Cleonice Rosa Do Nascimento Servo

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

Cleonice Rosa do Nascimento Servo

A atuação da Diocese de Santo André durante a Ditadura


Civil-Militar nos episcopados de Dom Jorge Marcos de Oliveira
e Dom Cláudio Hummes
(1964 – 1980)

MESTRADO EM HISTÓRIA

SÃO PAULO
2016
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP

CLEONICE ROSA DO NASCIMENTO SERVO

A atuação da Diocese de Santo André durante a Ditadura


Civil-Militar nos episcopados de Dom Jorge Marcos de Oliveira
e Dom Cláudio Hummes

(1964 – 1980)

MESTRADO EM HISTÓRIA

Dissertação apresentada à Banca


Examinadora da Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo,
como exigência parcial para
obtenção do título de Mestre em
História Social, sob a orientação do
Prof. Dr. Antonio Rago Filho.

SÃO PAULO
2016
Nome: SERVO, Cleonice Rosa do Nascimento

Título: A atuação da Diocese de Santo André durante a Ditadura Civil-


Militar nos episcopados de Dom Jorge Marcos de Oliveira e Dom Cláudio
Hummes (1964 – 1980).

Dissertação apresentada ao
Programa de Estudos Pós-Graduados
em História da Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo,
como exigência parcial para
obtenção do título de Mestre em
História Social, sob a orientação do
Prof. Dr. Antonio Rago Filho.

Aprovada em: ___/___/_______

Banca Examinadora
Dedico este trabalho à memória de

Dom Jorge Marcos de Oliveira.

Que a doação de sua vida ao povo do ABC e


seu engajamento pelos trabalhadores do
Brasil sejam reconhecidos e motivem justas
transformações.
AGRADECIMENTOS

Passamos dois anos ou mais com os nossos sentidos voltados para


a produção de um trabalho acadêmico que, quando chega este momento,
quase procuramos o manual de normas da ABNT para tentar expressar da
melhor maneira possível o quanto somos gratos por todos que neste
percurso se dedicaram a nos ajudar. Felizmente, para manifestar respeito
e gratidão não precisamos formatações, teorias, compêndios ou teses, é
só dizer o que se sente. E sinto felicidade por poder, enfim, dizer
“obrigada”.
À minha linda filha Maria Clara, que não me deixou desistir e
suportou minhas ausências, mesmo quando estava bem perto. Eu te amo.
Ao Raphael, jornalista brilhante, com quem, há 10 anos, estou
ligada “pelo acidente do casamento”1. Com amor, agradeço pela dedicação
e paciência de amigo, crítico, revisor, tradutor e todo acumulo de funções
que desempenhou para ver este trabalho terminado. Sei que não foi fácil.
Às nossas famílias, que apoiaram e acompanharam cada passo.
Rose e Carlos, pela acolhida, incentivo e confiança. Adelaide e José, pela
educação e proteção em todos os momentos da vida. Minha irmã Cláudia,
pelas conversas, estímulo e ajuda com minha filha. Meu irmão Edinaldo,
pela alegria e inocência com que sabe viver. Com carinho especial aos tios
Carlos e Ivone. In memoriam a Luís e Estela.
Aos amigos da Associação Milícia da Imaculada, mais que colegas
de trabalho, uma família, cujo ideal me conquistou. Este trabalho começou
neste ambiente.
Ao Frei Sebastião Benito Quaglio, pela oportunidade de tê-lo como
amigo. Padre e pai. Uma das pessoas mais inteligentes que conheço.
Inspirou-me a olhar sempre o horizonte. Obrigada por aceitar também
contribuir com a suas memórias e experiência na Diocese de Santo André.

1
Achei graça ao ler um trecho bem-humorado de E. Thompson, em um dos volumes de
sua mais conhecida obra. Tomei a liberdade de parodiá-lo neste espaço, com a devida
referência acadêmica. THOMPSON, Edward Palmer. A formação da classe operária
inglesa: A Árvore da Liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. p.14.
5
Obrigada àqueles que dedicaram um período do seu tempo para
conversar sobre o que sabem desta história: ao Frei Betto, pela acolhida
em sua residência e disponibilidade em contar sua experiência na Pastoral
Operária da Diocese de Santo André; ao Padre Oscar Beozzo, pela lucidez
com que nos explicou alguns aspectos do Concílio Vaticano II e as
influências da Igreja do Brasil; ao Padre Edvaldo Pereira, grande amigo,
que proporcionou este encontro. Agradeço ao Padre José Mahon, que
dedicou uma tarde inteira para falar sobre um passado de luta, mas de
muita fé e esperança. A Dom Cláudio Hummes, pela entrevista, concedida
na Rádio Imaculada Conceição, e que se transformou em uma fonte
importante para este trabalho. Sua atuação nesta Diocese jamais será
esquecida.
Agradeço a oportunidade de pesquisar no CPV, um lugar para
respirar história. À Luísa que, com zelo, acompanha e contribui para que
este espaço de memória ainda resista em São Paulo. Ao Jornal Diário do
Grande ABC, por permitir investigar em seus arquivos. Ao Centro de
Memória de São Bernardo do Campo, que emprestou livros e permitiu
escanear documentos e fotografias para integrar este trabalho, agradeço a
gentileza da funcionária Angélica. Ao CEDIC-PUCSP, CPDoc FGV, Brown
University (Estados Unidos), que se empenham em disponibilizar ao
público documentação importante sobre a história do Brasil.
À Prof. Paula, pelas aulas maravilhosas do curso de História e pelo
incentivo para que eu tentasse ingressar no mestrado da PUC-SP. Ao Prof.
Fernando Camargo, pela amizade e contribuição valiosa.
A todos os colegas de curso com os quais tive a oportunidade de
partilhar aprendizado, experiências e amizade: João Teófilo, Daniella, Ana,
Kiki... Sucesso a todos!
Ao amigo Paulo Henrique, pela presença carinhosa. Nossos cafés
filosóficos ecoaram também nestas páginas. Encontrá-lo no meio deste
caminho foi um presente da vida. Sua inteligência e clareza me ajudaram

6
a organizar melhor as ideias e a encontrar saída para os problemas,
fossem estes acadêmicos ou não. Obrigada.
Agradeço aos Professores do Mestrado em História da PUC-SP, que,
de fato, participam de todo processo de construção e elaboração da
pesquisa com sugestões, conversas e muito carinho também. Em especial,
Prof.ª Estefânia, Prof.ª Maria do Rosário, Prof. Heloisa, Prof.ª Olga, Prof.ª
Izilda, Prof. Amílcar.
Aos Professores Luís Antônio Dias e Fabiana Scoleso que,
criteriosamente, me avaliaram na banca de qualificação e lançaram luz
sobre esta pesquisa. Obrigada por aceitarem estar nesta banca de defesa.
Ao Professor Antonio Rago, com admiração. Agradeço pela
orientação neste período, pela força nos momentos difíceis, pelas
conversas sobre o trabalho e sobre a vida. Uma mente brilhante e um
coração que transborda generosidade.
Agradeço a Capes e ao CNPq, que incentivaram e viabilizaram a
concretização deste desafio concedendo bolsas estudos, sem as quais este
feito não seria possível.
A todos os amigos que em algum momento partilharam desta
trajetória. Obrigada.
Pela vida e suas contradições, presente de um Deus que jamais
desiste de amar.

7
RESUMO

SERVO, C. R. N. A atuação da Diocese de Santo André durante a


Ditadura Civil-Militar nos episcopados de Dom Jorge Marcos de
Oliveira e Dom Cláudio Hummes (1964 – 1980). 2016 156 f.
Dissertação (Mestrado) – História, Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo, São Paulo 2016.

O presente trabalho explora algumas das questões vivenciadas no âmbito


da Diocese de Santo André, localizada na região, então, conhecida como o
maior parque industrial da América Latina, no ABC Paulista, zona
metropolitana do Estado de São Paulo, entre os anos de 1964 e 1980,
período de Ditadura Civil-Militar no Brasil. Para esta análise, consideramos
as iniciativas sociais discutidas, sobretudo, a partir do Concílio Vaticano II,
e com mais veemência na América Latina, nos encontros das Conferências
Episcopais de Medellín, em 1968 e Puebla, em 1979.

Partindo da atuação das figuras de Dom Jorge Marcos de Oliveira e Dom


Cláudio Hummes, procuramos percorrer momentos históricos importantes
para a luta dos trabalhadores da região e o apoio que a Igreja pode
oferecer através de seus movimentos, num período de recessão
econômica, problemas sociais, repressão e intolerância do Estado
Brasileiro.

Para compreender este contexto, nos apoiamos na leitura histórica e


crítica sobre o período, documentos que conservam resquícios desta
época, em experiências de sujeitos que viveram este tempo e nos
documentos de orientação pastoral da Igreja Católica.

As iniciativas de D. Jorge Marcos de Oliveira e Dom Claudio Hummes


influenciaram a ação da classe operária no ABC Paulista e participaram do
processo de reorganização sindical em fins da década de 1970, resultando
nas grandes movimentações grevistas e que, consequentemente,
refletiram no processo de abertura política.

Palavras-chave: 1 – Diocese de Santo André. 2 - Ditadura Militar. 3 –


Igreja Católica. 4 – D. Jorge Marcos de Oliveira. 5 – D. Cláudio Hummes.

8
ABSTRACT

SERVO, C.R. N. The role of The Roman Catholic Diocese of Santo


Andre during the Civil-Military Dictatorship in the episcopates
of Don Jorge Marcos de Oliveira and Cláudio Hummes (1964-
1980). 2016 156 f. Dissertação (Mestrado) – História, Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo, São Paulo 2016.

This paper explore some issues experienced within the Roman Catholic
Diocese of Santo André, located in the region known as the largest
industrial park of Latin America, ABC Paulista, at the metropolitan area of
the city of Sao Paulo, between 1964 and 1980, period of Civil-Military
Dictatorship in Brazil. For this analysis, we considered social initiatives
discussed, above all, from the Second Vatican Council, and
with more vehemence, in Latin America, in the meetings of the Episcopal
Conferences of Medellin, 1968, and Puebla, 1979.

Based on actions promoted by Don Jorge Marcos de Oliveira and Don


Claudio Hummes, we have tried to go through important historical
moments about the struggle of the workers of the region and the support
offered by the Catholic Church, through its movements, in a period of
economic recession, social problems, political repression and intolerance
by the Brazilian State.

To understand this context, we get support on historical and critical


reading about the period, documents that retains vestiges of that time,
subject who lived their experiences that time and pastoral guidance
documents from the Catholic Church

The Don Jorge Marcos de Oliveira and Don Claudio Hummes initiatives
influenced the actions of the working class in ABC Paulista and
participated in the process of reorganization of labor unions in the late
1970’s, resulting in big strike movements that, therefore, reflected in the
process of political opening.

Keywords: 1 - Roman Catholic Diocese of Santo André. 2 - Military


Dictatorship. 3 - The Catholic Church. 4 - d. Jorge Marcos de Oliveira. 5 –
d. Cláudio Hummes.

9
SIGLAS E ABREVIAÇÕES

ABC Sigla que correspondente às cidades de Santo André, São


Bernardo do Campo, São Caetano do Sul, Diadema, Mauá,
Ribeirão Pires e Rio Grande da Serra.
AC Ação Católica
ACB Ação Católica Brasileira
ACO Ação Católica Operária
AESP Arquivo do Estado de São Paulo
AI-5 Ato Institucional n.º 5
AP Ação Popular
AUC Ação Universitária Católica
CAMDE Campanha da Mulher pela Democracia
CEB Comunidade Eclesial de Base
CELAM Conselho Episcopal Latino Americano
DER Departamento de Estradas e Rodagens
FNT Frente Nacional do Trabalho
IBAD Instituto Brasileiro de Ação Democrática
IPES Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais
JOC Juventude Operária Católica
JUC Juventude Universitária Católica
MIA Movimento Intersindical Antiarrocho
MR-8 Movimento Revolucionário 8 de Outubro
PAEG Plano de Ação Econômica do Governo
PCB Partido Comunista Brasileiro
PCdoB Partido Comunista do Brasil
PO Pastoral Operária
SAB Sociedade Amigos de Bairro
SAF Sociedade dos Amigos das Favelas
SNI Serviço Nacional de Informações
UCF União Cívica Feminina

10
LISTA DE FIGURAS

Figura 1 Recorte da nota no jornal Estado de São Paulo sobre a


inauguração da Diocese de Santo André.
Figura 2 Ilustração do Estado de São Paulo e a região do ABC Paulista
em colorido.
Figura 3 Primeira página do Jornal “Ultima Hora” e a chamada na parte
superior para a Carta de Dom Jorge a Castelo Branco.
Figura 4 Cabeçalho do memorando produzido pelo Consulado dos
Estados Unidos, em 1965, contendo denúncias sobre as
atividades de D. Jorge Marcos de Oliveira.
Figura 5 Cópia do memorando produzido pelo Consulado dos Estados
Unidos, em 1965, contendo denúncias sobre as atividades de
D. Jorge Marcos de Oliveira. Conteúdo do item 5.
Figura 6 Cópia do memorando produzido pelo Consulado dos Estados
Unidos, em 1965, contendo denúncias sobre as atividades de
D. Jorge Marcos de Oliveira. Comentário.
Figura 7 Recorte de nota publicada no jornal “O Estado de São Paulo”
sobre a sucessão de Dom Jorge na Diocese de S. André.
Figura 8 Cópia de Panfleto divulgado como da Pastoral Operária da
Diocese de Santo André.
Figura 9 Cópia de cartaz divulgando evento do dia 1º de Maio no ABC

11
LISTA DE FOTOS

Foto 1 Capela Nossa Senhora do Perpétuo Socorro no bairro DER, em


São Bernardo do Campo.

Foto 2 D. Jorge Marcos de Oliveira, paramentado, à frente, entre


operários.

Foto 3 Dom Claudio Hummes cumprimenta operários e suas famílias


em greve no ABC, 1980.

Foto 4 Dom Claudio Hummes celebra missa com a presença de Lula


durante a greve no ABC, 1980.

Foto 5 Igreja Matriz de São Bernardo e os trabalhadores em greve.


(1980)

Foto 6 Tropas da polícia indo embora de São Bernardo no dia 1º de


Maio de 1980.

12
ANEXOS

Anexo 1 Carta de Dom Jorge Marcos a Castelo Branco

Anexo 2 Recorte de Manchete e Notícia publicada no Jornal


Estado de São Paulo, sobre encontro entre Lacerda e D.
Jorge Marcos de Oliveira

Anexo 3 Recorte de nota do Jornal Estado de São Paulo sobre


Mensagem de Dom Claudio Hummes a respeito da
situação da classe trabalhadora.

13
SUMÁRIO

Introdução .................................................................................. 15

1. O ABC da Diocese de Santo André: Aggiornamento e


Modernização ........................................................................ 40
1.1 A fundação de uma Diocese, a formação de uma região .............. 41
1.2 Concílio Vaticano II: Aggiornamento? ........................................ 52
1.3 Diocese de Santo André: Fé, política e classe operária. ................ 63
2 Dom Jorge Marcos de Oliveira: Bispo dos Operários ............... 80
2.1 Dom Jorge: Pastoralidade ........................................................ 93
3 Dom Cláudio Hummes: Por uma igreja acolhedora ............... 101
3.1 A Pastoral Operária .............................................................. 111
3.2 As greves de 1979 ................................................................ 116
3.3 As greves de 1980 ................................................................ 119
4 Considerações ...................................................................... 125
5 Bibliografia ........................................................................... 129
Referências e Fontes de Pesquisa ............................................. 133
Anexos ..................................................................................... 140

14
INTRODUÇÃO

Em 2015, a Diocese de Santo André recebeu a quinta nomeação de


bispo para assumir esta igreja local desde que foi fundada, em 19542.
Seus 60 anos de história, foram marcados por atuações episcopais bem
diferentes, embora, numa concepção canônica da própria Igreja Católica,
o comum exercício do ofício do bispo diocesano deva centrar-se na
santificação e educação de seu clero e comunidade de fiéis3. Mas, assim
como a composição de um texto ganha os contornos de personalidade e
pensamento de seu autor, também o ato de administrar uma instituição,
considerando as complexidades inerentes à missão, pode seguir a mesma
regra. Partindo deste pressuposto, tomamos a liberdade, neste estudo, de
considerar as formas de atuação de dois dos cinco prelados que
trabalharam pela Diocese de Santo André: Dom Jorge Marcos de Oliveira e
Dom Claudio Hummes. Ambos conheceram de perto a realidade desta
igreja no ABC Paulista, região de forte concentração industrial e operária
entre os anos de 1968 e 1980, um período de lutas e contradições
políticas e sociais. Frente a estes desafios tinham em vista a proposta de
atualização da Igreja, apresentada pelo Concilio Vaticano II e,
coparticipada nos países da América Latina, através das Conferências
Episcopais de Medellín (1968) e Puebla (1979).
Esta pesquisa coincidiu se desenvolver no encalço dos primeiros
passos do primeiro papa latino americano4: um argentino, de nascimento
Jorge Mario Bergóglio, que escolheu para seu pontificado o nome do santo
conhecido como o Pobre de Assis, Francisco5. Bergóglio não é franciscano,

2
O atual bispo da Diocese de Santo André é Dom Pedro Carlos Cipollini (2015-).
Precedido por Dom Nelson Westrupp (2003-2015), Dom Décio Pereira (1997-2003), Dom
Claudio Hummes (1975-1996) e Dom Jorge Marcos de Oliveira (1954-1975).
3
DE DIREITO CANÔNICO, CÓDIGO. Promulgado por João Paulo II, Papa. cân. 375*-§ 1-
2; São Paulo: Loyola, 2001.
4
Papa Francisco assumiu seu pontificado em 13 de Março de 2013.
5
A pobreza de Francisco de Assis se traduziu para além da esfera material. Para ele, ser
pobre era também ser despojado, desapegado, controlar o egoísmo que mora
9
é jesuíta, mesma ordem religiosa que há 500 anos, com colonizadores
europeus, avançou neste território e imperou um catolicismo sobre povos
autóctones que se perpetuou para as gerações posteriores, inaugurando a
tradição do “continente cristão”, presente até hoje. Em visita à América do
Sul, em julho de 2015, ao participar do II Encontro Mundial dos
Movimentos Populares, na Bolívia, Francisco pediu perdão pelas ações da
Igreja contra os povos indígenas neste continente, no período de
colonização. Segue o trecho do discurso:

Digamos assim: NÃO às velhas e novas formas de colonialismo.


Digamos SIM ao encontro entre povos e culturas. Bem-
aventurados os que trabalham pela paz. E aqui, quero deter-me
num tema importante. É que alguém poderá, com direito, dizer:
‘Quando o Papa fala de colonialismo, esquece-se de certas ações
da Igreja’. Com pesar, vo-los digo: cometeram-se muitos e graves
pecados contra os povos nativos da América, em nome de Deus.
Reconheceram-no os meus antecessores, afirmou-o o CELAM, o
Conselho Episcopal Latino-americano, e quero reafirmá-lo eu
também. Como São João Paulo II, peço que a Igreja – e cito o que
ele disse – ‘se ajoelhe diante de Deus e implore o perdão para os
pecados passados e presentes dos seus filhos’. E eu quero dizer-
vos, quero ser muito claro, como foi São João Paulo II: Peço
humildemente perdão, não só para as ofensas da própria Igreja,
mas também para os crimes contra os povos nativos durante a
chamada conquista da América.6

O trecho de fala parece soar inovador, mas Francisco assinala que


o gesto de reconhecimento deste erro da Igreja participou da pauta de

naturalmente no homem. Mas não era uma aceitação inócua da realidade social.
Francisco transcendeu a esfera humana, para buscar no Deus em que acreditava as
respostas para as angústias de cada ser. No artigo em que analisa as Admoestações de
Francisco de Assis, Victor Silva assinala as características do discurso do santo católico e
o modo como ele interagiu com as formas sociais da cidade, lugar, por excelência de
seus sermões. “Francisco de Assis se relaciona estreitamente com o excluído a ponto de
nomear a si e a todos os irmãos franciscanos como o menor da sociedade – irmãos
menores – prontos a servirem aquele que é leproso, pobre, enfim, os que ficam à
margem da sociedade”. Seu discurso é também resposta do “homem urbano em busca
de uma identidade, de uma tradição e de um propósito de vida”. SILVA, Victor Augustus
G. Francisco de Assis e a pobreza franciscana: a fundação de um discurso. História,
Questões e Debates, v. 43, 2005.
6
A íntegra do texto do Discurso do Papa Francisco para o II Encontro Mundial dos
Movimentos Populares, no dia 9 de Julho de 2015, está disponível online em:
http://w2.vatican.va/content/francesco/pt/speeches/2015/july/documents/papa-francesco_20150709_bolivia-
movimenti-popolari.html. Acesso em: Julho/ 2015.
10
seus antecessores (jesuítas e papas) e, por duas vezes, faz referência a
João Paulo II, canonizado no correr de seu pontificado. João Paulo II
elaborou o pedido de desculpas no contexto do encontro da CELAM, em
Santo Domingo – República Dominicana, em 19927, realizado no período
de comemorações do Descobrimento da América. No entanto, exatamente
oito anos antes, naquela mesma cidade, durante sua homilia, falou sobre
o “caráter providencial do descobrimento e evangelização da América”,
citando Leão XIII que, em 1892, se referiu à chegada de Colombo ao
continente como a “maior e mais maravilhosa ação humana que jamais
existiu”.8 Bento XVI, em 2007, após sua viagem ao Brasil, também para
um encontro da CELAM, fez uma rápida inferência à questão histórica das
investidas da Igreja contra os povos da América no início da colonização:
a recordação de um passado glorioso não pode ignorar as sombras que
acompanharam a obra de evangelização do continente latino-americano.9
É certo que, Wojtyla10 e Ratzinger11, dominaram a arte da eloquência em
seus pontificados e eram admirados pelo conhecimento dentro e fora do
contexto religioso e, por isso, se tornaram interlocutores na sociedade. Tal
como seus dois antecessores, Francisco também tem se mostrado um
importante mediador no mundo. No entanto, no caso que mencionamos,
vai para além de uma necessidade de cumprir um discurso protocolar.
Diante de uma plateia de camponeses, trabalhadores, sem-terra, sem
teto, indígenas, pela primeira vez, um papa reconhece que é preciso
sobrepor a “ditadura sútil” imposta pelo capital que, escraviza e arruína a
sociedade. Desta forma, ao trazer para este mesmo discurso o recolhedor
de lixo, o limpador, o artesão, o vendedor ambulante, o índio, este

7
LOWY, Michael. A Guerra dos Deuses: Religião e política na América Latina. Petrópolis:
Editora Vozes, 2000. p. 218.
8
Idem.
9
Audiência Geral em 23 de Maio de 2007. Disponível em:
http://w2.vatican.va/content/benedict-xvi/pt/audiences/2007/documents/hf_ben-
xvi_aud_20070523.html
10
Karol Jósef Wojtyla é o nome original do papa polonês João Paulo II. Esteve à frente da
Igreja Católica por 26 anos, entre 1978 e 2005.
11
Ratzinger é sobrenome do papa alemão Bento XVI. Seu nome de origem é Joseph
Aloisius Ratzinger. Ele dirigiu a Igreja Católica a partir de 2005 e em 2013, pediu a
renúncia sendo sucedido por Francisco.
11
reconhecimento parece ganhar um novo sentido e, de certa maneira, se
torna mais tangível, ainda que não apague as marcas nem transforme o
passado.
Francisco, desde que iniciou seu pontificado, traz consigo a marca
da reconciliação. Este signo esteve presente também durante sua visita ao
Brasil em 2013; nas duas encíclicas que escreveu12; nas audiências
públicas e restritas em que recebeu e ouviu líderes de governos, antigos
desafetos da Igreja Católica, pessoas afastadas da instituição; na viagem
a Cuba; no processo de organizar e tornar pública questões financeiras
vaticanas; na iniciativa e colaboração às ações de investigação e punição
a religiosos acusados de pedofilia; em sua direta intervenção nas questões
migratórias. Seria possível preencher aqui algumas páginas sobre a
conduta do atual Papa da Igreja Católica Romana, mas não é o caso.
Basta que este preâmbulo provoque alguns questionamentos, que
apontem para os paradoxos da instituição, fatores que perpassam dois
milênios de história e religião.
O biênio 2014-2015 sustentou alguns memoriais importantes para
este trabalho. Os cinquenta anos do Golpe Militar no Brasil, cinquenta
anos de conclusão do Concilio Vaticano II e, como apontado
anteriormente, sessenta anos de criação da Diocese de Santo André.
É certo que efemérides são essencialmente pontos de referências,
que tendem a cristalizar a história de certas instituições e sociedades,
marcar um tempo com suas contradições ou, como entende Hobsbawm,
“inculcar certos valores e normas de comportamento através da repetição,

12
As chamadas Cartas Encíclicas são documentos oficiais escritos, eventualmente, pelo
Papa em exercício, com o intuito de despertar a atenção e instruir - especialmente os
cristãos católicos, mas também toda a sociedade - sobre determinada temática, seja de
contexto doutrinário, moral, político, social ou econômico. Papa Francisco escreveu duas
encíclicas: a primeira, “Lumen Fidei” (Sobre a Fé), foi publicada poucos meses após o
início de seu pontificado, em 29 de Junho de 2013; a segunda, “Laudato Si” (Louvado
seja), um apelo à sociedade sobre a questão ambiental, teve seu texto divulgado em 18
de Junho de 2015. Ambas estão disponíveis online, respectivamente, em:
http://m.vatican.va/content/francesco/pt/encyclicals/documents/papa-
francesco_20130629_enciclica-lumen-fidei.html e
http://w2.vatican.va/content/francesco/pt/encyclicals/documents/papa-
francesco_20150524_enciclica-laudato-si.html.
12
o que implica, automaticamente, uma continuidade em relação ao
passado”.13 Quando nos referimos à questão do Golpe, não é possível
tratá-lo como um fato comemorativo, mas é um marco. Algumas
universidades e outras entidades, ao organizarem ações para discutir os
50 anos do evento de 64, trataram-no como uma descomemoração14, ou
seja, um ato na contramão do episódio, partindo de uma leitura crítica
desta realidade histórica. Isso aponta para um novo modo de se
considerar a história e, conforme Carlos Fico, relevante para fomentar a
discussão, ainda que, no caso do golpe e seus desdobramentos, deva ser
entendido como um “fato importante, embora não grato”15.
Quanto ao Concílio Vaticano II, transcorrido meio século de seu
término, esta discussão se torna lógica e interessante neste momento em
que um não europeu assume o cargo mais importante da Igreja Católica e
desperta atenção ao tratar de temas cotidianos e complexos, sob um
ângulo pouco explorado por seus antecessores pós-conciliares. Francisco
parece estar injetando nas estruturas desta instituição cristã uma dose de
vigor, extraída em boa medida do Vaticano II.
Sob a ótica de renovação das estruturas internas da igreja, pode-
se considerar que o Concílio foi um divisor de águas para a Igreja
Católica:

o fim de uma época e o início de outra, pois encerrou, de certo


modo, a longa fase inaugurada com o Concílio de Trento (1545-
1563), fase de ruptura com o nascente mundo moderno e de
confronto com as correntes espirituais, culturais e políticas que
emergiram do conjunto da Renascença e, de modo particular, da
Reforma Protestante 16.

13
HOBSBAWM, Eric; RANGER, Terence (org.). A invenção das tradições. São Paulo: Paz e
Terra, 2012. p. 12.
14
O Núcleo de Estudos Culturais: Histórias, Memórias e Perspectivas do Presente da
PUC-SP, em parceria com a Diretoria Regional de Educação, da Prefeitura de São Paulo,
promoveu o evento Descomemorando o Golpe. As atividades do evento aconteceram
entre os dias 8 e 10 de Abril de 2014.
15
FICO, Carlos. Versões e controvérsias sobre 1964 e a ditadura militar. Revista
Brasileira de História, v. 24, n. 47, p. 29-60, 2004.
16
BEOZZO, José Oscar. A Igreja do Brasil no Concílio Vaticano II: 1959-1965. São Paulo:
Paulinas, 2005. p. 49.
13
É certo que avaliar a Igreja Católica somente sob o prisma pré e
pós-conciliar é uma forma simplista de estudar uma instituição de história
milenar e que, entre acertos e erros, contribuiu na formação teórica e
metodológica de algumas das ciências que hoje conhecemos. Não é nossa
intenção estudar o fenômeno do cristianismo, do catolicismo, da religião
ou atravessar os séculos de história da igreja, mas é imprescindível nos
deter na problemática do Concílio Vaticano II e, a partir dela, perceber
seu alcance nos limites da própria religião, como também seu emprego na
esfera cotidiana de cada indivíduo, participante ou não do contexto
religioso-cristão.
O que foi o Concílio Vaticano II? Apenas uma página da história
sem muita aplicação na prática da vida social? Suas resoluções teriam se
perdido no limiar dos anos oitenta? Ou podemos falar de um trabalho que
se concretizou aos poucos e, especialmente nos países latinos, revitalizou
o modo de estar e fazer história junto do povo?
Dom Claudio Hummes, um dos personagens desta história, o
segundo bispo da Diocese de Santo André, entende que, sobretudo, o
novo formato de celebração da missa, para o povo católico, tenha sido
fator mais perceptível do Concílio. Em entrevista, dirigida à veiculação em
uma emissora de rádio católica do ABC, ele assim afirmou:

“O que o povo mais viu e gostou, e viveu no dia a dia, foi a missa
em português, e a missa virada para o povo. Quer dizer, a missa
teve uma reforma muito grande. Também se tornou mais claro.
Mais... muito mais simples!”.17

17
HUMMES, Claudio. Cardeal Arcebispo emérito da Arquidiocese de São Paulo, Prefeito
Emérito da Congregação para o Clero. Esteve à frente da Diocese de Santo André por 21
nos, entre 1975 e 1996. Entrevista concedida à autora em 12 de Agosto de 2013, nos
estúdios da Rádio Imaculada Conceição, em São Bernardo do Campo, para veiculação
nesta emissora e, gentilmente, cedida para uso nesta pesquisa.
14
Os documentos resultantes das Conferências do CELAM – Conselho
Episcopal Latino Americano – realizadas em Medellín e Puebla18
contribuem para responder estas questões no horizonte da América
Latina. E, de fato, é o efeito que o Vaticano II produziu neste âmbito
territorial que consideramos na produção desta pesquisa. De que maneira
a Igreja trabalhou suas decisões conciliares em um continente já marcado
por uma história de exploração e colonização e, no momento do nosso
recorte, submetido a ditaduras e aos desígnios do capitalismo que, como
bem apresenta René Dreifuss, ganhara ampla aprovação nos setores da
classe média e no meio empresarial19?
No Brasil, entre controvérsias, a Igreja estabeleceu uma
plataforma de atuação, determinante para importantes embates que
refletiram no país. Delimitando ainda mais este campo de estudo
chegamos a São Paulo, que se tornou uma das referências urbanas do
Sudeste, polo industrial e fomento da economia nacional. Um estado com
características díspares seja na formação de sua população, na
diversidade de sua cultura ou na evidente divisão entre pobres e ricos,
operário e patrão. Este local foi espaço para a presença de uma igreja
também heterogênea, admitindo política e religião, conservadores e
progressistas, padre e povo, fora do altar, vivendo as concepções do dia-
a-dia, dispostos na vida em construção, dentro de uma sociedade regida
pelos ditames de um governo autocrático burguês.

18
CELAM – Conselho Episcopal Latino Americano foi criado em 1955 pelo Papa Pio XII
com a finalidade de promover uma interação entre os bispos das 22 Conferências
episcopais na América Latina. As reuniões são convocadas pelo Papa em decorrência da
necessidade de se tratar questões de cunho Pastoral da Igreja Católica referentes ao
território. Até hoje foram realizadas cinco assembleias do CELAM: em 1955, 1968, 1979,
1992 e 2007. Este trabalho busca nas reflexões e documentos resultantes de Medellín
(1968) e Puebla (1979) pistas para a compreensão da recepção do Concílio no âmbito
latino-americano.
19
Dreifuss considera esta categoria como uma “intelligentsia empresarial” (grifo do
autor), formada, sobretudo, por industriais, banqueiros e comerciantes. Ver DREIFUSS,
René A. 1964: A conquista do Estado: ação política, poder e golpe de classe. Petrópolis:
Vozes, 2008. p. 78.
15
O Golpe, suas interpretações e articulações

O que se convencionou chamar de “Ditadura Militar” no Brasil tem


dimensão mais complexa e subjetiva. Fôssemos incorporar ao vocábulo as
novas inferências históricas sobre este episódio, seria preciso uma lauda
apenas para designá-lo. Mas, não se trata de reinventar o termo ou
aglutinar informações que tracem de imediato uma súmula dos anos em
que o país esteve sob um governo autoritário pós-1964. Novas
perspectivas sobre o Golpe e seus desdobramentos possibilitaram articular
outras questões e sujeitos que, por conveniência ou desinteresse comum,
permaneceram no subsolo de muitas das discussões sobre o tema.
Debates que passaram à margem de abordagens importantes ou foram
traçados em caráter revisionista, relativizaram aspectos históricos
condicionantes para a tomada golpista e, consequentemente, de
consolidação da ditadura brasileira.20

A primeira operação realizada por essa “nova” literatura foi a de


deslocar a explicação daquele regime da problemática do
capitalismo. Sob o argumento falacioso segundo o qual conectar o
processo político à dinâmica econômica seria o mesmo que
“economicismo”, uma leitura “politicista” veio propor como
explicação para o golpe e a ditadura um suposto ”déficit
democrático” na sociedade brasileira, de acordo com o qual, nos
idos dos anos sessenta, tanto a direita quanto a esquerda seriam
igualmente “golpistas”.21

Uma parte da sociedade brasileira comprou o discurso revisionista,


nele se apoiou e continua se baseando, inclusive, quando sai às ruas para
pedir a volta da autocracia dos militares, tratando-os como “salvadores da
pátria” capazes de destituir os “corruptores” da nação.
Desta forma, para nós, pensar a questão da ditadura militar como
uma autocracia burguesa é, ao mesmo tempo, buscar seu nexo causal
que é mais profundo e sistêmico, presente num processo de formação

20
DE MELO, Demian Bezerra. Revisão e revisionismo historiográfico: os embates sobre o
passado e as disputas políticas contemporâneas. Marx e o Marxismo, v. 1, n. 1, p. 49-74,
2013.
21
Idem.
16
econômica dependente, situação plenamente ratificada pela burguesia
brasileira, identificada em Florestan Fernandes como “verdadeiras
‘vanguardas políticas’ do mundo capitalista” 22
. Para o golpe de 1964, essa
burguesia pareceu jogar para não perder. Planejou, articulou, aguardou a
chance histórica.
Ao final do governo de Juscelino Kubitscheck as primeiras sementes
do Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais - IPES e do Instituto Brasileiro
de Ação Democrática – IBAD foram lançadas23. Em novembro de 1961, o
IPES foi oficialmente reconhecido com o apoio de integrantes da Igreja
Católica, entre eles, o Arcebispo do Rio de Janeiro, Dom Jayme de Barros
Câmara. Sob a fachada de uma organização preocupada com o futuro e o
progresso do país, o IPES garantiu seu espaço, sob argumentos de:

“promover a educação cultural, moral e cívica dos indivíduos”,


“desenvolver e coordenar estudos e atividades de caráter social” e,
“por meio de pesquisa objetiva e discussão livre, tirar conclusões e
fazer recomendações que irão contribuir pra o progresso
econômico, o bem-estar social e fortificar o regime democrático no
Brasil”.24

Ora, com objetivos de tamanha “nobreza”, não foi um grande


problema convencer setores da sociedade brasileira, entre estes, os
militares, de que a formação do IPES poderia ser decisiva, não apenas
para o desenvolvimento econômico, social e tecnológico do país, mas
também como instrumento eficaz na luta contra a ideologia comunista.
O IPES era mantido principalmente por empresários de São Paulo e
do Rio de Janeiro e recebia subsídios também do governo dos Estados
Unidos. O instituto era presidido pelo General Golbery do Couto e Silva,
que não poupou esforços para, em 1964, criar o SNI – Serviço Nacional de
Informações, o qual dirigiu até 1967.25

22
Ver FERNANDES, Florestan. A Revolução Burguesa no Brasil: Ensaio de Interpretação
Sociológica. Rio de Janeiro: Editora Guanabara, 1987. p. 294.
23
DREIFUSS, op. cit., p. 174.
24
Idem, p. 176
25
Idem.
17
A burguesia viu no IPES/IBAD um aliado e, em março de 1964,
enxergou a ocasião sem a desperdiçar, como nos lembra Florestan
Fernandes:

Contudo, parece estar claro que os elementos que compõem a


dominação burguesa (especialmente as forças que representam a
grande burguesia industrial e financeira, bem como a burguesia
internacional, diretamente envolvida nesse jogo econômico e
político) compreenderam com clareza a oportunidade histórica com
que depararam e, depois de uma curta hesitação pendular,
trataram de aproveitá-la a fundo. 26

Ao tratar da contrarrevolução, em 1964, Florestan oferece algumas


chaves para explicar o “êxito relativo da burguesia brasileira nesse
movimento”:

As características demográficas, econômicas e sociais da sociedade


brasileira, que tornavam viável e fácil uma nova eclosão do
industrialismo e a aceleração do crescimento econômico com
colaboração externa; a assistência técnica, econômica e política
intensiva das nações capitalistas hegemônicas e da ‘comunidade
internacional de negócios’; a forte identificação das forças armadas
com os móveis econômicos, sociais e políticos das classes
burguesas e sua contribuição prática decisiva na rearticulação do
padrão compósito de dominação burguesa; a ambiguidade dos
movimentos reformistas e nacionalistas de cunho democrático
burguês e a fraqueza do movimento socialista revolucionário, com
forte penetração pequeno-burguesa e baixa participação popular
ou operária.27

Comprometida primeiro com sua sobrevivência28, a burguesia


vestiu-se de uma tradição golpista que viabilizou o Golpe de 1964 e, duas
décadas depois, serviu-se do “politicismo” para encetar uma nova
transição, garantindo-lhe continuidade.29
Esta discussão não está distante da categoria das instituições
religiosas, e, neste caso, da Igreja Católica. Não há dúvidas sobre as

26
FERNANDES, op. cit., p. 218.
27
Idem, p. 310.
28
Idem, p. 296.
29
RAGO FILHO, Antonio. O ardil do politicismo: do bonapartismo à auto-reforma da
autocracia burguesa. Projeto História (PUCSP), São Paulo, v. 2, p. 139-167.
18
diferentes formas de comprometimento e apreensão do contexto político e
social por fiéis, comunidades religiosas, clero e membros do episcopado.
Nas primeiras investidas dos militares na intenção de uma tomada
de poder, uma parcela da igreja se mostrava favorável30, tanto que as
Marchas da Família com Deus pela Liberdade tiveram êxito e, pode-se
dizer, foram decisivas para o Golpe de 1964.
Em 19 de Março de 1964, milhares de pessoas saíram em passeata
pelas ruas de São Paulo, para protestar contra o teor do discurso e
propostas de reformas de base de João Goulart, anunciadas no Comício da
Central do Brasil, em 13 de Março. Skidmore sugere que Goulart, diante
da pouca expectativa de ver aprovadas no Congresso quaisquer de suas
propostas de reformas, decidiu acolher a sugestão de alguns políticos
“nacionalistas radicais” e levar diretamente ao povo suas ideias. Essa
atitude foi considerada um claro afrontamento ao Congresso, estopim
para uma guerra velada. 31
Para a oposição e representantes da Igreja Católica, as iniciativas
do governo transformariam o Brasil num país comunista e ateu, de modo
que, ao ser convocada, a Marcha da Família com Deus pela Liberdade,
rapidamente ganhou vulto e aprovação da população conservadora do
país. Os setores da burguesia brasileira se aproveitaram da iniciativa e a
legitimaram com intensa campanha publicitária, divulgação através de
jornais32, associações religiosas e cívicas, anticomunistas e partidos
políticos. A organização do evento se deu, sobretudo, através da ação de

30
Conforme Thomas Skidmore, “a hierarquia da Igreja foi outra fonte de opinião de elite
que apoiou a intervenção militar. Em manifesto de 26 de maio um grupo de bispos
influentes elogiou o golpe notando que ‘as forças armadas intervieram a tempo de
impedir a implantação de um regime bolchevista em nosso país’”. SKIDIMORE, Thomas.
Brasil: De Castello a Tancredo (1964 – 1985). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989. p. 64.
31
Idem, p. 41.
32
O Jornal “O Estado de S. Paulo” em sua edição do dia 19 de Março de 1965, um ano
após a realização das Marchas da Família com Deus pela Liberdade, dedicou páginas
inteiras para relembrar o êxito que tiveram tais eventos no processo que culminou com a
“Revolução de Março”. Curiosamente, nesta mesma edição fora publicado um “Manifesto
à Nação” exaltando o regime instaurado e convocando a nação a zelar pelos direitos
constitucionais, entre eles: o ‘direito de expressão de pensamento’, o ‘direito de
representação’ e o ‘direito de locomoção’. Veículos de informações como o jornal acima
mencionado também tiveram papel relevante na concretização do Golpe Militar de 1964.
19
organismos como a Campanha da Mulher pela Democracia - CAMDE,
fundada no Rio de Janeiro, por padres católicos e esposas de empresários
cariocas; e da União Cívica Feminina - UCF, fundada por mulheres de
empresários e militares de São Paulo, em 1962. Estas entidades foram
amparadas financeiramente pelo IPES, além de garantirem aprovação
declarada do Governador do Estado de São Paulo, Adhemar de Barros e
sua esposa, Leonor Mendes de Barros, apoio estratégico para um
movimento com linha de frente formada majoritariamente por mulheres.
Sobre a participação feminina nas Marchas da Família, Solange de
Deus Simões atribui três papéis importantes para o subsequente sucesso
do Golpe: “terem sido as primeiras a agir; terem encorajado ‘homens sem
coragem’; terem incentivado e apelado para as Forças Armadas.” 33
As
passeatas pediam democracia, liberdade e um governo cristão através de
uma intervenção.
Com referência ao apoio da Igreja, é preciso considerar que não se
tratava de um consenso, e não foram poucos os religiosos e mesmo leigos
que, suspeitando da iminência de uma ação golpista, se posicionaram
contrários. No ABC não aconteceram marchas com o apoio oficial da
Igreja Católica, ainda que haja relato sobre a realização de um evento
após o Golpe, na Praça do Carmo, em Santo André, para comemorar seu
êxito34. Em entrevista, Dom Jorge Marcos explicou como se posicionou
sobre o fato:

A Marcha da Família com Deus pela Liberdade... Aquela foi feita


contra mim. Porque, justamente, naquele dia, pessoas minhas
amigas a quem no domingo eu tinha dado a comunhão, passando
na frente da minha casa, de terço na mão, rezando contra os
corruptos, mas, sobretudo, contra os subversivos que tinham
invadido a Igreja. Eu permiti várias reuniões na catedral e em
outras igrejas. E nunca me perdoaram isto. 35

33
SIMÕES, Solange de Deus. Deus, Pátria e Família: as mulheres no golpe de 1964.
Petrópolis: Vozes, 1985. p. 96.
34
SOBRINHO, Felipe Cosme Damião. Catolicismo e Militarismo no ABC Paulista: 1964 -
1985. 137 f. Monografia (Bacharelado em Teologia) Pontifícia Faculdade de Teologia
Nossa Senhora Assunção, São Paulo, 2009. p. 60.
35
OLIVEIRA, D. Jorge apud SOBRINHO, Felipe Cosme Damião. op. cit. p. 61.
20
Um dos padres com os quais conversamos, Padre José Mahon, ao
ser perguntado se teria participado de alguma, respondeu:

Primeiro, eu já percebi. Era claro que não... a ditadura não queria


nem a família, nem a liberdade e nem Deus. Queria dominar tudo.
Mas, eu... uma vez eu fui falar com Dom Jorge (sobre a marcha).
(D.Jorge) “Não, não vai fazer!”. Mas eu não tinha vontade. Não
teve na diocese (de Santo André). Eu acho que não. Não tive
conhecimento de nenhuma. São Paulo, sim. Mas, a diocese não. 36

No entanto, mesmo com a recusa de parte do clero e episcopado


brasileiro, não há como negar que as Marchas da Família tiveram êxito em
seu propósito. Pouco menos que quinze dias após, Goulart foi deposto e
por 21 anos o Brasil esteve sob uma ditadura Civil Militar, iniciada em 1º
de Abril de 1964.

A dinâmica da pesquisa

A construção da presente pesquisa se iniciou em 2012, no decorrer


de uma especialização na área de história e, embora já tivesse estudado a
temática da Ditadura Militar na graduação em Ciências Sociais, foi a partir
deste curso que se tornou mais clara a articulação que envolveu todo o
processo de preparação para o Golpe até a concretização e desenrolar de
uma ditadura. O aprofundamento, através dos livros, artigos, dissertações
e teses, trouxe não apenas conhecimento específico sobre o assunto, mas
também uma inquietação sobre as figuras envolvidas no episódio do Golpe
e no desencadeamento daquela autocracia burguesa, sobretudo, os
personagens que atuaram como oposição: políticos, estudantes,
professores, jornalistas, trabalhadores de todas as áreas, religiosos etc.
Homens e mulheres que se arriscaram e pagaram um preço alto pela
ousadia; moças e rapazes, cujas atuações, não foram meros devaneios
juvenis. De operários de chão de fábrica a importantes nomes intelectuais.
De artistas a membros de todas as denominações religiosas. Ninguém foi

36
MAHON, José. Padre da Ordem dos Filhos da Caridade. Entrevista realizada em
Janeiro/2015.
21
poupado por enfrentar os generais, nem mesmo uma das mais
respeitadas instituições no Brasil: a Igreja Católica.
Porém, falar de atuação da ‘Igreja’ na Ditadura Civil-Militar37 no
Brasil pode soar superficial se não houver o aprofundamento necessário
através de pesquisas em locais e situações específicas, considerando que
não foram poucas as regiões e ocasiões que dispuseram de sua
interferência e mediação. Dom Pedro Casaldáliga recebeu inúmeras
ameaças de morte por defender os trabalhadores rurais do Araguaia.
Helder Câmara ascendeu como um dos nomes na luta contra a repressão
e a favor da democracia, respeitado internacionalmente. Na arquidiocese
de São Paulo, o Cardeal Arns corria porões de delegacias na busca de
presos políticos, afrontando polícia e governo pelos direitos humanos. Se
pensarmos na ala conservadora da igreja, também é possível discorrer
sobre numerosas situações com pesquisas que apontam as atividades e
influência eclesial no campo político neste período. Sem contar os
movimentos como Ação Católica - AC, Ação Popular - AP, Comunidades
Eclesiais de Base – CEB’s, Organizações de Juventude, de trabalhadores,
de mulheres e tantos mais, fontes inesgotáveis de história ao longo da
ditadura. Neste trabalho, abordamos a práxis da Diocese de Santo André

37
As recentes pesquisas sobre o período 1964-1985 apontam para uma presente disputa
da memória. Os estudos sobre o Golpe e a Ditadura se iniciaram nos anos 90, mas
apenas recentemente se intensificou a produção bibliográfica sobre o tema. Antes da
década de 1960 a historiografia estava voltada para temas antropológicos, sobre
colonialismo, descobrimento etc. Houve, então, um deslocamento da discussão da
historiografia para um viés marxista-economicista. Com a Escola dos Analles acontece
uma transição da escola documental (dos Institutos Históricos) para uma história
preocupada com fatos presentes. Através desta renovação é possível ver o deslocamento
de paradigmas e atenções mais voltadas para temáticas emergentes. No entanto, a
abordagem do período ditatorial era quase uma exclusividade das Ciências Políticas, da
Sociologia e, atualmente, compõe pesquisas de praticamente todas as áreas e com muita
ênfase na historiografia. Esta preocupação da História atual com o tema levantou
diversas discussões e também suscitou algumas questões polêmicas e revisionistas como
a tese do “golpe dentro do golpe” ou da “ditadura branda”. Enfim, o aprofundamento da
problemática permitiu uma análise mais apurada não apenas dos fatos, mas também dos
agentes envolvidos na ação que findou em um Golpe em 1964. De forma que, hoje,
podemos traçar um diagnostico que nos permita, do ponto de vista histórico, não apenas
revisar, mas também esclarecer aspectos deste período ainda atingidos por certo
obscurantismo. Importante lembrar que as novas pesquisas, já nos permitem falar, não
apenas em um Golpe que culminou em Ditadura Militar, mas em uma ação conjunta,
Civil-Militar. FICO, Carlos. Versões e controvérsias sobre 1964 e a Ditadura Militar.
Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 24, n. 47, p. 29-60, 2004.
22
entre os anos de 1968 e 1980, tendo como parâmetro de ação o Concílio
Vaticano II, conhecido como a ‘Primavera da Igreja’38.
Pensar o envolvimento da Igreja Católica implicava, porém, certo
desprendimento pessoal com a entidade. Após trabalhar por muitos anos
dentro de movimento diretamente vinculado à Igreja39, era preciso
compreender mais profundamente sua história, seus conceitos, seus
documentos e sua influência na sociedade daquele momento, de forma
que passamos a investigar esta atuação também para além dos cânones
católicos, seus tratados e regras. Quando se está muito ligado a um
objeto que se pretende estudar é custoso apreendê-lo sem uma medida
de sentimento particular que não interfira na compreensão da
generalidade. Portanto, durante este processo, buscamos a parcela
necessária de distanciamento sugerida nos escritos de Walter Benjamin40,
a fim de desenvolver uma análise e narrativa coerentes com o cuidado de
encontrar as peças que formam o cenário com seus personagens e
motivações de suas atuações.

38
Quem primeiro valeu-se da expressão “Primavera da Igreja”, como referência ao
Concílio Vaticano II, foi o Papa João XXIII: “A todo momento ele deixava transparecer
seu entusiasmo e otimismo, sua alegria e contentamento, saudando essa iniciativa com
imagens que evocavam sua infância nos campos de Soto Il Monte. Não se cansava de
comparar o Concílio à primavera e às suas flores: ‘A ideia do Concílio não amadureceu
como fruto de prolongada consideração, mas qual flor espontânea de inesperada
primavera’”. BEOZZO, José Oscar. O Concílio Vaticano II: etapa preparatória. In:
Vaticano II: 40 anos depois, São Paulo: Paulus, 2005.
39
Como funcionária por quase 20 anos da Organização Religiosa Milícia da Imaculada,
que mantém a Rádio Imaculada Conceição 1490 AM, instalada na cidade de São
Bernardo do Campo, Diocese de Santo André, pude apreender conhecimentos sobre a
Igreja Católica, sua historia, sua missão, seus delineamentos, movimentos e
personagens. A organização à qual me refiro é uma referência nos meios de comunicação
católicos, principalmente por conseguir acolher a ‘fala’ de todos os setores da igreja no
Brasil, abrindo espaço para um diálogo construtivo e de respeito em torno dos
ensinamentos religiosos, articulando a vivência cristã à realidade e contemporaneidade
social.
40
Benjamin, ao discorrer sobre o conceito de história, propõe um ‘distanciamento’ do
estudioso ao seu objeto. Tal distancia permitiria ao historiador uma análise ‘a
contrapelo’, reconhecendo todos os sujeitos envolvidos no contexto, de forma especial,
aqueles que ficaram à margem da narrativa oficial, promovendo uma justa percepção
desta memória cultural. Ver BENJAMIN, Walter. Sobre o Conceito da História. In: Magia e
Técnica, Arte e Política: Ensaios sobre literatura e história da Cultura. São Paulo:
Brasiliense, 2012. Obras Escolhidas, v. 1. p. 244.
23
Pesquisar o passado, mesmo que seja um passado recente, é um
desafio. Afinal, não é possível ter ao certo a dimensão exata da
problemática que viveram os indivíduos daquele tempo, e, à medida que
os indícios deste passado chegam até nós, fazemos uma reconstrução e
interpretação desta história através de fragmentos de memórias. Edward
Thompson, diante da investigação a respeito dos trabalhadores ingleses e
seu comportamento frente ao novo industrialismo, adverte: “eles viveram
nesses tempos de aguda perturbação social, e nós não. Suas aspirações
eram válidas nos termos de sua própria experiência” .
41

Exceto pelo receio de uma possível parcialidade que desfigurasse


os objetivos da pesquisa, a familiaridade e trânsito dentro da religião
católica favoreceu a construção deste estudo, mais diretamente em dois
pontos: na comunicação com o clero, religiosos e leigos, especialmente
aqueles pertencentes à Diocese de Santo André e o acesso e compreensão
de documentos próprios da Igreja Católica, tendo em vista que sua
linguagem nem sempre rege a favor de uma leitura secular. Para tal,
contamos com a ajuda de especialistas neste campo. Uma destas pessoas
é o historiador, Professor e Padre José Oscar Beozzo, referência
internacional no estudo do Vaticano II. Com ele tivemos a oportunidade
de dialogar e compreender melhor como o Concílio foi apreendido no
contexto latino-americano. Sua bibliografia nos acompanha ao longo deste
trabalho de pesquisa.
Houve o cuidado de uma interação com fatores relacionados à
Igreja Católica, seja no âmbito de sua atuação dentro da sociedade, seja
na compreensão de sua mensagem teológica e eclesiológica no momento
abordado. Os documentos pastorais, encíclicas, discursos e até mesmo
homilias foram meios de informação sobre a Igreja na ocasião e, à medida
que avançou nossa pesquisa, percebemos as diferentes formas de
engajamento e as relações desta entidade com a sociedade.

41
THOMPSON. Edward Palmer. A Formação da Classe Operária Inglesa: A Árvore da
Liberdade. 4ª Edição. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 1987. p. 13.
24
A renovação de uma Igreja centralizadora veio no momento
propício. Alinhar-se ao movimento geral era quase uma condição num
século que concebeu duas grandes guerras, além de um conflito ideológico
que suscitou um combate tão forte quanto as armas da Segunda Guerra
Mundial. A Igreja que até a Revolução Francesa se considerara portadora
das repostas do mundo, já não encontrava na Bíblia e nem em seus
cânones explicações para as questões da modernidade42. Estas iam desde
a nova formatação política e econômica do mundo às de ordem moral e
propriamente religiosa. Considerando que as transformações do século XX
‘para todo planeta foram tão profundas quanto irreversíveis’, como afirma
Hobsbawm43, este fator pesou na decisão de também direcionar a
instituição para um novo processo.
Os resultados não demoraram muito a ser percebidos. A
convocação do Concílio Vaticano II foi uma iniciativa neste processo e foi
também impulso para mudanças almejadas especialmente pelos setores
progressistas da Igreja. Na América Latina, onde reside nosso interesse de
estudo, as determinações pós-conciliares surtiram efeitos práticos na
sociedade após 1968, ano em que foi realizada a Conferência de Medellín,
evento que melhor traduziu para o continente as principais questões de
ordem social. O Brasil de 1968 viu também o recrudescimento da Ditadura
Militar através do Ato Institucional n.º 5.44 A esta altura já era de
conhecimento da Igreja brasileira as violações de direitos humanos no
país45. Estava claro o suficiente a que viera a ditadura dos militares e para
quem estavam governando.

42
“A tendência geral do período desde 1789 até 1848 foi, portanto, de uma enfática
secularização. A ciência se achava em crescente conflito com as Escrituras, à medida que
se aventurava pelos caminhos da evolução”. HOBSBAWM, Eric. A Era das Revoluções:
1789 – 1848. São Paulo: Paz e Terra, 2012. p. 352.
43
HOBSBAWM, Eric. A Era dos Extremos: O Breve Século XX. São Paulo: Companhia das
Letras, 1995. p. 18.
44
A CELAM (Conferência Episcopal Latino Americana) realizada em Medellín, Colômbia,
aconteceu entre 26 de agosto e 6 de setembro de 1968. No mesmo ano, em 13 de
Dezembro o General Costa e Silva decretou o AI-5.
45
Em 1969 fora preparado um relatório com acusações diretas ao governo brasileiro com
a descrição de todo tipo de maus tratos a presos políticos e perseguições em todo o país,
este dossiê foi entregue ao Papa Paulo VI e Roma também se apressou repreender tais
25
Em Medellín, fora apresentada em tom de denúncia a situação de
miséria de alguns países da América Latina. Os participantes puderam ver,
através de fotos, uma realidade escondida pelos governos ditatoriais. A
plateia que assistia à apresentação pasmou-se. Para muitos, as cenas
eram uma triste novidade.46
Religião, política e sociedade se encontravam, se reconheciam, se
estranhavam e se hostilizavam.47 Setores mais progressistas da Igreja
Católica puderam respirar uma teologia mais libertadora e mais humana
avançando na consciência de uma sociedade com mais igualdade. Essa
teologia emanava, sobretudo, da prática pastoral, mas também era fruto
de um novo modelo teórico, assimilado por teólogos latinos em seus
estudos nos institutos de teologia da Europa. Desta fusão resultou uma
teologia de “reflexão crítica”, interpretada em Gustavo Gutiérrez, como
“um pensamento crítico de si mesmo, de seus próprios fundamentos. Só
esse pode fazer dela um discurso não ingênuo, consciente de si, em plena
posse de seus instrumentos conceptuais”.48
Este pensamento incomodava militares, burguesia e a ala
conservadora católica brasileira; todos estes se armaram como puderam a
fim de combater a evolução daquilo que era considerado como ‘teorias
socialistas’ e subversivas, que se disseminavam como catequese no meio
do povo por meio de estudos bíblicos, homilias, discursos, reuniões
paroquiais e através de grupos como a Juventude Operária Católica e
Juventude Universitária Católica (JOC e JUC), as Comunidades Eclesiais de
Base (CEB) e Ação Popular (AP).49

práticas. Ver: SKIDMORE, Thomas. Brasil: de Getúlio a Castelo. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, v. 8, 1982. p. 179.
46
SYDOW, Evanize; FERRI, Marilda. Dom Paulo Evaristo Arns: um homem amado e
perseguido. Editora Vozes, 1999. p. 88.
47
Vale lembrar que este trabalho se limita a analisar a atuação da Igreja Católica dentro
do período estabelecido. No entanto, não se pode esquecer-se da ação de lideranças
religiosas de praticamente todas as denominações, cristãs ou não, que se empenharam
na luta contra os desmandos da Ditadura Militar Brasileira.
48
GUTIÉRREZ, Gustavo. Teologia da Libertação: Perspectivas. Petrópolis: Vozes, 1986. p.
23.
49
O Movimento da AP (Ação Popular) tem sua origem em Belo Horizonte MG, em 1962 e
descende de outros movimentos cristãos como a JUC (Juventude Universitária Católica).
26
A presença destes movimentos não era exatamente uma novidade.
A estrutura do que conhecemos como JUC, por exemplo, antecede,
inclusive, a Ação Católica, considerada fonte formadora para as futuras
pastorais e organizações populares ligadas à Igreja50.
Interessante também refletir sobre a Teologia da Libertação que
surge na porção latino-americana, com entusiastas em vários países. No
Brasil, uma das referências é Leonardo Boff. Seu livro Jesus Cristo
Libertador, escrito em 1970, foi motivo de divisão e perseguição, ao
sustentar a ideia de um novo modelo de pregação, em que o Cristo é
associado diretamente a alguém que fomenta uma atitude de libertação.
O eixo desta nova teologia não está nos sacramentos, mas na leitura e
interpretação bíblica, participação na comunidade, compromisso social e
uma direta atuação dos leigos como sujeitos neste processo.
Estas características foram associadas como propensão àquilo que a
igreja mais se empenhara em combater naquele século: o marxismo. E
embora não se tratasse de uma teologia marxista, algo que seria
contraditório a uma proposta e experiência religiosa, a Teologia da
Libertação toma como referencial de análise a dialética de Marx, a fim de

As CEBs são comunidades ligadas a Igreja Católica, cujo pensamento e reflexão estão
vinculados à teologia da libertação. Tiveram maior evidência e atuação entre os anos de
1970 e 1980 no Brasil e na América Latina. Sandra Portuense nos oferece um bom
trabalho ao tratar da atuação da Ação Popular no âmbito do ABC Paulista. Sua
investigação está centrada em repercutir a experiência de integrantes do movimento
entre as décadas de 1950 e 1970, mas a autora traça um histórico da trajetória do
movimento, que contribui para compreendermos melhor seus objetivos. Cf. PORTUENSE
DE CARVALHO, Sandra A. Experiências de Solidariedade e Política – CB-22 – A Ação
Popular no Jardim Zaíra (1958-1970). 184 f. Dissertação (Mestrado em História Social)
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2013. Outra pesquisa muito
interessante é a da historiadora Maria Blassioli. Sua dissertação de mestrado sobre a
ação da JOC na Diocese de Santo André recompõe um percurso importante para a
compreensão do movimento e sua influência na questão operária. Cf. MORAES, Maria
Blassioli. A Ação Social Católica e a Luta Operária: a experiência dos jovens operários
católicos em Santo André (1954 - 1964). 207 f. Dissertação (Mestrado em História
Social) Universidade de São Paulo, São Paulo, 2003.
50
Os primeiros passos da Juventude Universitária Católica são dados no início da década
de 1930. Nesta época era conhecida como Ação Universitária Católica. Em 1935, a AUC é
incorporada como uma das seções da Ação Católica, oficializada no Brasil, com o objetivo
de formação dos leigos para uma atuação cristã na família e na sociedade.
Descreveremos melhor estes movimentos no segundo capítulo desta dissertação. Ver:
MAINWARING, Scott. Igreja Católica e Política no Brasil: 1916-1985. São Paulo: Editora
Brasiliense, 1989. p. 84.
27
observar a sociedade, perceber suas contradições, combater injustiças e
propor ações que promovam os indivíduos, neste caso, até mesmo como
seguimento ao apelo de Medellín, os pobres. Tratava-se de uma fé com
engajamento social.
As ideias da Teologia da Libertação alçaram voo com as
Comunidades Eclesiais de Base e outros movimentos de pastoral social,
mas foram duramente repreendidas e rejeitadas por boa parte da igreja e
seus apoiadores chegaram a ser perseguidos no período de
recrudescimento da Ditadura Militar.

As novas resoluções conciliares foram determinantes para uma


postura mais hodierna da Igreja Católica, mas há que reconhecer que sua
estrutura hierárquica e centralizadora não participou deste processo de
renovação. O caráter doutrinário entranhado nos discursos, audiências,
alocuções papais e até mesmo nos documentos resultantes do Concílio
denotam que “nem a índole pastoral, nem o caráter ecumênico excluem
uma intenção doutrinária”.51 A doutrina condiciona as ações e direciona os
rumos para a Igreja. Não é coincidência que o Concílio, iniciado em 1962,
receba o mesmo prenome daquele encerrado prematuramente em 1870,
quando irrompeu a Guerra Franco-Prussiana52, mas ainda em tempo de
proclamar o Dogma da Infalibilidade Papal53. Paulo VI, em seu discurso de
abertura da terceira sessão do Concílio Vaticano II lembrou:

51
Cf. VIER, Frederico; KLOPPENBURG, Boaventura. Compêndio do Vaticano II:
Constituições, Decretos e Declarações. Petrópolis: Vozes, 1974. p. 15.
52
Para outras informações sobre o Concílio Vaticano I, consultar: SOUZA, Ney;
GONÇALVES, Paulo Sérgio L. Catolicismo e Sociedade Contemporânea: Do Concílio
Vaticano I ao contexto histórico-teológico do Concílio Vaticano II. São Paulo: Paulus,
2013. p. 77.
53
Instituído no Concílio Vaticano I, o Dogma da Infalibilidade Papal, de acordo com o
Código de Direito Canônico, torna-se aplicável quando: o Papa fala sobre a Fé e os
costumes; o Papa fala para toda a igreja; o Papa fala utilizando-se do Poder que,
segundo a tradição católica, foi dado a São Pedro, o primeiro dos Papas; o Papa se
pronuncia de forma definitiva sobre uma questão, condenando expressamente a ideia
contrária. Conforme o Cânone 749, parágrafo primeiro, “em virtude do seu cargo, o
Sumo Pontífice goza de infalibilidade no magistério quando, como supremo Pastor e
Doutor de todos os fiéis, a quem pertence confirmar na fé os seus irmãos, proclama por
um acto definitivo que tem de ser aceite uma doutrina acerca da fé ou dos costumes.”
28
Trata-se – dizia sua Santidade – de completar a doutrina que o
Concílio Vaticano I se propunha enunciar, mas que, sendo
interrompido por obstáculos exteriores, como sabeis, não pode
definir senão sua primeira parte... Temos de completar a
exposição desta doutrina para explicar o pensamento de Cristo
sobre sua Igreja (...). De muitas outras questões deverá tratar o
Concílio; mas o ensino conciliar a respeito da Igreja parece-Nos de
especial gravidade.54

Certos de que esta discussão não encontra o espaço suficiente


neste trabalho para se prolongar, convém, no entanto, salientar que,
como explicita Kloppenburg, o Concílio visualizava, sem dúvida, atingir o
objetivo de dialogar sua pastoralidade, mas o aggiornamento, tão
proclamado, se daria para a Igreja, partindo de uma discussão de sua
doutrina para, posteriormente, refletir nos ritos, catequese, abertura
social e Pastoralidade.
É inegável a contribuição do Concílio Vaticano II para um processo
de atualização da igreja na sociedade, como veremos mais adiante, mas é
preciso observar seu comprometimento com as questões sociais com
alguma cautela e sem idealismos.

As Fontes

Trabalhar com a História não é como tecer uma colcha de retalhos.


Parte do nosso desafio esteve no exercício de buscar nas fontes algumas
das respostas para a problemática que apresentamos nesta pesquisa. Esta
atividade se configurou num processo de investigação, arrecadação de
material, leitura, compreensão e sistematização dessas fontes e,
posteriormente, sua incorporação ao estudo. Cada nova informação
relevante trouxe luz ao tema e operou como uma engrenagem no
funcionamento de uma máquina complexa.

Texto disponível online em: http://www.vatican.va/archive/cod-iuris-


canonici/portuguese/codex-iuris-canonici_po.pdf. Acesso em Julho/2015.
54
Cf. VIER; KLOPPENBURG, op. cit., p. 16.
29
Para entender esta relação entre igreja e sociedade na
particularidade da Diocese de Santo André, lançamos mão de variadas
fontes de informação. São arquivos de organizações civis e religiosas,
documentos pastorais da Igreja Católica, panfletos, boletins de
movimentos sociais, jornais da região e de grande circulação. A fim de
não interferir na fluidez desta leitura, anexamos ao final dos capítulos
desta dissertação, uma lista relacionando as fontes utilizadas no trabalho.
Já há algum tempo, os pesquisadores das ciências humanas tem se
apoiado em outros recursos de investigação, apresentando resultados
interessantes na formulação e embasamento da pesquisa. Estes subsídios
alternativos se apresentam sob as formas de fotografias, cartas,
reportagens de jornais e revistas, documentação pública e privada,
relatórios, entrevistas, depoimentos de quem esteve envolvido ou
conheceu o episódio. É um modo de atualizar e renovar a memória no
tempo presente, uma construção do passado, coparticipada por muitos
sujeitos.55
Obviamente, estes recursos são utilizados à sombra de um aporte
historiográfico-científico, que fornece os pilares que irão sustentar a
pesquisa: “a história não só disciplina e enquadra a memória, como supõe
análise, interpretação e suporte teórico”.56 Sendo assim, convém dizer que
a problematização do nosso estudo está calcada no aprofundamento
teórico, adquirido através da participação nas disciplinas do curso de pós-
graduação de História Social da Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo e no referencial bibliográfico ao qual nos deparamos na trajetória de
formação acadêmica e no caminho de construção desta pesquisa.
Alguns dos depoimentos que constam em nosso estudo foram
gravados, transcritos e, sob o consentimento dos entrevistados, aparecem
com a finalidade de facilitar a compreensão sociopolítica do tempo

55
DELGADO, Lucilia de Almeida N. História Oral: Memória, tempo, identidades. Belo
Horizonte: Autêntica, 2010. p. 9.
56
Idem, p. 49.
30
abordado57. Igualmente, visa promover a fala destas pessoas como
sujeitos desta memória. Particularmente, nesta análise, nos limitamos à
alocução de alguns padres e religiosos que participaram de momentos
significativos da vida diocesana de Santo André e compartilharam conosco
sua compreensão e lembranças do período. Tivemos algumas conversas
mais informais com outros sacerdotes, religiosos e leigos da região que
contribuíram para nortear nosso caminho de pesquisa, mas ao visitarmos
Padre José Mahon, em Santo André e Frei Sebastião Quaglio, em São
Bernardo do Campo, tivemos acesso, com mais detalhes, a algumas das
histórias que retratam a atuação desta igreja nas sete cidades que
compõem a Diocese. Ambos conheceram e trabalharam com os dois
primeiros bispos de Santo André.
Em outro momento, encontramos o religioso, escritor e ativista
político Frei Betto, que nos recebeu em sua casa e falou sobre sua
experiência junto a Dom Claudio Hummes, quando por este, foi convidado
a conduzir e orientar a Pastoral Operária na diocese, permanecendo à
frente do movimento entre os anos de 1979 e 2002.
Cabe, no entanto, esclarecer que, por motivo do prazo, aliado ao
volume de informações que precisávamos assimilar no âmbito da
atividade de pesquisa, não foi possível trabalhar com maior quantidade de
relatos, incluindo o grupo de leigos58, indispensável neste processo
histórico.
Não obstante, acreditamos que este fator não tenha gerado
prejuízos ao resultado da pesquisa. Na carência destes testemunhos,
recorremos a outros estudos que, discutindo este processo histórico na

57
“Embora a história oral sempre seja associada com a ‘micro história’ devido ao seu
enfoque nas vidas individuais e seu modo de transmissão, o trabalho de seus
historiadores varia amplamente. A disposição dos caracteres pode ir da história de vida
de um indivíduo à reconstrução do cerne de um processo envolvendo milhões de
pessoas”. PORTELLI, Alessandro. História oral como gênero. Projeto História. Revista do
Programa de Estudos Pós-Graduados de História, São Paulo, n. 22, p. 9-36, Jun. 2001. p.
27.
58
Para a Igreja Católica, Apostólica e Romana, o leigo é a pessoa batizada na religião e
que não prestou os votos de pobreza, obediência e castidade, necessários para a vida
religiosa consagrada ou o sacramento da Ordem, direcionado para a vida sacerdotal.
31
diocese de Santo André, partindo de categorias específicas, se utilizaram
da metodologia da oralidade, para compor suas análises. É o caso, por
exemplo, de Sandra Portuense que, discutindo em sua dissertação de
mestrado as relações e tensões de um grupo da Ação Popular nesta
diocese, encontrou na narrativa dos integrantes deste movimento, a
motivação e o delineamento de seu trabalho, além de fornecer pistas para
pesquisas futuras.59
Cada vez mais a “história oral” se apresenta como um território
fértil na produção historiográfica. Alessandro Portelli, legitimado por sua
experiência neste recurso metodológico, observa a narrativa como um
“gênero de discurso no qual a palavra oral e a escrita se desenvolvem
conjuntamente, de forma a cada uma falar para a outra sobre o
passado”60 e acrescenta que este é, ao mesmo tempo, um discurso
“histórico” e “dialógico”.61 Em nossas poucas investidas por este campo
nesta pesquisa, foi possível perceber a complexidade em tomar as fontes
orais como instrumentos de análise. Para aqueles que apreciam e tem
vocação para ouvir, a “história oral” é uma forma aprazível de construção
da memória, e é, na mesma medida, desafio de leitura de um passado,
contado em meio a subjetividades, emoções e tensões, particularidades
que, requerem do historiador uma postura de discernimento e crítica, a
fim de conduzir estes diálogos com a coerência necessária à sua
abordagem, porém, com o devido respeito e consideração ao seu
narrador.
[...] recordar e contar já é interpretar. A subjetividade, o trabalho
através do qual as pessoas constroem e atribuem significado à
própria experiência e à própria identidade, constitui por si mesmo

59
PORTUENSE DE CARVALHO, Sandra A. Experiências de Solidariedade e Política – CB-22
– A Ação Popular no Jardim Zaíra (1958-1970). 184 f. Dissertação (Mestrado em História
Social) Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2013.
60
Cf. PORTELLI, op. cit., p. 13.
61
Id., p. 10-11. Portelli lança luz para a questão da postura do historiador diante do que
ouve, compreende e transporta para seu texto. “A expressão ‘história oral’, por
conseguinte, contém uma ambivalência que (...), refere-se simultaneamente ao que os
historiadores ouvem (as fontes orais) e ao que dizem ou escrevem. Num plano mais
convincente, remete ao que a fonte e o historiador fazem juntos no momento de seu
encontro na entrevista”. (grifos do autor)
32
o argumento, o fim mesmo do discurso. Excluir ou exorcizar a
subjetividade como se fosse somente uma fantasiosa interferência
na objetividade factual do testemunho, quer dizer, em última
instância, torcer o significado dos fatos narrados.62

Este mesmo cuidado e cautela no trato com as fontes orais cabe ao


material adquirido relativo à imprensa e outros documentos. Jornais de
grande circulação, boletins de movimentos sociais e pastorais da Igreja,
cartazes, outros escritos e fotos, trouxeram dados importantes para a
compreensão da atividade dos bispos da Diocese de Santo André e
também de membros do clero ou dos movimentos, entre 1968 e 1980.
Toda fonte requer um trabalho metodológico antes que seja
confrontada à pesquisa em questão ou o texto do historiador. Alessandra
Gasparotto, ao lidar com arquivos da imprensa em sua dissertação de
mestrado, sublinhou quão crítica e delicada deve ser a leitura do texto
jornalístico. Gasparotto afirma que, ao mesmo tempo, que não se pode
considerar estas publicações como “a verdade” sobre o fato, também não
convém interpretá-las como “simples manipulações maquiavélicas em
favor dos interesses de determinados grupos, evitando-se assim cair em
simplificações ou analisar tais fontes sem uma crítica adequada”. 63 É
interessante ouvir Raymond Williams, incisivo ao afirmar: “meios de
comunicação são, eles mesmos, meios de produção”64. De tão óbvia esta
conclusão, pode passar despercebido aos olhos do pesquisador o fato que

primeiramente, os meios de comunicação têm uma produção


histórica específica, que é sempre mais ou menos diretamente
relacionada às fases históricas gerais da capacidade produtiva e
técnica. E também é assim, em segundo lugar, porque os meios de

62
PORTELLI, Alessandro apud PORTUENSE, Sandra. op. cit. p. 27.
63
GASPAROTTO, Alessandra. O Terror Renegado: Uma reflexão sobre os episódios de
retratação pública protagonizados por integrantes de organizações de combate à
Ditadura Civil-Militar no Brasil (1970 - 1975). 271 f. Dissertação (Mestrado em História
Social) Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2008. Em 2010
Gasparotto teve sua dissertação publicada em livro e ganhou o prêmio “Memórias
Reveladas”, projeto vinculado ao Arquivo Nacional do Ministério da Justiça, com objetivo
de resguardar e favorecer o conhecimento geral e a pesquisa sobre as lutas políticas
entre 1964 e 1985.
64
WILLIAMS, Raymond. Cultura e Materialismo. São Paulo: Editora Unesp, 2005.
33
comunicação, historicamente em transformação, possuem relações
históricas variáveis com o complexo geral das forças produtivas e
com as relações sociais.65

Manusear fontes derivadas de imprensa, seja esta de grande


circulação, regional ou ainda de circulação restrita (censurada, por
exemplo), requer a mesma conduta de interpretação: uma análise
sistemática e exclusiva, considerando o segmento editorial do veículo que
a publicou, as relações deste meio com o contexto político-econômico-
social da época, a política interna da empresa ou da organização do
periódico e até a configuração escrita e visual em que a notícia participou
de determinado noticiário. O conjunto desta analise possivelmente traçará
o objetivo da publicação e ainda poderá oferecer outras referências
importantes, mas que se encontram nas entrelinhas da notícia.
Convém dizer que, diante de quaisquer vestígios de história, importa
uma leitura de “entrelinhas” que perpasse o documento em mãos. Foi o
que buscamos fazer ao nos depararmos com uma breve sequência de
documentos que mostram uma clara vigilância dos Estados Unidos aos
passos de Dom Jorge Marcos de Oliveira, então, por estes denominado
Bishop Worked, ou numa tradução livre, Bispo dos Operários. Este
material foi encontrado no site da Brown University66 dos Estados Unidos
que, num esforço conjunto à Universidade Estadual de Maringá, no
Paraná. Juntas, estas instituições trabalharam na digitalização e indexação
de 10.000 documentos do Departamento de Estado dos EUA sobre o
Brasil, de 1963 a 1973 e os tornou disponíveis para o público.
Hoje, graças ao desenvolvimento da tecnologia, pesquisadores em
todo mundo têm alcance a uma gama de documentos que, antes, talvez
precisassem atravessar um oceano para ter acesso. Infelizmente, ainda
existe uma grande quantidade de documentação restrita a arquivos
particulares e sem disponibilização para consulta, por isso, aproveitamos
aqui para registrar o esforço de centros de documentação histórica, no

65
Idem, p. 69.
66
Brown Digital Repository: https://repository.library.brown.edu/studio/
34
sentido de acelerar a digitalização de documentos de valor histórico, e
permitir, cada vez mais, o acesso do público em geral.
Nosso estudo buscou informações em Centros de Pesquisa,
localizados no espaço da Diocese de Santo André, Jornal Diário do Grande
ABC, referência para os sete municípios que compõem a região, arquivos
de igrejas, Projeto Brasil Nunca Mais, que tem se empenhado em
promover uma ampla divulgação dos documentos do período de Ditadura
Militar, Centro de Pesquisa Vergueiro (CPV), Centro de Documentação e
Informação Científica (CEDIC-PUCSP) e Centro de Pesquisa e
Documentação Histórica (CPDoc FGV).

As informações sobre a vida de Dom Jorge Marcos de Oliveira


dispostas neste trabalho foram encontradas em arquivos de jornais,
entrevistas publicadas, conversas com quem o conheceu, conviveu com
ele. Dois importantes elementos foram relevantes para incorporar a
biografia e Pastoralidade dos bispos personagens desta pesquisa:
referimos-nos ao trabalho desenvolvido pelo Padre Felipe Cosme Damião
Sobrinho, da Diocese de Santo André e da historiadora Heloísa Helena
Teixeira Martins.

Segundo entrevista concedida ao Jornalista Ademir Médici, do


Jornal Diário do Grande ABC, Dom Jorge aparentava ser um homem
avesso à exposição pública e dizia: “Nunca me preocupei muito em exaltar
o meu trabalho e muito menos ainda a minha figura”.67 Adiante, falaremos
sobre as características do primeiro bispo da Diocese de Santo André,
bem como de seu sucessor, Dom Claudio Hummes, partícipes da história
do grande ABC.
Num sentido prático, este trabalho esta subdividido em três
capítulos Nesta divisão abordamos os aspectos da formação histórica da
região onde se localiza a Diocese; o perfil, a postura e atuação dos bispos
que a administraram no período aqui estudado; os movimentos pastorais

67
OLIVEIRA, Jorge M. Dom Jorge, 25 anos de Grande ABC (Primeira Parte). Entrevista
concedida a Ademir Médici. Diário do Grande ABC, 21 out. 1979. Caderno C.
35
e sociais que se desenvolveram no bojo desta igreja; as transformações
socioeconômicas e propostas da Igreja frente às contradições que se
deram neste espaço e recorte; e a constituição de uma classe operária
que encontrou no espaço religioso e eclesial a salvaguarda para suas
lutas, resistência e reivindicações.
Como dissemos, trata-se da construção de uma narrativa que não
teria sentido e valor para as ciências humanas, se não convergisse de um
processo histórico. Portanto, situamos nosso objeto de estudo “A Diocese
de Santo André” entre dois importantes eventos que, ao mesmo tempo
formam um cenário e participam ao longo de toda a nossa análise: O
Concílio Vaticano II (1962-1965) e a Ditadura Militar no Brasil (1964-
1985).
Considerando que o recorte desta pesquisa compreende o período
de 1964 a 1980, é oportuno destacar que algumas colocações,
observações ou referências que se achem fora deste intervalo, tem a
funcionalidade de contribuir para uma compreensão conjuntural do tema
de estudo. De maneira que, por exemplo, no primeiro capítulo,
discorremos brevemente sobre a formação dos municípios do ABC
Paulista, para entender sua vocação industrial e operária e, da mesma
forma, recorremos a uma síntese de como se constituiu o Concílio
Vaticano II, a fim de apresentar e situar a Igreja Católica nos trâmites da
sociedade contemporânea.
A tônica da Ditadura Militar Brasileira tem atraído a atenção de
muitos pesquisadores e suscitado debates importantes para a
historiografia, está alinhada às discussões postas nesta produção, de sorte
que, à medida que situamos a problemática e desafios da Diocese de
Santo André, vamos apurando as demandas referentes à ditadura e
posicionando-as na circunstância de nossa análise.

36
É certo que não se pode deixar de valorizar os resultados
alcançados com a formação da Comissão da Verdade no Brasil68 que,
empenhada em apurar os crimes cometidos ao longo deste período de
repressão da Ditadura Civil Militar, trouxe a público documentos
importantes para a pesquisa histórica deste período. A classe operária e
os movimentos populares sofreram sistematicamente a repressão.
Infelizmente, nada pode pagar o valor da vida e muitos a perderam,
lutando por liberdade e direitos comuns.
Infelizmente, em razão das demandas de fonte e informações, não
foi possível integrar neste trabalho a discussão sobre a Anistia, que ocorre
em fins da década de 1970, uma das bandeiras e motivo de debates entre
os trabalhadores do ABC e da própria Igreja Católica no Brasil. A decisão
de um indulto amplo, geral e irrestrito, beneficiou a camada dos que,
deliberadamente, perpetraram e favoreceram a permanência daquele
sistema repressor e arbitrário e que, atendendo majoritariamente
interesses do capital e da burguesia nacional, desconsideraram a grave
situação do trabalhador, do camponês, do estudante, das camadas
populares, e abafaram a voz de quem se posicionou contrariamente.
Procuramos entender esta classe de trabalhadores do ABC a partir
da metodologia de Edward Thompson, percebendo que este grupo faz-se
a partir de um reconhecimento muito particular de si, de suas contendas,
angústia, necessidades e até da própria cultura. Diferente, é verdade,
daquela classe operária britânica do século XIX, formada em outro
momento histórico, em outra cultura e sob outras demandas, mas que,
mantêm o ponto comum do reconhecimento de si como um corpo vivo,
cuja vitalidade vem da luta a se travar contra patrões e ao próprio
capitalismo.

68
A Comissão da Verdade Brasileira foi uma inciativa oficializada pela Lei 12528/2011,
cujos trabalhos começaram a 16 de maio de 2012. A conclusão da análise e apuração
histórica do período da Ditadura Militar Brasileira se deu em 16 de Dezembro de 2014. O
resultado deste trabalho consta em relatório oficial em três tomos, disponível para
consulta pública.
37
A consciência de classe que o operário, nesta região, vai
incorporando à medida que avançam suas lutas em comum, deve-se
também a uma disposição da própria igreja católica da Diocese de Santo
André, que aceita abrir as portas e salas de suas paróquias para o diálogo
e planejamento de ação do trabalhador, principalmente no período de
maior repressão do sistema ditatorial, quando associações e sindicatos
são fechados, manifestações populares são proibidas e os meios de
imprensa são censurados de contradizer o governo. Existe, então, uma
percepção de que há uma luta em processo, em comum, entre diferentes
setores operários e intersindicais.
As chamadas Semanas do Trabalhador, que aconteceram ao final
dos anos 1970 e ao longo dos anos 1980, na Matriz de São Bernardo do
Campo, foram muito bem participadas e se tornaram um ponto de
referência para o trabalhador que já vinha de uma prática de
reivindicações, de greves, mas que, em muitos casos, ainda tinha certa
carência de um conteúdo teórico ou propriamente um entendimento da
subjetividade de suas ações. Estas Semanas eram promovidas pela
Pastoral Operária e outros organismos da diocese e tinham, então, o
objetivo principal de agregar conhecimento às atividades de luta e
resistência da classe trabalhadora na região.
Abordaremos mais detalhadamente a questão operária, os
sindicatos e a influência da igreja no processo de luta dos trabalhadores
entre 1970 e 1980 no terceiro capítulo, mas por hora, nos interessa deixar
já registrado de que maneira esta igreja participou da construção de uma
consciência desta classe, vinculando os elementos próprios da religião
como a oração, seguimento ao Evangelho e à doutrina, a participação na
missa, na vida em comunidade, nos grupos e pastorais à realidade de vida
de seus fiéis, considerando os desafios que se apresentavam em tempos
de grande dificuldade social e econômica, associada à restrição de sua
liberdade, imposta como regra em tempos de uma Ditadura Civil Militar.

38
Sobre todas estas questões referentes ao contexto operário neste
espaço, abordaremos, sobretudo, em nosso terceiro capítulo, apoiados,
nas análises de Luís Flavio Rainho e Osvaldo Martines Bargas69; entrevista
realizada com Lula70, ainda como dirigente sindical; e na monografia do
Padre Felipe Cosme Damião Sobrinho, que desenvolveu uma aprofundada
pesquisas sobre a atuação da Diocese de Santo André entre os anos de
1964 e 1985.

69
RAINHO, Luís Flávio; BARGAS, Osvaldo Martines. As lutas operárias e sindicais dos
metalúrgicos em São Bernardo: 1977-1979. São Bernardo do Campo: Associação
Beneficente e Cultural dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo e Diadema, 1983.
70
LULA DA SILVA, Luiz I. Entrevista. Lula: Retrato de Corpo Inteiro. Revista Escrita
Ensaio. Ano. IV, n.8, p. 12-54, 1981
39
1 O ABC DA DIOCESE DE SANTO ANDRÉ:
AGGIORNAMENTO E MODERNIZAÇÃO
Abecê abecedário
Ópera operário
Pé no pé no chão

Eu não sei bem o que seja


Mas sei que seja o que será
O que será que será que se veja
Vai passar por lá

Pensa pensa pensamento


Tem sustém sustento
Fé café com pão
Com pão com pão companheiro
Para paradeiro
Mão irmão irmão.

(Chico Buarque)71

Entre o final dos anos de 1960 e meados da década de 1980, o ABC


Paulista participou, efetivamente, do cenário histórico e social do Brasil.
As greves, protagonizadas pela classe operária das indústrias desta
região, sobretudo, das grandes montadoras, foram entremeadas no
processo de transição política do país. O protesto por melhores condições
de trabalho e salário se somou às crescentes manifestações por
democracia.
Não há como negar que a história do Brasil passou por este espaço
geográfico. Em Linha de Montagem, composição em homenagem aos
operários do ABC, Chico Buarque apontou: “o que será que será que se
veja vai passar por lá”. Quando estes trabalhadores se unem e se
reconhecem como uma classe forte e necessária no processo de produção

71
BUARQUE, Chico. Música: Linha de Montagem. In: BUARQUE, Chico. Pedaço de Mim.
São Paulo: Universal Music. CD. “Essa canção ia ser apresentada ao público por Chico
Buarque, pela primeira vez, a 20 de abril e depois a 27 de abril de 1980, no Show de Vila
Euclides - espetáculo musical cuja renda seria encaminhada ao Fundo de Greve dos
Metalúrgicos. No entanto, o show - que iria ter lugar em São Bernardo, no Estádio de Vila
Euclides, foi proibido, duas vezes, pela Polícia Federal e pelo DEOPS de São Paulo, apesar
de terem sido vendidos mais de 100.000 mil ingressos”. Cf. MENEZES, Adélia Bezerra.
Desenho Mágico: Poesia e Política em Chico Buarque. São Paulo: Ateliê Editorial, 2002. p.
131.
40
da economia brasileira, mostram ao país que o caminho do
desenvolvimento passava por aquele conglomerado de cidades, maior
parque industrial da América Latina.72
As clareiras abertas pelos índios na mata virgem da Serra do Mar,
usadas pelas expedições de europeus no início da colonização, foram
aperfeiçoadas à medida do progresso e, principalmente, ao passo da
produção do capital. Da região que serviu de acampamento aos primeiros
colonizadores, após enfrentarem a íngreme “parede” da serra atlântica,
séculos mais tarde despontou um circuito de sete cidades: Santo André,
São Bernardo do Campo, São Caetano do Sul, Diadema, Mauá, Ribeirão
Pires e Rio Grande da Serra.
Por quatro séculos estas terras, pisadas pelas primeiras missões
jesuíticas, estiveram sob a tutela de outros bispados católicos, ao que se
refere à administração de igrejas, movimentos e fiéis da religião. Apenas
no século XX, em 1954, foi autorizada a criação de um setor episcopal
próprio para esta região: nascia a Diocese de Santo André.

1.1 A fundação de uma diocese, a formação de uma região.

Nos idos de 1954, o jovem bispo Dom Jorge Marcos de Oliveira, com
apenas 38 anos de idade, deixou o Rio de Janeiro com a responsabilidade
de inaugurar e assumir uma nova prelazia no estado de São Paulo: a
Diocese de Santo André, desmembrada, então, da Arquidiocese de São
Paulo, instituída pelo Papa Pio XII em 22 de Julho de 1954.73 A posse do
bispo, marcada para dia 12 de Setembro de 1954, foi notícia em vários
diários do estado de São Paulo.

72
“Thompson compreende que a classe e a consciência de classe vão formando-se
juntas: é uma formação imanente. [...] O fato é revelado em primeiro lugar pelo
crescimento da consciência de classe: a consciência e uma identidade de interesses entre
todos esses diversos grupos de trabalhadores, contra os interesses de outras classes. E,
em segundo lugar, no crescimento das formas correspondentes de organização política e
industrial”. VENDRAMINI, Célia Regina. Experiência e Coletividade em E. P. Thompson.
In: MÜLLER, Ricardo Gaspar; DUARTE, Adriano Luiz (Org.). E. P. Thompson: Política e
Paixão. Chapecó: Argos, 2012. p. 127-147.
73
SOBRINHO, Felipe Cosme Damião. op. cit. p. 39.
41
O Jornal Folha da Manhã publicou em sua edição de 12 de setembro
de 1954: “Com a presença do Cardeal Piazza, será instalada hoje a
Diocese de Santo André”.74 Também o Jornal “O Estado de São Paulo”
divulgou nota sobre o evento no caderno “Interior”. Segue imagem do
recorte:
Figura 1. Nota sobre a inauguração da Diocese de
Santo André.

Fonte: Jornal “O Estado de São Paulo”.75

A criação da diocese atendeu aos apelos da sociedade civil e


comunidade religiosa local que, por meio de intensa campanha,
persuadiram o então Cardeal Arcebispo de São Paulo, Dom Carlos Carmelo
de Vasconcelos Motta, a encaminhar um pedido à Santa Sé, para
desmembramento deste território da Arquidiocese, com o argumento de
que a região já dispunha de condições suficientes para abrigar tal
prelazia.76

74
FOLHA DA MANHÃ. São Paulo, ano 30, n. 9.347, 12 set. 1954. 6 cadernos.
75
O ESTADO DE SÃO PAULO, São Paulo, ano 75, n. 24.341, 12 set. 1954. 108p.
76
Diário do Grande ABC, “Os 30 anos da Diocese sem festas”, 12/09/1984, p.2.
42
A preparação para a ereção de nova Igreja Particular na região
deveria ser fruto de uma série de medidas realizadas: a elevação
de uma paróquia à Catedral; a construção de um Palácio Episcopal,
como na época era conhecida a residência dos ordinários
diocesanos; a edificação ou, pelo menos, o projeto de um
Seminário Menor; e paróquias edificadas.77

No entanto, o Livro Tombo da Diocese de Santo André revela a real


impressão de Dom Jorge sobre a região que, em futuro breve, assumiria:

A impressão deste primeiro contato com minha Diocese foi muito


boa, quanto aos padres e o povo. Muito triste quanto à situação
material e social da Diocese.78

Na época, o setor episcopal contava com apenas 16 paróquias e


ainda três cidades oficialmente constituídas: Santo André, São Bernardo
do Campo e São Caetano do Sul. A tríplice de municípios fazia jus ao
apelido da região, conhecida como ABC Paulista, somando uma população
de aproximados 320 mil habitantes79.
Logo após sua chegada à região, o bispo presenciou a formalização
dos municípios de Mauá e Ribeirão Pires, quando em 1º de janeiro de
1955, prefeitos e vereadores das duas cidades assumiram seus cargos,
seguindo as orientações da Lei 2.456. O distrito de Diadema, até então
incorporado a São Bernardo do Campo, foi elevado oficialmente à
categoria de município quatro anos após, pela Lei Estadual 5.285/5980; e
em 1963 o Governo Paulista alterou mais uma vez a configuração regional
e decretou Rio Grande emancipado de Ribeirão Pires, passando a chamar-
se Rio Grande da Serra, pela Lei 8.050/63. Enfim, estava formado o
Grande ABC.81

77
SOBRINHO, Felipe Cosme Damião. op. cit. p. 39.
78
DIOCESE DE SANTO ANDRÉ. Livro Tombo da Diocese de Santo André apud SOBRINHO,
Felipe. op. cit. p. 40.
79
MARTINS, Heloisa Helena T. de Souza. Igreja e Movimento Operário no ABC: 1954-
1975. São Paulo: Editora Hucitec, 1994. p.61.
80
Informação disponível em: http://governo-sp.jusbrasil.com.br/legislacao/224600/lei-
5285-59. Acesso em: Março/2015.
81
Para mais informações dos documentos sobre a formação da região, consultar
FERREIRA. Maria de Lourdes. Os arquivos da Administração Pública nos Municípios do
Grande ABC Paulista. 197 f. Dissertação (Mestrado em História Social) Universidade de
São Paulo, São Paulo, 2005.
43
FIGURA 2. Ilustração do Estado de São Paulo e a
região do ABC Paulista em colorido.

Localização das sete cidades do ABC no Estado de São Paulo.

Este registro histórico remonta um passado embrionário de algumas


das principais características que permeiam esta região que viria, no
século XX, a se tornar um dos principais polos do desenvolvimento
industrial e das lutas da classe operária e sindical no Brasil.
O que hoje é este consórcio de sete municípios administrativamente
autônomos, embora territorialmente integrado, ao qual chamamos de
Grande ABC Paulista, há séculos era explorado. Situada, boa parte, na
área de planalto, já no século XVI a região recebera a condição de Vila de
Santo André da Borda do Campo, estando sob a liderança de Martim
Afonso de Sousa e João Ramalho. O lugarejo estava na rota dos
colonizadores que se utilizavam de trilhas na mata, abertas por índios,
como caminho do litoral ao interior; servindo, inclusive, de trajeto para as
missões dos jesuítas, entre eles, José de Anchieta82.

82
Este fator motivou a titulação da Rodovia concluída na década de 1950, cujo trajeto
interliga o que conhecemos por Baixada Santista a São Paulo, cortando a cidade de São
Bernardo do Campo no ABC.
44
Caio Prado, ao pesquisar as origens da cidade de São Paulo, mapeou
algumas características do planalto deste território, que favoreceram a
fixação do centro colonial português neste local:

Explica-se a escolha pela existência aí de uma imensa clareira


natural na floresta que revestia o território paulista: São os
Campos de Piratininga. A falta de arborização neste sítio explica-se
pela formação do terreno, constituído de depósitos flúvio-lacustres
terciários argilosos que dão um solo pobre. Não se desenvolveu
nele por isso nenhum tipo de vegetação de porte e denso, e a
floresta natural que cobria os terrenos graníticos e cristalinos que
sucedem desde a Serra do Mar interrompe-se aí para dar lugar a
um vasto descampado.83

Aproveitando-se das várias passagens abertas pelos índios na


floresta, expedições de europeus, bem antes da chegada de Martim
Afonso, adentraram a região e se estabeleceram neste espaço:

[...] tinham-se nele fixado vários europeus, dos quais o mais


conhecido é o famoso João Ramalho. O lugar escolhido por estes
primeiros colonos fora o ponto em que o Caminho do Mar
desemboca no campo, isto é, na altura da atual Vila de Santo
André. Daí o nome de Borda-do-Campo dado à povoação, nome
que conservou quando mais tarde, em 1553, foi por Tomé de
Sousa, primeiro governador-geral do Brasil, erigida em vila. Santo
André da Borda do Campo é a designação que teve. E todo
povoamento ulterior do planalto teve sua origem, e a princípio se
concentrou unicamente nesta planície despida de árvores”. 84

Em 1560, por determinação do Governo Mem de Sá, a Vila de


Santo André foi desativada, e transferida para São Paulo de Piratininga,
onde também se encontrava o Colégio dos Padres85, restando então o
acesso ao litoral, que não perdera sua funcionalidade e era ainda bem
utilizado.
Após a transferência da Vila, a região passou a ser apenas local de
passagem para os viajantes, poucos paravam por aquelas terras por uma
temporada. Tempos depois, os monges beneditinos obtiveram algum
trecho daquele território e se dedicaram à formação de fazendas com

83
PRADO JR, Caio. A cidade de São Paulo: geografia e história. São Paulo: Brasiliense,
1983. p. 13.
84
Cf. PRADO JR., op. cit., p. 15.
85
Cf. FERREIRA, op. cit., p. 15.
45
atividade agrícola e criação de animais. A área voltou a ser mais
frequentada e aos poucos um novo povoado passou ser constituído, mas
apenas em 1812, o bairro que passara a se chamar São Bernardo recebeu
autonomia e foi desmembrado da Freguesia da Sé. Dois anos depois se
iniciou a construção da Igreja Matriz que foi dedicada a Nossa Senhora da
Boa Viagem86.
No século XIX, a estrada da Serra do Mar era a principal
interligação Porto de Santos – Capital, mas passou a ser considerada
como empecilho para os fazendeiros que precisavam fazer o escoamento
do seu café com mais rapidez e menos custos. Então, no início dos anos
de 1860, começou a ser construída a primeira linha férrea em solo
paulista, a São Paulo Railway Company. A implantação ficara a cargo da
Companhia Inglesa de mesmo nome, que obteve por decreto imperial a
concessão de administração e exploração da ferrovia por 90 anos.87
A chegada dos trilhos na região contribuiu para sua transformação;
novas estradas foram abertas, povoados foram surgindo e a mão de obra
para a construção da ferrovia foi, em sua maioria, constituída por
trabalhadores imigrantes que passaram a morar nestes locais, formando
posteriormente núcleos coloniais, sendo que, próximos a estes, foram
criadas as estações de: Pilar (Mauá), São Caetano, Ribeirão Pires, Campo
Grande (Paranapiacaba) e a Estação São Bernardo88, responsável por
alavancar o desenvolvimento industrial em seu entorno.
Em 1889, a região conhecida como Freguesia de São Bernardo,
recebe autonomia de município e em 1938 passa a se chamar Santo

86
A Igreja começou a ser construída em 1814 e foi inaugurada em 1825. Adiante
veremos a importância desta igreja para os trabalhadores nos períodos das grandes
greves do ABC. Ver MEDICI, Ademir. São Bernardo do Campo 200 Anos Depois: A
História da Cidade Contada pelos seus Protagonistas. São Bernardo do Campo: PMSBC,
2012. p. 11.
87
Cf. MARTINS. Ana Luiza. História do Café. São Paulo: Contexto, 2008. p. 161
88
A estação São Bernardo inaugurada em 1867 é a atual Estação Santo André, cujo
nome foi alterado em 1910.
46
André. Nos anos de 1940 entra em curso uma nova divisão territorial e
em 1944 é instaurada a cidade de São Bernardo do Campo.89
A cidade de São Bernardo do Campo registra uma particularidade
que vale à pena ressaltarmos neste trabalho: trata-se da presença de
uma autoestrada, referência no Estado de São Paulo, que corta o
município e é justamente a sequência do trajeto realizado desde o século
XVI como interligação entre o Porto de Santos e o Interior, a Rodovia
Anchieta. A autopista, hoje sob concessão da Empresa Ecovias, foi
inaugurada na década de 1940 e, tal como os trilhos, também viabilizou
significativo aumento fabril no Grande ABC, mais especificamente da
indústria automobilística.
As obras da rodovia contaram com a mão de obra de trabalhadores
migrantes, sobretudo, do norte, nordeste e centro-oeste do país. A vinda
destes trabalhadores contribuiu para uma transformação no quadro
demográfico, cultural e econômico da região, pois com o fim das obras,
boa parte destes operários permaneceu nos acampamentos construídos
pelo Departamento de Estradas e Rodagem de São Paulo (DER), e
ingressaram posteriormente no trabalho dentro destas fábricas. A fim de
manter os operários mais próximos da Rodovia Anchieta em construção,
na década de 1940 o DER construiu cerca de 250 abrigos para os seus
trabalhadores. No entanto, após o término da obra, o acampamento
permaneceu e, posteriormente, se transformou numa das maiores favelas
de São Bernardo do Campo, muito próxima ao centro da cidade.90

89
Decreto Lei n.º 14.334 de 30 de novembro de 1944.
90
. Ver MEDICI, Ademir. São Bernardo do Campo 200 anos depois, p. 109. Embora muito
próxima à região central de São Bernardo, trata-se de uma comunidade pobre, fato
incomum em grandes cidades em que, cada vez mais, populações carentes são
empurradas para locais afastados do centro. O bairro ainda mantém o nome DER e, de
alguns anos para cá, está se transformando significativamente e participando da
paisagem urbana do município. De uma favela com todas as suas deficiências e
precariedades, o bairro hoje já conta com casas de alvenaria, linha de ônibus, ruas
asfaltadas, comércios, e as demais características de qualquer outra vila, porém ainda
não conteve o crescimento desordenado, mesmo tendo iniciado um processo de
realojamento no próprio local, através do CDHU. A Igreja Católica do bairro, dedicada a
Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, foi inaugurada sob as bênçãos do então bispo Dom
Claudio Hummes, em 1978 e, recentemente, recebeu autorização para atuar como
47
Quando D. Jorge Marcos chegou à diocese já havia uma
preocupação com o crescimento populacional no ABC. Com o
desenvolvimento industrial que se deu na região, a partir da década de
1950, novos bairros se constituíram nestas cidades e muitos de forma
desordenada. Vários destes bairros foram formados por famílias de
operários que trabalhavam nas fábricas da região e tinham em comum as
mesmas condições de vida: eram pobres, operários e com carências
sociais. Desta identidade comum “formaram-se valores, costumes e
práticas em defesa de um mesmo interesse”91. Maria Blassioli Moraes
entende que este foi um determinante para as lutas operárias que se
seguiriam nos anos de 1970. Pouco a pouco esta população acostumou-se
com a mobilização, em decorrência das necessidades sociais do ambiente
que viviam:
Os bairros do ABC, desde sua formação, apresentaram muitos
problemas, como a falta de condições básicas: sistema de esgotos,
água encanada, pavimentação, transporte público, entre outros.
Como resultado desta situação, a população mobilizou-se para
exigir reformas urbanas e as consequências foram maiores do que
se poderia pensar. Da identificação e ligação do homem com seu
bairro, surgiram várias expressões de luta e práticas sociais, desde
festas religiosas, folclóricas e regionais, até a organização de
trabalhos conjuntos à instituições formais como partidos,
sindicatos e Igreja Católica.92

O surgimento das Sociedades Amigos de Bairro (SABs) e das


Comissões de Bairro nas regiões do ABC contribuiu para que a população
se organizasse para alcançar as melhorias onde moravam. Em 1980, as
sete cidades já reuniam 138 SABs. Com o auxílio destas associações, na
década de 1970 foram criadas as primeiras Sociedades dos Amigos das
Favelas, as SAFs. Tal qual as SABs, as SAFs tinham como objetivo obter
melhores condições de sobrevivência nestas áreas, em geral, muito mais

paróquia. O desenvolvimento do bairro se deve também à presença desta igreja e


atuação de seu antigo pároco, Frei Sebastião Benito Quaglio.
91
MORAES, Maria Blassioli. Movimentos sociais e o processo de urbanização. In:
Diadema nasceu no Grande ABC: História retrospectiva da Cidade Vermelha. São Paulo:
Editora FAPESP, 2001.
92
Idem.
48
desprovidas e desamparadas que os bairros.93 O franciscano, Frei
Sebastião Quaglio, um dos padres da diocese que conversou conosco,
participou da história de uma destas favelas em São Bernardo do Campo,
conhecida como DER. Ele nos relatou que a situação das favelas era muita
mais delicada, com “problemas sociais terríveis”, faltava total
infraestrutura e quem mais sofriam eram as crianças que, muitas vezes,
ficavam “abandonadas”. Percebendo esta carência, decidiu trabalhar mais
neste espaço. Ali, com a ajuda dos moradores, ergueu uma pequena
capela dedicada a Nossa Senhora do Perpétuo Socorro e, mais tarde, uma
instituição para abrigar crianças, chamada Casa Santa Clara.94

Foto 1. Capela Nossa Senhora do Perpétuo Socorro no


bairro DER, em São Bernardo do Campo. Sem data.
Provavelmente anos 80.

Fonte: Acervo Seção de Pesquisa e Documentação de São Bernardo do Campo.

93
MORAES, op. cit.
94
QUAGLIO, Sebastião Benito. Frade Franciscano Conventual. Chegou à Diocese de
Santo André em 1966. Assumiu a paróquia Santíssima Virgem em São Bernardo do
Campo e hoje é Diretor do movimento Milícia da Imaculada e da Rádio Imaculada
Conceição, situada também na cidade. Entrevista concedida em Janeiro/2015.
49
O cenário descrito por Frei Quaglio era o mesmo das outras
inúmeras favelas que cresciam nas cidades do ABC e, comumente,
acompanhadas por algum padre ou um grupo religioso, ao qual o povo
procurava se apoiar. Maria Blassioli descreve que o próprio bispo de Santo
André, Dom Jorge Marcos, participava de reuniões, produzia boletins
sobre saúde e condições de higiene visando conscientizar a população
moradora de favelas. Abaixo, um trecho de um destes boletins, em que
orienta sobre a questão do saneamento básico:

A melhor maneira de cuidar do esgoto é a "rede de esgotos",


porque não contamina poços. Outra maneira seria manter a
distância certa entre a fossa e o poço, mas pelo tamanho dos lotes
da periferia isso é muito difícil, e quando se consegue, a distância
do nosso fosso com a fossa do vizinho é sempre menor que o
necessário. A situação piora quanto mais gente vem morar no
bairro... Portanto a melhor solução para não contaminar a água
que usamos é ter água encanada. Todos temos direito à saúde. 95

A diocese acompanhou na região a onda de transformações da era


desenvolvimentista posta, sobretudo, no percurso do governo de Juscelino
Kubitscheck (1956-1961). Seu Plano de Metas96 e o slogan “cinquenta
anos em cinco” se traduziram no ABC, para além de quaisquer outros
resultados, na instalação das grandes indústrias automobilísticas.
Considerando que a implementação de empresas de variados setores
relaciona-se, entre outros fatores, à chegada da ferrovia em algumas
cidades e à construção da Rodovia Anchieta em São Bernardo do Campo,
portanto anterior à década de 50, podemos dizer que o incentivo oferecido
por Juscelino foi fator determinante para que a região se tornasse

95
MORAES, op. cit.
96
O Plano de Metas foi elaborado por um Conselho de Desenvolvimento criado no início
do Governo Kubitscheck, em 1956. Com intuito geral de “elevar o quanto antes o padrão
de vida do povo, ao máximo compatível com as condições de equilíbrio econômico e
estabilidade social”; o plano também visava acelerar a industrialização no país, contando
com investimentos do setor público para viabilizar infraestrutura e oferecer estímulo às
atividades e investimentos privados. Para tal, buscou-se priorizar investimentos nos
setores de energia (42,4%), transporte (28,9%), alimentação (3,6%), indústrias de base
(22,3%) e educação (2,8%). Ver REZENDE, Cyro. Economia Brasileira Contemporânea.
São Paulo: Editora Contexto, 1999. p. 86-87.
50
importante parque industrial para o Brasil e para a América Latina, que
teve seu auge entre os anos 50 e 70.
Para uma ideia da dimensão da mudança provocada na região com o
fomento oferecido pelo governo Kubitscheck, apresentamos o relato do
Padre Emílio Rubens Chasseraux, então pároco da Igreja Nossa Senhora
das Dores em Santo André, em entrevista à Maria Gorete Frazão e Prof.
Ney de Souza, publicada no artigo Catolicismo no ABC Paulista:

"(...) até o período do governo do Juscelino Kubitschek, o. o ABC


era praticamente uma região suburbana da cidade de São Paulo,
não tinha desenvolvimento, para vocês terem uma ideia, em 1963,
espero não estar enganado, o maior prédio do ABC tinha seis
andares, em 1963, e ficava na Rua Campos Salles, e você para vir
de São Paulo para o ABC, era uma viagem praticamente, a estrada
de comunicação era a Estrada das Lagrimas, mas uma estrada de
terra, pedaços de paralelepípedo, não existiam essas
comunicações que nós temos aqui, e para você chegar á Anchieta,
vindo de São Caetano, vindo de...de...Santo André e do ABC, era
uma viagem pelo meio do mato. Então é tudo...um dormitório,
porque o pessoal ia para São Paulo...tinham poucas indústrias,
agora, com o governo de Juscelino, houve um grande
desenvolvimento industrial no ABC, foi o Juscelino que trouxe as
indústrias automobilísticas para cá, e através das indústrias, é...
começou o grande desenvolvimento industrial, tanto assim que, de
repente, de uma hora para outra, o ABC tornou-se o polo industrial
de toda a América Latina.97

Com o desenvolvimento fabril, seguiu-se considerável geração de


empregos especialmente nas fábricas montadoras, moveleiras,
metalúrgicas, do ramo químico, têxtil, além de importante alavancada no
setor de prestação de serviços. É intensa a movimentação no ABC
Paulista, mas suas consequências se refletem no plano nacional.

Entretanto, novas contradições foram geradas através do


favorecimento à concentração do capital, principalmente à atuação
de empresas multinacionais. A formação de setores oligopolizados,
em especial na indústria automobilística, acarretou transformações
expressivas na relação entre Estado e as grandes empresas,
trazendo consequências duradouras para a política econômica

97
Entrevista concedida em Maio de 2002 à historiadora Maria Gorete Frazão. Ver
FRAZÃO, Maria Gorete; DE SOUZA, Ney. Catolicismo no ABC Paulista: Da Doutrina Social
ao Movimento Popular. Revista de Teologia (RevEleTeo). ISSN 2177-952x, n.2, 2007.
Disponível em: http://revistas.pucsp.br/index.php/reveleteo/article/view/6756/4887.
Acesso em: Abril/2015.
51
nacional e dando margem também para as manifestações
populares entrarem em cena contra este sistema.98

Crescem e se fortalecem as associações sindicais e uma história de


luta dos trabalhadores começa a ser escrita na região, duas décadas antes
dos movimentos que marcariam definitivamente o sindicalismo no ABC
Paulista e que “não foram originados, nem mesmo se desenvolveram
autonomamente, e sim, constituíram-se historicamente, chegando a seu
ápice em fins da década de 70”.99
A esse polo operário e empreendedor chamado de Grande ABC
Paulista, Dom Jorge Marcos de Oliveira integrou sua formação social e seu
contato com a classe simples, trabalhadora e também operária. É no ABC
Paulista que viu ampliado seu desafio e proposta de ação como bispo
participante de um novo momento da Instituição Católica, que começava
a por em prática as novidades que apresentara o Vaticano II.

1.2 Concílio Vaticano II: Aggiornamento?

1.2.1 Concílio Vaticano II: Breve histórico

o Concílio Vaticano II (1962-1965) marcava um dos mais


importantes eventos na história do catolicismo romano. A despeito
das contradições, tensões e limites que cercavam as mudanças, o
Concílio enfatizou a missão social da Igreja, declarou a importância
do laicato dentro da Igreja, motivou por exemplo, maiores
responsabilidades, corresponsabilidade entre o papa e os bispos,
ou entre padres e leigos dentro da Igreja, desenvolveu a noção de
Igreja como o povo de Deus, valorizou o diálogo ecumênico,
modificou a liturgia de modo a torna-la mais acessível e introduziu
uma série de outras modificações.100

98
SCOLESO, Fabiana. As formas políticas e organizacionais do “Novo Sindicalismo”: As
paralisações metalúrgicas de 1978, 1979 e 1980 no ABC Paulista. 217 f. Dissertação
(Mestrado em História) Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2003.
99
Ibid. p. 36.
100
MAINWARING, op. cit., p. 62.
52
Quando o Papa João XXIII101 (*1881†1963) idealizou promover um
concílio, em 1959, estava há menos de três meses no pontificado. A
reação ao anúncio não foi bem uma surpresa entre os bispos e cardeais,
mas, sobretudo, desconfiança. Isso por que, ao assumir a Cátedra de
Pedro, se conjecturava que aquele seria um ‘papa de transição’, “quase
desconhecido, bastante idoso”102, não causaria muito impacto no curso de
sucessões papais. Para espanto de todos, o italiano camponês de Sotto Il
Monte, província de Bergamo, que não se encontrava entre as listas de
mais cotados ao papado, surpreendeu e marcou a história.
No dia 25 de Janeiro, Festa de São Paulo e encerramento da
Semana de Orações pela Unidade dos Cristãos o papa havia convidado
alguns cardeais para acompanha-lo à celebração e, posteriormente, para
um consistório na Basílica de São Paulo Extramuros. Já estava
programado fazer o anúncio do Concílio aos cardeais e, em seguida,
divulgá-lo através da Rádio Vaticano. Diante da ocasião de festividades
relevantes para a Igreja, a cerimônia durou além do esperado e o que
aconteceu foi pitoresco, pois, quando João XXIII fez o comunicado oficial
aos cardeais, a imprensa e o povo já estavam sabendo de sua decisão em
promover um concílio103.
Esta curiosidade caracterizava um dos caminhos que Ângelo
Roncalli104 estava propondo para a igreja. Maior abertura, mais diálogo,
mais participação também nos instrumentos de comunicação de massa.
Tanto que um dos documentos resultantes do Vaticano II, Inter Mirifica,
propõe que a instituição esteja mais disposta a interagir com os meios, a

101
O Papa João XXIII iniciou seu pontificado em Outubro de 1958 e permaneceu à frente
da Igreja Católica até sua morte em Junho de 1963. Foi sucedido por outro italiano,
Giovanni Battista Montini, que adotou o nome pontifício de Paulo VI e focou suas
atenções na continuidade aos trabalhos do Vaticano II, encerrado em 1965.
102
VALENTINI, Demétrio. Revisitar o Concílio Vaticano II. São Paulo: Paulinas, 2011.
Coleção Revisitar o Concílio. p.13.
103
Esta informação é confirmada por teólogos estudantes do Concílio. Também está
descrita em artigo publicado no site da Revista National Catholic Reporter, de autoria de
Desmond Fisher, ex- editor do Jornal britânico The Catholic Herald.
http://ncronline.org/news/vatican/curial-horror-greeted-john-xxiiis-announcement-
ecumenical-council Consulta em: 20/01/2015
104
Nome de nascimento de João XXIII.
53
fim promover maior alcance de sua mensagem e melhor apreensão dos
novos formatos tecnológicos.105
Aggiornamento106. A palavra italiana que se traduz para a língua
portuguesa como “atualização”, resumiu bem a convocação do Vaticano II
e foi o próprio João XXIII quem a popularizou ao apresentar a proposta do
concílio. Outro termo que definiria sua realização é “diálogo”. Com
renovação e um novo jeito de se comunicar com o mundo moderno, a
igreja pretendia estar presente nesta nova sociedade repleta de
contradições das quais ela também precisava se modernizar.
Eis as palavras de João XXIII ao comunicar os cardeais de sua
proposta:
Veneráveis irmãos, amados filhos! Anunciamos a vocês, tremendo
um pouco de emoção, mas com humilde determinação neste
propósito, o nome e a proposta desta dupla celebração: de um
Sínodo Diocesano de Roma, e de um Concílio Ecumênico para a
Igreja Universal.107

No mesmo discurso em que anunciou o Concílio também deixou


transparecer sua preocupação com a pastoralidade da Igreja, como se
falasse da urgência de se olhar do micro para o macro, ou seja, da vida
cotidiana nas paróquias com seus párocos e fieis até o contexto
burocrático de Roma, “Il Urbe”. Era preciso um Concílio Pastoral. Mas, um
concílio não se faz apenas com a vontade de uma única pessoa, ainda que
seja o papa! E mesmo João XXIII, no auge de seu entusiasmo, tinha
consciência da complexidade de um evento desse porte, era conhecedor
de história da Igreja e estudioso de São Carlos Borromeu, bispo que

105
PUNTEL, Joana T. Inter Mirifica: Texto e Comentário. São Paulo: Paulinas 2012
106
O Dicionário Michaelis (italiano-português) traz a seguinte tradução para a palavra
‘aggiornamento’: adiamento, demora, atualização. Esta última, ‘atualização’, melhor
define a proposta do Papa João XXIII ao convocar o Concílio Vaticano II.
107
Trecho do Discurso proferido por João XXIII a 25 de Janeiro de 1959 “Venerabili
Fratelli e Diletti Figli Nostri! Pronunciamo innanzi a voi, certo tremando un poco di
commozione, ma insieme con umile risolutezza di proposito, il nome e la proposta della
duplice celebrazione: di un Sinodo Diocesano per l'Urbe, e di un Concilio Ecumenico per
la Chiesa universale”. Disponível em: http://w2.vatican.va/content/john-
xxiii/it/speeches/1959/documents/hf_j-xxiii_spe_19590125_annuncio.html. Acesso em:
30/03/2015.
54
colocou em prática o Concílio de Trento108, portanto, compreendia que era
preciso um período para organizar o plano de ação, sistematizar as ideias
e propostas, discutir as atividades. E foram quase quatro anos de trabalho
de preparação.
Aggiornare não era um verbo novo no dicionário italiano, mas
pareceu intrigar o público de cardeais, principalmente por conta da
intimidade com que, o então bispo de Roma, tratou o termo para expor o
projeto que não mais abandonava seu pensamento.

João XXIII foi bem claro ao propor o Concílio. Este não seria um
Concílio para combater erros. Não se tratava de condenar heresias.
Seria um concílio para pôr em dia a Igreja. Era a “renovação”, o
aggiornamento, palavra italiana que a partir daí passou para o
dicionário universal, tanto foi repetida pelo Papa. Já era significativo
o fato de ter sido anunciado na semana de orações pela união dos
cristãos. Era intenção do Concílio promover a união e compreensão.
Este era o espírito. Faltava elencar os assuntos concretos a abordar.
Mas, o espírito existia. Faltava tomar corpo.109

Alguns meses depois uma comissão foi chamada a constituir uma


primeira etapa da preparação, propondo um levantamento dos conteúdos
a serem discutidos no decorrer das sessões conciliares. Ao contrário dos
concílios anteriores, convocados sempre à necessidade de dar uma
resposta sobre determinado problema, neste, a primeira diferença estava
em que não se tratava de oferecer resoluções para conflitos internos, nem
apenas em conferir à religião decretos dogmáticos ou novos preceitos
morais, o momento estava favorável a dar a esta igreja o impulso da ação
dentro do mundo moderno, ainda que para ela (ou parte dela), este
mundo fosse considerado distante e hostil.
A estratégia utilizada para se organizar os trabalhos foi um
diferencial importante. Ao invés de uma única comissão para fazer o
levantamento dos assuntos a serem debatidos nas sessões, cartas foram
endereçadas aos bispos do mundo inteiro pedindo sugestões de temas a

108
VALENTINI, op. cit., p. 17.
109
VALENTINI, op. cit., p. 16.
55
serem trazidos para o Concílio110. Encerrada a fase de consultas ao
episcopado, foi realizada uma sistematização de todo material recolhido e
formadas comissões de preparação do Concílio, além da criação de um
novo organismo: o Secretariado para a União dos Cristãos.
Tratava-se de um Concílio Ecumênico. É verdade que concílios
ecumênicos não eram algo novo para a igreja. Até aquele momento duas
dezenas destes já haviam acontecido, e esta questão era, de certo,
paradoxal para as Igrejas orientais. Isso fica claro nesta explicação do
Padre Beozzo:

Na série dos 21 concílios, os sete primeiros são acolhidos


igualmente pelo Ocidente e pelo Oriente cristãos – com exceção
das antigas igrejas orientais -; o oitavo foi fator de grande
dissenção entre o Oriente e o Ocidente por causa da tensão entre
Roma e os patriarcados orientais e da medida disciplinar que
destituiu o Patriarca Fócio da sede de Constantinopla. Os concílios
seguintes, a partir do Laterano I (1123), recebidos como
ecumênicos pela Igreja Latina, são considerados pelos orientais,
apenas concílios ocidentais e, portanto, não ecumênicos. 111

No entanto, também neste sentido João XXIII pensava em


renovação. Já era hora de um olhar diferente sobre o processo, mudar o
discurso, buscar novos caminhos, novos sujeitos, para encontrar
respostas aos prementes desafios que se apresentavam.

“O Vaticano II procurou dar passos para superar a secular ruptura


entre o Oriente e Ocidente cristãos, consumada em 1.054,
convidando as Igrejas Ortodoxas e as antigas Igrejas Orientais a
participarem do Concílio, enviando observadores. Ao término do
Concílio, na manhã do dia 7 de dezembro de 1965, em celebrações
simultâneas em Roma, perante todos os padres conciliares do
Concílio e, em Constantinopla, perante o Sínodo Patriarcal, Paulo
VI, o patriarca do Ocidente e Athenagoras, o Patriarca ecumênico
de Constantinopla, levantaram, em declaração conjunta, num
gesto de paz, o caminho da reconciliação e da unidade, as
excomunhões e anátemas proferidos entre as duas igrejas”.112

110
Conforme pesquisa realizada por BEOZZO, das 311 cartas enviadas pelo Cardeal
Tardini aos bispos em exercício no Brasil, foram encontradas referência de retorno com
sugestões de 133 consultados, sendo que 22 destes prelados responderam em conjunto,
formando oficialmente um total de 111 respostas.
111
BEOZZO, J. Oscar. Padres Conciliares Brasileiros no Vaticano II: 1959-1965. 463 f.
Tese (Doutorado em História Social) Universidade de São Paulo, São Paulo, 2001.
112
Id.
56
Em tempos de crise, a Igreja de João XXIII, insistente em se
manter o mais distante possível dos processos políticos que ferviam o
mundo, quando pouco se esperava estava imersa neste contexto. Ao
persuadir a hierarquia romana e ortodoxa para uma participação
ecumênica efetiva no Concílio, o papa abriu precedente para um diálogo
de caráter diplomático com as nações113, e este entendimento entre
estados se tornara tanto mais delicado, considerando-se as tensões
políticas e econômicas daquele momento. Com o desenrolar da Guerra
Fria e uma consequente divisão no mundo, nem mesmo a igreja ficara
fora deste processo e de suas sequelas.
Sabemos que o chamado “Comunismo Soviético” 114
perseguira fiéis
e líderes religiosos, afinal, a crença, numa análise sintética, era vista
como instrumento de alienação e afastamento do proletariado de seus
reais objetivos e, naquele momento, o fator da religião estaria associado
às questões do mundo capitalista.
István Mészáros, ao refletir sobre a experiência do socialismo
Soviético, conclui que este não teria alcançado o objetivo proposto em
Marx. Na ocasião em que se dera a Revolução Russa não havia condições
históricas para uma transição. O conteúdo dos escritos de Marx foi
assimilado, mas interpretado sem uma contextualização histórica. Não foi
possível um rompimento definitivo com o mundo capitalista em ascenção,
de forma que o comunismo não foi apreendido em escala global.
A chamada ‘teoria da alienação’, fomentada nos estudos da
esquerda marxista, foi potencialmente apreendida pelos governos
socialistas e compreendida em outro contexto, conferindo-lhe um valor

113
Id. Embora a Santa Sé seja um organismo de natureza religiosa e ideológica, com a
especificidade de ser porta voz da Igreja Católica, é reconhecida também como
instituição de direito público internacional e detém a condição de Estado, podendo
manifestar-se como órgão político diante de diferentes situações, “é membro de
praticamente todas as grandes organizações internacionais de caráter governamental ou
não governamental e goza de estatuto, igual ao da Suíça, de observador permanente nas
Nações Unidas”.
114
Ver MÉSZÁROS, István. A Crise Estrutural do Capital. São Paulo: Boitempo, 2011. p.
80.
57
extremado, resultando em atitudes de violência e autoritarismo contra
seguidores das religiões.
Marx, em seu tempo, ao constituir um pensamento sobre o
fenômeno da religião, a compreendeu como um produto do ser social bem
como de suas relações e que, mesmo processando um grau de
distanciamento da esfera materialista, do mundo real, onde se dá a
construção e contradições humanas, é também o “protesto” do ser, diante
de suas próprias misérias. Mas ainda assim era preciso superar o apego
ao plano religioso-espiritual para que o homem, no caso o proletariado,
com autoconsciência de suas capacidades, se tornasse senhor de sua
história.115
Atemorizada pela perseguição aos seus, a Igreja Católica enrijeceu-
se contra os sistemas socialistas, levantando um muro ante estas ideias
que não poderia, sob qualquer condição, ser transposto. Além disso, outro
elemento relevante neste discurso enfático contra o comunismo era a
questão da propriedade. Mesmo nos documentos pastorais com as
discussões mais apuradas da vida em sociedade, da política e direitos do
homem, a igreja não abandonara a concepção do direito da propriedade
privada que, segundo a instituição, estaria garantido também pelos
documentos por ela considerados como sagrados116, outro ponto de
dissenção neste enredo.

115
. Ver MARX, K. Crítica da Filosofia do Direito de Hegel, 1843. São Paulo: Boitempo,
2010. p. 145.
116
Mesmo a Encíclica Rerum novarum, referência para as questões relativas às condições
do trabalhador e sobre a sociedade, contesta a argumentação socialista da propriedade
privada: “Os Socialistas, para curar este mal, instigam nos pobres o ódio invejoso contra
os que possuem, e pretendem que toda a propriedade de bens particulares deve ser
suprimida, que os bens dum indivíduo qualquer devem ser comuns a todos, e que a sua
administração deve voltar para - os Municípios ou para o Estado. Mediante esta
transladação das propriedades e esta igual repartição das riquezas e das comodidades
que elas proporcionam entre os cidadãos, lisonjeiam-se de aplicar um remédio eficaz aos
males presentes. Mas semelhante teoria, longe de ser capaz de pôr termo ao conflito,
prejudicaria o operário se fosse posta em prática. Pelo contrário, é sumamente injusta,
por violar os direitos legítimos dos proprietários, viciar as funções do Estado e tender
para a subversão completa do edifício social” (grifos do autor). Cf. LEÃO XIII, Papa.
Rerum novarum. Carta Encíclica, 1891. Disponível em: http://w2.vatican.va/content/leo-
58
Diante da ideia de João XXIII com relação à participação das
chamadas Igrejas irmãs117, a Cúria Romana manteve um nível de
resistência, mas cedeu nutrida pela esperança de que a união entre
cristãos de diferentes denominações pudesse ser um avanço na luta
contra o comunismo118.
E, de fato, o correr da história mostra que o Vaticano II, ainda que
de forma indireta, viabilizou o início de um diálogo sobre a temática do
socialismo. Não mais apenas traçando julgamentos e condenações, mas
com discreto convite para que dentro e fora dos muros do catolicismo
houvesse disposição para rever determinadas concepções e usar de
tolerância, ainda que fosse por uma questão diplomática. O Papa do
Concílio, no decorrer de seu pontificado, buscou seguir a linha da
conciliação e deu mostras de certa transformação neste sentido na igreja,
conforme nos relata Ney de Souza:

Deixou de nomear só cardeais italianos ou europeus e alargou seu


colégio cardinalício com a nomeação de um negro, um filipino e
um japonês. Iniciou contatos ecumênicos com o arcebispo
anglicano de Cantuária, com o monge protestante de Taizé Roger
Schutz e com o patriarca ortodoxo Athenágoras. No aniversario de
80 anos do líder soviético Khruchtchev envia-lhe telegrama de
felicitações, criando um vínculo de relações com o mundo
comunista. Tempos depois, recebeu Alexei Adjubei, diretor do

xiii/pt/encyclicals/documents/hf_l-xiii_enc_15051891_rerum-novarum.html. Cf. também


CIC (Catecismo da Igreja Católica), 2401-2402.
117
“O Concílio Vaticano Il emprega a expressão Igrejas irmãs para qualificar as relações
fraternas das Igrejas particulares entre si: ‘No Oriente existem muitas Igrejas
particulares ou locais, entre as quais têm o primeiro lugar as Igrejas patriarcais, e muitas
destas se gloriam de ter sido estabelecidas pelos próprios Apóstolos. Por isso, entre os
orientais sempre foi grande, e continua a sê-lo, o cuidado e a preocupação de conservar,
na comunhão da fé e da caridade, aquelas fraternas relações, que, como entre irmãos,
devem existir entre as Igrejas locais’. [...] Enfim, há que ter presente também que a
expressão Igrejas irmãs em sentido próprio, como testemunha a Tradição comum do
Ocidente e do Oriente, só se pode aplicar exclusivamente às comunidades eclesiais que
conservaram um Episcopado válido e uma Eucaristia válida”. Cf. Ratzinger, Joseph Card.
Nota sobre a expressão: “Igrejas Irmãs”. Declaração sobre a Expressão “Igrejas Irmãs”,
2000. Disponível em:
http://www.vatican.va/roman_curia/congregations/cfaith/documents/rc_con_cfaith_doc_20000630
_chiese-sorelle_po.html.
118
BEOZZO, op. cit.
59
Isvezstia e membro do comitê central do partido comunista
soviético.119

No entanto, mesmo com o esforço de João XXIII em reunir cristãos


latinos e ortodoxos de todas as partes do mundo em Roma, no dia 11 de
Outubro de 1962, o Concílio Vaticano II foi aberto sem a presença dos
bispos chineses e alguns outros de países socialistas que não conseguiram
ser liberados para o evento. Não obstante este impasse, iniciou com
solene cerimônia, acompanhada por toda a imprensa, representantes de
ordens religiosas, observadores de outras igrejas cristãs e participada por
2.500 bispos de todos os continentes. Entre o grupo de brasileiros, estava
o bispo da jovem diocese de Santo André, em São Paulo, Dom Jorge
Marcos de Oliveira.
No dia 9 de Outubro de 1962, Dom Jorge, na companhia de outros
112 bispos, a bordo de avião cedido pelo governo brasileiro, seguiu para a
primeira sessão do Concílio Vaticano II. O bispo participou de todas as
sessões do Concílio e, juntamente aos prelados brasileiros, hospedou-se
na Casa Domus Mariae. Esta casa, em Roma, se tornara uma espécie de
ponto de encontro dos bispos para discutirem as questões conciliares e
até mesmo articularem os assuntos que pretendiam incluir na pauta das
sessões do concílio.120
Quando a igreja da América Latina chegou ao Concílio Vaticano II,
já dispunha de uma estrutura, ou seja, o CELAM. Exceto na primeira
sessão, em que não foi possível uma reunião do grupo em Roma, nas
posteriores, os bispos latino-americanos puderam se encontrar e articular
temas importantes para este espaço. Foi destes encontros que resultou a
ideia de uma assembleia em território latino-americano, a fim de traduzir
para este contexto as principais resoluções e reformas do Vaticano II.

119
SOUZA, Ney. Contexto e Desenvolvimento Histórico do Concílio Vaticano II. In:
GONÇALVES, P. S. L.; BOMBONATTO, V. I. (org.). Concílio Vaticano II: análise e
prospectivas. São Paulo: Paulinas, 2004.
120
BEOZZO, J. Oscar. Padres Conciliares Brasileiros no Vaticano II: 1959-1965. 463 f.
Tese (Doutorado em História Social) Universidade de São Paulo, São Paulo, 2001.
60
O grupo contava com D. Helder Câmara como um forte articulador.
Ele, durante o Concílio pouco se manifestou nas aulas, mas fez um bom
trabalho nos espaços informais de circulação do episcopado, como na
Casa Domus Mariae, onde ficaram hospedados os bispos brasileiros.121
A postura progressista do bispo de Santo André estava alinhada à
de Dom Hélder Câmara, que fora secretário da CNBB entre os anos de
1952 e 1964. Quando a Igreja do Brasil foi convocada para o Vaticano II,
a CNBB, sob seu secretariado, havia preparado as linhas de uma reflexão
que seria apresentada em 1963 como o “Plano de Emergência para a
Igreja do Brasil”. O documento surgiu em resposta a um pedido de João
XXIII para os episcopados da América Latina de elaboração de planos de
pastoral para suas igrejas locais. D. Câmara assim apresenta a produção:
“O Plano se justifica por si. Em sua parte pastoral inclui: Reforma
Paroquial; Reforma do Ministério Sacerdotal; Reforma dos Educandários;
Pastoral de Conjunto. Em sua parte econômico-social: Formação de
líderes; Frentes Agrárias e Sindicalização Rural; Educação de Base;
Aliança Eleitoral pela Família”.122
Foi da articulação de Dom Helder que nasceu um pequeno
organismo conhecido como Grupo da Pobreza. “O Grupo da Pobreza
denunciava a divisão entre a Igreja e os pobres, em particular os
operários, e pedia ao Concílio uma solução”.123 Com a ajuda deste grupo a
questão da situação dos países subdesenvolvidos entrou na agenda do
Vaticano II. Também deste grupo surge a iniciativa do Pacto das
Catacumbas, sugerindo uma vida simples, distante dos privilégios e do
poder, colocando em primeiro plano a opção preferencial pelos pobres,
iniciativa aderida também por Dom Jorge Marcos de Oliveira.
A relação entre igreja e povo, igreja e pobres está desde as
primeiras comunidades cristãs. Este vínculo descrito por todos os

121
RAMPON, Ivanir Antonio. O caminho espiritual de Dom Helder Câmara. São Paulo:
Paulinas, 2013. p.194.
122
CNBB. Plano de Emergência para a Igreja do Brasil. Cadernos da CNBB, n.1, 2ª
Edição. São Paulo: Paulinas, 1963. p.10.
123
Ibid., p. 204.
61
evangelistas bíblicos, em referência às atitudes de Jesus, foi incorporado à
doutrina da instituição católica como ensinamento e como prática, ou seja,
que os fiéis pudessem, mirando o exemplo do Cristo, dispor-se ao ato de
ajudar os mais pobres. No entanto, este exercício acontecia muito mais
num sentido assistencialista, na intenção de cumprir um preceito cristão e
não ser julgado socialmente e moralmente, do que propriamente
motivado por compaixão e desejo de trazer estes indivíduos para integrá-
los à comunidade. Existia uma barreira que não seria atravessada por
estes.
Nas palavras do teólogo Leonardo Boff: “a Igreja aparece como
uma Igreja para os pobres e não tanto com os pobres e dos pobres”. 124 A
partir do Concílio Vaticano II, especialmente na América Latina, cresce a
tendência em se refletir uma igreja com “opção preferencial pelos pobres”.
De modo que ‘pobre’ recebe uma nova conotação, incluindo, não mais
apenas aqueles desprovidos materialmente de recursos, mas também
quem está oprimido, quem sofre perseguição, quem se põe à frente na
defesa dos direitos, quem está marginalizado, excluído, enfim, uma
reinterpretação não apenas religiosa ou etimológica, mas histórica 125. Uma
nova compreensão que pretendia estabelecer finalmente a práxis de uma
igreja para, com e dos pobres.
Um dos objetivos do Concílio Vaticano II era oferecer uma
atualização para a Igreja, propondo participar das esferas socioculturais
nas quais o homem atua cotidianamente. No entanto, questionamos sobre
o quanto esteve a Igreja disposta para abrir-se às mudanças, sobre quais
eram estas mudanças e quem as promoveu. Além disso, nos interessamos
em saber sobre como estas transformações foram apresentadas à sua
população de fiéis, às suas comunidades religiosas e ao clero.

124
BOFF, Leonardo. Igreja: Carisma e Poder: Ensaios de uma Eclesiologia Militante.
Petrópolis: Editora Vozes, 1982. p. 19. A publicação deste trabalho custou ao teólogo um
ano de ‘silêncio obsequioso’, punição imposta pela Congregação da Doutrina da Fé, à
época presidida pelo Cardeal Joseph Ratzinger, depois Papa Bento XI. A obra se tornou
referência para a Teologia da Libertação.
125
GUTIÉRREZ, Gustavo. Teologia da Libertação: Perspectivas. Petrópolis: Vozes, 1986.
p. 362.
62
Pensando nisso, nos propusemos a buscar informações sobre a
atuação da Diocese de Santo André, no contexto da Ditadura Militar,
refletindo as resoluções conciliares. Passemos, então, a esta discussão.

1.3 Diocese de Santo André: Fé, política e classe operária.

Como já discutido no início deste trabalho, a Diocese de Santo


André não ofereceu apoio declarado ao Golpe de 1964, embora a
assinatura de Dom Jorge Marcos de Oliveira conste no Manifesto do
Episcopado Paulista, declaração escrita um mês após o Golpe. No entanto,
o ABC concentrava uma quantidade importante de indústrias e uma classe
média ampla e organizada o bastante para contestar as ações do “Bispo
Vermelho”, tal como ficou conhecido Dom Jorge.
Em uma das viagens para a sessão conciliar, provavelmente a
última, em 1965, conseguiu um breve período de tempo para uma
conversa informal com Paulo VI. Na ocasião, o papa teria mostrado a Dom
Jorge a quantidade de cartas que recebia com queixas a respeito de sua
atividade junto aos movimentos sociais, especialmente aqueles ligados à
classe operária. Após dar satisfações ao Sumo Pontífice sobre sua
atuação, deste recebeu a orientação: “Tenha prudência. Mas, sobretudo
tenha coragem para continuar”.126 O religioso guardou as palavras com
zelo e não desistiu, se comprometeu ainda mais com os trabalhadores,
especialmente aqueles da região do ABC, destes ganhou o apelido de
Bispo dos Operários e, dizia convicto: “uma das coisas que mais me
alegram”.127
De fato, muitos estavam insatisfeitos com a presença do Bispo
Vermelho, e encorpavam a lista empresários, políticos, polícia, leigos,
integrantes do clero e do próprio episcopado. O religioso dizia sentir-se

126
OLIVEIRA, Jorge M. Dom Jorge, 25 anos de Grande ABC (Primeira Parte). Entrevista
concedida a Ademir Médici. Diário do Grande ABC.
127
Idem.
63
como “uma figura meio estranha” 128
entre os membros da CNBB, mas
parecia não temer muito as críticas nem se sentia intimidado, quando se
deparava com alguma situação da qual sentia que o povo estava sendo
prejudicado, alguma maneira encontrava para expor sua indignação.
Em determinada ocasião, o então Governador da Guanabara,
Carlos Lacerda, assim teria contestado, quando Dom Jorge Marcos se
levantou diante da discussão sobre reforma agrária. Disse o político: “os
bispos devem rezar e não pensar em reforma agrária”.129 O Bispo, porém,
não deixou sem resposta. Através das páginas do Jornal do Brasil,
replicou:

Os bispos rezam, e rezam muito, todos os dias, mas não podem


ficar de braços cruzados vendo a injustiça social entronizar-se na
vida pública, e a gente brasileira sendo dizimada pela fome e pela
miséria.130

D. Jorge e Lacerda eram antigos conhecidos, do tempo em que o


bispo atuava como auxiliar no Rio de Janeiro. Em 1964, pouco mais de um
mês antes do Golpe, Lacerda avisou que iria visitá-lo em Santo André para
debater “problemas ligados à realidade brasileira”. D. Jorge, presidente de
honra da Frente Nacional do Trabalho131, se antecedeu e enviou uma
mensagem:

128
Ibid. MÉDICI, 1979.
129
MORAES, Dênis. A esquerda e o golpe de 64. São Paulo: Expressão Popular, 2011. p.
44.
130
Id.
131
“A Frente Nacional do Trabalho foi fundada em 29 de Maio de 1960 em São Paulo e
teve sede instalada em Santo André. Congregou advogados, padres, leigos católicos,
estudantes e trabalhadores que passaram a apoiar a luta operária. A ideia de sua
formação cristalizou-se depois de 1959, quando se deflagrou a greve da Indústria de
Cimento Portland de Perus. O advogado Mário de Carvalho de Jesus tornou-se o líder da
organização e passou a intermediar os acordos entre patrões e empregados em diversos
movimentos grevistas. A FNT com forte influência da Igreja Católica e da Doutrina Social
Católica deveria caminhar conforme os princípios da Igreja”. Cf. Maria Blassioli. A Ação
Católica e a Luta Operária: a experiência dos jovens católicos em Santo André (1954-
1964). 207 f. Dissertação (Mestrado em História Social) Universidade de São Paulo, São
Paulo, 2003. p.159.
64
Meu caro Carlos. Perdoe-me, mas tomei a liberdade de fazer
chegar às suas mãos alguns dos pontos que o trabalhador
brasileiro, de qualquer categoria, mas sobretudo o operário, há
tanto tempo espera ouvir.
Perdoe-me, ainda, mas o operariado já tem medo de promessas.
Apresente, não como promessas, mas como ideal seu –
identificado com o dele – pelo qual você trabalhará em qualquer
campo em que se encontrar.
Fraternalmente, D. Jorge.132

Dom Jorge, ao mesmo tempo em que mantinha um comportamento


condizente aos ensinamentos da doutrina católica, à vivência da
espiritualidade e obediência aos votos de vida consagrada, também
administrou seu episcopado no âmbito da complexidade da vida cotidiana
do povo; fator que vai para além de um plano ideológico, pois quando
necessário ele deixou as vestes episcopais e participou da realidade se
fazendo um como os demais. A propósito, um exemplo pode dar indícios
desta postura: ao retornar de uma das sessões do Vaticano II, o bispo
teria causado admiração por já estar usando clergyman (camisa com
colarinho branco) e não mais o hábito eclesiástico, até então, de uso
comum do clero e religiosos em geral.133

Exceto por algumas questões de ordem prática como os novos trajes


do clero, a adequação da missa para a língua vernácula, uma liturgia mais
próxima do povo e o início de uma maior autonomia do leigo, até o fim
dos anos 60, ainda não havia chegado com vigor no Brasil nem no
restante da América Latina os ventos do Concílio Vaticano II. A real

132
AVISTA-SE com Lacerda bispo de Santo André. O Estado de São Paulo, São Paulo, 22
fev. 1964. Primeira Página. Anexamos a este trabalho uma cópia desta matéria.
133
MORAES, Maria Blassioli. A Ação Católica e a Luta Operária: a experiência dos jovens
católicos em Santo André (1954-1964). 207 f. Dissertação (Mestrado em História Social)
Universidade de São Paulo, São Paulo, 2003. p.16.
Sobre a mudança da batina para o traje clerical simples e a reação do povo: “Os padres e
seminaristas apresentavam-se como gente comum. A maioria substituía a batina por
roupas laicas ou pelo menos chamativo traje clerical permitido pelas normas pós-
Vaticano II. Esse era um modo simples, mas eloquente de aproximar-se do povo. Poucos
gestos simbolizaram tão poderosamente a transformação do sacerdócio. Hoje em dia, a
visão de um homem na rua vestindo o hábito clerical seria tão desconcertante quanto,
nos anos 1960, a de um padre que não o usasse”. SERBIN, Kenneth P. Padres, Celibato e
Conflito Social: uma história da Igreja Católica no Brasil. São Paulo: Companhia das
Letras, 2008 p. 182.
65
construção das resoluções conciliares para o contingente latino-americano
acontece com o encontro da CELAM em Medellín, Colômbia, entre agosto e
setembro de 1968.

O fato é que, mesmo antes da realização do Concilio Vaticano II, as


práticas pastorais da Diocese de Santo André eram pautadas, sobretudo,
a partir do programa da Doutrina Social da Igreja Católica. Um conjunto
de normativas e orientações com vistas a direcionar a atividade social
realizada pelos fiéis, religiosos e clérigos.

Em virtude das exigências da fé, a Igreja pode e deve expressar


sua visão própria em tudo o que se refere à ordem social. Por
causa de seu estatuto próprio – isto é, não sendo do mundo, mas
estando no mundo, não tendo como fim próprio a promoção da
civilização, mas orientando de fato a sociedade para uma ordem
social mais justa -, a Igreja possui um tipo de humanismo, de
doutrina da história e da sociedade humana claramente definido
nas Sagradas Escrituras, nos Concílios e no Magistério ordinário e
extraordinário do colégio episcopal sob a autoridade de Pedro. 134

Os subsídios que baseiam os princípios da Doutrina Social da Igreja


são os seguintes documentos apostólicos: Qui pluribus (1848), Quanta
cura (1864), Quod apostolici muneris (1878), Rerum novarum (1891),
Quadragesimo Anno (1931), Mater et Magistra (1961) e Pacem in terris
(1963).135
Dom Marcos conhecia bem estes documentos e outros também. Na
construção de sua formação política e filosófica lera “Stuart Mill, Adam
Smith, os fisiocratas e até mesmo ‘um pouco de Marx’” . Em entrevista
136

concedida ao Jornal Diário do Grande ABC, no ano de 1984, ao ser


questionado pelo jornalista Ademir Médici sobre sua atuação social no ABC
e, sobre como a igreja observava seu comportamento, o bispo teria
afirmado:

134
DUSSEL, Enrique D. Caminhos de Libertação Latino-Americana. V. 4: Reflexões para
uma teologia da Libertação. São Paulo: Edições Paulinas, 1984. p. 47.
135
Idem.
136
MARTINS, Heloisa. op. cit., p. 62.
66
Apesar de eu pregar única e exclusivamente a doutrina da Igreja,
das encíclicas, nunca eu preguei coisa alguma que não estivesse
perfeitamente clara nas encíclicas chamadas sociais, nos livros dos
melhores autores que interpretavam as doutrinas sociais, e depois
realmente no próprio Novo Testamento e Antigo Testamento. 137

À medida que Concílio Vaticano II avançava em suas discussões


concernentes à sociedade e ao mundo moderno, refletiam-se no plano
cotidiano das igrejas particulares, ou seja, nas dioceses, prelazias,
comunidades católicas, um novo modo de viver a religião. Mesmo sabendo
que não era raro um padre ou bispo ter atuação social, ser conhecedor ou
até mesmo partidário de determinada ideologia política, há que se
considerar que, uma vez que a Igreja não só deu o aval, como também
incentivou abertamente uma intervenção mais ousada de seus fiéis e
consagrados no espaço público e social, trouxe à tona também um conflito
de ideias e paradigmas.

O Vaticano II produziu nos católicos uma combinação de alegria,


júbilo, decepção, confusão, raiva e insegurança. No entanto, o
concílio definiu claramente os papéis do laicato e dos bispos. Só
que pouco fez para atender às necessidades da camada média da
Igreja, as centenas de milhares de padres. [...] Viram-se
entalados entre a tradição e a modernidade. Permaneciam como
mediadores entre Deus e os fiéis, mas também tinham a obrigação
de descer ao nível do povo.138

A questão que Serbin apresenta é tangível no âmbito de Santo


André. Percebemos neste momento, um bispo com aspirações
progressistas e que, para além de convicções políticas, enxergava a
necessidade de uma atuação mais prática no cotidiano da população, mas
ao mesmo tempo, tinha nas mãos o desafio de lidar com um clero, ou
parte dele, devoto de uma religião tradicional, conservadora e, até então,
pouco acostumado a rezar, pregar e celebrar olhando nos olhos dos seus
fiéis. Talvez por consciência disso, Dom Jorge tenha amenizado sobre as
dificuldades com os padres da diocese, ao dizer:
137
OLIVEIRA, Jorge M. Dom Jorge, 25 anos de Grande ABC (Primeira Parte). Entrevista
concedida a Ademir Médici. Diário do Grande ABC, 21 out. 1979. Caderno C.
138
SERBIN, Kenneth P. Padres, Celibato e Conflito Social: uma história da Igreja Católica
no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2008 p. 163.
67
Eu não posso me queixar dos padres da região. Todos eles
compreendiam muito bem e se nem todos tinham assim
possibilidade ou jeito de se aproximar de uma luta acesa, que
apesar de não ter a característica da violência, tinha sempre a
característica da luta reivindicatória, todos, de um modo ou de
outro, participavam comigo, me davam apoio.139

A “luta reivindicatória”, da qual Dom Jorge se referia, incomodava


muito mais à burguesia empresarial e à classe média, do que
propriamente ao clero, e com o passar do tempo esta mesma burguesia
que pretendeu à criação da diocese, se vê às voltas com o crescente
envolvimento de religiosos na esfera temporal das cidades. Sim, isso
interferia, consequentemente, seus interesses, uma vez que, padres e
demais religiosos conquistaram a confiança dos trabalhadores e da
população carente, cientes de suas necessidades, geralmente, agiam sob
os protocolos da cartilha de seu bispo; interferiam diretamente nas
realidades com as quais se deparavam e viam a concretização de sua
vocação passar pelo viés profético: anuncia e denunciar. Sobre esta
característica, neste e em outros episcopados do Brasil, Roberto Romano
explica:

Esse tom profético passou a ser, daí para a frente, a nota distintiva
da Igreja como uma das poucas instituições nacionais capazes de
enfrentar o Estado. Ela aparece como a defensora por excelência
dos direitos humanos, como a ‘voz dos que não têm voz’,
denunciando cada vez mais as violações da justiça, o desrespeito à
segurança, à propriedade e à vida dos camponeses, o não-
pagamento do salário justo aos operários, a não distribuição social
do produto do desenvolvimento econômico etc. 140

É verdade que a Diocese de Santo André recebeu muito da


personalidade de seu primeiro bispo, mas considerando o fator histórico
desta região, sobretudo no período em que estamos mencionando neste
estudo, não haveria de ser muito diferente com outro administrador

139
OLIVEIRA, Jorge M. Dom Jorge, 25 anos de Grande ABC (Primeira Parte). Entrevista
concedida a Ademir Médici. Diário do Grande ABC, 21 out. 1979. Caderno C.
140
ROMANO, Roberto. Brasil: Igreja contra Estado. São Paulo: Editora Kairós, 1979. p.
28.
68
episcopal que assumisse o setor. E, caso o bispo adotasse postura mais
rígida e conservadora, em algum momento, teria ao menos que refletir
sobre um modelo mais próximo da população e de suas realidades ou,
então, certamente teria um rebanho menor e muito menos engajado nas
propostas diocesanas. Além disso, mesmo que a Igreja, como instituição
religiosa, orientasse seu clero a recuar diante de questões políticas, o
momento exigia um posicionamento dos religiosos que lidavam
diretamente com o povo.
Sobre o envolvimento político da Igreja, a Gaudium et Spes, um
dos documentos frutos do Concílio Vaticano II, orienta:

É de grande importância, sobretudo onde existe uma sociedade


pluralística, que se tenha uma concepção exata das relações entre
a comunidade política e a Igreja; e ainda que se distingam
claramente as atividades que os fiéis, isoladamente ou em grupo,
desempenham em próprio nome, como cidadãos, guiados pela
consciência de cristãos, e aquelas que exercitam em nome da
Igreja e em união com seus pastores.
A Igreja, que em razão de sua missão e competência, de modo
algum se confunde com a sociedade política nem está ligada a
qualquer sistema político determinado, é ao mesmo tempo o sinal
e salvaguarda da transcendência da pessoa humana.141

O temor principal da Igreja era vir-se atrelada a algum partido


político ou movimento específico, que declinasse aos ensinamentos
cristãos católicos ou, no pior dos casos, abrisse uma porta para o
comunismo. Padre Oscar Beozzo explica que, Cuba foi um divisor de
águas em 1959.
Um divisor no sentido de grupos minoritários, de dizer: “Esse é um
caminho, de se obter justiça social”. Então, a questão não era
tanto socialismo ou não socialismo, mas um caminho que
finalmente trouxesse ao povo aquilo que faltava: educação, saúde,
moradia, um salário digno, uma reforma agrária. Então há setores
dentro da Juventude Católica, sobretudo, que se encantam com a
Revolução Cubana e propõem uma revolução brasileira.142

141
LOPES, Geraldo. Gaudium et Spes: Texto e comentário. São Paulo: Paulinas, 2011. p.
181.
142
DINES, Alberto, FERNANES JR., Florestan, SALOMÃO, Nelma (organizadores).
Histórias do Poder: 100 anos de política no Brasil. Vol. 1. Militares, Igreja e Sociedade
Civil. São Paulo: Editora 34, 2000. P. 60.
69
Entre 1950 e 1960, a esquerda conseguiu expandir-se, sobretudo
com o PCB – Partido Comunista Brasileiro. Mesmo estando na ilegalidade,
os integrantes do PCB tinham acesso aos sindicatos e outras associações
da classe operária. Isso se deve também ao curto período em que pode
atuar legalmente na década de 1940 (entre 1945 e 1947) e, no ABC,
angariou simpatias para formar uma base, que se desenvolveu no mesmo
ritmo em que aumentou a classe trabalhadora.
Com tradição operária e sindical, sob influências do anarco-
sindicalismo143, esta região viu surgir uma igreja com personalidade
semelhante. Não assumindo os posicionamentos destes movimentos, mas
se mostrando combativa no que se refere às questões da classe
trabalhadora, de modo que, os movimentos cristão-católicos de orientação
social, que começam a ser formado neste espaço, assimilaram muito da
vanguarda das organizações já existentes.
A Encíclica Rerum Novarum, de Leão XIII, abriu um forte
precedente para que a instituição católica discutisse mais abertamente as
demandas da sociedade. Diante do avanço do socialismo, em fins do
século XIX, da Revolução Industrial e da premente situação do
proletariado, o Papa propunha que a Igreja ouvisse e acolhesse os apelos

143
Sobre a influência anarco-sindical na região do ABC Paulista, há informações de que o
trabalhador europeu, principalmente a comunidade italiana, desde o início do século 20,
apresentava resistência aos abusos do patronato, sofrendo repressão policial. Em
fevereiro de 1902, operários da fábrica de tecido Silva Seabra e Cia, do Bairro
Ipiranguinha, em Santo André, entraram em greve por melhores condições. A polícia foi
acionada para conter o movimento e, em 1906, novamente os trabalhadores se
organizaram por conta da diminuição do preço da mão-de-obra e exigência de que cada
operário produzisse diariamente 40 metros de tecido, sob pena de expulsão da fábrica. A
Federação Operária de São Paulo se mobilizou com a finalidade de orientar e oferecer
apoio aos operários. A polícia interveio, prendendo operários e as lideranças sindicais,
além de censurar outras manifestações de solidariedade. Em 1921, Alexandre Zanella,
italiano, foi deportado para a Itália porque liderava na região movimentos operários e
sindicais de trabalhadores das pedreiras. “Eram todos italianos os escarpelinos. A
influência do anarquismo era grande. Daí os choques. Comenta-se: as prisões eram
comuns; idem as fugas dos trabalhadores provocadas pelas tropas policiais, chamadas às
pedreiras para reprimir. Os detidos eram obrigados a caminhar desde as frentes de
trabalho até a capital, ao longo dos trilhos da São Paulo Railway. Os escarpelinos
fundaram o seu sindicato, em Ribeirão Pires”. Cf. MEDICE, Ademir. 1º de Maio e os
principais momentos da luta sindical em São Bernardo: 1902 – 1990. São Bernardo do
Campo: Prefeitura Municipal de São Bernardo do Campo, 1990.
70
da população operária. Foi também início de um processo de maior
autonomia ao leigo.

Entretanto, essa autonomia tinha limites. Embora movimentos


leigos reajam às mudanças na sociedade em geral, eles sempre
são parte da Igreja institucional. E embora os movimentos leigos
possam adquirir alguma autonomia em relação à hierarquia, os
limites dessa autonomia dependem principalmente da
hierarquia.144

Em 1922, Pio XII, através da Encíclica Ubi Arcano Dei (1922),


convidou o laicato para um novo projeto: A Ação Católica, cujo objetivo
principal era a formação de lideranças leigas que, agindo em seu meio,
contribuiriam na cristianização do mundo. O programa foi oficializado no
Brasil, em 1935, e alguns anos após, deu origem à JAC – Juventude
Agrária Católica, JEC – Juventude Estudantil Católica, JIC – Juventude
Independente Católica, JOC – Juventude Operária Católica e JUC –
Juventude Universitária Católica.145

No Brasil, durante o fim da década de 50 e no início dos anos 60, a


participação mais profunda dos católicos nos movimentos
operários, camponeses e estudantes dependia da aquiescência da
hierarquia. Num momento histórico diferente, a hierarquia poderia
ter proscrito a participação católica nesses movimentos,
impedindo, assim, que o laicato pudesse participar, enquanto
católicos, na política progressista.146

Na Diocese de Santo André, dos movimentos existentes e de


relevância popular e social, podemos citar: a Ação Católica Operária –
ACO, a JOC, a JUC, a Ação Popular (AP) e as Comunidades Eclesiais de
Base (CEBs).
A JUC, neste espaço não teria alcançado adesão entre os jovens.
Além disso, por fatores políticos e ideológicos, entrou num processo de
rompimento com a Igreja no Brasil e, posteriormente, vários de seus

144
Cf. MAINWARING, Scott. Igreja Católica e Política no Brasil: 1916-1985. op. cit. p. 83.
145
Cf. Id.
146
Cf. Id.
71
integrantes teriam incorporado outros movimentos de convicções
alinhadas.147
A JOC e a ACO148, ao contrário, se fortaleceram na região. A JOC
deu início às suas atividades em fins da década de 40, antes mesmo da
criação da Diocese de Santo André, estando submetida à Federação do
Estado até 1955. Conforme Blassioli, tratava-se de movimento bastante
organizado. O processo de adesão de um novo militante, por exemplo,
passava pela observação de outros membros, para saber o bairro em que
morava, a fábrica onde trabalhava, o grau de interesse e compromisso
com os ideais e com espiritualidade, além da aprovação dos padres
assistentes, só após este protocolo o novo membro era oficialmente
aceito. A JOC tinha reuniões rotineiras, hinos, e os militantes deveriam
seguir uma disciplina de prática de vida cristã. Após a chegada de Dom
Jorge à diocese e, posteriormente com o apoio de um padre local,
Monsenhor José Benedito Antunes, a JOC se tornou um instrumento ainda
mais forte nas lutas da classe operária.149
Após a década de 1960 outras frentes foram surgindo como as APs,
as CEBs e o MEB – Movimento de Educação de Base. Mainwaring aposta
neste momento, que ele reconhece como o surgimento de uma igreja
popular (1960-1973), responsável pela consolidação de movimentos
populares católicos e, sublinhe-se, de protagonismo do leigo.

147
MORAES, Maria Blassioli. A Ação Social Católica e a Luta Operária: a experiência dos
jovens operários católicos em Santo André (1954 - 1964). op. cit., p. 25.
148
Sobre a ACO, a autora explica que “a geração de militantes que participou da JOC
durante a década de 1950 , afastou-se do movimento no início dos anos 60, sobretudo
porque estava assumindo casamento. Justamente no ano de 1962, os militantes
formaram a Ação Católica Operária (ACO) no ABC, organização que passou a reunir não
somente os moços ou somente as moças, mas a participação nas reuniões e nas
atividades sempre acontecia com a presença dos casais. Esta característica foi
responsável pelo aspecto familiar da ACO”. MORAES, Maria Blassioli. A Ação Social
Católica e a Luta Operária: a experiência dos jovens operários católicos em Santo André
(1954 - 1964). op. cit. Maior aprofundamento no tema dos movimentos da ACO e JOC,
cf. MARTINS, Heloisa Helena T. de Souza. Igreja e Movimento Operário no ABC: 1954-
1975. Op. cit.
149
MORAES, Maria Blassioli. A Ação Social Católica e a Luta Operária: a experiência dos
jovens operários católicos em Santo André (1954 - 1964). op. cit., p. 54.
72
No Jardim Zaíra, hoje região de Mauá, um grupo ligado à Ação
Popular150 se desenvolveu de maneira admirável entre os anos de 1968 e
1970, cujo dirigente era o sociólogo Betinho. Seus membros eram
politizados, conscientes das necessidades e capacidade de organização da
classe operária e contavam com o apoio da igreja local. Fundado no
episcopado de Dom Jorge Marcos, o movimento tinha respaldo do bispo,
porém, com o recrudescimento do Golpe, após 1968, passou a sofrer
constantes ameaças, teve integrantes presos e torturados e,
praticamente, passou para a condição de um movimento ilegal, mesmo
com suas origens vinculadas à Igreja Católica.151
Para os Movimentos Sociais, o ano de 1968 parece ter sido um
divisor de águas ao que se refere à sua atuação, e com uma particular
importância para as organizações de Juventude.
O radicalismo das ações juvenis, que se traduzia, algumas vezes,
num ataque à moralidade, continha um subjetivismo que apontava para o
desejo de algo que transcendesse a atmosfera de conflitos políticos,
militares, econômicos, ideológicos e “implícita ou explicitamente,
rejeitavam a ordenação histórica e há muito estabelecida das relações
humanas em sociedade, que as convenções e proibições sociais
expressavam, sancionavam e simbolizavam”.152 Se tratava, sem dúvida,
primeiro de uma revolução cultural, de costumes, mas era também a

150
Recorremos a MAINWARING para rapidamente compor um perfil do Movimento Ação
Popular: “Depois de sua criação em 1961, a Ação Católica Popular (AP) representou um
dos principais canais católicos para a atividade política de esquerda. A Ação Popular
expressava a tentativa dos católicos para criar uma sociedade justa quando já se tornara
mais difícil que tal tentativa ocorresse dentro das estruturas da Igreja. Na medida em
que surgiram as desavenças depois de 1961, muitos líderes da JUC quiseram criar um
movimento novo inspirado no cristianismo, mas fora da Igreja porque se sentiam
constrangidos por ela. Acreditava-se serem mais eficazes politicamente se atuassem
como um movimento autônomo. A AP rapidamente tornou-se uma das três maiores
organizações de esquerda na política brasileira, juntamente com o PCB e PCdoB. Mesmo
sendo uma pequena organização de aproximadamente 3000 membros, era bastante
influente. Membros da AP eram líderes na educação popular, no trabalho sindical e na
organização de camponeses”. Cf. MAINWARING, op. cit., p. 86.
151
PORTUENSE DE CARVALHO, Sandra A. Experiências de Solidariedade e Política – CB-
22 – A Ação Popular no Jardim Zaíra (1958 - 1970). 184 f. Dissertação (Mestrado em
História Social) Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2013.
152
HOBSBAWM, Eric. Era dos Extremos: O Breve Século XX. São Paulo: Companhia das
Letras, 1995. p. 327
73
elaboração de uma inquietação que se desdobraria para além da esfera
comportamental, principalmente para os países do Terceiro Mundo.153
Na cena internacional ferveu a revolução de Maio, na França, com a
força dos estudantes que atraíram para o movimento dois terços dos
trabalhadores de todo o país, um feito com dimensão de conquista154. Este
acontecimento gerou reflexos no mundo, e no Brasil foi como se trouxesse
aos grupos sociais, em especial para a juventude estudantil, um pouco da
vitalidade reprimida depois do Golpe de 1964. Muitos participantes
tiveram que se afastar de suas atividades por medo da repressão. E, no
geral, os grupos foram se diluindo, inclusive dentro da Igreja no Brasil,
que vinha realizando um significativo trabalho com bom alcance social,
através da Ação Católica, Juventude Operária Católica, Juventude
Universitária Católica e das Comunidades de Base.
O assassinato do estudante secundarista Edson Luís Souto, em
uma ação da polícia no Rio de Janeiro, em 28 de março de 1968, revelou
que, embora o governo tivesse, de certa forma, conseguido conter o clima
de agitação e manifestação popular, não atraíra para si o apreço da ampla
camada da população brasileira. Havia uma insatisfação que se fazia
crescente e agora ganhava mais vulto com os movimentos sociais e da
maioria da classe estudantil do país.
A morte de Edson Luís causou comoção nacional e gerou uma onda
de passeatas e protestos. Também sensibilizada com o fato, a Igreja do
Brasil apoiou várias destas manifestações.
A Diocese de Santo André não só deu apoio às manifestações como
elogiou a ação dos estudantes155, e o bispo celebrou, na Igreja Matriz de

153
Ibid., p. 432. Para HOBSBAWM, “os estudantes do Primeiro Mundo raramente se
interessavam por questões banais como derrubar governos e tomar o poder (...). (os
estudantes do Terceiro Mundo estavam mais próximos das realidades do poder; os do
Segundo Mundo sabiam que estavam necessariamente distantes dela)”.
154
As manifestações de Maio de 1968 na França, foram emblemáticas em todo o mundo.
Espelhando-se na façanha dos estudantes de Paris, grupos de jovens em muitos países,
passaram a
155
PERMANECE CLIMA DE TENSÃO. ABC. O Estado de S. Paulo, p. 8, 4 col., 02 abril
1968. Nota publicada: “Centenas de estudantes do ABC vieram ontem a São Paulo, para
participar da passeata aqui realizada. Os diretórios acadêmicos manifestaram-se
74
São Bernardo do Campo, uma missa em memória ao jovem, a um
operário anônimo e a Martin Luther King, assassinado nos Estados Unidos
no dia 4 de abril. A celebração presidida por Dom Marcos recebeu sentido
ecumênico, contando com a presença de representantes de outras
denominações religiosas. A liturgia do “descanse em paz” foi também a
manifestação de indignação diante de atos de intolerância. Não existia ali
um clima de revolta ou insurreição, mas a certeza de que esta “luta”
merecia artifícios diferentes dos utilizados pela força militar para reprimir.
Estes eram a resistência popular e atuação dos movimentos sociais e
pastorais da Igreja:

Nós estamos engajados numa luta, não contra o Exército, com


canhões, aviões e bombas, mas numa luta para que o homem seja
salvo das injustiças dos opressores, num mundo que sorri
satisfeito, mas que está cheio de injustiças e desumanidades.
Nossa luta não é uma luta de ódio, mas uma luta de
reivindicações.156

No ABC, os diretórios acadêmicos das principais faculdades da


região se mobilizaram e foram em passeata à cidade de São Paulo. Parte
desta organização teve o apoio da JOC, Juventude Operária Católica,
presente na diocese desde o final da década de 1940157. Em abril de 1968
a JOC, juntamente com a ACO, participou de um Conselho Nacional, em
Recife, e o documento resultante deste encontro mostrou uma redefinição
de traços característicos de sua atuação. Esta alteração causou impacto
frente à hierarquia católica, pois a JOC declarava um “rompimento
teórico” com o capitalismo, “considerando-o como a causa dos problemas
da classe operária brasileira e concluindo pela necessidade de sua
superação e da luta pelo socialismo”.158

publicando comunicados. Registrou-se o protesto do bispo Dom Jorge Marcos de Oliveira,


da Diocese do ABC, que elogiou os estudantes e criticou o governo”.
156
DOM JORGE PREGA LUTA DAS REIVINDICAÇÕES. O Estado de S. Paulo, p. 8, 1-2 col.,
06 abril 1968.
157
MORAES, op. cit., p. 25.
158
MARTINS, op. cit,. p. 199.
75
Nos dias que se sucederam à morte de Edson Luís, o que se viu
pelo país foi uma série de passeatas e manifestações estudantis, com
apoio de associações de trabalhadores, Movimentos de Esquerda e da
Igreja Católica. Milhares foram às ruas.
Pouco depois de um mês do ocorrido, outra situação mobilizaria os
órgãos de segurança nacional, com consequências para a Igreja Católica
no ABC.
O Dia do Trabalhador havia se tornado um referencial para os
operários na região. Eles costumavam se reunir para celebrar junto ao
bispo na Igreja Matriz de São Bernardo. Nesta data, Dom Jorge
aproveitava para junto dos trabalhadores fazer um levantamento dos
problemas enfrentados por estes, mostrar solidariedade e ajuda-los em
suas reivindicações e lutas.
Para o 1º de Maio de 1968, algo diferente fora programado.
Haveria, no entanto, desta vez, uma única solenidade pública na região,
com a presença do bispo e do cantor Geraldo Vandré, no Bairro Santa
Terezinha, em Santo André159. Mas, a grande mobilização aconteceria ao
longo do dia em São Paulo, na Praça da Sé, com a presença do
Governador do Estado Roberto Costa de Abreu Sodré. Para o evento,
houve grande divulgação nas fábricas, nas ruas, nos meios de
comunicação e inclusive nas igrejas. De forma, que o próprio bispo teria
incentivado seus padres a organizarem seus fiéis para uma participação
intensa no encontro. Dom Jorge Marcos fora convidado a falar, assim
como um operário da ACO e outros militantes políticos.
Chegado o dia, diversos grupos de trabalhadores ocuparam os
espaços da Praça da Sé. Sobre os acontecimentos que se seguiram,
vamos nos utilizar da narração de Martins:

159
PASSARINHO VAI DECIDIR (Santo André). O Estado de S. Paulo, p. 6, 4-5 col., 24
abril 1968.
76
“Apenas iniciado o ato, pedras foram atiradas contra o palanque
atingindo várias pessoas, até o governador, ferindo-o na testa.
Todos os que estavam em cima do palanque fugiram assustados
pelas escadarias da catedral, buscando abrigo em seu interior. Os
manifestantes invadiram o palanque, derrubaram-no e colocaram
fogo. A Praça da Sé transformou-se em um campo de batalha, com
operários correndo em todas as direções, e policiais armados
começaram a atirar. A multidão abandonou a praça e saiu em
passeata, em direção à Praça da República, quebrando os vidros
do prédio do Citibank. Parecia que o radicalismo e a revolta
estudantil haviam atingido os operários”. 160

O ato recebeu repercussão nacional e, conforme Heloísa Martins,


havia evidências de que a confusão ocorrida também era consequência de
divergências no interior do MIA - Movimento Intersindical Antiarrocho
quanto à preparação do evento, sendo a presença do governador a
principal delas. Este fato teria sido o impulso para a articulação de um
protesto. No caso do ABC, o encontro estava sendo preparado também
pelas organizações e sindicatos da região e “os militantes do ABC
estiveram no centro dos acontecimentos, expressando uma organização e
combatividade diferenciada”, além de que, muitos foram identificados
como participantes de movimentos da Igreja, especialmente da Ação
Popular, com forte atuação nesta diocese.161

A realidade da classe trabalhadora também foi percebida de perto


por um grupo de padres-operários, vindos da França, para a Diocese de
Santo André no início dos anos 60. Para entender melhor a atividade
destes religiosos, optamos por reproduzir aqui a explicação de Padre José
Mahon, que veio para o Brasil como padre operário:

160
MARTINS, op. cit. p. 202-203.
161
MARTINS, op. cit. p. 205.
77
É muito simples. Foi na Segunda Guerra Mundial. Na França todo
mundo faz serviço militar. Seminaristas, todo mundo. Eu fiz um
ano de serviço militar. Houve a Segunda Guerra Mundial, (...)
como os alemães invadiram a França, as tropas foram prisioneiras
e iam pra Alemanha trabalhar nas fábricas para substituir os
soldados que estavam na guerra. Então, os padres que deixaram a
paróquia para ir à guerra, foram levados pra Alemanha e ficaram
prisioneiros. Esses padres, (...) de repente, se encontram no
campo de prisioneiros no meio de mil, dois mil homens prisioneiros
como eles, todos sem mulheres, tendo que trabalhar em fábricas
só para sustentar a vida. E eles percebem que o quê eles
conheciam na paróquia não é a vida, é uma vida artificial. A vida
religiosa, os batizados, as missas, contar o dinheiro da coleta, que
isso não é uma vida. A vida é o que o povo vive todo dia! Quando
eles voltaram, eles disseram: “não, eu não vou mais numa
paróquia, eu quero continuar viver, viver!”. E como os operários
são a categoria social que mais sofre, então, eles começaram a
trabalhar como padres operários, no meio do povo, nas fábricas,
usando profissões bem simples, sujavam as mãos de graxa, tava
bom. E eles começaram a viver esta vida no meio do povo. E
viram que a igreja estabelecida tem um tipo de vida e o povo tem
outra, e eles escolheram viver junto com o povo! E foi assim que
houve uma novidade na igreja, uma abertura missionária de vida
aos padres operários. Às vezes, eles moravam na casa paroquial,
mas eles iam trabalhar, participavam da reunião do sindicato, iam
visitar os colegas de serviço, eles ajudavam famílias com
problemas de educação dos filhos (...). 162

Padre Mahon nos contou a sua própria experiência de padre


operário no Brasil, trabalhando nas indústrias Villares:

eu fui o primeiro a tentar trabalhar em fábricas pra ver se aqui


haveria a possibilidade. Tinha feito uma aprendizagem de fresador
[na França], aí procurei de fresador e eu achei numa fábrica de
São Bernardo, que era Indústria Villares. (...) acho que fui o
primeiro, pelo menos do nosso grupo. Comecei a trabalhar como
fresador na Indústria Villares e foi interessante porque, depois de
quinze dias, eles me colocaram à noite, das vinte uma e quinze às
seis e meia da manhã, com duas noites livres por semana, sábado
e domingo, que pra mim era o mais interessante pra poder
atender o pessoal. Ai trabalhava à noite/.../.163

A presença dos padres operários franceses foi um diferencial na


região, uma mostra de que é possível descer do altar e oferecer ao povo
mais que devoção e assistencialismo. Era possível aos padres e religiosos

162
MAHON, José. Padre da Ordem dos Filhos da Caridade. Entrevista realizada em
Janeiro/2015.
163
Entrevista realizada em Janeiro/15.
78
em geral, dar passos para fora da sacristia e perceber in loco como o povo
constrói sua realidade diária.

Esta foi uma atitude apreciada pelos dois primeiros bispos da


Diocese de Santo André, dos quais falaremos a seguir.

Dom Jorge Marcos de Oliveira e Dom Claudio Hummes articularam


mais que um pensamento em comum. Governaram a Diocese de Santo
André por 21 anos cada, tiveram destacada influência entre o operariado
e, de maneiras distintas, se esforçaram para encontrar meios que
aliviassem o peso dos trabalhadores da região do ABC Paulista, que
refletiram iniciativas políticas e sociais em todo o Brasil.
Ambos os bispos não eram naturais de São Paulo - Dom Jorge era
do Rio de Janeiro e Dom Cláudio nasceu em Porto Alegre - e foram
chamados ao episcopado ainda muito jovens, o primeiro aos 31 e o
segundo aos 40 anos, fator que reforça a disposição em confrontar as
realidades às quais foram expostos, buscando soluções para os problemas
sociais encontrados, enquanto bispos de Santo André.
Nos capítulos a seguir traçaremos os perfis dos dois primeiros
administradores da região episcopal de Santo André, partindo de suas
experiências diante das realidades sociais encontradas por estes, nas
cidades que formavam a diocese.

79
2 DOM JORGE MARCOS DE OLIVEIRA: BISPO DOS
OPERÁRIOS
“Os grandes líderes ainda não se
anunciaram, mas existem; estão
por aí, no meio do povo”164
(D. Jorge Marcos de Oliveira)

FOTO 2. D. Jorge Marcos de Oliveira, paramentado, à


frente, entre operários.

Fonte: Acervo Associação Lar Menino Jesus.165

Ele, uma vez reuniu na casa dele uns padres e alguns leigos, e ele
falou: ‘vou fazer uma carta aberta ao Castelo Branco’ (...). Ele fez
essa carta que foi publicada no Jornal Última Hora de sessenta e
cinco.166

Optamos falar do perfil de Dom Jorge Marcos de Oliveira, partindo


de uma iniciativa que revela um pouco de sua personalidade face à
ditadura militar.

164
OLIVEIRA, Jorge M. Dom Jorge, 25 anos de Grande ABC (Primeira Parte). Entrevista
concedida a Ademir Médici. Diário do Grande ABC, 21 out. 1979. Caderno C.
165
Disponível em: http://almj.com.br/gallery/acervo-fotografico-2/. Acesso: dez. 2015.
166
MAHON, José. Padre da Ordem dos Filhos da Caridade. Entrevista realizada em
Janeiro/2015.
80
O relato acima, feito por Padre José Mahon, aponta para uma carta
datada de 11 de maio de 1965 e que ganhou repercussão ao ser publicada
no popular Jornal Última Hora do Rio de Janeiro167, dia 20 de maio de
1965, com o título “Bispo ao Marechal: ‘Governo hoje faz do povo
mercadoria’”. A carta foi lida na Câmara dos Deputados em Brasília.

Figura 3. Primeira página do Jornal “Ultima Hora” e a


chamada na parte superior para a Carta de Dom Jorge
a Castelo Branco.

Fonte: Elaborado pela autora. Recorte Jornal Última Hora.168

Os primeiros parágrafos da carta encabeçada pelo bispo diocesano


de Santo André, já revelam um pouco de sua personalidade:

Queremos emprestar nossa voz ao povo, hoje impedido de falar


[...] Não temos nenhuma cor política partidária e muito menos
ânimo subversivo em tendência de sublevação das massas [...] O

167
O jornal Última Hora entrou na história da imprensa brasileira em 1951, por iniciativa
de Samuel Wainer, jornalista, decidido à produção de um noticiário diário, marcado pelo
tradicional caráter político, mas, sobretudo, movido por uma nova proposta gráfica e
editorial, privilegiando o cotidiano como fonte central de seu conteúdo e, principalmente,
empenhado em oferecer ao seu leitor um conhecimento genuinamente novo: o inédito, o
não dito por outros tabloides. Para dar vida a este projeto, priorizando a qualidade de
seu jornal, Wainer formou uma equipe de primeira linha, arrebanhou os melhores e
chegou a oferecer até dez vezes mais o salário que recebiam em outras redações,
motivando uma valorização do profissional da comunicação naquele momento. O Última
Hora nasceu sob a bênção de Getúlio Vargas e manteve com este um vínculo que lhe
permitiu sua origem e edificação, todavia, sob o custo de certa submissão e fidelidade.
Mais autônomo no período JK, o UH ousou na elaboração de críticas mais direcionadas e
cada vez mais despudoradas, adquiriu experiência. Atravessou a linha dos anos 1960
sob a mesma proposta de inovação e chegou à Ditadura de 64 resguardado basicamente
por sua autoconfiança e aceitação no meio. Foi um dos poucos veículos de comunicação
capazes de fazer frente à Ditadura até o momento em que foi empastelado e fechado,
posteriormente comprado pela Família Frias, proprietária do Grupo Folha. Cf. RIBEIRO,
Ana Paula Goulart. Jornalismo, literatura e política: a modernização da imprensa carioca
nos anos 1950. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, n. 31, p. 147-160, 2003.
168
CAPA. Última Hora, Rio de Janeiro, 20 mai. 1965.
81
Santo Papa João XXIII, citando Pio XII, escreve em “Pacem in
Terris”, número 60: - a função primordial de qualquer poder
público é defender os direitos invioláveis da pessoa e tornar mais
viável o cumprimento dos seus deveres [...]. 169

A dureza das palavras de Dom Jorge Marcos causou, no mínimo,


incômodo particular ao general:

Procuramos, no silêncio, esperar com todo o povo brasileiro a


melhoria das condições gerais e do bem-estar da coletividade. A
crise, entretanto, continua em ascensão. Só tem criado e
aumentado, progressivamente, um clima de desespero e de
revolta nas classes não privilegiadas.
Aprendemos a amar o Brasil e seus filhos, mas até quando o
general-fome estará esperando para comandar uma guerra-civil?
Somos contrários à guerra. Nós a condenamos ainda e a temos
como contrária à nossa formação cristã e à índole do povo
brasileiro. Com seríamos felizes se, em vez de levantarmos os
olhos para o céu da pátria e vermos os aviões que levam nossos
soldados armados para um país irmão, pudéssemos ver as tais
diligentes medidas serem empregadas na solução da grave crise
brasileira.

Arriscada foi a empreitada do religioso e seus colaboradores.


Apesar de o feito anteceder em mais de três anos o Ato Institucional n.º
5, um cerco muito cruel e assustador se levantava para conter iniciativas
que afetassem os objetivos da autocracia instaurada a partir de 1964, e
isso se fazia valer também para a Igreja Católica e seus membros. Mas,
aparentemente, sem medo das consequências para si, Dom Jorge
escolheu expor suas opiniões sobre o governo e sua política, através de
uma linguagem muito clara e combativa. Eis outro momento da carta:

Procura-se construir uma nova situação político-econômica-social


sobre o desemprego, a fome, a desgraça e o desespero e a morte
do trabalhador que antes trocava a vida pelo pão de sua família e,
agora, nem isso pode fazer. Hoje, em vez de o Governo vir em
socorro do pequeno e do necessitado, será que não lhe aumenta
as dificuldades e suga as suas energias, impedindo-os de realizar
seus deveres pessoais e familiares?

169
BISPO ao Marechal: - Governo hoje faz do povo mercadoria. Primeiro Caderno, p. 5,
c. 2-4. A íntegra da carta publicada, consta nos anexos deste trabalho.
82
Na ocasião da publicação, pouco mais de um ano do Golpe, a
situação econômica e social do Brasil era de poucas expectativas, e
experimentada, sobretudo, pela população mais empobrecida.
De posse da presidência, o General Castelo Branco, reuniu um
corpo técnico ministerial, entre eles Roberto Campos e Otávio Gouveia de
Bulhões170, e passou a implementar o Plano de Ação Econômica do
Governo (PAEG), na intenção de uma estabilização financeira do país com
foco na contenção da inflação e favorecendo a retomada de investimentos
públicos e privados. Verdade que, como já comentamos, a conjuntura
econômica brasileira de março de 1964 pareceu conspirar em favor da
política golpista. O quadro inflacionário do país, em crescente desde o
início da década, apontava para a casa dos 90% - muito embora, ainda
distante do índice de ultrapassados 240%, alcançados 20 anos após, no
declínio da ditadura militar. No ano seguinte, 1965, em queda, a inflação
fechou em 36,05%.171 No entanto, Francisco de Oliveira chama a atenção
para o fato de que o primeiro resultado da aplicação do PAEG foi

forte recessão que se prologará até o ano de 1967, e que é, em


tudo e por tudo, bastante semelhante à breve recessão surgida
logo após a tentativa de execução do Plano Trienal sob a batuta
conjunta Santiago Dantas - Celso Furtado. A identidade do erro
deriva da identidade das supostas causas: a de que se estava em
presença de uma inflação de demanda; o remédio era, num como
noutro caso, a contenção dos meios de pagamento, o corte dos
gastos governamentais, e o resultado foi, numa como noutra
experiência, a recessão, breve a primeira e prolongada a
segunda.172

E, com vistas no êxito do plano citado anteriormente, Castelo


Branco cuidou de afastar uma possível infiltração socialista da sociedade
brasileira. De forma que, questões políticas, problemas econômicos do
país foram tratados concomitantemente nesta arrumação de casa ou

170
SKIDMORE, Thomas. Brasil: de Getúlio a Castelo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, v. 8,
1982.
171
Fonte: IPEA – Data. Instituto de Pesquisas Aplicadas. IGP-DI (Índice Geral de Preços)
– centrado - fim período - var. Frequência: Anual de 1945 até 2014. (FGV/Conj. Econ. -
IGP). Disponível em: http://www.ipeadata.gov.br/. Acesso em: nov. 2015.
172
OLIVEIRA. Francisco de. Crítica à razão dualista: O ornitorrinco. São Paulo: Boitempo,
2003. p. 93.
83
“Operação Limpeza”, como descreve Thomas Skidmore.173 Portanto, a
princípio, uma intensa perseguição a partidos, líderes de oposição,
integrantes de movimentos sociais, estudantes, sindicatos, pessoas
relacionadas à esquerda política se tornaram inimigos do Estado. Sessões
de tortura, sequestros, prisões arbitrárias se seguiram ao longo daquele
primeiro ano, sob amparo e conhecimento de altas patentes militares de
então.174 Carlos Fico relata:

prosseguiam as tensões pelo interior do país, com conflitos


protagonizados por militares exaltados, que insistiam em
patrocinar prisões arbitrárias, inquirições despropositadas e outras
violências. No âmbito da cúpula militar, já se falava da tese da
“autonomia” excessiva desses setores radicais, que pretendiam
atuar independentemente da vontade do presidente da República,
e a figura do ministro da Guerra era identificada como o elo de
ligação com tais grupos autonomistas. Sabia-se claramente,
desses desmandos e, mesmo, de casos flagrantes de tortura,
francamente denunciados por jornais como o Correio da Manhã e o
Última Hora. Castelo não se animava a mandar apurar as
acusações, talvez na esperança de que o ímpeto dos radicais
amainasse.175

Neste quadro contextual, não é um fato a se surpreender que


Castelo tenha tratado com neutralidade ou até mesmo indiferença os
casos de torturas e outros abusos. O Ato Institucional do dia 9 de Abril de
1964 – que seria o único, mas acabou sendo o primogênito de uma longa
série – declarou a “revolução” triunfante em seus propósitos e plena para
tomada de decisões, tal autonomia se garantiu já nos primeiros
parágrafos do ato:

“a revolução vitoriosa, como Poder Constituinte, se legitima por si


mesma. Ela destitui o governo anterior e tem a capacidade de
constituir o novo governo. Nela se contém a força normativa,

173
SKIDMORE, Thomas. Brasil: de Getúlio a Castelo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, v. 8,
1982.
174
DREIFUSS
175
FICO, Carlos. Como eles agiam. Os subterrâneos da Ditadura Militar: Espionagem e
polícia política. Rio de Janeiro: Editora Record, 2001. p. 44.
84
inerente ao Poder Constituinte. Ela edita normas jurídicas sem que
nisto seja limitada pela normatividade anterior à sua vitória”.176

A este conjunto de arbitrariedades, Dom Jorge Marcos de Oliveira


vigorosamente se opunha e cremos ser o motivo-mor de suas iniciativas
de ordem política. Sobre a carta ao Marechal, em nossas investidas, não
encontramos registros de alguma resposta formal, seja do presidente ou
de alguma assessoria. O próprio Jornal Última Hora relatou a expectativa
do veículo por qualquer manifestação de Castelo Branco, expressa em
nota do dia 21 de Maio de 1965:

A carta que o bispo de Santo André e outros prelados paulistas


dirigiram ao Presidente da República não mereceu, até o momento
em que escrevemos, nenhum comentário nos meios oficiais (...).
D. Jorge Marcos de Oliveira ataca um ponto fundamental da
filosofia do Governo quando lhe põe à mostra o caráter
profundamente inumano, ou seja, anticristão. Dirá talvez o
Presidente ou algum de seus ministros, responsáveis pelos
esquemas econômico-financeiros, que o objetivo destes é o bem-
estar social e a felicidade do homem brasileiro; mas que para
atingir esse objetivo, é necessário fazer sacrifícios; que os
sacrifícios são impostos pelos descalabros, pela corrupção dos
Governos anteriores etc. Muito bem. Mas, mesmo que venha com
tal argumentação, será interessante que o Governo diga alguma
coisa, à luz das formulações muito precisas do Bispo de Santo
André”.

Uma sútil manifestação no Congresso pareceu vencer o silêncio


sobre este tema. Durante discurso, o Deputado Oswaldo Lima Filho não
somente teria citado um trecho da carta de D. Jorge, como também
afirmado que aquele era o pensamento da maioria do povo católico no
Brasil e, comparando a ação do Bispo de Santo André às práticas de D.
Hélder Câmara, o deputado dissera sobre ambos: “fiéis à doutrina eterna
da Igreja e iluminados pela mensagem das últimas encíclicas”, “sem

176
O texto do Ato Institucional é reproduzindo em FICO, Carlos. Além do Golpe: Versões
e controvérsias sobre 1964 e a Ditadura Militar. Rio de Janeiro: Editora Record, 2004. p.
339.
85
cessar em defesa dos humildes, dos pobres, dos oprimidos, contra a
omissão criminosa dos responsáveis”.177
Passados cerca de vinte dias do recebimento e repercussão da
mensagem de Dom Jorge, Castelo Branco esteve em São Paulo para
comemoração do Dia de Anchieta (09 de Junho). Conforme a descrição
que encontramos no Jornal Última Hora, o Marechal não teria mencionado
publicamente carta alguma, mas pretendeu endereçar um pensamento
particular aos membros da Igreja Católica:

a lei e o próprio bom-senso não permitem repartir atribuições


financeiras, econômicas ou mesmo educacionais, das quais os
únicos responsáveis sejam os detentores da causa pública. Nem
delegar poderes a quem não constitui um órgão de direção ou
setor operacional do aparelhamento específico do Estado. (...)
cada qual se conservando no seu âmbito de deveres e objetivos,
suprimimos graves motivos de divergências – como ocorreu no
Império – evitando que o Estado intervenha na vida da Igreja, do
mesmo modo que esta não sofre os prejuízos de se imiscuir nas
atribuições daquele. (...) enquanto o desenvolvimento material
está principalmente a cargo do Estado, à Igreja cabe, sem dúvida,
conquistar e aperfeiçoar os espíritos.178

O discurso de Castelo não prefiguraria conveniente para ocasião,


não fossem as inúmeras denúncias de prisões e torturas que, naqueles
dias, eram noticiadas, ganhando mais destaque com a divulgação do caso
da detenção do frade Jacinto Mario Ferreira Rosa e alguns estudantes
pertencentes à Arquidiocese de Goiânia, cujo arcebispo, D. Fernando
Gomes, organizara mobilização para tornar público o episódio e defender-
se de novas ações do tipo.179 Acompanhando este fato, o UH relatou que o

177
BISPO recebe cumprimentos. Última Hora, Rio de Janeiro, 22 mai. 1965. Congresso,
p. 5, c. 1. Ver também: GOVERNO é criticado com base na carta de Dom Marcos. Folha
de São Paulo, São Paulo, 22 mai. 1965. Câmara Federal, p. 5, c. 3-4.
178
CASTELO: - É impossível repartir com a Igreja encargos do Estado. Última Hora, Rio
de Janeiro, 10 jun. 1965. P. 3, c. 3-5.
179
CÚRIA denuncia: prisão de frade em Goiás é afronta a Católicos. Última Hora, Rio de
Janeiro, 7 jun. 1965. P. 3, c. 3-5.
86
Marechal teria se irritado com as denúncias de tortura e punido o
Secretário de Segurança Pública de Goiás180, atitude que seria alentadora,
se não se tratasse de uma estratégia política, mediante a popularização
do caso, afinal, vários jornais, naquele ano, já estampavam situações de
semelhantes arbitrariedades da polícia e do exército que mereceriam
providências imediatas.181
Da mesma forma, uma imediata atenção às questões cotidianas do
povo, reclamava com insistência D. Jorge Marcos. Suas constantes
investidas neste campo da política chamaram a atenção não apenas dos
organismos de segurança nacional do país, como também do Consulado
dos Estados Unidos, instituição que mantinha uma discreta, porém,
precisa vigilância sobre as atividades em solo brasileiro.
Desde o início dos anos de 1950 os Estados Unidos já realizavam
um minucioso acompanhamento sobre o funcionamento do Estado
brasileiro, e esta atenção se intensificou após a bem sucedida Revolução
Cubana de 1959, quando se tornou persistente o temor de que o Brasil,
maior país da América Latina, pendesse para relações com governos
socialistas. Ademais, consideremos nesta breve avaliação da interferência
norte-americana sobre o Brasil, também o aparato oferecido por este
governo, a fim de viabilizar a concretização do Golpe em 1964, ação cada

180
PUNIDO o Secretário. Última Hora, Rio de Janeiro, 9 jun. 1965. P. 2, c. 2.
181
Trazemos aqui alguns títulos de notícias e manchetes de jornais, cujas matérias
trazem referências a casos de prisões políticas e torturas em 1965: HOSPITALIZADO o
ex-prefeito da cidade de Atibaia. O Estado de São Paulo, São Paulo, 03 jan. 1965.
Primeira Página, p. 20, c. 3. PRISÃO preventiva. O Estado de São Paulo, 12 mai. 1965.
Geral, p. 5, c. 6. ARRAES poderá voltar à prisão. O Estado de São Paulo, 12 mai. 1965.
Geral, p. 5, c. 7. PROMOTOR pede novas prisões. O Estado de São Paulo, 27 mai. 1965.
Geral, p. 10, c. 5-6. DOPS procura jornalista. O Estado de São Paulo, 19 mai. 1965.
Geral, p. 14, c. 3. CONDENADO o Padre Alípio. O Estado de São Paulo, 23 mar. 1965.
Geral, p. 8, c. 2-3. PREFERIU a morte à tortura no IPM. Última Hora, Rio de Janeiro, 19
fev. 1965. p. 2, c. 1-2. ESPOSA de Jornalista revela tortura na DOPS. Última Hora, Rio
de Janeiro, 12 abr. 1965. Primeira Página. FAMÍLIA revela: Há tortura de detentos nos
presídios da GB. Última Hora, Rio de Janeiro, 22 abr. 1965. p. _, c. 1-4. TORTURAS
envergonham o Coronel. Última Hora, Rio de Janeiro, 30 abr. 1965. p. 5, c. 1-3. ALVES,
Márcio Moreira. Oposição e Consciência. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 16 mar. 1965.
Primeiro Caderno, p. 6, c. 1-4.
87
vez mais avalizada e melhor compreendida, através de pesquisas
referentes à "Operação Brother Sam”.182
Na rotina de constantes e sistemáticos relatórios, em certo
momento, os diplomatas do Consulado norte-americano acreditaram estar
diante de uma ameaça de agitação popular, que partia de uma liderança
da Igreja Católica no, economicamente importante, estado de São Paulo.
Um bispo, com um discurso enérgico e forte apelo socialista, se aliara às
causas de trabalhadores da região e ganhava notoriedade por suas
iniciativas cada vez mais ousadas. Tratava-se de Dom Jorge Marcos de
Oliveira, o “Worker’s Bishop”, “Bispo dos Operários”, forma como passou a
ser intitulado nas cartas oficiais, endereçadas às autoridades norte-
americanas.
Em nossa pesquisa, encontramos SETE comunicações que
mencionam diretamente o bispo de Santo André:

1. Documento nº A-54. Unclassified. 10 mar. 1964.


Origem: Consulado Americano - Porto Alegre - RS.
Assunto: “Weekly Summary No. 99” (Relatório Semanal No. 99)
Item: 5. “What Did The ‘Worker’s Bishop’” really say?” (“O que o ‘Bispo dos
Operários’ realmente diz”)

2. Documento nº A-56. Unclassified. Data: 17 mar. 1964.


Origem: Consulado Americano - Porto Alegre - RS.
Assunto: “Weekly Summary No. 100” (Relatório Semanal No. 100)
Item: 5. “Maragato Deputy Gives ‘Worker’s Bishop’ Hell” (“Deputado Maragato
manda o ‘Bispo dos Operários’ para o Inferno”)

3. Documento nº A-333. Limited Official Use. 27 mai. 1965.


Origem: Consulado Americano – São Paulo - SP.
Assunto: “Weekly Summary No. 21” (Relatório Semanal No. 21)
Item.: 5. “Worker Bishop Blames Government for Unemployment” (“Bispo dos
Operários clama ao governo pelos desempregados”)

182
“o poderio norte-americano não teria como ser plenamente exercido mundo afora se
os Estados Unidos não predominassem incontestavelmente no hemisfério e, sobretudo,
em seu “quintal” latino-americano. Se não era possível acabar com o regime comunista
de Fidel Castro, com certeza eles não admitiriam uma ‘outra Cuba’, ainda que baseados
em avaliações quiméricas e tendo de recorrer a métodos brutais. Além disso, inúmeras
empresas norte-americanas tinham expressivos investimentos aqui, ou planejavam ter,
caso houvesse condições para tanto”. FICO, Carlos. O Grande Irmão: da operação
Brother Sam aos anos de chumbo. O governo dos Estados Unidos e ditadura militar
brasileira. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 2008. p. 42.
88
4. Documento: nº 355. Limited Official Use. 23 set. 1966.
Origem: Consulado Americano – São Paulo - SP.
Assunto: “São Paulo 350” (Relatório Semanal No. 21)
Obs. O Bispo de Santo André é citado no item 2 do relatório.

5. Documento: nº A-208. Limited Official Use. 11 jan. 1967.


Origem: Consulado Americano – São Paulo - SP.
Assunto: “Weekly Summary No. 2” (Relatório Semanal No. 2)
Item.: 1. “Leftists Usurp Anti-Press Law Rally” (“Esquerdistas usurpam comício
de lei anti-imprensa”)

6. Documento nº A-8. Confidencial. 14 jul. 1967.


Origem: Consulado Americano – São Paulo - SP.
(Assunto: “Dom Jorge Marcos de Oliveira, ‘Worker Bishop’ of Santo André”)

7. Telegrama. Unclassified 322. 2 abr. 1968.


Origem: Consulado Americano – São Paulo - SP.
Assunto: “Reaction to student death” (“Reação à morte do estudante”)

É um risco abrir uma discussão analítica e sistemática sobre tal


investigação aprofundando-se nos objetivos gerais e particulares desta
ação. Isso requer ampliação da pesquisa. Neste trabalho não dispomos de
instrumentos necessários e específicos para uma análise consistente deste
material, tampouco espaço e tempo hábil para enquadrá-lo nos termos da
pesquisa em curso. Portanto, nos limitamos a registrar a existência destes
documentos e proceder uma interpretação sobre o “Doc. nº A-333”,
contendo o “Relatório Semanal No. 21”, de 27 de Maio de 1965, que trata
sobre dois tópicos principais, denominados “Political” e “Psychological”,
detalhados em subitens, conforme demonstrado a seguir:

Table of contents Lista de conteúdos

Political Política
1. Lacerda’s criticisms evoque varying comment
Críticas de Lacerda evocam variados comentários
2. São Paulo and Minas rightists convene
Direitistas de São Paulo e Minas se reúnem
3. Leftists seeking unity
Esquerdistas procuram unidade
4. How much unemployment in São Paulo?
Quanto há de desemprego em São Paulo?
5. Worker Bishop blames government for unemployment
Bispo dos operários clama ao governo pelo desemprego

89
6. Adhemar selects new agriculture secretary
Adhemar escolhe novo secretário de Agricultura
7. CP boom for Governor Rolls On
Corrida eleitoral para governador começa

8. Democratic Elements win Campinas Union election


Elementos democráticos vencem eleição em sindicato de Campinas
Psychological
1. Press Round-up.
Rodízio pela imprensa

O tópico que nos interessa compreender neste espaço é o de


número 5, do primeiro tema ‘Political’: “Bispo dos Operários clama ao
governo pelos desempregados”.
Conferindo as demais comunicações, é possível fazer a primeira
constatação: a associação da pessoa de Dom Jorge Marcos ao operariado
brasileiro. Com recorrência o religioso era indicado pelo apelido “Worker
Bishop”, “Bispo dos operários”, uma forma habitualmente compartilhada
entre os trabalhadores, mas que nas cartas ao governo americano,
parecia receber um tom jocoso, que podia beirar à dúvida, muito embora,
nos seja claro o ligeiro desconforto e preocupação dos Estados Unidos com
seus enfáticos discursos, “munição valiosa às forças antirrevolucionárias”.
Vejamos o conteúdo do item nas imagens abaixo, seguido da
tradução referente.
FIGURA 4. Cabeçalho do memorando produzido pelo
Consulado dos Estados Unidos, em 1965, contendo
denúncias sobre as atividades de D. Jorge Marcos de
Oliveira.

Fonte: Elaborado pela Autora. Brown Digital Repository. 183

183
Disponível em: https://repository.library.brown.edu/studio/ . Acesso em: mar. 2015.
90
FIGURA 5. Cópia do memorando produzido pelo
Consulado dos Estados Unidos, em 1965, contendo
denúncias sobre as atividades de D. Jorge Marcos de
Oliveira. Conteúdo do item 5.

Fonte: Elaborado pela Autora. Brown Digital Repository. 184

Segue a tradução da comunicação A-333, item 5, primeiro tema:

“O Bispo dos Operários clama ao governo pelos desempregados.


Dom Jorge Marcos de Oliveira, bispo de Santo André, cidade
industrial satélite de São Paulo, cerca de 24 párocos e outras
autoridades da Igreja enviaram uma carta ao presidente Castello
Branco colocando-lhe responsabilidade pelo crescente desemprego
nesta área diretamente na porta do governo e cobrando ação
urgente para enfrentar a crise. Ao mesmo tempo em que não
atacaram diretamente o presidente e negam qualquer objetivo
político ou subversivo, os signatários acusam seu governo de dar
grande atenção à recuperação da economia nacional enquanto
negligencia “o que deveria ser o objetivo essencial de todos os
governos: bem-estar social. Repleta de numerosas citações de
encíclicas papais e escritos da Igreja, a carta também relata casos
de graves dificuldades dos trabalhadores em função do
desemprego e do subemprego. Em uma referência óbvia à
República Dominicana, pontua o documento, “quão felizes
estaríamos se, em vez de...ver planos de enviar soldados armados
a uma nação irmã, pudéssemos ver a tomada de medidas
diligentes para resolver a grave crise brasileira!”. O jornal
esquerdista e nacionalista Última Hora publicou a longa carta na
íntegra, enquanto outros jornais locais fizeram uma cobertura
restrita.

184
Disponível em: https://repository.library.brown.edu/studio/ . Acesso em: mar. 2015.
91
Comentário: o bispo dos trabalhadores, Dom Jorge, está liderando
uma expoente ala de esquerda na igreja local. Ele se associou à
pequena, porém agressiva Frente Nacional Trabalhista, ala de
esquerda de orientação do PDC e participou das ações da FNT,
visitando locais de piquete, etc. Sua popularidade entre as
lideranças trabalhistas no importante complexo industrial chamado
“Triângulo do ABC” é inegável, embora tenha ficado afastado por
dois anos em função de um ataque cardíaco. Aparentemente
sincero e dedicado, seu frequentemente ingênuo idealismo
ocasionalmente o leva a ser enganado pelos comunistas. Sua carta
reportada acima certamente dará munição valiosa às forças
antirrevolucionárias”.185

FIGURA 6. Cópia do memorando produzido pelo


Consulado dos Estados Unidos, em 1965, contendo
denúncias sobre as atividades de D. Jorge Marcos de
Oliveira. Comentário.

Fonte: Elaborado pela Autora. Brown Digital Repository. 186

Partindo da descrição de quem redige o relatório, Dom Jorge seria


uma liderança ingênua, passiva, tomada por um idealismo emocional, que
não o deixava enxergar a usurpação de sua imagem em prol de interesses
políticos. Será?

185
Tradução: Raphael Salomão.
186
Disponível em: https://repository.library.brown.edu/studio/ . Acesso em: mar. 2015.
92
2.2. D. Jorge e Pastoralidade

O religioso carioca, chamado ao episcopado com apenas 31 anos


de idade, aos 64, já distante de suas atividades de pastoreio na Diocese
de Santo André, concedeu uma entrevista mostrando que ainda acreditava
na força da classe operária. Dizia com firmeza: “Eu creio que a classe
trabalhadora, dentro em pouco, será uma classe dominadora do
mundo”.187 Embora, à primeira impressão, esta declaração possa soar
como idealidade, não dá para tratar a expectativa do bispo como vazia ou
fora de contexto. Em 1979, quando Dom Marcos falou ao jornalista
Ademir Médici, do Jornal Diário do Grande ABC, efervescia na região a
concentração de trabalhadores, sindicatos, e as grandes greves
contribuíam para a união da classe operária em prol de seus objetivos. O
religioso, sublinhe-se, mesmo afastado da rotina diocesana, não se
permitira ao descanso da aposentadoria. Entre as atividades religiosas e a
dedicação ao Lar Menino Jesus, cuja fundação se deveu à necessidade de
oferecer uma assistência à criança abandonada e àquelas, cujas famílias
se encontravam em situação de vulnerabilidade188, Dom Jorge procurava
se inteirar dos fatos que envolviam a classe trabalhadora e apoiá-la em
seus desafios. E, pelo relato descrito na reportagem, sabia muito bem da
vida destas famílias:

Hoje as classes trabalhadoras são classes que vivem na sua


maioria com o salário mínimo, isto é, um salário de fome. Basta se
ver o número de favelas aqui na nossa região e o número de

187
OLIVEIRA, Jorge M. Dom Jorge, 25 anos de Grande ABC (Primeira Parte). Entrevista
concedida a Ademir Médici. Diário do Grande ABC, 21 out. 1979. Caderno C.
188
“A Associação Lar Menino Jesus, nasceu em fevereiro de 1956. Como outras
entidades, era um grupo de pessoas, motivadas pela fé, pelo desejo intenso de ajudar ao
próximo. Fundada por Dom Jorge Marcos de Oliveira, 1º. Bispo de Santo André, que
chegando em 1954, logo sentiu a realidade social triste da Região do Grande ABC. A
explosão industrial trouxera para cá numerosíssimas famílias e pessoas que, sem
qualificação profissional, acabavam ficando sem trabalho e sem moradia, seus filhos
largados a Deus dará… Inaugurada às pressas em 1956, a 1ª casa (cedida pela PMSA)
com 08 meninas internadas por Dom Jorge. Logo já eram 50. Dom Jorge criou nesta
época o Instituto Servas do Menino Jesus para trabalhar nas obras da Diocese-especial e
primordial mente no Lar Menino Jesus”. Texto sobre a fundação do Lar Menino Jesus.
Disponível em: http://almj.com.br/historia/. Acesso em: out. 2015.
93
pessoas paupérrimas. O que se consome de carne numa família
pobre hoje é nulo; o que há de possibilidade de uma família desta
participar de uma refeição matinal com leite é coisa de uma vez ou
outra. Só quando ganham ou quando o pai faz uma economia e
compra um litro de leite. Eu conheci pessoas que nunca tinham
provado leite na vida. Não porque não quisessem, mas porque
realmente nunca tinham podido.189

É fato que estamos citando uma declaração do bispo de Santo


André catorze anos após a “Carta ao Presidente Castelo Branco”. Mas, é
interessante perceber o mesmo teor de apreensão às situações cotidianas
da classe trabalhadora. A fala simples, a preocupação que chega a soar
paternal, em ambas as circunstâncias, mostram alguém um passo à frente
da teoria que adquiriu em anos de estudo, que não se deixou vencer por
uma fé devocional, distante das práticas. Aquilo que aos diplomatas
americanos transpareceu como ingenuidade no contexto de 1965, poderia
ser o exercício de conceitos, teses e discussões, pautadas pela esquerda
brasileira de então, dividida e inebriada por proposições que não se
aplicaram de forma consistente no contexto brasileiro?
Esta última questão é bastante abordada por autores das Ciências
Sociais e Políticas. E, para além deste debate, também está em foco a
formação de consciência do proletariado, no campo e na cidade,
representado por pessoas simples e que, como afirma Octávio Ianni, era
um dos dilemas do pensamento brasileiro.

As experiências políticas, econômicas e culturais vividas no Brasil


nas últimas décadas revelaram que a massa dos trabalhadores no
campo e na cidade não é conhecida a não ser de modo superficial.
Em especial, não sabemos ainda qual é o papel que essa massa de
fato joga na história do país. Mas ainda, queremos saber qual é o
papel que ela pode desempenhar nos acontecimentos
fundamentais da vida nacional.190

No pré-64, tanto os partidos políticos de esquerda, como as


organizações sociais do campo e da cidade, enfrentaram uma séria crise

189
190
IANNI, Octavio. Sociologia da sociologia: o pensamento sociológico brasileiro. São
Paulo: Editora Ática, 1989.
94
estrutural, cujo resultado foi o enfraquecimento dos movimentos políticos.
As longas divergências entre teorias, teóricos e sistemas, consumiram um
espaço valioso e necessário para planejar, constituir e executar ações que
contribuíssem para um curso diferente da história do Brasil.191 Nesta
observação, com a finalidade de um complemento de informação,
atentamos para o fato de que a esquerda, principalmente com as
sucessivas crises e desestabilização da União Soviética, precisou rever sua
própria postura e metodologia, direcionando seu discurso para a efetiva
práxis no contexto da sociedade moderna. Hobsbawm explica:

“a própria mudança estrutural podia levar a política em direções


conhecidas na história do Primeiro Mundo. Era provável que os
‘países em recente industrialização’ criassem classes operárias
industriais que exigissem direitos trabalhistas e sindicatos, como
mostraram os registros do Brasil e da Coréia do Sul, e na verdade
fizeram os da Europa Oriental. Não precisavam criar partidos
trabalhistas populares reminiscentes dos movimentos social-
democratas de massa da Europa pré-1914, embora não seja
insignificante que o Brasil tenha gerado exatamente um desses
bem-sucedidos partidos nacionais da década de 1980, o Partido
dos Trabalhadores (PT). (Mas a tradição do movimento trabalhista
em sua base interna, a indústria automobilística de São Paulo, era
uma combinação de leis trabalhistas populistas e militância
comunista nas fábricas, e a dos intelectuais que acorriam a apoiá-

191
Um material interessante para entender um pouco da problemática da esquerda no
Brasil, face ao Golpe de 1964 é a publicação de Dênis Moraes. O autor traça um perfil
histórico dos partidos, movimentos e organizações de esquerda e apresenta a atuação
destes na conjuntura dos anos 1960. A obra traz entrevistas de importantes lideranças
políticas da época que participaram dos acontecimentos que antecederam e sucederam
ao Golpe. Lendo estes depoimentos, pudemos observar alguns pareceres sobre desafios
e divergências na atuação dos grupos de esquerda naquele momento específico.
Apresentamos aqui alguns breves trechos das respostas concedidas por estas
personalidades, ao serem questionadas sobre este tema. Waldir Pires: “A esquerda tinha
uma divisão em 64 muito grande. Havia uma desarticulação profunda nessa área. Uma
certa incapacidade de ter um projeto só.”. Francisco Julião: “Esse tem sido o grande erro
das esquerdas no nosso continente. Fazem seu projeto revolucionário e depois
implantam como um corpo estranho no seio de uma determinada massa. Fracassam
porque sempre a tendência é haver um rechaço. A massa não foi preparada, trabalhada,
conscientizada.”. Gregório Bezerra: “Devíamos ter assumido uma posição revolucionária.
Uma posição marxista-leninista. Esse era o meu pensamento.”. Betinho: “Um erro foi não
avaliar, não tomar consciência da gravidade da crise política que se estava vivendo e, de
não ter percebido a correlação de forças”. Prestes: “O partido ficou muito reduzido, a
nossa força baixou muito. E havia dúvidas sobre a linha política do partido. Tomamos a
Resolução de 1958, que se apoiava no XX Congresso [do PCUS], mas que tinha
tendências direitistas bastante fortes. A questão do desenvolvimento pacífico confundia”.
MORAES, Dênis. A esquerda e o golpe de 64. São Paulo: Expressão Popular, 2011.
95
lo era solidamente esquerdista, como o era a ideologia do clero
católico, cujo apoio ajudou a pô-lo de pé.)”192

Valendo-se deste último trecho da nota de Hobsbawm,


caminhamos para finalizar a discussão deste item, com vistas a deixar
algumas frestas para articular o tema seguinte.
Sobre a formação do Partido dos Trabalhadores, o PT, o primeiro
bispo de Santo André, Dom Jorge Marcos, não participou diretamente, no
entanto, contribuiu na preparação do terreno para que este pudesse se
estabelecer, conforme relato por Rainho e Braga.

“até chegarmos ao apoio e participação mais direta da Igreja junto


aos trabalhadores em 1979, dois fatores merecem destaque.
Inicialmente, a substituição de D. Jorge Marcos por D. Cláudio
Hummes. O primeiro, sempre havia apoiado os trabalhadores,
principalmente até o início da década de 70, por isso, colocado a
Igreja a serviço de sua causa; cessão do espaço físico das
paróquias; apoio ao trabalho de párocos junto aos trabalhadores;
apoio aos movimentos leigos e às reivindicações dos trabalhadores
de um modo geral etc. Quando do afastamento de D. Jorge Marcos
por idade, trabalhadores ligados aos movimentos de Igreja,
sentiram-se apreensivos quanto ao possível desempenho de seu
sucessor. Essas apreensões aumentaram ao saber-se que, para
seu lugar havia sido nomeado pelo Papa, um padre franciscano
(cuja congregação é considerada por muitos com sendo
‘reacionária’), exercendo a função de diretor de Seminário e
proveniente de região (Rio Grande do Sul) totalmente alheia à
realidade operária do ABC paulista. Mas, em verdade, ocorreu que
D. Cláudio Hummes, aos poucos, foi conhecendo a realidade de
sua Diocese e tornando-se sensível a ela.”193

Dom Jorge favoreceu o protagonismo da massa operária, num


momento determinante para que isso acontecesse. Serviu-se de seu
conhecimento acadêmico e dos principais documentos sociais da Igreja e,

192
HOBSBAWM, Eric. Era dos Extremos: O Breve Século XX. São Paulo: Companhia das
Letras, 1995. p. 361.
193
RAINHO, Luís Flávio; BARGAS, Osvaldo Martines. As lutas operárias e sindicais dos
metalúrgicos em São Bernardo: 1977-1979. São Bernardo do Campo: Associação
Beneficente e Cultural dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo e Diadema, 1983. p.
168. A respeito da causa do afastamento de Dom Jorge Marcos de Oliveira do cargo de
bispo Diocesano de Santo André em 1975, convém dizer que, provavelmente, o fez por
recomendações médicas, já que sofria de doença cardíaca e lhe fora recomendado o
repouso. O afastamento de religiosos de ofícios eclesiástico seja por idade, doença ou
outra situação é previsto pelo Código de Direito Canônico.
96
principalmente, de sua experiência de outros tempos, quando ainda
atuava nas favelas do Rio de Janeiro, primeiro como padre e
posteriormente como bispo auxiliar da arquidiocese local.

No caso da Igreja particular da Diocese de Santo André, a Doutrina


Social dava uma visão ao operariado que consistia em reconhecê-
lo como uma “pessoa humana”, como “filho de Deus” com uma
série de “direitos”: direito ao trabalho, a uma justa remuneração
direito à distribuição das vantagens decorrentes do trabalho, ou
seja, direito à saúde, à medicação, à alimentação, à moradia, à
condução, à assistência médica, à constituição da família, à
educação. Na realidade, a Igreja em Santo André reivindicava,
para o trabalhador, os direitos de cidadão.194

Dom Jorge também se proveu da bagagem já existente entre os


sindicalistas, para compreender melhor a massa de trabalhadores e suas
dificuldades, direitos e expectativas. É interessante a descrição feita por
Heloísa Helena Martins a respeito da conexão que o bispo mantém com os
setores da esquerda: o PCB, os sindicatos e lideranças operárias. A autora
teve a oportunidade de realizar entrevistas com D. Jorge e alguns
dirigentes de movimentos sindicais, deles capturou suas impressões sobre
o tema e expôs algumas contradições. Segundo ela, existia um setor da
classe operária que enxergava a atuação do bispo e seu clero como “uma
ameaça à permanência dos grupos políticos”.

Alguns desses operários, em sua maioria antigos líderes sindicais


na região, afirmavam que D. Jorge “era anti-operário... a própria
corriola aí achou por bem pôr o nome dele de Bispo dos operários,
mas os operários, não quero nem falar, as costas dele nunca levou
porrada e nunca ele vinha se manifestar a favor do operário”. 195

Verdade seja dita, pairava na Igreja Católica, como instituição, um


senso anticomunista196, isso é claro e evidente nos próprios documentos

194
MARTINS, Heloisa. op. cit., p. 68.
195
MARTINS, Heloisa. op. cit., p. 77.
196
Para uma melhor compreensão desta questão do anticomunismo, uma excelente
leitura é: RODEGHERO, Carla Simone. Religião e Patriotismo: o anticomunismo católico
nos Estados Unidos e no Brasil nos anos da Guerra Fria. Revista Brasileira de História,
ISSN 1806-9347, vol. 22, n. 44. São Paulo, 2002. Disponível em:
97
sociais. Além disso, um forte sentimento nacionalista também absorvia o
clero. A formação tradicional europeia recebida nos seminários, mesmo no
Brasil, estava incorporada na ação pastoral. De forma que, mesmo na
atuação social, nas lutas operárias, a ideia que transparecia era a aquela
da Ação Católica, da formação de um sindicalismo cristão. No entanto, os
fatos vão esclarecendo que, com o passar do tempo e, principalmente
após o Golpe, em 1964, a postura de muitos dos integrantes do clero e,
sobretudo, de D. Jorge, se tornou bem mais combativa e desafiadora.

Tal qual não se pode desconsiderar o empenho da esquerda


comunista em desenvolver uma consciência de classe entre o operariado
no Brasil, há que se respeitar o esforço de parte do clero brasileiro, e
muito se deve à CNBB, a Dom Hélder Câmara, assim como ao grupo da
teologia da libertação, que aderiram à proposta de “opção preferencial
pelos pobres” e também se esforçaram pela justiça social. Entretanto,
reconheçamos que, bem antes de Medellín e antes mesmo do Concílio
Vaticano II, Dom Jorge já apoiava os trabalhadores em suas lutas.

Dom Jorge sempre foi tido como o bispo dos operários, ele tomou
atitude a favor dos trabalhadores, numa grande greve na Rhodia
Química, em Santo André. E depois, ele foi apoiar os operários na
fábrica de cimento Perus. Fica fora de Santo André, do outro lado,
no Perus, mas ele ajudou muito, ele lutou ao lado dos
trabalhadores.197

http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0102-01882002000200010&script=sci_arttext .
Acesso em: nov. 2015.
197
Depoimento do Pe. José MAHON, fc, ao Centro de Memória do ABC, em 14 de
dezembro de 2012. BLASSIOLI resume que “as práticas do Bispo e dos sacerdotes que o
apoiavam foram além do auxílio aos trabalhadores. As greves das fábricas de cimento
Portland de Perus e da Companhia Melhoramentos, que aconteceram entre os anos de
1958 e de 1959, contaram com o apoio da Frente Nacional do Trabalho (FNT), articulada
no ABC pelo Bispo e pelos sacerdotes”. Cf. MORAES, Maria Blassioli. A Ação Católica e a
Luta Operária: a experiência dos jovens católicos em Santo André (1954-1964). 207 f.
Dissertação (Mestrado em História Social) Universidade de São Paulo, São Paulo, 2003.
p.159. Sobre o desdobramento das greves dos operários da Fábrica Portland em Perus e
da Companhia Melhoramentos, cf. SOBRINHO, Felipe Cosme Damião. Catolicismo e
Militarismo no ABC Paulista: 1964 - 1985. 137 f. Monografia (Bacharelado em Teologia)
Pontifícia Faculdade de Teologia Nossa Senhora Assunção, São Paulo, 2009. p. 54.
98
Ao final do ano de 1975, o bispo que participou com frequência das
páginas dos jornais do país, se afastou sem alardes da imprensa, com
discrição e respeito por seu sucessor, o jovem franciscano D. Claudio
Hummes, 41 anos, nascido em Montenegro (RS), e que saíra do Rio
Grande do Sul para assumir a Diocese de Santo André.

Figura 7. Repercussão singela na imprensa sobre a


sucessão de Dom Jorge na Diocese de S. André.

Fonte: Jornal O Estado de São Paulo, 1975.198

O processo de renúncia de Dom Jorge Marcos ao governo pastoral


da Diocese de Santo André em 29 de dezembro de 1975, gera
muitas especulações até hoje. Na época, o bispo já tinha sofrido
três enfartes: durante a primeira sessão do Concílio Vaticano II e
outros dois entre 1963 e 1969. Ele tinha problemas de saúde
desde jovem. Em um poema de 1948, quando bispo auxiliar do Rio
de Janeiro, ele mesmo exprime sua fragilidade física que, com o
desgaste do trabalho e o passar dos anos, se agravou: “Tenho 33
anos – escrevia eu em 1948 pensando que meu coração fraco e
meu sangue enfermo já me aproximavam do fim”. Os problemas
com a administração da diocese, que se desenvolveram
juntamente com os problemas da população, e o desgaste pela sua
atuação na renovação da sociedade, foram os fatores para que
Dom Jorge Marcos solicitasse à Santa Sé, por três vezes, a
nomeação de um bispo auxiliar.199

198
DIOCESE DE SANTO ANDRÉ TEM NOVO BISPO. O Estado de S. Paulo, p. _, 1-7 col., 30
dez. 1975.
199
SOBRINHO, Felipe Cosme Damião. Entre fé e liberdade: Catolicismo, operariado e
ditadura no ABC paulista (1964 – 1985). 204 f. Dissertação de Mestrado (Teologia)
Pontifícia Universidade Católica, São Paulo, 2015. p. 90.
99
Dom Jorge Marcos de Oliveira, primeiro bispo da Diocese de Santo
André, faleceu em 28 de maio de 1989, aos 73 anos, em decorrência de
um infarto agudo do miocárdio.

Sua morte foi recebida com grande consternação do povo da


diocese e pelo clero. Uma marca do seu funeral foi a presença dos
pobres que ele assistiu com zelo e profecia.
Muitos presentes, inclusive membros de outras denominações
religiosas e figuras públicas, recordaram a atuação do bispo por
um país mais justo e por uma igreja que trabalhe pelo Reino de
Deus olhando a realidade e, apontando a partir do seu testemunho
evangélico, para uma sociedade mais justa e solidária. Seus restos
mortais foram sepultados na Catedral Nossa Senhora do Carmo
em Santo André, defronte ao altar dedicado a São José, patrono
da Igreja e dos trabalhadores.200

“Foi homem lutador. Mal visto dos patrões, mal visto dos padres
da diocese, mal visto dos bispos. E enfrentava todo mundo!”
Padre José Mahon201

200
Id., p. 28.
201
MAHON, José. Padre da Ordem dos Filhos da Caridade. Entrevista realizada em
Janeiro/2015.
100
3 DOM CLÁUDIO HUMMES: POR UMA IGREJA
ACOLHEDORA

“(...)naquela época, surgiram líderes


sindicais, sobretudo o Lula, e depois,
surgiram as grandes instituições que davam
voz aos trabalhadores, davam voz... De
forma que, a Igreja não precisava mais ser
voz em tudo, mas eles mesmos constituíram
a sua voz”202
D. Claudio Hummes

FOTO 3. Dom Claudio Hummes cumprimenta operários


e suas famílias em greve no ABC, 1980.

Fonte: Abcdpedia.203

Em 2013, quando D. Claudio Hummes apareceu à sacada do


palácio apostólico pontifício, ao lado de D. Jorge Mário Bergoglio, recém-
eleito papa, após a renúncia de Bento XVI, a imprensa estava ansiosa
tanto para ouvir as primeiras palavras do Papa Francisco, quanto para

202
HUMMES, Claudio. Entrevista concedida em 12 de Agosto de 2013, nos estúdios da
Rádio Imaculada Conceição, em São Bernardo do Campo, para veiculação na emissora e
cedida para uso em nossa pesquisa.
203
Disponível em:
http://www.abcdpedia.com.br/wiki/index.php?title=Dom_Cl%C3%A1udio_Hummes.
Acesso em: Dez. 2014.
101
saber por que aquele bispo brasileiro fora escolhido para estar ali.
Estávamos também.
Em agosto de 2013 tivemos a oportunidade de entrevista-lo nos
estúdios da Rádio Imaculada Conceição, na Diocese de Santo André e esta
foi uma das perguntas da pauta: “D. Cláudio, o Papa Francisco fala que o
senhor estava próximo a ele no conclave, na eleição. Isso é verdade?
Como é que surgiu esta amizade?”. Neste momento percebi um sorriso
largo em seu rosto e uma disposição em comentar o fato com satisfação.
Esta foi a resposta:

Olha, nós nos conhecemos, sobretudo, a partir do tempo que


somos cardeais, porque nós fomos feitos cardeais no mesmo ano,
2001. Somos do mesmo grupo, de 2001. E dentro da lista, existe
nos cardeais uma certa precedência, uma lista de precedência. E
nessa lista oficial eu estou ao lado do Bergoglio (Papa Francisco),
de forma que toda a vez que nós nos reunimos oficialmente, os
cardeais, ou estamos num Sínodo, ou sei lá, em grandes reuniões,
nós nos colocamos segundo a precedência. Também nas próprias
grandes celebrações, concelebrações. Então, eu sempre fico ao
lado do Bergoglio. Então, sim, aí a gente se encontra. De forma
que eu, muitas vezes, me tenho encontrado com ele em Sínodos,
em celebrações, em outros momentos porque a gente senta um ao
lado do outro. Assim também foi aqui na Conferência Geral de
Aparecida, de 2007, onde estivemos reunidos por quase vinte dias
e eu era da mesma comissão que ele. E foi ali que a gente
trabalhou juntos todos aqueles dias, então nós nos conhecíamos
assim. Não que um visitasse o outro. Ele nunca me visitou em São
Paulo, eu também nunca o visitei em Buenos Aires nesse período
todo. Mas nós nos encontramos assim e somos muito amigos, de
fato, imagina só! E aconteceu aquilo que ele contou, em poucas
palavras, como ele contou, assim aconteceu...

Então, insisto: “...sobre a questão dos pobres, daquilo que o


senhor falou pra ele?”.

Sim, sim. Porque tudo isso aconteceu no momento em que ele foi
eleito. Porque, depois disso, ainda tem todo um cerimonial para
chegarmos lá, naquele janelão da Basílica. É onde ele se apresenta
pela primeira vez na Praça São Pedro. Foi ali que me chamou
depois para acompanha-lo também. Porque não há nenhum
cardeal que acompanhe ele, propriamente, naquele janelão
central. Os cardeais ficam naqueles dois janelões laterais. Mas ele
quis... Porque quem vai com ele são os cerimoniáreis, que não são
cardeais. E ele me chamou, de repente, diz: “Olha, eu quero que
você esteja comigo nesse momento”. Mas aí já tinha passado toda

102
a questão do nome dele, enfim, como ele contou, assim, de fato
aconteceu.

A questão do nome, a que se referiu Dom Claudio, foi a escolha de


“Francisco” para nome pontifício de Bergoglio. O fato aconteceu
seguidamente ao anúncio do resultado das eleições. Ao cumprimentar o
novo Papa, Dom Cláudio, franciscano, recomendou-lhe: “Não te esqueça
dos pobres”. Pouco dias depois, em entrevista, Francisco revelou que o
conselho do amigo, lhe remeteu à figura do ‘Pobre de Assis’, já citado
neste trabalho.
Com esta introdução, não pretendemos fugir ao tema, ao contrário,
trata-se de um nexo encontrado para desenvolvermos esta etapa, ligando
o presente ao passado, conscientes do dinamismo da história, o encontro
secreto entre gerações, evidenciado por Benjamin: “alguém na terra
esteve à nossa espera. Se assim é, foi-nos concedida, como a cada
geração anterior à nossa, uma frágil força messiânica para a qual o
passado dirige um apelo”.204
No gesto de D. Cláudio, estaria o passado dirigindo um apelo ao
presente?

A missão de conduzir a desafiadora Diocese de Santo André, aceita


com prontidão por Dom Frei Cláudio Hummes, dentro em breve se
tornaria um marco em sua vida religiosa e na vida de tantos trabalhadores
que ele pode ajudar.205
Em meados da década de 1970 a marca da vocação industrial de
São Paulo era bastante evidente. Nesse sentido é possível afirmar que o
estado alcançava um grau de desenvolvimento acima de outras regiões
brasileiras. Também a economia se desenvolvia bem nesta parte do
Sudeste, assim como o lucro dos patrões. A ideia era de que tudo passava

204
BENJAMIN, Walter. Sobre o Conceito da História. In: Magia e Técnica, Arte e Política:
Ensaios sobre literatura e história da Cultura. São Paulo: Brasiliense, 2012. Obras
Escolhidas, v. 1. p. 242.
205
Para informações mais detalhadas sobre perfil biográfico e pastoral de D. Claudio
Hummes, cf. SOUZA (org.), Ney de. Catolicismo em São Paulo: 450 anos de presença da
Igreja Católica em São Paulo (1554-2004). São Paulo: Edições Paulinas, 2004. p. 590.
103
por São Paulo e que também oportunidades aconteciam nesta região do
Brasil.
O estado, ao lado do Rio de Janeiro, é tradicionalmente polo de
recepção migratória do país, no entanto, a partir da década de 1940, com
vistas também a atender a demanda de empregos seja no setor de
serviços, na indústria ou até para a construção e manutenção de estradas,
como foi o caso da Rodovia Anchieta, o movimento aumentou e sustentou
uma escalada cada vez maior, de forma que, em 1975, quando o bispo
gaúcho D. Claudio Hummes assumiu a Diocese de Santo André, com suas
sete cidades, recebeu a incumbência de acolher e falar a uma população
diversa em sua origem, mas coesa diante de suas lutas diárias. Eram
operários de chão de fábrica, domésticas, desempregados,
subempregados, donas de casa, jovens, crianças, idosos. Pessoas
comuns, lidando ordinariamente com problemas como a pobreza, a
carestia, o pouco trabalho, o baixo salário, a pouca estrutura nos serviços
públicos básicos, e incoerentemente, vivendo este dilema no mesmo solo
do maior parque industrial da América Latina.
D. Hummes pisou a Diocese de Santo André primeiro como bispo
coadjutor, em 29 de junho de 1975, e exatamente seis meses após, em
29 de dezembro, assumiu a frente deste episcopado. O meio ano que
antecedeu sua posse, acompanhando os passos de D. Jorge Marcos de
Oliveira, foi fundamental para entender um pouco da complexidade do
trabalho pastoral nesta região.
O ABC Paulista que D. Claudio encontrou já se diferenciava bem do
panorama visto por D. Jorge há mais de vinte anos. A população saltara
de pouco mais de 320 mil para 850 mil habitantes, com cidades mais
desenvolvidas, muito mais comércios, grandes avenidas, ruas asfaltadas e
indústrias. Também a própria diocese, em termos estruturais, estava bem
mais preparada, já contava com 74 paróquias, muitos movimentos
pastorais e sociais, catedral, cúria diocesana e um clero maior para

104
atender a demanda de fiéis, ainda que não fosse suficiente o número de
padres para o tamanho do setor.

Vista a deficiência acima citada, uma das primeiras iniciativas do


bispo foi justamente promover a formação de padres para minimizar esta
carência na região. E, de fato, esta atitude favoreceria o trabalho pastoral,
aproximando a igreja do povo e, consequentemente, conhecendo melhor
suas necessidades.

Uma das primeiras preocupações de Dom Cláudio foi quanto ao


processo de formação de novos presbíteros, pois o seminário
menor diocesano foi fechado logo após o Concílio e não havia
acompanhamento vocacional específico para os jovens. O artigo
“Boletim Diocesano”, em agosto de 1976, tem como título “Esta
não é a última geração”. A preocupação de uma promoção
vocacional na diocese resultou em varias experiências de grupos
de seminaristas em casas de formação inseridas nas paróquias. 206

Uma renovação no campo da Ação Evangelizadora, partindo das


Diretrizes da CNBB, em consonância com as propostas do Vaticano II e
Medellín, era um dos objetivos. Elaborando planos diocesanos de pastoral,
em aliança com a formação de novos presbíteros, D. Claudio procurou
seguir também as pegadas das CEB’s, que inovavam através de um novo
jeito de ser igreja, onde o leigo se tornava protagonista, participante,
acolhedor e acolhido nesta comunidade eclesial.

Frei Sebastião Quaglio contou que, para Dom Claudio Hummes, no


início, assumir a Diocese de Santo André sob esta práxis social junto aos
movimentos e aos trabalhadores, pareceu ter sido um desafio. No
entanto,

206
SOBRINHO, Felipe Cosme Damião. Catolicismo e Militarismo no ABC Paulista (1964 –
1985). 137 f. Monografia (Bacharelado em Teologia) Pontifícia Faculdade de Teologia
Nossa Senhora Assunção, São Paulo, 2009. p. 96.
105
Dom Claudio acabou mudando, sentindo que era preciso de uma
presença da Igreja. Então, à minha maneira de ver, ele assumiu
uma forma de ser de Dom Jorge. Só, que uma forma, talvez, um
pouquinho mais alicerçada”.207

D. Claudio adotou uma postura mais contida quanto às questões


políticas no início do episcopado. Talvez por precaução, preferiu
inicialmente dedicar-se mais pontualmente aos assuntos de ordem
eclesial: catequese, preparação para o batismo, grupos, movimentos,
conhecer e criar novas paróquias, melhor estruturar a diocese e compor
estratégias para “desenvolver uma dinamização pastoral”. Mas, assim
como Dom Jorge, o franciscano era interessado nos dilemas da sociedade
moderna, muito aprofundado no estudo da Doutrina Social da Igreja e
acompanhava com prazer as transformações advindas do Concílio
Vaticano II.
Em sua primeira entrevista como bispo, demonstrou admiração
pelas propostas do Concílio e disposição para efetivá-las em seu espaço.208
Entre seus planos havia a ideia de oferecer um incentivo pastoral operário
na região.
A ideia não se demoraria a concretizar, pois a classe trabalhadora,
dia após dia, travava uma luta contra os patrões, contra a ditadura civil-
militar e lidava com o medo da violência política, ainda muito insistente e
comum no cotidiano desta classe.

Desde 1974, estava no comando da Presidência da República o


General Ernesto Geisel. Tratava-se de uma derrota para a linha-dura e o
início de uma distensão nos moldes de quem estava no poder, chamada
de “lenta, gradual e segura”. Porém, em 1975, a morte do jornalista
Vladimir Herzog nos porões do DOI-Codi, mostrou que a propalada
abertura política demoraria mais que o esperado para se estabelecer,

207
QUAGLIO, Sebastião Benito. Entrevista concedida em Janeiro/2015.
208
Id., p. 94.
106
principalmente porque se articulava pelo alto. Como forma de protesto
contra a repressão e violência, Dom Paulo Evaristo Arns, arcebispo de São
Paulo, convocou a população para um grande ato ecumênico.
O início do mandato do General Geisel fora marcado pelo II PND –
Plano Nacional de Desenvolvimento, cuja meta principal era a expansão
de bens de capital e insumos intermediários para a produção industrial e
agrícola, num processo de substituição das importações. A crise do
Milagre Econômico era visível e a preocupação com o crescimento da
dívida externa brasileira aumentava. Agravando ainda mais a situação, a
crise do petróleo refletia em todo contexto internacional. Mas a ditadura
persistia na ideia de um “Brasil-potência”, ainda que fosse através de
duras penas para os trabalhadores do país.
O aumento da inflação, aliado ao achatamento salarial, só fez
recrudescer a crise, especialmente para a classe operária, no entanto,
trouxe a motivação para que os movimentos sociais e sindicatos dessem
um passo à reorganização. Começava uma nova articulação que contava
com o apoio da Igreja Católica.
Com o AI-5 ainda em pleno vigor, censurando a imprensa, a
programação no rádio e na televisão e quaisquer veículos que detivessem
condições de denunciar a real situação do país, assumir uma postura
crítica ao governo, era quase como assinar uma sentença de morte e,
nem sempre a Igreja Católica tinha condições de agir, sendo que, muitas
vezes os próprios religiosos sofreram repressão.
Diante da crise e da insegurança sentida pelo povo, Dom Cláudio
passa a se manifestar mais incisivamente a favor dos trabalhadores no
ABC. Em 1977, escreveu uma carta sobre condições precárias em que
vivia a massa operária e suas famílias. A comunicação foi lida nas missas
paroquiais da diocese de Santo André e divulgada através de jornais da
região. O jornal O Estado de São Paulo publicou a íntegra da carta e uma
cópia da reportagem está entre os anexos deste trabalho. Abaixo, um
trecho nos ajudará a melhor entender a questão.

107
Os sindicatos perderam sua força de negociar acordos com os
empregadores e isso contribuiu ainda mais para os trabalhadores
se afastarem deles. Isso é duplamente negativo, primeiro porque
os sindicatos, sem os trabalhadores na retaguarda e sem armas
eficazes para lutarem por melhores salários, passam a ter uma
função meramente assistencialista e afastam-se do seu princípio
básico que é a luta pelos direitos das categorias que representam.
Em segundo lugar, a descrença no sindicalismo leva os
trabalhadores a procurarem saídas individualistas para os seus
problemas. E os problemas da classe operária não podem ser
resolvidos individualmente.209

A fala do bispo andreense encontra sentido no pensamento de


Edward Thompson. Para o autor, as experiências comuns apontam para
uma identificação de classe e, consequentemente, obtendo melhor êxito
em suas atividades. Vejamos o que ele diz:

A classe acontece quando alguns homens, como resultado de


experiências comuns (herdadas ou partilhadas), sentem e
articulam a identidade de seus interesses entre si, e contra outros
homens cujos interesses diferem (e geralmente se opõe) dos
seus.210

Agora, procuremos entender melhor a fala de D. Claudio, através


da explicação do, então sindicalista, Luís Inácio da Silva, o Lula, ex-
Presidente da República (2003-2011) e, em 1975 eleito, pela primeira
vez, para dirigir o Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo. Em junho
de 1981, ele concedeu entrevista a Ricardo Antunes, Antonio Rago Filho,
Maria Dolores Prades e Paulo Douglas Barsotti.

Quando nós entramos no sindicato, eu e um grupo de


companheiros que fazem parte dessa diretoria, herdamos do
passado uma prática sindical viciada e muito ruim. O governo
tinha feito com que o movimento sindical se transformasse em
posto de assistência médica, cobrindo as falhas do próprio estado.
Nesta época, havia um grande número de dirigentes sindicais que
preferia que a situação continuasse daquele jeito, assistencialista,
porque ninguém era incomodado. Não havia assembleias nem a

209
BISPO APONTA OS EFEITOS DOS BAIXOS SALÁRIOS. O Estado de S. Paulo, p. _, 1-2
col., 20 mar. 1977.
210
THOMPSON. A Formação da Classe Operária Inglesa: A Árvore da Liberdade. op. cit.,
p. 10.
108
possibilidade de se discutir muita coisa. Na verdade, a prática do
assistencialismo tomou conta dos sindicatos grandes e pequenos,
alguns construíram mini hospitais, ambulatórios moderníssimos. O
nosso sindicato tem 20 médicos, 20 dentistas e uma série de
especialistas. Com tudo isso, começamos a perceber que
estávamos fugindo da nossa razão de existir, começamos a
perceber que era necessário responsabilizar um pouco a classe
trabalhadora pela existência do sindicato. A gente tinha em mente
que, quando a classe trabalhadora começa a se manifestar no
Brasil, logo aparece um ditador que vem regulamentar a existência
dos sindicatos e não permitir que nos organizemos da forma que
melhor entendamos. Chegamos à conclusão de que o sindicato no
Brasil foi criado muito mais por uma necessidade do estado de
sobreviver diante da classe trabalhadora do que por uma
necessidade e consciência da classe trabalhadora.211

Não sabemos bem como Dom Cláudio e Lula começaram um


diálogo, mesmo porque o próprio Lula dizia não querer o envolvimento da
Igreja nas questões do Sindicato, mas estamos certos de que, ao final da
década de 1970, uma cooperação entre ambos suscitou um movimento
que fortaleceu a luta dos trabalhadores na região do ABC: iniciava-se um
período importante para o sindicalismo no Brasil. Sobre a questão do novo
sindicalismo no ABC, Scoleso explica:

Na década de 70, quando das primeiras paralizações começaram a


chamar a atenção na região do ABC Paulista, as ações e os
assuntos sindicais passaram novamente a ressurgir na cena
brasileira, na mídia e nos círculos acadêmicos. Nesta nova
possibilidade de retomada de suas ações e transformações, criam-
se também as primeiras condições, a partir daquele momento, de
tornar estas novas mobilizações objeto de resposta comparativa ao
sindicalismo praticado no pré-64. Isso implicaria rejeitar as
experiências passadas, torná-las autônomas frente às “novas”
práticas, sugerindo e indicando uma total ruptura. Anunciava-se,
portanto, uma nova maneira de imprimir a história da atuação
sindical e de condução da classe trabalhadora rumo a reais
objetivos e conquistas.212

211
LULA DA SILVA, Luiz I. Entrevista. Lula: Retrato de Corpo Inteiro. Revista Escrita
Ensaio. Revista Escrita Ensaio. Ano. IV, n.8, p. 12-54, 1981.
212
SCOLESO, Fabiana. As formas políticas e organizacionais do “Novo Sindicalismo”: As
paralisações metalúrgicas de 1978, 1979 e 1980 no ABC Paulista. 217 f. Dissertação
(Mestrado em História) Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2003. p.
47.
109
As greves de maio de 1978 mostraram um pouco das feições deste
novo sindicalismo. Trabalhadores metalúrgicos de São Bernardo do Campo
e Diadema se organizam num grande movimento grevista que chama a
atenção de todo país. Operários da Empresa Scania, em São Bernardo do
Campo, após a campanha salarial, receberem seus holerites com reajuste
fixado pelo governo, num gesto espontâneo de protesto, decidiram
desligar as máquinas e cruzar os braços. Um iniciativa ousada, mas que
rapidamente repercutiu em outras indústrias da região e do Estado. O
movimento foi considerado ilegal pelo TRT – Tribunal Regional do
Trabalho.213
Sobre estas greves, RAINHO E BARGAS explicam que não se
tratava de uma “luta sindical” e sim uma “luta operária”, pois não foi o
Sindicato que que organizou ou liderou o movimento. A decisão de como
e quando entrar em greve foi dos próprios operários.

A greve apareceu aos trabalhadores como única forma de


conseguir aumentos, manifestarem-se contra a política salarial do
Governo e assim por diante. Foi, desse modo, a “forma de luta
possível” porque a classe operária vinha preparando-se para tal.
Desde que a forma de luta “greve” tornou-se possível, a classe
operária fez greve e essa “deu certo” em virtude de um momento
conjuntural a ela favorável, possibilitando-lhe condições de pôr à
prova a base de organização e consciência de classe de que são os
trabalhadores possuidores.214

Pouco tempo depois, movimentos da igreja local com a Pastoral


Operária e a ACO, juntamente com a Comissão de Justiça e Paz da
Arquidiocese de São Paulo e a FNT divulgaram uma manifestação de apoio
aos trabalhadores em greve. D. Claudio também se expressou e convidou
sua comunidade local a prestar solidariedade e, também refletir sobre as
questões do operariado:

213
Cf. RAINHO, Luís Flávio; BARGAS, Osvaldo Martines. op. cit.
214
Cf. Id., p. 75.
110
A Igreja não deve nem pensar conduzir o processo [de greve]
apesar de todas as tentações de poder que sempre a rondam e
apesar de suas faltas e omissões em que tem incorrido e incorre,
com relação aos operários. Mas ela quer solidarizar-se com o povo,
ser povo e, neste momento, apoiar os operários em suas
reivindicações, que considera justas, ao mesmo tempo que
respeita a autonomia e finalidades das instituições intermediárias,
como os sindicatos, sem esquecer sua missão de pregar o
Evangelho a todos. Ela se alegra e apoia quando essas instituições
intermediárias tentam recuperar no Brasil sua verdadeira
natureza, como declarou o documento da CNBB “Exigências Cristãs
de uma Ordem Política”.215

3.1 A Pastoral Operária (PO)

Em 1979, Dom Claudio Hummes convidou o religioso dominicano


Frei Betto para conduzir a Pastoral Operária na Diocese de Santo André. O
frade conhecia bem as discussões pertinentes à classe operária e, além
disso, dispunha de um bom conteúdo político-ideológico, que facilitaria um
diálogo com o proletariado desta região. Frei Betto esteve como dirigente
da PO até 2002, quando foi convidado pelo Presidente Luís Inácio Lula da
Silva, recém-eleito para o primeiro mandato, para assumir a cadeira de
Coordenador de Mobilização Social do Programa Fome Zero.
Frei Betto nos disse que teve muito pouco contato com o primeiro
bispo de Santo André, Dom Jorge, o conheceu entre 1967 e 1968, ainda
quando era estudante. Entre 1969 e 1974 o dominicano, juntamente com
outros frades, foi condenado e esteve preso sob acusação de participação
e apoio à organizações de cunho terrorista e comunista.216 Liberto da

215
SOBRINHO, Felipe Cosme Damião. op. cit. p. 97.
216
Frei Betto escreveu diversos livros sobre as atividades dos frades dominicanos e a
perseguição que sofreram no período de Ditadura Civil-Militar no Brasil. Uma de suas
obras e, talvez a mais conhecida e citada, é “Batismo de Sangue” que posteriormente foi
transferida para o cinema. Esta publicação, além de ser um trabalho de literatura
bastante premiado, é também uma referência histórica relevante sobre a atuação da
Igreja Católica no Golpe e consequentemente na Ditadura. O livro trata de personagens
importantes que confrontaram este sistema, como Frei Tito, que torturado nos porões do
DEOPS em São Paulo, não suportou os traumas sofridos e se suicidou em um convento
na França, em 1974. BETTO, Frei. Cf. Batismo de Sangue. São Paulo: Círculo do Livro,
1982.
111
prisão em 1974, foi morar e trabalhar em uma favela na cidade de Vitória,
no Espírito Santo e, em 1979 voltou para São Paulo.

Eu vim para São Paulo e queria me inserir. Já havia toda uma


ebulição do movimento operário, porque já tinha ocorrido a greve
de 1978, a primeira na Scania. Então, fui falar com Dom Claudio.
Os padres Servos de Maria eram responsáveis pela Pastoral
Operária da cidade de Santo André e não havia ninguém
responsável pela Pastoral Operária de São Bernardo do Campo e
de Diadema. Então, Dom Claudio pediu que eu assumisse este
trabalho nessas duas cidades, Diadema e São Bernardo. E mais
tarde, quando os padres se afastaram, eu fiquei como responsável
pela Pastoral Operária de todo ABC até 2002 e em 2003 fui para o
Governo e deixei oficialmente a Pastoral Operária.217

Frei Betto entende que a formação da PO passa por dois momentos


específicos: primeiro por uma situação para grupos oportunistas
alcançarem o operariado. Ele nos contou que, diante da rejeição que
alguns sindicalistas tinham aos grupos mais radicais de esquerda, quando
chegou a Santo André para trabalhar com a PO, acabou por descobrir um
grupo do MR-8218 disfarçado de Pastoral Operária e desfez o movimento.
Pesquisando nos arquivos do Projeto “Brasil Nunca Mais” (BNM),
encontramos um pequeno panfleto datilografado, intitulado “PASTOP –
ABCDMRP” (sigla que corresponderia aos municípios do ABC de Santo
André, São Bernardo do Campo, São Caetano do Sul, Diadema, Mauá e
Ribeirão Pires) do ano de 1973 e outro intitulado “PASTOPE” de 1974.
Conforme imagem a seguir:

217
BETTO, Frei. Carlos Alberto Libânio Christo. Religioso, frade dominicano. Atuou contra
a ditadura militar como integrante da ALN junto à Marighela. Recebeu vários prêmios por
sua atuação em prol dos direitos humanos e a favor dos movimentos populares. Atuou
na Pastoral Operária da Diocese de Santo André entre os anos de 1979 e 2002.
Assessor especial da Presidência da República entre 2003 e 2004. É autor de "Batismo de
Sangue" e "A Mosca Azul", entre outros. Entrevista concedida em 17/03/2015, o
Convento dos Dominicanos em Perdizes- SP.
218
O MR-8 – Movimento Revolucionário 8 de Outubro foi uma organização política de
esquerda, que participou da guerrilha urbana entre os anos de 1969 e 1972 e assimilou
postura marxista-leninista.
112
FIGURA 8. Cópia de Panfleto divulgado como da Pastoral Operária da Diocese de Santo André.

Fonte: Projeto Brasil Nunca Mais219

Levantamos a hipótese de que, por conta do recrudescimento da


ditadura militar, o movimento teria sido reprimido e esmorecido, voltando
com mais força anos após. Enfim, não nos aprofundamos para reconhecer
as origens, mas pode ser caminho para outras pesquisas.
Já num segundo momento, conforme Frei Betto, o movimento pode
ser visto como um elemento de identidade da classe trabalhadora,
justamente por que, diante do sistema repressor, se via acuada para suas
iniciativas. De forma, que era preciso encontrar situações e espaços de
formação que produzissem, de fato, este sentimento de reconhecimento
de si.
Sobre as missas do 1º de Maio, ele nos relatou:

Nós da Pastoral Operária inventamos a Missa do Trabalhador todo


1º de Maio e, curiosamente, eu diria que é até uma coisa
equivocada. Se tornou o principal ato de comemoração do Primeiro
de Maio no ABC, que é a maior zona operária do Brasil. Por que eu
considero equivocado? Porque é um ato confessional. E você não
pode ter um ato confessional como centro de uma comemoração
que não é confessional. Devia ser um ato na praça, uma marcha,

219
Disponível em: http://bnmdigital.mpf.mp.br/#!/
113
sei lá. Mas, não uma missa, mas se tornou uma coisa de ir à
missa. Todas as lideranças sindicais, cristãs, espiritas, evangélicas,
todo mundo pra dentro da Igreja Matriz. E em todas as missas
Dom Claudio fazia questão que eu ficasse do lado dele no altar e
me dava a palavra, mesmo eu não sendo padre.220

FIGURA 9. Cópia de cartaz divulgando evento do dia


1º de Maio no ABC

Fonte: Brasil Nunca Mais221

A liturgia das missas do 1º de Maio eram preparadas pelos leigos


integrantes da PO e, segundo Frei Betto, não demoravam menos de duas
horas e ninguém ia embora antes de terminar. “Contava a história da
exploração, crítica ao governo, crítica à ditadura, enfim. A primeira missa
foi em 1980, justamente naquele período das grandes greves”

220
Entrevista concedida em 17/03/2015, o Convento dos Dominicanos em Perdizes- SP.
221
Disponível em: http://bnmdigital.mpf.mp.br/#!/
114
Quando questionamos Frei Betto sobre como se deu a formação de
uma Pastoral Operária diante de uma Ditadura Civil-Militar, num contexto
de agravamento das condições econômicas e sociais, sua resposta foi:
“um desafio fácil de ser conduzido”. Isso porque, para ele, além dos
fatores mencionados anteriormente, os operários tinham em sua maioria
uma formação cristã e este foi um diferencial importante a se considerar.

Costumo dizer que a primeira ideologia de uma pessoa do povo no


Brasil é de substrato religioso e a pastoral era um dos poucos
lugares em que a pessoa podia se engajar sem ser considerada
subversiva, embora, naqueles anos 1980 e 1981, várias vezes a
gente pegou gente da polícia na reunião, convencidos de que era
uma reunião política, e se denunciavam na hora da oração, na
hora da celebração, porque ficavam de tal maneira constrangidos
que não voltavam mais. E claro que eu sei que o tempo todo eu fui
vigiado, controlado. Mas, foi muito fácil fazer a Pastoral e a
pastoral era isso, era a partir da motivação evangélica, a partir da
motivação cristã, transformar aqueles operários em militantes, a
favor da opção pelos pobres, e que no caso é em defesa dos
trabalhadores.222

Certamente, a Igreja, gozava de certa proteção, mas era vista


como adversária pela ditadura, porque já não se omitia diante de
injustiças sociais e violações de direitos humanos, por isso era vigiada.
Quanto à formação do operariado, entendemos que após 1968, houve um
afastamento dos movimentos políticos e sindicais da base. Desta forma, a
camada trabalhadora esteve sob influência dos sindicatos e estes, como
vimos, persuadidos pela politica do governo, mantinham uma presença
muito mais assistencialista. A PO, à sua maneira, preenche este espaço de
formação, no entanto, dentro dos moldes cristãos. Realizava semanas do
Trabalhador na quadra de basquete e futebol de salão da Matriz de São
Bernardo do Campo, com entrada cobrada. E Frei Betto afirma que todas
eram vendidas.
Era cada ano um tema, sempre no mês de Julho, com um frio
danado, de segunda a sexta. A gente vendia entrada! É claro, que
era um preço simbólico, como se hoje fossem cinco reais.
Esgotava. Es-go-ta-va! Vendia antecipadamente nas fábricas.
Nunca tinham menos de mil pessoas todo ano. (...)

222
Entrevista concedida em 17/03/2015, o Convento dos Dominicanos em Perdizes- SP.
115
Iam falar o Barelli, a Erundina, era um lugar que você sabia que ia
ter uma informação que você não tinha na mídia brasileira. Uma
espécie de posto de abastecimento dos nossos ideais, dos nossos
valores. Iam Dom Claudio, Dom Pedro Casaldáliga, Dom Paulo
Evaristo Arns, todas essas pessoas que eram execradas pela
ditadura iam pra lá.223

3.2 - As greves de 1979

No dia 13 de Março de 1979, sob o governo do General João


Baptista de Oliveira Figueiredo, trabalhadores metalúrgicos de São
Bernardo do Campo e Diadema iniciaram uma greve. Muito breve o
governo se posicionou declarando a iniciativa dos trabalhadores ilegal,
situação que expunha os operários ao perigo da violência repressora.
Logo no dia seguinte a Igreja se manifestou mais uma vez a favor
da classe operária. D. Claudio, a convite da Pastoral Operária, foi até o
Sindicato dos Metalúrgicos em Santo André e participou da assembleia
que se constituía naquele espaço, inteirando-se das informações sobre as
reivindicações e condições dos participantes do movimento, elaborando
após um relatório sobre a aproximação da Igreja aos trabalhadores nas
últimas greves.
Numa iniciativa conjunta entre o movimento sindical e a Diocese de
Santo André surgiu o “Fundo de Greve”, uma proposta que visava oferecer
assistência às famílias de operários em situação vulnerável por
decorrência da greve.224
No dia 20 de março, ainda de madrugada, trabalhadores se
mobilizaram em frente à Volkswagen, e Dom Cláudio marcou presença na
manifestação, no intento de evitar violências contra aquele grupo, pois era
forte o esquema policial. Mais tarde, naquele mesmo dia, também esteve

223
Id.
224
SOBRINHO, Felipe Cosme Damião. op. cit.
116
na assembleia que aconteceu no Estádio da Vila Euclides, na época,
denominado Estádio “Costa e Silva”.225
O governo interveio. No dia seguinte manteve a população da
região sitiada, com tropas de choque que que agiram violentamente para
dispersar o movimento.
Na madrugada do dia 23 os sindicatos de Santo André, São
Bernardo e São Caetano foram cercados. Lula estava no Sindicato de São
Bernardo, quando soube da intervenção, mas apenas às 11h da manhã
deixou o local, alertando aos demais companheiros que se dirigissem para
a Praça Matriz de São Bernardo do Campo, porque assembleias no Estádio
da Vila Euclides também estavam proibidas. Começa um cenário de
guerra. Várias prisões foram feitas, tiros no ar e bombas de gás foram
lançadas contra os manifestantes que também se defendiam.
Tito Costa, prefeito de São Bernardo do Campo se reúnem para
discutir meios de amenizar a situação e conter os ânimos de 40 mil
metalúrgicos, que exigiam uma assembleia no Estádio da Vila Euclides,
naquele momento interceptado. Este clima permeava toda a região.
No dia 25 de março D. Claudio presidiu uma missa, num gesto de
demonstração de que a Igreja permanecia ao lado dos trabalhadores, mas
afirmava que tudo deveria ser feito pacificamente.
No dia 27 de março uma trégua de 45 dias foi proposta e aceita a
fim de viabilizar as negociações.
As greves ofereceram dinamismo aos movimentos sindicais e toda
agitação se refletiria ainda mais no seio da Diocese de Santo André. A
pastoral diocesana se colocava disposta prioritariamente às questões do
mundo do trabalho.
Sobre a atuação da Igreja de Santo André nesta situação, a
conclusão de Rainha e Borgas é que:

é que a atuação da Igreja (em especial, a de Dom Claudio


Hummes) não é de influenciar, mas realmente no sentido de

225
Id.
117
apoiar. Nessa perspectiva, a atuação da Igreja na greve foi
fundamental:
a) Recolhendo alimentos para o Fundo de Greve;
b) Abrigando o Fundo de Greve em suas dependências e,
posteriormente, durante a intervenção a diretoria do Sindicato;
c) Participando (através de D. Cláudio Hummes como
representante dos trabalhadores) diretamente das negociações
com o Governo e patrões para estabelecimento da trégua e do
acordo final após esta.

Mas,

a grande limitação na maneira de atuar da Igreja é que deu-se


muito em função da pessoa de D. Cláudio Hummes do que
prioritariamente dos religiosos.
Por outro lado, muito se falou em nome de movimentos da Igreja
(Pastoral Operária, JOC, ACO, etc.) que nem sempre possuíam na
região a força e expressão que pensavam demonstrar possuir
junto à opinião pública.

Sobre esta última observação, é esclarecedor o entendimento de


Frei Betto sobre a ação das pastorais neste momento:

Sempre usamos essa metáfora: a Pastoral não é estrada, é um


posto de gasolina. Você vai lá pra se abastecer na fé. Agora, você
não pode ficar parado no posto, se não o seu tanque explode. Você
tem que ir gastar esta gasolina na estrada. A estrada é o sindicato,
é o movimento de favela, é o movimento dos desempregados, é o
movimento de mulheres, é o fundo de greve. Então, os militantes
da pastoral tinham, como até hoje, diferentes engajamentos, tinha
um leque imenso. Quando em 1982 foi fundada a CUT, na Vera
Cruz, em São Bernardo, todo aquele congresso organizado, foi
realizado com o dinheiro levantado pela Pastoral Operária. Então,
a gente fazia trabalho de apoio. A gente quase não aparecia. Tanto
que ninguém me via falando em assembleia sindical.226

226
Entrevista concedida em 17/03/2015, o Convento dos Dominicanos em Perdizes- SP
118
3.3. As greves de 1980

FOTO 4. Dom Claudio Hummes celebra missa com a


presença de Lula durante a greve no ABC.

Fonte: Setor de Memória – São Bernardo do Campo

Diante da recusa em atender às propostas dos trabalhadores, feitas


no ano anterior, uma nova campanha salarial era iniciada. Os movimentos
que antecederam pareceram preparar o operariado do ABC paulista. Além
disso, fatos como a morte do operário Santo Dias, em novembro de 1979,
ainda era muito sentida pelos trabalhadores de todo o Brasil.
Do trabalho de organização da campanha salarial entre os
metalúrgicos, no segundo semestre de 1979, resultou uma Comissão de
Salário e Mobilização, com a presença de 425 trabalhadores. E já no início
do ano de 1980 os dirigentes sindicais iam até às fábricas conversar com
a categoria sobre a nova campanha.

119
Os salários dos operários sofriam uma perda que chegava a 84,3%,
em comparação com o ano anterior e uma grande instabilidade
empregatícia também favorecia o achatamento salarial. A crise afetava os
preços dos alimentos e organizações como a “Associação das Donas de
Casa” e “Movimento contra a carestia”, articulavam boicotes ao consumo
de determinados alimentos, como a carne e ainda promoviam
manifestações com vistas a conscientizar à população dos graves
problemas econômicos e sociais pelos quais passava a sociedade
brasileira.
Desta vez, as reivindicações dos trabalhadores iam para além de
reajustes salariais, agora a questão da estabilidade era um ponto
fundamental, afinal, o desemprego era outro fantasma que assombrava a
classe operária.
No dia 1º de Abril de 1980 tinha início a histórica greve, que
também marcaria um processo de caminhada rumo à abertura política do
país. Cerca de 200 mil trabalhadores foram diretamente envolvidos no
movimento. Além disso, suas famílias fortaleceram o movimento.
Os metalúrgicos permanecem por 41 dias em greve sob um clima
muito tenso, com prisões e atos de violência, pois o governo havia
decidido pela ilegalidade da organização grevista.
Novamente D. Cláudio e a diocese de Santo André marcaram
presença e ofereceram solidariedade ao trabalhador.

No dia 31 de março, antes da paralização, o bispo do ABC esteve


presente na assembleia dos metalúrgicos de São Bernardo e
apoiou a decisão dos trabalhadores pela greve. Comunicou que o
conselho presbiteral decidiu que a “Igreja estará ao lado dos
trabalhadores até o fim”. Falando de Dom Oscar Romero,
arcebispo de El Salvador, assassinado no dia 24 de março
enquanto presidia a Eucaristia, convidou os operários à reflexão:
“Vamos pensar nele, por sua coragem. Ele foi uma pessoa que se
colocou ao lado dos trabalhadores e do povo”. Por fim, perguntou
se os trabalhadores queriam rezar o Pai-nosso e a resposta foi
imediatamente confirmada. O bispo garantiu que as igrejas e os
salões paroquiais estariam abertos aos trabalhadores, no caso de
intervenção dos sindicatos. Em todas as paróquias da diocese foi

120
distribuída uma mensagem de apoio aos metalúrgicos assinada
pelo bispo diocesano.227

Na diocese, igrejas abriram suas portas para que reuniões


pudessem acontecer e as assembleias passam a acontecer no interior da
igreja Nossa Senhora da Boa Viagem, Matriz de São Bernardo do Campo.
Algumas salas desta igreja também foram cedidas para articulação do
Fundo de Greve. E Dom Cláudio afirmava sua presença nas assembleias
“pela sua obrigação de pastor, não significando que ele se tornava um
sindicalista, porque não assumiu nenhuma liderança”.

Cristo não veio ajeitar as coisas. Não veio harmonizar. Não veio
fazer média entre a justiça e a injustiça... A Igreja nunca decidirá
se vocês devem fazer ou parar a greve. Vocês é que devem
decidir. A Igreja se põe a serviço de vocês, mas esta decisão é de
grande responsabilidade.228

O fator mais marcante de todas estas manifestações de 1980 foi a


comemoração do 1º de Maio, dia do Trabalhador. Como os sindicatos
sofriam com as intervenções e com seus dirigentes presos, foi organizada
um celebração na Igreja Matriz de São Bernardo do Campo.

Durante a missa muitos, trabalhadores, vindos de diversos locais,


foram se concentrando na praça da igreja, totalizando 150 mil
pessoas. A cidade estava sitiada pela polícia com aparato pesado
para atacar os possíveis manifestantes, mas, diante da grande
massa, o cerco recuou e foi embora de São Bernardo do Campo.
Do templo católico os trabalhadores, os bispo, os padres, Frei
Betto e as mulheres dos sindicalistas presos se dirigiam para o
Estádio da Vila Euclides, onde realizaram um comovente ato
político contra o militarismo. Dom Cláudio disse que, naquele
momento, se concretizava “a justeza das reivindicações dos
operários metalúrgicos”.229

227
SOBRINHO, Felipe Cosme Damião. op. cit. p. 107.
228
Id.
229
Id.
121
Foto 5: Igreja Matriz de São Bernardo e os
trabalhadores. (1980)

Fonte: Centro de Memória São Bernardo

122
Foto 6: Tropas da polícia indo embora de São
Bernardo no dia 1º de Maio de 1980.

Fonte: Centro de Memória de São Bernardo do Campo.

Dias depois, em outra ocasião, os militares retornam a São Bernardo


do Campo e esguicharam água nos manifestantes na Praça Matriz. Diante
da ameaça repressora, uma comissão é formada para contornar a greve
que já estava em seu 40º dia. Uma proposta foi feita e aceita pelos
metalúrgicos. A comissão se encaminhou para Brasília para alcançar o
diálogo. No dia 11 de Maio o resultado foi anunciado e os metalúrgicos
decidiram pelo fim da greve.

Na ocasião em que entrevistamos Dom Cláudio, ele pouco nos falou


sobre o tempo em que atuava como bispo à frente da Diocese de Santo
André.

123
E foi o tempo do fim da Ditadura Militar, da redemocratização, das
grandes greves aqui do ABC, onde, naquela época, surgiram
líderes sindicais, sobretudo o Lula, e depois, surgiram as grandes
instituições como a CUT, o PT que dava voz aos trabalhadores,
dava voz... De forma que, a Igreja não precisava mais ser voz em
tudo, mas eles mesmos constituíram a sua voz, mesmo
politicamente, também sindicalmente. Então, tudo isso aconteceu
naquela época e nós é... E aí, eu acho que o Espírito Santo
também nos guiou muito. De termos tido digamos assim, a lucidez
de apoiar esse movimento do povo e dos operários aqui. A igreja
aqui apoiou, apoiou fortemente. Isso também repercutiu no Brasil
inteiro. E ao mesmo tempo com Medellín e etecetera, essas
grandes propostas da Igreja na América Latina, a opção
preferencial pelos pobres e todo o trabalho depois que foi feito
nessa direção. Tudo isso se encaixou uma coisa na outra e fez com
que realmente fossem épocas importantíssima para o povo aqui,
para o povo brasileiro.230

230
HUMMES, Claudio. Entrevista concedida em 12 de Agosto de 2013, nos estúdios da
Rádio Imaculada Conceição, em São Bernardo do Campo, para veiculação na emissora e
cedida para uso em nossa pesquisa. Quando questionado se falaria mais sobre o tema,
nos respondeu que não concede entrevistas sobre este assunto. Encerrou a conversa.
Não sabemos por quais motivos o bispo evita falar destes tempos nos dias de hoje, mas
algumas vezes, precisamos também entender que até o “não dizer” pode se traduzir
alguma ideia.

124
125
CONSIDERAÇÕES FINAIS

Quando iniciamos um caminho de pesquisa nos limites da Diocese


de Santo André, na região Metropolitana de São Paulo, não esperávamos
encontrar tantas demandas a serem trabalhadas dentro de um mesmo
espaço, e nos surpreendemos quando nos deparamos com histórias tão
emaranhadas que se desenvolvem em conjunto. Um fato que desafia o
percurso de apuração, organização das fontes e sua análise lógica.

Por sorte, a história não precisa ser uma narração linear e


tampouco sistemática, ao contrário, talvez não fosse possível contar um
fragmento da história da Diocese de Santo André da forma que neste
trabalho desenvolvemos.

A Diocese de Santo André, fundada em 1954, teve sua história


entrelaçada a de outras regiões, muitos personagens e situações. Dom
Jorge Marcos de Oliveira, primeiro bispo desta igreja local, trouxe consigo
a expectativa de trabalhar junto ao povo de tradição operária, conhecendo
suas necessidades e desafios e, ciente de suas lutas diárias, estava
disposto a vivificar os ensinamentos da Doutrina Social da Igreja, que
tanto se aprofundara e que efervescia, à medida que as resoluções do
Vaticano II encontravam eco na América Latina.

A realidade de pobreza e desprezo com que vivia o proletariado e


suas famílias na região do ABC, certamente despertou no bispo carioca
um sentimento de inquietação que transbordou em ação social. Sem se
distanciar da teologia eclesial, Dom Jorge procurou promover iniciativas
que não apenas assistisse ao trabalhador, mas que fortalecesse o
protagonismo da classe operária para lutar por seus direitos, para ter voz.

Se posicionou diante das greves, mediou conflitos entre patrão e


operário, se fez ouvir dentro e fora dos muros da Diocese de Santo André.

126
Recebeu a atenção da imprensa e era conhecido por uns como “Bispo
Vermelho” e por outros, como “Bispo dos Trabalhadores”.

Dom Jorge Marcos de Oliveira fez repercutir as angústias da classe


operária num momento em que era proibido contrariar. O Golpe de 1964,
trouxe tensão e um clima de insegurança para o povo e para os
movimentos sociais. A partir de 1968 deflagrou uma busca insana aqueles
que assumissem posturas que ferissem à cartilha do Estado. Na região,
leigos e religiosos pertencentes à movimentos sociais combativos foram
presos e torturados, simplesmente por denunciarem os desmandos de um
sistema que compreendia não apenas militares, mas também setores da
sociedade civil, da burguesia, representantes do capitalismo, que viam na
ocasião a oportunidade de superfaturar às custas do trabalhador.

Criticado por setores da esquerda e da direita, o Bispo Vermelho


não arredou um milímetro de suas convicções e avançava na prática
social. Fundou a Associação Lar Menino Jesus, a fim de abrigar crianças
abandonadas e famílias em situação de vulnerabilidade, ofereceu apoio às
novas lutas dos trabalhadores, preparando o terreno da Diocese de Santo
André para os desafios futuros.

Ciente da debilidade de sua saúde física, Dom Jorge pediu o


afastamento das suas atividades como bispo diocesano, sendo sucedido
pelo franciscano D. Cláudio Hummes, que permaneceu nesta diocese entre
os anos de 1975 e 1996.

Dom Cláudio vivenciou um dos períodos de maior empenho da


classe operária: as greves sindicais do final da década de 1970. O bispo
demonstrou firmeza e competência diante de momentos de extrema
intolerância do governo frente às lutas operárias por melhores condições
vida e de trabalho. Apoiou as reivindicações, cedeu espaço para a criação
de um Fundo de Greve, falou nas grandes assembleias e colocou a Igreja
à disposição das necessidades do operariado e suas famílias.

127
A competência com que os dois primeiros bispos da Diocese de
Santo André trataram as angústias do povo, era o reflexo de uma igreja
em transformação, que encontrava um novo caminho pastoral para
concretizar sua “opção preferencial pelo pobre”.

Passados quase 50 anos das reflexões de Medellín, que


possibilitaram o avanço de uma religião mais próxima do povo, com uma
identidade popular na sociedade moderna; após o processo de
redemocratização brasileiro, percebemos um esmorecimento desta igreja,
estando cada vez mais voltada para si, para a preservação de sua
doutrina, fechada em seus espaços, pregando para convertidos. Onde
estão os movimentos católicos de juventude? As pastorais? As
comunidades de base? Quais são as suas discussões de hoje? Quanto está
verdadeiramente solidária às necessidades do próximo, do povo operário?

Será que nas investidas do Papa Francisco podemos enxergar


algumas frestas, por onde veremos o surgimento de uma Igreja mais
próxima e acolhedora? Esperamos que sim. Seus gestos são um discurso
prático das orientações do Vaticano II, de Medellín, de Puebla que tanto
marcaram as atividades de bispos como Dom Jorge Marcos de Oliveira e
Dom Cláudio Hummes. Aliás, como lembramos no decorrer do trabalho,
Dom Hummes recomendou a Francisco: “Não te esqueça dos pobres”.
Talvez o eco daqueles tempos queira se fazer presente agora. Não
esqueçamos os exemplos!

Que este e outros trabalhos semelhantes inspirem novas pesquisas


sobre o tema e contribuam para suscitar novas práticas sociais e novos
sujeitos históricos.

128
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

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2005.

132
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DE MEDELLÍN a Aparecida. Direção: Ricardo Martensen. São Paulo: Verbo


Filmes, 2007. 1 DVD (47 min), son., color.

HÉLDER Câmara: O Santo Rebelde. Direção: Érika Bauer e Andréia Glória.


Brasília: Cor Filmes, 2004. 1 DVD (74 min) ), son., color.

ENTREVISTAS E DEPOIMENTOS:

BETTO, Frei. Carlos Alberto Libânio Christo. Religioso, frade dominicano.


Atuou contra a ditadura militar como integrante da ALN junto à Marighela.
Recebeu vários prêmios por sua atuação em prol dos direitos humanos e a
favor dos movimentos populares. Atuou na Pastoral Operária da
Diocese de Santo André entre os anos de 1979 e 2002. Assessor
especial da Presidência da República entre 2003 e 2004. É autor de
"Batismo de Sangue" e "A Mosca Azul", entre outros. Entrevista concedida
em 17/03/2015, o Convento dos Dominicanos em Perdizes- SP.

MAHON, José. Padre da Ordem dos Filhos da Caridade. Chegou ao Brasil


em 1961 e passou a trabalhar na Vila Santa Terezinha em Santo André.
Está entre os chamados padres operários franceses, do começo dos anos
1960. Entrevista concedida em 29/01/2015.

QUAGLIO, Sebastião Benito. Frade Franciscano Conventual. Chegou à


Diocese de Santo André em 1966. Assumiu a paróquia Santíssima Virgem
em São Bernardo do Campo e hoje é Diretor do movimento Milícia da
Imaculada e da Radio Imaculada Conceição, situada também na cidade.
Entrevista concedida em 20/01/2015.

133
FONTES ELETRÔNICAS:

CHASIN, José. Conquistar a democracia pela base. Revista Temas, n. 6,


2000. Disponível em:
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2015

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http://revistas.pucsp.br/index.php/reveleteo/article/view/6756/4887 . Acesso em:
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p.20-28, 2º sem. de 2010 e 1º sem. de 2011. Disponível em:
http://www.pucsp.br/neils/downloads/Vol.2526/michael-lowy.pdf. Acesso
em: jan. 2015.

LÖWY, Michael. Marxismo e religião: ópio do povo? In: A teoria marxista


hoje. BORON, AA; AMADEO , J; GONZALEZ, S, A teoria Marxista hoje:
problemas e perspectivas. Sabrina, 2007. Disponível em:
http://biblioteca.clacso.edu.ar/clacso/formacion-
virtual/20100715080929/cap11.pdf. Acesso em: abr. 2015.

RODEGHERO, Carla Simone. Religião e Patriotismo: o anticomunismo


católico nos Estados Unidos e no Brasil nos anos da Guerra Fria. Revista
Brasileira de História, , ISSN 1806-9347, vol. 22, n. 44. São Paulo, 2002.
Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0102-
01882002000200010&script=sci_arttext . Acesso em: nov. 2015

134
DOCUMENTOS DA IGREJA CATÓLICA

CNBB. Plano de Emergência para a Igreja do Brasil. Cadernos da CNBB,


n.1, 2ª Edição. São Paulo: Paulinas, 1963.

CONSELHO EPISCOPAL LATINO AMERICANO. A Igreja na Atual


Transformação da América Latina à Luz do Concílio: Conclusões de
Medellín. Editora Vozes, 1969.

CONSELHO EPISCOPAL LATINO AMERICANO. Conclusões de Medellín, 4ª


ed., São Paulo: Paulinas, 1979.

DA IGREJA CATÓLICA, Catecismo. Edição revisada de acordo com o texto


oficial em latim. Edições Loyola, 2002.

DE DIREITO CANÔNICO, CÓDIGO. Promulgado por João Paulo II, Papa.


São Paulo: Loyola, 2001.

LEÃO XIII, Papa. Rerum novarum. Carta Encíclica. Santa Sé, 1891.

RATZINGER, Joseph Card. Nota sobre a expressão: “Igrejas Irmãs”.


Declaração sobre a Expressão “Igrejas Irmãs”. Santa Sé, 2000.

135
ARTIGOS EM REVISTAS:

FICO, Carlos. Versões e controvérsias sobre 1964 e a ditadura militar.


Revista Brasileira de História, v. 24, n. 47, p. 29-60, 2004.

LULA DA SILVA, Luiz I. Entrevista. Lula: Retrato de Corpo Inteiro. Revista


Escrita Ensaio. Revista Escrita Ensaio. Ano. IV, n.8, p. 12-54, 1981.

MORAES, Maria Blassioli. Movimentos sociais e o processo de urbanização.


In: Diadema nasceu no Grande ABC: História retrospectiva da Cidade
Vermelha. São Paulo: Editora FAPESP, 2001.

PORTELLI, Alessandro. História oral como gênero. Projeto História. Revista


do Programa de Estudos Pós-Graduados de História, São Paulo, n. 22, p.
9-36, Jun. 2001.

RAGO FILHO, Antonio. O ardil do politicismo: do bonapartismo à auto-


reforma da autocracia burguesa. Projeto História (PUCSP), São Paulo, v.
2, p. 139-167.

RIBEIRO, Ana Paula Goulart. Jornalismo, literatura e política: a


modernização da imprensa carioca nos anos 1950. Estudos Históricos, Rio
de Janeiro, n. 31, p. 147-160, 2003.

SILVA, Victor Augustus G. Francisco de Assis e a pobreza franciscana: a


fundação de um discurso. História, Questões e Debates, v. 43, 2005.

SOUZA, Luiz A.G. As várias faces da Igreja Católica. Estudos Avançados,


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136
MONOGRAFIAS, DISSERTAÇÕES E TESES

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1965. 463 f. Tese (Doutorado em História Social) Universidade de São
Paulo, São Paulo, 2001.

FERREIRA, Maria de Lourdes. Os Arquivos da Administração Pública nos


Municípios do Grande ABC Paulista: A Busca do Fio de Ariadne. 197 f.
Dissertação (Mestrado em História Social) Universidade de São Paulo, São
Paulo, 2005.

GASPAROTTO, Alessandra. O Terror Renegado: Uma reflexão sobre os


episódios de retratação pública protagonizados por integrantes de
organizações de combate à Ditadura Civil-Militar no Brasil (1970 - 1975).
271 f. Dissertação (Mestrado em História Social) Universidade Federal do
Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2008.

MORAES, Maria Blassioli. A Ação Social Católica e a Luta Operária: a


experiência dos jovens operários católicos em Santo André (1954 - 1964).
207 f. Dissertação (Mestrado em História Social) Universidade de São
Paulo, São Paulo, 2003.

PORTUENSE DE CARVALHO, Sandra A. Experiências de Solidariedade e


Política – CB-22 – A Ação Popular no Jardim Zaíra (1958 - 1970). 184 f.
Dissertação (Mestrado em História Social) Pontifícia Universidade Católica
de São Paulo, São Paulo, 2013.

SCOLESO, Fabiana. As formas políticas e organizacionais do “Novo


Sindicalismo”: As paralisações metalúrgicas de 1978, 1979 e 1980 no ABC
Paulista. 217 f. Dissertação (Mestrado em História) Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo, São Paulo, 2003.

SOBRINHO, Felipe Cosme Damião. Catolicismo e Militarismo no ABC


Paulista (1964 – 1985). 137 f. Monografia (Bacharelado em Teologia)
Pontifícia Faculdade de Teologia Nossa Senhora Assunção, São Paulo,
2009.

137
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paulista (1964 – 1985). 204 f. Dissertação (Mestrado em Teologia)
Pontifícia Universidade Católica, São Paulo, 2015.

PESQUISA EM JORNAIS E BOLETINS

Grande Circulação: (edições esparsas)

Brasil Urgente

Diário do Grande ABC

Folha de São Paulo

Folha da Manhã

Jornal Estado de São Paulo

Última Hora

Boletins:

Alternativa. Exemplar: Maio/1980.

Associação das Donas de Casa. Exemplares: Agosto/ 1975; Junho/1977;


Março/1978; Setembro/ 1977.

Boletim da ACO (Associação Católica Operária - SP). Exemplares: 1979/01


e 02; 1980.

Boletim da SAB (Sociedade Amigos de Bairro do Parque João Ramalho –


Santo André). Exemplares: Dezembro/ 1978; Dezembro/ 1981; Fevereiro/
1978; Setembro/ 1979.

Boletim do 3º Congresso de Jovens Trabalhadores de São Paulo.


Exemplar: Fevereiro/ 1983.

Boletim do Movimento do Custo de Vida. Exemplares: Setembro/ 1977;


Outubro/ 1977; Março/ 1978; Junho/ 1978; Setembro/ 1978; Janeiro/
1979.
138
Boletim da Pastoral Operária (Bairro Príncipe de Gales – Santo André).
Exemplar: 1979.

Jornal Amanhã (Diocese de Santo André). Exemplar: 1967.

O Companheiro (Pastoral Operária São Paulo). Exemplar: Dezembro/


1979.

Pastop (Pastoral Operária de Santo André). Exemplares: 1973


(Apresentação do Jornal); Maio/ 1974.

139
ANEXOS

140
ANEXO 1

Carta de Dom Jorge Marcos a Castelo Branco

Ao Excelentíssimo Marechal Humberto de Alencar Castelo Branco – DD.


Presidente dos Estados Unidos do Brasil.

Excelentíssimo Senhor Presidente:

Queremos, de início, declarar a V. Excelência que escrevemos com a


convicção de sermos, como V. Excelência, responsáveis por uma parte do
povo de Deus, neste País, e, num esforço ingente, de vivermos a nossa
responsabilidade.

É no mais alto espírito de cristianismo e de fidelidade à doutrina


social da igreja, apresentada, solenemente pelos últimos papas, que nos
dirigimos a V. Excelência.

Queremos emprestar nossa voz ao povo, hoje impedido de falar.


Deliberadamente deixamos de pedir assinaturas aos líderes das classes
operárias, produtoras, liberais e estudantis, pelo receio de que eles
viessem a ser vítimas da perseguição de elementos ligados ao Governo.

Não temos nenhuma cor política partidária e muito menos ânimo


subversivo em tendência de sublevação das massas.

Desejamos, apenas, testemunhar de público que o Governo,


responsável máximo pelo bem do Brasil, é, por isso mesmo, o maior
responsável pelo atual sofrimento do povo brasileiro, ainda na hipótese de
que suas medidas, geradoras de crise atual, se tenham inspirado em boas
intenções.”

O GOVERNO E OS TRABALHADORES

Constatamos, Senhor Presidente, que o Governo de V. Excelência se


preocupa, sumamente, com a recuperação econômica do Estado, deixando
de lado o que deveria ser a finalidade essencial, primordial, de todo
Governo: “o bem estar social”.

O Santo Papa João XXIII, citando Pio XII, escreve em “Pacem in


Terris” número 60: - a função primordial de qualquer poder público é

141
defender os direitos invioláveis da pessoa e tornar mais viável o
cumprimento dos seus deveres.

O Estado, Senhor Presidente, não é o fim do ser humano mas é o


meio necessário para garantir, através dos seus serviços, o bem do povo.
Santo Tomas define o governante como sendo o Ministro de Deus para o
bem da coletividade.

A FUNÇÃO DO ESTADO

“20. Quanto ao Estado, cujo fim é a realização do bem comum na


ordem temporal, ele não pode, de modo algum, desinteressar-se dos
problemas econômicos dos cidadãos. Pelo contrário, deve oportunamente
intervir, primeiro para haver produção de uma quantidade suficiente de
bens materiais, cujo uso é necessário para a prática da virtude. (S.
Tomas, de regimine principium, I, 15). Segundo, para proteger os direitos
de todos os cidadãos, sobretudo dos mais fracos, como são os operários,
as mulheres e as crianças. E nunca será lícito ao Estado esquecer o seu
dever de contribuir, ativamente, para a melhoria das condições de vida
dos trabalhadores”. Mater et Magistra.

E Pio XII, ainda citado por João XXIII, pregava ao mundo inteiro, na
véspera do Natal de 1955, que “a pessoa humana como tal não pode ser
considerada objeto ou elemento passivo da vida social mas, muito pelo
contrário, deve ser tida como sujeito, fundamento e o fim da mesma”.

O Santo Padre Leao XIII apresentava, como um dos mais graves


erros do capitalismo, o de ter feito do homem “uma mercadoria para
lucro”. Ora, o que se nos depara é que o povo brasileiro hoje outra coisa
não parece ser do que uma mercadoria, com a qual o Governo está
jogando para lucro do Estado.

Procura-se construir uma nova situação político-econômica-social


sobre o desemprego, a fome, a desgraça e o desespero e a morte do
trabalhador que antes trocava a vida pelo pão de sua família e, agora,
nem isso pode fazer.

Hoje, em vez de o Governo vir em socorro do pequeno e do


necessitado, será que não lhe aumenta as dificuldades e suga as suas
energias, impedindo-os de realizar seus deveres pessoais e familiares?

V. Excelência responderá a si mesmo essa pergunta.

“... acontece, no entanto, que, por razões de justiça e equidade,


devem os poderes públicos ter especial consideração para com os
142
membros mais fracos da comunidade, os quais se encontram, em posição
de inferioridade para reivindicar os próprios direitos e provar a seus
legítimos interesses”. Pacem In Terris, 56.

O GOVERNO E OS DESEMPREGADOS

Melhor do que nós, conhece V. Excelência a grave crise do


desemprego que se alastra por todo o País e que sentimos , em nossa
própria carne, na região mais industrializada por todo o território nacional.

A complexa indústria automobilística já reduziu suas atividades a


mais de cinquenta por cento, tendo despedido milhares de empregados,
que não têm, na conjuntura atual, possibilidade de conseguir trabalho.

O desespero desses pais de família chega a leva-los, apesar de suas


capacidades profissionais a pedir, à nossa porta, a esmola de uma colher
de leite em pó para seus filhos famintos ou doloroso empréstimo de um
pouco de óleo e uma xícara de feijão para alimentar uma família inteira.

Um dos signatários desta, fazendo à noite, uma reunião de caráter


religioso com mais de 80 pessoas e preocupado com a hora de jantar dos
presentes, ouviu, como se fosse uma palavra tranquilizadora: ‘o senhor
pode continuar falando, porque todos nós só nos alimentamos uma vez
por dia’. E... isto foi em março. Durante nossas missas dominicais,
quantas vezes, atualmente, somos feridos pelo triste ruído de adultos,
adolescentes ou crianças que desmaiam porque não tiveram com que se
alimentar suficientemente durante vários dias.

Visitando um bairro de nossa diocese, um de nós encontrou, entre


dez famílias que moravam numa barraca, miseráveis casebres de um só
compartimento, apenas uma pessoa que estava empregada e que dividia,
com seus irmãos de infelicidade brasileira, o alimento que mal daria para
sustentar sua própria mulher e filha.

Em uma farmácia do bairro em Santo André, contou-nos o


farmacêutico que, de 70 pessoas que se apresentaram, de uma feita, com
receitas de medicação urgente, apenas 10 puderam comprar o
medicamento receitado. As outras 60 voltaram para suas casas levando,
como medicina, para dores e males de seus queridos dependentes, o
perigoso antídoto do ódio e da revolta.

Vossa Excelência, Sr. Presidente, é conhecido em todo o Brasil pelo


grande amor e devotamento à sua família. Se um de seus filhos
143
precisasse urgentemente de remédio, e V. Exa. não tivesse o mínimo
necessário para adquiri-lo, qual a sua reação de pai?

Se os nossos ilustres generais e oficiais superiores, Ministros de


Estado e homens que hoje dirigem o Brasil, vissem, como numerosos pais
de família desempregados, suas filhas se prostituírem para obter emprego
de salário abaixo do mínimo – salário de fome e de morte – quais seriam
suas reações de homens valorosos e patriotas?

Pois bem, leia, Sr. Presidente, o que uma operária nos entregou
como testemunho escrito:

“Estávamos num grupo de umas nove moças, no portão de uma


grande empresa, na esperança de colocação. O comentário era de a gente
fazer cara alegre para ‘o grandão’ que nos olhava como se fossemos
‘coisas’ para sermos escolhidas. Maria falou que gostaria de sumir ali
mesmo, Júlia disse: ‘Meu Deus, que vergonha’. Yolanda: ‘Tudo isso, para
trabalhar 3 meses’ e Mirna: ‘Melhor que não tivesse nascido, a vida que
levo... não vale à pena... a gente é tão humilhada’. Outra falou ‘que se
entregaria a ele se ele lhe arranjasse trabalho’. Isso era uma verdadeira
guerra de nervos pois a ‘coisa’ não estava animada e eles só diziam:
‘Estamos fazendo cortes. A coisa está pior do que nunca... Nós já
despedimos uma dezena de moças hoje, não há vaga, voltem daqui a dez
dias, pois sempre surge uma vaguinha. Nós aqui só despedimos’. A coisa
está ruim. O Governo está matando o povo brasileiro”.

“A mim mesmo, enquanto fazia uma carta, como teste, para ser
colocada numa casa comercial, o chefe, sem eu ver, veio por trás de mim
e passou a mão pelo meu rosto. Fiquei tão nervosa e com vontade de
largar um tapa, mas fiz um esforço, um gesto de desprezo e entreguei a
carta. Que humilhação”.

Isso acontece com quase todas as moças que precisam trabalhar.

E o desemprego ronda por todas as cidades de nosso Brasil, como o


demônio de que fala São Pedro, procurando a quem devorar.

Na Praça da Catedral, de uma a duas dezenas de adultos e de


adolescentes estão sempre a disputar a felicidade de lavar um carro ou
engraxar um par de sapatos ou prestar qualquer serviço a preço vil entre
eles, um pai de família com seis filhos menores, operário desempregado
há quatro meses, sendo, porém, especializado.

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Um trabalhador sujeitou-se, na primeira semana de Maio, a ganhar
30.000 mensais, dizendo: “Sou forçado a sujeitar-me a tudo, porque
tenho obrigação de sustentar meus filhos”.

Mau pai está sendo o Brasil, Sr. Presidente, que perdeu o sendo
desta responsabilidade para com seus filhos.

Um operário muito ligado a nós, percorreu 136 indústrias para


conseguir, finalmente, uma modestíssima colocação de servente. Ele, ao
lado de duzentos desempregados, entrou numa fila para submeter-se aos
testes. A seleção durou cinco dias: espera interminável, de pé, como
escravos, questionários de todo tipo, exame médico muito severo, etc...
no fim, foram escolhidos dois... como no mercado de animais... os dois
mais aptos a produzir dinheiro, a produzir bem-estar para um pequeno
grupo. Coitados dos 198 restantes que, voltavam sem saber, sequer, por
que não haviam sido eles os felizes animais comprados. Era proibido
perguntar a causa da rejeição...

Outro operário, com 5 meses de fábrica se tornou um dos mais


velhos na indústria. Os mais antigos haviam sido cortados.

O DIREITO À EXISTÊNCIA E AO SALÁRIO

Sr. Presidente:

“O ser humano tem direito à existência... aos recursos


correspondentes a um digno padrão de vida: tais são especialmente o
alimento, o vestuário, a moradia, o repouso, a assistência sanitária, os
serviços sociais indispensáveis. Segue-se, daí, que a pessoa tem também
o direito de ser amparada em caso de doença, de invalidez, de viuvez, de
velhice, de desemprego forçado, e, em qualquer outro caso de privação
dos meios de sustento por circunstâncias independentes de sua vontade”.

Não somos nós que dizemos isso. O primeiro a enunciá-lo foi o


Santo Padre Pio XI na carta e que condenou o comunismo ateu e deu
planos de ação positiva para responder às exigências da realidade
mundial. Isso em 1937. O Santo Padre Pio XII repetiu as mesmas palavras
no seu discurso radiofônico da Festa de Pentecostes de 1941 e João XXIII
os citou, com toda ênfase, na “Pacem In Terris” número 11.

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Perguntamo-nos, Senhor Presidente, se, no Brasil de hoje, nos
homens do campo ou no meio operário urbano não estaremos violando a
lei colocada por Deus no coração do homem. Não matarás? Sabemos que
a pessoa humana tem, no trabalho, o único meio de viver esse
mandamento e de garantir o seu sustento pessoal e o de sua família.

E, é, justamente, o desemprego, a falta de trabalho o que ameaça


de morte, de massacre mesmo, milhares e milhares de trabalhadores.

O Santo Padre Pio XII declarava que a própria natureza impõe a


conservação do homem e que, para isso, a mesma natureza dá a ele o
dever de trabalhar e, portanto, o correspondente direito de existir
trabalho. E, pelo trabalho, conseguir para si e sua família os bens
indispensáveis à vida. Ao Estado cabe zelar para que ao homem seja
garantido esse direito e sua realização na ordem prática, pois sem ele, a
própria base da natureza humana e da coletividade será ferida.

Senhor Presidente:

Encontre em nossas vozes, Vossa Excelência, a expressão a


expressão mais sincera de servir ao Brasil. Procuramos, no silêncio,
esperar com todo o povo brasileiro a melhoria das condições gerais e do
bem-estar da coletividade. A crise, entretanto, continua em ascensão. Só
tem criado e aumentado, progressivamente, um clima de desespero e de
revolta nas classes não privilegiadas.

Aprendemos a amar o Brasil e seus filhos mas até quando o general-


fome estará esperando para comandar uma guerra-civil?

Somos contrários à guerra. Nós a condenamos ainda e a temos


como contrária à nossa formação cristã e à índole do povo brasileiro. Com
seríamos felizes se, em vez de levantarmos os olhos para o céu da pátria
e vermos os aviões que levam nossos soldados armados para um país
irmão, pudéssemos ver as ais diligentes medidas serem empregadas na
solução da grave crise brasileira.

PECADO DA OMISSÃO

Os signatários dessa carta, somos todos brasileiros natos,


consagrados ao sacerdócio. Fomos inspirados no mais genuíno espírito
cristão e patriótico. Nós nos sentiríamos como os cães mudos de que fala
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Isaías (55 vv 10 e 11) ou como os pastores que não vigiam e que o
profeta Ezequiel (34 vv 2 e seq.) estigmatizava ou como os falsos
pastores (João 10) condenados por Nosso Senhor que deixavam o
rebanho à mercê de assaltantes e as ovelhas serem arrebatadas e
dispersadas pelos lobos [inelegível] se não falássemos. O nosso silêncio
[inelegível] fulminante sobre nós, como fulminante é a pergunta de Jesus
Cristo, Nosso Senhor, ao falar do juiz iníquo: “O Filho de Deus, quando
voltar, encontrará a fé sobre a terra?” (Lucas 18,8).

Ai de nós se continuarmos em silêncio. Se não evangelizarmos, se


não dissermos a verdade.

Deu ilumine V. Excelência e seus auxiliares e lhe dê a força de


espírito e de ação para ser verdadeiramente, como o Pai, o responsável,
diante de Deus e do mundo pelo bem da família brasileira.

Santo André, 11 de maio de 1965.

Seguem-se as assinaturas de: Dom Jorge Marcos de Oliveira, bispo


da Diocese de Santo André; Monsenhor João do Rêgo Cavalcante, Vigário
Geral; Monsenhor José Benedito Antunes, Cura da Catedral; e dos párocos
e vigários: José Cardoso Alves, Azurem Ferreira Pinto, Aderbal Vilar, Frei
Eduardo de Grama, Eder Santana, Sebastião Gomes da Costa, José
Lambert, Antônio Aprélio, Heitor de Carli, Emílio Rubens Chasseraux, Gil
Eulálio da Silva, Dirceu Duarte Ferreira, Olavo Paes de Barros, Newton
Louriro de Sousa, Leonardo Refisque, Belisário Elias de Sousa, Walfrido
José Praxedes, José Márcio Dias, Reitor do Seminário e Antonio Almeida
Soares, assistente da JOC.

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ANEXO 2

148
ANEXO 2

149
ANEXO 3

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