Brasil,
que vinha realizando um significativo trabalho com bom alcance social,
através da Ação Católica, Juventude Operária Católica, Juventude
Universitária Católica e das Comunidades de Base.
O assassinato do estudante secundarista Edson Luís Souto, em
uma ação da polícia no Rio de Janeiro, em 28 de março de 1968, revelou
que, embora o governo tivesse, de certa forma, conseguido conter o clima
de agitação e manifestação popular, não atraíra para si o apreço da ampla
camada da população brasileira. Havia uma insatisfação que se fazia
crescente e agora ganhava mais vulto com os movimentos sociais e da
maioria da classe estudantil do país.
A morte de Edson Luís causou comoção nacional e gerou uma onda
de passeatas e protestos. Também sensibilizada com o fato, a Igreja do
Brasil apoiou várias destas manifestações.
A Diocese de Santo André não só deu apoio às manifestações como
elogiou a ação dos estudantes155, e o bispo celebrou, na Igreja Matriz de
153
Ibid., p. 432. Para HOBSBAWM, “os estudantes do Primeiro Mundo raramente se
interessavam por questões banais como derrubar governos e tomar o poder (...). (os
estudantes do Terceiro Mundo estavam mais próximos das realidades do poder; os do
Segundo Mundo sabiam que estavam necessariamente distantes dela)”.
154
As manifestações de Maio de 1968 na França, foram emblemáticas em todo o mundo.
Espelhando-se na façanha dos estudantes de Paris, grupos de jovens em muitos países,
passaram a
155
PERMANECE CLIMA DE TENSÃO. ABC. O Estado de S. Paulo, p. 8, 4 col., 02 abril
1968. Nota publicada: “Centenas de estudantes do ABC vieram ontem a São Paulo, para
participar da passeata aqui realizada. Os diretórios acadêmicos manifestaram-se
74
São Bernardo do Campo, uma missa em memória ao jovem, a um
operário anônimo e a Martin Luther King, assassinado nos Estados Unidos
no dia 4 de abril. A celebração presidida por Dom Marcos recebeu sentido
ecumênico, contando com a presença de representantes de outras
denominações religiosas. A liturgia do “descanse em paz” foi também a
manifestação de indignação diante de atos de intolerância. Não existia ali
um clima de revolta ou insurreição, mas a certeza de que esta “luta”
merecia artifícios diferentes dos utilizados pela força militar para reprimir.
Estes eram a resistência popular e atuação dos movimentos sociais e
pastorais da Igreja:
159
PASSARINHO VAI DECIDIR (Santo André). O Estado de S. Paulo, p. 6, 4-5 col., 24
abril 1968.
76
“Apenas iniciado o ato, pedras foram atiradas contra o palanque
atingindo várias pessoas, até o governador, ferindo-o na testa.
Todos os que estavam em cima do palanque fugiram assustados
pelas escadarias da catedral, buscando abrigo em seu interior. Os
manifestantes invadiram o palanque, derrubaram-no e colocaram
fogo. A Praça da Sé transformou-se em um campo de batalha, com
operários correndo em todas as direções, e policiais armados
começaram a atirar. A multidão abandonou a praça e saiu em
passeata, em direção à Praça da República, quebrando os vidros
do prédio do Citibank. Parecia que o radicalismo e a revolta
estudantil haviam atingido os operários”. 160
160
MARTINS, op. cit. p. 202-203.
161
MARTINS, op. cit. p. 205.
77
É muito simples. Foi na Segunda Guerra Mundial. Na França todo
mundo faz serviço militar. Seminaristas, todo mundo. Eu fiz um
ano de serviço militar. Houve a Segunda Guerra Mundial, (...)
como os alemães invadiram a França, as tropas foram prisioneiras
e iam pra Alemanha trabalhar nas fábricas para substituir os
soldados que estavam na guerra. Então, os padres que deixaram a
paróquia para ir à guerra, foram levados pra Alemanha e ficaram
prisioneiros. Esses padres, (...) de repente, se encontram no
campo de prisioneiros no meio de mil, dois mil homens prisioneiros
como eles, todos sem mulheres, tendo que trabalhar em fábricas
só para sustentar a vida. E eles percebem que o quê eles
conheciam na paróquia não é a vida, é uma vida artificial. A vida
religiosa, os batizados, as missas, contar o dinheiro da coleta, que
isso não é uma vida. A vida é o que o povo vive todo dia! Quando
eles voltaram, eles disseram: “não, eu não vou mais numa
paróquia, eu quero continuar viver, viver!”. E como os operários
são a categoria social que mais sofre, então, eles começaram a
trabalhar como padres operários, no meio do povo, nas fábricas,
usando profissões bem simples, sujavam as mãos de graxa, tava
bom. E eles começaram a viver esta vida no meio do povo. E
viram que a igreja estabelecida tem um tipo de vida e o povo tem
outra, e eles escolheram viver junto com o povo! E foi assim que
houve uma novidade na igreja, uma abertura missionária de vida
aos padres operários. Às vezes, eles moravam na casa paroquial,
mas eles iam trabalhar, participavam da reunião do sindicato, iam
visitar os colegas de serviço, eles ajudavam famílias com
problemas de educação dos filhos (...). 162
162
MAHON, José. Padre da Ordem dos Filhos da Caridade. Entrevista realizada em
Janeiro/2015.
163
Entrevista realizada em Janeiro/15.
78
em geral, dar passos para fora da sacristia e perceber in loco como o povo
constrói sua realidade diária.
79
2 DOM JORGE MARCOS DE OLIVEIRA: BISPO DOS
OPERÁRIOS
“Os grandes líderes ainda não se
anunciaram, mas existem; estão
por aí, no meio do povo”164
(D. Jorge Marcos de Oliveira)
Ele, uma vez reuniu na casa dele uns padres e alguns leigos, e ele
falou: ‘vou fazer uma carta aberta ao Castelo Branco’ (...). Ele fez
essa carta que foi publicada no Jornal Última Hora de sessenta e
cinco.166
164
OLIVEIRA, Jorge M. Dom Jorge, 25 anos de Grande ABC (Primeira Parte). Entrevista
concedida a Ademir Médici. Diário do Grande ABC, 21 out. 1979. Caderno C.
165
Disponível em: http://almj.com.br/gallery/acervo-fotografico-2/. Acesso: dez. 2015.
166
MAHON, José. Padre da Ordem dos Filhos da Caridade. Entrevista realizada em
Janeiro/2015.
80
O relato acima, feito por Padre José Mahon, aponta para uma carta
datada de 11 de maio de 1965 e que ganhou repercussão ao ser publicada
no popular Jornal Última Hora do Rio de Janeiro167, dia 20 de maio de
1965, com o título “Bispo ao Marechal: ‘Governo hoje faz do povo
mercadoria’”. A carta foi lida na Câmara dos Deputados em Brasília.
167
O jornal Última Hora entrou na história da imprensa brasileira em 1951, por iniciativa
de Samuel Wainer, jornalista, decidido à produção de um noticiário diário, marcado pelo
tradicional caráter político, mas, sobretudo, movido por uma nova proposta gráfica e
editorial, privilegiando o cotidiano como fonte central de seu conteúdo e, principalmente,
empenhado em oferecer ao seu leitor um conhecimento genuinamente novo: o inédito, o
não dito por outros tabloides. Para dar vida a este projeto, priorizando a qualidade de
seu jornal, Wainer formou uma equipe de primeira linha, arrebanhou os melhores e
chegou a oferecer até dez vezes mais o salário que recebiam em outras redações,
motivando uma valorização do profissional da comunicação naquele momento. O Última
Hora nasceu sob a bênção de Getúlio Vargas e manteve com este um vínculo que lhe
permitiu sua origem e edificação, todavia, sob o custo de certa submissão e fidelidade.
Mais autônomo no período JK, o UH ousou na elaboração de críticas mais direcionadas e
cada vez mais despudoradas, adquiriu experiência. Atravessou a linha dos anos 1960
sob a mesma proposta de inovação e chegou à Ditadura de 64 resguardado basicamente
por sua autoconfiança e aceitação no meio. Foi um dos poucos veículos de comunicação
capazes de fazer frente à Ditadura até o momento em que foi empastelado e fechado,
posteriormente comprado pela Família Frias, proprietária do Grupo Folha. Cf. RIBEIRO,
Ana Paula Goulart. Jornalismo, literatura e política: a modernização da imprensa carioca
nos anos 1950. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, n. 31, p. 147-160, 2003.
168
CAPA. Última Hora, Rio de Janeiro, 20 mai. 1965.
81
Santo Papa João XXIII, citando Pio XII, escreve em “Pacem in
Terris”, número 60: - a função primordial de qualquer poder
público é defender os direitos invioláveis da pessoa e tornar mais
viável o cumprimento dos seus deveres [...]. 169
169
BISPO ao Marechal: - Governo hoje faz do povo mercadoria. Primeiro Caderno, p. 5,
c. 2-4. A íntegra da carta publicada, consta nos anexos deste trabalho.
82
Na ocasião da publicação, pouco mais de um ano do Golpe, a
situação econômica e social do Brasil era de poucas expectativas, e
experimentada, sobretudo, pela população mais empobrecida.
De posse da presidência, o General Castelo Branco, reuniu um
corpo técnico ministerial, entre eles Roberto Campos e Otávio Gouveia de
Bulhões170, e passou a implementar o Plano de Ação Econômica do
Governo (PAEG), na intenção de uma estabilização financeira do país com
foco na contenção da inflação e favorecendo a retomada de investimentos
públicos e privados. Verdade que, como já comentamos, a conjuntura
econômica brasileira de março de 1964 pareceu conspirar em favor da
política golpista. O quadro inflacionário do país, em crescente desde o
início da década, apontava para a casa dos 90% - muito embora, ainda
distante do índice de ultrapassados 240%, alcançados 20 anos após, no
declínio da ditadura militar. No ano seguinte, 1965, em queda, a inflação
fechou em 36,05%.171 No entanto, Francisco de Oliveira chama a atenção
para o fato de que o primeiro resultado da aplicação do PAEG foi
170
SKIDMORE, Thomas. Brasil: de Getúlio a Castelo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, v. 8,
1982.
171
Fonte: IPEA – Data. Instituto de Pesquisas Aplicadas. IGP-DI (Índice Geral de Preços)
– centrado - fim período - var. Frequência: Anual de 1945 até 2014. (FGV/Conj. Econ. -
IGP). Disponível em: http://www.ipeadata.gov.br/. Acesso em: nov. 2015.
172
OLIVEIRA. Francisco de. Crítica à razão dualista: O ornitorrinco. São Paulo: Boitempo,
2003. p. 93.
83
“Operação Limpeza”, como descreve Thomas Skidmore.173 Portanto, a
princípio, uma intensa perseguição a partidos, líderes de oposição,
integrantes de movimentos sociais, estudantes, sindicatos, pessoas
relacionadas à esquerda política se tornaram inimigos do Estado. Sessões
de tortura, sequestros, prisões arbitrárias se seguiram ao longo daquele
primeiro ano, sob amparo e conhecimento de altas patentes militares de
então.174 Carlos Fico relata:
173
SKIDMORE, Thomas. Brasil: de Getúlio a Castelo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, v. 8,
1982.
174
DREIFUSS
175
FICO, Carlos. Como eles agiam. Os subterrâneos da Ditadura Militar: Espionagem e
polícia política. Rio de Janeiro: Editora Record, 2001. p. 44.
84
inerente ao Poder Constituinte. Ela edita normas jurídicas sem que
nisto seja limitada pela normatividade anterior à sua vitória”.176
176
O texto do Ato Institucional é reproduzindo em FICO, Carlos. Além do Golpe: Versões
e controvérsias sobre 1964 e a Ditadura Militar. Rio de Janeiro: Editora Record, 2004. p.
339.
85
cessar em defesa dos humildes, dos pobres, dos oprimidos, contra a
omissão criminosa dos responsáveis”.177
Passados cerca de vinte dias do recebimento e repercussão da
mensagem de Dom Jorge, Castelo Branco esteve em São Paulo para
comemoração do Dia de Anchieta (09 de Junho). Conforme a descrição
que encontramos no Jornal Última Hora, o Marechal não teria mencionado
publicamente carta alguma, mas pretendeu endereçar um pensamento
particular aos membros da Igreja Católica:
177
BISPO recebe cumprimentos. Última Hora, Rio de Janeiro, 22 mai. 1965. Congresso,
p. 5, c. 1. Ver também: GOVERNO é criticado com base na carta de Dom Marcos. Folha
de São Paulo, São Paulo, 22 mai. 1965. Câmara Federal, p. 5, c. 3-4.
178
CASTELO: - É impossível repartir com a Igreja encargos do Estado. Última Hora, Rio
de Janeiro, 10 jun. 1965. P. 3, c. 3-5.
179
CÚRIA denuncia: prisão de frade em Goiás é afronta a Católicos. Última Hora, Rio de
Janeiro, 7 jun. 1965. P. 3, c. 3-5.
86
Marechal teria se irritado com as denúncias de tortura e punido o
Secretário de Segurança Pública de Goiás180, atitude que seria alentadora,
se não se tratasse de uma estratégia política, mediante a popularização
do caso, afinal, vários jornais, naquele ano, já estampavam situações de
semelhantes arbitrariedades da polícia e do exército que mereceriam
providências imediatas.181
Da mesma forma, uma imediata atenção às questões cotidianas do
povo, reclamava com insistência D. Jorge Marcos. Suas constantes
investidas neste campo da política chamaram a atenção não apenas dos
organismos de segurança nacional do país, como também do Consulado
dos Estados Unidos, instituição que mantinha uma discreta, porém,
precisa vigilância sobre as atividades em solo brasileiro.
Desde o início dos anos de 1950 os Estados Unidos já realizavam
um minucioso acompanhamento sobre o funcionamento do Estado
brasileiro, e esta atenção se intensificou após a bem sucedida Revolução
Cubana de 1959, quando se tornou persistente o temor de que o Brasil,
maior país da América Latina, pendesse para relações com governos
socialistas. Ademais, consideremos nesta breve avaliação da interferência
norte-americana sobre o Brasil, também o aparato oferecido por este
governo, a fim de viabilizar a concretização do Golpe em 1964, ação cada
180
PUNIDO o Secretário. Última Hora, Rio de Janeiro, 9 jun. 1965. P. 2, c. 2.
181
Trazemos aqui alguns títulos de notícias e manchetes de jornais, cujas matérias
trazem referências a casos de prisões políticas e torturas em 1965: HOSPITALIZADO o
ex-prefeito da cidade de Atibaia. O Estado de São Paulo, São Paulo, 03 jan. 1965.
Primeira Página, p. 20, c. 3. PRISÃO preventiva. O Estado de São Paulo, 12 mai. 1965.
Geral, p. 5, c. 6. ARRAES poderá voltar à prisão. O Estado de São Paulo, 12 mai. 1965.
Geral, p. 5, c. 7. PROMOTOR pede novas prisões. O Estado de São Paulo, 27 mai. 1965.
Geral, p. 10, c. 5-6. DOPS procura jornalista. O Estado de São Paulo, 19 mai. 1965.
Geral, p. 14, c. 3. CONDENADO o Padre Alípio. O Estado de São Paulo, 23 mar. 1965.
Geral, p. 8, c. 2-3. PREFERIU a morte à tortura no IPM. Última Hora, Rio de Janeiro, 19
fev. 1965. p. 2, c. 1-2. ESPOSA de Jornalista revela tortura na DOPS. Última Hora, Rio
de Janeiro, 12 abr. 1965. Primeira Página. FAMÍLIA revela: Há tortura de detentos nos
presídios da GB. Última Hora, Rio de Janeiro, 22 abr. 1965. p. _, c. 1-4. TORTURAS
envergonham o Coronel. Última Hora, Rio de Janeiro, 30 abr. 1965. p. 5, c. 1-3. ALVES,
Márcio Moreira. Oposição e Consciência. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 16 mar. 1965.
Primeiro Caderno, p. 6, c. 1-4.
87
vez mais avalizada e melhor compreendida, através de pesquisas
referentes à "Operação Brother Sam”.182
Na rotina de constantes e sistemáticos relatórios, em certo
momento, os diplomatas do Consulado norte-americano acreditaram estar
diante de uma ameaça de agitação popular, que partia de uma liderança
da Igreja Católica no, economicamente importante, estado de São Paulo.
Um bispo, com um discurso enérgico e forte apelo socialista, se aliara às
causas de trabalhadores da região e ganhava notoriedade por suas
iniciativas cada vez mais ousadas. Tratava-se de Dom Jorge Marcos de
Oliveira, o “Worker’s Bishop”, “Bispo dos Operários”, forma como passou a
ser intitulado nas cartas oficiais, endereçadas às autoridades norte-
americanas.
Em nossa pesquisa, encontramos SETE comunicações que
mencionam diretamente o bispo de Santo André:
182
“o poderio norte-americano não teria como ser plenamente exercido mundo afora se
os Estados Unidos não predominassem incontestavelmente no hemisfério e, sobretudo,
em seu “quintal” latino-americano. Se não era possível acabar com o regime comunista
de Fidel Castro, com certeza eles não admitiriam uma ‘outra Cuba’, ainda que baseados
em avaliações quiméricas e tendo de recorrer a métodos brutais. Além disso, inúmeras
empresas norte-americanas tinham expressivos investimentos aqui, ou planejavam ter,
caso houvesse condições para tanto”. FICO, Carlos. O Grande Irmão: da operação
Brother Sam aos anos de chumbo. O governo dos Estados Unidos e ditadura militar
brasileira. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 2008. p. 42.
88
4. Documento: nº 355. Limited Official Use. 23 set. 1966.
Origem: Consulado Americano – São Paulo - SP.
Assunto: “São Paulo 350” (Relatório Semanal No. 21)
Obs. O Bispo de Santo André é citado no item 2 do relatório.
Political Política
1. Lacerda’s criticisms evoque varying comment
Críticas de Lacerda evocam variados comentários
2. São Paulo and Minas rightists convene
Direitistas de São Paulo e Minas se reúnem
3. Leftists seeking unity
Esquerdistas procuram unidade
4. How much unemployment in São Paulo?
Quanto há de desemprego em São Paulo?
5. Worker Bishop blames government for unemployment
Bispo dos operários clama ao governo pelo desemprego
89
6. Adhemar selects new agriculture secretary
Adhemar escolhe novo secretário de Agricultura
7. CP boom for Governor Rolls On
Corrida eleitoral para governador começa
183
Disponível em: https://repository.library.brown.edu/studio/ . Acesso em: mar. 2015.
90
FIGURA 5. Cópia do memorando produzido pelo
Consulado dos Estados Unidos, em 1965, contendo
denúncias sobre as atividades de D. Jorge Marcos de
Oliveira. Conteúdo do item 5.
184
Disponível em: https://repository.library.brown.edu/studio/ . Acesso em: mar. 2015.
91
Comentário: o bispo dos trabalhadores, Dom Jorge, está liderando
uma expoente ala de esquerda na igreja local. Ele se associou à
pequena, porém agressiva Frente Nacional Trabalhista, ala de
esquerda de orientação do PDC e participou das ações da FNT,
visitando locais de piquete, etc. Sua popularidade entre as
lideranças trabalhistas no importante complexo industrial chamado
“Triângulo do ABC” é inegável, embora tenha ficado afastado por
dois anos em função de um ataque cardíaco. Aparentemente
sincero e dedicado, seu frequentemente ingênuo idealismo
ocasionalmente o leva a ser enganado pelos comunistas. Sua carta
reportada acima certamente dará munição valiosa às forças
antirrevolucionárias”.185
185
Tradução: Raphael Salomão.
186
Disponível em: https://repository.library.brown.edu/studio/ . Acesso em: mar. 2015.
92
2.2. D. Jorge e Pastoralidade
187
OLIVEIRA, Jorge M. Dom Jorge, 25 anos de Grande ABC (Primeira Parte). Entrevista
concedida a Ademir Médici. Diário do Grande ABC, 21 out. 1979. Caderno C.
188
“A Associação Lar Menino Jesus, nasceu em fevereiro de 1956. Como outras
entidades, era um grupo de pessoas, motivadas pela fé, pelo desejo intenso de ajudar ao
próximo. Fundada por Dom Jorge Marcos de Oliveira, 1º. Bispo de Santo André, que
chegando em 1954, logo sentiu a realidade social triste da Região do Grande ABC. A
explosão industrial trouxera para cá numerosíssimas famílias e pessoas que, sem
qualificação profissional, acabavam ficando sem trabalho e sem moradia, seus filhos
largados a Deus dará… Inaugurada às pressas em 1956, a 1ª casa (cedida pela PMSA)
com 08 meninas internadas por Dom Jorge. Logo já eram 50. Dom Jorge criou nesta
época o Instituto Servas do Menino Jesus para trabalhar nas obras da Diocese-especial e
primordial mente no Lar Menino Jesus”. Texto sobre a fundação do Lar Menino Jesus.
Disponível em: http://almj.com.br/historia/. Acesso em: out. 2015.
93
pessoas paupérrimas. O que se consome de carne numa família
pobre hoje é nulo; o que há de possibilidade de uma família desta
participar de uma refeição matinal com leite é coisa de uma vez ou
outra. Só quando ganham ou quando o pai faz uma economia e
compra um litro de leite. Eu conheci pessoas que nunca tinham
provado leite na vida. Não porque não quisessem, mas porque
realmente nunca tinham podido.189
189
190
IANNI, Octavio. Sociologia da sociologia: o pensamento sociológico brasileiro. São
Paulo: Editora Ática, 1989.
94
estrutural, cujo resultado foi o enfraquecimento dos movimentos políticos.
As longas divergências entre teorias, teóricos e sistemas, consumiram um
espaço valioso e necessário para planejar, constituir e executar ações que
contribuíssem para um curso diferente da história do Brasil.191 Nesta
observação, com a finalidade de um complemento de informação,
atentamos para o fato de que a esquerda, principalmente com as
sucessivas crises e desestabilização da União Soviética, precisou rever sua
própria postura e metodologia, direcionando seu discurso para a efetiva
práxis no contexto da sociedade moderna. Hobsbawm explica:
191
Um material interessante para entender um pouco da problemática da esquerda no
Brasil, face ao Golpe de 1964 é a publicação de Dênis Moraes. O autor traça um perfil
histórico dos partidos, movimentos e organizações de esquerda e apresenta a atuação
destes na conjuntura dos anos 1960. A obra traz entrevistas de importantes lideranças
políticas da época que participaram dos acontecimentos que antecederam e sucederam
ao Golpe. Lendo estes depoimentos, pudemos observar alguns pareceres sobre desafios
e divergências na atuação dos grupos de esquerda naquele momento específico.
Apresentamos aqui alguns breves trechos das respostas concedidas por estas
personalidades, ao serem questionadas sobre este tema. Waldir Pires: “A esquerda tinha
uma divisão em 64 muito grande. Havia uma desarticulação profunda nessa área. Uma
certa incapacidade de ter um projeto só.”. Francisco Julião: “Esse tem sido o grande erro
das esquerdas no nosso continente. Fazem seu projeto revolucionário e depois
implantam como um corpo estranho no seio de uma determinada massa. Fracassam
porque sempre a tendência é haver um rechaço. A massa não foi preparada, trabalhada,
conscientizada.”. Gregório Bezerra: “Devíamos ter assumido uma posição revolucionária.
Uma posição marxista-leninista. Esse era o meu pensamento.”. Betinho: “Um erro foi não
avaliar, não tomar consciência da gravidade da crise política que se estava vivendo e, de
não ter percebido a correlação de forças”. Prestes: “O partido ficou muito reduzido, a
nossa força baixou muito. E havia dúvidas sobre a linha política do partido. Tomamos a
Resolução de 1958, que se apoiava no XX Congresso [do PCUS], mas que tinha
tendências direitistas bastante fortes. A questão do desenvolvimento pacífico confundia”.
MORAES, Dênis. A esquerda e o golpe de 64. São Paulo: Expressão Popular, 2011.
95
lo era solidamente esquerdista, como o era a ideologia do clero
católico, cujo apoio ajudou a pô-lo de pé.)”192
192
HOBSBAWM, Eric. Era dos Extremos: O Breve Século XX. São Paulo: Companhia das
Letras, 1995. p. 361.
193
RAINHO, Luís Flávio; BARGAS, Osvaldo Martines. As lutas operárias e sindicais dos
metalúrgicos em São Bernardo: 1977-1979. São Bernardo do Campo: Associação
Beneficente e Cultural dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo e Diadema, 1983. p.
168. A respeito da causa do afastamento de Dom Jorge Marcos de Oliveira do cargo de
bispo Diocesano de Santo André em 1975, convém dizer que, provavelmente, o fez por
recomendações médicas, já que sofria de doença cardíaca e lhe fora recomendado o
repouso. O afastamento de religiosos de ofícios eclesiástico seja por idade, doença ou
outra situação é previsto pelo Código de Direito Canônico.
96
principalmente, de sua experiência de outros tempos, quando ainda
atuava nas favelas do Rio de Janeiro, primeiro como padre e
posteriormente como bispo auxiliar da arquidiocese local.
194
MARTINS, Heloisa. op. cit., p. 68.
195
MARTINS, Heloisa. op. cit., p. 77.
196
Para uma melhor compreensão desta questão do anticomunismo, uma excelente
leitura é: RODEGHERO, Carla Simone. Religião e Patriotismo: o anticomunismo católico
nos Estados Unidos e no Brasil nos anos da Guerra Fria. Revista Brasileira de História,
ISSN 1806-9347, vol. 22, n. 44. São Paulo, 2002. Disponível em:
97
sociais. Além disso, um forte sentimento nacionalista também absorvia o
clero. A formação tradicional europeia recebida nos seminários, mesmo no
Brasil, estava incorporada na ação pastoral. De forma que, mesmo na
atuação social, nas lutas operárias, a ideia que transparecia era a aquela
da Ação Católica, da formação de um sindicalismo cristão. No entanto, os
fatos vão esclarecendo que, com o passar do tempo e, principalmente
após o Golpe, em 1964, a postura de muitos dos integrantes do clero e,
sobretudo, de D. Jorge, se tornou bem mais combativa e desafiadora.
Dom Jorge sempre foi tido como o bispo dos operários, ele tomou
atitude a favor dos trabalhadores, numa grande greve na Rhodia
Química, em Santo André. E depois, ele foi apoiar os operários na
fábrica de cimento Perus. Fica fora de Santo André, do outro lado,
no Perus, mas ele ajudou muito, ele lutou ao lado dos
trabalhadores.197
http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0102-01882002000200010&script=sci_arttext .
Acesso em: nov. 2015.
197
Depoimento do Pe. José MAHON, fc, ao Centro de Memória do ABC, em 14 de
dezembro de 2012. BLASSIOLI resume que “as práticas do Bispo e dos sacerdotes que o
apoiavam foram além do auxílio aos trabalhadores. As greves das fábricas de cimento
Portland de Perus e da Companhia Melhoramentos, que aconteceram entre os anos de
1958 e de 1959, contaram com o apoio da Frente Nacional do Trabalho (FNT), articulada
no ABC pelo Bispo e pelos sacerdotes”. Cf. MORAES, Maria Blassioli. A Ação Católica e a
Luta Operária: a experiência dos jovens católicos em Santo André (1954-1964). 207 f.
Dissertação (Mestrado em História Social) Universidade de São Paulo, São Paulo, 2003.
p.159. Sobre o desdobramento das greves dos operários da Fábrica Portland em Perus e
da Companhia Melhoramentos, cf. SOBRINHO, Felipe Cosme Damião. Catolicismo e
Militarismo no ABC Paulista: 1964 - 1985. 137 f. Monografia (Bacharelado em Teologia)
Pontifícia Faculdade de Teologia Nossa Senhora Assunção, São Paulo, 2009. p. 54.
98
Ao final do ano de 1975, o bispo que participou com frequência das
páginas dos jornais do país, se afastou sem alardes da imprensa, com
discrição e respeito por seu sucessor, o jovem franciscano D. Claudio
Hummes, 41 anos, nascido em Montenegro (RS), e que saíra do Rio
Grande do Sul para assumir a Diocese de Santo André.
198
DIOCESE DE SANTO ANDRÉ TEM NOVO BISPO. O Estado de S. Paulo, p. _, 1-7 col., 30
dez. 1975.
199
SOBRINHO, Felipe Cosme Damião. Entre fé e liberdade: Catolicismo, operariado e
ditadura no ABC paulista (1964 – 1985). 204 f. Dissertação de Mestrado (Teologia)
Pontifícia Universidade Católica, São Paulo, 2015. p. 90.
99
Dom Jorge Marcos de Oliveira, primeiro bispo da Diocese de Santo
André, faleceu em 28 de maio de 1989, aos 73 anos, em decorrência de
um infarto agudo do miocárdio.
“Foi homem lutador. Mal visto dos patrões, mal visto dos padres
da diocese, mal visto dos bispos. E enfrentava todo mundo!”
Padre José Mahon201
200
Id., p. 28.
201
MAHON, José. Padre da Ordem dos Filhos da Caridade. Entrevista realizada em
Janeiro/2015.
100
3 DOM CLÁUDIO HUMMES: POR UMA IGREJA
ACOLHEDORA
Fonte: Abcdpedia.203
202
HUMMES, Claudio. Entrevista concedida em 12 de Agosto de 2013, nos estúdios da
Rádio Imaculada Conceição, em São Bernardo do Campo, para veiculação na emissora e
cedida para uso em nossa pesquisa.
203
Disponível em:
http://www.abcdpedia.com.br/wiki/index.php?title=Dom_Cl%C3%A1udio_Hummes.
Acesso em: Dez. 2014.
101
saber por que aquele bispo brasileiro fora escolhido para estar ali.
Estávamos também.
Em agosto de 2013 tivemos a oportunidade de entrevista-lo nos
estúdios da Rádio Imaculada Conceição, na Diocese de Santo André e esta
foi uma das perguntas da pauta: “D. Cláudio, o Papa Francisco fala que o
senhor estava próximo a ele no conclave, na eleição. Isso é verdade?
Como é que surgiu esta amizade?”. Neste momento percebi um sorriso
largo em seu rosto e uma disposição em comentar o fato com satisfação.
Esta foi a resposta:
Sim, sim. Porque tudo isso aconteceu no momento em que ele foi
eleito. Porque, depois disso, ainda tem todo um cerimonial para
chegarmos lá, naquele janelão da Basílica. É onde ele se apresenta
pela primeira vez na Praça São Pedro. Foi ali que me chamou
depois para acompanha-lo também. Porque não há nenhum
cardeal que acompanhe ele, propriamente, naquele janelão
central. Os cardeais ficam naqueles dois janelões laterais. Mas ele
quis... Porque quem vai com ele são os cerimoniáreis, que não são
cardeais. E ele me chamou, de repente, diz: “Olha, eu quero que
você esteja comigo nesse momento”. Mas aí já tinha passado toda
102
a questão do nome dele, enfim, como ele contou, assim, de fato
aconteceu.
204
BENJAMIN, Walter. Sobre o Conceito da História. In: Magia e Técnica, Arte e Política:
Ensaios sobre literatura e história da Cultura. São Paulo: Brasiliense, 2012. Obras
Escolhidas, v. 1. p. 242.
205
Para informações mais detalhadas sobre perfil biográfico e pastoral de D. Claudio
Hummes, cf. SOUZA (org.), Ney de. Catolicismo em São Paulo: 450 anos de presença da
Igreja Católica em São Paulo (1554-2004). São Paulo: Edições Paulinas, 2004. p. 590.
103
por São Paulo e que também oportunidades aconteciam nesta região do
Brasil.
O estado, ao lado do Rio de Janeiro, é tradicionalmente polo de
recepção migratória do país, no entanto, a partir da década de 1940, com
vistas também a atender a demanda de empregos seja no setor de
serviços, na indústria ou até para a construção e manutenção de estradas,
como foi o caso da Rodovia Anchieta, o movimento aumentou e sustentou
uma escalada cada vez maior, de forma que, em 1975, quando o bispo
gaúcho D. Claudio Hummes assumiu a Diocese de Santo André, com suas
sete cidades, recebeu a incumbência de acolher e falar a uma população
diversa em sua origem, mas coesa diante de suas lutas diárias. Eram
operários de chão de fábrica, domésticas, desempregados,
subempregados, donas de casa, jovens, crianças, idosos. Pessoas
comuns, lidando ordinariamente com problemas como a pobreza, a
carestia, o pouco trabalho, o baixo salário, a pouca estrutura nos serviços
públicos básicos, e incoerentemente, vivendo este dilema no mesmo solo
do maior parque industrial da América Latina.
D. Hummes pisou a Diocese de Santo André primeiro como bispo
coadjutor, em 29 de junho de 1975, e exatamente seis meses após, em
29 de dezembro, assumiu a frente deste episcopado. O meio ano que
antecedeu sua posse, acompanhando os passos de D. Jorge Marcos de
Oliveira, foi fundamental para entender um pouco da complexidade do
trabalho pastoral nesta região.
O ABC Paulista que D. Claudio encontrou já se diferenciava bem do
panorama visto por D. Jorge há mais de vinte anos. A população saltara
de pouco mais de 320 mil para 850 mil habitantes, com cidades mais
desenvolvidas, muito mais comércios, grandes avenidas, ruas asfaltadas e
indústrias. Também a própria diocese, em termos estruturais, estava bem
mais preparada, já contava com 74 paróquias, muitos movimentos
pastorais e sociais, catedral, cúria diocesana e um clero maior para
104
atender a demanda de fiéis, ainda que não fosse suficiente o número de
padres para o tamanho do setor.
206
SOBRINHO, Felipe Cosme Damião. Catolicismo e Militarismo no ABC Paulista (1964 –
1985). 137 f. Monografia (Bacharelado em Teologia) Pontifícia Faculdade de Teologia
Nossa Senhora Assunção, São Paulo, 2009. p. 96.
105
Dom Claudio acabou mudando, sentindo que era preciso de uma
presença da Igreja. Então, à minha maneira de ver, ele assumiu
uma forma de ser de Dom Jorge. Só, que uma forma, talvez, um
pouquinho mais alicerçada”.207
207
QUAGLIO, Sebastião Benito. Entrevista concedida em Janeiro/2015.
208
Id., p. 94.
106
principalmente porque se articulava pelo alto. Como forma de protesto
contra a repressão e violência, Dom Paulo Evaristo Arns, arcebispo de São
Paulo, convocou a população para um grande ato ecumênico.
O início do mandato do General Geisel fora marcado pelo II PND –
Plano Nacional de Desenvolvimento, cuja meta principal era a expansão
de bens de capital e insumos intermediários para a produção industrial e
agrícola, num processo de substituição das importações. A crise do
Milagre Econômico era visível e a preocupação com o crescimento da
dívida externa brasileira aumentava. Agravando ainda mais a situação, a
crise do petróleo refletia em todo contexto internacional. Mas a ditadura
persistia na ideia de um “Brasil-potência”, ainda que fosse através de
duras penas para os trabalhadores do país.
O aumento da inflação, aliado ao achatamento salarial, só fez
recrudescer a crise, especialmente para a classe operária, no entanto,
trouxe a motivação para que os movimentos sociais e sindicatos dessem
um passo à reorganização. Começava uma nova articulação que contava
com o apoio da Igreja Católica.
Com o AI-5 ainda em pleno vigor, censurando a imprensa, a
programação no rádio e na televisão e quaisquer veículos que detivessem
condições de denunciar a real situação do país, assumir uma postura
crítica ao governo, era quase como assinar uma sentença de morte e,
nem sempre a Igreja Católica tinha condições de agir, sendo que, muitas
vezes os próprios religiosos sofreram repressão.
Diante da crise e da insegurança sentida pelo povo, Dom Cláudio
passa a se manifestar mais incisivamente a favor dos trabalhadores no
ABC. Em 1977, escreveu uma carta sobre condições precárias em que
vivia a massa operária e suas famílias. A comunicação foi lida nas missas
paroquiais da diocese de Santo André e divulgada através de jornais da
região. O jornal O Estado de São Paulo publicou a íntegra da carta e uma
cópia da reportagem está entre os anexos deste trabalho. Abaixo, um
trecho nos ajudará a melhor entender a questão.
107
Os sindicatos perderam sua força de negociar acordos com os
empregadores e isso contribuiu ainda mais para os trabalhadores
se afastarem deles. Isso é duplamente negativo, primeiro porque
os sindicatos, sem os trabalhadores na retaguarda e sem armas
eficazes para lutarem por melhores salários, passam a ter uma
função meramente assistencialista e afastam-se do seu princípio
básico que é a luta pelos direitos das categorias que representam.
Em segundo lugar, a descrença no sindicalismo leva os
trabalhadores a procurarem saídas individualistas para os seus
problemas. E os problemas da classe operária não podem ser
resolvidos individualmente.209
209
BISPO APONTA OS EFEITOS DOS BAIXOS SALÁRIOS. O Estado de S. Paulo, p. _, 1-2
col., 20 mar. 1977.
210
THOMPSON. A Formação da Classe Operária Inglesa: A Árvore da Liberdade. op. cit.,
p. 10.
108
possibilidade de se discutir muita coisa. Na verdade, a prática do
assistencialismo tomou conta dos sindicatos grandes e pequenos,
alguns construíram mini hospitais, ambulatórios moderníssimos. O
nosso sindicato tem 20 médicos, 20 dentistas e uma série de
especialistas. Com tudo isso, começamos a perceber que
estávamos fugindo da nossa razão de existir, começamos a
perceber que era necessário responsabilizar um pouco a classe
trabalhadora pela existência do sindicato. A gente tinha em mente
que, quando a classe trabalhadora começa a se manifestar no
Brasil, logo aparece um ditador que vem regulamentar a existência
dos sindicatos e não permitir que nos organizemos da forma que
melhor entendamos. Chegamos à conclusão de que o sindicato no
Brasil foi criado muito mais por uma necessidade do estado de
sobreviver diante da classe trabalhadora do que por uma
necessidade e consciência da classe trabalhadora.211
211
LULA DA SILVA, Luiz I. Entrevista. Lula: Retrato de Corpo Inteiro. Revista Escrita
Ensaio. Revista Escrita Ensaio. Ano. IV, n.8, p. 12-54, 1981.
212
SCOLESO, Fabiana. As formas políticas e organizacionais do “Novo Sindicalismo”: As
paralisações metalúrgicas de 1978, 1979 e 1980 no ABC Paulista. 217 f. Dissertação
(Mestrado em História) Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2003. p.
47.
109
As greves de maio de 1978 mostraram um pouco das feições deste
novo sindicalismo. Trabalhadores metalúrgicos de São Bernardo do Campo
e Diadema se organizam num grande movimento grevista que chama a
atenção de todo país. Operários da Empresa Scania, em São Bernardo do
Campo, após a campanha salarial, receberem seus holerites com reajuste
fixado pelo governo, num gesto espontâneo de protesto, decidiram
desligar as máquinas e cruzar os braços. Um iniciativa ousada, mas que
rapidamente repercutiu em outras indústrias da região e do Estado. O
movimento foi considerado ilegal pelo TRT – Tribunal Regional do
Trabalho.213
Sobre estas greves, RAINHO E BARGAS explicam que não se
tratava de uma “luta sindical” e sim uma “luta operária”, pois não foi o
Sindicato que que organizou ou liderou o movimento. A decisão de como
e quando entrar em greve foi dos próprios operários.
213
Cf. RAINHO, Luís Flávio; BARGAS, Osvaldo Martines. op. cit.
214
Cf. Id., p. 75.
110
A Igreja não deve nem pensar conduzir o processo [de greve]
apesar de todas as tentações de poder que sempre a rondam e
apesar de suas faltas e omissões em que tem incorrido e incorre,
com relação aos operários. Mas ela quer solidarizar-se com o povo,
ser povo e, neste momento, apoiar os operários em suas
reivindicações, que considera justas, ao mesmo tempo que
respeita a autonomia e finalidades das instituições intermediárias,
como os sindicatos, sem esquecer sua missão de pregar o
Evangelho a todos. Ela se alegra e apoia quando essas instituições
intermediárias tentam recuperar no Brasil sua verdadeira
natureza, como declarou o documento da CNBB “Exigências Cristãs
de uma Ordem Política”.215
215
SOBRINHO, Felipe Cosme Damião. op. cit. p. 97.
216
Frei Betto escreveu diversos livros sobre as atividades dos frades dominicanos e a
perseguição que sofreram no período de Ditadura Civil-Militar no Brasil. Uma de suas
obras e, talvez a mais conhecida e citada, é “Batismo de Sangue” que posteriormente foi
transferida para o cinema. Esta publicação, além de ser um trabalho de literatura
bastante premiado, é também uma referência histórica relevante sobre a atuação da
Igreja Católica no Golpe e consequentemente na Ditadura. O livro trata de personagens
importantes que confrontaram este sistema, como Frei Tito, que torturado nos porões do
DEOPS em São Paulo, não suportou os traumas sofridos e se suicidou em um convento
na França, em 1974. BETTO, Frei. Cf. Batismo de Sangue. São Paulo: Círculo do Livro,
1982.
111
prisão em 1974, foi morar e trabalhar em uma favela na cidade de Vitória,
no Espírito Santo e, em 1979 voltou para São Paulo.
217
BETTO, Frei. Carlos Alberto Libânio Christo. Religioso, frade dominicano. Atuou contra
a ditadura militar como integrante da ALN junto à Marighela. Recebeu vários prêmios por
sua atuação em prol dos direitos humanos e a favor dos movimentos populares. Atuou
na Pastoral Operária da Diocese de Santo André entre os anos de 1979 e 2002.
Assessor especial da Presidência da República entre 2003 e 2004. É autor de "Batismo de
Sangue" e "A Mosca Azul", entre outros. Entrevista concedida em 17/03/2015, o
Convento dos Dominicanos em Perdizes- SP.
218
O MR-8 – Movimento Revolucionário 8 de Outubro foi uma organização política de
esquerda, que participou da guerrilha urbana entre os anos de 1969 e 1972 e assimilou
postura marxista-leninista.
112
FIGURA 8. Cópia de Panfleto divulgado como da Pastoral Operária da Diocese de Santo André.
219
Disponível em: http://bnmdigital.mpf.mp.br/#!/
113
sei lá. Mas, não uma missa, mas se tornou uma coisa de ir à
missa. Todas as lideranças sindicais, cristãs, espiritas, evangélicas,
todo mundo pra dentro da Igreja Matriz. E em todas as missas
Dom Claudio fazia questão que eu ficasse do lado dele no altar e
me dava a palavra, mesmo eu não sendo padre.220
220
Entrevista concedida em 17/03/2015, o Convento dos Dominicanos em Perdizes- SP.
221
Disponível em: http://bnmdigital.mpf.mp.br/#!/
114
Quando questionamos Frei Betto sobre como se deu a formação de
uma Pastoral Operária diante de uma Ditadura Civil-Militar, num contexto
de agravamento das condições econômicas e sociais, sua resposta foi:
“um desafio fácil de ser conduzido”. Isso porque, para ele, além dos
fatores mencionados anteriormente, os operários tinham em sua maioria
uma formação cristã e este foi um diferencial importante a se considerar.
222
Entrevista concedida em 17/03/2015, o Convento dos Dominicanos em Perdizes- SP.
115
Iam falar o Barelli, a Erundina, era um lugar que você sabia que ia
ter uma informação que você não tinha na mídia brasileira. Uma
espécie de posto de abastecimento dos nossos ideais, dos nossos
valores. Iam Dom Claudio, Dom Pedro Casaldáliga, Dom Paulo
Evaristo Arns, todas essas pessoas que eram execradas pela
ditadura iam pra lá.223
223
Id.
224
SOBRINHO, Felipe Cosme Damião. op. cit.
116
na assembleia que aconteceu no Estádio da Vila Euclides, na época,
denominado Estádio “Costa e Silva”.225
O governo interveio. No dia seguinte manteve a população da
região sitiada, com tropas de choque que que agiram violentamente para
dispersar o movimento.
Na madrugada do dia 23 os sindicatos de Santo André, São
Bernardo e São Caetano foram cercados. Lula estava no Sindicato de São
Bernardo, quando soube da intervenção, mas apenas às 11h da manhã
deixou o local, alertando aos demais companheiros que se dirigissem para
a Praça Matriz de São Bernardo do Campo, porque assembleias no Estádio
da Vila Euclides também estavam proibidas. Começa um cenário de
guerra. Várias prisões foram feitas, tiros no ar e bombas de gás foram
lançadas contra os manifestantes que também se defendiam.
Tito Costa, prefeito de São Bernardo do Campo se reúnem para
discutir meios de amenizar a situação e conter os ânimos de 40 mil
metalúrgicos, que exigiam uma assembleia no Estádio da Vila Euclides,
naquele momento interceptado. Este clima permeava toda a região.
No dia 25 de março D. Claudio presidiu uma missa, num gesto de
demonstração de que a Igreja permanecia ao lado dos trabalhadores, mas
afirmava que tudo deveria ser feito pacificamente.
No dia 27 de março uma trégua de 45 dias foi proposta e aceita a
fim de viabilizar as negociações.
As greves ofereceram dinamismo aos movimentos sindicais e toda
agitação se refletiria ainda mais no seio da Diocese de Santo André. A
pastoral diocesana se colocava disposta prioritariamente às questões do
mundo do trabalho.
Sobre a atuação da Igreja de Santo André nesta situação, a
conclusão de Rainha e Borgas é que:
225
Id.
117
apoiar. Nessa perspectiva, a atuação da Igreja na greve foi
fundamental:
a) Recolhendo alimentos para o Fundo de Greve;
b) Abrigando o Fundo de Greve em suas dependências e,
posteriormente, durante a intervenção a diretoria do Sindicato;
c) Participando (através de D. Cláudio Hummes como
representante dos trabalhadores) diretamente das negociações
com o Governo e patrões para estabelecimento da trégua e do
acordo final após esta.
Mas,
226
Entrevista concedida em 17/03/2015, o Convento dos Dominicanos em Perdizes- SP
118
3.3. As greves de 1980
119
Os salários dos operários sofriam uma perda que chegava a 84,3%,
em comparação com o ano anterior e uma grande instabilidade
empregatícia também favorecia o achatamento salarial. A crise afetava os
preços dos alimentos e organizações como a “Associação das Donas de
Casa” e “Movimento contra a carestia”, articulavam boicotes ao consumo
de determinados alimentos, como a carne e ainda promoviam
manifestações com vistas a conscientizar à população dos graves
problemas econômicos e sociais pelos quais passava a sociedade
brasileira.
Desta vez, as reivindicações dos trabalhadores iam para além de
reajustes salariais, agora a questão da estabilidade era um ponto
fundamental, afinal, o desemprego era outro fantasma que assombrava a
classe operária.
No dia 1º de Abril de 1980 tinha início a histórica greve, que
também marcaria um processo de caminhada rumo à abertura política do
país. Cerca de 200 mil trabalhadores foram diretamente envolvidos no
movimento. Além disso, suas famílias fortaleceram o movimento.
Os metalúrgicos permanecem por 41 dias em greve sob um clima
muito tenso, com prisões e atos de violência, pois o governo havia
decidido pela ilegalidade da organização grevista.
Novamente D. Cláudio e a diocese de Santo André marcaram
presença e ofereceram solidariedade ao trabalhador.
120
distribuída uma mensagem de apoio aos metalúrgicos assinada
pelo bispo diocesano.227
Cristo não veio ajeitar as coisas. Não veio harmonizar. Não veio
fazer média entre a justiça e a injustiça... A Igreja nunca decidirá
se vocês devem fazer ou parar a greve. Vocês é que devem
decidir. A Igreja se põe a serviço de vocês, mas esta decisão é de
grande responsabilidade.228
227
SOBRINHO, Felipe Cosme Damião. op. cit. p. 107.
228
Id.
229
Id.
121
Foto 5: Igreja Matriz de São Bernardo e os
trabalhadores. (1980)
122
Foto 6: Tropas da polícia indo embora de São
Bernardo no dia 1º de Maio de 1980.
123
E foi o tempo do fim da Ditadura Militar, da redemocratização, das
grandes greves aqui do ABC, onde, naquela época, surgiram
líderes sindicais, sobretudo o Lula, e depois, surgiram as grandes
instituições como a CUT, o PT que dava voz aos trabalhadores,
dava voz... De forma que, a Igreja não precisava mais ser voz em
tudo, mas eles mesmos constituíram a sua voz, mesmo
politicamente, também sindicalmente. Então, tudo isso aconteceu
naquela época e nós é... E aí, eu acho que o Espírito Santo
também nos guiou muito. De termos tido digamos assim, a lucidez
de apoiar esse movimento do povo e dos operários aqui. A igreja
aqui apoiou, apoiou fortemente. Isso também repercutiu no Brasil
inteiro. E ao mesmo tempo com Medellín e etecetera, essas
grandes propostas da Igreja na América Latina, a opção
preferencial pelos pobres e todo o trabalho depois que foi feito
nessa direção. Tudo isso se encaixou uma coisa na outra e fez com
que realmente fossem épocas importantíssima para o povo aqui,
para o povo brasileiro.230
230
HUMMES, Claudio. Entrevista concedida em 12 de Agosto de 2013, nos estúdios da
Rádio Imaculada Conceição, em São Bernardo do Campo, para veiculação na emissora e
cedida para uso em nossa pesquisa. Quando questionado se falaria mais sobre o tema,
nos respondeu que não concede entrevistas sobre este assunto. Encerrou a conversa.
Não sabemos por quais motivos o bispo evita falar destes tempos nos dias de hoje, mas
algumas vezes, precisamos também entender que até o “não dizer” pode se traduzir
alguma ideia.
124
125
CONSIDERAÇÕES FINAIS
126
Recebeu a atenção da imprensa e era conhecido por uns como “Bispo
Vermelho” e por outros, como “Bispo dos Trabalhadores”.
127
A competência com que os dois primeiros bispos da Diocese de
Santo André trataram as angústias do povo, era o reflexo de uma igreja
em transformação, que encontrava um novo caminho pastoral para
concretizar sua “opção preferencial pelo pobre”.
128
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
129
FICO, Carlos. Além do Golpe: Versões e controvérsias sobre 1964 e a
Ditadura Militar. Rio de Janeiro: Editora Record, 2004. p. 339.
______. A Era das Revoluções: 1789 – 1848. São Paulo: Paz e Terra,
2012..
130
MEDICE, Ademir. 1º de Maio e os principais momentos da luta sindical em
São Bernardo: 1902 – 1990. São Bernardo do Campo: Prefeitura
Municipal de São Bernardo do Campo, 1990.
PRADO JR, Caio. A cidade de São Paulo: geografia e história. São Paulo:
Brasiliense, 1983.
ROMANO, Roberto. Brasil: Igreja contra Estado. São Paulo: Kairós, 1980.
131
SIMÕES, Solange de Deus. Deus, Pátria e Família: as mulheres no golpe
de 1964. Petrópolis: Vozes, 1985.
132
FONTES DE PESQUISA:
FILMES:
ENTREVISTAS E DEPOIMENTOS:
133
FONTES ELETRÔNICAS:
134
DOCUMENTOS DA IGREJA CATÓLICA
LEÃO XIII, Papa. Rerum novarum. Carta Encíclica. Santa Sé, 1891.
135
ARTIGOS EM REVISTAS:
136
MONOGRAFIAS, DISSERTAÇÕES E TESES
137
______. Entre fé e liberdade: Catolicismo, operariado e ditadura no ABC
paulista (1964 – 1985). 204 f. Dissertação (Mestrado em Teologia)
Pontifícia Universidade Católica, São Paulo, 2015.
Brasil Urgente
Folha da Manhã
Última Hora
Boletins:
139
ANEXOS
140
ANEXO 1
O GOVERNO E OS TRABALHADORES
141
defender os direitos invioláveis da pessoa e tornar mais viável o
cumprimento dos seus deveres.
A FUNÇÃO DO ESTADO
E Pio XII, ainda citado por João XXIII, pregava ao mundo inteiro, na
véspera do Natal de 1955, que “a pessoa humana como tal não pode ser
considerada objeto ou elemento passivo da vida social mas, muito pelo
contrário, deve ser tida como sujeito, fundamento e o fim da mesma”.
O GOVERNO E OS DESEMPREGADOS
Pois bem, leia, Sr. Presidente, o que uma operária nos entregou
como testemunho escrito:
“A mim mesmo, enquanto fazia uma carta, como teste, para ser
colocada numa casa comercial, o chefe, sem eu ver, veio por trás de mim
e passou a mão pelo meu rosto. Fiquei tão nervosa e com vontade de
largar um tapa, mas fiz um esforço, um gesto de desprezo e entreguei a
carta. Que humilhação”.
144
Um trabalhador sujeitou-se, na primeira semana de Maio, a ganhar
30.000 mensais, dizendo: “Sou forçado a sujeitar-me a tudo, porque
tenho obrigação de sustentar meus filhos”.
Mau pai está sendo o Brasil, Sr. Presidente, que perdeu o sendo
desta responsabilidade para com seus filhos.
Sr. Presidente:
145
Perguntamo-nos, Senhor Presidente, se, no Brasil de hoje, nos
homens do campo ou no meio operário urbano não estaremos violando a
lei colocada por Deus no coração do homem. Não matarás? Sabemos que
a pessoa humana tem, no trabalho, o único meio de viver esse
mandamento e de garantir o seu sustento pessoal e o de sua família.
Senhor Presidente:
PECADO DA OMISSÃO
147
ANEXO 2
148
ANEXO 2
149
ANEXO 3
150