50-Texto Do Artigo-105-135-10-20130416

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Vol. 7, n. 1, jan.-jun. 2012 [p.

53 a 68]
Publicação da Associação Brasileira de Relações Internacionais CARTA INTERNACIONAL

A nova doutrina nuclear dos EUA e a


materialização do Hemisfério Sul livre de
armas nucleares
The new U.S. nuclear doctrine and the
materialization of the nuclear weapons free
Southern Hemisphere

Elias David Morales Martinez*

Resumo

Em 2010, os EUA modificaram a sua doutrina nuclear, impondo restrições ao uso de armas nucleares
em possíveis conflitos bélicos. Os EUA afirmaram não usar tais armas contra países que não possuem
esse tipo de armamento. Contrariamente, a Rússia, dias antes, tinha enrijecido sua doutrina, afirmando
a não discriminação de alvos para ataques com armas nucleares. O novo posicionamento doutrinário
dos EUA significou dar um passo a mais em direção à consolidação de um velho projeto que pretende
a materialização de um mundo livre de armas nucleares. No entanto, há uma dicotomia na formulação
da política externa estadunidense com relação ao desarmamento. As Zonas Livres de Armas Nucleares
(ZLAN), têm se incrementado no período do pós-Guerra Fria e, atualmente, existe um projeto de
vinculação entre as ZLAN da América Latina (Tratado de Tlatelolco), da África (Tratado de Pelindaba),
e do Pacífico (Tratado de Rarotonga) para concretizar a conformação do Hemisfério Sul como área
Livre de Armas Nucleares (HSLAN). Essa iniciativa não parece ser do agrado das potências nucleares
e, principalmente, dos EUA, por perceber que os seus interesses geopolíticos nessa área se encontram
limitados e ameaçados.

Palavras chave: Doutrina nuclear. Zonas livres de armas nucleares. Hemisfério Sul livre de armas nucleares.
Desarmamento nuclear. Não proliferação nuclear.

* Professor do Bacharelado em Ciências e Humanidades, e do Bacharelado em Relações Internacionais da Universidade Federal do ABC
– UFABC. Professor Colaborador do mestrado em Relações Internacionais da Universidade Estadual da Paraíba –UEPB. Doutor em
Integração da América Latina –PROLAM/USP; Mestre em Relações Internacionais –UnB, Cientista Político pela Universidade Nacional
de Colômbia. Contato: davidmorales.ri@gmail.com
Esta pesquisa contou com o apoio financeiro do CNPq/CAPES e do PROPESQ/UEPB.

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Abstract

In 2010 the U.S. changed its nuclear doutrine by imposing restrictions to the use of nuclear weapons in
possíble conflicts. The U.S. claimed not to use such weapons against countries that do not have this type
of weapons. Unlike Russia, some days before, had its doctrine stating not tensed discrimination of targets
for attacks with nuclear weapons. The new U.S. nuclear doctrinal position meants giving one more step
toward the consolidation of an old Project that aims for a free world of nuclear weapons. However there
is a dichotomy in U.S. foreign policy formulation with respect to disarmament. The Nuclear-Weapons-
Free zones, have been incremented with ZLAN during the period of post-cold war and currently there is a
project of linking between the ZLAN of Latin America (Treaty of Tlatelolco), Africa (Treaty of Pelindaba)
and Pacific (Treaty of Rarotonga) for the conformation of the Southern hemisphere as a nuclear weapon
free area –HSLAN. This initiative does not seem to be to the liking of the nuclear powers, and especially to
U.S. wich realize that its geopolitical interests in this area are limited and threatened.

Keywords: Nuclear doctrine. Nuclear weapons free zones. Nuclear weapons free Southern Hemisphere.
Nuclear disarmament. Non proliferation.

Introdução

Em 7 de abril de 2010, os EUA modificaram a sua doutrina nuclear quando impuseram uma
série de restrições ao uso de armas nucleares em possíveis conflitos bélicos. A principal mudança
foi proibir o uso de tais armas contra países que não possuem esse tipo de armamento. Isso
pode ser interpretado de duas formas: primeiro, como um gesto e reação positiva em resposta à
reforma doutrinal nuclear da Rússia, que, poucos dias antes (25 de fevereiro de 2010), determinou
o direcionamento de suas ogivas nucleares a qualquer país, tenha ou não tenha armas nucleares.
Por outro lado, significou dar um passo a mais em direção à consolidação de um velho projeto
que pretende a materialização de um mundo livre de armas nucleares.
Os esforços dos países para garantir a sua segurança diante da ameaça nuclear têm sido
uma preocupação constante. A figura das Zonas Livres de Armas Nucleares (ZLAN) foi uma
contribuição da diplomacia latino-americana ao desarmamento e à luta contra a proliferação de
armas de destruição em massa. As ZLAN têm permitido aos países de uma determinada região
aumentar os níveis e mecanismos de confiança, pois cada membro participante se compromete
em não desenvolver e nem adquirir armas ou artefatos nucleares.
No desdobramento deste trabalho pretende-se analisar em que forma as ZLAN da América
Latina (Tratado de Tlatelolco), da África (Tratado de Pelindaba), e do Pacífico (Tratado de
Rarotonga) estão se articulando para constituir uma vinculação entre elas e, assim, conformar
oficialmente o reconhecimento do Hemisfério Sul Livre de Armas Nucleares (HSLAN).
Essa iniciativa ocasionou, na primeira década do século XXI, uma nova retomada dos
debates e discussões no âmbito da Organização das Nações Unidas (ONU), como também dentro
das instituições e dos mecanismos regionais de cada Zona. Igualmente, discutiremos a forma
pela qual o novo posicionamento doutrinário dos EUA, ao restringir o uso de armas nucleares,

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contrasta com a rejeição e não apoio à consolidação do HSLAN, por ir contra os seus interesses
geopolíticos no hemisfério.

As Zonas Livres de Armas Nucleares e a conformação do Hemisfério Sul


como área livre de armas nucleares

Em 1945, os EUA usaram pela primeira e única vez armas nucleares contra a população
civil, destruindo consideravelmente as cidades japonesas de Hiroshima e Nagasaki. A descoberta
e o uso bélico da energia nuclear geraram nos países sentimentos de vulnerabilidade, levando-
os a desenvolver estratégias defensivas para garantir a sua própria segurança diante das
eventuais ameaças nucleares. A grande maioria dos países optou por não desenvolver esse tipo
de armamento e decidiu participar de acordos multilaterais para limitar o uso dessas armas e
garantir a sua segurança por meio de tratados jurídicos de alcance internacional.
Criou-se, portanto, um leque de mecanismos de controle, de desarmamento e de não
proliferação, com o intuito de estabelecer um equilíbrio de forças e diminuição de riscos e
ameaças diante da turbulência característica do período da Guerra Fria. Esse conjunto de normas,
regras, acordos e procedimentos veio constituir o Regime Internacional de Não proliferação
de Armas de Destruição em Massa. Assim, ao mesmo tempo em que os Estados negociavam
multilateralmente mecanismos universais de controle do armamento nuclear, também em
algumas localidades se consolidavam acordos para a criação de “zonas desnuclearizadas” em
contextos regionais e que seriam chamados de Zonas Livres de Armas Nucleares1.
As Zonas Livres de Armas Nucleares (ZLAN) são espaços geográficos nos quais os Estados
que exercem plena jurisdição territorial assumem o compromisso de proibir testes nucleares e evitar
a aquisição, fabricação, introdução e instalação de armas nucleares nos territórios delimitados.
Essas medidas têm como propósito fomentar e aumentar o nível de confiança e cooperação entre
os países da região. Assim, uma ZLAN terá como objetivo imediato o fortalecimento integral
da segurança regional, por meio de garantias outorgadas pelas potências nucleares de respeitar
o status de “desnuclearização” e de não usar armas nucleares, nem mesmo como ameaça aos
países membros da zona delimitada (Carreño 2003, 3, Marzo e Almeida 2006, 103).
Essas zonas, de modo geral, apresentam as seguintes características: 1 – são constituídas
mediante um tratado internacional por tempo de duração indeterminado; 2 – a iniciativa para a
sua criação corresponde aos Estados que formam parte da zona; 3 – são reconhecidas por uma
resolução da Assembleia Geral da ONU; 4 – estabelecem um sistema de controle e verificação
das instalações nucleares, submetendo-se ao sistema de salvaguardas da Agência Internacional
de Energia Atômica (AIEA); 5 – estabelecem uma completa proibição de armas nucleares, e
as potências nucleares assumem o compromisso de respeitar a zona por meio de protocolos
adicionais aos tratados que são de caráter vinculativo; e 6 – promovem o desenvolvimento social
e econômico dos Estados-membros como também o desenvolvimento científico e tecnológico,
por meio da cooperação internacional de usos pacíficos de energia nuclear (Martinez 2008 b).

1 Em 1978, durante o primeiro Período de Sessões dedicado ao Desarmamento, a Assembleia Geral das Nações Unidas expressou
positivamente o reconhecimento em favor das ZLAN como medida eficaz de desarmamento.

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Existem atualmente cinco ZLAN formalmente estabelecidas por tratados multilaterais e


reconhecidas por resoluções da ONU:

a) T ratado de Tlatelolco: estabelece a Zona Livre de Armas Nucleares da América Latina e


do Caribe. Foi assinado em 14 de fevereiro de 1967, tendo entrado em vigor em 25 de
abril de1969, mas somente em 2002 concluiu o processo de ratificação completa por
parte de todos os países da região2;
b) Tratado de Rarotonga: estabelece a Zona Livre de Armas Nucleares do Pacífico (Oceania).
Assinado em 06 de agosto de 1985, exatamente 40 anos após a tragédia em Hiroshima,
e entrou em vigor em 11 de dezembro de 19863;
c) Tratado de Bangkok: estabelece a Zona Livre de Armas Nucleares do Sudeste Asiático.
Assinado em 15 de dezembro de 1995, e entrou em vigor em 27 de março de 1997. O
Tratado está sendo conformado por 10 países da região e que fazem parte da Associação
de Nações do Sudeste Asiático (ASEAN)4;
d) Tratado de Pelindaba: estabelece a Zona Livre de Armas Nucleares da África. O Tratado
foi aberto para assinatura em 12 de abril de 1996, na cidade do Cairo. Assinado por 50
Estados e ratificado por 26, o Tratado entrará em vigor somente quando o vigésimo
oitavo instrumento de ratificação for depositado, fato que ainda pode acontecer pelo
anúncio de Namíbia e Burundi de agilizar a ratificação do Tratado5;
e) Tratado de Semipalatinsk: estabelece a Zona Livre de Armas Nucleares da Ásia Central,
conformada por Cazaquistão, Quirguistão, Tadjiquistão, Turcomenistão e Uzbequistão.
Sendo a mais nova ZLAN, o Tratado foi assinado em 08 de setembro de 2006 e entrou
em vigência em 22 de março de 2009, após a ratificação dos cinco países-membros6;
f) Por último, a Mongólia participa também desse processo de desnuclearização bélica, mas
numa categoria diferente. De forma unilateral, o país se proclamou como Estado Livre
de Armas Nucleares (ELAN) em 25 de setembro de 1992, por meio da chamada “Lei de
Mongólia”, sendo reconhecida pela ONU em 03 de fevereiro de 2000 como o primeiro
e, até agora, o único caso de um país a se declarar como território livre de qualquer
armamento nuclear, seja por produção própria, transferência de terceiros ou trânsito de
armamento nuclear pelo território nacional por parte de alguma potência nuclear.

Existem outros tratados que, apesar de não corresponder ao conceito pleno de ZLAN,
estabelecem igualmente âmbitos geográficos livres desse tipo de armamento, além de serem
espaços inabitados pelo homem:

2 Leva o nome em homenagem ao bairro arqueológico no centro da Cidade do México, onde antigamente se localizava o Ministério das
Relações Exteriores Mexicanas.
3 Leva o nome em homenagem à capital das Ilhas Cook, cidade onde o Tratado foi aberto para assinatura.
4 Leva o nome em homenagem à capital da Tailândia, cidade onde o tratado foi negociado e aberto para a assinatura.
5 O Tratado foi denominado de Pelindaba para recordar o local onde foram desenvolvidos os artefatos nucleares da África do Sul,
posteriormente desmontados (Marzo e Almeida 2006, 114).
6 Cidade cazaquistã, sede do maior estoque nuclear da antiga União Soviética e cenário de quase 200 testes nucleares entre 1949 e
1989.

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a) T ratado da Antártica: Assinado em dezembro de 1959, entrou em vigor em 1961.


Esse tratado estabeleceu que a zona compreendida pelo Polo Sul fosse totalmente
desmilitarizada, estipulando ipso facto que as armas nucleares não seriam introduzidas
nessa área, proibindo qualquer atividade de natureza militar bélica7;
a) Tratado do Espaço Ultraterrestre: aberto para assinatura em 1967, entrando em
vigência no mesmo ano. O tratado proíbe a colocação de qualquer objeto portando
armas nucleares ou qualquer outra arma de destruição em massa na órbita da terra8;
a) Tratado dos Fundos Marinhos: aberto para assinatura em 1971, entrando em vigência em
1972. Esse Tratado estipula que os Estados-membros se comprometam a não colocar
sobre e nem sob o fundo do mar – além das 12 milhas da zona costeira – nenhuma
arma nuclear ou outra arma de destruição em massa ou nenhuma infraestrutura, como
plataformas para o estacionamento de tal armamento9.

Já o Tratado de Não Proliferação Nuclear (TNP), que entrou em vigência em 1970, partiu da
iniciativa das potências nucleares e estabeleceu uma assimetria no relacionado com a legalidade
do desenvolvimento de tecnologia nuclear. O TNP criou o “clube nuclear”, conformado pelos
países que já tinham desenvolvido armas nucleares antes de 1967 (EUA, ex-URSS, Reino Unido,
França e China), e proibiu que os demais países desenvolvessem tecnologia nuclear bélica.
Assim, verificamos que, no período do pós-Guerra Fria, houve um incremento no
estabelecimento de ZLAN nos diferentes continentes. Passamos de duas zonas (Tlatelolco 1967,
Rarotonga 1985) para seis, registrando um incremento de quatro novas ZLAN em menos de
vinte anos (Bangkok 1995, Pelindaba 1996, Mongólia 1992, Semipalatinsk 2006). Esse aumento
considerável se dá dentro da lógica do contexto do pós-Guerra Fria, no qual, paradoxalmente, o
perigo de uma crise internacional ou de um conflito de proporções nucleares tenha diminuído,
dando lugar a outros tipos de ameaças internacionais.
Igualmente, nos últimos anos, percebe-se a emergência de uma iniciativa que se consolida
progressivamente. Em 1996, a ONU adotou a proposta brasileira do Hemisfério Sul como ZLAN,
mas, pelo fato de não contar com o apoio direto das potências nucleares (com exceção da China)
e pelo altíssimo número de abstenções por parte dos aliados das potências nucleares, essa
iniciativa foi enfraquecida e não teve o alcance que inicialmente se pretendia10. No entanto,
em 2000, o Brasil e a Nova Zelândia levantaram a proposta de realizar no seio da ONU uma
Conferência Internacional de Estados Partes de ZLAN. Essa conferência somente foi realizada em
2005, na Cidade do México, e com ativa participação do Organismo para a Proscrição das Armas
Nucleares na América Latina e no Caribe (OPANAL), sendo adotada a Declaração de Princípios e

7 Também conhecido como Tratado de Washington. Muito se discute sobre se o Tratado de Antártica é realmente uma ZLAN. A maioria
da produção acadêmica do tema concorda em esclarecer que, de fato, foi o primeiro instrumento disposto a impedir uma corrida
nuclear num território definido em plena Guerra Fria. No entanto, a região não é habitada pela humanidade, o que transforma sua
categoria diferente das ZLAN, que são densamente povoadas pela civilização humana.
8 Também conhecido como Tratado de Moscou, pelo fato de ter sido a cidade escolhida para a sua assinatura.
9 O Tratado, aprovado pela Resolução 2660, da ONU, foi intitulado como Tratado sobre a Proibição do Emprazamento de Armas
Nucleares e outras Armas de Destruição em massa no Fundo do Mar e do Oceano e no Subsolo.
10 O objetivo da iniciativa era poder consolidar nesse hemisfério um regime sólido que proibisse tanto a produção como o deslocamento
de armas nucleares pela zona. Essa resolução contou com 129 votos a favor, 38 abstenções e 3 votos contra (EUA, França e o Reino
Unido). A China votou a favor e a Rússia se absteve.

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Compromissos das ZLAN, assinada por 130 países que se encontram sob regimes regionais de
ZLAN.
A Declaração da Conferência sobre ZLAN é um documento de entendimentos, princípios
e compromissos na promoção do desarmamento nuclear por parte de cada um dos Estados
participantes. Além disso, foi acordado o estabelecimento de mecanismos de cooperação
entre as ZLAN para agilizar a consolidação regional de cada uma das zonas, e foram propostos
mecanismos de coordenação na promoção de políticas conjuntas em foros multilaterais, e
iniciativas para alcançar o reconhecimento e a consolidação do Hemisfério Sul Livre de Armas
Nucleares (HSLAN), por meio da vinculação das Zonas de Tlatelolco, Pelindaba e Rarotonga11.
A Segunda Conferência das ZLAN incorporou a participação da Mongólia, respeitando a sua
categoria de Estado Livre de Armas Nucleares. Nessa oportunidade, foi estabelecido o fomento ao
diálogo entre as diferentes zonas desnuclearizadas com os organismos internacionais que também
tratam do assunto. A conferência, que aconteceu em Nova Iorque, precedendo à Conferência
do TNP, permitiu criar uma base para levantar consensos relacionados ao posicionamento das
ZLAN nas negociações vindouras. O mais interessante do evento foi a participação maciça de
observadores provindos de diferentes estamentos, desde delegados da UE, do Tratado de Proibição
Completa de Testes Nucleares (CTBTO), até da Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA) e
da Santa Sé. Nessa oportunidade, ficou evidenciada a conformação do Hemisfério Sul e boa parte
do Hemisfério Norte como regiões nas quais foi proclamado o banimento das armas nucleares.
Finalmente vale ressaltar que, desde o começo, a posição dos EUA com relação às ZLAN tem
sido ambígua e incoerente, o que tem favorecido a implementação de uma política dicotômica.
Por um lado, tem apoiado abertamente a causa, posicionando-se a favor da criação dessas
zonas em diferentes partes do mundo, pois elas representam uma contribuição para a própria
segurança dos EUA, ao criar regiões isentas de artefatos nucleares bélicos, o que significa um
controle da proliferação. Por outro lado, tem argumentado que algumas medidas adotadas
por cada uma das Zonas ferem os interesses dos EUA nessas regiões, levando-os a emitir
declarações interpretativas a modo de reservas e o não cumprimento dos protocolos adicionais
que os tratados de ZLAN direcionam tanto às potências nucleares quanto aos países externos
que exercem jurisdição em territórios localizados dentro de cada zona. É exatamente nesse
ponto que a nossa pesquisa acontece, abordando principalmente a percepção que os EUA têm
com relação às ZLAN e como tem sido a sua política externa com relação a essas temáticas de
mecanismos regionais de não proliferação.

Abordagens teóricas como ferramentas na análise das ZLAN

No estudo das Relações Internacionais, a complexidade é uma constante, embora os


estudiosos se confrontem com diferentes perspectivas para analisar o Sistema Internacional.
Walt (1998) argumenta que a melhor forma de compreender o estudo é abordá-lo como uma

11 A Conferência das ZLAN acontece a cada cinco anos desde 2000, quando foi acordado a realização do evento nesse período. Em
2005, foi a primeira edição na Cidade do México e a segunda, em 2010, em Nova Iorque, sempre antecedendo a Conferência de
Desarmamento do TNP.

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competição entre Realismo (que sublinha a tendência permanente da defesa de interesses com
tendência ao conflito), Idealismo (que estabelece diversas formas de atenuar os conflitos) e
Radicalismo (que se fundamenta na necessidade da transformação do Sistema Estatal).
No mesmo sentido, Herz (1981) argumenta que o Realismo e o Idealismo podem ser
complementares nas abordagens que sejam feitas em torno das questões nucleares, por serem
temáticas relacionadas com supremacia, poder e sobrevivência. Com o advento da era nuclear, os
Estados adquiriram uma nova dimensão e a política exterior ficou sujeita aos desdobramentos
que os atores internacionais podem fazer diante dessas temáticas. Como a nossa pesquisa
trata diretamente dessas questões, não podemos passar por alto as abordagens que as teorias
clássicas das Relações Internacionais nos oferecem.
O Realismo Estratégico proposto por Schelling (1980) nos permite observar a relação
ideológica realista entre a procura da segurança e a tomada de decisões de política externa dos
Estados quando confrontados com questões militares, diplomáticas e de segurança relativas
aos interesses de subsistência. Assim, as decisões dos Estados estão intimamente ligadas à
percepção da ameaça diante de uma eventual tela de circunstâncias que podem levar a diferentes
rumos, dependendo da racionalidade e do cálculo estratégico com que as ameaças são percebidas.
Igualmente, Schelling (1996) introduz a noção de “escolha”, entendida como o proceder
racional para uma situação específica ou um contexto que envolva tanto as decisões quanto
os tomadores de decisão. A escolha pode ser limitada pelas circunstâncias, sendo uma opção
que pode ser feita de modo inteligente, ridícula, certa, desastrada, errada ou dinâmica. Assim,
a proposta de Schelling permite avaliar como foram as decisões das potências nucleares em
não aprovar e nem reconhecer a existência de um HSLAN, que contrasta profundamente com
o interesses brasileiro de concretizar esse espaço geográfico para fortalecer a sua segurança e
dinamizar sua projeção internacional.
Por outro lado, o Idealismo nos oferece outra perspectiva, igualmente válida, partindo
dos princípios universais que defende a necessidade de estruturar o mundo, buscando o
entendimento por meio de condutas pacifistas baseadas na confiança e na boa vontade dos
atores internacionais. Por essa razão, poderíamos encaixar as ZLAN como modelos pacifistas que
pretendem ter alcance mundial, pela sua forte carga idealista com a qual estão conformadas12.
A exemplo, Bobbio (2002) argumenta que a possibilidade de acontecer uma guerra nuclear
tem alterado as formas de pensar e analisar o binômio paz-guerra. Se junta a isso o fato de
que as armas nucleares ameaçam a humanidade em geral sem nenhuma distinção de classe ou
nacionalidade. Diante dessa situação, o pensador italiano propõe uma variável analítica baseada
em procedimentos pacifistas que ajudem na formação de uma consciência atômica, que levem,
pelo menos, a limitar, e se for preciso, a eliminar a guerra.
O Pacifismo Instrumental é apresentado por Bobbio (2002) de duas formas: 1 – o pacifismo
passivo, que é uma forma de constatar que a paz é um fim inevitável e que pode ser atingida
por meio da interpretação de que a guerra por si só é uma via bloqueada; e 2 – o pacifismo ativo,

12 As ZLAN têm como característica geral afirmar nos seus preâmbulos que elas não constituem um fim em si mesmas, senão um meio
para alcançar, em uma etapa posterior, que é o desarmamento geral e completo, a consolidação de um ambiente de paz permanente.
Os idealizadores de Tlatelolco afirmavam que, com o incremento gradual de ZLAN, as potências nucleares ficariam isoladas, de modo
que o desarmamento seria uma realidade.

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que pressupõe uma ética, uma justificativa de que a guerra não é necessária e nem é boa, e,
portanto, deve ser impedida de acontecer. Esse pacifismo ativo é apresentado em três vias: a)
instrumental, que age sobre os meios de se fazer a guerra; b) institucional, que age sobre as
instituições (Estados); e c) finalista, que age sobre os homens.
Portanto, o Pacifismo Instrumental defende o desarmamento e a solução pacífica de
controvérsias pelo esforço de destruir as armas (instrumentos com que se faz a guerra), ou pelo
menos de reduzir ao mínimo a quantidade e a periculosidade delas. Quer dizer, o objetivo, além
de impedir o uso desses instrumentos, é também limitar a presença deles em determinadas
regiões. Assim, a criação das ZLAN, como também a possível vinculação delas no Hemisfério Sul,
pertence a esse tipo de ações e esforços dos Estados, movidos por alcançar um mundo livre de
armas nucleares e, portanto, contribuir para a consolidação da paz em âmbito global, resolvendo
questões de segurança e fomento à confiança regional.
Continuando com o nosso quadro teórico, o objeto da presente pesquisa está relacionado
integramente ao Regime Internacional de Não Proliferação de Armas de Destruição em Massa, e
às ZLAN, que atuam como acordos e mecanismos de desarmamento nuclear.

Quadro 1 – Regimes e acordos internacionais de não proliferação

Armas Armas de Destruição em Massa


Convencionais Nucleares Químicas Biológicas Mísseis
Acordo MTCR
Principal Tratado TNP CWC BWC
Wassenaar ABM
START
Outros Acordos LTBT, CTBT, ZLANHSLAN
SALT
Instituições Internacionais AIEA, OPANAL, ABACC, CD-ONU CPAC
Controle de Exportação WA Grupo de Supridores Nucleares NSG Austrália Group MTCR
Fonte: Adaptado pelo autor com base em EXBS (2002)

Observamos, no Quadro 1, que as ZLAN estão classificadas como mecanismos


complementares ao desarmamento e não proliferação de armas nucleares. Assim, é importante
relacionar aqui os estudos sobre regimes internacionais, pois a contribuição das ZLAN, além de
corresponder a iniciativas regionais, é de alcance internacional.
As principais correntes teóricas dentro do estudo das Relações Internacionais têm analisado
a formação e dinâmica dos regimes internacionais, partindo da cooperação que leva os países
a negociar seus interesses na solução de problemas comuns que compartilham. Krasner (1983)
afirma que os regimes internacionais são princípios, normas, regras e procedimentos de tomada
de decisão em torno dos quais as expectativas dos atores (Estados) convergem em determinada
área das Relações Internacionais. O autor explica que os princípios consistem em crenças
estabelecidas, causalidade e legalidade ou retidão; as normas, padrões de comportamento
definidos em termos de direitos e obrigações; as regras, prescrições que orientam a ação; e os
procedimentos decisórios, políticas e práticas dominantes para adoção e implementação de
escolhas coletivas.

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De igual forma, Axelrod e Keohane (1986) propõem três dimensões para a análise do
processo de emergência de regimes que podem ser aplicados no nosso objeto de estudo da
emergência do HSLAN. A primeira dimensão é a mutualidade de interesses, fundamentada
na premissa de que, quanto maior o interesse mútuo dos atores sobre um determinado tema,
maior a chance de emergir um acordo ou arranjo. Nesse ponto, também são necessárias as
interações estratégicas, pois são elas que incentivam os Estados a adotar a melhor opção. A
segunda dimensão se refere às incertezas futuras quanto a ganhos e perdas que podem alterar
o comportamento dos atores no engajamento do regime. A terceira dimensão trata do número
de atores envolvidos nos acordos multilaterais, sendo que essa variação da quantidade dos
atores implica diferentes possibilidades de atingir um acordo que seja vantajoso para todos os
participantes.
Nesse sentido, poderíamos ampliar a perspectiva anterior com a ideia desenvolvida por
Martin (1993), segundo a qual os Estados aceitam renunciar a certos direitos no processo
decisório do regime com a perspectiva de obter benefícios em troca, o que significa que, além da
cooperação e da harmonia, os países, para obterem um maior e melhor benefício comunitário,
reprimem a sua vontade individual de adquirir aquilo que deseja para si mesmos. Em nosso caso,
veremos como emergem o diálogo e a cooperação entre os regimes regionais de desnuclearização
(Tlatelolco, Pelindaba e Rarotonga) na consolidação do HSLAN, e quais os sacrifícios que alguns
países tiveram que fazer para materializar esse objetivo comum.

A nova doutrina nuclear dos EUA e a vinculação das ZLAN no pós-Guerra Fria

Desde as primeiras iniciativas de estabelecimento de ZLAN, as potências nucleares têm


se posicionado ao mesmo tempo a favor e contra. Os EUA, apesar de se manifestarem a
favor do desarmamento regional, rejeitaram uma proposta soviética, em 1956, que delimitava
geograficamente a proibição de armas nucleares na Alemanha Federal e Democrática.
Seguidamente, vieram várias propostas para transformar a Europa numa ZLAN, mas nenhuma
delas conseguiu ser materializada13.
A primeira ZLAN reconhecida pela ONU foi estabelecida na América Latina pelo Tratado
de Tlatelolco. Igualmente, a primeira posição oficial dos EUA com relação a uma ZLAN foi em
1968, quando assinou o Protocolo Adicional II do Tratado de Tlatelolco, que era direcionado às
potências nucleares e buscava o compromisso de respeitar o estatuto de desnuclearização que
assumia a região.
Os EUA, nessa oportunidade, declararam apoiar a causa nobre dos países latino-americanos,
mas consideraram necessário manifestar suas reservas ao protocolo que assinariam. Os aspectos
relevantes na Declaração norte-americana foram: a não proibição do trânsito e locomoção livre
de armas nucleares pela região; a incompatibilidade no caso de agressão armada por uma parte
contratante assistida por um Estado nuclear, o que significaria a possibilidade de usar a arma; e
a indistinção entre tecnologia nuclear pacífica e bélica (Martinez, 2008b).

13 Martinez (2008b) analisa as diferentes propostas que emergiram no período da Guerra Fria que não tiveram sucesso. São destacadas
as propostas soviéticas de 1956 e 1957; as propostas da Romênia, de 1957; o Plano Rapacki da Polônia, de 1962; o Plano Gomulka,
de 1964; o Plano Undên, de 1961; e o Plano Kekkonen, de 1963.

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Essa Declaração feriu o princípio fundamental das ZLAN, que é banir a presença de armas
nucleares dentro do perímetro delimitado, pois nada impede, de fato, que as armas nucleares
das potências nucleares possam transitar livremente pela região desnuclearizada. Os EUA
confirmaram, em 1977, 1981 e 1996, o mesmo posicionamento de se reservar o direito ao uso
das armas nucleares como resposta a um ataque militar por qualquer país que fosse apoiado por
outra potência nuclear, como também a possibilidade de deslocar seu armamento nuclear entre
suas bases militares distribuídas no mundo quando fosse necessário (OPANAL 2003).
No entanto, em 2003, o Organismo para a Proscrição das Armas Nucleares na América
Latina e no Caribe (OPANAL) enviou um comunicado às potências nucleares convidando-as
para reconsiderar e revisar as Declarações Interpretativas feitas aos Protocolos Adicionais I e II
do Tratado de Tlatelolco. O objetivo principal do OPANAL era obter das potências nucleares o
compromisso de tirar as isenções e renunciar ao eventual uso de armas nucleares na região, uma
vez que já tinha passado mais de uma década do fim da Guerra Fria e não havia mais sentido
continuar aplicando as mesmas doutrinas nucleares que foram utilizadas nesse período quando
foram feitas as reservas. A resposta dos EUA foi contundente: “The United States has decided
that it will not review the declarations and understandings related to its signature and ratification
of these Protocols” (OPANAL 2006, 5).
Identificamos aqui um primeiro problema: os EUA mantiveram a mesma Declaração
Interpretativa de quarenta anos atrás, na qual se reserva o uso da arma nuclear como resposta ou
retaliação, e a continuidade de deslocar armamento nuclear pela zona “desnuclearizada”, o que
significa uma profunda contradição à natureza das ZLAN. Essa atitude da política externa norte-
americana está refletida nos Protocolos Adicionais assinados com os Tratados de Rarotonga,
Pelindaba e Bangkok. Então, a lógica e a missão do armamento da Guerra Fria, uma vez finalizada,
parece não ter mudado ainda, a não ser pela declaração em abril de 2010 sobre a mudança da
doutrina nuclear dos EUA.
Curiosamente, no período do pós-Guerra Fria, as ZLAN começaram a se multiplicar em
outras regiões do mundo, ao mesmo tempo em que a política externa norte-americana entrava
numa espiral militarista e intervencionista (governos George Bush, Bill Clinton e George W. Bush).
Esse incremento de ZLAN gerou a emergência de outra iniciativa direcionada a integrar ou vincular
por proximidade várias dessas zonas. É o caso do estabelecimento de um Hemisfério Sul Livre de
Armas Nucleares a partir da união das ZLAN da América Latina, África e Pacifico, que, em 1996,
contou com o apoio da ONU e de um número considerável de países, mas não das potências
nucleares, principalmente dos EUA, França e Reino Unido. Essas potências viram nessa tentativa
uma ameaça aos seus interesses geopolíticos e estratégicos relacionados à livre navegação de
sua frota naval em alto mar no sul dos oceanos Atlântico, Pacífico e Índico. Como não obteve o
reconhecimento por parte das potências nucleares e de seus principais aliados, a iniciativa do
HSLAN ficou como simples pronunciamento de boas intenções e sem um respaldo mais concreto.
No entanto, percebemos que, na atualidade, existe a emergência de um momento propício
para o reconhecimento e a consolidação do Hemisfério Sul como espaço geográfico completa-
mente livre de armas nucleares. Avistamos três movimentos que favorecem a materialização:
1 – a entrada em vigência do Tratado de Pelindaba, o que torna, de fato, a África uma ZLAN14;

14 A Namibia (2009) e o Burundi (2010) foram os últimos países a ratificar o Tratado de Pelindaba.

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2 – o fortalecimento do regime internacional de ZLAN, por meio da cooperação e coordenação


discutidas na I e II Conferências dos Países de ZLAN (2005 e 2010); e 3 – o momento internacional
oportuno para negociar novas perspectivas do desarmamento, manifestado na política externa
norte-americana do governo do presidente Barak Obama, principalmente dos fatos políticos
derivados da Conferência de Exame do TNP e da Conferência de Segurança Nuclear que aconte-
ceram em 2010.
Paralelamente ao crescimento do número de ZLAN no pós-Guerra Fria, apresenta-se
outro elemento, contrário aos ideais pacifistas das Zonas Desnuclearizadas: o relacionado com
a expansão da Organização do Atlântico Norte (OTAN). Trata-se da ampliação da abrangência
dessa comunidade de segurança aos países da Europa Central e Oriental que faziam parte do
antigo Pacto de Varsóvia. Na política externa dos EUA, isso representa um ganho geoestratégico,
pois permite diluir os antigos adversários da Guerra Fria em aliados políticos, sob um sistema
de segurança baseado na presença do seu próprio armamento nuclear como pilar fundamental
contra eventuais ataques externos à região.
Podemos perguntar, então, como se configura a Política Externa dos EUA com relação às
ZLAN no período do pós-Guerra Fria? A posição do Presidente Obama contrasta com os governos
anteriores. A National Security Strategy of Engagement and Enlargement foi uma doutrina
direcionada além da esfera militar, ainda assim, em 1996, o presidente Clinton já assinava
uma diretriz presidencial alterando o compromisso assumido na ONU, em 1978, de não utilizar
armas nucleares contra um país não possuidor dessa arma ou que fizesse parte de uma ZLAN.
A National Security Strategy 2002, 2006, do governo Bush, substituía a doutrina da contenção
e dissuasão pela doutrina do ataque preventivo, visando assegurar a superioridade militar,
política e estratégica dos EUA, e contemplando a possibilidade de utilizar unilateralmente armas
nucleares como forma repentina de ataque para diminuir qualquer tipo de ameaça. O Governo
Bush retirou os EUA do tratado Anti-Ballistic Missile (ABM) para construir o próprio sistema de
defesa antimísseis, recusou-se a ratificar as mudanças do Strategic Arms Limitation Talks (SALT
II) e do Complete Test Ban Treaty (CTBT), e empenhou-se em levar a OTAN à Ucrânia e à Geórgia,
além de estabelecer bases antimísseis na Polônia e na República Tcheca.
Atualmente, assistimos a uma transição da política externa norte-americana com relação
ao desarmamento e a não proliferação de armas nucleares. A política do presidente Obama
parece estar mais voltada ao diálogo e ao consenso, e mantêm o principal objetivo de impedir
o uso de armas nucleares por qualquer Estado ou por atores não estatais, como também de
prevenir a proliferação bélica de tais armas tanto por antigos como por novos atores.
O discurso pronunciado por Obama, em Praga, em 5 de abril de 2009, pode ser considerado
como a plataforma da política nuclear e de não proliferação dos EUA que tem sido aplicada
nos últimos anos. Obama afirmou que na sua administração reduziria a importância das armas
nucleares nas estratégias de segurança nacional para a construção de um mundo livre de armas
nucleares. No entanto, afirmou que o perigo é latente quando existe a possibilidade de atentados
terroristas perpetrados por grupos não estatais que possam adquirir tecnologia nuclear bélica no
mercado negro.
Aqui, identificamos um segundo problema: a ameaça do terrorismo nuclear parece ser
cada dia mais evidente e cada vez mais difícil de dissuadir, mas, como controlar o fluxo e

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o deslocamento do armamento nuclear (incluídos os artefatos não sofisticados) quando as


mesmas potências nucleares e, principalmente, os EUA não têm cumprido os Protocolos das
ZLAN que tratam desse assunto?
Assim, evidenciamos as problemáticas em que se insere a política nuclear e de não proliferação
dos EUA com relação às ZLAN. Se, por um lado, não modifica suas reservas com relação ao trânsito
de armas nucleares pelas regiões que alcançaram o status de desnuclearização, alegando ir contra
os seus interesses estratégicos, por outro lado, ficam expostas vulnerabilidades que podem ser
aproveitadas por grupos terroristas para obter no mercado negro algum tipo de tecnologia nuclear,
o que seria prejudicial aos interesses estratégicos que os EUA pretendem defender.
Existem outros interrogantes que emergem quando abordamos o questionamento de
como tem sido a política externa norte-americana com relação às ZLAN durante o período do
pós-Guerra Fria. Como conciliar o discurso de Obama sobre desarmamento e um mundo livre
de armas nucleares, se ao mesmo tempo se apoia a expansão da OTAN e o estabelecimento de
plataformas antimísseis na Europa Oriental? Percebemos que existem duas tendências paralelas
com relação ao desarmamento e à proliferação de armas nucleares: por um lado, o aumento de
ZLAN, e, por outro, o início de uma corrida nuclear por alguns países enquanto a OTAN se expandia
pela Europa central e oriental. Lafer (1998, 10) explica que há um paradoxo consubstancial entre
desarmamento e armamento nuclear com o fim da Guerra Fria e que é a clareza do posicionamento
dos Estados com relação ao significado das armas nucleares que determina a política que deve
seguir cada Estado.
Partindo da abordagem anterior, podemos nos perguntar qual seria, então, a política
das potências nucleares e, principalmente dos EUA, sabendo que a existências dessas armas
contribuíram enormemente ao modelo imposto durante a Guerra Fria. Segundo Huntington
(1996), passou-se de um esquema de manutenção do acúmulo de armas nucleares (“build up”),
que foi característico da Guerra Fria, a um esquema de uma relativa manutenção do acúmulo
de armas nucleares contra a detenção ou contenção (“hold down”) da disseminação das armas
nucleares no período do pós-Guerra Fria.
Igualmente, Krauthammer (2003) argumenta que, nas políticas de não proliferação e
desarmamento das potências nucleares e, principalmente, dos EUA no pós-Guerra Fria, se
evidencia a confluência de três aspectos característicos: denying, que é negar acesso à tecnologia
nuclear a outros países; disarming, que é fomentar o desarmamento nuclear horizontal; e
defending, que é manter a capacidade de se defender contra qualquer ataque nuclear. Esses três
elementos estão presentes na política externa nuclear dos EUA nos últimos anos, e também na
Nuclear Posture Review Report, de 2010.
Ferguson et al. (2009) apontam que, no pós-Guerra Fria existem novos desafios em matéria
nuclear que devem ser enfrentados pelos EUA: risco de terrorismo nuclear; programas nucleares
clandestinos em Estados problemáticos (Irã e Coreia do Norte); risco de transferência de armas e
tecnologia nuclear no mercado negro; potencial perda de controle estatal de armas ou materiais
nucleares, (principalmente, no Paquistão); maior peso das armas nucleares para as estratégias
de defesa da Rússia; e incertezas em relação ao planejamento estratégico da China. Os autores
identificam três estratégias que os EUA estão implementando para anular ou enfrentar esses
desafios: combater o terrorismo nuclear; impedir que novos Estados adquiram armas nucleares;

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e cooperar com a Rússia e a China para diminuir desconfianças e desenvolver políticas conjuntas
de desarmamento. Essas três estratégias estão relacionadas aos “três D” de Krauthammer da
política nuclear norte-americana implementada no pós-Guerra Fria.
Sob essa mesma perspectiva, Panofsky (2007) questiona se ainda tem sentido continuar
mantendo as armas nucleares seis décadas depois da detonação da bomba atômica contra a
população civil e, ao mesmo tempo, produzir uma nova geração desse tipo de armamento por
parte dos EUA. Para o autor, a política de contenção e dissuasão é uma “relíquia obsoleta” da
Guerra Fria, e hoje ela é insuficiente para nortear as estratégias de defesa dos EUA. O que está
acontecendo nos últimos anos, segundo o autor, é uma mudança do paradigma nuclear norte-
americano, que está se deslocando da clássica doutrina Mutually Assured Destruction (MAD) para
uma doutrina baseada na seleção de alvos específicos e possíveis de ataque nuclear, Nuclear Use
Target Selection (NUTS).
A doutrina NUTS já tinha alguma presença na National Security Strategy, do governo Clinton,
porém, foi nos dois períodos presidenciais de W. Bush que teve ampla difusão e aplicação na
política externa. Não foi por acaso que na Nuclear Posture Review, de 2002, foi desenhada uma
lista de oito países percebidos potencialmente como ameaça, contra os quais um ataque norte-
americano preventivo poderia utilizar suas armas nucleares. Boniface (2003) amplia essa discussão
afirmando que a política externa nuclear dos EUA, no começo do século XXI, estipulou claramente
que a prevenção da proliferação não se encontraria no respeito e cumprimento dos tratados
internacionais, mas sim, em um ataque norte-americano. Essa política gerou uma situação
preocupante por três motivos: denuncia a tese clássica da dissuasão para dar continuidade a um
esquema de utilização das armas nucleares centrado na rapidez e no efeito surpresa; dificulta
as negociações de desarmamento que estiveram paradas por muitos anos; e, paradoxalmente,
constrói um prêmio ou facilita a proliferação nuclear por outros países que têm esse intuito.
Contrastando com o anterior, a política externa nuclear do presidente Obama foi inicialmente
desenhada em direção a uma via oposta daquela que vinha sendo executada pelo seu antecessor.
A referência de se direcionar para um Mundo Livre de Armas Nucleares não é um conceito novo
dentro da política externa norte-americana. Desde o governo do presidente Reagan (1980-
1988), já se falava da necessidade do estabelecimento de mecanismos graduais de redução de
armamentos de armas de destruição em massa até alcançar o status mundial de ser livre de
armas nucleares. No entanto, o momento atual é bem característico e diferente no sentido de
que, uma vez finalizada a Guerra Fria e a emergência do terrorismo fundamentalista, que poderia
obter e utilizar armas ou artefatos nucleares para executar ataques, há a emergência de um
debate sobre a real missão que possuem hoje as armas nucleares, em comparação com a missão
com que foram criadas durante os últimos sessenta anos.

Considerações finais

Os desdobramentos dos anos do pós-Guerra Fria e, principalmente, da primeira década


do século XXI, têm influenciado, em grande proporção, as políticas externas de desarmamento
e de não proliferação nuclear, tanto para as potências nucleares quanto para os países que
conformaram acordos guarda chuva diante das ameaças bélicas de natureza nuclear.

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É significativo que o Hemisfério Sul se encontre completamente coberto pela vinculação de


três ZLAN (América Latina, Tlatelolco Pacífico, Rarotonga e África – Pelindaba). No entanto, os
EUA, apesar de ter entrado recentemente numa espiral favorável ao desarmamento nuclear, não
apoia a concretização dessa área, pelo fato de obstaculizar a livre navegação pelo alto mar os navios
que possam transportar armamento nuclear. Isso é muito relevante na visão estadunidense na
hora de avaliar a sua presença e hegemonia mundial. A possibilidade de um conflito acontecer e ser
necessário o deslocamento de armamento nuclear pelos mares seria bem difícil de implementar,
tendo em vista a existência da natureza desnuclearizada do Hemisfério Sul.
Existe uma questão que deve ser discutida na hora de favorecer políticas direcionadas ao
desarmamento e está estreitamente relacionada à missão e função com que as armas nucleares,
hoje, vinte anos após o fim da Guerra Fria, significa para a defesa e segurança dos EUA. Nessa
perspectiva, Oelrich (2005) argumenta que a missão com que as armas nucleares foram criadas
no passado encontra-se atualmente erodida em dois aspectos. Em primeiro lugar, as mudanças
no ambiente estratégico mundial proporcionado pelo fim da Guerra Fria (a dissolução do Pacto
de Varsóvia, a emergência da hegemonia dos EUA e o aumento de ameaças não estatais)
reduzem o número de objetivos para os quais as armas foram desenhadas, com o intuito
de garantir força e poder. Para as superpotências durante a Guerra Fria, as armas nucleares
representava a sobrevivência e, mais ainda, ajudava a compensar a percepção de fraqueza de
armas convencionais. Em segundo lugar, pelas razões anteriores, uma possível introdução de
armas nucleares em conflitos atuais por parte dos EUA seria completamente contraproducente
para o país, o que tem permitido a emergência de uma tendência de suplantar as armas nucleares
por armas convencionais de tecnologia não nuclear. Nesse caso, cabe-nos perguntar como se
poderia dar essa nova missão às armas nucleares.
A respeito disso, Kristensen, et al. (2009) enfatizam que, se os EUA continuarem a manter
a missão das armas nucleares que foi herdada da Guerra Fria, irão contribuir cada vez mais
com a insegurança. Por isso, para os autores, é preciso, hoje, no pós-Guerra Fria, conter o uso
dessas armas. Essa nova doutrina é conhecida como Minimal Deterrence, que parte do princípio
de redução de progressiva e gradual de todas as potências nucleares até chegar a um número
pequeno de armamento que permita manter uma “dissuasão mínima” e, assim, consolidar um
mundo livre de armas nucleares, processo no qual as ZLAN espalhadas pelo mundo terão uma
relevante participação e contribuição.

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