Tese Saidy Murcia

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS

ESCOLA DE ENFERMAGEM
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ENFERMAGEM

SAIDY ELIANA ARIAS MURCIA

A CONSTRUÇÃO COTIDIANA DA ATENÇÃO PRIMÁRIA À SAÚDE COM


ENFOQUE INTERCULTURAL EM UMA REGIÃO DA AMAZÔNIA
COLOMBIANA: VIVÊNCIAS DE INDÍGENAS E PROFISSIONAIS DE SAÚDE

Belo Horizonte
2020
SAIDY ELIANA ARIAS MURCIA

A CONSTRUÇÃO COTIDIANA DA ATENÇÃO PRIMÁRIA À SAÚDE COM


ENFOQUE INTERCULTURAL EM UMA REGIÃO DA AMAZÔNIA
COLOMBIANA: VIVÊNCIAS DE INDÍGENAS E PROFISSIONAIS DE SAÚDE

Tese apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Enfermagem da Escola de
Enfermagem da Universidade Federal de
Minas Gerais, como requisito parcial para a
obtenção do título de Doutora em
Enfermagem.
Área de Concentração: Enfermagem e Saúde
Linha de Pesquisa: Organização e Gestão de
Serviços de Saúde e de Enfermagem
Orientadora: Profa. Dra. Cláudia Maria de
Mattos Penna

Belo Horizonte
2020
A Darwin e minha avó Elena, que estão me
acompanhando desde o céu
AGRADECIMENTOS

O desenvolvimento desta pesquisa e a culminação do processo de realização de meu


doutorado deixaram-me imensamente grata com diferentes pessoas e instituições que, de
alguma forma, fizeram parte desta caminhada pelo Brasil, pela Amazônia e pela vida.

Agradeço primeiramente a minha família, especialmente a duas mulheres maravilhosas:


minha mãe Gloria e a minha irmã Karen. Sem seu apoio nada disso teria sido possível.
Obrigada por ser o melhor exemplo de perseverança, por seu carinho e compreensão, porque
em cada ligação me davam forças para continuar na luta, mesmo com todos os quilômetros
que nos separavam. Amo infinitamente vocês!

A Dario, por sempre estar aí, apesar de tudo. Por ser companheiro de lutas e o melhor
cuidador. Não tenho palavras para te agradecer por tanto Dari.

A minha orientadora, a professora Dra. Cláudia Maria de Mattos Penna, pelos ensinamentos,
incentivo e apoio recebido em todo o processo.

Às pessoas que fizeram possível a realização do estudo em Guainía. Especialmente, gostaria


de agradecer ao Dr. Bazin de Jesus Piñeros pelas gestões feitas e por sua enorme ajuda
durante o desenvolvimento da pesquisa em campo; e a Betty, por me acolher em sua casa,
pela companhia e as palavras de estímulo. Muito obrigada por tudo!

Aos usuários indígenas e profissionais de saúde que generosamente aceitaram participar desta
pesquisa, por sua disposição e abertura, por me permitir escutar suas histórias e compartilhar
suas experiências.

Agradeço também aos meus queridos amigos e colegas latino-americanos, pessoas que a vida
me colocou nesta experiência de estudo e convívio no Brasil. Sem dúvida conhece-los me fez
amar mais meu país e sentir muito orgulho de nossas raízes e de nossa Abya Yala. A Carla,
Marcio, Erick, Andrés, Adri, Carlos, Rocío, Ayda, Johanna, Diego e Harold, que
compartilharam comigo o início desta caminhada; e aos que foram chegando depois, e
inclusive, na fase final deste proceso: Nathalia, Laura, Chi e Juli. Obrigada a todes pela
amizade e os tantos momentos inesquecíveis!

Finalmente, expresso os meus agradecimentos ao programa de Alianças para a Educação e


Capacitação (PAEC), a Organização dos Estados Americanos (OEA) e o Grupo Coimbra de
Universidades Brasileiras (GCUB) que, em convênio com a agência CAPES, possibilitaram o
financiamento de meus estudos no Brasil, por meio da bolsa de doutorado, e à Escola de
Enfermagem da Universidade Federal de Minas Gerais pelo acompanhamento e apoio durante
estes quatro anos.
Foto: pôr do sol Rio Guaviare – Guainía, Colômbia. Fonte: Acervo da autora

“Sábato dice que uno no escoge los personajes sino que los personajes lo escogen a uno.
Añadiría que uno no encuentra los caminos, sino que los caminos nos salen al encuentro
casi todos los días. Si no lo vemos es sólo porque nos hemos vuelto ciegos a lo nuevo y ya
no vemos si no lo que hemos visto y estamos acostumbrados a reconocer”

Los años del tropel, Alfredo Molano Bravo, 1991


RESUMO

Arias-Murcia, Saidy Eliana. A construção cotidiana da atenção primária à saúde com


enfoque intercultural em uma região da Amazônia colombiana: vivências de indígenas e
profissionais de saúde. Tese (Doutorado em Enfermagem) – Universidade Federal de Minas
Gerais, Belo Horizonte, 2020.

Em 2016 iniciou-se, na Colômbia, a implantação de um novo modelo de saúde. O estado de


Guainía, localizado no nordeste da Amazônia, foi o escolhido para iniciar a implementação
como piloto para os territórios com população dispersa do país, tendo como o principal
objetivo estratégico a atenção primária à saúde (APS) com enfoque intercultural. A maneira
como estava acontecendo a experiência de implementação das novas diretrizes,
especificamente no dia a dia dos atores sociais envolvidos na APS, motivou o
desenvolvimento desta pesquisa. O estudo teve por objetivo compreender o processo de
construção cotidiana da APS com enfoque intercultural, na perspectiva de usuários indígenas
e de profissionais de saúde, em Guainía – Colômbia. Trata-se de um estudo de caso único,
holístico e de abordagem qualitativa, fundamentado na Sociologia Compreensiva do
Cotidiano. Os cenários de pesquisa foram o hospital do estado, os centros e os postos de
saúde, pertencentes à rede pública de atenção. Fizeram parte dos participantes: 22 usuários
indígenas, 26 profissionais de saúde e três participantes-chave (um médico tradicional, uma
liderança indígena e um assessor administrativo), selecionados de maneira intencional e cuja
participação foi voluntária. A pesquisa de campo foi realizada entre os meses de fevereiro a
junho de 2018. Para a coleta e produção de dados foram realizadas entrevistas guiadas por
meio de roteiro semiestruturado e observação direta. A análise dos dados foi delineada pela
técnica de análise de conteúdo temática de Bardin (2011), seguindo três polos cronológicos:
a) pré-análise; b) exploração do material e c) interpretação. Os resultados emergentes foram
organizados em duas grandes categorias empíricas: 1) A atenção primária à saúde em
Guainía: a história do que foi e do que esta sendo construído; 2) A interculturalidade no
cotidiano da atenção primária à saúde em Guainía; cada uma delas composta por quatro
subcategorias. A análise dos dados permitiu evidenciar que o processo de construção da APS
em Guainía perpassa pelo conjunto de ações desenvolvidas no trabalho cotidiano dos
profissionais junto aos usuários indígenas, as quais vêm sendo delineadas por construções e
aprendizagens prévias ao novo modelo de saúde. Verificou-se, entretanto, a persistência do
modelo de assistência centrado na doença e baseado na lógica curativista que orienta a
organização dos serviços de APS na região, tanto no contexto rural quanto no urbano. Os
dados mostram que, nessa dinâmica, a interculturalidade aparece como um processo
permanente de negociações e articulações presentes no cotidiano de indígenas e profissionais
de saúde. Nela materializa-se o encontro e intercâmbio de formas heterogêneas de pensar-
saber, que permitem novas (re)interpretações de conhecimentos e práticas em saúde, apesar
desse processo ser permeado por conflitos, assimetrias e contradições. Pretende-se com este
estudo gerar aportes que permitam fortalecer a implantação do modelo de atenção na região
de Guainía, bem como, em outras regiões da Colômbia com caraterísticas similares. Aspira-se
também contribuir para o desenvolvimento de propostas e políticas públicas que se ocupem
das necessidades locais e regionais em saúde em zonas remotas e de difícil acesso e habitadas
por população indígena e multicultural.

Descritores: Atenção primária à saúde; Saúde de Populações Indígenas; Pesquisa qualitativa;


Enfermagem.
ABSTRACT

Arias-Murcia, Saidy Eliana. The daily construction of primary health care with an
intercultural approach in a region of the Colombian Amazon: experiences of indigenous
people and health professionals. Thesis (PhD in Nursing) – Universidade Federal de Minas
Gerais, Belo Horizonte, 2020.

In 2016, the implementation of a new health model began in Colombia. The state of Guainía,
located in the northeast of the Amazon, was chosen to start implementation as a pilot for
territories with a dispersed population in the country, with the primary strategic objective of
primary health care (PHC) with an intercultural approach. The way in which the experience of
implementing the new imposed guidelines was happening, specifically in the day-to-day life
of the social actors involved in PHC, motivated the development of this research. The
objective was understand the process of daily construction of PHC from the perspective of
indigenous and health professionals, in Guainía, Colombia. It is a unique holistic case study
with a qualitative approach, based on Comprehensive Sociology of Everyday Life. The study
scenarios were the state hospital, centers and health posts, belonging to the public health care
network. The participants were: 22 indigenous users, 26 health professionals and three key
participants (a traditional doctor, an indigenous leader and an administrative advisor),
intentionally selected and whose participation was voluntary. The field research was carried
out between the months of February to June 2018. For the collection and production of data,
guided interviews were conducted through a semi-structured script and direct observation.
The data analysis was outlined by Bardin's thematic content analysis technique (2011),
following three chronological poles: The emerging results were organized into two broad
empirical categories: 1) Primary health care in Guainía: the history of what was and what is
being built; 2) Interculturality in the routine of primary health care in Guainía; each composed
of four subcategories. The analysis of the data showed that the PHC construction process in
Guainía runs through the set of actions developed in the daily work of professionals with
indigenous users, which have been delineated by constructions and learning prior to the new
health model. However, there was a persistence of the disease-centered care model and based
on the curative logic that guides the organization of PHC services in the region, both in rural
and urban contexts. The data show that, in this dynamic, interculturality appears as a
permanent process of negotiations and articulations present in the daily lives of indigenous
people and health professionals. It materializes the encounter and exchange of heterogeneous
ways of thinking-knowing, which allow new interpretations of knowledge and health
practices, despite the fact that this process is permeated by conflicts, asymmetries and
contradictions. The aim of this study is to generate contributions that make it possible to
strengthen the implementation of the care model in the Guainía region, as well as in other
regions of Colombia with similar characteristics. The aim is also to contribute to the
development of proposals and public policies that address the local and regional health needs
in remote areas, which are difficult to access and inhabited by indigenous and multicultural
populations.

Keywords: Primary Health Care; Health Services, Indigenous; Qualitative Research;


Nursing.
LISTA DE FIGURAS

FIGURA 1 - Localização geográfica departamento de Guainía – Colômbia .........................21


FIGURA 2 - Mulheres e crianças Sikuani comunidade Puerto Esperanza .............................22
FIGURA 3 - Organização por zonas da rede pública de saúde de Guainía ............................30
FIGURA 4 - Postos de saúde - comunidade Cuayare/comunidade Puerto Esperanza ...........31
FIGURA 5 - Centro de saúde – Corregimento de Barrancominas ..........................................32
FIGURA 6 - Área de promoção e prevenção – Hospital de Inírida ........................................33
FIGURA 7 - Desemvolvimento da análise..............................................................................40
FIGURA 8 - Viagens pelo rio - Comissão de saúde ...............................................................47
FIGURA 9 - Mulheres e crianças Sikuani trabalhando a mandioca brava ............................50
FIGURA 10 - Igreja evangélica aldeia Cumaray ....................................................................51
FIGURA 11 - Casas aldeia Carpinteiro ..................................................................................52
FIGURA 12 - Interior: postos de saúde aldeias Arrecifal e Puerto Esperanza. Exterior: posto
de saúde aldeia Pueblo Nuevo ………………………...……………......................................53
FIGURA 13 - Posto de saúde Paujíl .......................................................................................55
FIGURA 14 - Posto de saúde El Coco ...................................................................................57
FIGURA 15 - Categorias e subcategorias de análise .............................................................58
FIGURA 16 - A interculturalidade na APS em Guainía .......................................................128

LISTA DE QUADROS

QUADRO 1 - Distribuição da população indígena do departamento de Guainía ...................22


QUADRO 2 - Participantes do estudo – Profissionais de saúde .............................................35
QUADRO 3 - Participantes do estudo – Usuários indígenas ..................................................36
QUADRO 4 - Participantes do estudo – Informantes chave ...................................................36
QUADRO 5 - Critérios de rigor ..............................................................................................43
QUADRO 6 - Fatores que influenciam a escolha de tratamentos..........................................102
LISTA DE SIGLAS E ABREVIATURAS

APS – Atenção Primária à Saúde


ASOCRIGUA – Asociación del Consejo Regional Indígena del Guainía
BID – Banco Interamericano de Desenvolvimento
CIOMS – Organizações Internacionais das Ciências Médicas
CMS – Comissões Multidisciplinares de Saúde
DANE – Departamento Administrativo Nacional de Estadística
DPN – Departamento de Planeación Nacional
EPS – Entidades Promotoras de Salud
EPSI – Entidades Promotoras de Salud Indígenas
ESF – Estratégia Saúde da Família
IPS – Instituciones Prestadoras de Salud
ISAGS – Instituto Sul-Americano de Governo em Saúde
MAITE – Modelo de Acción Integral Territorial
MIAS – Modelo Integral de Atención en Salud
MSPS – Ministerio de Salud y Protección Social
NO – Nota de observação
OIT – Organização Internacional do Trabalho
OMS / WHO – Organização Mundial da Saúde / World Health Organization
ONG – Organização Não Governamental
PAIS – Política de Atención Integral en Salud
PEP – Promoção e Prevenção
POS – Plan Obligatorio de Salud
RC – Regime Contributivo
RIAS – Rotas Integrais de Atenção
RS – Regime Subsidiado
SDS – Secretaría Departamental de Salud
SILOS – Sistemas Locales de Salud
SGSSS – Sistema General de Seguridad Social en Salud
SNS – Sistema Nacional de Salud
SUS – Sistema Único de Saúde
TCLE – Termo de Consentimento Livre e Esclarecido
SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO ...................................................................................................................1
1 INTRODUÇÃO ................................................................................................................4
1.1 Objetivos ..................................................................................................................11
1.1.1 Objetivo geral ......................................................................................................11
1.1.2 Objetivos específicos ............................................................................................11
2 CONTEXTUALIZANDO O CASO ..............................................................................12
2.1 Apresentando à Colômbia: dinâmica social e a trajetória do sistema de saúde.12
2.2 O enfoque intercultural na atenção primária à saúde..........................................17
2.3 A “terra de muitas aguas”: o novo modelo de saúde em Guainía .......................21
3 PERCURSO METODOLÓGICO ................................................................................27
3.1 A abordagem teórica – metodológica ....................................................................27
3.2 O cenário do estudo .................................................................................................29
3.3 Os participantes do estudo .....................................................................................33
3.4 A pesquisa de campo e a produção de dados ........................................................37
3.5 A análise de dados ...................................................................................................39
3.6 Critérios de rigor .....................................................................................................42
3.7 Aspectos éticos .........................................................................................................44
4 O OLHAR SOBRE O COTIDIANO DA ATENÇÃO PRIMÁRIA À SAÚDE:
EXPERIÊNCIAS E REFLEXÕES ......................................................................................45 45

5 MERGULHANDO NOS MEANDROS DA ATENÇÃO PRIMÁRIA À SAÚDE EM


GUAINÍA ................................................................................................................................58
5.1 A atenção primária à saúde em Guainía: a história do que foi e do que está
sendo Construído ..............................................................................................................59
5.1.1 Dos primeiros esboços da APS ao modelo MIAS .............................................59
5.1.2 A proposta do novo modelo de atenção: concepções e mudanças ...................66
5.1.3 Entre o rio e a floresta: o cotidiano da APS no contexto rural.........................72
5.1.4 O epicentro das fronteiras: o cotidiano da APS no contexto urbano ...............81
5.2 A Interculturalidade no Cotidiano da Atenção Primária à Saúde em Guainía..86
5.2.1 A compreensão da interculturalidade: O olhar dos profissionais de saúde.......87
5.2.2 Tensões e convergências nos (des)encontros com a diferença............................92
5.2.3 Procurando a cura: Práticas e fatores que influenciam a escolha de
tratamentos .....................................................................................................101
5.2.4 Estratégias de “articulação de saberes”: o prescrito, o real e o esperado...114
6 (RE)PENSANDO A INTERCULTURALIDADE NA APS.....................................128
7 CONSIDERAÇÕES FINAIS .....................................................................................134
REFERÊNCIAS ...................................................................................................................139
APÊNDICES..........................................................................................................................153
ANEXOS................................................................................................................................158
1

APRESENTAÇÃO

Diferentes escolhas na minha trajetória profissional e acadêmica reafirmaram meu


interesse por duas áreas específicas, que, por consequência, compõem a temática principal
desta tese: a atenção primária à saúde (APS) e a interculturalidade.
Minha atuação profissional foi marcada, especialmente, pela experiência no
campo da atenção primária. Nos cinco anos em que atuei como enfermeira em Bogotá, capital
da Colômbia, tive a oportunidade de trabalhar, exclusivamente, em unidades básicas de saúde,
tanto no regime público, quanto no privado. Essa trajetória permitiu-me dimensionar a
potencialidade desse nível de atenção para a concretização de um cuidado verdadeiramente
integral, centrado não apenas no individuo, mas na família e na comunidade. Uma convicção,
certamente, desafiadora, no meio de um sistema de saúde que, por anos, tem privilegiado a
atenção à doença e o modelo médico-centrado, como o colombiano.
Deparei-me na prática assistencial com diversas situações em que os desafios
diários eram permeados por construções que, por vezes, fugiam de uma lógica racional e, por
isso, reagiam mais satisfatoriamente a um formato instintivo, ou seja, parafraseando Maffesoli
(2010), seguiam a uma não-lógica. Dessa forma, fui-me conscientizando de que efetivamente
existe um conhecimento empírico cotidiano (MAFESSOLI, 2010) que não pode ser
dispensado, pois suporta muitas das atitudes, decisões e escolhas feitas no dia-dia nos serviços
de saúde.
Concomitantemente a essa experiência, em 2012, após aprovação no curso de
mestrado na Facultad de Enfermería da Universidad Nacional de Colombia, desenvolvi minha
dissertação sobre a experiência de enfermeiros cuidando de famílias multiculturais, sob
orientação da professora Dra. Alba Lucero López, vinculada a uma das linhas do grupo de
pesquisa Cuidado Cultural de la Salud, do qual faço parte desde 2009. Participar deste grupo
desde a graduação e acompanhar o desenvolvimento de projetos de pesquisa sobre
competência cultural e cuidado cultural da saúde, com população etnicamente diversa e em
situação de vulnerabilidade, além de estimular competências em investigação, semeou meu
interesse em temas relacionados à integração entre cultura e saúde, culminando, com o tempo,
em um dos principais interesses de pesquisa.
Finalizado o mestrado, em 2015, optei por concursar a uma das bolsas de pós-
graduação no Brasil, ofertadas pelo Programa de Alianças para a Educação e Capacitação
(PAEC), a Organização dos Estados Americanos (OEA) e o Grupo Coimbra de Universidades
2

Brasileiras (GCUB) para cidadãos latino-americanos. Embora este concurso oferecia a opção
para três programas de doutorado, decidi escolher o de Enfermagem da Universidade Federal
de Minas Gerais (UFMG). Tal como manifestei na carta de intenções, essa escolha foi devida
ao reconhecimento da trajetória e a qualidade do programa, mas também, e especialmente,
pela oportunidade que poderia ter de fazer parte do grupo de pesquisa Cotidiano, Cultura,
Enfermagem e Saúde (NUPCCES) coordenado pela professora Dra. Claudia Maria de Mattos
Penna.
Ao ser aceita no Programa e começar a participar do Núcleo, os momentos de
discussão, compartilhamento e troca de saberes nas reuniões do NUPCCES, nos primeiros
anos de minha formação de doutorado, contribuíram substancialmente para desenvolver uma
postura crítica, distanciada do conformismo intelectual e das análises obvias que, certamente,
enriqueceram meu olhar sobre o objeto de estudo desta pesquisa.
Assim mesmo, a oportunidade de me aproximar a referenciais teóricos
provenientes de áreas como a filosofia, sociologia e antropologia, no percurso dessa trajetória
acadêmica, possibilitou expandir minhas análises para além das fronteiras disciplinares,
aderindo-me ao desafio de desconstruir o essencialismo e dogmatismo teórico da pesquisa em
enfermagem, sendo esse o propósito distintivo deste trabalho.
O conteúdo desta tese está divido em sete capítulos. No primeiro capítulo
apresento a introdução, na qual está a problematização do objeto de estudo, os pressupostos e
a tese defendida, assim como os objetivos da pesquisa.
No segundo capítulo, desenvolvo uma revisão de literatura com o propósito de
contextualizar o caso a ser aprofundado. Inicialmente, descrevo a dinâmica social e a
trajetória do sistema de saúde colombiano, seguido por uma exploração sobre o enfoque
intercultural na APS na América Latina e na Colômbia e, posteriormente, está delimitado o
universo desse estudo, a região de Guainía, onde está sendo implementado, enquanto projeto
piloto, a proposta do novo modelo de saúde colombiano.
No terceiro capítulo, descrevo a trajetória teórica-metodológica, situando os
postulados da sociologia compreensiva do cotidiano que iluminaram o desenvolvimento da
pesquisa, os cenários e participantes, a imersão ao campo e os procedimentos para a produção
de dados, a técnica de análise e, finalmente, os critérios de rigor e os aspectos éticos.
No quarto capítulo, detalho o produto de um processo reflexivo sobre a
experiência de trabalho de campo e a posição que assumi como pesquisadora na aproximação
a essa realidade empírica e com os participantes do estudo.
3

No quinto capítulo, apresento os resultados do processo de análise, organizados


em duas grandes categorias: a atenção primária à saúde em Guainía: a história do que foi e do
que esta sendo construído e a interculturalidade no cotidiano da atenção primária à saúde em
Guainía; cada uma composta por quatro subcategorias. Na sequencia, no sexto capítulo
desemvolvo uma síntese da última categoria a modo de proposta para repensar a
interculturalidade na APS.
Finalmente, no sétimo e último capítulo, lanço algumas considerações voltadas
para o âmbito da prática e o desenvolvimento de estudos futuros.
4

1 INTRODUÇÃO

Há mais de 40 anos, desde a declaração da Conferência de Alma-Ata (1978), que


a atenção primária à saúde (APS) está na agenda das políticas públicas em nível global.
Embora algumas experiências anteriores de cuidados primários tenham ocorrido,
principalmente na América Latina (FEO ISTURIZ, 2015), foi nesse momento que começa
mundialmente a sua institucionalização, incorporando: o reconhecimento da saúde como
direito humano fundamental, a universalidade e integralidade na organização do cuidado à
saúde, a ação intersetorial no planejamento local e a participação comunitária como
componente central da organização social da saúde (FEO ISTURIZ, 2015). Dessa forma, com
a declaração de Alma-Ata os cuidados primários são colocados como chave para atingir a
meta de saúde para todos, associando-os ao desenvolvimento das sociedades sob o princípio
da justiça social (FLEURY, 2018).
Reconhecida como uma das principais inovações tecnológicas do século XX, a
APS tem trazido, no decorrer destes anos, importantes transformações práticas e conceituais
ao campo da saúde (CAMPOS, 2018). Alguns autores têm documentado o impacto positivo
desta estratégia em alcançar melhores resultados em saúde, favorecer a equidade e o acesso
aos serviços e aumentar a eficácia e eficiência dos sistemas de saúde (STARFIELD, 2002;
VEGA et al., 2009; MENDES, 2011). Além disso, como aponta Campos (2018), a APS tem
modificado as estratégias políticas e organizacionais e alterado as práticas e o trabalho em
saúde, originando uma cultura sanitária diferente daquela da biomedicina tradicional.
A implantação da APS, enquanto parte fundamental dos sistemas de saúde dos
países, tem enfrentado, contudo, diversos desafios e tensões, que vão desde a forma de
concebê-la conceitualmente até a própria conformação dos sistemas de saúde. Autores como
Giovanella (et al 2015) e Giovanella e Almeida (2017) afirmam que, no caso específico da
América do Sul, a concretização dos princípios promulgados em Alma-Ata tem adotado uma
conotação diferente em cada país.
Pontualmente, nas décadas de 1980 e 1990 foram adotados, na maioria dos países
da América Latina, modelos de APS focalizados em grupos populacionais marginalizados.
Estas experiências foram promovidas, principalmente, por agencias financeiras multilaterais,
com pouca intervenção do Estado, sendo seletivas nos serviços e na eleição de seus usuários
(GIOVANELLA et al., 2015; GIOVANELLA; ALMEIDA, 2017).
5

Nos anos 2000, no contexto de redemocratização e reforma aos sistemas de saúde,


ganharam destaque processos de revitalização da APS com uma abordagem abrangente e com
vistas a uma APS renovada, conforme o chamado da Organização Mundial da Saúde
(OMS/WHO) (GIOVANELLA; ALMEIDA, 2017; MENDONÇA et al., 2018a). Porém, esses
processos de revitalização tornaram-se complexos e díspares entre os países, devido às
heranças dos modelos adotados em cada um deles nas décadas anteriores.
Os resultados do mapeamento dos modelos de APS em 12 países da América do
Sul, realizado pelo Instituto Sul-Americano de Governo em Saúde (ISAGS), indicaram que
nos países em que predominam sistemas de saúde segmentados e privatizados – como são os
casos de Argentina, Chile, Peru e Colômbia – a APS é fragmentada na prática, existindo uma
dicotomia entre ações individuais, contratadas pelas seguradoras e prestadores privados ou
públicos, e ações coletivas, de responsabilidade dos governos territoriais, dificultando a
concretização do enfoque integral (GIOVANELLA, 2015; ACOSTA et al., 2016;
GIOVANELLA; ALMEIDA, 2017). Contrário a esse panorama, em países como Equador e
Venezuela, que avançaram na universalização do sistema público de saúde, é evidente a
implementação de novos e mais abrangentes modelos de APS, reduzindo a fragmentação e
ampliando o acesso à rede diversificada de saúde. Enquanto Bolívia e Equador destacam-se
pela incorporação da dimensão da interculturalidade como elemento formal da APS em suas
políticas nacionais de saúde, reconhecendo a expressividade das práticas e saberes em saúde
dos povos indígenas e afrodescendentes (GIOVANELLA; ALMEIDA, 2017).
No Brasil, a experiência da implantação da APS é ainda mais concreta com a
consolidação do Sistema Único de Saúde (SUS), de caráter público e universal. No SUS a
APS, sendo conceituada como atenção básica, desempenha um papel central na organização
da rede de atenção, tendo como principais atribuições:

Ser porta de entrada do sistema de serviços de saúde; oferecer serviços com


boa infraestrutura e qualidade bem integrados à rede assistencial; exercer um
cuidado contínuo ao longo do tempo, com capacidade para resolver a
maioria das necessidades de saúde da população; definir e orientar o
caminho do usuário na rede de serviços com base nas necessidades de saúde;
realizar a coordenação do cuidado, considerando os fluxos estabelecidos;
responsabilizar-se pela população de seu território, incentivar a ação
comunitária e mediar ações intersetoriais para ampla abordagem dos
determinantes sociais e promover a saúde (MENDONÇA et al., 2018a, p.
29).

Assim, tomando como um espaço privilegiado para sua operacionalização a


Estratégia de Saúde da Família (ESF), que incorpora elementos como a centralidade na
6

família e o direcionamento para a comunidade (STARFIELD, 2002), a APS no Brasil tem


avançado na expansão da cobertura populacional, ampliando e diversificando recursos e
estratégias de organização e gestão. Segundo Mendonça (et al 2018a, p. 34):

A ESF segue os preceitos de uma APS integral, robusta, que busca um


balanço adequado entre uma abordagem de cuidado individual e coletivo, da
saúde dos indivíduos e da população, abarcando a promoção, a prevenção e
o cuidado contínuo, o atendimento oportuno de demandas espontâneas e as
ações programáticas. Realiza-se por uma equipe multiprofissional na qual o
agente comunitário em saúde tem a função primordial na mobilização social,
na mediação para enfrentamento dos determinantes sociais e na participação.

Dessa maneira a ESF, em seus mais de 20 anos de operação, tem contribuído para
o enfrentamento das desigualdades socioeconômicas, traduzidas em disparidades nas
condições de vida e de saúde da população (MENDONÇA et al., 2018b). Entretanto, ainda
continua enfrentando desafios relacionados a infraestrutura precária, escassez e inadequada
formação de recursos humanos, cultura avaliativa insuficiente e possíveis mudanças postas
pela atual conjuntura política e econômica do país, que podem alterar, significativamente, o
rumo da política de atenção básica e sua operação (MENDONÇA et al., 2018a).
Na Colômbia, a configuração da APS perpassa pelas diferentes reformas do
sistema de saúde. Semelhante a outros países da América do Sul, tal estruturação tem pautado
suas bases na disputa entre expandir cobertura com cuidados básicos restritos e seguros
(públicos e privados) e garantir o acesso universal com equidade e o gozo efetivo do direito à
saúde (MENDONÇA et al., 2018a).
Com a primeira reforma do sistema de saúde, que deu origem ao Sistema
Nacional de Salud (SNS) em 1975, a APS começou a configurar-se, inicialmente, como uma
estratégia fragmentada, de predomínio seletivo e de atenção básica, que foi evoluindo para
uma proposta mais consistente, centrada em melhorar a articulação entre as pessoas e o
ambiente, a ação intersetorial e a participação social (VEGA; ACOSTA, 2014). Tal proposta
fortaleceu-se entre 1988 e início dos anos 1990, quando ocorreu a descentralização dos
sistemas de saúde no nível municipal. Segundo Vega, Hernández e Mosquera (2012), nesse
período a APS poderia ter alcançado seu máximo desenvolvimento conforme a perspectiva
propiciada pela Declaração de Alma-Ata, porém sem superar por completo a prática médica
convencional.
A segunda reforma ocorreu em 1993, com a criação do Sistema General de
Seguridad Social en Salud (SGSSS) por meio da Lei 100. Um sistema de predomínio público-
privado, centrado no enfoque em seguridade social, vigente até hoje. Com essa reforma, os
7

esforços para a saúde no país começaram a se concentrar, principalmente, na atenção


assistencialista e de alta complexidade, deixando de lado, nos primeiros anos de operação do
SGSSS, a saúde pública e a atenção básica.
Autores como Agudelo (et al, 2011), Vega, Hernández e Mosquera (2012) e Vega
e Acosta (2014) argumentam que, apesar dos avanços relacionados à cobertura, o enfoque
inicial do SGSSS trouxe retrocessos na APS do país, principalmente, em relação aos
resultados conquistados pelo antigo SNS, conduzindo assim a uma crise na saúde pública
(VEGA; ACOSTA, 2014). Consequentemente, houve um reconhecimento tardio da APS
como estratégia de atenção no SGSSS, ao considerar “promoção e prevenção” em 2001
(COLOMBIA, 2017) e ser conceituadasomente dez anos depois na Lei 1438:

Uma estratégia de coordenação intersetorial que permite a atenção integral e


integrada a partir da saúde pública, a promoção à saúde, a prevenção à doença, o
diagnóstico, o tratamento, a reabilitação do paciente em todos os níveis de
complexidade a fim de garantir um maior nível de bem-estar nos usuários (...) É
constituída por três componentes integrados e interdependentes: os serviços de
saúde, a ação intra/transetorial e a participação social, comunitária e cidadã
(COLOMBIA, 2011. Tradução nossa).

Conforme essa lei, três instituições atuam na implementação da APS: 1) o Estado


por meio do Ministerio de salud y Protección Social (MSPS) encarregado da regulamentação;
2) as entidades territoriais (prefeituras e governações estaduais ou departamentais), que
definem e executam os modelos de APS com base em ações coletivas e 3) Entidades
Promotoras de Salud (EPS), responsáveis por determinar e implantar os modelos de APS com
base em ações individuais. Entretanto, a segmentação da cobertura e da rede de prestação de
serviços, característica do sistema de saúde, acentuou a fragmentação das ações de APS.
Os achados do estudo de mapeamento da APS na Colômbia liderado pelo ISAGS
indicaram que, na ausência de um modelo de atenção, as ações de APS têm sido executadas,
na prática, por meio de três enfoques diferentes e desarticulados. (VEGA; ACOSTA, 2014;
2015). O primeiro enfoque é concentrado nas ações individuais, biomédicas e assistenciais, a
cargo das EPS (públicas ou privadas); o segundo nas ações coletivas de saúde pública,
centralizadas na promoção da saúde e prevenção de doenças, administradas pelas entidades
territoriais; e o terceiro nas ações interculturais desenvolvidas e administradas por iniciativa
própria das comunidades indígenas, com o propósito de fortalecer seus sistemas de saúde
tradicionais em relação de complementaridade com o sistema de saúde ocidental (VEGA;
ACOSTA, 2014).
8

Essa atenção desarticulada entre ações individuais e coletivas e a especialização


desintegrada das asseguradoras (EPS), prestadores de serviços de saúde e entidades
territoriais, sem considerar os determinantes sociais em saúde, ocasionaram, com o tempo, na
acumulação de riscos em saúde (COLOMBIA, 2016a; 2017). A isto, somou-se a baixa
capacidade técnica e de gestão por parte das entidades territoriais para orientar sobre a
construção dos planos de saúde e motivar ações intersetoriais locais. Além da heterogeneidade
territorial e populacional do país, que contrastou com um sistema de saúde focado em intervir
junto à população de maneira homogênea, sem considerar as condições culturais e geográficas
particulares de cada território (COLOMBIA, 2016a).
Com o propósito de resolver tal desarticulação, visando melhorias de acesso aos
serviços de saúde e os resultados com a assistência prestada, o governo nacional por meio do
MSPS impulsionou, em 2016, um modelo de atenção denominado Modelo Integral de
Atención en Salud (MIAS), no âmbito da Política de Atención Integral en Salud (PAIS)
(COLOMBIA, 2016b), dando garantias ao direito à saúde promulgado pela Lei Estatutária
1751 de 2015 (COLOMBIA, 2015a).
Tal modelo preconizou a centralidade na pessoa, a mudança do paradigma
biomédico transferindo o foco para o cuidado e a gestão integral do risco, bem como o
fortalecimento da APS com enfoque de saúde familiar e comunitário como estratégia central.
Além disso, sugeriou diretrizes para uma atenção diferenciada de acordo com as
particularidades de três tipos de territórios: aqueles com população urbana, caracterizados por
melhores condições de acesso aos serviços de saúde dada sua centralidade; com população
rural, que possuem uma oferta restrita aos níveis de atenção de baixa complexidade; e com
população dispersa, com limitada acessibilidade pela carência de vias de acesso e barreiras
geográficas.
O MIAS começou a ser implantado nestes últimos, considerados de intervenção
prioritária, devido às amplas desigualdades ao nível de acesso e qualidade dos serviços de
saúde, além das discrepâncias nos indicadores de saúde em comparação com o restante do
país (COLOMBIA, 2016a). Dentro dos territórios considerados dispersos encontram-se os
departamentos (estados) de Chocó, Putumayo, Archipiélago de San Andrés e Providencia,
Amazonas, Guainía, Guaviare, Vaupés e Vichada e alguns municípios (cidades) do litoral do
Oceano Pacífico. Em geral estes departamentos e municípios apresentam altos índices de
dispersão populacional, deficiência na infraestrutura em saúde, carência de recursos humanos
e tecnológicos e condições culturais e sociais particulares por constituirem-se nas áreas com
9

maior presença de comunidades étnicas e minorias do país e estarem localizadas no epicentro


do conflito armado interno (COLOMBIA, 2016a).
O departamento de Guainía foi o primeiro a introduzir as diretrizes do MIAS,
sendo escolhido pelo MSPS como o teste piloto para os territórios com população dispersa do
país (COLOMBIA, 2015b). A experiência de implementação do modelo iniciou-se em 2016,
continuando de maneira gradual por um período de cinco anos. O desenho contou com apoio
do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e de instituições acadêmicas privadas,
sendo coordenado por entidades governamentais em conjunto com os povos indígenas da
região, mediante estratégia de Consulta Previa (COLOMBIA, 2015b).
Além dos altos índices de dispersão demográfica (0,5 habitantes por Km2),
Guainía caracteriza-se por ser o segundo departamento com a maior população indígena da
Amazônia colombiana (85% do total da população), adicionando desafios à abordagem
diferencial preconizada no modelo. Assim, a atenção em saúde na região deve tanto responder
às particularidades geográficas e epidemiológicas, como atender às demandas próprias da
diversidade étnica e cultural.
Destarte, o MIAS para o Guainía instituiu-se com o propósito de ser um modelo:

Centrado no indivíduo, a família e a comunidade, desenvolvendo estratégias


de intervenção na seguridade e a prestação de serviços de saúde,
fundamentadas na gestão integral do risco em saúde, com enfoques familiar
e comunitário e princípio da diversidade étnica, cultural e territorial com
base na estratégia de atenção primária à saúde (COLOMBIA, 2015b.
Tradução nossa).

Nesse sentido, o MIAS em Guainía orientou-se para o fortalecimento de uma APS


com enfoque intercultural (COLOMBIA, 2014), considerando a medicina tradicional e o
saber ancestral dos povos indígenas da região articulados com a medicina ocidental, em um
processo de coexistência e cooperação com vistas à melhoria dos resultados em saúde da
população.
Nesse contexto, torna-se fundamental e estratégica a aproximação ao cotidiano
dos atores sociais envolvidos diretamente na prestação dos serviços de APS na região, que
vivienciam mais de perto a experiência de implementação do novo modelo de atenção.
Tendo em vista as considerações apresentadas questiona-se: Como tem ocorrido o
processo de construção da atenção primária à saúde, com as novas diretrizes propostas pelo
novo modelo de saúde, no cotidiano de usuários indígenas e profissionais de saúde em
Guainía – Colômbia?
10

Concordando com Fertonani (et al., 2015) entende-se que no processo de


configuração de um modelo de atenção à saúde, como o MIAS, vários são os elementos em
nível macro e micro sistêmico que interatuam entre si, influenciando a definição das práticas
assistenciais, articuladas ao contexto histórico e cultural onde ocorrem. Dentro dos elementos
em nível micro destacam-se, por uma parte, os conhecimentos acumulados e tecnologias
disponíveis (leves e duras) para o cuidado em saúde, e de outra, a cultura e subjetividade dos
sujeitos (trabalhadores e usuários), que determinam as formas de organização das relações no
cotidiano do fazer na saúde.
Pressupõe-se que as ações de APS devam considerar os contextos socioculturais
onde as pessoas vivem e, portanto, mais próxima das realidades das famílias e comunidades
por se constituírem em espaços de interação intercultural em que convergem construções
emergentes no dia a dia, nas relações e no compartilhar com o outro. Acredita-se nesse
sentido, que em um contexto intercultural como o de Guainía, a dinâmica de encontro e
interação constante entre as culturas dos profissionais de saúde e dos usuários indígenas, e
entre seus sistemas de pensamento, crenças e maneiras de conceber a saúde e a doença,
influencia, sobremaneira, o exercício das ações da APS.
Nessa linha de ideias, defende-se a tese que a APS em Guainía está sendo
construída cotidianamente fundamentada em aprendizagens acumuladas anteriores à
implantação do novo modelo de saúde, sendo fortemente influenciada pela interculturalidade
como processo permanente na relação entre os atores sociais envolvidos -indígenas e
profissionais de saúde- por meio do intercâmbio de conhecimentos e tradições, aprendizagens
e saberes específicos.
A compreensão da maneira como esta se configurando a APS em Guainía, no
cotidiano dos profissionais de saúde e usuários indígenas, revelando suas características,
limites e potencialidades, poderá orientar da implantação do atual modelo de atenção. Ainda
mais, por constituir-se um piloto, a natureza gradativa e flexível da implementação do modelo
possibilita ajustes em aspectos estruturantes a fim de garantir sua continuidade no futuro e sua
implementação em outras regiões do país, onde as características geográficas, sociais e
culturais são similares, como os estados de Vaupés, Vichada, Guaviare e Amazonas.
A relevância deste estudo reside também em seu aporte para o desenvolvimento
de propostas que respondam às necessidades particulares em áreas com populações indígena e
multicultural, sendo a garantia do direito ao cuidado culturalmente apropriado um dos
principais desafios na área da saúde coletiva, principalmente na América Latina. Assim, este
11

estudo atinge o cerne dos desafios do cuidado realizados por serviços de saúde em zonas
remotas e de difícil acesso, que requerem a adaptação de critérios de acordo com as
características geográficas e étnicas do território, para garantia do acesso e demais atributos
da APS.
Para a academia, este trabalho pretende apresentar subsídios para discussões
teóricas contemporâneas na enfermagem transcultural e na saúde coletiva, acrescentando
novas dimensões de análise para uma prática cotidiana do fazer em saúde. Busca, portanto,
mostrar a relevância da compreensão do cotidiano como lócus preferencial da APS,
identificando uma série de fatores que, idealmente, devem ser levados em conta no desenho e
implantação de políticas públicas de saúde.

1.1 Objetivos

1.1.1 Objetivo geral

Compreender o processo de construção cotidiana da atenção primária à saúde com


enfoque intercultural, na perspectiva de usuários indígenas e profissionais de saúde, em
Guainía – Colômbia.

1.1.2 Objetivos específicos

• Identificar os elementos que têm contribuído à configuração da atenção primária à


saúde como estratégia de atenção, no cotidiano de usuários indígenas e profissionais
de saúde, em Guainía – Colômbia.

• Analisar a interculturalidade como componente do processo de construção da atenção


primária à saúde, no cotidiano de usuários indígenas e profissionais de saúde, em
Guainía – Colômbia.
12

2 CONTEXTUALIZANDO O CASO

2.1 Apresentando à Colômbia: dinâmica social e a trajetória do sistema de saúde

A Colômbia é um território diverso em questões biológicas culturais e étnicas.


Conta com uma extensão territorial de 1.141.748 km², dividida política e administrativamente
em 32 departamentos, 1.102 municípios, um distrito capital (Bogotá) e 20 áreas povoadas não
municipalizadas. Estas últimas recentemente consideradas territórios indígenas, localizadas,
principalmente, nos departamentos de Vaupés, Amazonas e Guainía (COLOMBIA, 2018).
Do total de 41.200.000 da população colombiana, 84,2% é mestiça, 10,3% negra,
mulata e afrocolombiana, 0,01% cigana, 0,02% palenquera, 0,07% raizal, e 3,4% indígena
(representada em 87 povos) (DANE, 2018). Ainda que o espanhol seja considerada a língua
oficial, falam-se 64 línguas nativas, agrupadas em 13 famílias linguísticas, além do bandé no
Arquipélago de San Andrés e Providencia, o palenquero no Quilombo de San Basílio e o
Romaní, consideradas oficiais em seus territórios (COLOMBIA, 2016c).
Além da riqueza cultural e étnica, a diversidade da Colômbia representa-se em sua
ampla variedade de espécies e ecossistemas, pelo fato de estar situada na Cordilheira dos
Andes, possuir litoral nos mares Atlântico e Pacífico e mata na Região Pacífica e Amazônica
(LÓPEZ, 2016b), sendo considerada o segundo país mais biodiverso do mundo.
Entretanto, o país encontra-se imerso em uma dinâmica social complexa,
associada, entre outras questões, aos altos níveis de pobreza e à violência advinda do conflito
armado interno existente desde metade do século XX. Contando com um dos índices de
distribuição da riqueza mais desiguais da região, no ano de 2017, 26,9 % da população
colombiana encontrava-se em situação de pobreza monetária e 7,4% em situação de pobreza
extrema, (DANE, 2017). Além disso, apesar do acordo de paz com um grupo armado, ainda
persiste uma dinâmica de conflito interno, ocasionada, sobretudo, pelo controle do território
em zonas remotas e afastadas do país. Essa situação traz consequências diretas na população,
como deslocamentos internos forçados e aumento nos processos de desigualdade,
marginalidade e exclusão social, com impacto importante nas condições de saúde
(GUTIÉRREZ, 2008).
Particularmente, o perfil epidemiológico apresenta profundas diferenças entre as
zonas geográficas do país. Nas regiões mais desenvolvidas, as doenças crônicas são
dominantes, enquanto nas regiões afetadas pela guerra prevalecem as lesões por causas
13

externas. Já nas regiões escassamente povoadas ou na Amazônia predominam as doenças


transmissíveis e nas zonas de concentração de pobreza as doenças materno-infantis
(COLOMBIA, 2016a).
A saúde na Colômbia foi considerada um serviço público pela Constituição
Política de 1991 (COLOMBIA, 1991), sendo regulamentada como direito fundamental apenas
em 2015 com a Lei Estatutária 1751, que declara o Estado responsável por respeitar, proteger
e garantir a plenitude do direito fundamental à saúde (COLOMBIA, 2015a).
Por sua parte, a assistência à saúde no país, atualmente, é resultado da constituição
de um sistema de saúde, cuja construção social e histórica, conforme López (2016),
“apresenta diversas perspectivas, abordagens e arranjos políticos e institucionais para o
fomento da saúde na sociedade ao longo do tempo” (LÓPEZ, 2016b, p. 52).
No primeiro período de desenvolvimento político-institucional (1886-1947), a
assistência à saúde de responsabilidade do Estado esteve voltada para um modelo higienista,
centrado principalmente no controle do setor portuário, de epidemias e saneamento ambiental
(HERNÁNDEZ, 2002). Posteriormente, na tentativa de integrar os serviços de promoção e
proteção da saúde nas mãos do Ministério de Saúde Pública e das Direções Departamentais de
Saúde, e tendo os serviços de atendimento de enfermidades e os beneficiários sob
responsabilidade da seguridade social, criou-se o Sistema Nacional de Salud (SNS) (LÓPEZ,
2016b).
O SNS correspondeu a um sistema de predomínio público, baseado na assistência
social, centralizado no Estado e financiado principalmente por impostos. Esse sistema foi
institucionalizado por três subsetores: o público para trabalhadores do setor público, o privado
para trabalhadores do setor privado e independentes, e a assistência pública para as pessoas
desprovidas de seguridade social (BONIN, 2016).
Segundo Hernández (2002) o desenvolvimento do SNS apresentou dificuldades
desde sua criação, em 1975. A fragmentação financeira e administrativa dos três subsetores,
existente desde anos anteriores, continuou sendo um dos principais obstáculos à implantação
do sistema (HERNÁNDEZ, 2002; PRADA, 2012; BONIN, 2016). Além disso, o SNS foi
marcado por grandes deficiências de cobertura e no acesso aos serviços de saúde (BONIN,
2016). Conforme Hernández (2000), durante sua vigência, apenas 40% da população estava
coberta pelo sistema, 17% estavam amparados por modalidades de pré-pagamento, orientadas
pelo setor privado, 25% da população não contava com nenhum tipo de cobertura e 18% eram
assegurados pelo subsetor de seguridade social.
14

Com o percurso da descentralização política, administrativa e fiscal no país,


ocorrida no inicio dos anos de 1990, fortaleceu-se no âmbito do SNS a estratégia dos Sistemas
Locales de Salud (SILOS), acolhendo a proposta da OMS/WHO de atingir a meta de saúde
para todos. Essa estratégia foi formulada com o propósito de alcançar a universalização do
acesso mediante a expansão da atenção básica e fortalecer o processo de descentralização do
SNS (HERNÁNDEZ, 2002). Dessa forma, a participação comunitária e a adoção da gestão
municipal, incorporadas com o esquema SILOS (PRADA, 2012), permitiram o
desenvolvimento de importantes logros em matéria de APS, como a estruturação da rede local
de serviços nos chamados “distritos sanitários”, a conexão entre os planos locais de saúde e de
desenvolvimento econômico e social dos municípios, entre outros (VEGA; ACOSTA, 2014).
Simultaneamente, começaram a surgir no panorama internacional as primeiras
formulações do Banco Mundial relacionadas ao financiamento dos sistemas de saúde que,
pouco a pouco, foram incorporadas no debate nacional de vários países da América Latina
com o nome de “reformas sanitárias” (HERNÁNDEZ, 2002). Segundo Lecovitz e Costa-
Couto (2018) tais reformas estavam concentradas nos aspectos financeiros e de gestão, com
destaque para a busca de eficiência microeconômica, privatização, descentralização e
separação das funções de reitoria, financiamento, seguridade e prestação de serviços (que
deveria ser compartilhada com – ou totalmente transferida a – entes privados).
Na Colômbia a adoção dessa proposta começou a formar-se no início da década
de 1990, sendo a promulgação da Constituição Política de 1991 o ponto de partida para uma
reforma estrutural ao SNS (HERNÁNDEZ, 2002). Conforme delegação constitucional, o
governo nacional estabeleceu uma nova proposta de reforma para o setor de saúde e de
seguridade social, que culminou na criação do SGSSS, por meio da Lei 100 de 1993.
O SGSSS, ainda vigente, surgiu então, com base em um modelo de “pluralismo
estruturado” (LÓPEZ, 2016b), incorporando diretrizes como:

A participação de empresas seguradoras na administração dos recursos e dos


riscos em saúde; a expansão da prestação privada de serviços; a participação
financeira dos cidadãos segundo capacidade de pagamento e a adoção de
pacotes básicos de benefícios e focalização nos pobres (LÓPEZ; PEREIRA;
MACHADO, 2017, p. 2.)

A Lei 100 aprovou a composição do SGSSS por meio de dois regimes de


contribuição: o Regime Contributivo (RC) e o Regime Subsidiado (RS). O RC destinado aos
trabalhadores assalariados ou independentes (que ganham acima de um salário mínimo) e aos
pensionistas, financiado por contribuições da iniciativa privada e dos trabalhadores; e o RS
15

orientado para dar cobertura à população de baixa renda, financiado com base em
contribuições cruzadas entre trabalhadores do setor formal e aportes do governo por meio da
cobrança de impostos (BONIN, 2016). Além desses dois regimes, criou-se um regime
especial, excetuado do SGSSS, para os militares, professores do setor público e a Empresa
Colombiana de Petróleos (ECOPETROL) (GIOVANELLA, 2015).
Para a gestão da afiliação em saúde e a administração de fundos públicos, a Lei
determinou a intermediação das Entidades Promotoras de Salud (EPS). As EPS são as
encarregadas de segurar os usuários e contratar a prestação de serviços de saúde com as
Instituciones Prestadoras de Salud (IPS) (públicas ou privadas), organizadas de acordo com
os níveis de complexidade: Nível I (atenção básica), Nível II (média complexidade) e níveis
III e IV (alta complexidade). A população tanto do RC como do RS é protegida mediante o
Plan Obligatorio de Salud (POS), que inclui um pacote de serviços ao nível individual, e o
Plan de Salud Pública ao nível coletivo (GIOVANELLA, 2015).
Desde sua criação até hoje, o SGSSS tem sido reformado em sua estrutura geral
mediante diferentes normas, destacando-se, principalmente, as impulsionadas em 2007, 2009
e 2011. Porém, de acordo com López, Pereira e Machado (2017), essas reformas introduziram
apenas mudanças instrumentais, sem romper com a configuração estrutural e a racionalidade
econômica do sistema de saúde vigentes desde 1993. Dessa forma, “manteve-se a participação
do setor privado na administração dos recursos do seguro social e na prestação de serviços de
saúde, bem como a ênfase no Estado regulador e contratual” (LÓPEZ; PEREIRA;
MACHADO, 2017, p. 5). Nesse sentido, ainda que, com a implementação do SGSSS,
consiga-se superar os problemas de cobertura do antigo SNS, e atingir 95% da população
colombiana em 2015 (COLOMBIA, 2017), os principais problemas de financiamento,
inequidade e acesso aos serviços permaneceram (BONIN, 2016).
A separação e especialização das funções de direção, financiamento, seguridade
social e provisão de serviços, com a inclusão de diversos agentes públicos e privados
acentuaram a segmentação do sistema (GIOVANELLA, 2015). Consequentemente,
apareceram três grandes problemas que foram destacados pelo próprio MSPS em 2016: 1) um
esquema de prestação de serviços orientado à resolutividade de alta complexidade, com baixa
capacidade de execução das ações preventivas em nível primário; 2) um sistema centrado
principalmente na gestão financeira, sobrepondo o objetivo missionário de gestão dos riscos
da saúde; e 3) resultados negativos para os usuários, representados em barreiras de acesso aos
serviços e a limitada resolutividade de procedimentos (COLOMBIA, 2016a).
16

Nesse contexto, surgiu a política PAIS e seu componente operacional, o modelo


MIAS, como uma alternativa do Estado para resolver alguns dos problemas acumulados no
SGSSS em seus mais de 20 anos de operação (COLOMBIA, 2016a). Tomando como
principal estratégia a APS com enfoque familiar e comunitário, a gestão integral do risco e o
enfoque diferencial, o MIAS, como diretriz nacional, incluiu dez componentes:

1. A caracterização da população segundo curso de vida e grupos em risco.


2. A definição de Rotas Integrais de Atenção (RIAS) e eventos específicos de
atenção.
3. A gestão integral do risco, identificando os grupos potenciais, desenhando
modelos preditivos, avaliando a efetividade dos serviços e garantido os sistemas de
informação.
4. A delimitação territorial compreendendo população urbana, rural e dispersa.
5. O fortalecimento das redes integradas de prestadores de serviços de saúde, em seu
componente primário e complementar.
6. A definição do papel do segurador para a gestão do risco financeiro, interação com
outros atores e a gestão das redes de prestação dos serviços.
7. A redefinição do esquema de incentivos aos seguradores, promovendo a
diminuição das diligências burocráticas na atenção.
8. O requerimento de um sistema de informação que integre os diferentes
componentes do modelo.
9. O fortalecimento do recurso humano em saúde.
10. A consolidação da pesquisa, inovação e apropriação do conhecimento em saúde.

Buscou-se assim, com este modelo, lograr a articulação e harmonização da


seguridade, a prestação integral dos serviços de saúde e o desenvolvimento de políticas e
programas de saúde pública por meio de processos de gestão social e política intersetorial
(MORENO, 2016). Entretanto, ao observar dificuldades na consecução dessa finalidade, a
proposta sofreu uma reforma em fins do ano de 2019, que deu origem ao Modelo de Acción
Integral Territorial (MAITE), incorporando os desenvolvimentos executados por meio dos
17

componentes do MIAS –acima citados- e facilitando a coordenação entre os diferentes atores


do SGSSS (COLOMBIA, 2019)1.

2.2 O enfoque intercultural na atenção primária à saúde

Desde a declaração de Alma-Ata tem se reforçado a discussão sobre a importância


da incorporação da interculturalidade nos modelos de atenção à saúde dos países, sendo
considerada uma estratégia importante para melhorias ao acesso e à qualidade dos serviços de
saúde prestados em áreas com população indígena e multicultural (CEVALLOS; AMORES,
2009).
Na América Latina, o enfoque intercultural na saúde ganha relevância nos anos de
1980 e 1990 em países como Argentina, Brasil, Chile, Colômbia, México e Venezuela com
uma série de reformas constitucionais que, sendo parte de processos de redemocratização
mais amplos, passaram a reconhecer explicitamente a diversidade étnica e cultural de suas
nações e a necessidade de criar políticas públicas diferenciadas para estas populações
(LANGDON; CARDOSO, 2015; SILVEIRA, 2017). Nesse mesmo sentido, a maioria dos
países da região aderiu à Convenção OIT nº 169 de 1987 sobre “Povos Indígenas e Tribais em
países independentes” com intuito de reconhecer e avançar nas garantias dos direitos
indígenas (LANGDON; CARDOSO, 2015).
Embora com particularidades por país, na América Latina o enfoque intercultural
nos serviços de saúde tem se caracterizado pelas dificuldades para concretizar os avanços no
âmbito jurídico, em políticas de saúde que efetivamente atendam às necessidades das
populações indígenas (LANGDON; CARDOSO, 2015). Nesse sentido, a maioria dos países
da região tem optado por dar um lugar destaque às políticas de atenção primária em saúde e à
criação de novos papéis nas equipes de saúde como “agente indígena”, “promotor indígena de
saúde”, “facilitador intercultural” ou similares, com o objetivo de mediar as comunidades
indígenas com as equipes de saúde (LANGDON; CARDOSO, 2015).
No caso específico da Colômbia, o enfoque intercultural dos serviços de saúde,
entendido como o reconhecimento, respeito e a articulação com os saberes e práticas de saúde
dos povos indígenas, começou a se formar nos últimos anos de vigência do SNS, com a
expedição do Decreto 1811 de 1990. Nesse decreto, estabeleceu-se a adequação, formulação e
execução de programas de saúde dirigidos aos povos indígenas, incluindo a gratuidade na

1
Cabe salientar que, por ser este um desenvolvimento posterior à coleta de dados e implantado na fase final
desta pesquisa, o presente documento fará referência estritamente ao modelo MIAS.
18

prestação de serviços e a participação comunitária, com a vinculação de promotores de salud


indígenas para assistência nas aldeias (COLOMBIA, 1990).
Segundo Izquierdo (2007), essa política constituiu um avanço importante na luta
pelo reconhecimento dos direitos à saúde dos povos indígenas, alcançando um fortalecimento
dos programas de APS com participação ativa das comunidades. Entretanto, apresentou
dificuldades relacionadas aos recursos para sua execução, dado que dependiam, basicamente,
da vontade política dos governos dos estados.
Em seguida, a discussão sobre a interculturalidade na saúde obteve maior
relevância a partir do reconhecimento da natureza multiétnica e pluricultural do país na
Constituição Política de 1991. Foi determinado ao estado colombiano a obrigação de
reconhecer e proteger a diversidade étnica e cultural, em cumprimento ao Convenio 169 da
Organização Internacional do Trabalho (OIT) (GISI, 2013).
Porém, o enfoque cultural e étnico não foi contemplado com a entrada em
vigência em 1993 do SGSSS, sendo somente em 2001, com a criação da Lei 691, que se
regulamentou a participação das comunidades indígenas por meio da adequação do Plan
Obligatorio de Salud del Régimen Subsidiado para los Pueblos Indígenas (COLOMBIA,
2001).
Os delineamentos dessa adequação, posteriormente detalhados no Acordo 326 de
2005 (COLOMBIA, 2005), contemplaram entre outros aspetos:

a) As ações de medicina tradicional, consideradas como: “os conhecimentos, práticas,


rituais, conceitos e processos de saúde integral, que ancestralmente têm realizado
os povos indígenas como modelo de vida coletiva, no âmbito da cosmologia de
cada povo” (COLOMBIA, 2005, tradução nossa).
b) A adaptação sociocultural dos serviços de saúde não indígenas de acordo às
condições sociais, culturais, organizacionais, ambientais, populacionais e de
cosmologia, de forma a garantir a oportunidade, acessibilidade, qualidade e
efetividade do serviço.
c) A promoção e prevenção da saúde indígena dentro dos processos organizativos de
cada povo.

No âmbito dessa Lei estabeleceram-se, ainda, as regulamentações necessárias para


a criação das Entidades Promotoras de Salud Indigena (EPSI), que consistem em empresas
seguradoras criadas e administradas diretamente pelas próprias comunidades indígenas.
19

Determinou-se para as EPSI o cumprimento da mesma normatividade vigente para as EPS,


contando apenas com algumas exceções e benefícios, como por exemplo, auxílios na unidade
de pagamento por cada pessoa segurada. Ademais, a interculturalidade foi considerada um
dos princípios norteadores da APS na Lei 1438 de 2011 incluindo, entre outros elementos, “as
práticas tradicionais, alternativas e complementares para a atenção à saúde” (COLOMBIA,
2011) e como parte dos componentes essenciais para garantir o direito à saúde e a proteção
dos povos indígenas contemplado na Lei estatutária 1751 de 2015 (COLOMBIA, 2015a).
Entretanto, apesar dessas considerações em matéria legislativa, os avanços na
articulação dos sistemas de saúde indígenas na APS têm sido limitados na prática. Essas
articulações estão reduzidas a casos pontuais, enquanto produtos de iniciativas autônomas de
algumas comunidades indígenas ou a projetos específicos desenvolvidos por vontade política
dos governos departamentais ou apoiados por Organizações Não Governamentais (ONG).
Mesmo que a abertura da participação das comunidades no SGSSS tenha permitido
importantes resultados no enfoque intercultural da saúde, como a formulação do Sistema
Indígena de Salud Propia e Intercultural - SISPI, centrado no reconhecimento, respeito e
fortalecimento da sabedoria ancestral (GISI, 2013), os avanços nessa matéria têm dependido,
em muitos casos, dos contextos em que se desenvolvem as iniciativas e da capacidade de
atuação e liderança das organizações indígenas, gerando resultados díspares na prática
(JIMENO, 2012 apud LANGDON; CARDOSO, 2015).
A esse respeito, alguns autores têm documentado experiências particulares de
modelos de saúde com enfoque de APS intercultural, desenvolvidos em diferentes territórios e
comunidades indígenas do país.
Umas das primeiras experiências, registrada por Zambrano e Méndez (1991), foi
impulsionada pela Fundación para las Comunidades Colombianas que desenvolveu um
programa de APS com povos Indígenas da Orinoquía e da região Andina. O programa tinha o
intuito de contribuir para melhorias no nível da saúde por meio do aprofundamento do
conhecimento dos problemas e das práticas culturais dos grupos étnicos envolvidos, além de
resgatar e zelar pela conservação de práticas tradicionais, evitando a substituição pelas
provenientes da medicina ocidental ou facilitando o intercâmbio quando fosse possível.
Suárez (2001) descreveu o processo de construção de um modelo de saúde para os
povos indígenas no departamento de Amazonas, trazendo como exemplo o caso do resguardo
Mirití-Paraná. O modelo resultou de um trabalho conjunto entre as comunidades indígenas e
os atores do sistema de saúde, levando em conta as particularidades culturais e sociais a fim
20

de melhorar as condições de bem-estar das comunidades. O modelo incluiu uma


reorganização dos serviços de saúde na conformação de um Plan de Atención Básica (PAB)
indígena, a capacitação de promotores e profissionais de saúde em práticas culturais e
medicina tradicional e o controle social por parte das organizações indígenas.
Do mesmo modo, Guevara-Garzón (2003) apresentou os avanços e entraves de
um modelo operativo de prestação de serviços de APS integral e intercultural, desenvolvido
com as comunidades indígenas do departamento de Vaupés. O mesmo resultou em um
esforço por parte do governo do departamento e as lideranças indígenas, para o alcance da
complementaridade da medicina tradicional e a ocidental no âmbito do SGSSS. O autor
enfatizou na necessidade de manter a assessoria e seguimento constante ao talento humano
encarregado de desenvolver as ações de APS, a fim de garantir a permanência do modelo.
Mais recentemente, dois estudos etnográficos descreveram experiências na
expressão da interculturalidade em saúde com diferentes comunidades indígenas nos
departamentos de Amazonas e Caldas. O primeiro, realizado por Patiño e Sadín (2014)
buscou compreender as conceituações sobre saúde-doença e apresentar as propostas sobre o
sistema sanitário planejado pelas comunidades indígenas das etnias Tikuna, Cocama e Yagua
do município de Puerto Nariño (Amazonas). Foi executado entre os anos 2010 e 2014 e
evidenciou a falta de informação e entendimento por parte das entidades governamentais de
saúde sobre a demanda principal das comunidades indígenas: a de serem escutadas quando
são tomadas decisões que afetam sua saúde e sua forma de concebê-la.
O segundo, desenvolvido por Cardona, Rivera e Carmona (2015), teve como
objetivo determinar as conceituações e práticas de saber ancestral que contribuem com a
interculturalidade na saúde de um povo Emberá-Chamí assentado nos municípios de Riosucio
e Supía. Evidenciou-se como os elementos do universo simbólico indígena potencializam a
interculturalidade em saúde e possibilitam um maior sucesso dos programas de prevenção da
doença e promoção da saúde.
Finalmente, Vega e Acosta (2015) destacaram as experiências de modelos de APS
interculturais no âmbito das EPSI, desenvolvidos por iniciativa própria dos povos indígenas
originários da Sierra Nevada de Santa Marta e do Cauca. Nesses modelos destaca-se o uso
amplo de promotores de saúde indígena, encarregados de desempenhar a dupla missão de
aprimorar e promover as cosmologias e práticas da medicina tradicional indígena e servir de
interlocutores com os profissionais da medicina ocidental; assim como o trabalho articulado
entre médicos tradicionais e parteiras com a equipe de saúde ocidental.
23

Os principais meios de acesso e transporte no departamento são por via fluvial e


aérea. O tempo de viagem entre as aldeias e a capital pode variar entre horas e dias,
dependendo da estação do ano devido às mudanças nos níveis dos rios que podem dificultar
ou favorecer a navegação (COLOMBIA, 2015b). A economia da região baseia-se
principalmente na mineração, pecuária, pesca, comercio formal e informal e empregos
relacionados às entidades do setor público. Porém, 75% da população encontra-se abaixo da
linha da pobreza. Além da prevalência de questões sociais que afetam a ordem pública na
região, como a presença de grupos armados e a mineração ilegal, ocasionando problemas de
violência e deslocamento forçado da população (BERNAL et al., 2014).
Esse contexto de desigualdade dos fatores sociais e econômicos tem gerado um
impacto significativo nos altos índices de morbidade e mortalidade presentes na população de
Guainía, que são consideravelmente superiores em comparação a outras regiões do país
(COLOMBIA, 2017). Essa situação evidencia-se, especialmente, em indicadores como a
mortalidade materna e infantil, que tem como uma das causas a desnutrição em crianças
menores de cinco anos, que é 14 vezes maior em relação ao índice nacional (SECRETARÍA
DE SALUD DEPARTAMENTAL DEL GUAINÍA, 2018).
O departamento vivenciou uma crise na saúde que se agudizou na primeira década
de 2000, como consequência dos problemas na prestação dos serviços de saúde, relacionados
com a desarticulação entre centros, postos de saúde e o hospital, crise financeira, baixa
capacidade resolutiva, sistemas de informação incipientes e infraestrutura física inapropriada
e deteriorada (COLOMBIA, 2014). Tal situação levou o MSPS a privatizar, em 2012, o único
hospital da zona, para resolver sua instabilidade financeira (COLOMBIA, 2017). Aliado à
formulação de um modelo de atenção capaz de garantir o acesso efetivo da população da
região aos serviços de saúde, conforme as particularidades geográficas e culturais do
território.
Nesse contexto, surge o MIAS, como iniciativa de implementação de um teste
piloto, anteriormente a ser declarado como política nacional em 2016. As discussões sobre a
formulação desse modelo em Guainía concretizaram-se no primeiro semestre de 2014, quando
por meio de uma parceria entre o MSPS e o governo departamental, assessorados pelo BID e
por uma universidade privada, realizou-se uma consulta prévia com os principais
representantes das organizações indígenas da região, no intuito de avaliar, definir e propor as
diretrizes do modelo (COLOMBIA, 2015b).
24

Como resultado desse processo foi expedido o Decreto 2561 de Dezembro de


2014 “Pelo qual se definem os mecanismos que permitam melhorar o acesso aos serviços de
saúde da população afiliada ao SGSSS e fortalecer a seguridade no departamento de Guainía”
(COLOMBIA, 2014, tradução nossa). Também foram estabelecidas as definições normativas
e alinhamentos técnicos e operativos do MIAS publicado pelo MSPS em 2015 (COLOMBIA,
2015b).
Segundo este último documento o MIAS é definido como:

Um modelo de seguridade e prestação de serviços de saúde projetado para


ser implementado, inicialmente, no departamento de Guainía, como uma
experiência piloto. Tem uma abordagem baseada no princípio da diversidade
étnica e cultural e na Atenção Primária à Saúde, com ênfase no componente
familiar e comunitário, bem como nos processos que garantam a articulação
dos atores sociais e dos agentes do sistema, de forma a garantir efetivamente
o acesso da população aos serviços de saúde (COLOMBIA, 2015b, p. 30,
tradução nossa).

Os dez componentes estabelecidos para o MIAS como diretriz nacional


(COLOMBIA, 2016a) foram adaptados para Guainía em cinco: 1) seguridade social; 2)
intervenção na prestação de serviços; 3) fortalecimento institucional; 4) auditoria técnica e
financeira e 5) inspeção de vigilância, controle e avaliação (COLOMBIA, 2015b).
O primeiro componente, a seguridade, define a operação do modelo por meio de
uma empresa asseguradora ou EPS única, selecionada por concurso público, encarregada de
prestar atenção à saúde de toda a população do departamento, focando-se principalmente no
regime subsidiado.
O segundo componente, a intervenção na prestação de serviços, refere-se a uma
série de disposições definidas com o intuito de garantir a adequada prestação dos serviços de
saúde, dentro das que se encontram:
- A determinação de algumas atividades mínimas a serem executadas, como visitas
domiciliares às famílias, a criação de equipes para atração de usuários, a promoção e
prevenção por meio de rotas priorizadas para a gestão integral do risco e a atenção
hospitalar que permita a demanda induzida.
- A organização da operação da rede de prestação de serviços por áreas e bacias
hidrográficas, estabelecendo zonas de atuação e responsabilidades para os postos,
centros de saúde e o hospital.
- O fortalecimento dos recursos humanos gerando-se uma lista de cargos, com suas
respectivas competências e responsabilidades, considerados necessários para a
25

prestação dos serviços. Determina-se a criação do papel de Gestor Comunitário de


Saúde, sendo um membro da comunidade encarregado da promoção da saúde nas
comunidades indígenas e da articulação entre a medicina tradicional e ocidental,
além da contratação de curadores tradicionais (pajés e parteiras) para fazer parte da
rede primária de serviços.
-As melhorias em infraestrutura e tecnologia fundamental para a operação do
modelo, contemplando a consolidação da rede primária e complementar conformada
por postos, centros de saúde e hospital. Aquisição de novos equipamentos médicos,
fortalecimento dos sistemas de comunicação, ferramentas de telemedicina e meios de
transporte à disposição dos prestadores de saúde.
O terceiro componente, o fortalecimento institucional, refere-se à busca por
implementar melhores processos de gestão a fim de conseguir articular com sucesso todos os
atores envolvidos na prestação de serviços de saúde.
O quarto componente, a auditoria técnica e financeira, contempla a
indispensabilidade de se contratar um interventor que faça uma avaliação periódica ao
progresso na implementação do modelo, suas finanças e na qualidade do serviço oferecido.
Por último, o quinto componente, a inspeção de vigilância e controle,
corresponde à supervisão por parte da Superintendencia Nacional de Salud, e à avaliação do
processo a cargo do Departamento de Planeación Nacional (DNP) como entidades de
controle do governo nacional.
Da mesma forma, a APS com enfoque intercultural, centrada na família e na
comunidade como principal estratégia de atenção do modelo, contempla como diretrizes: 1) a
organização da população de acordo com as áreas definidas; 2) a garantia da participação
comunitária na construção e adequação do modelo mediante a análise da situação de saúde,
definição de prioridades, articulação de saberes e tradições, planos de vida construídos
autonomamente pelos povos indígenas e avaliação permanente com a participação das
instâncias representativas; 3) a garantia da articulação intersetorial para intervenção nos
determinantes sociais; 4) a garantia da prestação dos serviços de saúde por meio da formação
de talento humano e melhoria da infraestrutura e tecnologia em saúde e 5) o monitoramento e
prosseguimento às atividades de promoção da saúde e prevenção de doenças de acordo com a
realidade sociocultural do território (COLOMBIA, 2014).
A experiência de implementação do MIAS em Guainía começou a ser efetuada
em maio de 2016, estimando um período de cinco anos para avaliação do teste piloto.
26

Finalizado esse período seria realizada uma avaliação para definir a continuidade e os ajustes
pertinentes para que o programa possa ser replicado em outros departamentos do país.
27

3 PERCURSO METODOLÓGICO

3.1 A abordagem teórica – metodológica

Para o desenvolvimento da presente pesquisa optou-se pela metodologia


qualitativa com abordagem de estudo de caso, sob o olhar teórico da Sociologia
Compreensiva do Cotidiano, segundo Michel Maffesoli (1984; 2010).
A escolha pela pesquisa qualitativa norteia-se pela natureza do objeto de estudo,
que implica uma aproximação compreensiva a um fenômeno da experiência cotidiana para
captar seu caráter subjetivo. Segundo De la Cuesta (2000, p. 7), “a pesquisa qualitativa se
interessa por como as experiências são vividas e interpretadas por quem as vive”. Portanto,
busca compreender o fenômeno como parte da realidade humana vivida socialmente, partindo
do entendimento de que o ser humano se distingue, não apenas por suas ações, mas por pensar
sobre o que faz e por interpretar suas ações dentro e a partir da realidade vivida e partilhada
com os outros (MINAYO, 2014 apud OLIVEIRA, 2019). Dessa forma, meu interesse nessa
pesquisa visa à compreensão da construção cotidiana da APS, desde as vivências de indígenas
e profissionais de saúde em seu dia a dia, ligadas a uma realidade sociocultural complexa e ao
presente: “o aqui e agora” (MAFFESOLI, 2010).
Para Maffesoli (2009) a compreensão implica em uma aproximação do mundo tal
qual ele é, sem intenções explicativas, exigindo ao pesquisador sair do dogma para uma
atenção sem preconceitos. Esta análise não se reduz a categorias econômicas ou políticas,
permitindo descrever os fenômenos tal qual eles se apresentam, na banalidade da vida
cotidiana. Nesse sentido, a sociologia compreensiva se ocupa por “descrever o vivido naquilo
que é/está, contentando-se, assim, em discernir as visadas dos diferentes atores envolvidos”
(MAFFESOLI, 2010, p. 30).
No âmbito da Sociologia Compreensiva, Maffesoli (2010) destaca cinco
pressupostos teóricos, sendo a crítica ao dualismo esquemático o primeiro deles. Essa crítica
faz referência à constante oscilação entre as perspectivas sociológicas que, por um lado fazem
ênfase à construção, à crítica, ao mecanismo e à razão; e de outro, insistem no sentimento, no
orgânico e na imaginação (MAFFESOLI, 2010). Portanto, aponta para a importância de que
haja uma dosagem sutil entre erudição (crítica, razão) e paixão (sentimento, imaginação) para
que se possa pensar em termos de globalidade um fenômeno qualquer (NÓBREGA et al.,
2012).
28

O segundo pressuposto descrito pelo autor é a “forma”. Trazendo a noção de


formismo, Maffesoli (2010) propõe a obtenção de um equilíbrio apto ao perceber o lógico e o
“não lógico” que modelam o dado social. Nesse sentido, o formismo “parece bastante
adequado para descrever de dentro os contornos, os limites e a necessidade das situações e das
representações constitutivas da vida cotidiana” (MAFFESOLI, 2010, p. 31).
O terceiro pressuposto é a sensibilidade relativista. Nele o autor explicita que
“não há uma realidade única, mas, maneiras diferentes de concebê-la” (MAFFESOLI, 2010,
p. 36). As histórias humanas retornam de modo cíclico, não havendo novidades reais, somente
sua ponderação tecnicista apresenta alterações. Daí a importância em se exigir uma sociologia
aberta, apta a integrar saberes em um conhecimento plural, que possa se construir e se
desfazer.
O quarto pressuposto trazido pelo autor é uma pesquisa estilística. Refere-se ao
fato de que em toda abordagem intelectual existe uma “estilização da existência”, sendo
necessário “encontrar o modo de expressão capaz de dar boa conta da polissemia de sons,
situações e gestos que constituem a trama social” (MAFFESOLI, 2010, p. 43). Para o autor a
ciência precisa se mostrar entre a “empatia e a forma” com uma escrita polissêmica, aberta e
reflexiva, sem que com isto perca, necessariamente, o seu rigor cientifico.
O pensamento libertário é o quinto pressuposto. O autor faz um chamado a
trabalhar pela “liberdade do olhar”, que pode ser “a um só tempo insolente, ingênua, mesmo
trivial e, pelo menos, incomoda - mas abre as brechas e permite intensas trocas”
(MAFFESOLI, 2010, p. 46). Para Maffesoli (2010) o pesquisador é, ao mesmo tempo, ator e
participante, pois a compressão exige proximidade e empatia, só desse modo é possível
apreender ou pressentir as sutilezas, os matizes e as descontinuidades do jogo social.
Olhar o fenômeno, norteada pelos pressupostos da Sociologia Compreensiva
permitiu-me como pesquisadora assumir “um pensamento estruturalmente aberto”
(MAFFESOLI, 2007), a fim de apreciar e apreender as interações, expressões, fenômenos e
maneiras de ser no cotidiano dos usuários indígenas e profissionais de saúde no âmbito da
APS.
A compressão intima do objeto dessa pesquisa exigiu, por tanto, uma descrição
ampla e profunda de um fenômeno desenvolvido na vida cotidiana, justificando assim a
escolha do método de estudo de caso. O estudo de caso, segundo Yin (2015) constitui “o
método preferido quando o enfoque está sobre um fenômeno contemporâneo em seu contexto
29

no mundo real” (YIN, 2015, p. 2), possibilitando, nesta pesquisa, reter as características
holísticas e significativas da construção cotidiana da APS.
Para Yin (2015) o estudo de caso é “uma investigação empírica que investiga um
fenómeno contemporâneo (“o caso”) em profundidade em seu contexto de vida real,
especialmente quando os limites entre o fenômeno e o contexto não são claramente evidentes”
(YIN, 2015, p. 17). Dessa maneira, a pesquisa de estudo de caso implica assumir que o
entendimento do fenômeno (“o caso”) engloba importantes condições contextuais, ou seja, o
fenômeno a ser investigado não pode ser afastado de seu contexto atual.
Além disso, segundo Yin (2015) a pesquisa de estudo de caso é característica
porque:
Enfrenta a situação claramente diferenciada em que existirão muitas mais variáveis
de interesse do que pontos de vista dados, e, como resultado conta com múltiplas
fontes de evidência, com os dados precisando convergir de maneira triangular, e
como outro resultado beneficia-se do desenvolvimento anterior das proposições
teóricas para orientar a coleta e análise de dados (YIN, 2015, p. 18).

Nesse sentido, conforme o autor “a pesquisa de estudo de caso compreende um


método abrangente, cobrindo a lógica do objeto, as técnicas de coleta de dados e as
abordagens específicas à análise de dados” (YIN, 2015, p. 18). Aliás, pode abarcar diferentes
orientações epistemológicas, desde uma realista até uma relativista ou interpretativista (YIN,
2015), sendo esta última a assumida neste estudo. Considerando que a unidade de análise ou
“caso” a ser estudado corresponde à: construção cotidiana da atenção primária à saúde em
uma região da Amazônia colombiana, optou-se por um estudo de caso único holístico.
A justificativa para a eleição de um caso único responde à particularidade do
objeto a ser estudado e ao contexto onde ele acontece. Assim, ao se constituir a APS como
principal estratégia dentro de um modelo piloto de saúde para zonas dispersas na Colômbia, o
processo merece ser analisado em profundidade a partir da perspectiva dos atores sociais
envolvidos. Dessa forma, de acordo com Yin (2015), a abrangência que permite um caso
único holístico torna-se suficiente para captar as circunstancias e as condições imersas no
cotidiano da APS em Guainía.

3.2 O cenário do estudo

O presente estudo é desenvolvido no departamento de Guainía, localizado no


nordeste da Amazônia Colombiana (COLOMBIA, 2015b). A escolha dessa região deu-se por
se tratar do primeiro território com população dispersa do país em implantar as diretrizes do
31

1) Postos de saúde: encontram-se distribuídos ao longo de todo o departamento.


Cada posto de saúde é responsável por uma área de influência com uma população
aproximada de 1000 pessoas (100 -200 famílias). Prestam-se serviços de baixa complexidade
que incluem: realização de consultas de promoção e prevenção, tomada de provas de
diagnóstico rápido (malaria, dengue, gravidez, HIV, sífilis, hepatite B) e subministro de
medicamentos básicos. A equipe é composta por um auxiliar de enfermagem encarregado das
ações intramuros (atendimento direto no posto) e um gestor comunitário encarregado das
ações extramuros (visitas domiciliares)3. Essa equipe mantém comunicação permanente com
o centro de saúde de sua zona de referência e com o hospital por meio de rádio de alta
frequência.

FIGURA 4 - Postos de saúde - comunidade Cuayare / comunidade Puerto Esperanza


Fonte: Acervo da autora

2) Centros de saúde: localizam-se em cada uma das zonas da rede de atenção


(figura 3), sendo referência para os postos de saúde pertencentes à zona (excetuando a zona 1
cuja referência é o hospital). Prestam-se ali serviços de baixa complexidade, que incluem:
consulta externa, pronto socorro, hospitalização e serviços de promoção e prevenção. A
equipe que atua neste cenário, encarregada tanto das ações intramuros e extramuros, é
composta por um médico geral, um médico especializado em medicina de família4, um

3
Em um caso excecional de um posto de saúde localizado próximo à cidade conta adicionalmente com um
técnico microscopista encarregado exclusivamente da realização de provas rápidas.
4
Na época da realização da pesquisa nenhum centro de saúde contava com a presença deste profissional, além
disso dois dos quatro centros de saúde estavam ainda em construção.
32

enfermeiro, dois auxiliares de enfermagem, um bacteriologista, um destinta e um auxiliar


dentário.

FIGURA 5 - Centro de saúde – Corregimento de Barrancominas


Fonte: Acervo da autora

3) Hospital: encontra-se localizado na capital do departamento. É a unidade de


referência dos centros de saúde e os postos de saúde da zona 1 (figura 3), prestando apoio aos
demais postos de saúde da região. Ali se oferecem serviços de média complexidade: consulta
médica geral e especializada (gineco-obstetrícia, cirurgia geral, pediatria, anestesiologia e
medicina de família), pronto socorro, hospitalização e serviços de promoção e prevenção.
Estos últimos serviços são prestados em uma unidade chamada de “Área de Promoção e
Prevenção” (Figura 6), a qual encontra-se instalada em um prédio anexo à parte externa do
hospital, contando com uma equipe encarregada das ações intramuros composta por dois
médicos, duas enfermeiras e um auxiliar de enfermagem, além de um gestor comunitário para
ações extramuros (principalmente visitas domiciliares).
Além disso, são organizadas desde esta unidade comissões de saúde, constituídas
por equipes encarregadas de realizar ações extramuros nas aldeias da área rural. Durante o
período da realização da pesquisa existiam dois tipos de comissões: uma constituída por
médico generalista, bacteriologista, enfermeiro, dentista e técnicos em enfermagem - chamada
de comissão multidisciplinar de saúde - encarregada de executar atividades de promoção da
saúde e prevenção de doenças; e outra, conformada apenas por técnicos de enfermagem e um
enfermeiro, para realização de ações voltadas, exclusivamente, à vacinação e/ou educação em
saúde.
33

FIGURA 6 - Área de promoção e prevenção – Hospital de Inírida


Fonte: Acervo da autora

3.3 Os participantes do estudo

Os participantes desta pesquisa são usuários indígenas e profissionais de saúde


que vivenciam e interagem no dia a dia nos cenários da prestação dos serviços de saúde em
Guainía. Decidi olhar para as experiências cotidianas dessas pessoas, considerando que são
eles que vivenciam mais de perto as minúcias e complexidades do processo de construção da
APS na região, mediante suas maneiras de viver, suas relações, suas emoções e seu partilhar
ou estar-junto com o outro.
Nesse sentido, a escolha dos participantes foi feita de maneira intencional,
considerando que na pesquisa qualitativa o objeto de estudo define a especificidade destes
participantes. Segundo Minayo (2017) “a amostragem de uma pesquisa qualitativa deve estar
vinculada à dimensão do objeto (ou da pergunta) que, por sua vez, se articula com a escolha
do grupo a ser entrevistado e observado” (MINAYO, 2017, p. 4).
Com a finalidade de definir mais claramente o grupo sob o qual recai o foco desta
pesquisa, adotaram-se como critérios de inclusão para os indígenas: ser usuários dos serviços
de APS, maiores de 18 anos e pertencentes ao regime subsidiado de saúde; e para os
profissionais de saúde: ser membro de uma equipe de APS (médico, enfermeiro, dentista,
bacteriologista, auxiliar de enfermagem, gestor comunitário ou microscopista), com uma
atuação mínima de seis meses no cargo.
Além desses, foram considerados outros atores denominados participantes-chave
pelo método de estudo de caso: um médico tradicional, uma liderança indígena e um assessor
34

administrativo, que forneceram informações importantes sobre o objeto de estudo. Segundo


Yin (2015) a inclusão de participantes-chave é fundamental para o sucesso de um estudo de
caso, pois estas pessoas podem proporcionar informações reveladoras sobre o assunto de
pesquisa, facilitar o acesso a outros participantes ou sugerir fontes nas quais podem-se buscar
evidências corroborantes ou opostas.
Ao me deparar em campo com a diversidade de cenários onde acontece a atenção
à saúde, cada um com suas singularidades, optei por não delinear a priori uma abordagem
para convidar os participantes. Assim, à medida que ingressava em um determinado cenário
(por exemplo, em uma comissão de saúde), abordava aqueles que cumpriam os critérios de
inclusão, convidando-os a participar da pesquisa. Portanto, os profissionais foram abordados
em suas unidades de trabalho ou nos espaços das visitas domiciliares, e os usuários em suas
casas, nas aldeias ou também nas mesmas unidades. Ao serem convidados, foram informados
sobre o objetivo e os procedimentos da pesquisa, bem como acerca da confidencialidade de
suas informações. Nos casos em que aceitaram participar da pesquisa, foi solicitada sua
assinatura ou impressão digital5 no Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE)
(APÊNDICE A).
A coleta finalizou no momento em que os dados tornaram-se redundantes e
repetitivos sem apresentarem novas relevâncias para o objeto de estudo, conforme o critério
de saturação (FONTANELLA; RICAS; TURATO, 2008). Cabe salientar, no entanto, que
essa decisão foi um processo que envolveu além da (re)escuta das gravações dos
entrevistados, reflexões constantes para a finalização da coleta. Dada a extensão do objeto e a
diversidade do campo de estudo, reflexões sobre a abrangência e suficiência dos dados para
realização das interconexões necessárias para a compreensão do fenômeno em estudo,
estiveram presentes durante o tempo de coleta e transcrição. Embora, como expõe Minayo
(2017), o estabelecimento de um ponto de corte para a coleta nas pesquisas qualitativas ainda
continua sendo uma questão de debate, concordo com a autora, uma vez que certamente
torna-se complexo esgotar todas as possibilidades para chegar a um ponto de saturação, sendo
importante concentrar esforços para uma aproximação possível ao objeto e, assim, conseguir
demonstrar sua complexidade.
Dessa forma, a amostragem desse estudo totalizou 51 participantes, constituída de
22 usuários indígenas, 26 profissionais de saúde e três participantes-chave. Do total de
profissionais de saúde 19 foram observados em seu contexto de trabalho, 13 deles

5
A impressão digital foi adotada em um único caso em que o participante manifestou não saber escrever.
35

entrevistados e sete foram abordados unicamente por meio de entrevista (Quadro 2). Em
relação aos usuários indígenas, todos foram entrevistados e alguns deles observados durante
sua permanência nas unidades de saúde ou em suas casas no percurso da realização das
entrevistas (Quadro 3). Os três participantes-chave foram, apenas, entrevistados (Quadro 4).
Para garantir o anonimato, os profissionais de saúde são identificados nesta
pesquisa pelas iniciais de sua profissão, seguido por um número relativo à sequencia de
inclusão no estudo: médico (MED1, 2...), enfermeiro (E1,2...), dentista (DEN1,2...),
bacteriologista (BAC1,2...), auxiliar/técnico de enfermagem (AE1,2...), gestor comunitário
(G1,2...) e microscopista (MIC1,2...); os usuários indígenas (U1,2...) e participantes-chave
(ParC1,2...).
QUADRO 2
Participantes do estudo – profissionais de saúde
Indígena / Experiência
N. Participante Sexo Formação Obs. Ent.
Etnia no cargo
1 E1 Sim/Puinave Masculino Enfermeiro 23 anos Sim Sim
2 AE1 Sim/Sikuani Feminino Auxiliar de enfermagem 11 anos Sim Sim
3 AE2 Não Feminino Auxiliar de enfermagem 7 anos Sim Sim
4 AE3 Sim/Curripaco Masculino Auxiliar de enfermagem > 2 anos Sim Não
5 AE4 Sim/Piapoco Masculino Auxiliar de enfermagem > 2 anos Sim Não
6 AE5 Sim/Puinave Masculino Auxiliar de enfermagem > 2 anos Sim Não
7 E2 Não Feminino Enfermeira 8 meses Sim Sim
8 AE6 Sim/Puinave Masculino Auxiliar de enfermagem 11 anos Sim Sim
9 G1 Sim/Puinave Masculino Gestor comunitário 2 anos Sim Sim
10 MED1 Não Feminino Médica familiar 3 anos Sim Sim
11 MIC1 Sim/Curripaco Masculino Microscopista >20 anos Sim Sim
12 MED2 Não Feminino Médica geral 6 meses Sim Não
13 DEN1 Não Masculino Dentista 6 meses Sim Não
14 E3 Não Feminino Enfermeira 1 ano Sim Sim
15 E4 Não Feminino Enfermeira 8 meses Sim Sim
16 MED3 Não Feminino Médica geral 9 meses Sim Sim
17 MED4 Não Masculino Médico geral > 5 anos Sim Não
18 G2 Não Masculino Gestor comunitário 2 anos Não Sim
19 AE7 Não Feminino Auxiliar de enfermagem 10 anos Não Sim
20 BAC1 Sim/Puinave Masculino Bacteriologista 6 anos Sim Sim
21 DEN2 Não Masculino Dentista 1 ano Sim Sim
22 BAC2 Não Masculino Bacteriologista 2 anos Não Sim
23 AE8 Não Masculino Auxiliar de enfermeira 8 anos Sim Sim
24 DEN3 Não Masculino Dentista 1 ano Não Sim
25 DEN4 Não Masculino Dentista 1 ano Não Sim
26 AE9 Não Feminino Auxiliar de enfermagem >20 anos Não Sim
Fonte: Elaboração realizada pela pesquisadora. Dados de pesquisa 2018.
36

QUADRO 3
Participantes do estudo – usuários indígenas
N. Participante Etnia Idade Sexo Escolaridade
1 U1 Piapoco 28 Feminino 7 grado – Fundamental incompleto
2 U2 Puinave 32 Feminino 5 grado – Fundamental incompleto
3 U3 Puinave 51 Masculino 5 grado – Fundamental incompleto
4 U4 Puinave 34 Feminino 10 grado – Médio incompleto
5 U5 Puinave 33 Feminino 5 grado – Fundamental incompleto
6 U6 Curripaco 34 Masculino Técnico
7 U7 Sikuani 25 Feminino 6 grado – Fundamental incompleto
8 U8 Sikuani 24 Feminino 8 grado – Fundamental incompleto
9 U9 Puinave 35 Masculino Bachiller – Médio completo
10 U10 Cubeo 29 Feminino 4 grado – Fundamental incompleto
11 U11 Puinave 30 Masculino 8 grado – Fundamental incompleto
12 U12 Piapoco 41 Masculino 7 grado – Fundamental incompleto
13 U13 Curripaco 23 Feminino 5 grado – Fundamental incompleto
14 U14 Cubeo 28 Masculino 9 grado – Fundamental completo
15 U15 Curripaco 38 Feminino 5 grado – Fundamental incompleto
16 U16 Curripaco 28 Feminino Técnico
17 U17 Cubeo 52 Feminino 5 grado – Fundamental incompleto
18 U18 Curripaco 45 Feminino 3 grado – Fundamental incompleto
19 U19 Curripaco 30 Feminino Técnico
20 U20 Curripaco 21 Feminino Técnico
21 U21 Curripaco 55 Masculino 8 grado – Fundamental incompleto
22 U22 Puinave 32 Feminino Analfabeta
Fonte: Elaboração realizada pela pesquisadora. Dados de pesquisa 2018.

QUADRO 4
Participantes do estudo – Participantes-chave
Indígena /
N. Participante Sexo Formação/Cargo Obs. Ent.
Etnia
Membro ASOCRIGUA
/Liderança indígena
1 Par.C1 Sim/Puinave Masculino Não Sim
processos de
saúde
Médico tradicional (Pajé)
/Liderança indígena
2 Par.C2 Sim/Piapoco Masculino Não Sim
processos de
saúde
Dentista, Mg. Saúde
3 Par.C3 Não Masculino pública/Assessor Não Sim
administrativo SDS
Fonte: Elaboração realizada pela pesquisadora. Dados de pesquisa 2018.
37

Quanto ao perfil dos participantes, destaca-se que do total de profissionais de


saúde (n=26) nove são indígenas (35%), cinco deles desempenhando o cargo de auxiliares de
enfermagem, um gestor comunitário, um microscopista, um enfermeiro, e um bacteriologista.
Dos 17 profissionais de saúde não-indígenas (65%) três são enfermeiras, quatro dentistas,
quatro médicos, um bacteriologista, quatro auxiliares de enfermagem e um gestor
comunitário. Em relação à trajetória laboral, quatro profissionais (15%) informaram que têm
mais de 10 anos de experiência no cargo, enquanto 15 (58%) têm experiência menor que 5
anos, isto devido à maioria dos profissionais de saúde atuantes na região costumam prover de
outros lugares do país e permanecem no cargo por pouco tempo.
No tocante aos usuários indígenas (n=22) 15 são mulheres (68%) e sete homens
(32%), oito pertencentes ao povo Curripaco, sete Puinave, três Cubeo, dois Piapoco e dois
Sikuani. É importante notar que a faixa etária destes participantes não supera os 55 anos, o
que pode estar associado ao ponto da região onde foram feitas as entrevistas formais,
realizadas, principalmente, com moradores da cidade ou de zonas rurais próximas, habitadas,
em sua maioria, por jovens e adultos. Esta seleção pode corresponder ainda ao cálculo de
distribuição populacional da região, sendo Guainía um dos departamentos com maior
porcentagem de população em idades jovens de todo o país (DANE, 2018). Da mesma forma,
apesar de apenas uma participante referir não ter nenhum nível de escolaridade, todos os
usuários participantes falavam espanhol além de sua língua nativa, não tendo sido requerido o
emprego de tradutor em nenhum caso.
Em relação aos aos participantes-chave (n=3), destaca-se que os três são homens,
dois deles indígenas com trajetória de liderança em processos de saúde na região, incluindo
participação ativa do processo de consulta prévia no desenho do novo modelo de atenção.
Salienta-se ainda que um deles possui formação como médico tradicional ou pajé e exercia a
função no período da coleta de dados. O outro participante-chave encontra-se atualmente no
cargo de assessor administrativo da SDS, contando com mais de 30 anos de experiência de
trabalho na região.

3.4 A pesquisa de campo e a produção de dados

A pesquisa de campo foi realizada entre os meses de fevereiro e junho de 2018.


Durante esses cinco meses fixei residência na cidade de Inírida, onde estabeleci contatos para
inserção nos cenários de estudo e convite aos participantes. Ao me referir ao “campo”
38

concordo com Guber (2009) que afirma que é o referente empírico da pesquisa, “a porção do
real que se deseja conhecer, o mundo natural e social no qual se desenvolvem os grupos
humanos que o constroem” (GUBER, 2009, p. 83). O real de que fala Maffesoli (2010), que
se manifesta no cotidiano por meio de ações banais carregadas de amplo significado e que me
propus desvelar aqui para compreender as dinâmicas da APS desde o olhar dos atores sociais
envolvidos.
Ao ter por princípio que a imersão ao campo não é um processo neutro nem
contemplativo, senão totalmente reflexivo, pois o pesquisador também faz parte do real que
pretende pesquisar (GUBER, 2009; MINAYO, 2014); os dados desta pesquisa são resultado
de uma elaboração sobre o real, ou seja, produto de uma transformação que eu fiz como
pesquisadora do contexto, esse contexto que por sua vez me transformou.
Nessa perspectiva, as duas técnicas adotadas para a produção de dados: a
observação direta e a entrevista individual foram fundamentais para construir o material
empírico, fonte de interpretação e análise. Essa opção por utilizar mais de uma fonte de
evidência respondeu ainda ao cumprimento do principio de triangulação de dados que,
conforme Yin (2015) e Martinez (2006), permite garantir a validade interna nos estudos de
caso.
A observação direta é utilizada nos estudos de caso para capturar alguns
comportamentos relevantes ou condições no ambiente natural do caso, sendo frequentemente
útil para proporcionar informação adicional ao mesmo (YIN, 2015). Segundo Minayo (2014)
a prática da observação como parte essencial do trabalho de campo, implica a definição sobre
“o quê” e o “como” observar. Nesta pesquisa, a observação focalizou especificamente no
“caso” ou na unidade de análise proposta: a construção cotidiana da atenção primária à
saúde. Para isto, observei o cotidiano dos profissionais e usuários em seus diferentes
ambientes de trabalho e convivência, totalizando aproximadamente 680 horas de observação.
O registro das observações, identificadas como notas de observação (NO), foi
feito em um diário de campo organizado a maneira de roteiro. Foram registradas a descrição
da situação presenciada (falas e conversas), impressões da pesquisadora, reflexões
preliminares e notas teóricas. Este registro, quando possível, foi feito durante a observação ou
imediatamente após sua finalização.
Outra técnica realizada, a entrevista, é considerada por Yin (2015) uma das fontes
mais importantes e essenciais de informação para um estudo de caso. Consiste em uma
conversa guiada, seguindo um roteiro de questões apresentado de forma fluida e não rígida
39

(YIN, 2015). Nesta pesquisa, foram elaborados roteiros semiestruturados, um para os usuários
indígenas e outro para os profissionais de saúde (APÊNDICE B). Os principais tópicos
abordados com os profissionais foram: a trajetória profissional, seu cotidiano de trabalho na
APS, sua impressão sobre o novo modelo de saúde e sua percepção sobre a medicina
tradicional; com os usuários: a experiência em geral com os serviços de saúde, sua percepção
sobre a medicina ocidental e a participação comunitária. As questões do roteiro orientaram a
abordagem junto aos participantes, sem se constituírem “uma camisa de força”, pois, como
alerta Minayo (2014), deve-se ter cuidado em explorar outras questões de relevância
apresentadas por eles.
As entrevistas foram realizadas nas unidades de saúde, nos domicílios ou em
espaços externos, definidos previamente e escolhidos pelos participantes. Foram gravadas em
áudio com consentimento prévio, ressaltado o direito de abster-se de responder alguma
questão ou interromper a entrevista a qualquer momento. Após o seu término, elas foram
transcritas na íntegra e compuseram o corpus de análise, junto às notas de observação. Os
dados foram organizados em um banco, com objetivo de permitir a consulta posterior de
partes específicas das evidências por um leitor externo, caso seja necessário (YIN, 2015).

3.5 A análise de dados

A análise de dados desta pesquisa consistiu em leitura, categorização e


interpretação do material empírico coletado, seguindo a técnica de análise de conteúdo
temática proposta por Laurence Bardin (2011).
Segundo Bardin (2011) a análise de conteúdo consiste em:

Um conjunto de instrumentos metodológicos cada vez mais sutis em constante


aperfeiçoamento, que se aplicam a "discursos" (conteúdos e continentes)
extremadamente diversificados. O fator comum dessas técnicas múltiplas e
multiplicadas - desde o cálculo de frequências que fornece dados cifrados, até a
extração de estruturas traduzíveis em modelos - é uma hermenêutica controlada
baseada na dedução: a inferência (BARDIN, 2011, p. 15)

Dessa forma, a análise de conteúdo “diz respeito a técnicas de pesquisa que


permitem tornar replicáveis e válidas inferências sobre dados de um determinado contexto,
por meio de procedimentos especializados e científicos” (MINAYO, 2014, p. 303). O objeto
da análise de conteúdo são as mensagens, concentrando seu foco não somente no conteúdo,
41

1) Pré-análise: Consistiu, inicialmente, na preparação do material a ser analisado. As


notas de observação descritas no diário de campo e as 45 entrevistas realizadas (20 de
profissionais, 22 de usuários e três participantes-chave) foram transcritas na integra
pela pesquisadora, traduzidas do espanhol a língua portuguesa e organizadas em
arquivos em formato Word. Cada arquivo de entrevista foi nominado com o código de
identificação do participante e anexado a uma pasta criada independentemente para os
profissionais, os usuários e participantes-chave, conformando assim o banco de dados
de todo o material coletado. Posteriormente, realizou-se uma leitura inicial desse
material, chamada por Bardin (2011) de leitura flutuante, a fim de estabelecer contato
com os documentos a analisar e conhecer os textos. Segundo a autora, a ideia com esta
primeira leitura é deixar-se levar por impressões e orientações que, pouco a pouco, na
medida em que a leitura vai se tornando mais precisa, permitem direcionar o
desenvolvimento das operações sucessivas na análise, especificamente na definição
das técnicas para a posterior codificação e categorização.

2) Exploração do material: Nesta fase foram desenvolvidas as primeiras operações de


codificação. A codificação, segundo Bardin, “corresponde a uma transformação -
efetuada segundo regras precisas - dos dados brutos do texto, que permite atingir uma
representação do conteúdo ou da sua expressão” (BARDIN, 2011, p. 133). Esse
processo implica um “recorte”, ou seja, a escolha das unidades no texto -sejam de
registro ou de contexto - que respondam de maneira pertinente às características do
material e aos objetivos da análise (BARDIN, 2011). Para isto, foi feita uma leitura
vertical dos textos (entrevista por entrevista), em que foram destacados, com
diferentes cores, os fragmentos que representavam as unidades de significado contidas
nos discursos, sendo indicado um código a cada uma delas, com a finalidade de
descrever as caraterísticas pertinentes ao conteúdo apresentado. Produto desse
processo obtiveram-se 68 códigos que foram, posteriormente, organizados e
classificados em uma planilha de Excel.

3) Tratamento dos resultados obtidos e interpretação: Os dados foram categorizados


segundo as unidades de significado ou “temas” para serem posteriormente
interpretados. Conforme Bardin (2011), nesta fase, os resultados brutos são tratados de
maneira a serem significativos (“falantes”) e válidos, propondo inferências e
42

adiantando interpretações a propósito dos objetivos previstos ou respeito a outras


descobertas inesperadas. Assim, os 68 códigos obtidos na fase anterior foram
agrupados em subcategorias de acordo com as unidades de significado definidas e em
razão das características comuns entre elas e, posteriormente, essas subcategorias
foram reagrupadas em categorias maiores, sendo posteriormente interpretadas. Esse
processo implicou várias versões e ajustes, exigindo retorno e revisão das fases
anteriores, até obter as duas categorias finais (cada uma composta de 4 subcategorias),
que estão apresentadas no capítulo de resultados. É preciso sublinhar que nesta última
fase foi fundamental a triangulação dos dados obtidos pelas duas fontes selecionadas:
entrevista e observação, a fim de verificar se os dados advindos destas guardavam
relação entre si (MARTÍNEZ, 2006).

3.6 Critérios de rigor

Quatro testes devem ser empregados, segundo Yin (2015), para estabelecer a
qualidade de qualquer pesquisa social empírica, incluindo o método de estudo de caso. Dentro
destes testes encontra-se: a validade de construto, a validade interna, a validade externa e a
confiabilidade, que são definidos no Quadro 5, especificando as medidas implementadas nesta
pesquisa.
43

QUADRO 5
Critérios de rigor
Critérios de
Descrição (Yin, 2015) Medidas implementadas
Rigor

- Análise de pesquisas prévias com


objetivos e cenários de estudo similares,
para avaliar as melhores abordagens que
garantam coerência metodológica e
Identificação das medidas
conceitual.
Validade do operacionais corretas para os
- Uso de múltiplas fontes de evidência
constructo conceitos estudados.
(entrevistas e observação direta) e
confrontação dos resultados com diferentes
arcabouços conceituais.
- Discussão de resultados preliminares com
especialistas da área.

Busca do estabelecimento da - Discussão e análise comparativa entre os


relação causal pela qual se resultados da pesquisa com outras
Validade acredita que determinadas realizadas anteriormente com objetivos e
Interna condições levem a outras cenários de estudo similares.
condições, diferenciadas das - Exercícios de síntese e análise das
relações espúrias. relações entre os principais resultados.

- Explicitação das características singulares


do cenário de estudo.
Definição do domínio para o
Validade - Foco na análise e discussão com pesquisas
qual as descobertas podem
Externa realizadas em contextos similares:
ser generalizadas.
Amazônia e regiões étnica e culturalmente
diversas.

- Estabelecimento de objetivos e perguntas


de pesquisa claros.
- Explicitação das características e
limitações da pesquisa em campo.
Demonstração de que as - Roteiro de entrevista semiestruturada
operações de um estudo – padronizada.
como os procedimentos de -Transcrição e tradução ao português na
Confiabilidade
coleta de dados- podem ser integra das entrevistas e diário de campo.
repetidas com os mesmos -Verificação da tradução e digitação em
resultados. português por parte da assessora e revisor
externo.
- Sistematização dos depoimentos dos
participantes e das notas de campo em
banco de dados.

Fonte: Elaboração própria. Os critérios de rigor e sua descrição foram baseados em Yin (2015).
44

3.7 Aspectos éticos

O estudo foi realizado respeitando as recomendações advindas da Resolução nº


466/12 do Conselho Nacional de Saúde/Ministério da Saúde do Brasil que regulamentam
pesquisas envolvendo seres humanos e obedeceu aos critérios éticos para a investigação em
saúde na Colômbia estabelecidos pela Resolução 8430 de 1993 (COLOMBIA, 1993). O
projeto foi submetido a avaliação no Comitê de Ética da Universidade Federal de Minas
Gerais (COEP/UFMG), entretanto, por não ter participação de brasileiros foi retirado da
pauta, com a indicação que um comitê colombiano realizasse a avaliação.
Dessa forma, para o acesso ao campo e realização do estudo, obteve-se
autorização respectiva por parte da gerência do Hospital, da Secretária Departamental de
Saúde e da Asociación del Consejo Regional Indígena del Guainía (ASOCRIGUA) como
máxima autoridade representativa das comunidades indígenas da região. Seguindo a indicação
do COEP/UFMG, o projeto foi submetido ao comitê do Nuevo Hospital Manuel Elkin
Patarroyo, que certificou o cumprimento de questões éticas do estudo (ANEXOS).
Cabe salientar que, devido ao estudo envolver participantes indígenas, foram
consideradas as recomendações éticas expedidas pelo Conselho de Organizações
Internacionais das Ciências Médicas (CIOMS) e a OMS/WHO, especialmente a Pauta 15, que
menciona proteções específicas na pesquisa com pessoas e grupos vulneráveis (incluindo
minorias étnicas) (ORGANIZACIÓN PANAMERICANA DE LA SALUD; CONSEJO
INTERNACIONAL DE LAS CIENCIAS MÉDICAS, 2016). Contemplou-se nesse sentido,
uma atenção cuidadosa aos riscos mínimos que a pesquisa pode provocar nos participantes,
por exemplo, na leitura e explicação detalhada dos itens contemplados no TCLE, em
presença, quando possível, de familiares ou outras pessoas, que permitissem validar as
informações outorgadas.
Assim mesmo, o desenvolvimento desta pesquisa enquadrou-se sob os princípios
éticos da investigação: veracidade, fidelidade e reciprocidade. Sendo este último garantido na
aquisição do compromisso de retorno e socialização dos resultados com os participantes do
estudo, que será cumprido por meio do regresso da pesquisadora ao campo e de coordenação
de reuniões com as autoridades de saúde da região e com a organização indígena, projetadas
para ser realizadas no segundo semestre de 2020. Da mesma forma, considera-se a divulgação
dos resultados desta pesquisa com a comunidade científica por meio da publicação de artigos
em periódicos indexados e apresentação dos achados em eventos da área.
45

4 O OLHAR SOBRE O COTIDIANO DA ATENÇÃO PRIMÁRIA À SAÚDE:


EXPERIÊNCIAS E REFLEXÕES

Antes de apresentar os resultados dessa pesquisa, farei um relato reflexivo neste


capítulo sobre a experiência de trabalho de campo, realizada em um período de cinco meses.
Tal relato advém da vivência, na qual estabeleceu-se uma relação de produção de
conhecimento compartilhada com os participantes do estudo, em que houve intercâmbio de
saberes, sinais e símbolos para além da coleta de dados, que marcou não só a realização do
trabalho em si, mas os resultados produzidos por este (BRANDÃO, 2007).
Nesse sentido, propus desvelar como tais resultados foram produzidos desde o
lugar que assumi como pesquisadora em campo, com um olhar sensível e as reflexões feitas
sobre os dados coletados. Pois como refere Maffesoli (2007), “o cientista empreende sua
exploração a partir do que vem de sua vida, de sua condição e de sua situação"
(MAFFESOLI, 2007, p. 168).
Vale lembrar que a vivência em campo inicia-se com os princípios da observação.
Enquanto estratégia metodológica adotada neste estudo, teve por objetivo “detectar os
contextos e situações nos quais se expressam os universos culturais e sociais, em sua
complexa articulação e variabilidade” (GUBER, 2009, p. 172). Assim, minha presença em
campo intencionou perceber e experienciar diretamente os fatos da vida cotidiana dos
usuários indígenas e profissionais de saúde no processo de construção da APS. Isto é, como
define Yin (2015), explorar o objeto de estudo “em seu contexto no mundo real”.
Desde o inicio, entretanto, deparei-me com uma serie de desafios, que apareceram
na medida em que me fazia mais ciente da complexidade de pesquisar o cotidiano, ainda mais
em um contexto de tão ampla riqueza étnica e cultural. Em Guainía a diversidade cultural se
materializa no espaço vivencial, em qualquer gesto simples do dia a dia, na interação
entre/com as pessoas. Não é preciso ir muito longe. O fato de escutar os moradores falando
em suas próprias línguas é indício da pluralidade de culturas que cohabitam o território e,
portanto, da existência e afirmação de maneiras “outras” de ver e entender o mundo.
Assim, o encontro cultural vivenciado desde o inicio, além de representar uma
experiência desafiadora, tornou-se um estímulo para me adentrar nesse contexto intercultural,
até o momento, desconhecido para mim. Uma mulher, mestiça e urbana, descendente de
camponeses, que apenas conhecia a Amazônia por livros e filmes. Teoricamente, poderia se
dizer de minha passagem por um desejo cultural (CAMPINHA-BACOTE, 2002), de
flexibilidade e abertura para com essa diversidade, que me permitiu, com o tempo, encarar
46

sem prejulgamentos e ideias preestabelecidas. Segundo Maffesoli (2007) é preciso ultrapassar


nossos preconceitos intelectuais, essencialmente racionalistas e casualistas, para conseguir
olhar ao concreto, às pequenas coisas da vida de todos os dias. Contudo, essa questão não é
tarefa fácil.
Diferente do proposto por alguns autores – como Brandão (2007) - meu ingresso
ao campo ocorreu de uma única vez. Dada a logística que implica o deslocamento à região,
ainda mais pelo fato de estar cursando meus estudos no Brasil, não tive a oportunidade de
fazer uma entrada prévia, que facilitasse conhecer o cenário e perfilar com mais detalhamento
a proposta de pesquisa. Assim, desde o inicío deu-se o encontro com a realidade empírica,
mesmo que tenham sido planejadas possíveis “rotas metodológicas” para abordar meu objeto
de estudo.
Porém, diferentes situações apresentadas no percurso do trabalho de campo
fizeram redefinir o planejamento inicial, lembrando-me das reflexões de Victorio Filho (2007)
sobre a inexistência de um método “pronto” que se acople à imprevisibilidade do cotidiano.
Diante dessa realidade, foi necessário assumir uma postura mais flexível, para além da
ordenação sistemática exigida pelo método científico, deixando-me surpreender pelas
descobertas e circunstancias do dia a dia.
O primeiro fato inesperado ocorreu uma semana após minha chegada à região de
Guainía, reestabelecendo o rumo inicial da pesquisa em campo. Recém-instalada na cidade de
Inírida, onde iria morar pelos próximos meses e ainda em fase de adaptação, convidaram-me
para acompanhar uma comissão de saúde, a primeira do ano encarregada de realizar ações de
vacinação nas aldeias localizadas ao longo da bacia do rio Guaviare6. A proposta, feita cinco
dias antes da partida da equipe com duração aproximada de um mês, determinou minha
aproximação com o cotidiano da APS, mais especificamente, com a rotina da vida diária
desenvolvida pela equipe de saúde no contexto rural, com todas as particularidades que o
diferenciam do urbano.
Minha integração com a equipe da comissão, constituída por cinco técnicos de
enfermagem e um enfermeiro foi um processo paulatino. Embora, ao ser apresentada à equipe
como pesquisadora, antes da viagem ocorrer e ter, também, explicado o propósito da pesquisa,
ficou a impressão inicial que eu seria uma “supervisora externa”, encarregada de fazer

6
Encontram-se nesta zona do departamento um total de 27 aldeias e dois povoados (Barrancominas e
Mapiripana) assentados em oito terras indígenas: Arrecifal, Guaco Bajo-Guaco Alto, Laguna Curvina-Sapuara,
Minitas-Mirolindo, Murciélago-Altamira, Pueblo Nuevo-Laguna Colorada e Carrizal.
47

monitoramento e avaliação do seu trabalho. Impressão esta, que iria se repetir futuramente nos
diferentes cenários onde realizei coleta de dados. Contudo, o tempo compartilhado
potencializou minha aproximação, a ponto de desenvolver atividades cotidianas junto à
equipe, deixando em certos momentos de ser apenas uma espectadora.

FIGURA 8 - Viagens pelo rio - Comissão de saúde


Fonte: Acervo da autora

Os diferentes espaços de estar-junto com a equipe facilitaram redimensionar a


rotina de trabalho da comissão, que para eles era caracterizada como “dura e pesada” (NO.
21/02/2018). O itinerário consistia em várias horas de navegação em lancha localizando os
povoados assentados nas beiras do rio ou a alguns quilômetros a pé pelas margens, onde a
equipe deslocava-se para permanecer por um tempo específico (horas ou dias), de acordo com
o número de habitantes a ser atendido. Ainda que, as atividades a realizar em cada aldeia
fossem similares (verificação da situação vacinal e aplicação de vacinas a crianças e adultos),
a estratégia para implementá-las apresentava algumas variações. Enquanto em algumas
aldeias se realizavam visitas casa a casa, em outras, a equipe fixava-se em um lugar
específico, seja na escola, na caseta7 ou no posto de saúde, para atender à população.
A maioria das decisões no percurso da comissão eram tomadas pelo líder da
equipe, nesse caso, o enfermeiro. Ele definia as estratégias de organização do tempo, a ordem
de visita às aldeias e, inclusive, questões relacionadas à alimentação e alojamento do pessoal,
que, geralmente, era feito em acampamentos às margens do rio. Notei que tais decisões não se
fundamentavam apenas em conhecimento profissional, mas sim advindas de um

7
Tipo de quiosque, é um ponto disposto nas aldeias para reuniões com toda a comunidade
48

conhecimento preestabelecido conforme refere Maffesoli (2010), na experiência coletiva, na


socialidade.
Ressalta-se que quase todos os integrantes da equipe – exceto um técnico - eram
indígenas, pertencentes às etnias Piapoco, Puinave e Sikuani. Essa questão, ainda que
excepcional - dado que a maioria dos integrantes de uma comissão costumam ser não-
indígenas - contribuiu de maneira significativa nessa experiência coletiva. Consegui constatar,
que o fato dos membros da equipe ser oriundos da região, além de fornecer-lhes um
conhecimento do território e em atividades locais - como a pesca, a caça, entre outras - lhes
outorga uma posição social, frente ao usuário indígena, diferente da de qualquer trabalhador
de saúde: a de “paisano”.
O “paisano” (em espanhol) é uma expressão comumente usada pelos indígenas
em Guainía para referir-se a seus conterrâneos indígenas, independente da etnia. De fato, por
vezes, é também empregada pelos brancos, habitantes da região, para falar dos mesmos
indígenas (NO. 18/02/2018). Ser paisano, então, é ser parente, filho da mesma terra. Dessa
forma, ao serem vistos como paisanos, os integrantes indígenas da comissão alcançavam um
status de proximidade com os moradores indígenas, para além da relação estabelecida entre
profissional-usuário, chegando, por vezes, a transformar as visitas às aldeias em verdadeiros
espaços de socialidade (MAFFESOLI, 2010). Além disso, o próprio fato de comunicarem-se
em língua – como eles dizem a respeito das línguas indígenas - estreita ainda mais essa
relação de pertencimento (MAFFESOLI, 2010).
A oportunidade de acompanhar a equipe permitiu-me presenciar e, portanto,
participar de diversos momentos de compartilhamento e troca. Em várias ocasiões fomos
convidados pelos moradores das aldeias a comer junto com eles, propiciando espaços que não
se limitavam, apenas, ao consumo de alimentos próprios da região (pescado moquiao, casabe,
ajicero, yucuta), mas também favoreciam a troca de experiências, conversas, piadas, enfim...
momentos de comunhão, cujos fins últimos eram o de estar-junto-com (MAFESSOLI, 2010).
Esse convívio, inclusive, tornou-se ainda mais estreito por causa de uma situação
de doença que apresentei sete dias depois de ter iniciado a viagem, que resultou em ser
atendida por um curador tradicional, tal como qualquer morador da região. Após uma longa
caminhada para chegar a uma aldeia, percebi uma dor na perna direita. Ao comentar com
alguns membros da equipe concluíram que se tratava de um “nascido”, um problema na pele
que requeria ser tratado imediatamente, pois se avançasse prejudicaria minha continuidade na
viagem e obrigaria o meu retorno à cidade. Dado que a aldeia não contava com posto de saúde
49

– o mais próximo ficava a dois dias de viagem – aconselharam-me consultar com um


benzedeiro da região. Aceitei, assim, a indicação colocando-me nas mãos do curandeiro, o
qual após um exame preliminar, falou da importância de não empregar outro tratamento pelo
risco de interação, iniciou uma reza colocando suas mãos sobre a área afetada. Apesar de certa
incredulidade, a principio, acompanhada de nervosismo ao ver minha saúde em risco e posta à
sorte de outros recursos, nesse caso a medicina tradicional indígena, até o momento
desconhecida para mim, presenciei e testemunhei a efetividade desse tratamento. Para além da
cura estabelecida, o resultado alcançado colocou em xeque os pré-conceitos etnocêntricos de
minha formação como enfermeira, constituindo um evento relevante do trabalho de campo
que repercutiu em muitas de minhas reflexões posteriores.
Essa situação, ademais, colaborou com as primeiras aproximações com os
usuários indígenas, em sua maioria, Piapoco, Sikuani e Puinave. Devo reconhecer, no entanto,
que no inicio da pesquisa – inclusive na própria elaboração do projeto - a forma com a qual
realizaria tal abordagem me inquietava. A falta de experiência em trabalhos com população
indígena gerava diversos questionamentos sobre a “melhor forma possível” de fazer essa
aproximação, uma que não replicasse as clássicas abordagens coloniais ou indigenistas de
pesquisas com esta população, uma, que, em poucas palavras, fosse menos “invasiva”.
Sempre fui ciente que minha presença, sobretudo na área rural, iria impactar de
alguma maneira. Mesmo ao ser tratada, várias vezes, como um membro “a mais” da equipe,
não consegui, como poderia esperar, ter a mesma aproximação com os usuários como os
demais integrantes. Além de ser a “branca”, mesmo com um dos membros da equipe também
considerado branco, era, também forasteira.
Diante disso, repensei a forma de fazer a abordagem com os usuários. Busquei,
inicialmente, conhecer questões gerais da rotina da vida diária nas aldeias e distinguir alguns
elementos básicos de suas formas de organização, sem, entretanto, deixar de aproveitar as
oportunidades que se apresentavam para interagir com os moradores, para além da assistência
realizada junto à comissão. Assim, as abordagens de aproximação com os usuários indígenas,
pensadas anteriormente de forma mais objetiva com um roteiro prévio, tornaram-se mais
informais, por meio de conversas e escuta de relatos sobre a atenção à saúde e suas diversas
formas de conceber e tratar seus males. Cabe salientar, contudo, que o fato de não falar a
língua nativa constituiu uma limitação para essa interação, sobretudo, com os mais velhos.
51

enfermeiro da comissão contava com um documento que devia ser assinado por esse
representante como espécie de “atestado de permanência” da equipe na aldeia (NO.
17/02/2018).
Com menor nível de autoridade, o diretor da escola e o pastor da igreja também
são considerados figuras de liderança nas comunidades. Nos casos em que o capitão não se
encontrava presente na aldeia, eram eles que assumiam algumas responsabilidades, entre elas,
por exemplo, a autorização da visita da comissão (NO. 18/02/2018). No entanto, atualmente,
nem todas as aldeias contam com escola, mas uma grande maioria tem igreja de religião
evangélica, sendo esta uma mostra do grande impacto do processo de evangelização nessas
comunidades.

FIGURA 10 - Igreja evangélica aldeia Cumaray


Fonte: Acervo da autora

A maneira como as casas se encontram dispostas nas aldeias apresenta, quase


sempre, um padrão similar. A maioria delas é construída de madeira com telhado de palma ou
zinco e algumas poucas de cimento, organizadas uma ao lado da outra a modo de quarteirões,
chegando, inclusive, nas aldeias maiores (com mais de 200 habitantes) a conformar bairros.
Na época da realização das visitas, nenhuma delas contava com serviços de energia elétrica,
água potável, nem rede de esgoto. A água para consumo e utilidades diárias era obtida do rio
ou coletada da chuva, sendo posteriormente empregada sem nenhum tipo de tratamento. Daí a
alta prevalência de doenças de veiculação hídrica nos moradores desta zona.
52

FIGURA 11 - Casas aldeia Carpinteiro


Fonte: Acervo da autora

Além da visão panorâmica das comunidades, a incursão por alguns períodos de


tempo nas aldeias acompanhando a comissão permitiu a realização de observações nos postos
de saúde ali localizados. A distribuição dos postos na área rural foi determinada há alguns
anos, segundo critérios de acessibilidade e quantidade de população, por isso, na atualidade,
nem todas as aldeias dispõem destas unidades. Assim, das 27 aldeias e dois povoados
assentados ao longo da bacia do rio Guaviare, apenas sete contam com posto de saúde,
enquanto um povoado (Barrancominas) possui o único centro de saúde da área.
A estrutura física dos postos, no período da realização da pesquisa, apresentava
algumas variações. Os mais antigos eram feitos de madeira, enquanto alguns outros de
cimento, contando, usualmente, com um pequeno espaço de “recepção” (empregado também
para arquivo de documentos e armazenamento de medicamentos), um quarto para
atendimentos e procedimentos e outro para alojamento do técnico de enfermagem. Porém,
muitos deles apresentavam problemas de manutenção e não contavam com espaços
apropriados para a realização das atividades. Era tal a depredação de alguns que, em certas
aldeias, as instalações antigas encontravam-se abandonadas, havendo necessidade de
improvisar um espaço, geralmente, por meio do aluguel ou o “empréstimo” de alguma casa
para a realização dos atendimentos.
Por causa disso, a renovação da infraestrutura das unidades, como um dos eixos
propostos com o novo modelo de atenção (MIAS), era motivo de ampla expectativa. Contudo,
apesar da finalização das obras de renovação estivessem previstas para finais de 2017, apenas
em duas das aldeias visitadas o posto estava quase concluído, porém sem adequações para
começar seu funcionamento, enquanto em outras, a construção sequer havia começado.
53

FIGURA 12 - Interior: postos de saúde aldeias Arrecifal e Puerto Esperanza. Exterior:


posto de saúde aldeia Pueblo Nuevo
Fonte: Acervo da autora

Os primeiros contatos realizados com as equipes dos postos, constituídas por


auxiliar de enfermagem e gestor comunitário, ocorreram, quase sempre, por intermédio do
enfermeiro líder da comissão. Ao chegar a uma aldeia e antes do início das atividades, ele
usualmente dirigia-se a esta unidade para realizar uma espécie de “visita de monitoramento”.
Perguntava à equipe sobre o desempenho geral das atividades, sobre a disponibilidade de
medicamentos e insumos e a presença de dificuldades nos atendimentos ou na remoção de
pacientes. Dessa forma, determinava a necessidade de comunicar-se com o hospital – por
meio do rádio telefone do posto - caso encontrasse alguma novidade.
Devo reconhecer, no entanto, que, se de um lado acompanhar este profissional
tenha facilitado minha entrada nesses cenários, de outro, representou, em certos momentos,
uma desvantagem para minha aproximação com as equipes porque o papel de “supervisor”
exercido por ele, por vezes era projetado para mim. Por consequência, nas primeiras
conversas com o técnico ou o gestor comunitário, notava os esforços nos relatos de uma
“visão ideal” de seu trabalho cotidiano, aquela que, segundo eles, “a avaliadora” queria
escutar. Reconheço que para uma aceitação da minha presença de forma mais descontraída
54

para compartilhar as atividades diárias, com melhor compreensão dos objetivos propostos
para o estudo, o tempo de permanência nas aldeias acompanhando a comissão era um desafio,
uma vez que, na maioria dos casos, o tempo não superou três dias, limitando o convívio.
Desta forma, optei por acompanhar as equipes de cada posto em tempo integral,
para que, mesmo com uma permanência restrita fosse possível coletar a maior quantidade de
dados com a melhor qualidade. Assim, o tempo escasso foi compensado pela oportunidade do
número de equipes acompanhadas, o que me permitiu, afinal, respaldar descobertas e padrões
significativos (YIN, 2016) no trabalho cotidiano da APS nesta área rural, constituindo um
aprofundamento de dados que serviu de base para uma das categorias analíticas.
Conforme exposto, a experiência de acompanhamento à comissão de saúde
representou um período intensivo na pesquisa em campo. Depois de completar 30 dias de
viagem, de imersão total na área rural, percorrendo aproximadamente 450 km por rio,
regressamos à cidade de Inírida. Iniciava, então, outra etapa da coleta de dados, com
estabelecimento de novos contatos e planejamento para o trabalho a ser realizado junto à área
urbana.
Nas duas primeiras semanas, além da organização dos dados coletados na zona
rural, o tempo foi investido na busca por moradia. Por questões logísticas, fui morar na casa
de uma técnica de enfermagem, não-indígena, que exercia sua função há mais de 25 anos na
região. Essa opção, para além de resolver a questão da moradia, resultou na indicação de
pessoas estratégicas para a continuidade da pesquisa, bem como na ampliação de detalhes
relativos à atenção à saúde que era desenvolvida anteriormente.
As observações iniciais ocorreram no posto de saúde Paujíl, localizado na reserva
indígena do mesmo nome a 2 Km do centro da cidade. Essa reserva é integrada por oito
aldeias, com uma população, em sua maioria, formada pelas etnias Sikuani, Puinave e
Piapoco. Essa foi a primeira unidade reformada e estabelecida de acordo com a proposta do
novo modelo de saúde, que tinha, à época da coleta de dados, oito meses de funcionamento. A
infraestrutura era composta por áreas de serviços assistenciais (consultórios e recepção), um
espaço anexo para alojamento do pessoal, principalmente para o técnico de enfermagem e o
gestor comunitário, além de uma área específica, na parte externa do posto, com estrutura de
maloca para o atendimento do médico tradicional.
Essa construção e o posterior funcionamento da unidade suscitaram, inicialmente,
discussões entre lideranças indígenas e funcionários do governo do departamento. Para os
primeiros deveria haver maior oferta de serviços como a de um centro de saúde e não apenas
55

de posto com equipe mínima, considerando o número de habitantes na reserva. Em resposta a


esta petição, foram habilitados os serviços de odontologia, enfermagem e medicina,
adaptando-se o espaço de alojamento e refeitório do pessoal para funcionamento destes. Desta
forma, esta unidade era considerada por algumas pessoas “quase um centro de saúde” (NO.
25/03/2018).

FIGURA 13 - posto de saúde Paujíl


Fonte: Acervo da autora

Com maior disponibilidade de tempo, optei por realizar, logo nas primeiras
visitas, observações mais gerais sobre a rotina diária de funcionamento do posto. A recepção
dos usuários ocorria, geralmente, por intermédio da pessoa disponível na recepção ou do
gestor comunitário, sendo os horários de manhã os de maior demanda. Identifiquei que esta
unidade não acolhia, apenas, usuários indígenas, mas também não-indígenas que moravam
fora da reserva, ou inclusive, pessoas provenientes da Venezuela ou da região rural de
Vichada, que é outro departamento.
O acompanhamento das atividades da equipe deu-se inicialmente por meio das
consultas. Presenciei, durante várias jornadas, os atendimentos realizados pela enfermeira,
pelos médicos (generalista e especialista em medicina de família) e pelo dentista.
Posteriormente, dediquei-me a observar o trabalho cotidiano do técnico de enfermagem,
gestor comunitário e microscopista (os três indígenas) realizado tanto no posto de saúde,
quanto nas visitas domiciliares, estas últimas, às vezes, interrompidas por eventuais situações
apresentadas na unidade. Assim, durante um período de três semanas, realizei visitas diárias a
este posto, que facilitaram, ademais, uma interação próxima com os usuários. Diferente da
zona rural, a maioria deles eram jovens e adultos, os quais, além de falar sua língua nativa,
56

comunicavam-se em espanhol, facilitando a realização das primeiras entrevistas de acordo


com roteiro prévio estabelecido.
O próximo passo foi a Área de Promoção e Prevenção (PEP) do hospital. Esta
unidade encontra-se localizada em um prédio anexo à parte externa do hospital, o único em
todo o departamento. Por essa razão, apresenta uma alta demanda de pacientes, sendo um
traço característico as longas filas que permanecem constantes ao longo de grande parte do
dia. A estratégia para esse cenário foi a mesma implementada anteriormente no posto de
saúde. Assim, realizei visitas durante um período de três semanas, quando acompanhei as
consultas e atividades da equipe, composta por dois médicos generalistas, duas enfermeiras,
uma auxiliar de enfermagem e um gestor comunitário. Constatei que a realização de tarefas
prescritas e burocráticas, a oferta e cumprimento de uma agenda de consultas e a resolução de
demandas espontâneas, são algumas das questões rotineiras que caracterizam o cotidiano da
APS nesta zona urbana.
Nesse período fui informada da realização de um curso de treinamento para as
equipes de comissão multidisciplinar de saúde que aconteceria nas instalações do hospital. O
início do curso coincidiu com a finalização do acompanhamento das atividades no espaço de
PEP, pelo que tive ainda chance de participar integralmente de cada uma das sessões
realizadas durante 15 dias.
Minha intenção, além de conhecer os conteúdos do treinamento, era poder
interagir mais de perto com os profissionais integrantes das equipes, pois planejava participar
da comissão multidisciplinar, programada para o final do mês maio, que iria acontecer nas
comunidades do rio Inírida, outra importante bacia hidrográfica da região. Porém, questões de
ordem logística impactaram sobre a organização e a data de saída destas equipes, fazendo
necessária uma redefinição dos meus planos.
Todavia, a oportunidade de acompanhar este curso possibilitou-me apreciar
detalhes acerca da estratégia de organização das equipes e a distribuição das funções, além de
registrar impressões e expectativas dos profissionais, considerando que, para muitos – em sua
maioria provenientes de localidades de fora da região - esta seria a primeira vez que
participariam de uma comissão. Além disso, a atividade de encerramento do curso consistiu
em uma Brigada de saúde realizada na aldeia Cuayare, há duas horas por rio da cidade.
Assistir a esta atividade permitiu-me ainda corroborar o modo de operação da comissão
multidisciplinar, sobretudo em relação à logística e manejo do tempo nas atividades
assistenciais coletivas e individuais.
57

FIGURA 14 - Posto de saúde El Coco


Fonte: Acervo da autora

Por fim, as últimas semanas do trabalho de campo foram realizadas no posto de


saúde El Coco, na zona rural próxima a Inírida. Nesse cenário acompanhei o trabalho
cotidiano do técnico de enfermagem e do gestor comunitário, principalmente nas visitas
domiciliares. O convívio diário com os membros da equipe proporcionou uma maior
aproximação e conhecimento junto aos moradores das aldeias, além de estabelecer contato
com um médico tradicional da região, com quem mantive conversas sobre seu trabalho e o
significado da medicina tradicional para as comunidades.
Diante do exposto, os cinco meses de permanência em Guainía, além da
experiência direta com a vida cotidiana dos usuários indígenas e profissionais de saúde no
processo de construção da APS, como sinalizei no inicio deste capítulo, representaram um
processo de intensas reflexões. O conhecimento histórico e cultural, com o qual cresci e me
formei como enfermeira e pesquisadora, constituiu meu próprio olhar de mundo, aquele que,
depois do percurso do encontro e a interação com os outros, sujeitos de investigação e seus
olhares, transformou-se sobremaneira.
Saí do campo com certezas, mas também com muitos questionamentos, sendo
mais ciente do significado e das implicações da diversidade e da importância de assumir uma
posição reflexiva e, sobretudo, crítica no momento de analisar fenômenos em contextos
interculturais como o guainiano. Essa lente que norteou muitas das escolhas que fiz durante o
campo foi a mesma que influenciou meu olhar para a produção e análise dos dados
organizados nas categorias apresentadas a seguir, sem, no entanto, traduzir a completude das
experiências vivenciadas.
58

5 MERGULHANDO NOS MEANDROS DA ATENÇÃO PRIMÁRIA À SAÚDE EM


GUAINÍA

Neste capitulo serão apresentados e discutidos os resultados emergentes do


processo de análise, os quais foram organizados em duas grandes categorias cada uma
composta por quatro subcategorias:

Dos primeiros esboços da APS ao modelo


MIAS

A proposta do novo modelo de atenção:


concepções e mudanças
A atenção primária à saúde em Guainía: a
história do que foi e do que esta sendo
construído
Entre o rio e a floresta: o cotidiano da APS no
contexto rural

O epicentro das fronteiras: o cotidiano da APS


no contexto urbano

A compreensão da interculturalidade: o olhar


dos profissionais de saúde

Tensões e convergências nos (des)encontros


com a diferença
A interculturalidade no cotidiano da atenção
primária à saúde em Guainía
Procurando a cura: práticas e fatores que
influenciam a escolha de tratamentos

Estratégias de “articulação de saberes”: o


prescrito, o real e o esperado

FIGURA 15 - Categorias e subcategorias de análise.


Fonte: elaboração própria.
59

5.1 A Atenção Primária à Saúde em Guainía: a história do que foi e do que está sendo
construído

O processo de implementação da APS em Guainía não é um fato recente, vêm de


construções e aprendizagens prévias que têm alimentado muitas das práticas cotidianas
desenvolvidas hoje em dia, influenciando, inclusive, a assimilação das diretrizes trazidas pelo
novo modelo de atenção.
Dessa forma, a partir das quatro subcategorias que serão apresentadas, pretendo
fazer um delineamento da trajetória do cuidado dos serviços de saúde em Guainía que permita
compreender as bases que deram origem à APS na região, o contexto no qual surge a proposta
do novo modelo de atenção, e as práticas recentes que configuram a APS nos diferentes
cenários de atenção à saúde, tanto na área urbana, quanto na rural.

5.1.1 Dos primeiros esboços da APS ao modelo MIAS

Na interpretação dos dados, o componente histórico de como a APS vem sendo


configurada em Guainía, desde o início, constitui-se fator importante para muitas das
construções presentes nas práticas cotidianas atuais. Devido a alta rotatividade de
profissionais, apenas alguns dos participantes vivenciaram o cotidiano desde a fase inicial das
atividades e seus relatos constituíram-se fundamentais para reconstruir o trajeto histórico da
APS na região, até a atual proposta do MIAS.
Um participante-chave, com cargo administrativo, liderou o processo de
implantação da APS no antigo Sistema Nacional de Saúde (SNS) descreveu o que ele mesmo
denominou “os esboços da APS em Guainía”:

Com minha chegada ao Guainía [em 1984] tudo começou a se organizar com
o Sistema Nacional de Saúde (...) Esse sistema era piramidal, era o nível
nacional, o nível regional e o nível local. No nível nacional estava o
Ministério [da saúde] que formulava as políticas e desenvolvia alguns
programas a nível nacional, no nível regional, que era o estadual, estavam os
hospitais regionais e não existia a secretaria de saúde, mas os serviços de
saúde e o nível local que eram já os centros e postos de saúde. Aí com o
Decreto 056 de 1975 começou a desenvolver-se todo o esquema de saúde, o
que se chamou de Servicio Seccional de Salud. Nesse desenvolvimento
começaram a se conformar os esboços da atenção primária em Guainía, mas
não havia infraestrutura, não havia recursos humanos, não havia tecnologia
(Par.C3).
60

Dessa maneira, o desenvolvimento da APS no âmbito do SNS esteve, no início,


intimamente ligado à consolidação do Serviço Secional de Saúde - atualmente a Secretaria
Departamental de Saúde -, como órgão responsável pela gestão de saúde na região
(COLOMBIA, 1975). O fortalecimento da infraestrutura, tecnologia e formação de recursos
humanos foram objetivos iniciais:

Então o Servicio Seccional del Guainía começou a se desenvolver em dois


sentidos: por um lado a infraestrutura-tecnologia e pelo outro os recursos
humanos. Em infraestrutura começou-se a conseguir financiamento para
comprar equipamentos: computador, aparelho ultrassom e raio x e usinas de
energia (...) e pelo outro lado, começou-se a desenvolver os recursos
humanos, começamos a treinar os promotores de saúde e posteriormente
falamos com uma escola de auxiliares de enfermagem para que os
capacitassem e também mandamos pessoas para serem capacitadas como
técnicas de manutenção de equipamentos (Par.C3).

Assim mesmo, configurou-se a rede de prestação de serviços na região. Seguindo


os critérios de acessibilidade e distribuição da população, a rede foi composta pelo hospital na
zona urbana, alguns postos de saúde distribuídos ao longo dos quatro eixos fluviais: Guaviare-
Atabapo, Inírida, Guainía-Rio Negro e Isana-Cuyarí, e três centros de saúde. No seu relato, o
participante comentou o processo de reestruturação da infraestrutura e fortalecimento de
tecnologia apropriada ao meio:

Reestruturou-se toda a rede de atenção primária que eram o hospital, os


centros e os postos de saúde (...) começou-se a desenvolver o hospital...
começou-se a modernizar, a trazer tecnologia da época e também toda a rede
(...) quando eu cheguei já haviam uns postos de saúde, digamos, como
malocas, sim? Então se fez toda a infraestrutura na tecnologia que eles [os
indígenas] queriam, que era um posto com teto de palma, mas com
construção de madeira... e se construíram ao longo dos rios principais da
região (...) e toda a rede foi fornecida com uma voadeira9 e um motor e os
postos tinham promotor ou auxiliar de enfermagem e medicamentos
(Par.C3).

Nesse sentido, o funcionamento da rede de serviços esteve, desde então,


centralizado no hospital de Inírida, na capital do estado, sendo este a principal referência da
gestão de processos para todos os pontos integrantes da rede (BERNAL et al., 2014). Além
disso, a organização das equipes de trabalho constituiu outro fato importante do processo de
estruturação da APS:

Os postos de saúde eram operados pelos promotores de saúde e os auxiliares


de enfermagem (...) se o posto tinha auxiliar não tinha promotor, às vezes

9
Voadeira é a forma coloquial de se referir a um bote pequeno de metal que funciona com motor.
61

coincidiam os dois, mas, fundamentalmente, os postos grandes se


coordenavam com auxiliar de enfermagem e nos mais distanciados ou
aqueles em que não havia quase consulta existia um promotor que era da
mesma comunidade (...) eles faziam visitas em sua voadeira pelas zonas
vizinhas. (...) No centro [de saúde] geralmente existia um médico, um
dentista, um enfermeiro e um bacteriologista (...) sempre existiu a
dificuldade de que os médicos vinham pelo rural10, os que ficavam, ficavam
contratados, mas no hospital. Então era muito difícil que o médico
permanecesse muito tempo nos centros de saúde, ele geralmente era do nível
do hospital, o mesmo que a enfermeira, sim? a enfermeira ia nas comissões,
mas não tinha dedicação integral, tinha enfermeiras nos centros de saúde e
no hospital, mas nos postos de saúde era difícil (Par.C3).

Conforme exposto, a definição da composição das equipes obedeceu ao nível de


demanda apresentado nos diferentes pontos da rede de serviços e à disponibilidade de pessoal
de saúde. Assim, os postos de saúde localizados nas aldeias eram coordenados por técnicos de
enfermagem ou promotores de saúde, enquanto os centros por equipes multiprofissionais.
Segundo Suárez (1998) a formação de promotores de saúde em territórios com
população indígena estabeleceu-se na Colômbia, como resposta às recomendações expedidas
na declaração de Alma-Ata. O objetivo principal era assegurar a permanência de um agente
indígena nas comunidades com treinamento em atenção primária, para realizar atendimentos
básicos em saúde, sem necessidade de encaminhamentos a outros níveis de atenção
(SUÁREZ, 1998; GUHL, 2018).
Entretanto, como pode ser percebido no relato acima, a alta rotatividade constituiu
uma característica decisiva na distribuição do pessoal de saúde nas unidades desde o início. A
isto, somou-se a escassez de recursos humanos, que repercutiu na designação de funções além
das permitidas pela política nacional. Uma auxiliar em enfermagem com mais de 25 anos na
região descreveu assim a dinâmica de trabalho em um posto de saúde à época:

Nós, os auxiliares antigos que cobríamos as áreas dos rios, estávamos


preparados para atender partos, para fazer suturas, imobilizações, trasladar
os pacientes de lá, se alguém se fraturava, se caia de uma árvore, alguma
coisa, devíamos maneja-lo, muitas vezes não tivemos nem sequer um rádio
para comunicar-nos (...) Era disponibilidade de 24 horas, eu devia estar no
posto o tempo todo, e se saía devia falar com a comunidade (...) também
estávamos autorizados a manejar os antibióticos (...) e já posteriormente,
quando nos deram rádio de comunicações, fazíamos interconsultas com os
médicos daqui [hospital de Inírida] (AE9).

10
Segundo o Ministerio de Salud y Protección social o Rural é o exercício de uma profissão de natureza social,
através da qual os profissionais recém-formados de programas de ensino superior na área da saúde (enfermagem,
odontologia, bacteriologia e medicina) contribuem para a solução de problemas de saúde no campo da
competência profissional, pelo tempo de um ano, sendo um dos requisitos para obter a carteira profissional.
62

A rotina de trabalho era caracterizada por atendimentos curativos, emergenciais e


administração de medicamentos sob a supervisão, quando possível, de médicos por meio de
rádio-telefone, mantendo uma disponibilidade permanente para assistência às demandas.
Situação similar foi reportada no estudo de Diehl e Follmann (2014) sobre o
trabalho dos auxiliares e atendentes de enfermagem na Terra Indígena Xapecó, no Brasil, os
quais, antes da implantação do Subsistema de Atenção à Saúde Indígena em 1999, assumiam
responsabilidades maiores dada a escassez de recursos humanos nos povoados distantes e/ou
indígenas. Assim, era frequente “funcionários sem qualificação alguma na área prestar
atendimentos de primeiros socorros ou até de maior complexidade, devido à situação de
isolamento no campo” (BRASIL, 2002, p. 8).
Outra estratégia implementada para desenvolver as ações de APS, desde seus
inícios em Guainía, foi a conformação das chamadas comissões multidisciplinares de saúde
(CMS). Segundo relato, essa iniciativa foi trazida de uma experiência vivenciada por ele na
região de Vaupés para substituir o programa de assistência, até então prestado por meio de
uma grande embarcação, que apresentava algumas dificuldades:

Nós fazíamos atenção primária, desde o período que lhe digo, das comissões
multidisciplinares, (...) essa questão não estava tão clássica sim? quando eu
cheguei [1984] existia um programa que era com um navio, muito custoso e
levava toda uma equipe sim? um, dois, três meses, pelo rio, então qual era o
problema? primeiro, o custo, porque implicava motorista, alimentos, enfim;
segundo, quando o navio passava pelo rio, não podia entrar pelas derivações
dos rios pequenos (...) então não tinha sentido movimentar uma embarcação
tão imensa com todos os recursos, além disso, já obsoleta, porque não
funcionava bem e não ia por todos os rios... então esse experimento
terminou-se nos anos 1980. Daí se fez o esquema da comissão
interdisciplinar (...) Esse modelo eu o trouxe [da região] do Vaupés... lá
havia um posto de saúde, ia à comissão e o abastecia e voltava... foi uma
experiência muito boa que tivemos com os holandeses trabalhando em
atenção primária (Par.C3).

As CMS consistiam, na época, em equipes integradas por médico generalista,


enfermeiro, técnicos em enfermagem, dentista, bacteriologista e promotor de saúde que se
deslocavam periodicamente às aldeias localizadas nas ribeiras dos rios para realizar ações
concentradas, principalmente, em atendimentos individuais de doenças, imunizações e
educativas:
As comissões eram multidisciplinares, ia médico, ia dentista, bacteriologista,
enfermeiro chefe, auxiliar e um promotor, que era levado nessa época para
fazer a tradução para pessoas que não sabiam se comunicar [em espanhol]...
então, íamos todos, ia a gente de vacinação inclusive aí mesmo (AE9).
63

A conformação destas equipes, segundo Suárez (1998), foi implantada nas regiões
da Amazônia colombiana, principalmente em Vaupés e Amazonas, desde a década de 1980.
As também chamadas de correrias, tinham o propósito de prestar, ocasionalmente, serviços
médicos, odontológicos e de vacinação diretamente nas aldeias, porém sem nenhuma
articulação com as comunidades e as reais necessidades da população.
Essa estratégia pode-se dizer originou na mesma que incentivou a criação das
Equipes Volantes de Saúde, no Brasil, em 1967, baseada, principalmente, no modelo
campanhista de assistência. Segundo Garnelo (et al., 2003), essa ação fez parte das políticas
setoriais contidas no indigenismo para a atenção à saúde dos grupos aldeados, a qual dirigia-
se, primordialmente, para o atendimento da demanda espontânea de indivíduos doentes.
Entretanto, enquanto ocorriam esses primeiros avanços na estruturação dos
serviços de APS em Guainía, começaram a ser implantados, na primeira metade da década de
1990, as novas diretrizes trazidas pelo Sistema Geral de Seguridade Social em Saúde
(SGSSS):

Dai, já passamos do Sistema Nacional de Salud ao Sistema General de


Seguridad Social en Salud, que começa desde 1993 até nossa data (...) esse
sistema é quase privatizado, onde quase não está envolvido o Estado, ao
ponto que, por exemplo, as ações de saúde pública caíram, porque isso
dependia da EPS (Entidades Promotoras de Salud) e as EPS não as faziam.
Por um lado, as faziam o hospital e por outro lado a EPS, então não havia
integração nisso e os recursos eram manejados, dando palestras de saúde
sexual e esso não era o objetivo (Par.C3).

Evidencia-se a nova lógica de gestão e organização da assistência em saúde,


introduzida com o SGSSS, que ocasionou impactos negativos no desenvolvimento das ações
de APS que até então começavam a formar-se. Tal como ocorreu em outras regiões do país, a
fragmentação da prestação de serviços ocasionou desarticulação entre as ações individuais,
implementadas pelas recém-criadas EPS, e as coletivas, nas mãos do Hospital e da Secretaria
Departamental de Saúde (VEGA; ACOSTA, 2014).
Além disso, a incorporação das EPS (públicas e privadas), para a gestão do
cadastramento dos usuários e a contratação das instituições prestadoras de serviços de saúde
(IPS), trouxe dificuldades para o acesso aos serviços conforme relato da liderança indígena:

(…) o problema foi quando entraram as EPS... aqui existia Caprecom e


Mayamás, pois então se dividiam: ‘você para cá’ se fosse seu marido, ‘você
que é a mulher vá para este lado’, assim dividiam o núcleo familiar e
geravam mais problemas de burocracia (...) chute a bola pra lá, pra cá. Às
64

vezes freavam pela falta de um crachá de afiliação ‘você não está afiliado, vá
consiga o crachá’... isso era uma brincadeira (Par.C1. Puinave).

A presença de diferentes EPS no território, em cumprimento ao princípio de


competência regulada do SGSSS, impôs uma prática de seleção adversa, prejudicando a livre
escolha por parte dos usuários e o cadastramento do núcleo familiar em uma mesma entidade
(COLOMBIA, 2017). Como citado por Hernández e Vega (2001) e López (2016), as EPS não
levaram em consideração as práticas tradicionais dos povos indígenas no planejamento e
desenvolvimento dos programas em saúde, à exceção da EPSI Mayamás, que, sem embargo,
contratava os serviços de saúde com uma IPS que não tinha presença em todo o departamento
(BERNAL et al., 2014).
A essa questão somou-se a instabilidade financeira do hospital de Inírida, que
provocou uma crise em toda a rede de serviços de atenção, vendo-se agudizada na primeira
década de 2000. Essa situação obrigou à intervenção administrativa do hospital por parte da
Súper Intendencia Nacional de Salud11 em 2009:

Depois com tantas mudanças administrativas que houveram no hospital,


decidiram que o hospital ia ficar interditado por parte do Ministério [da
Saúde] (...) Esteve sob controle por uns nove anos, e a partir daí as coisas se
complicaram, já não voltou a ser igual, já se atrasaram os pagamentos de
salários, já vieram muitos problemas... muitas greves, praticamente era como
atendendo a meia máquina (AE9).

Como consequência desse processo, apareceram dificuldades, desde vínculos


trabalhistas precários, que prejudicavam a permanência dos profissionais de saúde na região,
até a deterioração da infraestrutura e escassez de insumos e medicamentos nas unidades de
saúde:

(…) Aos que trabalhávamos no hospital antigo nos pagavam a cada três
meses um salário só, e a gente já estava endividada, e a gente trabalha assim,
com preguiça, porque já não tinha nada que comer na sua casa e havia muito
corrupção (...). As médicas que vinham para cá eram de fora [da região], não
permaneciam porque não lhes pagavam e não havia com que trabalhar (AE6.
Puinave).

Nessa época estavam caídos os postos e os centros de saúde, totalmente


caídos, acabados, como eram de tabuas tudo estava deteriorado... aí estava o
promotor [de saúde] com os familiares morando, mas às vezes permaneciam
aqui [na cidade] perambulando porque não tinham nada lá [nos postos de
saúde], não tinham medicamentos, nada... e lá também as pessoas não os

11
A Súper Intendencia Nacional de Salud é o órgão responsável pela inspeção, vigilancia e controle no SGSSS.
65

queriam ‘você que vem a fazer cá sem medicamentos, vá embora, é melhor’,


lhes diziam (Par.C1. Puinave).

A isso acrescentavam-se problemas com relação às casas de acolhida para os


usuários provenientes da área rural e irregularidades na frequência de deslocamentos das
CMS:

Nós [indígenas] não sabíamos se havia direito a hospedagem nas casas de


acolhida, nada, nada, isso era para as pessoas trazidas dos rios, era assim
como todo mundo cego. As comissões só aconteciam esporadicamente, uma ou
duas vezes ao ano (Par.C1. Puinave).

Quando o hospital estava interditado fazíamos comissões, uma por ano, por
rio, mas não tínhamos o foco de atenção integral, nem o fundamento em
promoção e prevenção. Na realidade a gente ia cegamente, a gente saia
recém-formado a atender as comunidades, então era difícil (...) Não se
contava com gestores [comunitários], não se contava com auxiliares em
algumas aldeias, muitos dos pacientes estavam sem tratamento, não se
contava com absolutamente nada (MED1).

Frente a esse panorama e seu impacto desfavorável nos indicadores de saúde da


população, o MSPS junto com os entes territoriais, empreenderam medidas que concluíram,
afinal, na privatização do hospital e na consolidação da proposta do novo modelo de saúde:

O novo governador [representante do governo do Estado de Guainía] com a


Secretaria Departamental de Saúde iniciou esse processo: fortalecer um
modelo de saúde, para ver como podia mudar esse sistema que estava...
porque era que o hospital todavia estava interditado, então senão havia
mudança, era muito difícil para o governo [nacional] investir recursos pra
melhorar a atenção à saúde (Par.C1. Puinave).

O MIAS surge, então, em resposta à crise na saúde, enfrentada pela região por
mais de uma década, tendo por meta a melhoria da qualidade de vida e bem-estar da
população, tomando como eixo estruturante a APS com enfoque intercultural centrada na
família e na comunidade, como já exposto anteriormente.
A trajetória histórica apresentada, apesar de mostra que as primeiras iniciativas no
âmbito do antigo SNS eram concentradas na estruturação da rede de serviços, conformação e
capacitação do talento humano e na formulação de estratégias para atenção às comunidades,
representando avanços no processo de estruturação da APS na região, não conseguiram, na
prática, superar o modelo assistencialista baseado na doença.
Além do mais, mostrou-se evidente como os esforços por consolidar uma atenção
mais consciente com os atributos da APS viram-se truncados pela lógica da assistência
66

introduzida pelo SGSSS em 1993, que ressaltou ainda mais o enfoque curativista dos serviços
prestados na região.

5.1.2 A proposta do novo modelo de atenção: concepções e mudanças

A experiência de implementação do novo modelo de atenção em Guainía


começou em maio de 2016, marcando assim o início de enormes mudanças e desafios em
nível “macro” sistêmico, no tocante às condições técnico-gerenciais para a incorporação das
novas orientações impostas, quanto em nível “micro”, no cotidiano do fazer em saúde
(SHIMIZU; ROSALES, 2009). Nesse processo, apareceram diferentes concepções e
mudanças percebidas pelos usuários e profissionais de saúde, a respeito da incorporação do
MIAS na região.
Alguns profissionais de saúde manifestaram que, inicialmente, não tinham
conhecimento sobre o novo modelo de saúde:

Pois quando eu cheguei aqui (inicio de 2016) desde sempre se falava do


MIAS e do MIAS... mas, nós o tínhamos como um fantasma, sim? como
algo legendário que existe mas não se sabe como, nem onde, nem nada
(DEN2).

Eu antes pensava que era uma sigla de um livro ou algo assim [o MIAS] (...),
pois eu escutava que todo o mundo falava disso e eu ficava como ‘hummm?,
mas o que que isso?’(E4).

Curiosamente, como colocado no último fragmento acima, outra parte dos


participantes expressaram não conhecer o acrônimo “MIAS”, mas sim ter escutado acerca do
modelo de saúde:

Não sei o que é MIAS (...) Pois agora o que eu tenho escutado que está, é o
novo modelo de saúde sim (AE8).

MIAS, MIAS… disso nos falavam por lá, quando tivemos a integração, me
parece que é um... é como um... algo assim como um projeto, não sei como
será, mas quase não sei na verdade (...) do novo modelo tenho escutado, o
que falava um companheiro (AE6. Puinave).

Infere-se que isto se deve ao fato de alguns profissionais de saúde, em sua maioria
assistenciais, não terem recebido treinamento sobre o modelo de atenção nas primeiras fases
de sua implementação (NO. 23/04/18), ou, como afirmam os participantes a seguir,
67

aparentemente as palestras sobre o tema eram realizadas por delegados do MSPS ou pelos
entes territoriais sem transmitir informações precisas:

(…) o outro é que vinham de fora [do MSPS] aos corregimentos para
explicar sobre isso do MIAS e os auxiliares e os gestores ficavam doidos
com isso, porque não sabiam como explicar (E1. Puinave)

A alguns [profissionais] como o de odontologia lhes deram a capacitação do


MIAS, mas foi algo que na realidade, no momento não se lograva como
contextualizar muito, somente depois que ingressei no cargo administrativo
que comecei a mergulhar um pouco mais, a ler, a buscar acerca disso,
comecei a ver mais notícias acerca do modelo (...) pois eu mesmo, de
maneira autônoma, comecei a conhecer um pouco mais (DEN3).

Apesar de que a política preconizava o estabelecimento de um plano de educação


permanente no âmbito do modelo, que incluísse a formação de competências em saúde
intercultural, diálogo de saberes, liderança e gestão da mudança (COLOMBIA, 2015b), não
foi observado, no período da coleta de dados, tal plano para todos os profissionais,
priorizando, por enquanto, os médicos em formação em medicina de família ou aqueles
envolvidos em gestão (NO. 23, 24 /04/18).
Diante disso, a maior parte da informação que os profissionais de saúde possuíam
acerca do MIAS provia do que “tinham escutado” ou de aquilo “pesquisado por vontade
própria”, pelo que, nos discursos dos participantes, a compreensão do modelo apresenta
diferentes nuances.
O MIAS é associado a uma série de diretrizes formuladas para melhorias da saúde
da população, relacionado, especificamente, em aproximar os serviços de saúde e o acesso a
tecnologias das pessoas e comunidades:

O modelo trata de ver a necessidade de um paciente e aproximar-lhe a


tecnologia, a saúde, o recurso humano até onde o paciente está, sem ter que
levar o paciente até certos lados (MED3).

O modelo é, o que eu tenho escutado agora no hospital, é dar um melhor


serviço aos usuários, ou seja, também dar às pessoas afastadas da cidade um
apoio. Digamos que uma comunidade fique muito afastada, então vem o
apoio de médicos, enfermeiros, eles percorrem os rios, então a ideia é que
eles visitem as comunidades que não podem chegar até um posto de saúde
próximo. Isso é o que querem implementar com o modelo (AE8).

Essa visão é coerente com um dos componentes do modelo referente ao eixo de


intervenção na prestação de serviços, que propõe o desenvolvimento de atividades mínimas a
68

serem executadas pelas equipes multidisciplinares para a gestão integral do risco


(COLOMBIA, 2015b). Nesse sentido, a proposta é percebida como uma forma de favorecer o
atendimento à saúde centrada na família e na comunidade, levando os serviços mais perto da
vida das pessoas, ou seja, entendendo-a a partir de seu ambiente físico e social (TOSIN et al.,
2015).
O modelo relaciona-se, também, com o fortalecimento da APS e o enfoque de
uma atenção centrada na prevenção da doença e a promoção da saúde:

O MIAS… pois como suas siglas dizem, é um modelo integral de atenção,


que busca primordialmente, a meu ver, a promoção da saúde e a prevenção
da doença por meio das características próprias de cada entorno (DEN2).

(…) Pois o que eu tenho entendido mais ou menos é sobre a atenção


primária, como isso se estava perdendo muito, então é como voltar a
recuperar tudo isso da prevenção e promoção da saúde (E4).

Evidencia-se para os profissionais a aposta pela reorientação do modelo


assistencial voltando o foco para a APS, que, como referido no último fragmento acima,
considerava-se “perdido” por conta da predominância do enfoque curativista e centrado na
doença, que até o momento, tinha orientado a assistência e organização dos serviços de saúde.
Nessa mesma linha, a integralidade é resgatada por alguns profissionais sendo
propósito fundamental do MIAS:

É um modelo que procura assegurar ou gerar atenções integrais em todos os


âmbitos da saúde nas comunidades, sobretudo, nas regiões rurais afastadas,
brindar uma atenção não somente individual, mas também comunitária, com
hábitos e estilos de vida saudáveis (DEN4).

Pois como o nome mesmo o diz é um modelo integral... pois é importante


porque também fala sobre os determinantes sociais, então abrange não
somente a pessoa, porque a pessoa é integral, tem sua família, tem todo o
que o rodeia... e o cuidado, que deve ser integral (...) Para mim abrange
desde a promoção até o caso em que o paciente viva um processo de doença,
o diagnóstico, o tratamento, ou seja, desde o primeiro que é a atenção básica
até a atenção final (E2).

Desta forma, reconhece-se que APS enquanto estratégia reestruturadora das ações
e serviços de saúde no âmbito do modelo, deve, idealmente:

Transpor a visão fragmentada do ser humano, para uma compreensão


integral na dimensão individual, familiar e coletiva, ou seja, o resgate da
prática generalista, onde a compreensão do processo saúde-doença a que
estão expostos os indivíduos passa a ser pensada de forma mais ampla,
69

segundo a realidade local, comunitária e familiar (COSTA et al., 2009, p.


115).

Entretanto, na hora de extrapolar essas questões para a realidade vivenciada nos


serviços os participantes levantaram alguns questionamentos. Embora, identifiquem o MIAS
como um “piloto”, ou, conforme referido por um participante em conversa informal, “um
modelo que se está provando para ver como funciona” (NO. 26/03/18), na perspetiva de
alguns profissionais a concretização da proposta na prática considera-se ainda complexa:

Na realidade, para mim o MIAS é um documento que embora muito bom, é


bastante utópico nas condições atuais do departamento. Se se quer aplicar o
MIAS aqui ou valida-lo, tem que haver muita vontade política e econômica,
sim? (...) não vou negar que o novo modelo de saúde em Guainía tem uma
vantagem quanto aos outros departamentos do país, mas para chegar a
cumprir o MIAS como tal, acredito que ainda falta muito por fazer, sim?
Faltam outras coisas por articular e por melhorar (DEN2).

A gente vê que, por exemplo, as mulheres grávidas chegam, é


impressionante, e nunca tiveram nenhum controle pré-natal, mas elas vêm [à
consulta com dentista] porque lhes dói um dente, e a gente lhes diz ‘senhora
você tem tido algum controle?’, ‘não’. Não é que as grávidas são prioritárias
dentro do modelo? onde está a integralidade dessa mulher grávida?, onde
estão seus controles? onde estão suas consultas? Nesta área assistencial
ainda estamos muito divididos, trabalhando cada um por seu lado, então não
se alcança essa integralidade do modelo (DEN3).

Nota-se que aspetos relacionados à “vontade” política e económica para o alcance


dos objetivos propostos foram trazidos como preocupação pelos profissionais, além de
citarem casos em que o enfoque integral das ações, promovido pelo modelo, vê-se
prejudicado pela fragmentação presente na organização dos serviços. Vale enfatizar, que,
como mostram Viegas e Penna (2013), a prática da integralidade exige uma atuação
inter/transdisciplinar para garantir a assistência integral e resolutiva, que não consegue ser
efetivada na persistência de barreiras comunicativas entre as equipes multidisciplinares.
Contudo, tanto usuários como profissionais de saúde sinalizaram mudanças
associadas à implementação do modelo que à época da pesquisa em campo operava há dois
anos:

O único que a gente vê dentro do departamento, que é bom com o modelo,


foi reformar esses postos de saúde que antigamente não existiam, isso era um
monte de troncos, ao reformá-los pois suposto é claro! a gente já percebe
como as pessoas estão curtindo ser atendidas em uma parte melhor e não
como antes (E1. Puinave).
70

Então este posto está funcionando, vão ser dois anos. Antes estava aquele de
lá, um velhinho (...) O posto mudou sim, porque primeiro que tem luz 24
horas, há permanência dos funcionários, antigamente a pessoa que atendia ia
embora, passava muito tempo de folga, agora permanece sim [no posto]
(U12. Piapoco).

Mesmo sendo fatores ainda não concretizados para todas as unidades de saúde, a
renovação da infraestrutura e a permanência do pessoal, principalmente nos postos, foram
destacados como parte das conquistas alcançadas com o MIAS. Assim mesmo, a implantação
das chamadas rotas da saúde, consistentes em embarcações dispostas para realizar
percorridos e remoção de pacientes pelos principais rios da região, representou benefícios
para alguns participantes:

Tenho visto que este modelo tem melhorado as coisas, porque a rota [de
saúde] sempre vai a todos os rios. Ao rio Guaviare principalmente às sextas,
por aqui pelo Inírida vai às terças (...) eles têm um dia específico para ir
buscar aos doentes e para auxiliar dos postos (AE6. Puinave).

Sempre tem mudado muito, porque por exemplo, por aqui [rio Guaviare],
antes não tínhamos ambulância, para a maioria das comunidades que moram
pra cá, pelo rio, e agora neste momento há uma rota, que pelo menos vai às
comunidades para ver o que está acontecendo às pessoas (U11. Puinave).

Uma parte dos profissionais de saúde ressaltou alguns aspetos relacionados com a
gestão do modelo, relacionado às melhorias de vínculos trabalhistas e a designação de uma
única EPS (chamada Coosalud) para filiação dos usuários em toda a região:

Através disso que está agora, o modelo, vi um pouco de mudança na


organização, e no pagamento também. Pelo momento mudaram de quando
estava o anterior hospital, que nos deixava até três meses passando fome,
cada três meses nos pagavam o salário, ao contrário com esta empresa de
agora estão sendo pontuais no pagamento (MIC 1. Curripaco).

Antes existia Cafesalud, Mayamás, Caprecom e outro... então o modelo


como tal acabou essas outras EPS’s, isso foi bom, e agora há uma única EPS,
um único assegurador que é Coosalud, para que não haja essa rivalidade e
que não tenham escusa para que não lhes deem autorizações aos pacientes ou
a prestação do serviço de saúde como tal (BAC2).

Cabe lembrar que este último aspecto constituiu um dos componentes


diferenciadores do MIAS para Guainía, implicando uma justificativa baseada, principalmente,
no alto nível de dispersão populacional que fazia inoperável a competência regulada entre
distintas EPS. Nesse sentido, concordando com os achados da avaliação do modelo realizada
71

pelo DPN, a presença de uma única EPS no território foi apreciada como destaque do MIAS,
contribuindo para diminuir, em parte, as barreiras de acesso aos serviços (COLOMBIA,
2017).
Em contrapartida, opiniões antagônicas apareceram apontando poucos avanços ou
insatisfações com a implementação da proposta:

Não se tem visto muita mudança boa desde que começou o Coosalud [EPS
do modelo]. Supostamente eu tinha escutado por aí que o Coosalud ia
melhorar, que não sei que mais, mas pelo visto não, ou seja, não temos visto
melhoria para nada, tem piorado, digo eu, porque antes quando tinham as
Mayamás ou as outras, a gente ia e o atendiam, claro! digamos que lhe
pediam autorizações e isso, mas a gente era atendida na hora, mas agora não,
agora é mais devagar (U16. Curripaco).

(...) que o modelo era melhor? também não. Ou seja, aqui todos falam bem,
mas se continua tendo muita dificuldade. Agora vejo mais difícil a cada dia o
que são as comissões, já estamos em junho e até agora está saindo a primeira
comissão para o rio, quando deveria ter saído ao princípio do ano, ou seja,
não se cumpre com o que se prometeu (AE9).

De minha parte eu sinto que tem melhorado pouco, porque o auxiliar está
presente no posto [de saúde], qualquer coisa ele nos dá a informação... mas o
problema é que ainda nos faltam os medicamentos, então não serve para
nada (U14. Cubeo).

Digamos que a falha do modelo tem sido que o componente intercultural não
tem sido implementado, e essa é a base do modelo, porque esse componente
intercultural digamos que embora esteja escrito nos documentos, não está
operando na realidade, ou seja, não tem mudado em nada nesse sentido
(BAC1. Puinave).

Evidentemente, as críticas aludem a dificuldades no modo de gestão e organização


dos serviços, apontando a fragilidades no potencial para promover mudanças positivas, ou
esperadas, nas práticas assistenciais e, até mesmo, na efetivação do componente intercultural
como estratégia fundamental do modelo. De fato, tal inconformidade pode se resumir no
comentário de um participante ao expressar que “o panorama da atenção à saúde em Guainía
complicou-se desde que começou o modelo” (NO. 30/04/18).
Uma explicação possível para essa divergência de opiniões relaciona-se com a alta
expetativa gerada nos primórdios da inserção do modelo, especialmente com a satisfação das
demandas acumuladas, sendo os avanços conquistados até o momento ainda insuficientes para
suprí-las. Neste ponto, é preciso considerar que a construção de modelos de atenção constitue-
se em um processo inacabado, dinâmico e permanente (ESMERALDO et al., 2017), sendo
72

típico nas primeiras fases de implantação a presença de traumaismos e resistências, além do


mais por se tratar de um piloto, dado que:

A implementação do MIAS foi pensada para ser realizada de forma


gradativa e flexível, isto é, sem um calendário fixo de atividades
predeterminadas a realizar num dado prazo. A gradatividade e flexibilidade
consideram-se apropriadas para um piloto pois justamente a natureza do
mesmo é experimentar algo que não tem sido feito antes. A dificuldade da
gradatividade, no entanto, é que distintos atores têm a expectativa de que
seus temas de interesse sejam abordados com prontidão, e quando isto não
acontece, gera-se frustração (COLOMBIA, 2017, p. 202. Tradução nossa).

Nesse sentido, consoante Fertonani (et al., 2015), a conformação de um dado


modelo assistencial pode implicar, no cenário micro de trabalho, a ocorrência de disputas
entre interesses de diferentes sujeitos. Concorda-se com os autores em que, é na arena de
interesses construídos no cotidiano dos serviços de saúde, que define-se, afinal, o desenho do
modelo assistencial, como veremos nas subcategorias seguintes.

5.1.3 Entre o rio e a floresta: o cotidiano da APS no contexto rural

Com a implantação do novo modelo, a rede de serviços de saúde em Guainía


continuou preservando uma estrutura hierárquica de complexidade crescente. Todavia,
diversos são os matizes que permeiam o cotidiano da atenção em saúde nos distintos cenários
da rede, onde ela acontece no contexto rural, e que apresenta contrastes com o contexto
urbano.
No contexto rural, as ações de APS atualmente são executadas por equipes
intramuros, que permanecem realizando atenção médica, curativa e preventiva, nos postos e
centros de saúde, e por equipes extramuros, que executam ações individuais e coletivas com
visitas periódicas às aldeias por meio das comissões multidisciplinares de saúde. Os postos de
saúde são coordenados por um auxiliar de enfermagem e um gestor comunitário,
encarregados da atenção na aldeia onde se localiza o posto, além de terem sob sua
responsabilidade uma área composta pelas aldeias próximas. Nesse cenário, o cotidiano de
trabalho é caraterizado pela demanda espontânea de usuários, a resolução de requerimentos
específicos (assistenciais e logísticos) e a dinâmica de trabalho em equipe. Questões que,
como veremos, são permeadas pela própria dinâmica cotidiana das aldeias.
73

Ainda que os técnicos de enfermagem manifestem desenvolver suas atividades em


um horário previamente estabelecido, a maioria deles mantêm uma disponibilidade de 24
horas:
Eu trabalho de 7 às 12h e de 2 às 6h da tarde. Sábado e domingo... No
sábado de 7 da manhã às 2 [da tarde] e daí para frente já é só urgência.
Domingo, urgência e as segundas que são feriados urgências, mas igual, eu
praticamente moro aqui [no posto de saúde], me chegam [os pacientes] a
qualquer hora e eu os atendo... praticamente eu trabalho aqui as 24 horas
(AE8).

Entende-se que por não serem pessoas oriundas da aldeia, estes profissionais
fixam residência com suas famílias nas instalações do posto, o que tem feito com que os
membros da comunidade procurem por atendimento em qualquer horário do dia, sendo os
motivos comuns de consulta: gripes, dores de cabeça, diarreias, dores no corpo, entre outros.
Todavia, uma situação registrada durante a pesquisa de campo faz pensar que essa
questão de “morar no posto” tem repercussões para além dessa demanda espontânea de
usuários. Durante a trajetória junto à comissão de saúde pelo rio Guaviare, visitamos o posto
de saúde na comunidade da Unión. Fomos recebidos por uma auxiliar de enfermagem que nos
mostrou as instalações, que era uma casa adaptada para a realização dos atendimentos.
Atuando no local há dois anos, informou estar terminando a pintura e reformas nas instalações
porque para ela “o posto era sua casa” (NO. 27/02/18).
É fato que mesmo com a previsão de vigência do MIAS e as reformas propostas
dos postos da região de acordo com o mesmo desenho arquitetónico, durante o período de
coleta de dados, muitos deles continuavam funcionando nas instalações antigas ou em espaços
alternativos (geralmente casas alugadas) devido a atrasos na renovação da infraestrutura. Daí
que alguns auxiliares, geralmente aqueles que já atuavam por um tempo prolongado, se
apropriaram desses espaços tornando-os como “seus” (NO. 25, 27/02/18).
Além disso, o fato de “morar no posto” faz com que as questões rotineiras de
trabalho desses profissionais se juntem com as de sua vida mesma:

Então pelas manhãs, eu vou e os visito: ‘como estão?’, tomo o café da


manhã com eles, falo um momento com eles e venho para cá [para o posto].
E à tarde fico aqui. Também se tem um paciente que não pode movimentar,
a gente tem que ir visitá-lo, então eu vou onde eles estão, eu gosto de estar
com eles (AE8).

Isso mostra que muitas das ações realizadas pelos auxiliares no posto estão ligadas
à dinâmica cotidiana vivenciada na aldeia. O convívio diário facilita um espaço propício de
74

socialidade, no qual o potencial cotidiano se exprime no “viver/estar junto e o viver


coletivamente” (MAFFESOLI, 2010) para além do âmbito assistencial. Os aspetos de
convivência “extra-posto”, denominados por Dias Silva (2010), como conversar, comer junto,
pescar, favorecem fortes laços interpessoais com os membros da comunidade e, portanto, o
estabelecimento de vínculo, que é uma condição importante para o desenvolvimento de ações
de APS (VIEGAS; PENNA, 2012).
Quanto às funções designadas estão a realização de consultas de promoção e
prevenção, administração de medicamentos básicos, primeiros socorros e realização de testes
rápidos de malária, dengue, gravidez. Porém, conforme a rotina dos auxiliares realizada
anteriormente, eles continuam, muitas vezes, assumindo funções para além de suas
competências:

A gente está só, a gente tem que ser o médico, enfermeira, pajé, parteira,
melhor dizendo, tudo (…) eu tive que atender partos. Quando a gente está no
posto de saúde tem que fazer de tudo (AE8).

“Resolver sozinho” é uma expressão recorrente quando se fala do trabalho do


auxiliar nos postos nas áreas rurais. Mesmo com a existência de um rádio para comunicação
permanente com o centro de saúde de referência ou o hospital, esse profissional continua
sendo responsável pela resolução de demandas e encaminhamentos de usuários para outro
nível de atenção, assumindo desafios que repercutem diretamente na qualidade dos
atendimentos:

Na semana passada chegou-me uma criança com apendicite. Ela me disse


que tinha dor de estômago e ardor ao urinar, eu a diagnostiquei com gastrite
e infecção de vias urinarias (...) então disse à criança ‘se dentro de 4-5 dias
não sentir melhora temos que te encaminhar ao centro de saúde’. Fui à casa
dela, fui três vezes na sexta, no sábado e na terça e perguntei aos familiares e
me disseram que estava bem. E no momento, quando já realmente tem
apendicite lhe examino o estômago, olho por um lado, pelo outro... e não,
que não tinha nada, e não tinha nada?... Aí vem as consequências... resulta
que sim, era [apendicite] e já era tarde para remetê-la (AE8).

No caso de uma doença grave, ele [o auxiliar] encaminha a pessoa [para o


hospital], mas ele não conta com bote, motor e gasolina, isso é o que
dificulta levar a pessoa que está doente (…) outra coisa é que as vezes não
há medicamento no posto, o que acontece nesse sentido? que os habitantes
não têm onde ir quando não há medicina, o auxiliar está presente, mas não
pode fazer nada, pode atender a pessoa sim, mas não pode dar medicamento
em caso de doença (U11. Puinave).
75

Falta de insumos e auxílio diagnóstico, grandes distâncias que requerem ativação


da rede de referência e logística na procura de embarcação e gastos de combustível para
encaminhamentos, entre outras, são questões que fazem com que o “improviso” seja uma
caraterística marcante do cotidiano de trabalho desses profissionais.
O “improviso” também é uma categoria identificada por Dias Silva (2010) no
cotidiano de trabalho dos técnicos de enfermagem com os indígenas Munduruku e emerge,
portanto, de um conhecimento empírico, de um “saber-fazer”, “saber-dizer” e “saber-viver”
inerente ao cotidiano com o qual estes profissionais tentam resolver as múltiplas demandas do
dia a dia (MAFFESOLI, 2010). Porém, nesse “jogo de cintura” (DIAS SILVA, 2010) acabam
priorizando as práticas assistenciais, curativas e individuais, sobre as ações coletivas de
prevenção e promoção da saúde.
O trabalho junto ao gestor comunitário, por sua parte, foi resgatado como um elo
de ligação importante com a comunidade:

Ela [gestora comunitária] fazia o censo populacional, calculava as crianças


de 0-5 anos, adultos, os que estão fazendo planejamento familiar, o controle
de crescimento das crianças, muitos que estão fumando substâncias
psicoativas, sim? Então chegavam, digamos qualquer pessoa, de qualquer
programa então ela ‘bom, quantas crianças há? há tantos, quanta população
há? Há tanta’ por exemplo, aqui manejamos 400 pessoas... então todo esse
percurso quem faz é a gestora” (AE8).

O gestor comunitário é um papel criado pelo MIAS, sendo alguém pertencente e


indicado pela comunidade para realizar visitas domiciliares, ações educativas, saneamento
básico e articulação de saberes (tradicionais e biomédicos) (COLOMBIA, 2015b). Esse papel
poderia ser equivalente ao do Agente Indígena de Saúde, no Brasil, criado no âmbito do
Subsistema de Atenção à Saúde Indígena, em 1999, para atender aspectos da atenção
diferenciada na saúde indígena, sendo o elo entre as equipes e a comunidade, e exercendo
mediação entre os saberes médico-científicos e dos indígenas (DIEHL; LANGDON; DIAS-
SCOPEL, 2012).
Ainda que alguns participantes tenham desstacado o trabalho do gestor
comunitário como o de um intermediador, auxiliando na tradução, captação e seguimento de
pacientes, foi possível detectar, no tempo da pesquisa em campo, dificuldades expressas em
queixas dos usuários e auxiliares de enfermagem em relação ao cumprimento das funções
exercidas. Em conversa informal, um auxiliar de enfermagem referiu que o gestor não
cumpria suas funções, apesar de estar sendo remunerado. Segundo ele, pelo fato deste
76

trabalhador morar em outra aldeia, era difícil seu deslocamento até o posto porque “ficava
longe de sua casa, sobretudo no inverno” (NO. 11/02/18). Da mesma forma, em visita a outra
aldeia com a comissão de saúde o gestor não se encontrava presente. Ao ser indagado onde
estaria, um morador da aldeia comentou que havia vários dias que não visitava as casas.
Algum tempo depois o gestor apareceu e se apresentou à equipe, sendo que houve reclamação
pelo enfermeiro da comissão sobre sua ausência no posto de trabalho. Quando se retirou, o
enfermeiro comentou que “agora precisam ser lembrados o que têm que fazer, antes eles eram
dedicados, a gente chegava à aldeia e eles saiam a nos receber, estavam atentos à comissão,
agora já não estão fazendo nada disso” (NO. 13/02/18).
Na implantação do modelo, os gestores receberam uma capacitação sobre suas
funções, incluindo um exercício de mapeamento da área de abrangência do posto realizada
junto aos técnicos de enfermagem e alguns médicos tradicionais. Entretanto, manifestaram
dificuldades na cobertura do território demarcado para visitas:

Há muitas coisas por fazer que não temos conseguido completar…o trabalho
do gestor é muito amplo... De minha parte estou demorando um pouquinho...
tenho sete aldeias que tenho que visitar e tem sido muito difícil visitá-las
todas (G1. Puinave).

Entende-se que, além da quantidade de população designada (100 a 200 famílias,


com estimativa de 1000 pessoas), as grandes distâncias entre aldeias, que implicam
deslocamentos de horas por rio e a coordenação de embarcação e combustível, às vezes,
indisponíveis nas unidades, tenham por consequência a diminuição da cobertura pelas equipes
em algumas aldeias. Por conseguinte, as distâncias acabam tendo repercussão tanto na
supervisão do trabalho como na integralidade das ações a serem desenvolvidas.
A limitada presença de equipes de atenção básica também é um fato prevalente
em comunidades rurais afastadas da Amazônia no Brasil, uma vez que enfrentam grandes
barreiras de acesso: geográficas, financeiras e de informação (FERREIRA et al., 2011;
GARNELO et al., 2018).
Em Guainía, a escassez e os altos custos de combustível para o uso de
embarcações constituem um fator determinante ao acesso e a utilização dos serviços de saúde,
sobretudo, nesta área rural (COLOMBIA, 2017). A esse respeito, em estudo realizado por
Furtado (et al., 2016) na Terra Indígena Kwat, Laranjal, no Brasil, reportou-se que a falta de
combustível é obstáculo na resolutividade dos problemas de saúde em terras indígenas, pela
77

essencialidade na remoção de pacientes graves, gestantes com intercorrências e deslocamento


dos profissionais para visitas às aldeias.
Nesse sentido, concorda-se com Garnelo (et al., 2014) ao sinalizar que:

Os critérios de definição de cobertura territorial precisam ser adaptados às


condições da Amazônia, onde a população se assenta de modo disperso em
grandes extensões geográficas. Se consideradas em termos estritamente
numéricos, a proporção entre unidades disponíveis e usuários a serem
atendidos pode ser considerada próximo do desejável. Porém, é preciso levar
em conta as distâncias que usuários e profissionais precisam percorrer a fim
de viabilizar o cuidado em saúde (GARNELO et al., 2014, p. 74).

Pode-se inferir que esse vazio na assistência, no contexto rural, esta sendo
“coberto”, em parte, pelas comissões multidisciplinares de saúde (CMS), porém com alguns
entraves. Um deles tem a ver com a grande demanda de usuários voltada, primordialmente,
para atendimento às doenças e o requerimento de medicamentos.
Nas minhas observações realizadas nas aldeias, constatei a realidade dessas
questões no cotidiano da atenção em saúde local. Em uma das aldeias visitadas ao longo do
Rio Guaviare, quando atracávamos no porto, um morador se aproximou dizendo: “chegaram
em bom momento! Tem uma criança que esta doente”. Após um tempo, outros dois
moradores abordaram o enfermeiro da comissão para informar suas demandas. Um deles
falou: “enfermeiro que remédio você traz para o braço que tenho adormecido, o tenho como
os dedos da vaca!” e o outro: “olha faz dois meses que eu estou com cegueira e não tem
melhorado”. O profissional explicou-lhes que os sintomas apresentados deveriam ser
complicações de doenças crônicas, mas que, infelizmente, não podia lhes medicar, pois o
propósito da comissão era unicamente vacinação. A recomendação feita a eles foi se
deslocarem ao centro de saúde próximo ou esperar a outra comissão, quando viria o médico e
trariam sim medicamentos (NO. 13/02/18).
Embora o principal objetivo das CMS (integradas por médico generalista,
bacteriologista, enfermeiro, dentista e técnicos em enfermagem) seja visitar periodicamente as
aldeias para realizar atividades individuais e coletivas de promoção da saúde e prevenção de
agravos, cenas como a anterior retratam a maneira em que estas equipes são esperadas e
abordadas pelos usuários para suprir suas necessidades em saúde, centradas principalmente
em adoecimentos.
De fato, como expresso pelo usuário, essa demanda é normalmente feita para
atendimento de toda a família:
78

Eu, de minha parte, quando vem a comissão aproveito [para ser atendido].
Na vez passada veio em novembro, algo assim e, foi bom, porque a minha
família passou toda [a ser atendida]” (U12. Piapoco).

A questão de “aproveitar” os serviços prestados pela CMS, diante da falta de


assistência nas aldeias, é reconhecida tanto pelos usuários, como pelos profissionais de saúde.
Não obstante, estes últimos manifestam preocupação pela alta demanda que, somada às
condições de trabalho precárias e ao tempo restrito de permanência nas aldeias, de dois a três
dias, comprometem a qualidade e integralidade da assistência:

A gente fica com esse dissabor, porque chegamos com todo ânimo para
prestar-lhes o melhor, mas são muitas pessoas e uma vez ao ano o serviço de
saúde tem a oportunidade lhes atender, então a gente gostaria de dedicar
muito tempo a cada família, fazer um bom controle de crescimento e
desenvolvimento, ou um bom controle pré-natal, mas pelo tempo e por
muitos outros fatores, como não ter luz e isso, termina-se fazendo as coisas
com rapidez” (E3).

As longas filas de usuários procurando resolver problemas pontuais de doenças e


situações agudas, nos dias em que a CMS esta presente nas aldeias resultam, portanto, em
priorizar atendimentos individuais em detrimento às atividades coletivas e de promoção da
saúde12:

Temos uma dificuldade e é que embora nos exijam fazer PEP [promoção da
saúde e prevenção da doença], muitas vezes chegamos a pacientes que têm
ficado um longo tempo sem ver a um dentista e têm muitas necessidades de
urgência... então nós priorizamos o que o paciente demanda, pois se o
paciente tem algo de dor nós não podemos fazer PEP, mas primeiro tentar
eliminar o fator local que lhe está causando a dor, e depois fazemos
promoção e prevenção, e pelo tempo que às vezes temos nas comissões é
difícil fazer as atividades de PEP (DEN2).

Consequentemente, alguns membros da equipe consideram essas ações de


prevenção e promoção como “uma sobrecarga de trabalho”, “que descontam tempo” e “não
aportam a satisfazer as demandas reais da população” (NO. 23/04/18). Enquanto que, para os
usuários, as atividades de cunho educativo – geralmente feitas no inicio da jornada - são vistas
como uma maneira de “motivar” a comunidade:

12
Essas atividades são estipuladas no Plano de Intervenções Coletivas (PIC), formulado pela SDS, incluindo
dimensões como saúde mental, segurança alimentar e nutricional, estilos de vida saudável, direitos sexuais e
reprodutivos, cuidado bucal, visual e auditivo, entre outras.
79

Essa parte se faz com palestras e isso se faz antes do começo do trabalho,
põem balões e tudo isso, para que a gente se anime... mas tem que tomar um
tempo e ter tempo o suficiente também para atender as pessoas depois... está
bem o que está se fazendo, sortear algo, um presente, qualquer coisa, porque
assim as mães se animam e os pais também, todos os jovens animam-se
assim, mas no devido tempo também, para que se comece já bem organizado
e se comece depois toda a jornada médica (U11 Puinave).

Como já posto anteriormente, a origem das CMS, na década de 1980, baseou-se


em um modelo campanhista de assistência para atendimento concentrado, principalmente, em
demandas espontâneas de doentes (SUÁREZ, 1998; GARNELO; MACEDO; BRANDAO,
2003). A execução de ações de acordo com esse modelo desenvolvido por vários anos,
certamente influencia, ainda hoje, a forma como os usuários buscam os serviços, mesmo com
as mudanças da proposta a ser desenvolvida pelas CMS nessas regiões. Isto é, continua a
valorização da assistência médica e o acesso a medicamentos em prejuízo às ações educativas
de promoção e prevenção, compreendendo também que essas são as necessidades
apresentadas pelos moradores.
Nessa mesma linha, uma pesquisa realizada com indígenas Guarani do litoral de
Santa Catarina, no Brasil, reportou associação entre a alta recorrência ao uso de fármacos e a
presença das equipes de saúde nas aldeias, proporcionando uma atenção caraterizada por um
“assistencialismo hipermedicalizante de caráter curativo” (DIEHL; GRASSI, 2010, p. 1556).
Da mesma forma, um estudo realizado em um município do interior do
Amazonas, no Brasil, evidenciou que um dos principais meios de acesso a serviços de saúde
bucal para a população rural consistia no atendimento de equipes móveis, cuja atividade
primordial reduzia-se ao controle da dor, com pouca oportunidade para a execução de ações
de prevenção e promoção da saúde (COHEN-CARNEIRO et al., 2009).
Porém, a irregularidade no cumprimento do cronograma de deslocamentos das
equipes de CMS foi uma constante durante minha permanência em campo, continuando até o
momento de escrita do presente relatório. A mudança de administração do hospital, a
disponibilidade de insumos e medicamentos, a logística para alocação a todas as áreas
preestabelecidas, dentre outras questões, resultou em atraso da agenda proposta para saída das
equipes, fazendo com que várias aldeias tivessem apenas uma visita, apesar de quatro
planejadas ao ano (NO. 27/04/18).
Além disso, a alta rotatividade continua sendo uma caraterística preocupante na
conformação destas equipes. Ainda que a designação de profissionais deveria ser coordenada
pelos centros de saúde, incluindo os profissionais que atuam nesse cenário, ela continua
80

centralizada na cidade, vinculando trabalhadores do hospital ou outros recém-contratados


apenas dias antes para desenvolver as atividades previstas (NO. 23/04/18).
Sabe-se que a escassez de recursos humanos e, em consequência, a alta
rotatividade de profissionais continua sendo um problema persistente em zonas rurais e de
população indígena (DIEHL; LANGDON; DIAS-SCOPEL, 2012; PITILIN; LENTSCK,
2015; MENDES et al., 2018).
Na Colômbia, a maioria dos profissionais de saúde atuantes nas áreas rurais e/ou
remotas são vinculados anualmente em exercício do Serviço Social Obrigatório, ou rural,
estabelecido para profissionais recém-formados como requisito obrigatório para obter a
carteira profissional. Todavia, a cada mudança, estas equipes devem assumir uma
reorganização em sua estrutura de trabalho, prejudicando a continuidade das ações e a
manutenção de vínculo com os moradores das aldeias (NOVO, 2010).
Por fim, foi possível detectar recursos adicionais sendo acionados cotidianamente
para resolver os vazios de assistência na zona rural. Em acompanhamento à equipe da
comissão consegui constatar que pessoas de liderança nas aldeias como o capitão, o professor
da escola ou o pastor da atuam em papel importante de intermediação entre as equipes e a
comunidade (NO. 24/02/18). Desenvolvem ações para auxiliar na captação de necessidades
dos usuários e acompanhamento de tratamentos que requerem supervisão:

Geralmente nem todas as comunidades têm posto de saúde (...) então aí a


gente tem que falar com o diretor do colégio e dizer-lhe ‘olhe professor, o
paciente tem isto... e precisamos que você supervisione o tratamento’, então
é outra possibilidade (AE2).

Por sua vez, outras equipes –também chamadas comissões de saúde- geralmente
compostas por um enfermeiro e técnicos de enfermagem, são disponibilizados pela SDS para
visitar as aldeias com o objetivo de realizar atividades específicas de vacinação, controle de
saneamento básico e em alguns casos educativas com as comunidades:

Quando saímos a percorrer os corregimentos devemos monitorar com os


traçadores, se olha em que cobertura eles estão, se já estão bem vacinados e
se lhes faltou alguma vacina (...) também fazemos buscas ativas, se
apresentam-se casos de febre amarela ou se não há casos de tétano neonatal
ou sarampo (E1. Puinave).

A secretaria de saúde é como nossa vigilante. Às vezes eles vêm também


perguntar ou fazer qualquer atividade aqui mesmo [no posto na aldeia], e
perguntam sobre como nos temos sentido ou como vamos com as atividades
que desenvolvemos (AE6. Puinave).
81

Entretanto, reconhecendo que essas equipes exercem um importante papel de


apoio e monitoramento das ações de atenção básica no cenário rural, com a interação em
tempo integral com a comissão de vacinação, pode-se inferir que o principal foco das ações
prevalece ainda voltado para um enfoque assistencialista e curativo.
Alias, a presença de ONG’s no departamento continua sendo relevante no
desenvolvimento de programas em saúde com maior impacto no contexto rural. Todavia,
essas organizações ainda mantêm pouca articulação com as ações de APS promovidas pelo
MIAS, chegando, inclusive, a ocorrer tensões entre as políticas propostas pelo governo do
estado e os projetos desenvolvidos por elas (GUHL, 2018).

5.1.4 O epicentro das fronteiras: o cotidiano da APS no contexto urbano

As particularidades do cenário urbano fazem com que o cotidiano de assistência


na APS seja também marcado por diversos desafios, por ser a cidade de Inírida o epicentro da
rede de referência para toda a região. Além dos habitantes dessa área (incluindo indígenas e
não-indígenas), atende-se a população proveniente da área rural ou migrante da região de
Vichada e da Venezuela, que faz fronteira com esse ponto da região.
Nesse cenário, as ações são prestadas por equipes instaladas na área de promoção
e prevenção (PEP) do hospital e em um posto de saúde localizado na reserva indígena Paujíl.
Este último considerado “piloto” para a implementação da estratégia de cuidado primário13,
liderada por médicos em formação em medicina da família em parceria com uma universidade
privada de Bogotá.
A equipe do posto é composta por uma enfermeira, dois médicos (um deles
residente de medicina da família), um dentista, um microscopista, dois técnicos (um de
enfermagem e um dentário) e um gestor comunitário. A presença de outros profissionais,
além da equipe base dos postos, deve-se a uma solicitação das lideranças indígenas na
implementação do modelo por causa da alta demanda de serviços nesse ponto da região.
Conforme acontece na área rural, a demanda espontânea de usuários é uma
caraterística marcante do cotidiano da assistência, dessa vez com a oferta e cumprimento de
uma agenda de consultas:

13
Tem-se projetado a implementação dessa estratégia nas cinco zonas estabelecidas pelo MIAS, contemplando a
elaboração de um plano com protocolos de atenção, visitas domiciliares, ações de PEP, entre outras questões.
82

Para mim aqui no posto me atendem da mesma forma que no hospital… a


gente também tem que marcar consulta, mas para mim é melhor aqui, mais
próximo, porque às vezes nós não temos transporte, porque não se sabe em
qualquer momento cai a doença então aqui é mais próximo (U3 Puinave).

Como nós somos vizinhos aqui do Paujíl então nós recebemos bem o posto
de saúde, porque é mais próximo, porque lá na parte do hospital, pra pedir
uma consulta lá é sempre duro, a gente tem que madrugar, fazer fila, tudo
isso, aqui, ao contrário, há pouca gente... eu vim na semana passada aqui (...)
esta já é a segunda vez, então está melhor que lá (U9. Puinave).

Evidencia-se que a localização do posto é considerada uma vantagem para o


acesso a serviços quando comparado ao hospital, facilitando inclusive o atendimento a
pessoas não residentes na reserva indígena. Constata-se, contudo, que a procura dos usuários
pelos serviços de saúde, nesse contexto, ocorre, tal como no cenário rural, diante de uma
eventual necessidade, geralmente associada à aparição de doenças e/ou à procura pontual de
medicamentos.
Uma cena cotidiana frequente durante o tempo que permaneci nesta unidade foi o
grande volume de usuários, de seis a dez diariamente, consultando por sintomas de suspeita
de malária, por ser a reserva indígena uma área de alto risco para essa doença. Geralmente,
estes usuários manifestavam vir ao posto com o único interesse de que “o médico lhes
entregasse o remédio” (NO. 26-28/03/18; 04/04/2018).
Nesse sentido, a qualidade da atenção é determinada à medida que as respostas às
demandas apresentadas sejam satisfatórias:

Eu acredito que o posto funciona bem sim, porque primeiro o que o posto faz
agora é contra a malária, que funciona sim, porque aí dão os resultados do
teste e o médico dá a gente o remédio, então para mim funciona sim (U2.
Puinave).

Evidencia-se assim o interesse dos usuários voltado, primordialmente, para uma


atenção médico-centrada, corroborando os resultados de estudos que têm abordado as
necessidades e demandas cotidianas e usuários na APS em outros contextos (VASQUES;
PENNA, 2013; PALHONI; PENNA, 2017).
Cabe salientar, entretanto, que as demandas por serviços de saúde resultam da
conjugação de fatores sociais, individuais e culturais próprios da população (VASQUES;
PENNA, 2013). Como aponta Pitilin e Lentsck (2015), ter acesso aos serviços não garante
que as necessidades sejam satisfeitas, sendo necessária uma prática que atenda às reais
demandas, ou seja, um olhar que transcenda o biológico.
83

Soma-se a isso a demanda da população indígena migrante da Venezuela em


busca, também, por assistência médica:

Aqui temos população venezuelana, então há uns problemas na parte de suas


afiliações, porque anteriormente, em nossa cultura, como indígenas, não
precisávamos de um sistema, sim? mas o sistema de hoje já está exigindo, se
você não aparece no sistema você não tem opção de ser atendido, de que
possa pedir uma consulta médica, então temos essas fraquezas... mais que
tudo os que moram na fronteira, são indígenas, parentes nossos, as vezas
chegam aqui doentes, com malária e eles chegam pedindo ajuda, então temos
tentado colaborar, mas como o sistema exige outra coisa, então já temos que
ir é na urgência do hospital” (G1. Puinave).

Nestes casos, as ações cotidianas da equipe focam-se, igualmente, em resolver


questões burocráticas relacionadas com o cadastramento desta população no sistema de saúde,
a maioria das vezes concluídas em encaminhamentos de urgências ao hospital, tornando o
posto “um lugar de passagem para outros serviços” (PITILIN; LENTSCK, 2015).
Consequentemente, as atividades próprias designadas pela APS, direcionadas à
família e comunidade: educação em saúde, planos terapêuticos, visitas domiciliares, vigilância
em saúde, entre outras, ficam relegadas a segundo plano:

(…) as vezes saímos às terças, esse é um dia que nos designaram para a
saída a campo, para visitar a comunidade, aí saímos com o companheiro
[gestor] a fazer palestras da malária, o uso adequado do mosquiteiro, da
contaminação... da água, do lixo, tudo isso... coisas assim de prevenção, mas
as vezes é como agora que não se pode... já temos outra atividade na manhã,
tirar amostras e terminamos saindo por aí depois das 9 da manhã, depois de
tomar as amostras e quando já as coisinhas que fazemos por aqui [no posto]
ficam prontas... mas como lhe digo, às vezes não saímos porque há muitas
coisas, porque também há muitas coisas por fazer aqui (AE6. Puinave).

Com a implantação do plano de cuidado primário, liderada pela equipe de


medicina de família, encarregou-se especialmente ao auxiliar de enfermagem e ao gestor
comunitário a realização de atividades previstas em uma agenda de tarefas, que inclui visitas
domiciliares, busca ativa e a caracterização da população (NO. 02/04/18). Porém, a
designação de atividades adicionais ou a resolução de diligências emergentes no dia a dia,
dificultam a efetivação desta proposta conforme o planejado:

(...) Eu tenho que ir casa por casa, visitar todas as famílias, desde o mais
adulto até o menor, identificar quantas famílias moram lá e também fazer o
mapa (...), eu tenho uma planilha, ai registro: ‘casa número um, moram
tantas famílias aí’, então eu tenho uma base de dados em Excel e tenho que
introduzir a informação todas as manhãs (...), às vezes perco o fio desse
84

trabalho, porque tenho que ir acompanhar a algum paciente que chegou


grave à urgência, então de uma vez me dizem, ‘vá acompanhe a tal paciente
ao hospital’, e aí tenho que ficar até que os funcionários terminem de atender
ao paciente lá... eu venho para informar aos familiares das consultas ou se
talvez o hospitalizaram, até que eu não tenha clareza da informação lá, não
posso vir, pode demorar toda a manhã (G1. Puinave).

Confirma-se diante dos fragmentos acima, que durante o período de permanência


no posto, solicitei, várias vezes, realizar acompanhamento junto aos profissionais em suas
visitas domiciliares. Entretanto, em detrimento a situações tais como, encaminhamento de
pacientes ao hospital, a demanda maior do tempo previsto para a coleta de exames, a
solicitação para assistência em procedimentos (como inserções de implantes contraceptivos)
ou mesmo em atividade de tradução de línguas indígenas, as visitas não ocorriam como
planejadas, sendo na maioria das vezes canceladas (NO. 03/04/18).
Tal questão também é relatada em estudos realizados por Pitilin e Lentsck (2015)
e Shimizu e Rosales (2009), sendo associada ao modo de organização dos serviços, que
muitas vezes gira em torno da priorização do atendimento à demanda espontânea,
prejudicando o planejamento e desenvolvimento de ações comunitárias, educação em saúde e
visitas domiciliares, envolvendo a todos os membros da equipe, bem como a comunidade.
Ressalta-se que a participação dos usuários no processo de planejamento,
execução, gestão e avaliação dos serviços, como um elemento essencial da APS
(STARFIELD, 2002), ganha ainda maior relevância na organização dos serviços voltados
para atendimento à população indígena, por considerar-se fundamental para o alcance do
principio de atenção diferenciada ou intercultural (LANGDON; GARNELO, 2017).
Entretanto, como afirmam Langdon e Diehl (2007) as tendências de centralização,
burocratização e institucionalização dos serviços impedem, em muitos casos, a efetivação dos
processos participativos das comunidades indígenas.
Por consequente, na área de PEP do hospital, onde atua uma equipe integrada por
dois médicos, duas enfermeiras, uma auxiliar de enfermagem e um gestor comunitário, foi
possível observar, além das questões já citadas, a prevalência de questões burocráticas para
aceder aos serviços:

Pois primeiro aqui demoram muito expedindo autorizações, gerar uma


consulta, isso demora muito e a gente tem que esperar muito tempo... temos
que fazer uma fila longa e às vezes lá se passa o tempo da consulta” (U7.
Sikuani).
85

O hospital é muito demorado para atender, eu vou quando estou doente e


isso a gente tem que esperar e esperar e esperar […] um dia eu fui para lá e
quase não me atendem e por isso eu achei melhor procurar remédio na
farmácia (U10. Cubeo).

Constata-se que a expedição de autorizações, longas filas para agendamento de


consultas e requerimento de medicamentos, demoras com a atenção, entre outras questões,
expressas pelos usuários, fazem um importante diferencial em respeito à maneira em que
percebem a qualidade da atenção e o nível de resolutividade de suas demandas. Evidencia-se,
portanto, como no último depoimento, a busca de outros serviços, a consulta em farmácias
para a aquisição de medicamentos e mais uma vez a solução para uma demanda espontânea.
Problemas similares no cotidiano dos serviços de APS foram relatados no estudo
de Campos (et al., 2014), sendo catalogados como barreiras de acesso de tipo organizacional,
relativas às caraterísticas da organização dos serviços e procedimentos/cuidados ali ofertados.
Segundo os autores, a prevalência deste tipo de barreiras cria uma descrença nos usuários a
respeito do papel ordenador da APS e, portanto, na sua concepção como principal porta de
entrada ao sistema.
Além disso, como evidenciado na pesquisa de Garnelo (et al., 2018) esses
aspectos, presentes na rotina de funcionamento dos serviços, geram um impacto ainda maior
no acesso aos usuários provenientes da zona rural. Além do deslocamento de grandes
distâncias para procurar atendimento na cidade, enfrentam filas para agendar ou obter
consultas, às vezes, sem disponibilidade de vagas para atendimento no mesmo dia. Nesse
sentido, às barreiras de acesso geográficas, adicionam-se outras, que comprometem a
qualidade do atendimento ofertado a estas populações.
O esboço da história do que foi e do que esta sendo construído na APS, a partir do
já exposto nesta categoria, mostra elementos de destaque que têm contribuído à configuração
atual desta estratégia na região no âmbito do novo modelo de atenção.
Reitera-se, que construções feitas no passado têm influenciado as práticas
assistências atuais, por exemplo, no modo de organização dos serviços e o desenvolvimento
de atividades com foco médico-centrado e voltado para atendimento de necessidades
pontuais. Nesse sentido, cabe problematizar as dificuldades para a concretização de uma
prática integral que aborde as reais necessidades dos usuários indígenas, ainda mais
considerando que a assistência à saúde está se desenvolvendo em contextos culturais diversos
e em constante interação cotidiana, que acabam influenciando, entre outras coisas, a
capacidade de autogestão em saúde dos usuários, tal como veremos na categoria a seguir.
86

5.2 A Interculturalidade no Cotidiano da Atenção Primária à Saúde em Guainía14

A interculturalidade, em concordância com Menéndez (2016), é entendida neste


estudo como um processo permanente no cotidiano da atenção à saúde em Guainía. Encontra-
se presente desde o primeiro contato entre usuários indígenas e profissionais de saúde, nos
processos de conhecimento, reconhecimento e convivência entre suas culturas e saberes,
inclusive, no intercâmbio ocorrido interna e externamente nas diferentes etnias presentes na
região.
Para Menéndez (2016):

Os processos interculturais são permanentes e têm uma profundidade


histórica, ou seja, a maioria não é recente nem ocasional, é parte normalizada
da vida cotidiana e não processos excepcionais que há que construir. Os
processos interculturais existem sempre que temos sociedades em contato.
Assim, se queremos instrumentar a interculturalidade a respeito dos
processos de saúde/doença/atenção-prevenção o primeiro é detectar e
analisar os processos de interculturalidade que já estão operando na vida
cotidiana e a partir deles, e não só de nossos pressupostos, tratar de
impulsionar e concretizar objetivos interculturais (MENÉNDEZ, 2016, p.
110, tradução nossa).

Tal compreensão parte do pressuposto de que os processos interculturais


historicamente têm-se submetido a relações de dominação ou hegemonia/subalternidade e no
meio de fatores estruturais - econômicos, sociais, políticos, entre outros - próprios do
contexto; portanto, não são processos harmônicos, nem gerados em igualdade de condições.
Nesta linha de ideias, com a presente categoria pretendo mostrar a maneira com a
qual a interculturalidade constitui-se um componente chave dentro do processo de construção
cotidiana da atenção primária à saúde (APS) em Guainía. As quatro subcategorias que serão
apresentadas a seguir foram delineadas com o propósito de pôr em relevo, conforme
Maffesoli (2009), a centralidade subterrânea dos fenômenos interculturais presentes, às vezes
de maneira oculta, na banalidade da vida cotidiana e nas interações societais no trabalho na
APS.

14
O material apresentado nesta seção foi aprovado como artigo na revista Ciência e Saúde Coletiva, disponível
online: http://www.cienciaesaudecoletiva.com.br/artigos/a-interculturalidade-no-cotidiano-da-atencao-primaria-
a-saude-o-caso-do-modelo-de-saude-em-guainiacolombia/17516?fbclid=IwAR2a5JzJPe29sZwMXU8AfqdtpW-
if70VuidO-tlR_Oedv5aCqSEkXZQWKL
87

5.2.1 A compreensão da interculturalidade: o olhar dos profissionais de saúde

Considerando que o modelo de atenção (MIAS) contempla a APS com enfoque


intercultural, como o principal objetivo estratégico para sua implementação na região de
Guainía, torna-se interessante ressaltar a maneira com a qual o que é denominado de
interculturalidade pela proposta, tem sido assimilada por aqueles encarregados de estabelecer
essas diretrizes no seu cotidiano de trabalho.
Indagar sobre a interculturalidade não foi um tema previsto ao iniciar as primeiras
entrevistas com os participantes, especialmente com os profissionais de saúde. No entanto, no
percurso da pesquisa de campo tornou-se importante questionar sobre o tema, por perceber
sua presença no cotidiano de trabalho na APS, na interação diária entre profissionais de saúde
e os usuários indígenas.
Ainda que, minha intenção não fosse reduzir em nenhum momento as vivencias
dos profissionais em um conceito acabado, senão pelo contrário, sublinhar a interação
intercultural como uma característica da vida social sem constrangê-la (MAFFESOLI, 2009),
o questionamento sobre a compreensão da interculturalidade conduzia os participantes a uma
“definição” às vezes difícil de expressar:

Sempre tem se escutado falar de interculturalidade, mas como definição?


como união de muitas, de muitos saberes, uma união de muitos saberes...
como um ponto de interseção de práticas e estilos de vida de saúde, me
pareceria a mim (MED3).

Difícil... mas acho que interculturalidade no Guainía isso é uma relação entre
as diferentes culturas que eu acho que temos aqui ao ter, valha a
redundância, tantas culturas indígenas, ou seja, não temos uma só população,
pode ser que em certas comunidades ou em certos lugares existam mais
umas que outras, mas vejo sim que temos o Tukano, o Curripaco o Puinave
[etnias indígenas], e não tendem a ser excludentes, porque inclusive podem
se unir as duas culturas, então que esses ambientes ou essas relações entre
essas culturas podem se realizar e que nós lhes possamos levar uma atenção,
pode estar relacionado como isso, acreditaria eu (DEN4).

Dessa maneira, para os participantes a interculturalidade é referida como um


elemento em que conflui uma variedade, quer seja de saberes, práticas ou culturas
diferenciadas. É o ponto onde a diversidade se encontra, convive e se relaciona em um mesmo
espaço.
Tal compreensão fundamenta-se na ideia de multiculturalismo. O qual refere-se
em termos descritivos a caracterizar a situação diversa e indicar a existência de múltiplas
88

culturas em um determinado lugar (TUBINO, 2004; WALSH, 2008). Para Tubino (2004),
Walsh (2008), Silva (2014) e Neves (2017) a noção do multiculturalismo é problemática, pois
parte de um relativismo cultural que objetiva a dimensão relacional conferindo ao ideal da
convivência harmoniosa entre distintos grupos, mas oculta a permanência de desigualdades e
inequidades sociais.
Autores como Walsh (2012) e Menéndez (2016) concordam em afirmar que a
interculturalidade tem sido um conceito bastante empregado a partir das décadas de 1980 e
1990 na América Latina. O reconhecimento apresenta-se pela “necessidade de promover
relações positivas entre os distintos grupos culturais, de confrontar a discriminação, o racismo
e a exclusão e de formar cidadãos conscientes das diferenças” (WALSH, 2012, p. 90). Porém,
os autores alertam que ao ser adotada em uma variedade de contextos e interesses
sociopolíticos, às vezes opostos, a compreensão da interculturalidade resulta ampla e difusa.
Para os participantes, a convivência entre culturas é percebida de maneira
harmoniosa, pois existe um intercambio bidirecional em igualdade de condições, que levado
ao âmbito da saúde concentra-se na troca ocorrida entre as noções indígenas e ocidentais de
cuidado.

União de várias culturas, várias maneiras de viver, várias maneiras de ser,


mas que possam, digamos, conviver num só território. Pois
interculturalidade em saúde seria isto, de poder, digamos, implementar,
digamos, as duas noções [indígena e ocidental] em ambas direções, sim? Por
exemplo, agora nós vamos fazer as comissões de saúde novamente e vai,
digamos, ter promoção e prevenção certo? A partir do conhecimento
ocidental, certo? Agora bem, estando lá qual seria, digamos, a parte,
digamos, que é cultural? quais doenças poderíamos abordar lá? Ou o que de
lá tragam... que podemos aprender? que seja bidirecional (BAC1. Puinave).

É como o intercâmbio de conhecimentos, intercâmbio de costumes, entre


todos para mim, isso é para mim interculturalidade... e em saúde... isso,
intercâmbio de conhecimentos da medicina tradicional e a medicina
ocidental (E3).

Interculturalidade é como… sim, um intercâmbio de saberes, é compreender


como é a cosmovisão neste caso indígena, e compreender que na realidade,
neste caso particular, nós somos os estranhos e que nós devemos nos adaptar
muito à sua cultura sim? E também fazer nesse intercâmbio que eles
compreendam o que nós... ou seja, nossos costumes e o que nós
precisamos... Como aplicar nas suas comunidades sem agredir, ou seja, sem
vulnerabilizar nada de suas crenças (MED1).
89

Sob essa visão dos profissionais, espera-se então que a convivência entre as
culturas se estabeleça em uma relação compreensiva, na qual seja possível o intercâmbio de
crenças, costumes e saberes sem a presença de conflitos ou de conflitos mínimos.
Esse achado remete a um dos usos contemporâneos e conjunturais da
interculturalidade associada, segunodo Walsh (2012), a uma perspectiva relacional. Essa
perspectiva faz referência de forma geral “ao contato e intercâmbio entre culturas, ou seja,
entre pessoas, práticas, saberes, valores e tradições culturais distintas, que poderiam se dar em
condições de igualdade ou desigualdade” (WALSH, 2012, p. 90, traduçao nossa).
Outros usos da interculturalidade relacionam-se às perspectivas funcional e
crítica. A perspectiva funcional enraíza-se no reconhecimento da diversidade e da diferença
cultural com metas para sua inclusão dentro da estrutura social estabelecida. Enquanto, a
perspectiva crítica não parte da diversidade cultural ou da diferença em si, mas do
reconhecimento de que esta se constrói dentro de uma estrutura e matriz colonial de poder
radicalizado e hierarquizado, com os brancos acima e os povos indígenas e afrodescendentes
nas escadas inferiores, ou seja, de um problema estrutural-colonial-racial (WALSH, 2012).
Como manifestado anteriormente, os profissionais de saúde sentem a obrigação de
fazer um esforço para adentrar-se e compreender a cultura do outro, nesse caso, a(s) cultura(s)
dos indígenas, e esperam que estes façam o mesmo por se tratar de um intercâmbio. A
finalidade dessa relação é facilitar a prestação dos serviços de saúde por meio do trabalho
conjunto e do estabelecimento de objetivos comuns.

Eu acredito que interculturalidade é a relação que há entre as diferentes


aprendizagens, porque para mim cultura, e de fato, cultura é todo o
aprendizado, e o aprendido por eles [indígenas] é diferente do aprendido por
nós, então para mim interculturalidade seria como que a relação entre esses
dois mundos, essas duas culturas, essas duas aprendizagens pois entrelaça-os
para lograr um bom desenvolvimento das relações que tenham entre as
duas... como que entrelaçar as duas formas da prevenção, promoção e
tratamento das doenças por meio das duas visões que há entre o que eles [os
indígenas] acreditam e que nós temos estudado, então é como poder se unir,
poder entrelaçar, poder se relacionar, e poder entre os dois se ajudar para
tratar um só fim, que é tentar procurar a saúde do indivíduo nesse caso
(DEN2).

A interculturalidade, como a relação que é em si, em todas as culturas, sim, é


a relação que há em todas as diferentes culturas: suas crenças, seus estilos de
vida, em geral. Aa saúde intercultural? mmm... pois aí já acrescentando o
componente de saúde em cada uma dessas culturas, ou seja, que todos
falemos o mesmo idioma (E2).
90

Dessa maneira, a interculturalidade é compreendida em uma perspectiva


relacional (WALSH, 2012), implicando uma integração entre dois sistemas de
conhecimentos: o ocidental trazido pelos profissionais e o tradicional próprio dos usuários a
quem atendem. Espera-se assim, uma conjunção “ideal” entre estes dois saberes, uma
“amalgama de conhecimentos” como é descrito:

Essa integração entre as pessoas que somos os colonos, os que viemos de


fora, os que temos uma forma de ver a vida diferente, com as pessoas que
são próprias daqui, é como a integração e essa conjunção entre o que nós
vemos da vida e o que eles vêm, não sei, é como isso, como fazer como uma
amalgama aí entre conhecimentos, entre formas de ver entre eles e nós
(DEN3).

Porém, os dados revelam que essa aproximação da interculturalidade pressupõe


uma suposta “equidade” na forma de valorizar e validar os conhecimentos advindos dessa
interação. Além de uma extinção das assimetrias e desigualdades existentes, diante da
consideração de que “todos somos iguais” por estar na procura do mesmo objetivo. O relato a
seguir ilustra essa afirmação:

Seria como a mescla, a mescla de muitas palavras num mesmo idioma, o que
acontece às vezes, houvemos negros, brancos, indígenas, mas somos os
mesmos, os mesmos irmãos, neste caso somos colombianos,
interculturalidade seria isso (...) afinal de contas o que somos? somos
indígenas, somos negros, somos brancos, somos mestiços, somos colonos,
mas o que nos interessa a todos? que o paciente melhore. Esse seria um
mesmo idioma, independentemente de tua crença religiosa, de tua raça, do
que tu quiseres, temos todos a mesma finalidade, aqui todos os que estamos
no hospital, há indígenas, há brancos, negros, colonos, todos queremos o
mesmo (BAC2).

Reforça-se a postura de Walsh (2012) sobre o problema da interculturalidade no


âmbito da perspectiva relacional, a qual segundo a autora carrega consigo:

Um ocultamento ou minimização do conflito e dos contextos de poder,


dominação e colonialidade onde se tem levado a cabo tal relação.
Igualmente, limita a interculturalidade ao contato e a relação - muitas vezes
ao nível individual - encobrindo ou deixando de lado as estruturas da
sociedade: sociais, políticas, econômicas e também epistémicas que
posicionam a diferença em termos de superioridade e inferioridade
(WALSH, 2012, P.90, tradução nossa).

Cabe salientar que o espaço onde ocorre o encontro relacional entre profissionais
da saúde e indígenas é marcado por uma história colonial, cujo discurso ainda continua
91

vigente. Follér (2004) afirma, que embora a história colonial da América Latina remonte há
mais de quinhentos anos, o imperialismo e o colonialismo continuam sendo constituintes do
mundo moderno e de seus conflitos, e portanto, influenciam fortemente as relações instituídas
em nível da atenção à saúde.
Além das estruturas de poder imersas nessas relações (MENÉNDEZ, 2016), o
discurso colonial tem imposto uma sobreposição de conhecimentos médicos ocidentais, em
detrimento aos conhecimentos tradicionais indígenas em saúde, que têm sido considerados
como menos valiosos, e inclusive, um obstáculo para o desenvolvimento (FOLLÉR, 2004;
ROCHA-BUELVAS, 2017). Desse modo, como afirma Pontes (et al., 2015) “a biomedicina
tem buscado a sua manutenção como forma hegemônica e mantido a subalternidade das
demais formas de atenção” (PONTES; REGO; GARNELO, 2015, p. 3200).
Em relação a isso, quando falam de como a integração de conhecimentos
ocidentais e tradicionais manifesta-se na prática, alguns profissionais expressaram a
importância de integrar a “medicina tradicional” aos serviços de saúde, desde que tenha um
suporte técnico-científico, reafirmando a necessidade de validar sua eficácia, eficiência e
efetividade sob os parâmetros da lógica científica.

Tentar chegar a partir da saúde a esse mundo de culturas e acredito que aí


daria muito pé a parte da medicina tradicional, porque se isso faz parte da
cultura acho que não ser alheio, seria muito prudente mantê-la em pé [a
“medicina tradicional”], porque também é como inclusivo para eles
[indígenas] e que é importante, e se faz parte de seus costumes, de sua
cultura porque perdê-la? e sobretudo porque serve sim, pois vamos aplicá-la,
mas sempre com o suporte técnico cientifico que comprove (DEN4).

Reafirma-se que a compreensão da interculturalidade para os profissionais remete


a um esforço por conceituar uma perspectiva “ideal”, em um cenário de intercâmbio
harmonioso entre saberes. Embora, esse intercâmbio ocorra de fato nas relações estabelecidas
na prática cotidiana da APS - mediante processos de negociação permanentes - chama a
atenção a dificuldade que representa para os profissionais reconhecer as relações de poder
imersas nos processos interculturais, em que os sistemas de conhecimento tradicionais e
ocidentais encontram-se assimetricamente posicionados.
Isto porque nesses processos interculturais reside uma “harmonia conflitual”
(MAFFESOLI, 2010), evidenciada em conflitos inerentes às relações sociais, na compreensão
e coexistência da alteridade, aquela que permite que ainda no meio de contradições, as
relações se estabeleçam e permaneçam. Como aponta Neves (2017), “no cotidiano das ações
92

de saúde é a interculturalidade que é acionada como princípio que rege esse campo
intersocietário” (NEVES, 2017, p. 313), que não necessariamente é movimentada por
conceitos acabados, mas sim por vivências de todos os dias (MAFFESOLI, 2007).

5.2.2 Tensões e convergências nos (des)encontros com a diferença

Nos relatos dos profissionais de saúde não-indígenas, o encontro com o universo


cultural dos povos indígenas aparece como destaque. Autodenominando-se como “os que vem
de fora”, os profissionais revelam o que significa para eles o encontro com o estranho,
inesperado ou desconhecido, sobretudo com as primeiras experiências de contato com a
realidade do território.
Em sua chegada, os profissionais não-indígenas carregam consigo fatores que
influenciam os encontros iniciais com a população indígena. Para além do que adquiriram em
sua formação acadêmica, destacam-se convicções e princípios pessoais trazidos de sua própria
cultura (MARTINS, 2017), e alguns desconhecimentos ou ideias pré-concebidas sobre a
região e os povos indígenas.

Eu me formei em 26 de julho de 2017 e em 01 de agosto já estava aqui em


Inírida começando o rural, participei no sorteio dos rurais, mas na realidade
nunca escolhi este local, também não me imaginava vir para estas terras,
nem conhecia as comunidades indígenas e eu imaginava que... obviamente a
gente sabe que existem mas quando você chega aqui em Inírida encontra...
seis ou oito tipos de comunidades diferentes e com o tempo a gente vai
aprendendo a distinguir coisas simples... eu cheguei aqui e fiquei durante um
mês e meio, mas além do treinamento era como o treinamento como do
sistema e ai vão lhe apresentando os rios, as possíveis comunidades, os tipos
de etnias que vai encontrar e vão te ensinando a distinguir um pouquinho
como as qualidades de cada etnia para você saber também como elas devem
ser tratadas, mas também a gente não apaga a visão que se tem do indígena
de taparrabo15, mas eles são diferentes (MED3).

A gente vem com muito... muito receio, muitos preconceitos sobre a


população indígena e quando a gente se dá a oportunidade de conhecê-los,
encontra um mundo totalmente diferente (E3).

Como relatado, alguns participantes manifestaram chegar à região com certos


preconceitos sobre a população indígena, que foram mudando com o relacionamento. Outros,

15
Taparrabo poderia ser traduzido como “tapa-traseiro”, ou seja, uma conotação estereotipada sobre a
“vestimenta” indígena.
93

por sua parte, revelaram ter recebido informações a respeito de alguns comportamentos dos
indígenas sobre os quais deviam tomar precaução.

Pois aqui você fica surpreso, né? pois eu já sabia porque minha mãe já tinha
me advertido, porque ela também chegou primeiro que eu para trabalhar
aqui, como ela é docente, então ela veio para trabalhar muitos anos aqui na
parte urbana e na parte rural, então ela como que já ia me dizendo ‘olhe…’
como prevenindo-me, dizendo-me que coisas sim e que coisas não, então ela
disse ‘tenha cuidado com isso, tenha cuidado com o outro’ e quando for a
uma comunidade ‘tenha cuidado com o que recebe’ porque as vezes as
pessoas podem querer lhe fazer o bem, como queiram lhe fazer o mau, então
pode receber a qualquer não , ou ‘cuidado com a roupa, porque na roupa lhe
põem coisas (AE7).

Pode-se inferir que os discursos mostram a maneira como a diferença é produzida


e instituída na nossa sociedade, e como os profissionais de saúde constituem-se em portadores
e reprodutores desse discurso. Para Silva (2014) a diferença é resultado de um processo de
produção simbólica e discursiva, que só pode ser elaborada na relação com o outro. Dessa
maneira, como adiciona Ferreira (2013), as diferenças culturais são instituídas e se tornam
visíveis por meio de condições de enunciação.
Segundo a autora:

O discurso colonial sobre a alteridade, veiculado pelo Estado-nação, em


geral, pauta-se sobre uma noção fixa e paradoxal instituída como signo da
diferença cultural, étnica ou racial (...). O estereótipo apresenta-se como um
dispositivo empregado por esse discurso oficial, no processo de construção
das subjetividades coloniais e no exercício do poder (FERREIRA, 2013, p.
36).

Assim, a imagem inicial dos profissionais sobre os povos indígenas trata-se de


uma visão estereotipada do outro, uma imagem holográfica de um indígena modelo ou hiper-
real (DIAS-SCOPEL, 2014), imposta pelo discurso colonial e reforçada histórica e
socialmente ao longo dos anos. Sendo veiculada fortemente pela mídia, essa imagem
apresenta uma visão na qual o indígena associa-se à pureza, à natureza, à preservação do
meio-ambiente e, sobretudo, ao exótico (LANGDON, 2007).
Daí as primeiras imersões dos profissionais de saúde no trabalho com a população
indígena são marcadas por imaginários que são enfrentados com a realidade (MARTINS,
2017). Nesse processo, aparecem certas surpresas, produtos do encontro com os costumes e as
práticas dos indígenas, em especial aquelas relacionadas à saúde.
94

Aqui a gente pode se encontrar com gente que tem umas tradições ou uns
costumes com relação à saúde que a gente fica chocado com eles
[indígenas], então conhecer todo esse mundo deles, se chocar com a forma
de ver deles tão deles com a nossa, que é um pouquinho mais ocidental, é
complicado como o choque do paradigma entre cosmovisão deles com a que
a gente tem (DEN3).

Aqui cheguei e foi um choque tremendo… no princípio me dava raiva,


porque ‘essa água o que vai fazer? se a criança está muito mal, veja-o como
está, não senhor!’ a gente obviamente não vai atropelar eles [indígenas]
dessa maneira, mas então dentro de mim dizia, mas, como?... Porque as
vezes chegavam pacientes em condições ruins, ‘não, é que o médico
tradicional lhe fez isto’, ‘lhe fez o outro e não funcionou, então por isso
trouxemos ele’... ou ‘lhe fizeram uma reza, o sopraram16’, porque aqui falam
muito de soprar... ‘e por isso é que está assim, doente, e por isso trouxemos
ele, porque o médico tradicional não conseguiu fazer as coisas’, então ao
princípio era como isso, não é tão... tão certo (E3).

Os discursos revelam certa sensação de incômodo e estranheza nos contatos


iniciais com as realidades culturais dos indígenas, as quais tentam interpretar sob a
perspectiva de seu próprio sistema cultural.

No princípio foi difícil porque a gente vem com outro chip, realmente é
como se a universidade não preparasse a gente para as coisas cotidianas e a
gente se estrella17 muito porque às vezes tem o conceito errado de que o
indígena é o que anda com tanga, e realmente a parte cultural desperta a
gente muito e então a gente aprende que aqui [em Guainía], tudo pode ser
possível... ou seja, o que você não vê fora, acontece aqui (E4).

Dessa maneira, a imagem idealizada e homogeneizante de ser indígena, de seu


modo de vida e de sua “medicina tradicional” trazida pelos profissionais, contrapõe-se com o
indígena que encontram na realidade, o “indígena de verdade” e sua alteridade (SILVA,
2013; DIAS-SCOPEL, 2014). Somada a isso, a intenção de fazer uma leitura com base nos
próprios valores culturais gera nos profissionais certo estranhamento, pois como alerta Laraia
(2001):

A tendência mais comum é de considerar lógico apenas o próprio sistema


cultural e atribuir aos demais um alto grau de irracionalismo. A coerência
dos hábitos culturais somente pode ser analisada a partir do sistema a que
pertence (LARAIA, 2001, p. 87).

16
Rezar e soprar são duas práticas de cura comumente usadas pelos pajés ou outro tipo de curadores
tradicionais.
17
Estrellar é uma expressão empregada para referir-se ao ato de bater fortemente com algo. No contexto, pode-
se interpretar como um choque forte com a realidade do contexto de trabalho.
95

Corrobora-se com os resultados do estudo feito por Martins (2017) que abordou as
vivências de trabalho dos enfermeiros dentro do Parque Indígena do Xingu, no Brasil. Para a
autora, nos primeiros encontros com a terra indígena os profissionais vivenciam ajustes entre
o imaginário e o real que são marcados inicialmente pela surpresa e o estranhamento.
Entretanto, as afirmações do participante no fragmento acima, em concordância
com os demais profissionais de saúde não-indígenas, revelam que as primeiras experiências
de contato marcadas por surpresas, além de serem conflituosas e inquietantes, podem
constituir momentos críticos de confrontação de verdades e de abertura a novos
conhecimentos. Afirmações como “a parte cultural desperta a gente” ou “a gente vai
aprendendo” demonstram como, após se confrontarem com a diferença nos primeiros
encontros, há um ponto de ruptura que permite aos profissionais uma reavaliação de seus
preconceitos e os tornam mais atentos às questões culturais dos usuários indígenas.
Tal processo pode ser analisado sob a noção da consciência cultural proposta por
Campinha-Bacote (2002) no âmbito do Modelo de Competência Cultural. Para a autora:

A consciência cultural consiste na autoavaliação e na exploração profunda


dos antecedentes culturais e profissionais próprios. Esse processo implica o
reconhecimento dos vieses, preconceitos e suposições sobre indivíduos que
são considerados diferentes (CAMPINHA-BACOTE, 2002, p. 182.
Tradução nossa).

Assim, durante o percurso da interação intercultural, os profissionais de saúde vão


construindo uma distinção das comunidades indígenas e de suas práticas em saúde, ao mesmo
tempo em que, questionam suas próprias ideias preestabelecidas. Como a descrição de certas
“qualidades e comportamentos” apreendidos que ajudam a distinguir as diferentes etnias
presentes no território:

Há uns [indígenas] com umas qualidades e comportamentos, há outros


diferentes, há outros que a gente distingue por sua timidez, a gente sabe
quais são, há uns que a gente distingue pelo cheiro porque há uns que não
tem o habito de se assear, há outros que sim é importante [se assear], há uns
para quem não é importante em algumas famílias sua alimentação, nem sua
educação, nem sua natalidade, ao contrário há uns que a gente diz... o
máximo número de filhos que têm, têm um ou dois, eles têm como que outro
projeto e estão como que com outra visão, então ai é quando a gente começa
a perceber... e que além disso cada um [cada indígena] fala diferente, e a
gente começa a perceber e a conhecer que o indígena é muito tímido, e que
todo é ’sim’, tudo é ’sim’, ’vacinou à criança?, sim’, ’já tinha vindo antes? ,
sim’ é sim e sim e sim, e quando já há muito sim reiterados, é que a gente
percebe que na realidade não estão entendendo muito (MED3).
96

À medida que o relacionamento com os usuários indígenas torna-se contínuo e as


relações intraculturais vão se estreitando em níveis mais profundos (SILVA, 2013), são cada
vez mais frequentes as aproximações dos profissionais de saúde às práticas de “medicina
tradicional” dos indígenas. Inúmeras vezes os participantes citaram situações nas quais
presenciaram o uso de alguns recursos terapêuticos empregados pelos usuários para distintos
fins.

Eu tive uma experiência em pronto socorro quando estava lá, uma mulher
grávida que era G1 [gesta 1] e supõe-se que em uma G1 o trabalho de parto
demora 24 horas e ela chegou e estava dilatando... estava em dois
[centímetros de dilatação], e em duas horas, três horas nasceu o bebê, então a
gente percebeu que [outras pessoas] estavam dando algo para ela [beber],
nunca soubemos o que, por que eles [indígenas]) às vezes não gostam de que
a gente lhes pergunte, mas a gente percebeu que a ela [mulher grávida] lhe
estavam... tinham uma garrafa e lhe estavam dando algo, então depois lhe
perguntamos e ele disse, “não, é uma água com ervas”, “bom que ervas
utilizou?” nunca contou para gente o que era, mas a gente percebeu que foi
algo para ajudar-lhe a acelerar o trabalho de parto (E4).

Ser observadores ou em alguns casos partícipes diretos, permite aos profissionais


conscientizar-se sobre a importância das práticas “tradicionais” para os povos indígenas.
Inclusive, alguns deles relatam como, ao longo de suas vivências, foram reformulando seu
ceticismo em relação a essas práticas, sobretudo no que diz respeito à efetividade.

Tive que acreditar à força na medicina tradicional porque no princípio não


acreditava, mas à medida que foi passando o tempo tive que ver ela e como
não acreditar no que a gente vê?... eles [os indígenas] têm muitos ritos para
os partos e para as grávidas. [outras pessoas] tendem a lhes ministrar alguns
tipos de ervas, de ervinhas... de águas de ervas para que o parto seja mais
rápido. Eu experimentei, então porque experimentei posso dizê-lo, na
realidade essas ervas aceleram sim o processo de parto e, imagino que você
poderá, se entrevistar o médico, ele vai falar o mesmo que eu, então foi algo
que se na realidade tivessem contado para mim eu não estaria falando isso
para você, se contassem isso para mim eu não acreditaria, mas porque eu o
vi posso falar, então é efetivo sim (DEN2).

A analogia de acreditar à força na “medicina tradicional” reafirma que,


certamente esse processo de aproximação e assimilação do desconhecido e diferente é
caracterizado por uma “tensão latente e contínua” (MARTINS, 2017), presente no cotidiano
de qualquer profissional, até mesmo dos mais experientes.

É um ponto de desconhecimento para mim, porque eles têm seus próprios


rituais mas a gente não sabe até onde esses rituais servem e até onde não,
97

mas... eles também não compartilham com a gente tão livremente suas
práticas, mas eles geralmente acreditam muito nas rezas, então eles rezam os
alimentos, rezam as hemorragias, rezam a gravidez... mas eu tenho mais
cuidado com as garrafadas que eles têm, porque na verdade não sei que tipo
de substâncias são, mas tenho podido ver sim que causam hemorragias,
tenho podido ver sim que estão perfeitamente bem e bebem uma preparada
de eu não sei o que e começam a convulsionar, ai eu digo “que substância
será?” “Que planta será?” “Qual componente será?” mas além disso... suas
rezas e essa questão... não, não, aí nem os entendo e também não lhes ponho
muita mística, mas ao contrário sou sim desconfiada sobre as substancias
que eles bebem, porque precisamente depois me põem a correr a mim18
(MED3).

Os dados mostram que os profissionais não-indígenas são constantemente


interpelados pelas diferentes concepções terapêuticas, de saúde e doença dos indígenas, que
não conseguem explicar sob as bases de sua formação biomédica.

Isso foi um choque grande, um choque bastante grande... porque lhe inserem
e sobretudo na universidade lhe inserem o chip de ‘que os medicamentos,
que este é o mecanismo de ação, que é assim que funcionam e que por esta
razão é que para isto se dá isto, você o deve usar desta maneira, estes são os
efeitos secundários’ quando eles [os indígenas] falam aqui de suas plantas e
de suas rezas, a gente não tem maneira de dizer como isso funciona no
organismo, então é um choque bastante duro, e o fato de que a gente percebe
que funcionam sim, a gente fica como... ou seja, e tudo o que tem me
ensinado na universidade?... a gente começa a duvidar, não é tudo o que
ensinam à gente na universidade.... pois, obviamente não serve da mesma
maneira, mas aqui sim, é como esse choque de dizer esta é minha verdade e
só minha verdade, e quando a gente abre os olhos e olha ao seu redor há
muitas formas de vê-la (E3).

Assim, “O chip posto pela universidade”, conforme expresso pelos participantes,


semeou neles o discurso etnocêntrico, com o qual tentaram fazer uma leitura inicial do
contexto. Porém, ao perceber esse discurso insuficiente diante do universo de concepções e
práticas de saúde dos usuários indígenas, alguns deles começaram a se questionar sobre suas
próprias ‘verdades’ e ‘pressupostos’.
Os choques aparecem, nesse caso, como produto da tensão ao confrontar o saber
biomédico com lógicas e racionalidades “outras” que partem da diferença e ultrapassam suas
fronteiras. Lógicas “outras” que, conforme afirma Walsh (2012), não se referem a “modos
alternativos” das formas de pensar, saber, ser e viver inscritas na razão moderno-ocidental-
colonial, senão aquelas assentadas sobre histórias e experiências da diferença. Nesse

18
Me põem a correr a mim, é uma expressão coloquial para se referir a que “tem que trabalhar a mais”.
98

processo, como afirma Pereira (2012) “aparecem zonas obscuras nas quais os saberes dos
profissionais são incapazes de alçar aos saberes indígenas” (PEREIRA, 2012, p. 522).
Contudo, revela-se que, mesmo sendo uma situação conflituosa, as fissuras ou
zonas obscuras enquanto produtos desse confronto parecem ser espaços de abertura para que
os profissionais comecem a interrogar seu próprio conhecimento e, portanto, os limites da
biomedicina. Segundo Pereira (2012), os profissionais de saúde que trabalham em contextos
indígenas vivenciam, em encontros imprevisíveis com uma alteridade radical, ocasiões em
que a biomedicina já não é mais suficiente. Processos complexos de limitações, de equívocos,
de necessidades e incompletas traduções (desde simples traduções linguísticas a zonas de
incomensurabilidade), que os afetam.
Acrescenta o autor:

É certo que, nesses encontros, profissionais de saúde vêm produzindo


sistematicamente traduções etnocêntricas, como muito já se alertou. Todavia,
na experiência com a alteridade, não se pode controlar tudo; e as histórias
dos profissionais apontam para essa instabilidade: algo afeta neles que se
veem na presença de um Isto sem nome, sem precedentes no vocabulário e
na sintaxe; um Isto que se impõe no momento da atuação (PEREIRA, 2012,
p. 526).

Essa questão também pode ser analisada sob a categoria de racionalidades


médicas proposta no campo da saúde coletiva como alternativa de construção de uma nova
epistemologia em saúde. Segundo Nascimento (et al., 2013), parte-se da premissa de que
existem, nas sociedades, mais de uma racionalidade médica, contrariamente ao senso comum
ocidental que admite somente a biomedicina como portadora, no sentido científico do termo.
Dessa forma, todos os sistemas médicos – incluindo o biomédico e o indígena -
são portadores de uma cosmologia que qualifica as raízes filosóficas das racionalidades
médicas, sendo a da biomedicina “sustentada na física clássica newtoniana e na metáfora
cartesiana do corpo como máquina direcionada pela mente” (NASCIMENTO et al., 2013, p.
3597). Segundo os autores, o reconhecimento da cosmologia como dimensão:

Permite a constatação de limites na racionalidade dos sistemas médicos, uma


vez que a cosmologia, própria da cultura em que se insere, é enraizada em
um universo simbólico de sentidos que incluem imagens, metáforas,
representações e mesmo concepções que são parte de um imaginário social
irredutível ao plano de proposições teóricas e empíricas demonstráveis pelo
método científico (NASCIMENTO et al., 2013, p. 3597).
99

A partir do olhar de usuários e profissionais indígenas, a questão dos limites dos


conhecimentos (ocidentais e tradicionais) também foi posta nos seus relatos, porém de
maneira diferente. Ao longo de seus depoimentos, os participantes indígenas descreveram
uma espécie de distinção entre dois tipos de classificação de doenças, com as quais definem
os limites e alcances dos tratamentos: Por um lado, as doenças que alguns chamaram de
“postizas” “daños” ou “males” - que aqui chamaremos de doenças próprias -; e, por outro,
as doenças dos “brancos” ou “comunes” -que chamaremos de doenças ocidentais19-.
As doenças próprias são diferenciadas das doenças ocidentais por apresentar
sintomas característicos, como a descrição a seguir:

Camajay é uma doença natural sim, dá febre intensa, dor de cabeça, dor de
estômago, diarréia, debilidade, perda de peso, tem uns seis sintomas. Sim, há
[cura] para isso... Palo Caribe, esse lhe dá vômito com sangue porque está
cortando o intestino, sim, senão sabe contra20 isso é rapidinho, dura, se
muito, um dia e até outro dia [morre], mas quando lhe coloca um pouquinho
[da substância] assim para incomodá-lo lhe dá diarreia, pinta con sangre21,
vomita pouquinho, você pode comer, ou pode andar ainda, mas se segue
avançando, quando alguém se vê assim, se sabe que é Palo Caribe, se a
gente consegue contra se calma rápido, isso sim, como tomar paracetamol
para a dor de cabeça, mas quem sabe, quem não lleva del bulto22” (MIC1.
Curripaco).

Feitiçaria, vingança, animosidade (entre muitas outras), são as causas – visíveis ou


invisíveis - que os indígenas outorgam às doenças próprias:

Há doenças que por exemplo, o médico [ocidental] não pode detectar, ou


seja, aqui as pessoas usam mais que tudo a bruxaria, tudo isso... Essas são as
coisas que o médico não pode tratar. Por exemplo fazem malefícios e por
exemplo quando a gente leva ao hospital a uma pessoa e o médico não pode
detectar é porque não é uma doença comum, e nessa parte obviamente a
gente intervém com a medicina tradicional... ou seja, tudo o médico não vai
detectar, porque nem tudo é uma doença comum... há povos indígenas que
tem mañas23 e há vezes que pela inveja somente por fazer o mau eles o
fazem, então por isso é importante ter conhecimento sim (U14. Cubeo).

19
Conforme Novo (2008) os termos “medicina ocidental” e “biomedicina” podem ser considerados sinônimos
ao referir-se “às práticas técnico-sanitárias desenvolvidas nas sociedades ocidentais, em contraposição às
chamadas terapêuticas tradicionais” (NOVO, 2008, p. 13).
20
Contra refere-se à cura adequada (contra) um malefício ou bruxaria.
21
Pinta con sangre, refere-se a ter urina ou defecações com sangue.
22
llevar del bulto, é uma expressão para dizer que vão ter problemas, que vai ter que “carregar problemas”.
23
Maña refere-se ao artifício, artimanha ou habilidade para conseguir um determinado resultado, no contexto, o
indígena usa o termo para descrever a capacidade que tem alguns indígenas para gerar doenças em outros.
100

Isto posto, essas doenças são difíceis de ser diagnosticadas pela medicina
ocidental. Da mesma forma, algumas doenças ocidentais (como o resfriado) são complexas de
ser tratadas com “medicina tradicional”.

A primeira coisa que eu fiz também com um filho que ficou doente na vez
passada, meu filho maiorzinho que tem três anos, foi que eu acudi ao médico
pelo resfriado, porque é um caso que talvez a medicina tradicional não pode
curar, enquanto dores talvez assim como coisas musculares talvez sim,
podem eles sim [curadores tradicionais] ou qualquer coisa estomacal que a
gente toma, ingira... coisa que não lhe serve ao ventre isso sim talvez eles
possam curar, mas quanto ao resfriado, eu acho que eu pela minha parte
primeiramente ir ao médico, de uma vez ao médico (U11. Puinave).

Dessa maneira, na perspetiva dos participantes indígenas, as doenças que provêm


de “seu ambiente”, ou seja, as doenças próprias precisam ser curadas com tratamentos
derivados da “medicina tradicional”; as doenças ocidentais requerem ser com curas
ocidentais.
Tal concepção, segundo Langdon (2014), tem sido adotada como ponto de partida
para entender a lógica dos procedimentos diagnósticos e terapêuticos dos povos indígenas nos
primeiros estudos da antropologia médica. Sob essa visão o tratamento segue a lógica das
causas: “doenças originadas por causas mágicas são tratadas com terapias mágicas; aquelas
contraídas por causas naturais são tratadas com terapias naturais” (LANGDON, 2014, p.
1020).
Embora, como alerta a autora, a relação entre a causa e o tratamento não se reduza
apenas às noções etiológicas, pois são vários os fatores que intervêm na escolha das terapias
(LANGDON, 2014a), pode-se inferir que para compreender a distinção entre as doenças e
seus tratamentos, os limites dos conhecimentos ocidentais e tradicionais são delineados pelos
usuários indígenas:

Há coisas que são naturais que não são para o curandeiro, como uma
cirurgia... e se requer pessoal de experiência dependendo da doença, porque
todas as doenças não vão à botânica, nem ao curioso [curador tradicional],
senão vão a um profissional [de medicina ocidental], ou a uma cirurgia (...)
pelo menos o que se chama... há muitas coisas, o pujo24, pelo menos, ou o
hielo25, não se vão curar com medicina ocidental, as pessoas que sofrem de
hielo ficam como se fossem desnutridos, e aí se banham eles com plantas e
se vai isso (U12. Piapoco).

24
Doença própria.
25
Doença própria, poderia ser traduzida como “gelo”.
101

No caso dos profissionais de saúde indígenas esses limites foram igualmente


considerados durante sua formação. Como relata o participante a seguir, na universidade se
adquirem conhecimentos acerca das noções e práticas da medicina ocidental, mas não sobre
as doenças de ‘seu ambiente’:

Na universidade era como distinguir as coisas do ocidental, pois as doenças


que a gente vê são mais que tudo, surtos, apendicites, coisas assim, que a
gente dizia sim, isso acontece? Sim, mas isso não vamos curá-lo com uma
reza... ou seja, lá [na universidade] a gente vê as doenças como tal, aqui há
coisas que você vê que a pessoa está doente, mas as doenças são de outro
ambiente” (E1. Puinave).

Sendo representantes das duas racionalidades (indígena e ocidental) os


profissionais indígenas vivenciam os encontros com a alteridade de forma evidentemente
diferente dos profissionais de saúde não-indígenas. Ao encontrar-se no ponto do meio da
interseção entre as diferenças, os profissionais indígenas não percebem a medicina ocidental e
a “tradicional” como duas visões opostas, mas complementares.
Assim, as questões trazidas pelos usuários e profissionais indígenas sugerem que
o delineamento claro dos limites do conhecimento próprio e a necessidade de abertura a
saberes “outros” (PEREIRA, 2012) vislumbrando igualmente seus limites, pode-se minimizar
possíveis choques e, portanto, facilitar as convergências entre as diferenças.

5.2.3 Procurando a cura: Práticas e fatores que influenciam a escolha de tratamentos

O modo como os usuários indígenas fazem escolhas de maneira relativamente


autônoma sobre as possíveis opções de prevenção, terapia e cura emerge como parte
fundamental dos processos interculturais presentes no cotidiano da APS. Nesta tomada de
decisões conflui um conjunto de fatores a serem considerados (Quadro 6), como a família, as
distinções sobre a origem das doenças, as crenças religiosas, a disponibilidade de acesso,
entre outros, que serão descritos a seguir.
102

QUADRO 6
Fatores que influenciam a escolha de tratamentos

- Primeira instância de tomada decisões sobre o cuidado da saúde. Ajuda


a determinar a gravidade da doença e definir a instância na busca de
terapia (curadores tradicionais e/ou por serviços de saúde ocidentais,
hospital, centro saúde etc.).
- Fornece saberes e práticas “tradicionais” para cuidado da saúde,
Família
herdadas pelos membros mais velhos.
- Impulsiona práticas de autoatenção: Integração de saberes
provenientes de diferentes tradições médicas (tradicionais/indígenas e
biomédicas) por meio de remédios caseiros.

Distinção entre as - Se a doença é identificada como ocidental preferivelmente requer


doenças e curas próprias tratamento ocidental e se a doença é própria requer tratamento
e ocidentais “tradicional”.

- Em certas ocasiões recursos da medicina ocidental são preferidos por


serem considerados mais práticos quando comparados às terapias
Praticidade e efetividade
tradicionais.
dos tratamentos
- Reconhecimento do valor das provas diagnósticas e os medicamentos
da medicina ocidental. Reivindicação do direito a seu acesso.

- A facilidade em termos de disponibilidade, transporte, e preço


O acesso aos serviços de influenciam a escolha da instância na procura de terapia.
saúde ocidentais ou - Serviços ocidentais são limitados em algumas aldeias afastadas.
tradicionais - A medicina tradicional, por meio de curadores tradicionais, é limitada
em aldeias que não contam com curadores tradicionais.

- Comunidades indígenas com crenças religiosas evangélicas evitam a


Crenças religiosas
atenção por meio de pajés.

- Existe consenso sobre o comprometimento das formas de transmissão


A perda/transformação
dos conhecimentos tradicionais em saúde, que tem afetado a preservação
de saberes “tradicionais”
da “medicina tradicional”.

Fonte: Elaboração própria para fins deste estudo. Dados de pesquisa 2019.

A família foi destacada pelos participantes como a primeira instância de tomada


decisões sobre o cuidado da saúde, sendo um espaço importante da prática cotidiana da
“medicina tradicional”. Em concordância, vários autores já têm apontado a importância da
família para compreender os processos de escolha dos itinerários terapêuticos, por constituir-
se a primeira arena de assistência informal dos grupos sociais (LEITE; VASCONCELLOS,
103

2006; LANGDON, 2007; HELMAN, 2009; MENÉNDEZ, 2009, 2016, 2018; SCOPEL,
2013).
Muitos dos saberes e práticas “tradicionais” empregados no âmbito familiar são
herdados e desenvolvidos pelos membros mais velhos como pais e avôs:

A medicina tradicional para nós [indígenas] são conhecimentos e saberes


ancestrais, que são transmitidos pelos avôs, avós ou os pais. Eles o passam
aos filhos ou aos netos, as medicinas tradicionais; eu por exemplo, eu
conheço 30 peças de medicina tradicional que eu sei que são efetivas, são
boas, e que as tenho ensaiado, então no povo Curripaco acredito que a
maioria sabe medicina tradicional, há alguns que menos há uns que mais,
assim... Eu com meu pai aprendi muita medicina tradicional, minha irmã
maior também (U21. Curripaco).

Não, pois como minha mãe é a que mais ou menos sabe disso [medicina
tradicional], então ela mesma a prepara, somente nos dá. Sim, ela o prepara e
sim, digamos, nós dá. Hum... eu acredito que foi em março, o meu irmão que
tinha, não sei, uma dor na cabeça, era intenso, ou seja, não passava com
nada, então minha mãe lhe conseguiu [um remédio] e deu para ele e
melhorou (U16. Curripaco).

Dessa maneira, como se pode notar nos relatos, a prática da “medicina


tradicional” exercida nas famílias dos usuários é comumente realizada por seus próprios
membros, sem precisar necessariamente da orientação ou supervisão de curadores tradicionais
(pajés, parteiras, sobanderos26 ou ervateros).
Neste ponto, chama atenção a descrição de certas práticas de cuidado empregadas
no interior de algumas famílias, sobretudo no controle de doenças crônicas como diabetes e
hipertensão:

Nós mesmos sim, ou seja, a gente mesmo prepara [o remédio]. Eu, de minha
parte faço remédios às vezes... pra a diabetes, às vezes pra a tensão, pra os
rins, pra úlcera... assim pra a úlcera gástrica. Eu tenho as plantas ali, veja
[aponta a horta da casa], por aí estão semeadas. Fervendo a folha, se toma a
água, a cocinadura,27 se toma, e vêm vários [indígenas doentes] com gastrite
e eu lhes tenho apresentado isso... tensão e princípios de diabetes me
disseram a última vez que fui ao médico e me deram umas pílulas, mas já
tenho me sentido bem, colesterol também tinha alto e já... já fiz o remédio eu
mesma, com a folha de abóbora e também com as pílulas que me deram
(U17. Cubeo).

Meu pai é que sabe [medicina tradicional], mas eu estou aprendendo. Minha
irmã também está aprendendo com ele, nós estamos aprendendo com meu

26
No Brasil poderia ser equivalente ao massoterapeuta.
27
Cocinadura, no contexto, refere-se ao resultado obtido depois de ter fervido folhas em água.
104

pai, sim. E por exemplo, minha irmã é diabética e ela também toma remédio
caseiro, e quando ela se sente mal, ela toma uma pílula das que lhe dão no
hospital, mas ela não toma tanto, o tempo todo essas pílulas, então quando se
sente mal é quando ela toma uma. Ela toma isso que lhe dizem folha de
raya... há outro, não sei como se chama, outro palo28, mas minha irmã é que
sabe como se chama esse palo, e disse que ela tem se sentido bem sim (U18.
Curripaco).

Além de incluir o uso de rituais e preparação de remédios provenientes do saber


herdado pelos mais velhos, a “medicina tradicional” desenvolvida nas famílias indígenas
acrescenta outra série de práticas que misturam alguns recursos provenientes do saber
“tradicional” (sobretudo remédios de plantas) com recursos trazidos da medicina ocidental
(incluindo medicamentos autoformulados ou formulados pelos médicos ocidentais). Assim,
como resultado da integração de saberes provenientes de diferentes tradições médicas
(tradicionais/indígenas e biomédicas), os “remédios caseiros” constituem um dos principais
recursos com os quais as famílias dos usuários indígenas resolvem os problemas de saúde ou
de mal-estar de seus membros.
Nesse sentido, os elementos de diferentes formas de atenção disponíveis no
território são adotados, (re)interpretados e usados pelas famílias segundo suas necessidades e
prioridades, conforme Menéndez (2018) denomina como práticas de autoatenção, referindo-
se a:

As representações e práticas que a população utiliza tanto individual quanto


socialmente para diagnosticar, explicar, atender, controlar, aliviar, suportar,
curar, solucionar ou prevenir os processos que afetam sua saúde em termos
reais ou imaginários, sem a intervenção central, direta e intencional de
curadores profissionais. A autoatenção implica definir a autoprescrição e o
uso de tratamentos de maneira total ou relativamente autônoma, inclusive já
têm sido indicados por curadores das distintas formas de atenção
(MENÉNDEZ, 2018, p. 106, tradução nossa).

Para o autor, as práticas de autoatenção desenvolvidas, sobretudo, no interior dos


grupos familiares constituem um dos elementos decisivos em termos de interculturalidade ao
nível microssocial. “É por meio dessas práticas que é possível observar os usos simultâneos
de formas tradicionais e biomédicas de atenção e cura, para além das possíveis diferenças
culturais e epistemológicas que possam existir entre elas” (MENÉNDEZ, 2016, p.114,
tradução nossa).

28
Palo, refere-se ao caule de uma planta.
105

Segundo o autor, a noção da autoatenção difere do autocuidado, pois muda o


foco da ação do profissional de saúde para o grupo local. “Enquanto o autocuidado implica a
adesão do paciente aos valores e às instruções biomédicas, a autoatenção enfatiza a
autonomia do grupo doméstico do paciente na articulação dos recursos terapêuticos
disponíveis, na criação de novas articulações” (MENÉNDEZ, 2016 apud LANGDON;
GHIGGI JR, 2018, p. 116).
Tal proposta, de acordo com Langdon (2018), tem sido adotada para entender a
dinâmica da pluralidade terapêutica na saúde indígena. Nesse sentido, estudos na área da
antropologia da saúde têm se aprofundado na compreensão dos significados e dinâmicas das
práticas de autoatenção desenvolvidas no interior de diferentes comunidades indígenas no
Brasil e na Colômbia (PEREZ-GIL, 2010; SCOPEL, 2013; DIAS-SCOPEL, 2014;
LANGDON, 2014b; NOGUEIRA; GARNELO, 2018; PONTES; REGO; GARNELO, 2018;
PORTELA, 2018).
Algumas pesquisas têm verificado, por exemplo, que em experiências particulares
como a gravidez e o parto no povo Munduruku, os saberes considerados “tradicionais” não se
restringem aos especialistas e se compartilham com várias pessoas da família, em especial, as
mulheres mais velhas (DIAS-SCOPEL; SCOPEL, 2018); ou que os indígenas Kaingang
diagnosticados como hipertensos ou diabéticos têm desencadeando uma série de práticas de
autoatenção, que incorporam elementos provenientes do saber médico “tradicional”, do
conhecimento biomédico e de crenças religiosas da igreja pentecostal (PORTELA, 2018).
Da mesma forma, a família cumpre um papel importante em determinar a
gravidade da doença e em definir a instância na busca de terapia, podendo optar por curadores
tradicionais e/ou por serviços de saúde ocidentais (hospital, posto, centro de saúde ou
farmácia):

Quando adoecemos aqui, primeiro que tudo, nós fazemos remédios aqui,
remédio caseiro, medicina [tradicional] e quando adoecem os bebês assim,
as crianças não as banhamos, somente as deixamos com uma toalhinha,
limpá-lo, para que não se complique mais para frente porquê... se já vemos
que já não podemos, aí sim, nós vamos pra onde está o enfermeiro, se o
enfermeiro diz “não posso, que já está muito complicado” aí devemos ir pra
lá, pra o hospital grande, porque mais que todo, são as crianças que adoecem
aqui, agora quando está chovendo lhes da pneumonia... isso, mais que todo
isso que é perigoso nos bebês (U15. Curripaco).

Sim, com a criança também, minha mãe é que lhe dá [remédio]... médico
tradicional que tenhamos aqui? Não, isso não, são os papais da gente ou os
avôs, que transmitem os saberes, são eles que nos dão os remédios. Mas
então assim, quando a gente vai [ao curador tradicional], é quando a doença
106

está muito avançada ou coisas assim que a gente precisa de alguém que
saiba. Pois de vez em quando, só quando a pessoa requer. Mas assim, que
vamos por qualquer coisa? Não (U20. Curripaco).

Assim pode-se perceber a maneira com a qual as famílias dos usuários exercem
sua autonomia quanto ao que fazer, onde e quando consultar durante o processo de
adoecimento, busca de terapia e prevenção, independentemente do prescrito pelo sistema ou
pelos profissionais de saúde. Essa afirmação é confirmada por alguns autores, que destacam o
“poder de agência” das famílias indígenas e do hibridismo de suas práticas tradicionais em
saúde, como mecanismo de resistência frente à hegemonia biomédica (LANGDON, 2007;
SCOPEL, 2013; ANDRADE; SOUSA, 2016; GHIGGI JR, 2018; MENÉNDEZ, 2018;
PORTELA, 2018).
Como mencionado anteriormente, um fator chave que pode influenciar a escolha
de tratamentos por parte dos usuários é a distinção entre as doenças e curas próprias e
ocidentais. Isto é, se a doença é identificada como ocidental preferivelmente requer
tratamento ocidental e, se a doença é própria, requer tratamento “tradicional”, conforme
relato:

Nós temos que conferir se é natural ou é algo... um daño ou é postiço, então


isso é o que nós temos que fazer. Se nós vemos que não é uma doença
natural vamos sim ao curioso [curador tradicional]. Vemos pelos sintomas
ou, a menos que haja uma dor intensa e você beba algo e o medicamento não
funcione... Há etnias que usam a questão do Palo Caribe. Porque o Palo
Caribe, se o dão de beber ou [colocam] em qualquer bebida e começa uma
diarreia e a pessoa começa a vomitar sangue e é uma febre como se tivesse
pneumonia, a febre é altíssima... Então ao ir ao banheiro percebe que a
pessoa tem essa doença ou que lhe deram isso, só ao ir ao banheiro se
conhece (U12. Povo Piapoco).

Entretanto, o modo como os usuários indígenas resolvem seus problemas de saúde


em seu cotidiano não se reduz estritamente a essa distinção entre as doenças e suas causas.
Como aponta Langdon (2007) “os eventos de adoecimento podem ser tratados de várias
formas, sendo influenciados por fatores sócio-econômico-políticos” (LANGDON, 2007, p.
114). Segundo a autora, na saúde indígena as causas atribuídas a certa condição de saúde não
correspondem, necessariamente, ao que as pessoas fazem ou escolhem como opção
terapêutica.
Tal alternativa encontra correspondência ao observar as práticas terapêuticas no
âmbito das racionalidades médicas, pois:
107

Constata-se uma diferença existente entre racionalidades médicas e práticas


terapêuticas. Embora, as práticas terapêuticas possam ser elementos de uma
dimensão de uma racionalidade médica específica, são frequentemente
utilizadas de forma isolada, deslocadas de seu contexto de significados para
outro, obedecendo mais a uma lógica empírica de eficácia, que a uma
coerência teórica dos sistemas. Propiciam assim o hibridismo e o sincretismo
das práticas no cuidado à saúde (NASCIMENTO et al., 2013, p. 3599).

Nesse sentido, foi possível identificar, que a tomada de decisões a respeito da cura
ou prevenção de doenças é influenciada por outros fatores próprios dos grupos indígenas ou
externos a eles, incluindo: a praticidade e efetividade dos tratamentos, o acesso aos serviços
de saúde (ocidentais ou tradicionais), a perda/transformação de saberes “tradicionais” e as
crenças religiosas.
Ao tratar-se dos tratamentos ocidentais os participantes referem:

(...) por exemplo uma mordida de serpente na cultura indígena, a grande


maioria, tem medo da serpente, porque é muito difícil encontrar uma cura
para aquilo. Em 90% dos casos, uma mordida de serpente se não for levado a
um centro de saúde onde lhe apliquem o soro [antiofídico] falece... Digamos
que uma porcentagem muito pequenininha dos sabedores podem ter a cura,
então o que acontece? Houve um acidente ofídico lá na comunidade,
chamamos o pajé, ele vai e o reza ou lhe traz suas bebidas e tudo isso e
muitas vezes duram 5 dias dando e dando [bebida], tem que fazer a dieta, a
família tem que fazer dieta também, não pode olhar ele, não pode tocar ele...
muitas coisas... Há pessoas que dizem que sabem curar, mas como é mais
fácil ir para um centro de saúde para que me coloquem o soro, pois vou
correndo para lá e não esperar que passem 5 dias para poder chegar lá,
quando a gente já está morrendo (BAC1. Puinave).

A medicina ocidental? Para nós [indígenas] é uma medicina que atua rápido,
enquanto que a medicina tradicional é uma medicina que é lenta, mais
lenta... ou seja, ela não vai reagir já, ela vai devagar, devagar enquanto a
ocidental é rápida, uma injeção é rápida, ou seja, as reações são mais rápidas
(U12. Povo Piapoco).

Assim, a medicina ocidental além de ser específica para curar doenças de branco
é distinguida pelos usuários indígenas por sua praticidade e eficácia para o tratamento de
algumas afecções. Dessa maneira, ainda que haja um reconhecimento por parte dos usuários
sobre a existência de tratamentos “tradicionais” para certos eventos (como as mordidas de
serpente), alguns preferem optar pelos recursos da medicina ocidental, por serem
considerados mais práticos em um dado momento.
Corrobora-se com os resultados da pesquisa feita por Garnelo e Wright (2001)
com os Baníwa no Brasil. Para este povo, o uso de tratamentos ocidentais representa uma
comodidade quando comparado às terapias tradicionais, mesmo para o tratamento de doenças
108

reconhecidas como indígenas. Isto porque, entre outras questões, “o uso de remédios de
branco gera a possibilidade de resolver a doença sem fazer os sacrifícios e restrições
alimentares e sexuais inerentes às prescrições tradicionais” (GARNELO; WRIGHT, 2001, p.
283).
Também os testes diagnósticos foram valorizados pelos participantes indígenas
como recursos importantes trazidos pela medicina ocidental.

É boa também [a medicina ocidental] porque a medicina do indígena às


vezes pois cura sim de algumas doenças, mas não tudo, o médico lhe faz
exames, toma à gente a pressão [arterial], ou seja, a [medicina] dos brancos
pois é boa porque eles veem a gente pelos aparatos e tudo isso (U17. Cubeo).

De fato, esse recurso é empregado às vezes na confirmação de diagnósticos para


posteriormente tratar a doença com “medicina tradicional”:

Eu acho que a gente tem que ir ao médico e tem que saber primeiro o que
tem, a gente não pode, ou seja, depende da doença que lhe digam [os
médicos] se consegue um remédio caseiro para isso (U19. Curripaco).

Pelo menos às vezes os médicos nos dizem “você tem tal doença”, então,
quando sabem qual é a doença que a gente tem, ou que as pessoas que sabem
sobre medicina tradicional já sabem qual é o diagnóstico que o médico te
deu, então eles [os curadores tradicionais] podem encontrar essa medicina
das plantas que serve ao diagnóstico que lhe deu os médicos, então isso é o
que também se trabalha aí (U20. Curripaco).

Evidencia-se assim como as tecnologias biomédicas são demandadas e


valorizadas pelos usuários indígenas, sendo parte das alternativas empregadas em suas
práticas de saúde.
Conforme Diehl e Grassi (2010) as pesquisas que têm abordado este assunto
confirmam a demanda destas tecnologias pelas populações indígenas, sobretudo no uso de
medicamentos, quer seja por questões emergentes do contato entre os indígenas e os não-
indígenas marcado pelas “trocas”, por observarem sua eficácia ou mesmo por estarem
inseridas nos processos tradicionais de circulação e distribuição de recursos.
Portela (2018) vai ainda mais além afirmando que os indígenas fazem uso dos
recursos biomédicos “como parte de uma reivindicação de seus direitos políticos, nesse caso
ao acesso a medicamentos e à saúde indígena e pública” (PORTELA, 2018, p. 61).
A esse respeito Cardoso (2015) acrescenta:
109

Do ponto de vista indígena, o acesso ao atendimento biomédico parece


significar não somente um recurso terapêutico necessário, mas também os
serviços (principalmente os medicamentos) são compreendidos como
“bens”, que tendem a ser incorporados e postos a circular de acordo com a
dinâmica interna das relações sociais e políticas (CARDOSO, 2015, p. 102)

Contudo, o acesso aos serviços ocidentais é às vezes limitado em algumas aldeias


dadas as condições do território (grandes distâncias e ausência de postos/centros de saúde em
algumas comunidades), sendo este outro fator importante que determina e/ou restringe o leque
de possibilidades para a escolha de tratamentos.
Caso haja dificuldade:

Quanto ao remédio tradicional também há remédios de paludismo, também


há remédios para a diarréia, tudo isso há remédio também. No caso em que
nós não temos remédio no posto de saúde ou não podemos ir para o hospital,
há que procurar talvez ao pajé para que consiga para nós o remédio e se não
funciona, o pajé tem seu direito de conseguir outro [remédio] (U11.
Puinave).

A [medicina] tradicional pois toca29 numa comunidade onde não há posto de


saúde próximo, há que utilizar a medicina tradicional nas comunidades...
Aqui [na cidade] não se precisa disso... mas pode se precisar quando não
estamos, no sábado, no domingo quando não há serviço, sim, sim... Se
continua utilizando isso [medicina tradicional], às vezes também quando a
medicina ocidental não dá um resultado efetivo (G1. Puinave).

Assim, quando não contam com medicamentos no posto de saúde de sua


comunidade ou existe dificuldade para mobilizar-se até o centro de saúde ou hospital os
usuários procuram por tratamento “tradicional”. Do mesmo modo, apresentam necessidade de
empregar estes recursos nos dias em que não há atendimento no posto de saúde.
Além disso, a dificuldade para o acesso aos serviços também é expressa em
relação às terapias tradicionais, pois não são todas as comunidades que contam com curadores
tradicionais. Conforme os dados reportados na avaliação do modelo, em 2017, onze dos 23
postos de saúde (44%) localizam-se em comunidades onde reside um médico tradicional, sem
que isto signifique que eles façam parte do posto (COLOMBIA, 2017). Soma-se ainda que,
em alguns casos, aqueles curadores que foram nomeados com o MIAS não são reconhecidos
por todos os membros da comunidade.

29
Toca é uma expressão que denota dever ou obrigação de fazer uma coisa em caso de necessidade.
110

O médico tradicional? Eu não sei onde ele está porque eu não tenho escutado
nada, nomearam ele na caseta30, mas ele nunca... não tem feito nada, pra
dizer a verdade. Sim, há um senhor lá do bairro Morichalito, mas ele nunca
dá remédio pra gente, ou não vão para lá, não sei como funciona isso, talvez
aos outros, mas eu não tenho ido por lá (U17. Cubeo).

Em relação a isso, alguns usuários e profissionais indígenas apontaram a


importância de reconhecer os curadores tradicionais com “conhecimento verdadeiro”, ou
seja, aqueles que contam com o saber e a experiência necessárias para curar certas doenças, a
fim de evitar colocar em risco sua saúde e incorrer em custos desnecessários:

Há umas pessoas [curadores tradicionais] que sabem mais que os outros, me


entende? Há outros que são mais, assim, meio regulares31, claro que eles
dizem que eles têm tratamento, mas há uns [curadores] tradicionais que não
funcionam, ou seja, têm pouquinho, pouquinho de experiência me entende?
Mas por parte dos avós eles sabem sim, mais do que os outros (U9. Puinave).

Há payés verdadeiros que conhecem medicina tradicional. Por que lhe digo
isso? Porque eu tenho tentado vários... Se você pergunta a qualquer pessoa
‘você sabe um remédio para tal doença?, sim... Então me dê 20 ou 50.000
pesos e te trago’ é pura mentira, ai é que eu percebi, o que interessa é ter o
dinheirinho, ganhar o dinheiro assim... podem trazer coisa, qualquer erva.
Mas há, possivelmente, os pajés que são verdadeiros, que sabem certamente
a medicina tradicional para curar a doença, Há alguns, mas todos os que vem
aqui e dizem que sabem, não são (MIC1. Curripaco).

Alguns curadores tradicionais cobram uma retribuição, na maioria das vezes


econômica, pela prestação de seus serviços. Porém vários participantes coincidiram em
afirmar que os curadores tradicionais com “conhecimento verdadeiro” não solicitam este tipo
de retribuição.
Segundo Ferreira (2013) o sistema de dádiva tem estado presente nos serviços
prestados pelos curadores tradicionais nas comunidades indígenas, sendo entendido como:

Um sistema de relações sociais estabelecidas entre pessoas que pode se


materializar em qualquer prestação de bem ou serviço, sem garantia de
retorno, com vistas a criar, ou recriar vínculos sociais (FERREIRA, 2013, p.
167).

Aparentemente, a forma como esse sistema configura-se atualmente na prestação


de serviços tradicionais em Guainía influencia a escolha do curador tradicional e o tipo de
serviço a demandar. Antigamente os curadores tradicionais solicitavam retribuição por meio

30
Tipo de quiosque, é um ponto disposto nas aldeias para reuniões com toda a comunidade.
31
Nesse caso “regulares” refere-se aos curadores tradicionais que não têm desempenho ótimo.
111

de favores ou mediante a troca de objetos produzidos diretamente nas aldeias (produtos de


caça, pesca, roupas etc.). Essa prática ainda é preservada pelos curadores mais velhos,
enquanto os mais novos passaram a exigir uma retribuição financeira pela prestação dos seus
serviços (NO. 27/03/18). Isto se deve, conforme Ferreira (2013), ao fato de que na sociedade
moderna, o sistema de dádiva convive ao lado do sistema econômico - o de mercado.
Daí pode-se derivar a associação feita pelos participantes entre a bagagem de
conhecimentos dos curadores tradicionais e o tipo de retribuição que estes solicitam: os
curadores mais velhos, ou seja, os mais sábios, não cobram dinheiro, enquanto os mais novos,
ainda aprendizes, o fazem.
As questões religiosas emergiram também como outro fator direcionador na
escolha de alternativas terapêuticas para curar seus padecimentos. No seu relato um usuário
do povo Piapoco referiu-se ao respeito:

O outro fator que nós temos é que aqui, já não existem os católicos, aqui
pertence à igreja evangélica, então alguns pertencem à igreja evangélica...
quando veio a Sofia Mulher que foi nos anos 1960, 1980, faz 30 anos
supostamente ela lhes proibiu a medicina tradicional, os curiosos [pajés]
porque, supostamente, na bíblia é proibido tratar ou curar com os curiosos.
Esse é outro fator que tem aplacado a medicina tradicional, ou seja, tem
diminuído a medicina tradicional... pelos evangélicos... Que nós não
podemos fazer isso (...) a pessoa que sabe já não o traz à luz, já é na sua casa,
já não era como antes... não se veem os xamãs vestidos, nem andando,
não!... é por isso: pela igreja evangélica que começou a disser que tem que
deixar isso, se você vai ao culto você tem que deixar isso, porque Deus não
vai te perdoar, são coisas assim... são coisas que lhes inserem as pessoas
(U12. Piapoco).

Cabe salientar que muitas das comunidades indígenas habitantes nas regiões
amazônicas vivenciaram - e continuam vivenciando - o fenômeno da evangelização com a
chegada de missionários de diferentes tradições religiosas. No caso de Guainía a ação da
igreja evangélica tem adquirido um lugar importante nos últimos anos, causando uma forte
influência nos saberes da “medicina tradicional” dos povos locais (GUAINÍA, 2009).

Não, quase não... (silêncio) ... não minha família não (silêncio)... Sim, eu
conheço alguns que vão lá [ao pajé]. Eles vão quando têm uma dor aqui
dentro do estômago [aponta para o estômago], pois não sei que é o que
fazem aí... isso lhes faz uma reza, eles vão e se curam com isso. Mas como
eu sou Cristiano32 quase não gosto disso, eu não vou pra lá, sim, é melhor
aqui sim [posto de Saúde], é dizer o que Deus fez para todos (U3. Puinave).

32
Cristiano em alguns territórios da Colômbia é considerado sinónimo de evangélico, pelo que nesse caso o
participante está dizendo que vai à igreja evangélica.
112

Dessa maneira, devido, direta ou indiretamente, à doutrina religiosa, muitos dos


usuários indígenas pertencentes à igreja evangélica manifestaram preferir optar por serviços
de saúde ocidentais, sobretudo nos casos específicos em que seria necessária a atenção de
curadores profissionais. Infere-se que essa negativa em consultar com os serviços tradicionais
tem a ver especialmente com a procura de curadores tradicionais, principalmente pajés, o que
não necessariamente interfere na realização de práticas de autoatenção – como já foi exposto
- ou na busca por outro tipo de curadores, seja parteiras ou ervateiros.
Aparentemente, ao se associar a figura do pajé à realização de rituais que incluem
as rezas, a bruxaria ou a invocação de espíritos, os usuários evangélicos evitam acudir a estes
especialistas (NO. 05/04/18). Conforme verificado por Ghiggi Jr. (2015) em sua pesquisa com
o povo Kaingang, no Brasil, os indígenas que frequentam essas igrejas continuam
valorizando, sobretudo, os remédios fitoterápicos e a manipulação de ervas como parte
importante de seu conhecimento “tradicional”, independentemente do credo religioso.
Finalmente, outro fator influenciador na escolha de terapias é a “perda” sobre
alguns saberes da “medicina tradicional”. Embora, muitos dos conhecimentos de “medicina
tradicional” sejam herdados no transcurso das gerações, alguns dos usuários revelaram que já
não contam com tal conhecimento:

Nós agora já não conhecemos a medicina tradicional, então para nós é


melhor a [medicina] ocidental, atendam mal ou bem a gente está sempre com
essa... Às vezes a [medicina] tradicional nós não sabemos como a preparar,
porque essa se prepara, e toca às vezes é pagar aos que já sabem [como
preparar] essas medicinas, aí vendem caro, e por isso para nós é melhor às
vezes a ocidental (U7. Sikuani).

Eu, de verdade, como eu sou indígena, alguns indígenas já não sabemos a


medicina de nós [tradicional], por isso eu gosto tanto de vir à medicina dos
brancos. Com isso, quando eu estou doente, eu sempre corro ao hospital.
Assim, os outros [indígenas] sabem sim de medicina indígena, mas nós não
(U2. Puinave).

Dessa forma, os usuários manifestam a necessidade de empregar os recursos


oferecidos pela medicina ocidental. Infere-se que pelo fato de serem pessoas jovens e
moradores da cidade não tiveram contato frequente com ambiente e os ensinos de seus pais e
avós.
Em muitas das conversas informais com alguns usuários, lideranças e
trabalhadores indígenas emergiu, frequentemente, a preocupação pela “perda” e resgate da
“medicina tradicional”. A maioria relacionava essa perda com a chegada das missões
religiosas ou com a forte influência do contato com os brancos e sua medicina ocidental (NO.
113

05, 24, 25, 30/04/18). Corrobora-se com o manifestado no Plano de Vida33 do resguardo
Paujíl:

Atualmente tem se perdido grande parte dos conhecimentos tradicionais ou


não existe a confiança suficiente nos médicos tradicionais, por isso a
medicina ocidental é usada (...). A perda dos conhecimentos tradicionais tem
se dado também, porque aqueles que trabalhavam como médicos tradicionais
têm falecido e em seu momento não transmitiram seus conhecimentos
porque consideravam que não existiam pessoas que cumprissem os
requisitos necessários (GUAINÍA, 2009. Tradução nossa).

Dessa forma, é evidente o consenso sobre o comprometimento das formas de


transmissão dos conhecimentos “tradicionais” relacionados à saúde, que tem afetado a
preservação da “medicina tradicional”. Entretanto, para além de uma visão indigenista
assentada no resgate e revitalização desses saberes, essa questão conduz, conforme Moreira
(2007), ao dilema entre a tradição e a mudança.
Vários autores têm questionado a maneira com a qual a “tradição” tem sido
abordada essencialmente como algo universal – comum a todas as comunidades indígenas - e
estática no tempo (LANGDON, 2007; MOREIRA, 2007; CARNEIRO, 2009; NOVO, 2011;
DIAS-SCOPEL, 2014).
Segundo Langdon (2007) “as práticas tradicionais em saúde estão em uma
transformação contínua devido às zonas de contato nas quais existem situações de
intermedicalidade” (LANGDON, 2007, p. 113). Zonas aquelas em que coabitam diferentes
tradições médicas, nas que podem existir conflitos, (re)apropriações, ressignificações e fusões
de elementos e técnicas (GHIGGI JR, 2018).
Nessa perspectiva concorda-se com Novo (2011) ao referir que:

A multiplicação das alternativas terapêuticas e sua utilização de forma


conjunta não conduzem, necessariamente, à “extinção” de culturas
[indígenas] ou de suas determinadas práticas profiláticas. Percebe-se que os
grupos indígenas procuram as terapias da medicina ocidental como uma
alternativa frente a muitas outras possíveis, mantendo suas próprias formas
de interpretação e de entendimento do processo de adoecimento (NOVO,
2011, p. 1368).

Os processos que influenciam a escolha de tratamentos nos usuários indígenas são


bastante complexos, uma vez que envolvem questões para além do simples binarismo de

33
O plano de vida é um documento desenhado pelas comunidades indígenas que contém as políticas e
programas de desenvolvimento social para ser executados nas terras indígenas.
114

doença tradicional-cura tradicional/doença ocidental-cura ocidental: a família, o acesso aos


serviços, a efetividade dos tratamentos, a religião e a perda/transformação de saberes.
Essa trajetória implica negociações e articulações entre os diferentes recursos
terapêuticos disponíveis no meio, o que se traduz num diálogo de saberes, ou mais
especificamente, em processos de interculturalidade materializados na diversidade de práticas
que os usuários e suas famílias executam cotidianamente para resolver seus problemas de
saúde, sem a mediação ou intervenção de instâncias oficiais.

5.2.4 Estratégias de “articulação de saberes”: o prescrito, o real e o esperado

Os relatos e observações de campo permitiram identificar diversas estratégias de


“articulação de saberes” no âmbito da APS em Guainía que, por uma parte, são propostas pelo
modelo de saúde MIAS e, de outra, resultam de construções desenvolvidas espontaneamente
pelos indígenas e profissionais de saúde no cotidiano da prestação dos serviços de saúde.
Entendendo a “articulação de saberes” como o trabalho conjunto entre os serviços
de atenção primária e as práticas de “medicina tradicional” indígena, essas estratégias serão
abordadas aqui a partir de três olhares: o prescrito, o real e o esperado. O prescrito,
descrevendo as estratégias trazidas pelo novo modelo de saúde MIAS à luz dos relatos de
trabalhadores de saúde e usuários indígenas; o real, revelando as estratégias que foram
identificadas operando no cotidiano da APS; e o esperado explicitando as propostas colocadas
pelos indígenas e profissionais de saúde para impulsar objetivos interculturais na APS.
Inicialmente é necessário considerar, que tanto indígenas como profissionais de
saúde salientam em seus discursos a importância da “articulação de saberes” no âmbito da
prestação dos serviços de saúde, porém em um sentido diferente.
No caso dos usuários:

As medicinas (ocidental e tradicional) são muito importantes. Nós, na vez


passada estivemos falando numa reunião... falamos que deveríamos utilizar
50 e 50, ou seja, 50 [%] de medicina tradicional e 50 [%] de medicina dos
brancos. É muito importante porque a gente precisa de ambas, de ambas as
coisas, ou seja, não vai se curar tudo com medicina tradicional nem vai se
curar tudo com a medicina dos brancos, ou seja, precisamente a gente teria
que utilizar de ambas coisas. Sim, com certeza [trabalhar em conjunto],
inclusive pois nos pareceu interessante esse tema e pois a maioria [das
pessoas] concordaram (U14. Cubeo).
115

Para os usuários indígenas a necessidade de “articulação dos saberes” biomédicos


e indígenas é compreendida no sentido de ‘complementação’, reconhecendo a importância de
empregar os dois recursos em igual proporção, de acordo com o tipo de doença e terapia
demandada.
De modo semelhante, a importância de conjugar estes conhecimentos é apreciada
pelos profissionais de saúde indígenas:

Sim, é necessário que se unam, porque há algumas coisas que não se curam
ou não se veem digamos com os [exames] de laboratório. Por exemplo, um
descuajo34, você vê a criança com diarréia, e lhe tomam laboratório e que
flora normal, só aumentada, mas de resto normal, normal e a criança segue
com diarréia e resulta que é uma criança que está assustada ou se assustou e
se chama descuajo e que há que sovar-lhe o estômago pra que lhe deixe isso
e não o levam em conta no hospital, então, quem o faz? o fazem os indígenas
que sabem disso (E1. Puinave).

Em concordância, a pesquisa etnográfica de Andrade e Souza (2016) demonstrou


que, para os Pitaguary, no Brasil, a associação de soluções distintas para doenças semelhantes
não diminui nem faz sobressair suas práticas tradicionais de cura, em detrimento das ações
convencionais da biomedicina. Pelo contrário, “para eles, a associação de seus saberes
indígenas com os conhecimentos da biomedicina incrementa suas possibilidades de sanar
certos malestares” (ANDRADE; SOUSA, 2016, p. 190).
Já do ponto de vista dos profissionais de saúde não-indígenas a relevância da
“articulação de saberes” aparece relacionada com os benefícios em nível da aderência e
acesso dos usuários aos serviços de saúde:

Definitivamente devem se articular sim a medicina tradicional com a


ocidental, porque isso facilitaria que eles acessassem um pouco mais os
serviços de saúde, que perdessem esse temor que lhe têm de ir a consultar
com os brancos, porque eles nos têm pavor. Há comunidades que, de
verdade, eles têm pavor de gente mestiça, de gente que não é indígena, então
o fato de que haja uma pessoa aí [médico tradicional], de sua mesma
comunidade, de sua mesma cultura, isso abriria as portas para a que eles, aí
sim, que se consultasse mais gente do que vai [atualmente] à consulta (E3).

Dessa maneira, enquanto que para os indígenas a “articulação de saberes” é


valorizada em um sentido bidirecional como uma maneira de potencializar as alternativas de
cura, para os profissionais de saúde não-indígenas essa interseção se reduz a facilitar a
geração de confiança nos usuários para com as instâncias biomédicas oficiais.

34
Doença própria.
116

Segundo Follmann (2011) a presença de um membro da comunidade nos serviços


de atenção é considerada pelos profissionais de saúde de grande relevância, já que para eles,
este pode assumir um papel de facilitador, tradutor e interlocutor entre a equipe e a
comunidade.
É preciso sublinhar, que o receio dos usuários por consultar os serviços médicos
ocidentais, é manifestado pelos profissionais, sobretudo, em relação às pessoas provenientes
do rio ou os mais velhos. De fato, durante o acompanhamento à comissão de saúde na zona
rural, observei como algumas pessoas “fugiam” para o mato ao notar a chegada da equipe de
vacinação (NO. 27/02/18).
Concorda-se com Pontes, Garnelo e Rego (2014) de que essa atitude dos usuários
não se refere à recusa à atenção biomédica propriamente dita, como já exposto, mas às
barreiras culturais nos serviços que impedem a interlocução e conduzem à imposição. Essa
questão, responde ainda à longa historia de contato colonial entre indígenas e brancos,
marcada por dominações, conflitos e oposições, que continuam influenciando fortemente as
relações entre usuários e profissionais de saúde em contextos interétnicos (FOLLÉR, 2004),
como em Guainía.
Por tanto, a “articulação de saberes”, no âmbito da prática, foi frequentemente
vinculada com algumas das estratégias trazidas pelo modelo de saúde MIAS, sendo este o
olhar do prescrito. A incorporação e nomeação de curadores tradicionais nos serviços de
atenção primária, constituiu a principal estratégia proposta pelo MIAS que foi destacada pelos
participantes:

O MIAS contempla muitas coisas e o documento é bastante completo


porque, inclusive, fala do que estou te dizendo: da interculturalidade, da
adesão de um médico tradicional à atenção primária em saúde, e dos
hospitais e postos (de saúde) contratado pelo mesmo hospital, pelo mesmo
modelo e em busca pois da saúde do indivíduo em última instancia (DEN2).

O que tem se planejado sempre desde a área administrativa é que tenhamos


um consultório de um médico tradicional e que se tenha no portfólio de
serviços da instituição [hospital] o médico tradicional... Também que seja
permitida a entrada do pajé e das parteiras na instituição (MED1).

Os profissionais de saúde não-indígenas ressaltaram exclusivamente aspectos


positivos que essa vinculação de curadores, “na teoria”, poderia trazer para o beneficio do
atendimento aos usuários indígenas. Porém, os usuários e profissionais indígenas indicaram
algumas dificuldades advindas da implementação dessa proposta:
117

Aqui [no resguardo] há um pajé que nomearam, mas neste momento quase
não se vê, não age quase, não sei o que acontece, talvez não tenha ânimo
porque tem um [pajé] que tem recebido capacitação, eu não sei o que
acontece... O que eu tenho entendido é que esse senhor [o pajé] tinha que
velar por nossa comunidade, visitando a comunidade para ver quem está
doente, mas isso não funciona (U11. Puinave).

No projeto está estipulado isso, de colocar o pajé, por isso é que se logrou o
novo modelo aqui, mas não está funcionando pelo momento, o quiosque35
[aponta o quiosque do posto de saúde] era para estar o pajé, o médico
tradicional aí, e onde está o médico tradicional? Já levamos dois anos, já
vamos para três anos e ainda não tem mencionado nada disso (G1. Puinave).

Embora alguns curadores tradicionais terem sido nomeados com a implantação do


MIAS, muitos deles ainda não atuavam nas aldeias nem nos postos ou centros de saúde. De
fato, durante o trabalho de campo e até o momento da escrita do presente documento, nenhum
posto ou centro de saúde conta com a presença de curadores tradicionais.
Uma questão frequentemente associada como causadora desse fenômeno,
sobretudo, pelos profissionais de saúde indígenas, é a dificuldade administrativa para
formalizar a contratação remunerada dos curadores tradicionais:

Eles [pajés e parteiras], com este novo modelo de saúde, eles querem
trabalhar, mas também querem um incentivo, isso é o que lhes falta, não há
forma de pagar-lhes, retribuir, porque você sabe que todos temos fome. Que
tal um pajé sentado o dia todo mas sem salário? Eles também querem
trabalhar, mas desde que o hospital lhe reconheça algo (AE6. Puinave).

A esse respeito, a ampla trajetória no desenvolvimento de projetos de articulação


da medicina “tradicional” indígena com os serviços de APS como iniciativa própria do Estado
no Brasil, no âmbito da Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas (BRASIL,
2002), representa um horizonte propicio para discutir esses achados.
Autores como Langdon (2007) e Langdon e Garnelo (2017) sinalizam que, de
forma similar ao modelo MIAS, uma vertente importante desses projetos tem se
fundamentado principalmente na figura do curador tradicional como representante da
“medicina tradicional” indígena, porém com alguns inconvenientes. De um lado, predomina
neles uma essencialização das noções de “cultura” e “tradição”, ao serem concebidas como
estáticas e universais (LANGDON, 2007), de outro, deixam de lado a extrema variedade de

35
“O quiosque" é um espaço habilitado nos novos postos de saúde para que o pajé preste seus serviços. Apesar
de que este espaço foi construído com o fim de ser uma maloca, o desenho arquitetônico desconhece as
características das malocas dos povos locais, pelo qual não é reconhecido como tal.
118

sistemas indígenas de cuidado e cura desenvolvidos, por exemplo, por meio das práticas de
autoatenção (LANGDON; GARNELO, 2017). Da mesma forma, Menéndez (2016) cita esses
inconvenientes ao referir-se a alguns dos projetos interculturais impulsionados em
comunidades indígenas no México, os quais igualmente centraram seus objetivos nos
curadores tradicionais e suas cosmologias, ignorando totalmente os processos de autoatenção
vivenciados no cotidiano dos microgrupos.
A contratação dos curadores tradicionais no âmbito desses projetos foi objeto de
algumas dificuldades, tal como posto pelos participantes em Guainía. Embora, como aponta
Ferreira (2013), a contratação remunerada dos curadores tradicionais faça parte da luta destes
povos pelo reconhecimento da “medicina tradicional” frente ao Estado, ela está condicionada,
necessariamente, à regulamentação de seus ofícios. Isto implica, segundo a autora,
empreender profissionalização dos curadores tradicionais para conseguir integrá-los aos
serviços de saúde. Porém, tal processo resulta complexo na Colômbia, ao não contar com
legislação alguma que regulamente e formalize este tipo de ofício.
Além disso, a implantação da figura do gestor comunitário foi outra estratégia
citada por pelos participantes:

Aí eles, no modelo, colocaram o gestor, ‘gestor comunitário’ o chamaram.


Mas esse gestor comunitário pensava-se que era para isso, para mediar entre
o ocidental e o tradicional, para orientar, mas agora ele está é coletando
dados, coletando coisas, só estatística (BAC1. Puinave).

Salienta-se a dificuldade que este profissional tem para exercer sua função de
“articulador de conhecimentos” conforme prescrito pelo modelo, limitando-se a realizar
atividades administrativas. Ainda que, essa função de “articulador” seja mencionada como
parte das tarefas a serem executadas pelo gestor comunitário (COLOMBIA, 2015b), a política
do MIAS não deixa claro como esse papel deve ser efetivado no âmbito da prática.
Como mencionado em outra seção deste documento, a figura do Gestor
Comunitário pode ser equiparável ao de Agente Indígena de Saúde (AIS), no Brasil. As
experiências documentadas a esse respeito têm demonstrado que sua função como mediador é
marcada por conflitos e ambiguidades. Ocupando o último lugar em uma equipe
hierarquizada, suas atividades limitam-se ao preenchimento de formulários, distribuição de
medicamentos e comunicados relativos às questões de saúde. Assim, embora o AIS considere-
o um representante da comunidade, ele não representa os saberes indígenas, nem exerce o elo
119

entre a sociedade indígena e o sistema de saúde conforme o esperado (LANGDON; DIEHL,


2007; DIEHL; LANGDON; DIAS-SCOPEL, 2012).
O encontro de pajés e parteiras, por sua parte, foi considerado pelos profissionais
de saúde indígenas e não-indígenas como outra estratégia importante para a troca de
experiências e o intercambio de saberes entre profissionais de saúde e curadores tradicionais:

Tenho visto aqui que fazem muitas vezes encontros, no ano passado assisti.
Tive a possibilidade de assistir ao encontro de pajés e parteiras, que é
quando eles se reúnem. Obviamente é articulado, acredito que, pela
Secretária de Saúde Departamental e eles vêm intercambiar saberes, a
secretaria [de saúde] vem e os capacita e lhes dá capacitação, ou induções de
coisas básicas que eles deveriam saber, em dado caso de que algo aconteça
nas comunidades (DEN3).

No mês de setembro fazem uma integração com os pajés e parteiras, então,


aí também nos levam, os técnicos de enfermagem e os microscopistas, para
estar com eles, para trabalhar em conjunto a medicina tradicional com a
medicina ocidental, isso tem que saber-se... porque isso é o modelo de saúde
(AE6. Puinave).

Esse encontro é um evento organizado anualmente pela SDS, em que participam


curadores tradicionais (pajés e parteiras) e profissionais de saúde (médicos, técnicos de
enfermagem, gestores comunitários, entre outros). O principal objetivo segundo a SDS é
promover o intercâmbio de conhecimentos e estratégias de vigilância comunitária em saúde e
interculturalidade. Embora esse evento ter sido implemetado há anos pelo governo do estado é
destacado pelos participantes como parte importante dos projetos fortalecidos com a
implantação do MIAS, porém reafirma o enfoque centrado, exclusivamente, nos curadores
tradicionais.
Além dessas propostas estabelecidas pelos discursos oficiais na tentativa de
“articular” os saberes e práticas indígenas e biomédicas no âmbito da APS, os dados
permitiram identificar outras estratégias que encontram-se operando espontaneamente no dia-
dia da prestação dos serviços de saúde, passando nosso olhar do prescrito ao real.
O assunto está presente nos discursos dos profissionais não-indígenas segundo
uma visão compreensiva da diferença:

A gente tem que respeitar as crenças e a cultura deles [dos indígenas]. Para
não chocar, temque fazer isso, de entrada você não impor que você é a
enfermeira e você é que sabe, e ‘aqui vai se usar somente a medicina que eu
lhes trago’, ‘a injeção é o único que serve’, não! assim não funciona,
primeiro tem que respeitar as crenças (AE9).
120

Ao assumir uma posição de respeito e tolerância para com as crenças e práticas de


saúde dos usuários indígenas, os profissionais de saúde desenvolvem diferentes estratégias de
“articulação de saberes” no seu cotidiano de trabalho.
Algumas das estratégias identificadas são realizadas por meio do estabelecimento
de “concessões” para o emprego de certas práticas de “medicina tradicional”, seja dentro das
unidades de atenção (postos/centros de saúde ou hospital) ou fora delas.

Eu, por exemplo, na medida do possível, lhes permito ter sua prática de
saúde dentro do posto [de saúde]. Então, lhes deixo sim fazer certas coisas,
mas certas coisas não. Se querem aplicar [sobre a pele] água ou ao alguma
coisa que levem porque consideram que isso vai curar o paciente, eu não
vejo impedimento, mas se querem dar-lhe algo para tomar, aí sim eu já
desconfio, porque não sei que tipo de substancia é e que efeitos tem
(MED3).

No hospital eles também [curadores tradicionais] podem entrar, porque eles


entram a orar, fazem umas rezas e a gente permite, o que não podemos
permitir é que quando o doutor diz: ‘nada via oral’, é nada via oral, porque
isso sim nos comprometeria a todos (AE9).

Eu permitia às grávidas que estivessem acompanhadas de suas parteiras e


deixava elas intervirem até certo ponto, mas se eu via que a parteira ia se
subir em cima da paciente, aí eu dizia, já! Porque elas queriam como que
tirar o bebê como se fosse pela força. Elas utilizam os lençóis, lhe apertam o
abdômen e penduram as grávidas, então isso não, mas ademais, eu lhes
permitia sim que estivessem, porque elas iam ser meu ponto de comunicação
(MED3).

Porém, essas estratégias partem do estabelecimento de limites segundo parâmetros


biomédicos:
“Então, sou de mente aberta com a medicina tradicional quando posso, mas
devo restringir quando considero que pode pôr em risco a saúde do paciente
ou gerar um efeito adverso (DEN4).

Dessa maneira, aquelas práticas “tradicionais” consideradas como “prejudiciais”


para a saúde do usuário – geralmente as que incluem a ingestão de bebidas (garrafadas) -, ou
que possam alterar o curso normal das atividades de trabalho, não são permitidas pelos
profissionais.
Embora, a postura empática frente às crenças e práticas dos usuários indígenas
prevalece na prática assistencial de alguns profissionais, há ainda a presença de uma atitude
impositiva que responde à formação cientificista da biomedicina. O desconhecimento do
mecanismo de ação e do principio ativo dos recursos terapêuticos dos usuários faz com que os
121

profissionais vejam as práticas dos sistemas tradicionais indígenas como elementos do


contexto a serem tolerados, ou no máximo incorporados de maneira parcial ou acessória, mas
não exatamente articulados (LORENZO, 2011).
Outras das estratégias desenvolvidas pelos profissionais não-indígenas executam-
se por meio de uma negociação de responsabilidades, efetuada em alguns casos junto com o
usuário e, em outros, de maneira mais impositiva:

Eu lhes falo: ‘bom, eu respeito o que você está me dizendo [uso de medicina
tradicional], mas parece-me que deveríamos também fazer isto’ ‘porque não
tenta isto... Deveríamos fazê-lo… Não o heche em saco roto36’ ‘tente
somente e me fala’ eu lhes digo assim [aos usuários], e então eles às vezes
começam e vêm depois, e dizem para a gente: ‘sim, você tinha razão’ (E4).

Eu fazia minha parte e lhes dizia ‘você faça sua parte, seu remédio, sua
agüita37 que lhe vai dar, o que lhe vai untar no estomago, ou vai rezar e eu
faço a minha parte, vamos compartilhar (AE9).

É muito frequente nos pacientes diabéticos que usem a erva de insulina,


então lhes digo: ‘vamos misturar seu tratamento tradicional e vamos
experimentar também o tratamento ocidental’, respeitando absolutamente
tudo o que eles recebem por parte do médico tradicional (MED1).

As posturas impositivas assumidas por alguns profissionais não-indígenas


dificultam, portanto, que o reconhecimento de saberes “outros” sejam postos como legítimos.
Nesse sentido, só uma parte das práticas da “medicina tradicional” indígena é aceita pelos
profissionais para ser integrada ao âmbito da prestação de serviços, em quanto a outra é
negada.
Conforme Dias Silva (2010):

Ainda que se admita a existência legítima de outra forma de compreender,


explicar e tratar doenças e infortúnios, a perspectiva hierárquica assumida
pelos profissionais do campo da biomedicina em relação ao “paciente”
decorre de um longo histórico de luta política pela construção da autoridade
médica (no sentido amplo). Essa forma de autoridade historicamente
construída como um poder-saber (Foucault, 1994) deve ser criticamente
analisada em face de um contexto de desmembramento das atribuições sobre
a gestão da saúde dos povos indígenas (DIAS SILVA, 2010, p. 6).

Como sugere a autora, essa atitude dos profissionais deve ser entendida não
somente com base em suas reações impositivas e/ou restritivas, senão diante uma situação
histórica que pressupõe uma análise das relações de poder em contexto (DIAS SILVA, 2010).
36
Heche em saco roto é uma expressão para se referir a não esquecer algo, nesse caso refere-se a não levar em
conta ou ignorar a recomendação da enfermeira.
37
Remédio caseiro a base de água.
122

É importante ressaltar, entretanto, os esforços feitos por alguns profissionais para


propor processos de negociação em termos de respeito e igualdade, apesar da interlocução
estar sujeita a hierarquias e exercício de poderes. Estes profissionais reconhecem a capacidade
de decisão e autonomia do usuário e sua família no modo em que vivenciam sua trajetória de
cuidado frente ao processo saúde-doença, abrindo espaços propositivos para o
compartilhamento de saberes e condutas terapêuticas articuladoras.
Essa abordagem poderia se relacionar com o que alguns autores chamam de
competência cultural (CAMPINHA-BACOTE, 2002; PAPADOPOULOS; LEES, 2002;
LÓPEZ, 2016a; PURNELL, 2019) sendo entendida como:

O processo no qual os profissionais de saúde se esforçam continuamente por


conseguir a habilidade e disponibilidade para trabalhar efetivamente dentro
do contexto cultural do usuário (família, individuo ou comunidade)
(CAMPINHA-BACOTE, 2002, p. 181. Tradução nossa).

A esse respeito, Orozco e López (2019) observaram, em seu estudo sobre como as
enfermeiras não-indígenas da área de saúde pública que cuidam da população indígena
Emberá-Chamí na Colômbia, conseguem desenvolver uma prática culturalmente competente
interatuando e compreendendo as peculiaridades intraculturais e de contexto dos usuários, que
leva a particularizar a atenção e mediar com a cultura hegemônica dominante do sistema de
atenção e com a prática profissional.
Foi possível identificar outras estratégias realizadas, particularmente, por
profissionais de saúde indígenas:

Um senhor que trabalha aqui no hospital [auxiliar de enfermagem], ele


sempre, quando está grave [um paciente], ele sempre também reza (U8.
Sikuani).

Como faz meu companheiro, sempre vêm [pacientes] quando há descuajo38,


então ele, na hora, começa a trabalhar sua medicina tradicional, ele sabe
sovar39 e tudo isso, sabe até algumas rezas, ou seja, quando não termina [a
doença] nós fazemos qualquer coisa, mesmo no posto [de saúde] (AE6.
Puinave).

Empregando algumas práticas de “medicina tradicional” dentro das próprias


unidades de prestação dos serviços, esses profissionais realizam a “articulação de saberes” no
seu trabalho cotidiano.

38
Doença própria que atinge, sobretudo, às crianças provocando sintomas de diarreia e dor de estômago.
39
Fazer massagem. Nesse caso é a terapia indicada para curar o descuajo.
123

Uma situação ao respeito foi presenciada por mim na pesquisa de campo. Durante
as observações em um posto de saúde, um profissional indígena foi procurado por uma
mulher com uma criança de mais ou menos 18 meses de idade. Esta relatou que a criança
apresentava sintomas estomacais nos últimos dias, depois de ter caído da cama, pelo que
suspeitava de um “descuajo”. Ele olhou para a criança, realizou uma massagem no estomago
e depois lhe deu três tapas nos pés. Confirmou o diagnóstico com a mãe e recomendou voltar
caso a criança continuasse com os sintomas. O procedimento não demorou mais de 5 minutos
(NO. 04/04/18).
Dessa maneira, enquanto os profissionais de saúde indígenas desempenham as
funções competentes à sua formação biomédica, tentam responder a outras demandas dos
usuários, seja exercendo práticas de “medicina tradicional”, atuando como intermediários com
outros profissionais de saúde (geralmente médicos) ou simplesmente transgredindo os limites
impostos:

Um dia um senhor chegou do rio que uma serpente o mordeu e minha


mamãe nesse dia estava aí também [no hospital] e eu escutava que gritava
esse senhor, passou dois dias gritando e eu perguntei à enfermeira que é
indígena: ‘moça o que tem esse senhor’, então me disse ‘é que foi mordido
por uma serpente’... eu contei à minha irmã, que esse dia estava também
cuidando da minha mãe, ‘salvemos ao senhor, ou seja, com a nossa coisa’,
lhe disse ‘fale com a enfermeira que é indígena e diga-lhe que deixe entrar [o
remédio] que nós sabemos preparar’ então minha irmã escondeu [o
remédio], o trouxe aqui [debaixo da axila] para poder entrar [no hospital],
uma garrafinha, e então falou com ela [a enfermeira indígena]. Às duas horas
da tarde a enfermeira disse ‘claro, senhora vamos aplicar [o remédio], mas
sem que a médica saiba porque vão me culpar’, então a enfermeira deixou
que minha irmã fosse levar esse remédio, e deu ele para o senhor, então tinha
um primo ao irmão que estava cuidando dele, então minha irmã lhe disse que
a cada momento aplicasse ali onde estava a ferida. Bom, lhe deu, lhe deu o
remédio e veja que às três da tarde esse senhor ficou calado, deixou de gritar
de dor, então o senhor se acalmou (U18. Curripaco).

A narrativa desta usuária mostra o dinamismo interno presente no cotidiano da atenção


dos serviços, manifestado a partir de formas criativas que tanto usuários como profissionais
indígenas empregam para deslocar as fronteiras postas pelas unidades de atenção. Essas
construções partem de um conhecimento empírico, de um senso comum (MAFFESOLI,
2010), que ultrapassa lógicas racionalizadoras.
Para Maffesoli (2009) a “centralidade subterrânea” da vida social manifesta-se nas
pequenas coisas, nos detalhes simples, às vezes, invisíveis na banalidade da vida cotidiana,
mas que constituem o núcleo central onde se encontram organizadas as coisas humanas. A
124

“centralidade subterrânea”, como sinaliza o autor, é expressa por meio de situações


anódinas, que têm significado em si mesmas e no presente (MAFFESOLI, 2010). São essas
situações, às vezes clandestinas, por meio das quais se concretiza a “articulação de saberes”,
que, de alguma forma, poderiam se traduzir em mecanismos de resistência frente ao saber e a
prática hegemônicos.
Finalmente, os dados revelaram que tanto usuários como profissionais indígenas e
não-indígenas apresentam expectativas sobre uma perspectiva “ideal” da “articulação de
saberes”, sugerindo possíveis caminhos para operacionalizá-la na prática.
Algumas propostas em relação à maneira de orientar o usuário para a utilização dos
recursos indígenas e biomédicos foram postas pelos profissionais de saúde indígenas:

Para mim o jeito seria por meio de um intermediário, alguém aqui [no ponto
central] que avalie as duas coisas e por isso deve ter os dois conhecimentos
[indígena e biomédico]. Porque simplesmente pode avaliar o paciente e pode
dizer ‘olhe, é melhor que consulte por este lado [curador tradicional ou
medico ocidental]’. Eu acho que pode ser o gestor comunitário, que tem que
saber algo de enfermagem necessariamente, mas tem que ser membro da
comunidade e que conheça de medicina tradicional também, desse jeito pode
orientar (BAC1. Puinave).

Os médicos antes diziam que primeiro [os usuários] fizeram suas rezas e aí
sim foram [ao hospital]. Eu lhes digo que não, para mim é o contrário, para
mim é melhor que eles venham aqui [primeiro ao hospital], se virmos que a
solução é a medicina ocidental, legal porque serviu, mas se virmos que lhe
fizemos [os exames de laboratórios], lhe aplicamos os medicamentos e não
se curaram, isso não é nosso, isso deve curar o médico tradicional (E1.
Puinave).

A forma como o usuário se mobiliza entre uma ou outra opção terapêutica foi uma
preocupação frequentemente manifestada pelos profissionais indígenas e não-indígenas. Essa
questão, que emergiu não somente em seus depoimentos, mas em conversas informais,
apontava sobretudo à maneira de evitar complicações pela consulta tardia dos serviços
(ocidentais ou tradicionais). Alguns comentavam que ao não contar com orientação adequada
os usuários fazem tratamentos desnecessários, que não resultam em melhorias da situação e
retardam a consulta e, consequentemente, um tratamento indicado, comprometendo em alguns
casos a vida (NO 20/02/18; 24/28/03/18).
Dessa forma, esperam que seja possível a implantação de uma espécie de “rotas”
padronizadas para orientar a conduta do usuário, seja por meio da figura do gestor
comunitário em seu papel de mediador ou determinando como inicio do ponto de consulta os
serviços médicos ocidentais.
125

A concretização dessas propostas poderia resultar na adaptação das chamadas


Rotas Integrais de Atenção (RIAS) contempladas pelo MIAS, cujo propósito é garantir o
atendimento integral do usuário a partir de diferentes intervenções de deteção precoce,
proteção específica, diagnóstico, tratamento, reabilitação, paliação e educação (COLOMBIA,
2016a). Entretanto, até o momento, não se tem contemplado a incorporação dos recursos
terapêuticos tradicionais na operação dessas rotas.
Submeter à aprovação das comunidades e das lideranças indígenas (incluindo os
pastores das igrejas) os curadores tradicionais que atuariam nas aldeias e postos de saúde,
também foi outro fato considerado de grande relevância pelos usuários e profissionais
indígenas:
Há que se avaliar os pajés verdadeiros com a comunidade. Porque eles
devem conhecer, saber quem é a pessoa e se concordam que essa pessoa seja
o pajé. Essa é outra coisa, porque há pastor na igreja, há capitães, há que se
levar em conta se eles concordam, porque há pajés que sabem soprar e a
esses [aos pajés] a religião evangélica não permite, por isso é bom consultar
com os pastores se concordam em encontrar um pajé, ou se não, se utiliza só
um hierbatero40 (MIC1. Curripaco).

Ainda que a questão do reconhecimento dos curadores tradicionais pela


comunidade tenha sido contemplada desde o início da implantação do modelo, foi possível
identificar que alguns usuários não reconhecem os curadores escolhidos para trabalhar na sua
comunidade. Infere-se que isto se deve, em parte, ao fato do modelo contemplar a inclusão
exclusivamente de pajés e parteiras, deixando de lado outro tipo de curadores como os
benzedeiros ou ervateiros.
Como dito anteriormente, a religião constitui um fator influenciador das escolhas
terapêuticas feitas pelos usuários crentes em Guainía. Configura-se importante consultar o
representante da igreja, nesse caso o pastor e ter a inclusão do “tipo” de curador tradicional no
posto de saúde, para evitar possíveis conflitos.
Langdon (2007) alerta sobre a importância de evitar incorrer no estabelecimento
de um papel genérico ou reducionista dos detentores dos saberes indígenas, pois muitos dos
projetos de “articulação de saberes” têm focado especificamente na figura do pajé como o
“médico dos indígenas”. Acrescenta a autora:

Um problema com vários destes projetos é que eles estabelecem um papel


genérico e reducionista do pajé, ignorando que a própria palavra pajé é um
estereótipo de certos tipos de especialistas rituais que atuam como

40
Curador tradicional que usa ervas.
126

mediadores entre o mundo visível e o invisível. Frequentemente, estes


projetos reduzem os vários papéis de especialistas em cura e em rituais a um
só. Várias práticas e detentores de saberes acabam sendo simplificados a um
único papel: ao do pajé. E o pajé acaba representando uma caricatura do que
seria a medicina tradicional (LANGDON, 2007, p. 112).

Os profissionais de saúde não-indígenas, de sua parte, expressaram igualmente


expetativas sobre possíveis formas de concretizar a “articulação de saberes” na prestação dos
serviços de APS:
Me parece interessante que se pudesse fazer articulação com a medicina
tradicional, ou seja, é um trabalho que eu acho que é longo, é árduo, mas que
é enriquecedor, porque... não sei se é pela escola de onde venho, mas minha
fundamentação para qualquer procedimento deve ter um suporte científico,
então é procurar isso, que se faça uma pesquisa em conjunto... se [os
indígenas] utilizam uma erva que clareia os dentes ou impede as cáries, é
interessante, porque não pesquisar, tomar uma população significativa, testá-
lo e ver os resultados? e no médio a longo prazo já ter a sustentação a partir
da parte científica, então acredito que por esse lado seria interessante
(DEN4).

Para estes profissionais a “articulação de saberes” implica, necessariamente, na


validação científica das práticas de “medicina tradicional”, por meio de pesquisas voltadas a
comprovar sua eficácia, segurança e qualidade.
Nessa perspetiva, corresponde à ciência - como “única fonte legítima” - o papel de
identificar a eficácia das terapias tradicionais a serem incorporadas nos serviços de saúde.
Entretanto, como aponta Ferreira (2007), esse processo implica a depuração dos aspetos
culturais, das crenças e dos valores que impregnam estas medicinas. “Ao contrário da
medicina alopática, que detém um enfoque científico estando livre de valores e de influências
culturais” (FERREIRA, 2007, p. 167).
Cabe salientar que uma profissional de saúde não-indígena expressou a
possibilidade de materializar a inclusão dos saberes indígenas nas atividades de promoção e
prevenção:
Se a oportunidade fosse propiciada, eu trabalharia com medicina tradicional.
Eu acredito que primeiro seria [necessária] muita observação e ficar ao lado
do médico tradicional, ou as pessoas que encaminhassem da comunidade
para fazer sua parte de medicina tradicional, e de algum jeito procurar trocar
[conhecimentos]. Por exemplo, agora é muito difícil fazer o curso
psicoprofiláctico, aqui quase não se faz pela barreira do idioma, por muitas
coisas... Se houvesse essa outra parte da medicina tradicional no hospital,
imagina!, a gente criando um curso psicoprofiláctico junto com o médico
tradicional, que lhe ensine, não sei, algumas dicas, algumas coisas, seria
muito legal (E3).
127

Ressalta-se a motivação pelo trabalho em conjunto e a disposição pela abertura de


espaços que realmente permitam a incorporação dos saberes tradicionais ainda que no meio
das barreiras burocráticas.
129

OMS/WHO, que contempla o reconhecimento das práticas culturais dos povos como
estratégia para atingir a meta de “saúde para todos” (FERTONANI et al., 2015).
Nessa perspectiva, a noção de interculturalidade assume dois sentidos: 1) como
elemento predominante na vida cotidiana e na interação entre usuários indígenas e
profissionais de saúde; e 2) como estratégia de incorporação dos saberes tradicionais
indígenas (mais especificamente da “medicina tradicional”) no âmbito da atenção. Ressaltar
essa distinção permite compreender a base dos três enfoques de interculturalidade presentes
no processo de construção da APS na região, sendo o primeiro deles o relacional.
Segundo Walsh (2012) a perspectiva relacional da interculturalidade se refere, de
forma mais básica e geral, ao contato entre culturas, ou seja, entre pessoas, práticas, saberes,
valores e tradições culturais distintas. Portanto, como ressaltado na Figura 16, este enfoque se
concentra, principalmente, no intercâmbio como caraterística fundamental da
interculturalidade.
Nos discursos dos profissionais foi evidente seu esforço em relatar uma
perspectiva “ideal” em um cenário bidirecional e harmonioso de intercâmbio entre seus
saberes e os saberes indígenas, porém sem reconhecer as relações de poder ou de
hegemonia/subalternidade que permeiam o encontro entre estes atores. Nesse sentido,
concorda-se com Walsh (2012) ao afirmar que esta perspectiva, limitada apenas à relação,
acaba ignorando “as estruturas da sociedade (sociais, políticas, económicas) e também
epistêmicas que posicionam a diferença em termos de superioridade e inferioridade”
(WALSH, 2012, P.90. Tradução nossa).
Além disso, foi possível corroborar, que a visão “ideal” da interculturalidade,
pensada a partir de “relações paralelas”, não encontra correspondência na prática. As questões
advindas no encontro com a diferença, colocam em evidência as dinâmicas estabelecidas pela
estrutura hegemônica e as assimetrias presentes nas relações. A tensão constante que
vivenciam os profissionais não-indígenas na interação com os conhecimentos e práticas em
saúde dos usuários indígenas é reflexo da impotência e desconforto ao perceber o
conhecimento biomédico, situado em posição hegemônica, insuficiente. Nessa dinâmica
aparece a inquietude de questionar os limites do conhecimento próprio, sem, no entanto,
deixar de ser uma situação conflituosa.
Consequentemente permanece no processo de construção da APS em Guainía
uma perspectiva funcional da interculturalidade, que, conforme mostra a Figura 16, se
130

posiciona mais próxima à relacional, pois as duas tomam como ponto de partida a diversidade
e a diferença sem examinar sua origem.
De acordo com Walsh (2012) essa visão da interculturalidade se concentra no
reconhecimento da diversidade, promovendo o diálogo, a convivência e a tolerância entre os
grupos, com metas para a sua inclusão dentro da estrutura social estabelecida. Nesse sentido, a
interculturalidade é funcional ao sistema existente, pois:

Instrumentaliza o reconhecimento e respeito à diversidade cultural


convertendo-o em uma estratégia de dominação, que aponta não à criação de
sociedades mais equitativas e igualitárias, mas ao controle do conflito étnico
e da conservação da estabilidade social com o fim de impulsionar os
imperativos econômicos do modelo (neoliberal) de acumulação capitalista,
incluindo aos grupos historicamente excluídos no seu interior (WALSH,
2012, p. 193. Traduçao nossa).

Considera-se que o modo com o qual o MIAS tem incorporado a noção de


interculturalidade na APS, corresponde, em parte, a esta perspectiva. Embora a política não
especifique a maneira em que concebe interculturalidade, enquanto enfoque estratégico do
modelo, foi possível identificar algumas diretrizes desenvolvidas na operacionalização que
apontam a concretizar o chamado “diálogo de saberes”, principalmente, na articulação dos
serviços (ocidentais) com a “medicina tradicional” dos povos indígenas.
Entretanto, tais estratégias, nesse caso as geradas a partir do âmbito do prescrito,
estão, eventualmente, replicando uma visão etnocêntrica na organização dos serviços de saúde
(PEDRANA et al., 2018). A maneira como tem sido planejada a inclusão dos curadores
tradicionais no sistema de saúde público em Guainía, os médicos tradicionais (pajés) e
parteiras, principalmente, reflete esta visão, dado que se fundamenta em uma compressão
essencialista das noções de cultura e tradição. Assim, pressupõe-se desde esta política que os
povos indígenas da região compartilham a “mesma” cultura -“a cultura indígena”- além da
concepção de que sua “medicina tradicional” permanece estática e imutável no tempo sem
possibilidade de transformação.
Destarte, ao invés de promover o diálogo intercultural, o desenvolvimento dessa
estratégia definida em bases de pressupostos etnocêntricos, parece estar incorrendo, de um
lado, na homogeneizando dos grupos indígenas e suas culturas, e de outro, no estabelecimento
de um papel genérico do curador tradicional (LANGDON, 2007). Isto ao contemplar,
exclusivamente, a inclusão de pajés e parteiras, deixando de lado outros curadores também
reconhecidos pelas comunidades, como os benzedeiros ou ervateiros, ou, inclusive,
131

esquecendo que alguns dos usuários indígenas rejeitam os serviços prestados por estes
especialistas, por causa de suas crenças religiosas. Assim mesmo, o fato de concentrar-se nas
figuras dos curadores como os “únicos” detentores do saber indígena (principalmente o pajé),
pode estar levando a excluir, ou diminuindo a importância, das outras formas de cuidado dos
usuários indígenas realizadas, por exemplo, no âmbito familiar.
Ora, esta estratégia de incorporação de curadores nos serviços de atenção implica,
para sua efetivação, a regulamentação e reconhecimento profissional de seus ofícios, que só
pode advir da “validação” científica das práticas e do saber tradicionais. Nessa lógica:

A regulação das medicinas tradicionais pelas políticas públicas de saúde não


apenas possibilita sua incorporação aos sistemas nacionais de saúde, mas
também autoriza que os conhecimentos, as práticas e os praticantes, assim
como os recursos terapêuticos tradicionais se tornem produtos a serem
mercantilizados (FERREIRA, 2010, p. 79).

Cabe problematizar, então, as implicações que estas medidas podem acarretar na


instrumentalização dos saberes tradicionais e de sua função de cura. Por um lado, na
possibilidade de que o Estado comece a exercer controle e regulamentação dessas práticas,
algo até então não feito; e por outra, que, sob a lógica do capital, se abra espaço para que estes
saberes e práticas possam ser comercializados. Ou seja, as dimensões do mundo da vida
destes povos (FERREIRA, 2010), de alguma forma, postos para serem transformados em
mercadoria.
Por fim, os achados deste estudo permitem afirmar que uma terceira perspectiva
de interculturalidade, a crítica, também está presente na APS em Guainía, no entanto, ainda
em construção como proposta contra-hegemónica.
Consoante Walsh (2010) a interculturalidade compreendida a partir deste ângulo
não parte da diversidade cultural ou diferença em si, mas do reconhecimento de que a
diferença se constrói dentro de uma estrutura colonial de poder radicalizado e hierarquizado,
com os brancos acima e os povos indígenas e afrodescendentes nas escadas inferiores, quer
dizer, de um problema estrutural-colonial-racial. Por isso, conforme desenhado na Figura 16,
esta forma de conceber a interculturalidade se distância, e inclusive, faz uma ruptura das
outras por ser:

Uma estratégia e um processo permanentes de negociação entre, que afirma


a necessidade de mudar não apenas as relações – para que sejam em
condições de respeito e equidade - senão as estruturas e dispositivos de
poder que mantém a desigualdade, interiorização, racialização e
discriminação (WALSH, 2010, p. 79. Traduçao nossa).
132

Como argumenta a autora, a interculturalidade crítica se constrói a partir dos


povos – e como demanda da subalternidade - em contraste com a funcional que se exerce a
partir de cima. Acredita-se assim, que esta perspectiva de interculturalidade está se tecendo,
ou encontrando seu ponto de partida, nas construções presentes no cotidiano de usuários
indígenas e profissionais de saúde, isto é, nos detalhes postos na centralidade subterrânea do
cotidiano (MAFFESOLI, 2010) que permitem concretizar formas “outras” de dialogar entre
saberes, às vezes manifestadas por meio de situações anódinas.
Uma mostra disso é a maneira com a qual participantes indígenas definem os
limites e alcances dos tratamentos e fazem diferentes transações com os recursos terapêuticos
disponíveis para tratar seus padecimentos, sem a supervisão de estâncias oficiais. Nesse
processo, formas heterogêneas de pensar-saber - nesse caso, provenientes do saber ocidental e
tradicional - são (re)apropriadas e articuladas para criar novas interpretações e reinvenções de
conhecimentos.
Desta forma, esses conhecimentos que particularmente os usuários indígenas
compartilham e constroem, por exemplo, por meio das chamadas práticas de autoatenção
(MENÉNDEZ, 2018), não podem ser caraterizados a partir de uma visão essencialista da
tradição ou da “medicina tradicional”, pois não estão congelados em um passado “utópico-
ideal” mas sendo constantemente reformulados no presente (WALSH, 2012), no aqui-e-agora
(MAFFESOLI, 2010).
Assim, no cotidiano dos serviços de APS foi possível observar diferentes
estratégias de “articulação de saberes”, que tanto usuários como profissionais de saúde
desenvolvem espontaneamente no âmbito das unidades de atenção. Muitas dessas estratégias,
nesse caso registradas a partir do âmbito do real, se constituem em construções criativas que
partem de um conhecimento empírico, de um senso comum que ultrapassa lógicas
racionalizadoras. Articulações e negociações que, como já posto, ao implicar um encontro
entre culturas, e portanto, entre epistemologias diferentes, não estão desprovidas de conflitos,
ambiguidades e contradições (WALSH, 2012).
Considera-se, portanto, fundamental repensar a interculturalidade a partir desta
perspectiva crítica, ao querer concretizar um verdadeiro diálogo de saberes no âmbito da APS.
É importante notar que esse diálogo não implica, necessariamente, como aponta Walsh
(2012), em uma mescla ou hibridação das formas de conhecimento, nem em uma forma de
invenção de um cuidado que junte “o melhor dos dois mundos”. Acarreta melhor um esforço
por materializar uma atenção que incorpore e negocie os conhecimentos indígenas e
133

ocidentais, cada um com suas singularidades e variabilidades, sem perder de vista as relações
de poder e a diferença colonial da qual vêm sendo sujeitos, ou seja, as causas que tem levado
a que as desigualdades e assimetrias culturais e epistêmicas existam e ainda permaneçam
vigentes.
134

7 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao buscar concluir esse estudo, considero necessário trazer reflexões que


emergiram no processo de compreenssão do objeto, bem como apontar recomendações
enquanto possibilidades de estratégias para reafirmar a importância da APS em contextos
interétnicos e de complexidades geográficas como o guainiano, ou mesmo para outras
realidades.
A aproximação com o cotidiano dos atores sociais envolvidos diretamente nos
serviços de APS em Guainía permitiu detalhar a maneira como esta vem sendo configurada,
enquanto estratégia de atenção em saúde. Como o processo de construção dessa estratégia
perpassa pelo conjunto de ações desenvolvidas no trabalho cotidiano dos profissionais de
saúde junto aos usuários indígenas, ressalta-se que elas vêm sendo delineadas por construções
e aprendizagens prévias ao novo modelo de saúde. Dessa forma, a APS na região vem-se
construindo na socialidade entre usuários indígenas e profissionais de saúde, que estão
executando um papel integrador e participativo, consolidando no diálogo e nas trocas
cotidianas esse processo, mesmo que, por vezes, contraditório e complexo.
O objeto de estudo foi a construção cotidiana de um novo modelo de saúde na
Colômbia. O MIAS surgiu como proposta do Estado, enquanto projeto do MSPS, para superar
os problemas decorrentes do modelo biomédico que, até então, tinha predominado na
prestação dos serviços de saúde no país. A proposta fundamenta-se na APS centrada na
família e a comunidade como principal eixo estruturante do processo de reorganização da
atenção à saúde. Projeto que, em Guainía, território piloto para a implantação, foi ainda mais
longe ao considerar o desafio de desenvolver estratégias inovadoras de gestão do cuidado que
atendessem, além das particularidades geográficas e populacionais, as demandas próprias da
diversidade étnica e cultural.
Considera-se assim que esta pesquisa localizou-se em um momento privilegiado
de transição a novas formas de organização das práticas de saúde, posto que a proposta de
reorientação do modelo apresentou, ao mesmo tempo, o desafio de transformar o paradigma
sob o qual fundamenta-se o processo de saúde-doença.
Nesse contexto, foi possível corroborar, tal como contemplado no inicio deste
estudo, que por ser um processo situado nas primeiras fases de construção continua
preservando e sendo ainda muito permeável às práticas desenvolvidas no modelo anterior.
Verificou-se, nesse sentido, a persistência de certas práticas provenientes do modelo de
135

assistência centrado na doença e baseado na lógica curativista, que ainda orientam a


organização dos serviços de APS, tanto no contexto rural quanto no urbano.
O delineamento da trajetória da prestação dos serviços de saúde em Guainía
permitiu compreender as bases que deram origem à APS e o contexto no qual surgiu a
proposta do novo modelo de atenção. Os primeiros esboços da APS deram-se no âmbito do
anterior SNS, a partir da formulação de ações concentradas na estruturação da rede de
serviços, na conformação e capacitação do talento humano e no planejamento de estratégias
para atenção direta nas aldeias, muitas delas trazidas de experiências implementadas em
outras regiões, como as CMS, ainda vigentes. Porém vários desses esforços, com tendência a
concretizar os atributos da APS, foram extintos com a inclusão do SGSSS que, por seu caráter
inicial, terminou reforçando um atendimento assistencialista individual e medico-centrado nos
serviços.
Nessa conjuntura, o MIAS estabeleceu-se, a princípio, como espécie de “carta de
salvação” para resolver a crise nos serviços de saúde na região, sendo contemplada sua
implementação em Guainía, enquanto um projeto piloto, antes de se estabelecer como
estratégia operativa da política nacional.
A respeito dessa tentativa de inserção do modelo, chamou a atenção nos discursos
dos participantes as diferentes concepções sobre o MIAS, as quais, ainda que divergentes,
concordavam em afirmar a importância do “resgate” da APS, como prioridade na promoção
da saúde e prevenção de agravos. De mesma forma, opiniões antagônicas apareceram em
relação à concretização da proposta na prática apontando mudanças, para alguns positivas e
para outros, ainda insuficientes, em seu potencial de transformar as práticas assistenciais e em
causar impactos “tangíveis” na melhoria da prestação dos serviços de saúde.
Um olhar atento ao cotidiano de usuários e profissionais de saúde facilitou,
entretanto, examinar mais de perto a maneira como está se configurando atualmente a
estratégia de APS na região, encontrando contrastes entre o cenário rural e o urbano. Foi
evidente a maneira com a qual o trabalho cotidiano nos postos de saúde, como primeira
instancia de atendimento na área rural, se mostrou permeado pela própria dinâmica cotidiana
das aldeias, sendo caracterizado pela demanda espontânea de usuários, a resolução de
requerimentos específicos (assistenciais e logísticos) e o exercício do trabalho em equipe.
O fato dos auxiliares de enfermagem residirem no posto aparentemente tem
implicações para além da disponibilidade permanente de atendimento, no estreitamento da
relação com os moradores das aldeias. Todavia, pela distribuição de funções estabelecidas no
136

passado e dadas as condições geográficas da região, estes trabalhadores continuam sendo os


principais responsáveis pela resolução de demandas e encaminhamentos de usuários,
assumindo funções para além de suas competências. Dai “o improviso” apareça como
característica inerente ao cotidiano com o qual acabam-se resolvendo muitas das demandas do
dia-dia neste nível de atenção.
A inserção do gestor comunitário como proposta do novo modelo de atenção,
embora considerada de grande importância para constituir um elo com a comunidade, suscitou
algumas inconformidades durante a época da pesquisa em campo, especialmente, em relação
ao cumprimento das funções designadas. Essa questão permitiu evidenciar os desafios
relativos à cobertura territorial e ao acesso aos serviços de saúde que permanecem na área
rural, como as grandes distâncias geográficas e a dispersão populacional, assim como a
dependência de fatores logísticos, incluindo a disponibilidade de embarcação e combustível
para deslocamentos às comunidades da área de abrangência, o que acabam limitando a oferta
regular da APS.
Esse “vazio” de assistência, no entanto, parece estar sendo assumido pelo trabalho
desenvolvido nas CMS, cujas equipes se veem na obrigação de enfrentar a grande demanda de
usuários voltada, principalmente, para o atendimento de doenças e para o requerimento de
medicamentos, em detrimento das ações individuais e coletivas de promoção à saúde e
prevenção de agravos, apesar dessas últimas constituírem o principal objetivo da presença
direta destas equipes nas comunidades.
Mesmo assim, a irregularidade no cumprimento do calendário previamente
elaborado para visitas às aldeias e a alta rotatividade dos profissionais que compõem a CMS
acrescentam entraves para suprir, efetivamente, as lacunas na cobertura e no acesso aos
serviços de saúde dos usuários indígenas habitantes da zona rural. Fato que
consequentemente, pode estar acentuando inequidades na garantia do direito aos cuidados
primários destas populações.
Conseguiu-se corroborar ademais que, no cenário urbano, ainda que o acesso
geográfico aos serviços não constitua um fator limitador, por ser o epicentro de referencia
para toda a região, continuam existindo questões burocráticas que adicionam barreiras de
acesso de tipo organizacional e dificultam a prestação da assistência aos usuários. Além disso,
foi evidente como o modo de organização dos serviços encontra-se voltado principalmente
para o atendimento à demanda espontânea com prioridade na assistência individual e médico-
137

centrada, deixando de lado o planejamento e desenvolvimento de ações de cunho educativo e


comunitário, realizadas, por exemplo, por meio de visitas domiciliares.
A análise do cotidiano de usuários e profissionais de saúde na APS, para além do
descrito, ressaltou a interculturalidade como um componente fundamental do processo de
construção da APS em Guainía. Verificou-se que é por meio de articulações e negociações
presentes permanentemente no cotidiano dos atores sociais envolvidos na atenção à saúde,
que os processos interculturais se constroem e concretizam, sem serem, no entanto,
desprovidos de conflitos, ambiguidades e contradições. Nesse processo de construção da APS
em Guainía, se mostrou evidente como a interculturalidade tem se configurado a partir de uma
perspectiva funcional, relacional e crítica. Esta última enraizada nas construções cotidianas
dos usuários indígenas e profissionais de saúde.
Reitera-se que, para consolidar avanços no objetivo de oferecer serviços de saúde
culturalmente apropriados, é preciso continuar pesquisando o cotidiano da APS na região,
pois certamente é neste âmbito que estão se tecendo alternativas que podem alcançar maior
valor, significação e impacto na hora de concretizar propostas com perspectiva intercultural.
Da mesma maneira, o fortalecimento dos mecanismos de participação das comunidades
indígenas nas políticas de saúde e as iniciativas de formação em competência cultural dos
profissionais de saúde podem constituir outras alternativas a serem exploradas.
O percurso de implementação de um modelo de saúde é um processo paulatino e
complexo que envolve múltiplos esforços. Para continuar avançando na consolidação do
MIAS em Guainía, e em outras regiões com características similares, faz-se necessário
fortalecer a infraestrutura física e tecnológica, bem como o capital humano da rede de
serviços. Como apontado ao longo da tese, a construção de postos e centros de saúde na área
rural, sua adequação e dotação com equipamentos, e a contratação e permanência de
funcionários, são tarefas primordiais que não têm sido atendidas integralmente. Até que estes
mínimos não se cumpram, é difícil avançar na consolidação do novo modelo de saúde com
enfoque intercultural que melhore a qualidade de vida e garanta, efetivamente, o direito à
saúde das populações indígenas.
Por fim é possível afirmar que a tese proposta inicialmente e defendida no
percurso deste estudo foi alcançada. Os resultados confirmam que a APS em Guainía tem sido
construída cotidianamente com base em aprendizagens acumuladas previamente à
implantação do novo modelo de saúde, sendo fortemente influenciada pela interculturalidade
como processo permanente na relação entre os sujeitos sociais envolvidos.
138

O desenvolvimento desta pesquisa significou, além de tudo, um


autoquestionamento e reflexão constante em meu papel como pesquisadora e enfermeira. O
convívio cotidiano com profissionais da saúde e indígenas em Guainia ensinou-me que se
desejamos avançar na construção de uma sociedade mais justa, na qual o direito a saúde, entre
outros, seja uma realidade, nós como acadêmicos devemos aprender a escutar e a trabalhar
junto com as próprias pessoas e comunidades envolvidas. Nesse sentido, a colaboração, o
comprometimento e a procura de objetivos comuns foi o caminho que tentei percorrer nesta
tese, e que tentarei continuar percorrendo no futuro.
139

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APÊNDICE A - Termo de Consentimento Livre e Esclarecido – Profissionais de saúde

Me dirijo a usted para invitarlo a participar en la investigación titulada: “Construcción cotidiana de la


atención primaria en salud en un municipio de la Amazonía Colombiana: Vivencias de indígenas y
profesionales de salud”, que consiste en la tesis de doctorado de la Enfermera Magíster Saidy Eliana Arias
Murcia, bajo responsabilidad de la DRA. Cláudia Maria de Mattos Penna profesora de la Facultad de Enfermería
de la Universidad Federal de Minas Gerais (EEUFMG), Brasil. La investigación tiene por objetivo comprender
el proceso de construcción cotidiana de la atención primaria en salud (APS) desde la perspectiva de los
indígenas y los profesionales de salud en Guainía – Colombia.
Consiste en un estudio de tipo cualitativo cuya recolección de datos será realizada por medio de
observación directa y entrevistas semiestructuradas con profesionales de APS y usuarios indígenas. Como
profesional de salud usted tendrá que responder algunas preguntas relacionadas con su trabajo cotidiano en la
APS, la relación que usted establece con los usuarios indígenas y sus percepciones sobre las diferencias
culturales durante el ejercicio de la atención. Si usted así lo permite, sus respuestas serán gravadas con el fin de
ser transcritas lo más fielmente posible y podrá escuchar su grabación en caso así lo considere. También solicito
su autorización para acompañarlo(a) en algunas de sus actividades de trabajo y poder realizar anotaciones
durante las mismas. Así mismo, si usted lo permite haré algunas observaciones durante el momento de la
entrevista las cuales serán consignadas en un cuaderno, llamado “diario de campo”, que usted podrá leer después
para autorizar su utilización.
Esta investigación representa riesgos mínimos para usted, por tanto su colaboración es voluntaria y su
identidad y confidencialidad serán protegidas. Los datos recolectados por medio de la grabación de las
entrevistas serán utilizados exclusivamente para fines de esta investigación y los artículos que puedan ser
publicados, las grabaciones o el diario de campo estarán bajo mi responsabilidad por un periodo de 5 años,
tiempo después del cual serán destruidos.
Se espera con los resultados de este estudio contribuyan a la identificación de potencialidades y
dificultades en la implementación de la APS de acuerdo los parámetros del nuevo modelo de salud, con el fin de
apoyar en la implementación de la propuesta en Guainía y otros territorios dispersos del país con características
geográficas, sociales y culturales similares.
En caso de dudas usted podrá hacer preguntas en cualquier momento de la investigación o si lo
considera retirar su consentimiento, además de no permitir la utilización posterior de sus datos sin ningún daño
ni prejuicio. Adicionalmente, podrá contactar al comité de ética a los teléfonos indicados abajo para cuestiones
éticas relacionadas con la investigación. Aclaro también que no habrá ninguna retribución monetaria o de otra
naturaleza por las informaciones proporcionadas.
Si usted está de acuerdo con lo anterior por favor firmar el presente documento dando su
consentimiento para su participación en la investigación.

Msc. Saidy Eliana Arias Murcia


Estudiante de Doctorado Universidad Federal de Minas Gerais

Declaro haber recibido las informaciones suficientes y estar de acuerdo en participar de esta
investigación

Firma: _________________________ Fecha________________

En caso de dudas con respecto a los aspectos éticos de este estudio, consultar a los investigadores responsables

COEP- Comité de ética en investigación – UFMG - Av. Profª Drª Cláudia Maria de Mattos Penna
Antônio Carlos, 6627 –Edificio de rectoría- 7º andar - Sala 7018 - Tel: (31) 3409-9867 ó 3409-9836. Facultad de enfermería –
Barrio Pampulha, Belo Horizonte, MG – Brasil - CEP: 31.270- UFMG
901- E-mail: coep@prpq.ufmg.br Telefax: (31) 3409-4592. Estudiante Saidy Eliana Arias
Cel: (31) 998894324 (Brasil) - (57) 3146153105 (Colombia)
E-mail: seam-04@hotmail.com
154

APÊNDICE B - Termo de Consentimento Livre e Esclarecido – Usuários indígenas

Me dirijo a usted para invitarlo a participar en la investigación titulada: “Construcción cotidiana de la


atención primaria en salud en un municipio de la Amazonia Colombiana: Vivencias de indígenas y
profesionales de salud”, que consiste en la tesis de doctorado de la Enfermera Magíster Saidy Eliana Arias
Murcia, bajo responsabilidad de la DRA. Cláudia Maria de Mattos Penna profesora de la Facultad de Enfermería
de la Universidad Federal de Minas Gerais (EEUFMG), Brasil. La investigación tiene por objetivo comprender
el proceso de construcción cotidiana de la atención primaria en salud (APS) desde la perspectiva de los
indígenas y los profesionales de salud en Guainía – Colombia.
Consiste en un estudio de tipo cualitativo cuya recolección de datos será realizada por medio de
observación directa y entrevistas semiestructuradas con profesionales de APS y usuarios indígenas. Para hablar
sobre eso, usted deberá responder algunas preguntas sobre como se siente atendido por los profesionales de la
salud, lo que usted piensa de la actuación de los profesionales en la atención y de la medicina occidental
proporcionada por ellos, en cuáles ocasiones usted toma la decisión de buscar atención en la medicina
occidental, cómo usted relaciona sus conocimientos provenientes de la medicina tradicional con los
conocimientos de la medicina occidental y cómo usted percibe la relación de su cultura con la cultura de los
profesionales de salud que lo atienden.
Si usted así lo permite, sus respuestas serán gravadas con el fin de ser transcritas lo más fielmente
posible y podrá escuchar su grabación en caso así lo considere. También solicito su autorización hacer algunas
observaciones durante el momento de la entrevista las cuales serán consignadas en un cuaderno, llamado “diario
de campo”, que usted podrá leer después para autorizar su utilización.
Esta investigación representa riesgos mínimos para usted, por tanto su colaboración es voluntaria y su
identidad y confidencialidad serán protegidas. Los datos recolectados por medio de la grabación de las
entrevistas serán utilizados exclusivamente para fines de esta investigación y los artículos que puedan ser
publicados, las grabaciones o el diario de campo estarán bajo mi responsabilidad por un periodo de 5 años,
tiempo después del cual serán destruidos.
Se espera con los resultados de este estudio, contribuyan a la identificación de potencialidades y
dificultades en la implementación de la APS de acuerdo a los parámetros del nuevo modelo de salud, con el fin
de apoyar en la implementación de la propuesta en Guainía y otros territorios dispersos del país con
características geográficas, sociales y culturales similares.
En caso de dudas usted podrá hacer preguntas en cualquier momento de la investigación o si lo
considera retirar su consentimiento, además de no permitir la utilización posterior de sus datos sin ningún daño
ni prejuicio. Adicionalmente, podrá contactar al comité de ética a los teléfonos indicados abajo para cuestiones
éticas relacionadas con la investigación. Aclaro también que no habrá ninguna retribución monetaria o de otra
naturaleza por las informaciones proporcionadas.
Si usted está de acuerdo con lo anterior por favor firmar el presente documento dando su
consentimiento para su participación en la investigación.

Msc. Saidy Eliana Arias Murcia


Estudiante de Doctorado Universidad Federal de Minas Gerais

Declaro haber recibido las informaciones suficientes y estar de acuerdo en participar de esta
investigación

Firma: _________________________ Fecha________________

En caso de dudas con respecto a los aspectos éticos de este estudio, consultar a los investigadores responsables

COEP- Comité de ética en investigación – UFMG - Av. Profª Drª Cláudia Maria de Mattos Penna
Antônio Carlos, 6627 –Edificio de rectoría- 7º andar - Sala 7018 - Tel: (31) 3409-9867 ó 3409-9836. Facultad de enfermería –
Barrio Pampulha, Belo Horizonte, MG – Brasil - CEP: 31.270- UFMG
901- E-mail: coep@prpq.ufmg.br Telefax: (31) 3409-4592. Estudiante Saidy Eliana Arias
Cel: (31) 998894324 (Brasil) - (57) 3146153105 (Colombia)
E-mail: seam-04@hotmail.com
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APÊNDICE C - Roteiro de entrevista – Profissionais de saúde

Fecha:________ Hora de inicio:_____ Lugar:_______ (centro/puesto de salud/comisión)


Edad:_____ sexo_____ Profesión:_________ Programa/área a la que pertenece:_______

PRESENTACIÓN – TRAYECTORIA PROFESIONAL


1. Presentación personal: por favor, cuénteme un poco sobre su trayectoria, estudios,
trabajo, cargo y funciones.

PANORAMA GENERAL Y TRABAJO COTIDIANO


Bloque 1
1. ¿A qué equipo de trabajo / área pertenece actualmente?
2. ¿Cómo está conformado el equipo al que usted pertenece? Cuáles son los cargos y
funciones?
3. ¿Cómo ha sido su experiencia en su cargo?
4. ¿Cómo es un día de trabajo suyo?
5. ¿Cómo fue el día de ayer? (por ejemplo)
6. ¿Cómo es la experiencia en su trabajo cotidiano con comunidades indígenas?

Bloque 2
1. ¿Ustedes (el equipo) tienen alguna relación con las acciones o actividades ejecutadas
por el hospital/secretaría de salud departamental? Cómo se articulan esas actividades?
2. ¿Cómo funciona el tema de las remisiones? (preguntar si ha tenido paciente remitido
por médico tradicional – según aplique)
3. ¿Cómo hacen la canalización/ seguimiento de los pacientes?
4. ¿Cómo es el registro de información que ustedes trabajan?
5. ¿Qué factores externos tienen impacto o influencian en la salud de los habitantes de la
región? (Profundizar) ¿Qué acciones usted conoce que hayan hecho algunos
organismos - entidades para mitigar estos factores?
6. ¿Ha escuchado alguna vez participación de la comunidad en salud? ¿Qué mecanismos
de participación comunitaria conoce?

PERCEPCIÓN DEL NUEVO MODELO DE SALUD


1. ¿Conoce el MIAS? Qué conoce?
2. ¿Sus actividades diarias han cambiado con el MIAS vs el antiguo modelo de salud?

SALUD INTERCULTURAL
1. ¿Qué entiende usted por interculturalidad?
2. ¿Qué piensa usted de la medicina tradicional empleada por las comunidades
indígenas?
3. ¿Que significa para usted profesional de salud con una formación occidental tener que
orientarse a trabajar en articulación con la medicina tradicional por causa del modelo?
156

4. ¿Qué significó para usted profesional de salud formarse en lo occidental, habiendo


crecido en este ambiente donde la medicina tradicional es conocida? (para
profesionales indígenas)
5. ¿Como relaciona los conocimientos que usted tiene de la medicina occidental con los
conocimientos tradicionales de las comunidades indígenas? Cómo hace esa
articulación?
157

APÊNDICE D - Roteiro de entrevista – Usuários indígenas

Fecha:______ Etnia:_____ Comunidad:_______ Edad:_____ sexo____ Escolaridad: ____

PRESENTACIÓN
1. por favor, cuéntame un poco sobre usted, su nombre, su etnia, comunidad a la que
pertenece, cuántos años usted tiene y si sabe leer o escribir

EXPERIENCIA COTIDIANA CON LOS SERVICIOS DE SALUD


1. Cómo ha sido su experiencia (cómo le ha ido) con los servicios de salud en Guainía?
2. Por favor, cuénteme sobre el o los últimos contactos que haya tenido con los servicios
de salud? Cómo fue? por qué motivo? Dónde lo atendieron? Qué atención le
prestaron? (profundizar)
3. ¿Usted ha sentido algún cambio en la prestación de servicios de salud en los últimos
años? (Profundizar)
4. ¿En su casa o comunidad ha recibido alguna visita de trabajadores de la salud? ¿cómo
ha sido esa experiencia?

SALUD INTERCULTURAL
1. ¿Cuando usted o su familia se enferma, qué hacen? ¿A dónde van primero? (médico
tradicional/hospital)
2. ¿Usted tiene hijos? Dónde los tuvo? (casa/hospital) ¿quién le ayudó en el parto?
3. ¿Qué piensa usted de la medicina occidental (medicina de los blancos)?
4. ¿Qué piensa usted de la medicina tradicional, la de ustedes los indígenas?
5. ¿Usted considera que la medicina tradicional y occidental pueden trabajar juntas?
¿Cómo?

PARTICIPACIÓN COMUNITARIA
1. ¿Usted sabe si su comunidad ha participado en los procesos de salud?¿usted ha
participado?

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