Camille Flammarion - Narrações Do Infinito

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 158

Camille Flammarion

Narrações
do Infinito
(Lúmen)

Federação Espírita Brasileira


Camille Flammarion – Narrações do Infinito 2

Narrações do Infinito
Camille Flammarion

Tradução de
Almerindo Martins de Castro

Copyright 1938 by
Federação Espírita Brasileira
Av. L-2 Norte – Q. 603 – Conjunto F
70830-030 – Brasília – DF – Brasil

Departamento Editorial
Rua Souza Valente, 17
20941-040 – Rio de Janeiro – RJ – Brasil
C.G.C. nº 33.644.857/0002-84
I.E. nº 81.600.503
http://www.febnet.org.br/
Camille Flammarion – Narrações do Infinito 3

Índice
Primeira narrativa ........................................................................ 4
Segunda narrativa ...................................................................... 47
Terceira narrativa ...................................................................... 74
Quarta narrativa ......................................................................... 89
Quinta narrativa ....................................................................... 132
Camille Flammarion – Narrações do Infinito 4

Primeira narrativa 1

Resurrectio præteriti

I
Quœrens – Vós me haveis prometido, ó Lúmen!, fazer a narra-
tiva dessa hora, estranha entre todas, que se seguiu ao vosso derra-
deiro suspiro, e descrever de que modo, por uma lei natural, embo-
ra mui singular, revistes o passado no presente e penetrastes um
mistério que havia permanecido oculto até hoje.
Lúmen – Sim, meu velho amigo, vou cumprir a promessa e,
graças à longa correspondência de nossas almas, espero compreen-
dereis esse fenômeno estranho, conforme o classificastes. Há con-
templações cuja força o olhar mortal não pode suportar. A morte,
que me libertou dos frágeis e fatigáveis sentidos do corpo, ainda
não vos tocou com a sua mão emancipadora. Pertenceis ao mundo
dos vivos. Apesar do isolamento de ermo, nessas reais torres do
arrabalde Saint-Jacques, onde o profano não vem perturbar vossas
meditações, fazeis, sem embargo disso, parte da existência terrestre
e das suas superficiais preocupações. Não vos admireis, pois, no
instante de vos associar ao conhecimento do meu mistério, do
convite para que vos isoleis, mais ainda, dos ruídos exteriores e me
presteis toda a intensidade de atenção de que o vosso Espírito seja
capaz de concentrar nele próprio.

1
Escrito em 1866. Publicado pela primeira vez na Revista do Século
XIX, de l de Fevereiro de 1867. Desenvolvido, depois, pelas aplica-
ções sucessivas do mesmo princípio de óptica transcendente.
Camille Flammarion – Narrações do Infinito 5

Quœrens – Serei todo ouvidos, para vos escutar, ó Lúmen!, e


todo o meu Espírito estará concentrado em vos compreender. Falai,
sem receio nem circunlóquio, e dignai-vos de me fazer conhecedor
das impressões, ignotas para mim, que sucedem à cessação da vida.
Lúmen – Por onde desejais comece a narração?
Quœrens – Se bem recordardes, a partir do momento em que,
mãos trêmulas, eu vos fechei os olhos. Gostaria que daí partisse a
vossa origem.
Lúmen – Oh! a separação do princípio pensante e do organis-
mo nervoso não deixa na alma nenhuma espécie de recordação. É
como se as impressões do cérebro, que constituem a harmonia da
memória, se apagassem inteiramente e fossem logo restabelecidas
sob outro modo. A primeira sensação de identidade que se experi-
menta depois da morte assemelha-se à que se sente ao despertar,
durante a vida, quando, acordando pouco a pouco, à consciência da
manhã, ainda se está penetrado pelas visões da noite. Chamado
pelo futuro e pelo passado, o Espírito busca, por seu turno, retomar
a plena posse de si mesmo e deter as impressões fugitivas do sonho
esvaecido, que passam ainda nele com o respectivo cortejo de
quadros e acontecimentos. Às vezes, absorvido em tal retrospecção
de um sonho cativante, sente sob as pálpebras, que de novo se
fecham, os elos tênues da visão reatados e o espetáculo prosseguir;
recai, então, no sonho e numa espécie de meio-sono. Assim se
balança nossa faculdade pensante ao sair desta vida, entre uma
realidade que não compreende ainda e um sonho não desaparecido
completamente. As mais diversas impressões se amalgamam e
confundem, e se, sob o peso de sentimentos perecedouros, tem
saudades da Terra de onde vem exilado, é então oprimida por um
sentimento de tristeza indefinível que pesa sobre nossos pensamen-
tos, nos envolve de trevas e retarda a clarividência.
Camille Flammarion – Narrações do Infinito 6

Quœrens – Experimentastes essas sensações imediatamente


após a morte?
Lúmen – Após a morte? Mas não existe morte. O fato que de-
signais sob tal nome, a separação do corpo e da alma, não se efetua
– por assim dizer – sob uma forma dita material, comparável à
separação química de elementos dissociados que se observa no
mundo físico. Não se percebe essa separação definitiva, que vos
parece tão cruel, mais do que a pode perceber o recém-nascido,
saindo do ventre materno. Somos verdadeiramente nascidos para a
vida celeste, tal qual o fomos para a existência terrestre. Apenas,
não estando a alma envolta nas faixas corporais que a revestem na
Terra, adquire ela mais prontamente a noção do seu estado e da sua
personalidade. Tal faculdade de percepção varia todavia – essenci-
almente – de uma para outra alma. Há as que durante o viver nunca
se elevaram rumo do céu, nem sentiram o desejo de penetrar as leis
da Criação. Essas, dominadas ainda pelos apetites corporais, per-
manecem longo tempo em estado de perturbação e de inconsciên-
cia. Outras existem, felizmente, que, desde esta vida, voaram com
as suas aspirações aladas rumo aos cimos do belo eterno. Estas,
vêem chegar com calma e serenidade o instante da separação; elas
sabem que o progresso é a lei da existência, que entraram no Além,
numa vida superior à de aquém; seguem, passo a passo, a letargia
que sobe ao coração e, quando o último movimento, vagaroso e
insensível, pára em seu curso, elas estão já acima do corpo e daí já
observaram o adormecimento. Libertando-se dos liames magnéti-
cos, sentem-se rapidamente arrebatadas por uma força desconheci-
da rumo do ponto da Criação, a que as suas aspirações, sentimentos
e esperanças as atraem.
Quœrens – A palestra que ora inauguro convosco, meu caro
mestre, traz à memória os diálogos de Platão sobre a imortalidade
da alma; e igual a Fedro que o solicitava a seu mestre, Sócrates, no
próprio dia em que este devia beber a cicuta – para obedecer à
Camille Flammarion – Narrações do Infinito 7

iníqua sentença dos Atenienses –, eu vos pergunto, ó vós, que


haveis transposto o termo fatal, que diferença essencial distingue a
alma do corpo, de vez que este perece, enquanto que a primeira não
morre jamais?
Lúmen – Não darei a essa questão uma resposta metafísica,
qual a de Sócrates, nem uma solução dogmática, qual a dos teólo-
gos, mas uma resposta científica, porque vós, tal qual eu, dais valor
somente aos fatos constatados pelos métodos positivos. Ora, pode-
se distinguir no ser humano três princípios diferentes, ainda que
reunidos:
1ª: o corpo material; 2ª: o corpo astral; 3ª: a alma.
Menciono-os nessa ordem para seguir o método a posteriori. O
corpo material é uma associação de moléculas, formadas elas pró-
prias de agrupamentos de átomos. Os átomos são inertes, passivos,
governados pela força, e entram no organismo pela respiração e
pelos alimentos, renovam incessantemente os tecidos, são substitu-
ídos por outros e, eliminados, vão pertencer a outros corpos. Em
alguns meses, o corpo humano é totalmente renovado, e nem no
sangue, nem na carne, nem no cérebro, nem nos ossos resta mais
um único dos átomos que constituíam o todo alguns meses antes.
Por intermédio da atmosfera, principalmente, os átomos viajam
sem cessar de um para outro corpo. A molécula de ferro é sempre a
mesma, quer esteja incorporada ao sangue que pulsa sob a têmpora
de um homem ilustre, quer pertença a um vil fragmento enferruja-
do. A molécula de oxigênio é idêntica, brilhe no olhar amoroso da
noiva, ou, reunida ao hidrogênio, projete sua flama em um dos mil
luzeiros das noites parisienses, ou, ainda, tombe em gota de água
do alto das nuvens. Os corpos atualmente vivos são formados da
cinza dos mortos e, se todos os mortos ressuscitassem, faltariam
aos vindos por último muitos fragmentos pertencentes aos primei-
ros. E, durante a vida mesmo, numerosas mudanças ocorrem, entre
Camille Flammarion – Narrações do Infinito 8

amigos e inimigos, entre homens, animais, plantas, trocas que


causariam singular espanto ao olhar analisador. Quanto respirais,
comeis ou bebeis, já foi respirado, bebido ou comido milhares de
vezes. Tal é o corpo: um complexo de moléculas materiais que se
renovam constantemente.
O corpo astral é, por assim dizer, imaterial, etéreo, fluídico. É
por ele que o Espírito está associado ao corpo material; é o envelo-
pe da alma, a substância física do Espírito.
Pela energia vital a alma grupa as moléculas, seguindo certa
forma, e constitui os organismos.
A força rege os átomos passivos – incapazes de se conduzirem
eles próprios, inertes; a força os chama, faz que lhe obedeçam,
toma-os, coloca-os, dispõe todos conforme certas regras e forma
esses corpos tão maravilhosamente organizados que o anatomista e
o fisiologista contemplam. Os átomos são permanentes; a força
vital não. Os átomos não têm idade; a força vital nasce, envelhece,
morre. Um octogenário não é mais idoso do que o jovem de quatro
lustros. Porquê? Os átomos que o constituem estão, naquele, ape-
nas há alguns meses e, além disso, não são nem velhos, nem novos;
analisados, os elementos constitutivos do seu corpo não têm idade.
O que envelheceu, pois, no octogenário? A sua energia vital, a qual
outra coisa não é que uma transformação da energia do Universo, e
esgotada no corpo. A vida se transmite pela geração. Ela mantém o
corpo instintivamente sem ter consciência dela própria: tem um
começo e um fim; é uma força física inconsciente, organizadora e
conservadora do corpo.
A alma é um ser intelectual, pensante, imaterial na essência. O
mundo das idéias, no qual vive, não é o mundo de matéria: não tem
idade, nem envelhece; não muda em um mês ou dois, igual ao
corpo, pois, decorridos ano, lustro, decênio, sentimos que conser-
vamos a nossa identidade, que o nosso eu permanece. De outro
Camille Flammarion – Narrações do Infinito 9

modo, se a alma não existisse, se a faculdade de pensar fosse fun-


ção do cérebro, não poderíamos continuar a dizer que temos um
corpo: este seria o corpo que teríamos na ocasião. Além disso, de
período em período, nossa consciência mudaria, não possuiríamos
mais a certeza, nem mesmo o sentimento da nossa identidade, e
não seríamos mais responsáveis pelas resoluções segregadas pelas
moléculas que haviam passado por nosso cérebro muitas dezenas
de meses antes. A alma não é a força vital, pois esta é mensurável,
transmite-se por geração, não tem consciência intrínseca, nasce,
aumenta, declina e morre – estados diametralmente opostos aos da
alma, imaterial, imensurável, intransmissível, consciente. O desen-
volvimento da força vital pode ser representado geometricamente
por um fuso que inche insensivelmente até ao meio e depois de-
cresça até anular-se na outra extremidade. No meio da vida, a alma
não desincha (se se pode usar a comparação) para diminuir em
forma de fuso e ter um fim, mas continua a abertura da sua parábo-
la, lançada no Infinito. Além disso, o modo de existência da alma é
essencialmente diverso do da vida. É um modo espiritual. O senti-
mento do justo ou do injusto, do verdadeiro ou do falso, do bom ou
do mau; o estudo, as matemáticas, a análise, a síntese, a contem-
plação, a admiração, o amor, o afeto ou a antipatia, a estima ou o
desprezo, em uma palavra, as preocupações da alma, quaisquer que
sejam, pertencem à ordem intelectual e moral, que os átomos e as
forças físicas não podem conhecer, e que existe tão verdadeiramen-
te quanto a ordem material. Jamais o trabalho químico ou mecânico
das células cerebrais, por mais sutil que se suponha, poderia dar em
resultado um julgamento intelectual, por exemplo, concluir que 4
multiplicado por 4 é igual a 16 ou que a soma dos três ângulos de
um triângulo é igual a dois ângulos retos.
Esses elementos da entidade humana são encontrados no con-
junto do Universo:
1º - os átomos, os mundos materiais, inertes, passivos;
Camille Flammarion – Narrações do Infinito 10

2º - as forças físicas, ativas, que regem os mundos e que se


transformam umas nas outras;
3º - Deus, o Espírito eterno e infinito, organizador intelectual
das leis matemáticas às quais as forças obedecem; ser in-
cognoscível, no qual residem os princípios supremos do
verdadeiro, do belo e do bem.
A alma é ligada ao corpo material pelo corpo astral, intermedi-
ário, que ela conserva depois da morte. Quando a vida se extingue
a alma se separa naturalmente do organismo e cessa qualquer rela-
ção imediata com o Espaço e o Tempo, pois não tem densidade
alguma, nem peso. Depois da morte ela se encontra desprendida do
corpo e permanece maior ou menor interregno na atmosfera. Rela-
tivamente livre, a alma pode deslocar-se facilmente e, às vezes,
projetar-se mesmo a imensas distâncias, com a rapidez do pensa-
mento. Sabeis que do Sol à Terra, ou desta aos planetas, a gravita-
ção se transmite quase instantaneamente com uma velocidade
maior do que a da luz. A transmissão da alma, mônada-psíquica, no
Espaço, é da mesma ordem. Assim, estamos no céu, imediatamente
depois da morte, de igual modo que o havíamos estado, aliás,
durante todo o período da existência. Somente não temos mais o
peso que nos prende ao planeta. Acrescentarei, todavia, que a alma
demora algum tempo para desprender-se do organismo nervoso e,
por vezes, permanece muitos dias, meses mesmo, magneticamente
ligada ao antigo corpo que não deseja abandonar. Não raro, con-
serva, por largo período, seu organismo fluídico, além de que,
dotada de faculdades especiais, pode transportar-se rapidamente de
um ponto a outro do Espaço.
Quœrens – É a primeira vez que assimilo, sob uma forma sen-
sível, este fato não sobrenatural da morte, e compreendo a existên-
cia individual da alma, sua autonomia do corpo e da vida, sua
personalidade e sobrevivência, sua situação tão simples no céu.
Esta teoria sintética me prepara, eu o creio, para compreender e
Camille Flammarion – Narrações do Infinito 11

apreciar vossa revelação. Um acontecimento singular, dissestes,


vos impressionou a entrada na vida eterna. Em que momento so-
breveio?
Lúmen – Ei-lo, meu amigo. Deixe-me seguir na narrativa. Soa-
vam, bem sabeis, as doze pancadas da meia-noite, no tímpano do
meu velho carrilhão e o plenilúnio, em meio do seu curso, derra-
mava seu pálido clarão sobre meu leito mortuário, quando minha
filha, meu neto e amigos de estima saíram do aposento, no intuito
de repousar um pouco. Quisestes permanecer assistindo-me e
prometestes à minha filha não abandonar o lugar até ao amanhecer.
Eu vos agradeceria esse devotamento, terno e dedicado, se não
fôssemos qual dois verdadeiros irmãos. Teria decorrido meia-hora,
mais ou menos, pois o astro das noites declinava para a direita,
quando vos peguei a mão e anunciei que a vida já me abandonava
as extremidades. Assegurastes-me o contrário; mas, eu observava
com calma meu estado fisiológico e conhecia que poucos instantes
restavam ainda a respiração. Dirigistes sutilmente vossos passos
para o aposento dos meus filhos, mas (ignoro por que concentração
de esforços) pude conseguir gritar, detendo tal intento. Voltastes,
olhos lacrimosos, meu amigo, e dissestes: Sim, vossas derradeiras
vontades foram observadas e amanhã cedo será tempo ainda de
fazer vir vossos filhos. Havia nessas palavras evidente contradição,
que apreendi, sem isso deixar perceber. Lembrai-vos de que, então,
pedi que fosse aberta a janela? Que bela noite de Outubro, mais
bela do que as dos poetas da Escócia cantada por Ossian! Não
longe do horizonte, e sob meus olhos, distinguiam-se as Plêiades,
veladas pelas brumas inferiores. Castor e Pólux remigiavam vitori-
osamente no céu, algo mais distante. E, ao alto, formando triângulo
constelado com as precedentes, admirava-se, na constelação do
Cocheiro, bela estrela de áureos raios, a que, desenhada à borda das
cartas zodiacais, se denomina Capela, ou a Cabra. Vedes que a
memória não me falha. Quando abristes a janela de todo, os perfu-
Camille Flammarion – Narrações do Infinito 12

mes das recentes rosas, adormecidas sob a asa da Noite, chegaram


até mim e confundiram-se às claridades silenciosas das estrelas.
Exprimir a doçura que derramaram em minha alma essas impres-
sões – as derradeiras que a Terra me enviava, as últimas que toca-
vam os sentidos ainda não atrofiados – ficaria para além das possi-
bilidades da minha linguagem: nas minhas horas de mais terno
enlevo, de mais suave ventura, jamais senti essa alegria imensa, tal
serenidade gloriosa, semelhante prazer já celeste, que me foram
dados por esses minutos de êxtase, escoados entre o sopro odoroso
das flores e o meigo olhar das estrelas longínquas. E, quando re-
gressastes para junto de mim, eu também voltara ao mundo exterior
e, juntas as mãos sobre o peito, deixei que meu olhar e meu pensa-
mento rogassem unidos e subissem ao Espaço. E porque meu ouvi-
do fosse bem depressa se fechar para sempre, recordo as derradei-
ras palavras que pronunciei: Adeus, meu velho amigo; sinto que a
morte me conduz... rumo às regiões desconhecidas, onde nos reen-
contraremos um dia. Quando a aurora desmaiar as estrelas, haverá
aqui apenas o meu corpo mortal. Repeti à minha filha a última
expressão da minha vontade: que ela eduque os filhos, tendo em
mira os bens eternos.
E porque choráveis e dobrastes os joelhos diante do meu leito,
acrescentei: Repeti a bela prece de Jesus. E começastes a dizer em
tom vacilante o Pai-nosso...
Perdoai-nos... nossas ofensas tal qual perdoemos... àqueles que
nos... hajam... ofendido...
Tais são os pensamentos finais que chegaram à minha alma
por intermédio dos sentidos. A vista se me perturbou ao fixar a
estrela Capela e não sei mais de quanto se seguiu imediatamente a
esse instante. O ano, os dias e as horas são constituídos pelo mo-
vimento da Terra. Fora desses movimentos, o tempo terrestre não
existe mais no Espaço; é, pois, absolutamente impossível ter noção
desse tempo. Creio, sem embargo disso, ter ocorrido no próprio dia
Camille Flammarion – Narrações do Infinito 13

do meu trespasse o acontecimento que vou narrar, pois, conforme


percebereis desde logo, meu corpo ainda não fora sepultado, quan-
do a visão se apresentou à minha alma.
Nascido em 1793, estava, em Outubro de 1864, no meu septu-
agésimo segundo ano de existência, e não me senti mediocremente
surpreendido ao constatar-me animado de ardor e agilidade de
espírito não menos intensos do que nos mais belos dias da minha
adolescência. Não possuía corpo, porém não me julguei incorpó-
reo, pois senti e vi que uma substância me constituía, embora não
houvesse nenhuma analogia entre tal elemento e aqueles que for-
mam os corpos terrestres. Não sei de que modo atravessei os espa-
ços celestes e qual a força que me aproximou depressa de um sol
magnífico, cujo dourado esplendor, aliás, não me deslumbrou e que
estava rodeado, qual mostrara à distância, de grande número de
mundos, envoltos cada qual em um ou muitos anéis. Por essa mes-
ma força, da qual era eu inconsciente, fui levado rumo de um des-
ses anéis, espectador de indefiníveis fenômenos de luz, pois o
Espaço estrelado estava, dir-se-ia, atravessado por pontes de arco-
íris. Não via mais o sol de ouro; estava numa espécie de noite
colorida de nuanças multicores. A visão da minha alma atingira
potência incomparavelmente superior à dos olhos do organismo
terrestre que recentemente deixara; e, circunstância notável, esse
poder me parecia subordinado à vontade. Tal poder visual da alma
é tão maravilhoso que não me deterei hoje em descrevê-lo. Basta
que vos faça pressentir isto: em lugar de ver simplesmente as estre-
las no firmamento tal qual as contemplais da Terra, eu distinguia
também de modo nítido os mundos que lhes gravitam em redor; e,
detalhe estranho, quando não mais desejava divisar a estrela, a fim
de não ser forçado ao exame desses mundos, ela desaparecia de
minha visão, deixando-me em excelentes condições para observar
Camille Flammarion – Narrações do Infinito 14

apenas um de tais globos.2 Além disso, quando minha visão sobre


um mundo em particular chegava a distinguir os detalhes da super-
fície, os continentes e os mares, os nevoeiros e os rios, e, embora
não visse aumentar perceptivelmente, qual acontece com o auxílio
dos telescópios, conseguia, por intensidade particular de concentra-
ção na “vista” de minha alma, enxergar o objeto sobre o qual ela
convergia, no mesmo grau em que se distingue uma cidade, uma
campina. Chegando a esse mundo anelar, apercebi-me de que me
revestira de uma forma idêntica à dos seus habitantes, tal qual se
houvesse a minha alma atraído para ela os átomos constitutivos de
um novo corpo. Na Terra, os corpos são compostos de moléculas
que não se tocam e se renovam constantemente pela respiração,
alimentação e assimilação. Aqui, o envoltório da alma se forma de
modo mais rápido. Eu me senti vivo em mais alto grau do que os
seres sobrenaturais cujas paixões e saudades foram cantadas por
Dante. Uma das faculdades essenciais dos habitantes desse novo
mundo é decerto a de enxergar muito longe.
Quœrens – Mas, meu amigo (perdoai minha observação quiçá
ingênua), a essa tão grande distância, os mundos e os planetas que
circulam em torno das estrelas não se confundem com o próprio
centro de atração? Por exemplo, a tão grande longitude, onde vos
achastes, os planetas do nosso sistema não ficaram confundidos
nessa estrela, no nosso Sol? Pudestes distinguir a Terra?
Lúmen – Haveis aproveitado, à primeira vista, a única objeção
geométrica que parece contrariar a observação precedente. Com
efeito, a uma certa distância, os planetas são absorvidos nos clarões
do seu sol e nossos olhos terrestres teriam dificuldade em distingui-
los. Sabeis que, a partir de Saturno, não se diferencia mais a Terra.

2
A Anatomia fisiológica transcendente explicará talvez esse fato,
propondo admitir que uma espécie de punctum cœcum se desloca para
disfarçar o objeto que não mais se deseja ver.
Camille Flammarion – Narrações do Infinito 15

Mas, convém acentuar que tais dificuldades dependem tanto da


imperfeição da nossa vista quanto da lei geométrica do decresci-
mento das superfícies. Ora, no mundo a cujas margens acabava de
aportar, os seres, não encarnados em um envoltório grosseiro igual
ao da Terra, e sim mais livres e dotados de faculdades de percepção
elevadas a eminente grau de potência, podem, conforme vos disse
já, isolar a fonte ilumiradora do objeto iluminado e, por isso, per-
ceber distintamente os detalhes, que, a tamanhas distâncias, seriam
de todo encobertos aos olhos dos organismos terrestres.
Quœrens – E para tais observações eles se servem de instru-
mentos superiores aos nossos telescópios?
Lúmen – Se, para tornar menos difícil à compreensão essa ma-
ravilhosa faculdade visual, é mister concebê-la munida de instru-
mentos ópticos, vós a podeis assim admitir teoricamente. Lícito vos
é imaginar óculos que, por uma sucessão de lentes e dispositivos de
diafragmas, aproximam sucessivamente os mundos e isolam da
vista o foco iluminador, para deixar à observação somente o mundo
objeto do estudo. Devo, porém, advertir que esses seres são dota-
dos de um sentido especial, diferente da vista ordinária, e que o
sabem desenvolver por processos ópticos muita eficazes. Fica
entendido que tal poder visual e respectiva construção óptica são
naturais nesses mundos, e não sobrenaturais. Atentai um pouco em
os insetos que dispõem da faculdade de encolher ou alongar seus
olhos à maneira de tubos de binóculos, de intumescer ou achatar o
cristalino para dele fazer uma lente de diversos graus, ou ainda de
concentrar no mesmo foco uma série de olhos assentados, à feição
de outros tantos microscópios para surpreender o infinitamente
pequeno – e podereis de modo mais fácil conceber a faculdade de
tais seres ultraterrestres.
Quœrens – Sem poder figurá-la, embora, pois que está além do
meu conhecimento-experiência, posso conjeturar essa possibilida-
Camille Flammarion – Narrações do Infinito 16

de. Assim, pudestes ver a Terra e mesmo distinguir de tão alto as


cidades e as aldeias do nosso baixo mundo?
Lúmen – Deixai-me prosseguir minha narrativa. Cheguei, pois,
ao anel mencionado, cuja largura é bastante vasta para que 200
Terras qual a vossa possam nele rodar enfileiradas, e me encontrei
sobre uma vasta montanha coroada de palácios vegetais. Pelo
menos me pareceu que esses castelos feéricos cresciam natural-
mente, ou eram apenas o resultado de um fácil ajustamento de
ramos e flores altas. Cidade bastante populosa. Sobre o cimo da
montanha onde aportara, notei um grupo de anciães, em número de
25 ou 30, os quais se fixavam, com a atenção mais obstinada e
mais inquieta, em uma bela estrela da constelação austral do Altar,
nos confins da Via-Láctea. Não notaram a minha chegada junto
deles, tanto a sua múltipla atenção estava exclusivamente concen-
trada no exame da estrela, ou de um mundo do respectivo sistema.
Quanto a mim, chegando a essa atmosfera, me vi revestido de
um corpo físico igual aos deles e, surpresa maior ainda, não me
admirei de ouvir que falavam a respeito da Terra, sim, da Terra,
nessa linguagem universal do Espírito que todos os seres compre-
endem, desde o Serafim até as árvores da floresta. E não só fala-
vam da Terra, mas, particularmente, da França.
– Porque esses massacres regulares? – eles se diziam –. “Have-
rá necessidade de que a força bruta reine soberana? A guerra civil
irá dizimar esse povo até ao último dos seus defensores e lavar com
rios de sangue as ruas da Capital, ainda há pouco tão tranqüila, tão
intelectual, tão elegante e tão brilhante?
Eu não compreendia nada de tais palavras, eu que viera da Ter-
ra com uma velocidade igual à do pensamento e que, na véspera
ainda, respirava o ambiente de uma cidade calma e pacífica. Reuni-
me ao grupo e fixei com eles meu olhar na estrela de ouro. Bem
depressa, escutando sua conversação e buscando avidamente dis-
Camille Flammarion – Narrações do Infinito 17

tinguir as coisas extraordinárias das quais falavam, divisei, à es-


querda da estrela, uma esfera azul-pálido: era a Terra. Não igno-
rais, meu amigo, que, apesar do aparente paradoxo, a Terra é ver-
dadeiramente um astro do céu (e isso eu vos recordei há pouco). De
longe, de uma das estrelas vizinhas do nosso sistema, este aparece,
à visão espiritual de que falei, no grau de uma família de astros
composta de oito mundos principais, unidos em torno do Sol. Júpi-
ter e Saturno chamam primeiramente a atenção, devido ao seu
tamanho; depois, não se tarda em destacar Urano e Netuno e, em
seguida, mais perto do Sol-estrela, Marte e a Terra. Vênus é mais
difícil de perceber e Mercúrio fica invisível, devido à sua quase
absoluta proximidade do Sol. Tal é o sistema planetário do céu.
Minha atenção se prendeu exclusivamente na pequena esfera
terrestre, junto da qual reconheci a Lua. Bem depressa notei as
alvas neves do pólo boreal, a Europa tão retalhada, o Mediterrâneo
azul, o triângulo amarelo da África, os contornos do oceano, e,
porque minha atenção estava unicamente fixada sobre o nosso
planeta, o Sol-estrela se eclipsou da minha visão. Depois, sucessi-
vamente, pouco a pouco, consegui distinguir na esfera, em meio de
regiões azuladas, uma espécie de recorte de cor bistre e, prosse-
guindo minha investigação, vislumbrar uma cidade no meio do dito
recorte. Não tive dificuldade em reconhecer que o recorte era a
França e a cidade Paris. O primeiro sinal de identificação da capital
francesa foi o listão prateado do Sena, que tão faceiramente des-
creve tantas circunvoluções sinuosas a oeste da grande metrópole.
Servindo-me do aparelho óptico, penetrei em maiores detalhes.
A nave e as torres de Notre Dame, que eu via por cima, formavam
bem uma cruz latina na ponta oriental da cidade. Os bulevares
estendiam suas faixas ao norte. Ao sul reconheci o jardim de Lu-
xemburgo e o Observatório. A cúpula do Panteão toucava com um
ponto cinzento a montanha Santa Genoveva. A oeste, a grande
avenida dos Campos Elíseos desenhava no solo a sua linha reta;
Camille Flammarion – Narrações do Infinito 18

divisava-se, mais distante, o bosque de Bolonha, os arredores de


Sannt-Cloud, os bosques de Meudon, Sèvres, Ville d'Avray e Mon-
tretout. Tudo, porém, era paisagem de inverno, árvores despidas de
folhagem, um triste dia de Janeiro, enquanto que eu deixara a Terra
em Outubro. Tive, em pouco, a certeza de que era bem Paris o alvo
da minha vista; mas, porque não compreendesse melhor as excla-
mações dos meus vizinhos, fiz esforços para mais exatamente
realçar os detalhes.
Minha visão se deteve de preferência sobre o Observatório,
pois estava no meu bairro favorito, o qual, durante oito lustros,
deixara apenas por alguns meses. Ora, julgue qual teria sido minha
surpresa, quando meu olhar se adaptou mais completamente ao
cenário e percebi não mais existir avenida entre o Luxemburgo e o
Observatório, e que essa magnífica aléia de castanheiros dera lugar
a jardins de mosteiros. Um desses retiros ocupava o lindo centro do
vergel. O bulevar S. Miguel não existia mais, nem a rua dos Médi-
cis; era um amálgama de ruelas, e julguei reconhecer a antiga rua
do Este, a praça S. Miguel onde outrora uma antiga fonte fornecia
água aos moradores do arrabalde, e uma série de outras ruazinhas
que eu havia visto antigamente. Pareceu-me estar sob meus olhos o
plano de Turgot, com as suas ruas e edificações. O Observatório
estava despojado das cúpulas; as duas alas laterais haviam igual-
mente desaparecido. Pouco a pouco, prosseguindo minha investi-
gação, constatei que, particularizando, Paris mudara profundamen-
te. Meus rancores de artista contra as invasões da edilidade parisi-
ense despertaram, mas foram rapidamente superados por outras
cogitações mais fortes. O Arco triunfal da Estrela não existia mais,
nem as avenidas opulentas que nele vinham confinar. O bulevar de
Sebastopol não existia também, nem a gare do Este, e nenhuma
linha de via-férrea! A torre S. Jaques estava enfeixada em um
cortejo de velhos prédios e a coluna da Vitória lhe estava aproxi-
mada. A coluna da Bastilha também ausente, pois eu teria com
Camille Flammarion – Narrações do Infinito 19

facilidade reconhecido o gênio dourado que a encimava. Na praça


Vendôme a coluna da Grande Armada havia desaparecido e a rua
da Paz não se via também. A rua de Rivoli sumira-se. O Louvre
não estava concluído, ou então demolido. Entre o trecho quadrado
do Louvre e as Tulherias, viam-se casebres amontoados, uma
pequena igreja, velhos terraços e mansardas. Na praça da Concór-
dia não se distinguia mais o obelisco, mas parecia ver-se enorme
pedestal e ante ele grande e grulhante multidão contida por tropas
militares. Não se avistavam a igreja Madalena e a rua Royale.
Havia uma ilhota por detrás da ilha S. Luís. Os bulevares exteriores
não eram outra coisa que o velho muro da ronda, e as fortificações
tinham destruído seus contornos. Enfim, embora reconhecendo a
capital da França, pelos edifícios que lhe restavam e por alguns
quarteirões não transformados, estava sem saber que pensar de tão
maravilhosa metamorfose, que, da véspera para o outro dia, tão
radicalmente mudara o aspecto da velha cidade.
Ao meu pensamento acudiu, de início, a idéia de que, ao invés
de pouco tempo, gastara, em vir da Terra, mais de um ano, lustro,
decênio ou século.
E porque a noção do tempo é essencialmente relativa e a medi-
da da sua duração nada tem de real, nem de absoluta, separada do
globo terrestre, eu perdera, por esse motivo, toda a medida fixa, e a
mim mesmo dizia que um ano ou até um século podia ter passado
ante meu ser sem que me apercebesse, pois o tão vivo interesse
tomado por essa viagem não me fizera achar o tempo longo –
expressão vulgar indicadora dessa sensação em nosso espírito. Não
tendo meio algum de me certificar da realidade, terminaria por crer
sem dúvida que muitos séculos já me separavam da vida terrestre e
tinha sob os olhos a Paris do século XXI, se eu não houvesse,
então, aprofundado mais o exame do conjunto.
Com efeito, identifiquei sucessivamente o aspecto da cidade e
cheguei, por gradação, a reencontrar terrenos, ruas e edifícios que
Camille Flammarion – Narrações do Infinito 20

havia conhecido na minha infância. O Palácio da Municipalidade


me apareceu todo embandeirado e o castelo das Tulherias apresen-
tava sua cúpula quadrada central. As torres feudais do Chatelet e da
Santa-Capela assinalavam bem o antigo palácio. Um pequeno
detalhe completou minha elucidação, quando, no centro do jardim
de um velho mosteiro da rua S. Jaques, discerni um pavilhão cuja
vista me fez estremecer. Fora ali que eu encontrara, adolescente, a
mulher que me amou, com um profundo amor, a minha Eivlys, tão
terna e tão devotada, que tudo abandonou para se entregar ao meu
destino. Revi a pequena cúpula do terraço ante a qual íamos sonhar
à tarde e estudar as constelações. Ah! com que júbilo acolhia eu
esses passeios durante os quais, acertando o passo um pelo outro,
caminhávamos as avenidas, fugindo aos olhos indiscretos do mun-
do ciumento. Revia o pavilhão, reconhecendo-o tal qual era então,
e podeis calcular que tal vista bastou, ela só, para completar mi-
nhas indicações e convencer-me, com uma convicção invencível e
inquebrantável, de que, longe de ter sob os olhos – conforme fora
natural imaginar – a Paris de depois da minha morte, eu tinha ante
mim a Paris desaparecida, a velha Paris do começo do século XIX,
ou a do fim do XVIII.
Podeis compreender facilmente, no mínimo, que eu, apesar da
evidência, não devia crer no que meus olhos viam. Parecia-me
mais natural imaginar que Paris havia envelhecido tanto, sofrido
tais transformações depois da minha partida da Terra (intervalo
cuja duração me era totalmente desconhecida), que eu tinha sob a
vista a cidade do futuro, se posso exprimir por esta imagem um
fato que estava presente para mim. Prossegui, pois, atentamente
minha observação, para constatar, de modo decisivo, que se tratava
da antiga Paris, em parte demolida atualmente, o que eu tinha sob
os olhos, ou se, por um fenômeno não menos incrível, era uma
outra Paris, uma outra França, uma outra Terra.
Camille Flammarion – Narrações do Infinito 21

II
Quœrens – Que situação extraordinária para o vosso Espírito
analista, ó Lúmen! E qual o meio que vos permitiu chegar a conhe-
cer a realidade?
Lúmen – Os anciães da montanha tinham prosseguido a con-
versação, enquanto as reflexões precedentes se sucediam em meu
espírito. Subitamente, ouvi o mais idoso, espírito venerável cuja
cabeça nestoriana se impunha à admiração e ao respeito, exclamar,
em tom tristemente ressonante: “De joelhos, meus irmãos, implo-
remos indulgência ao Deus universal. Essa terra, essa nação conti-
nua a ensopar-se em sangue: uma nova cabeça, a de um rei, acaba
de tombar!”
Seus companheiros pareceram compreendê-lo, porque ajoelha-
ram sobre a montanha e prosternaram os alvos rostos contra o
chão.
Para mim, que ainda não estava habituado a distinguir figuras
humanas no meio das ruas e praças públicas, e que não havia a-
companhado a observação particular dos anciães, permaneci de pé
e insistindo no exame do quadro distante.
– Estrangeiro – disse o velho –, condenais a ação unânime de
vossos irmãos, pois que não vos unistes à prece que fizeram?
– Senador – respondi –, não posso condenar, nem aplaudir,
pois não sei do que se trata. Chegado a esta montanha há pouco,
desconheço a causa da vossa religiosa imprecação.
Então, aproximei-me do velho e, enquanto seus companheiros
se ergueram e entretinham em mútua conversação, eu lhe pedi que
me narrasse as suas observações.
Ensinou-me que, dada a intuição de que são dotados os Espíri-
tos do grau dos habitantes desse mundo, e também pela faculdade
íntima de percepção que lhes coube em partilha, possuem uma
Camille Flammarion – Narrações do Infinito 22

espécie de relação magnética com as estrelas vizinhas. Tais estrelas


são em número de doze ou quinze, as mais próximas; fora desse
perímetro a percepção resulta confusa. “Nosso Sol é uma dessas
estrelas contíguas.” Conhecem, pois, vagamente, mas com exati-
dão, o estado das Humanidades que habitam os planetas dependen-
tes desse Sol, e seu grau relativo de elevação intelectual ou moral.
Além disso, quando uma grande perturbação atravessa uma
dessas Humanidades, seja na ordem física, seja na ordem moral,
eles sofrem uma espécie de comoção recôndita, à semelhança do
que acontece com uma corda, vibrando, ao fazer entrar em vibração
outra corda colocada à distância.
Desde há um ano (um ano deste mundo é equivalente a dez dos
nossos) eles se haviam sentido atraídos por uma emoção particular
para o nosso planeta terrestre e os observadores tinham seguido
com interesse e inquietude a marcha desse mundo. Haviam assisti-
do ao fim de um reino, à aurora de uma liberdade resplendente, à
conquista dos direitos do homem, à afirmação dos grandes princí-
pios da dignidade humana. Depois, haviam visto a causa sagrada
da Liberdade posta em perigo por aqueles que deveriam constituir-
se seus primeiros defensores, e a força brutal substituir o raciocínio
e a persuasão. Compreendi que se tratava da revolução de 1789 e
da queda do velho mundo político diante do novo. Desde algum
tempo, principalmente, havia, com intensa mágoa, acompanhado os
frutos do terror e a tirania dos bebedores de sangue. Eles temiam
pelos dias da raça humana e duvidavam, daí para o futuro, do pro-
gresso dessa Humanidade emancipada, que alienava – ela própria –
o tesouro que acabara de conquistar.
Guardei-me bem de declarar ao Senador ter chegado da Terra e
nela vivido até contar setenta e dois aniversários de existência.
Ignoro se ele teve alguma intuição a respeito, mas eu próprio esta-
va tão estranhamente surpreendido de tal visão, que meu espírito se
identificara com isso e não mais pensava na minha pessoa.
Camille Flammarion – Narrações do Infinito 23

Minha vista afinal se adaptara ao espetáculo observado, e des-


taquei, no meio da praça da Concórdia, um cadafalso rodeado de
formidável aparelhamento de guerra, de tambores, canhões, e de
uma densa multidão pintalgada, empunhando chuços.
Uma charrete, guiada por certo homem vermelho, conduzia os
despojos mortais de Luis XVI, dirigindo-se para os lados do arra-
balde de Saint-Honoré.
Um populacho ébrio parecia ameaçar o céu. Cavaleiros se se-
guiam, sabre em punho. Viam-se, rumo dos Campos Elíseos, fos-
sas, nas quais caíam os curiosos.
Mas, essa agitação, concentrada no local tumultuoso, não se
estendia à cidade – que parecia morta e deserta. O terror a mergu-
lhara em letargia.
Eu não assistira ao acontecimento de 1793, pois esse fora o
ano do meu nascimento, e experimentava indizível interesse em ser
testemunha de tal cena, da qual os historiadores me haviam infor-
mado. Muitas vezes eu discutira o voto da Convenção Nacional,
mas confesso que a execução de homens da estirpe de Lavoisier, o
criador da Química; Bailly, historiador da Astronomia; André
Chenier, o dulcíssimo poeta; ou a condenação de Condorcet, para o
qual não tinham a escusa da razão de Estado, haviam-me causado
mais indignação do que o suplício de Luís XVI. Ser testemunha
dos acontecimentos dessa época transcorrida despertava em mim
interesse sem igual. Todavia, por imenso que fosse tal interesse,
podereis calcular que estivesse dominado por um sentimento mais
poderoso ainda: achar no ano de 1864, e estar assistindo, presente-
mente, a um acontecimento desenrolado durante a Revolução
Francesa.
Quœrens – Parece-me, com efeito, que esse sentimento de im-
possibilidade devia tornar singularmente perturbada a vossa con-
templação, pois, em última análise, ali estava uma visão que senti-
Camille Flammarion – Narrações do Infinito 24

mos radicalmente ilusória e da qual não podemos admitir a realida-


de, mesmo assistindo a ela.
Lúmen – Sim, meu amigo, impossível. Logo, compreendereis
em que estado de ânimo me encontrava, enxergando, com os meus
olhos, um tal paradoxo realizado? Certa expressão popular diz que,
por vezes, não se pode crer nos próprios olhos. Era o meu caso;
impossível negar; impossível admitir.
Quœrens – Não seria uma concepção do vosso Espírito, um
produto da vossa imaginação, uma exumação da vossa lembrança?
Adquiristes a certeza de que se tratava de uma realidade, e não de
um reflexo singular da memória?
Lúmen – Foi o primeiro raciocínio que me veio ao espírito,
mas era de todo tão evidente estar sob meus olhos a Paris de 1793 e
o acontecimento de 21 de Janeiro, que não pude duvidar por muito
tempo. E, por outra parte, tal raciocínio estava de antemão derriba-
do pela circunstância de me haverem os velhos da montanha prece-
dido na observação dos fatos – que eles viam, analisavam e se
comunicavam mutuamente a ação do momento, sem conhecer de
qualquer modo a História da Terra e sem saber que eu conhecesse
essa História. E, depois, tínhamos sob o olhar um fato presente, e
não um acontecimento do passado.
Quœrens – Mas, então, se o passado se pode assim fundir no
presente, se a realidade e a visão se consorciam desse modo, se as
personalidades mortas de há muito podem ser vistas ainda, agindo
no cenário da vida; se as novas construções e as metamorfoses de
uma cidade do tipo de Paris podem desaparecer e deixar ver em seu
lugar a cidade de outrora; se, enfim, o presente pode esvair-se para
ressurreição do passado; em qual certeza podemos doravante con-
fiar? Em que se torna a ciência de observação? Que será das dedu-
ções e das teorias? Sobre o que estão fundados nossos conhecimen-
tos, que nos parecem os mais sólidos? E se aquelas coisas são
Camille Flammarion – Narrações do Infinito 25

verdadeiras, não deveremos de futuro duvidar de tudo, ou crer em


tudo?
Lúmen – Essas considerações, e outras, meu amigo, me absor-
veram e atormentaram; mas, todas elas não puderam destruir a
realidade que eu via. Quando adquiri a certeza de que tínhamos
presente, sob os olhos, o ano 1793, refleti imediatamente que a
própria ciência, longe de combater essa realidade (pois duas verda-
des não se podem opor uma à outra), devia dar-me disso a cabível
explicação. Interroguei a Física e esperei a sua resposta.
Quœrens – Quê! O fato era real?
Lúmen – Não somente real, mas também compreensível e de-
monstrável. Ides receber a explicação astronômica. Examinei,
inicialmente, a posição da Terra na constelação do Altar, da qual
vos falei. Orientando-me em relação à estrela polar e ao zodíaco,
assinalei que as constelações não eram muito diferentes das que
são vistas da Terra e, afora algumas estrelas particulares, sua posi-
ção continuava sensivelmente a mesma. Orion reinava no equador
terrestre; a Grande Ursa, detida em seu curso circular, tendia ainda
ao Norte. Reportando-me às coordenadas dos movimentos aparen-
tes, suspensos daí em diante, constatei então que o ponto onde eu
via o grupo do Sol, da Terra e dos planetas devia marcar a 17ª hora
da ascensão reta, isto é, ao 256° grau, mais ou menos (eu não dis-
punha de aparelho para tomar exata mensuração). Observei, em
segundo lugar, que esse ponto se encontrava rumo do 44° grau de
distância do pólo Sul. Tais pesquisas tinham por fim identificar a
estrela sobre a qual havia eu pairado e deram lugar a que eu con-
cluísse encontrar-me num astro situado rumo do 76° grau de ascen-
são reta, e do 46° de declinação boreal. Sabia, por outro lado, pelas
palavras do ancião, que o astro onde nos achávamos não estava
muito distanciado do nosso Sol, pois este se incluía entre os astros
vizinhos. Com a ajuda de tais elementos, pude facilmente encontrar
nas minhas reminiscências qual a estrela em concordância com as
Camille Flammarion – Narrações do Infinito 26

posições assim determinas. Uma única a isso correspondia; era a


estrela, de primeira grandeza, Alfa do Cocheiro, denominada tam-
bém Capela ou a Cabra. Não havia a menor dúvida a respeito.
Assim, eu estava então certamente num mundo dependente do
sistema dessa estrela. De lá, o brilho do nosso Sol fica reduzido ao
de uma simples estrela e, em conseqüência da viagem que faz, vai
colocar-se em perspectiva diante e na constelação do Altar, situada
precisamente em oposto à do Cocheiro, para o habitante da Terra.
Desde então, procurei recordar qual era a paralaxe dessa estrela.
Lembrava-me de que um dos meus amigos, astrônomo russo, já a
havia calculado, e seu cálculo – confirmado – dava a essa paralaxe
0”,046.3
Expresso em milhões de quilômetros, o número é 681.568.000.
Assim, o astro sobre o qual eu me encontrava distava da Terra 681
trilhões 568 milhões de quilômetros.
Elucidado desse modo o problema, estavam três quartas partes
resolvidas. Ora, eis aqui agora o fato capital, aquele para o qual
chamo a vossa particular atenção, pois nele reside, no momento, a
explicação da mais estranha das realidades. Sabeis que a luz não

3
Ninguém ignora que, quanto mais distante se encontra um objeto,
mais ele parece menor. O que é visto no ângulo de um segundo, está
distante 206.265 vezes do seu tamanho natural, qualquer que seja o
objeto, pois existindo 1.296.000 segundos em uma circunferência, a
relação desta para o diâmetro é de 3,14159, e
1.296.000 / (3,14159 x 2) = 206.265
A estrela Capela não divisando o meio diâmetro da órbita terrestre
senão sob um ângulo 22 vezes menor, sua distância é 22 vezes maior;
ela é, conseqüentemente, de 4.484.000 vezes o raio da órbita terrestre.
As medidas micrométricas futuras poderão modificar as cifras desta
paralaxe, mas em nada alterarão o princípio que serviu de base ao pre-
sente livro.
Camille Flammarion – Narrações do Infinito 27

vence instantaneamente à distância de um lugar a outro, e sim


sucessivamente. Não deixastes de assinalar decerto que, atirando
uma pedra em águas tranqüilas, uma série de encíclicas se sucedem
em redor do ponto onde a pedra caiu. Assim se dá com os sons no
ar, quando passam de um extremo a outro, assim ocorre com a luz
no Espaço: ela se transmite gradualmente por ondulações sucessi-
vas. A luz de uma estrela emprega, pois, certo tempo para chegar à
Terra e essa duração depende naturalmente da distância entre uma
e outra.
O som percorre 340 metros por segundo. Um tiro de canhão é
ouvido pelos artilheiros vizinhos da peça no preciso momento em
que parte; um segundo depois por aqueles que estejam na distância
de 340 metros; 3 segundos pelos que se acham a 1 quilômetro; 12
segundos para os a 4 quilômetros; 2 minutos para os ao decuplo
desta distância; 5 minutos para os que, colocados a 100 quilôme-
tros, ouçam ainda esse trovão dos homens. A luz se transmite com
uma velocidade muito maior, porém não instantânea, conforme
acreditavam os antigos. Ela percorre 300.000 quilômetros por
segundo e faria oito vezes o giro do Globo em um segundo, se
pudesse fazer voltas; emprega 15 segundos e 1/4 para vir da Lua à
Terra; 8 minutos e 13 segundos se partir do Sol; 42 minutos para
nos chegar de Júpiter; 2 horas saindo de Urano e 4 horas para fazer
a viagem desde Netuno. Vemos, pois, os corpos celestes, não tal
qual eles são no momento em que os observamos, mas tal qual
eram no instante da partida do raio luminoso que nos chegou. Se
um vulcão, por exemplo, entrasse em erupção em um desses mun-
dos referidos, não o veríamos projetar suas chamas senão 1 segun-
do e 1/4 depois, se se tratasse da Lua; 42 minutos decorridos, se
estivesse em Júpiter; 2 horas mais tarde, se viessem de Urano; 4
horas após, caso proviessem de Netuno. Se nós nos transportásse-
mos para além do sistema planetário, as distâncias seriam incompa-
ravelmente mais vastas e maior a demora na chegada da luz. As-
Camille Flammarion – Narrações do Infinito 28

sim, o raio luminoso saído da estrela mais próxima da Terra, a Alfa


do Centauro, despende mais de 1.400 dias para nos atingir; o que
procede de Sírio emprega perto de um decênio para atravessar o
abismo que nos separa desse sol.
Estando a estrela Capela separada da Terra pela distância que
mencionei, é fácil calcular, à razão de 300.000 quilômetros por
segundo, quanto tempo necessita a luz para franquear tal intervalo.
O cálculo feito dá sete decênios, 20 meses e 24 dias. O raio lumi-
noso que sai de Capela, para vir à Terra, não nos chega senão
depois de marchar, ininterruptamente, esses 14 lustros, 20 meses e
24 dias.
Igualmente, o raio luminoso que parte da Terra, para atingir a
estrela, ali não chega antes de tal decurso.
Quœrens – Se o raio luminoso que nos vem dessa estrela em-
prega aquele tempo para atingir o nosso mundo, a luz que nos traz
é pois a de quase 864 meses do momento da partida?
Lúmen – Haveis compreendido com exatidão. E aí está preci-
samente o fato que importa bem penetrar.
Quœrens – Assim, em outros termos, o raio luminoso é seme-
lhante a um correio que nos traz as novidades da situação do país
de onde vem e que, se demora 3.744 semanas em chegar, nos traz
as notícias do país relativas ao momento da sua partida, isto é, de
sete decênios anteriores ao instante em que nos chegam.
Lúmen – Adivinhastes o mistério. Vossa comparação demons-
tra haverdes erguido uma ponta do véu. Para falar mais exatamente
ainda, o raio luminoso seria um correio trazendo, não notícias
escritas, mas a fotografia, ou, mais rigorosamente ainda, o próprio
aspecto do país donde saísse. Vemos esse aspecto tal qual era no
momento em que os raios luminosos enviados de cada um dos
pontos do país no-lo fazem conhecido – na ocasião, repito, em que
de lá saíram. Nada é mais simples, mais incontestável. Quando,
Camille Flammarion – Narrações do Infinito 29

pois, examinamos ao telescópio a superfície de um astro, não a


vemos tal qual ela é no instante em que a observamos, e sim tal
qual era ao tempo em que a luz, que ora nos chega, foi emitida pela
dita superfície.
Quœrens – De sorte que se uma estrela cuja luz, suponhamos,
necessita dois lustros para nos chegar, fosse subitamente aniquilada
hoje, nós a estaríamos vendo durante esse decênio, de vez que só
ao termo de tal tempo nos chegaria o seu derradeiro raio luminoso?
Lúmen – Precisamente isso. Em uma palavra, os raios de luz
que as estrelas nos enviam não nos chegam instantaneamente, e
sim empregando um certo tempo em transpor a distância de separa-
ção, não nos mostrando as estrelas tal qual são agora, mas tal qual
eram por ocasião em que partiram esses raios de luz transmissores
do respectivo aspecto. Aí está uma surpreendente transformação do
passado em presente. Para o astro observado, é o que já se passou,
o já desaparecido; para o observador, é o presente, o atual. O pas-
sado do astro é rigorosa e positivamente o presente do observador.
E porque o aspecto dos mundos muda de um ano a outro, e mesmo
da véspera para o dia seguinte, pode-se representar esse aspecto
igual a um escapamento no Espaço avançando no infinito para se
revelar aos olhos dos longínquos contempladores. Cada aspecto é
seguido de um outro, e assim sucessivamente; e, na forma de série
de ondulações, levam ao longe o passado dos mundos, que se torna
presente aos observadores escalonados na sua passagem. Isso que
cremos ver presentemente nos astros já se passou, e o que lá está
ocorrendo nós não vemos ainda.
Identificai-vos, meu amigo, com esta representação de um fato
real, por isso que vos interessa muito apreender tal marcha sucessi-
va da luz, e compreender com exatidão essa verdade incontestável:
o aspecto das coisas, quando trazido pela luz, apresenta essas coi-
sas, não tal qual elas são presentemente, mas tal qual eram anteri-
ormente, segundo o intervalo de tempo necessário para que a res-
Camille Flammarion – Narrações do Infinito 30

pectiva imagem, assim trazida, percorra a distância que delas nos


separa.
Não vemos astro algum qual é no momento, mas qual o era no
instante em que dele saiu o raio luminoso que nos chega. Não é o
estado atual do céu que nos é visível, mas a sua história passada.
Há mesmo tais e tais astros que não existem mais, desde há dez
milênios, e são vistos ainda, por isso que o raio luminoso deles
chegado saiu de lá muito tempo antes da sua destruição. Tal estrela
dupla, da qual buscais com mil cuidados e muitas fadigas determi-
nar a natureza e os movimentos, não existe mais, desde quando
começaram a haver astrônomos sobre a superfície da Terra. Se o
céu visível fosse aniquilado hoje, seria visto ainda amanhã, e ainda
no ano próximo e ainda durante um século, um milênio, cinco, dez
milênios, e por mais, excetuadas apenas as estrelas muito próxi-
mas, que se extinguiriam, sucessivamente, à proporção do decurso
de tempo necessário para que os respectivos raios luminosos, delas
emanados, transpusessem a distância que nos separa: Alfa do Cen-
tauro extinguir-se-ia primeiro, em 48 meses, Sírio em 120, etc. E
fácil agora, meu amigo, aplicar a teoria científica à explicação do
estranho fato do qual fui testemunha. Se da Terra se vê a estrela
Capela, não tal qual é no momento da observação, e sim tal qual foi
864 meses antes, de igual maneira de lá não se vê a Terra senão
com idêntica diferença de aspecto, correspondente a igual período
de tempo. A luz despende o mesmo tempo para percorrer os dois
trajetos.
Quœrens – Mestre, acompanhei atentamente vossas explica-
ções. Não sendo luminosa, brilha a Terra, à distância, igual a uma
estrela?
Lúmen – A Terra espelha no Espaço a luz recebida do Sol.
Quanto maior a longitude, mais o nosso planeta se parece a uma
estrela, concentrada toda a luz do Sol em um disco que se torna
cada vez menor. Assim, vista da Lua, essa superfície parece 14
Camille Flammarion – Narrações do Infinito 31

vezes mais luminosa do que a do plenilúnio, pois é 14 vezes mais


vasta. Observada do planeta Vênus, daria a aparência do mesmo
brilho que tem Júpiter, visto da Terra. Contemplada de Marte,
converte-se em estrela da manhã e do crepúsculo vespertino, ofere-
cendo fases iguais às que Vênus apresenta. Assim, embora não
tenha brilho próprio, brilha de longe, a exemplo da Lua e dos pla-
netas, pela luz que recebe e reflete do Sol no Espaço. Ora, assim
como os acontecimentos de Netuno sofrem um atraso de 4 horas,
vistos da Terra, assim também os da Terra passam pela mesma
demora quando observados da órbita de Netuno. Por isso, de Cape-
la, a Terra é vista com aquele dito retrocesso de sete decênios,
aproximadamente.
Quœrens – Por muito estranhos e raros que sejam esses aspec-
tos para mim, compreendo agora perfeitamente por que, transpor-
tado à estrela Capela, não vistes a Terra no seu aspecto de 1864,
data da vossa morte, mas na situação de Janeiro de 1793, por isso
que a luz gasta 872 meses para atravessar o abismo que separa o
globo terrestre daquela estrela. E compreendo, com a mesma clare-
za, não se tratar de uma visão ou fenômeno de memória, nem de
um ato maravilhoso ou sobrenatural, mas de um fato presente,
positivo, natural e evidente; e que, com efeito, quanto ocorrera na
Terra, havia muito, só então poderia chegar ao conhecimento do
observador colocado àquela longitude. Permiti, porém, intercale
uma questão incidente. Para que, procedendo da Terra, testemu-
nhásseis esses fatos foi indispensável franquear tal distância, do
nosso mundo à Capela, com velocidade maior do que a da própria
luz?
Lúmen – Sobre isso já vos falei, quando disse que eu acredita-
va tê-la transposto com a rapidez do pensamento, e que no dia
mesmo da minha morte eu me encontrei no sistema daquela estre-
la – que tanto apreciei e admirei durante a minha estada na Terra.
Camille Flammarion – Narrações do Infinito 32

A velocidade da gravitação poderá dar uma imagem do que é a do


pensamento, pois, vós o sabeis, é quase instantânea.
Quœrens – Ainda uma objeção. Para que se possa ver, assim,
de tão alto, a superfície do nosso globo, é necessário estar o céu
puro, sem nuvens e sem brumas?
Lúmen – Não, não é indispensável. órgãos especiais podem ver
através de corpos opacos; a luz visível não é a única que existe: há
raios invisíveis percebidos, por exemplo, pela fotografia.
Quœrens – Ah! mestre, verdadeiramente, embora tudo se ex-
plique assim, tal visão não é menos estupenda. Em verdade, é um
fenômeno extraordinário esse de ver – atualmente – o passado
presente e de não o poder ver senão por esse modo pasmoso, e
ainda o de não poder ver os astros tal qual o são no momento em
que são examinados, nem tão-pouco vê-los tal qual foram – simul-
taneamente –, e sim apenas o que foram em épocas diversas, se-
gundo suas distâncias e o tempo que a luz de cada um gastou para
chegar a Terra! Assim, nenhum olhar humano vê o universo sideral
tal qual é!
Lúmen – O espanto legítimo que experimentais na contempla-
ção desta verdade, meu amigo, é apenas o prelúdio, ouso dizê-lo,
do que vai agora aprender. Sem dúvida, parece, à primeira vista,
muito extraordinário que, distanciando-se bastante no Espaço,
encontre alguém maneira de assistir realmente a acontecimentos de
eras desaparecidas e ressubir o rio do passado. Mas não reside
nisso o fato que tenho a comunicar e que ides achar mais imaginá-
rio ainda, se quiserdes ouvir mais extensamente a narrativa da
jornada que se seguiu à minha libertação do cárcere terrestre.
Quœrens – Falai, eu vos peço, estou sequioso de vos escutar.
Camille Flammarion – Narrações do Infinito 33

III
Lúmen – Depois de haver desviado meu olhar das cenas san-
grentas da praça da Revolução, eu me senti atraído para uma habi-
tação de antiquado estilo, fazendo face para a Notre Dame, e situa-
da no terreno ora ocupado pelo átrio. Diante da porta interior (pa-
ravento), havia um grupo de cinco pessoas, que estavam meio
deitadas sobre bancos de madeira, cabeça descoberta exposta ao
Sol. E porque pouco depois se levantassem e se dirigissem a seus
lugares, reconheci em uma a pessoa de meu pai, tão moço qual
jamais eu imaginara, minha mãe, mais jovem ainda, e um de meus
primos, falecido no mesmo ano da morte de meu pai, aproximada-
mente há 8 lustros. É difícil, à primeira vista, reconhecer as pesso-
as, pois, ao invés de serem vistas de face, são olhadas do alto,
como que de um andar superior. Não me surpreendeu muito tal
encontro. Recordei-me então ter ouvido dizer, na minha juventude,
que meus parentes residiam, antes do meu nascimento, na praça
Notre Dame.
Com estupefação maior no sentir do que no poder expressar,
senti minha vista fatigada e cessei de distinguir qualquer coisa, tal
qual nuvens se houvessem estendido sobre Paris. Acreditei, por
minutos, que um turbilhão me arrastava. De resto, já o haveis
decerto compreendido, não possuía mais a noção do tempo.
Quando revi distintamente os objetos, notei um grupo de cri-
anças correndo na praça do Panteão. Esses colegiais me pareciam
saídos da aula, pois conduziam bolsas e livros, e tinham a aparên-
cia de regressar aos lares, saltitando e gesticulando. Dois entre eles
atraíram minha atenção em especial, porque pareciam alterados por
uma rixa qualquer e começavam uma luta particular. Um terceiro
avançou para separá-los, mas recebeu um encontrão de ombros que
o atirou ao chão. No mesmo instante vi uma senhora correr para o
menino. Era minha mãe. Ah! jamais, nunca, em meus setenta e dois
Camille Flammarion – Narrações do Infinito 34

anos de existência terrestre, entre todas as peripécias, todos os


espantos, todos os golpes imprevistos, todas as bizarrias de que foi
tal existência pontilhada, entre todos os acontecimentos, todas as
surpresas, acaso da vida – jamais experimentei comoção igual à
que me sacudiu – quando, nesse menino, me reconheci eu mesmo!
Quœrens – Vós mesmo?
Lúmen – Sim, eu mesmo. Com os meus louros cabelos cachea-
dos, aos cinco de idade, meu lencinho bordado pelas mãos daquela
mãe que correra a me acudir, minha blusinha azul celeste e meus
punhos sempre amarrotados. Estava lá, o mesmo menino do qual
vistes a imagem meio esvaecida na pequena miniatura colocada na
lareira. Minha mãe veio, tomou-me nos braços, ralhando a meus
camaradas, e me conduzia pela mão à nossa casa, então situada na
abertura atual da rua do Ulm. Depois, vi que, tendo atravessado o
interior, nos achamos ambos num jardim onde havia muita gente.
Quœrens – Mestre, perdoai uma reflexão crítica. Confesso que
me parece impossível que alguém possa ver-se a si mesmo! Vós
não vos podeis tornar em duas pessoas. E uma vez que havíeis
atingido a idade setuagenária, a vossa condição infantil fora para o
passado, estava desaparecida, anulada desde muito. Vós não podí-
eis ver uma coisa inexistente. Pelo menos, não posso compreender
que, sendo velho, vos fosse possível ver a própria personalidade
com a idade atual de criança.
Lúmen – Qual razão vos impede de admitir esse ponto no
mesmo grau dos precedentes?
Quœrens – Porque ninguém se pode ver, num duplo, simulta-
neamente, criança e velho!
Lúmen – Vós não raciocinais de modo completo, meu amigo.
Haveis assimilado o fato geral, para admiti-lo, mas não observastes
suficientemente que este último fato cabe de modo completo no
primeiro. Admitis que o aspecto da Terra despende 864 meses para
Camille Flammarion – Narrações do Infinito 35

chegar a mim, não é certo ? que os acontecimentos não me chegam


senão com este intervalo de tempo para sua atualidade? em uma
palavra, que eu vejo o mundo tal qual ele era naquela época. Admi-
tireis paralelamente que, vendo as ruas de tal tempo, eu veja, na
mesma ocasião, os meninos que corriam então nas ditas ruas. Não
está bem esclarecido?
Quœrens – Inteiramente.
Lúmen – Muito bem! Então, se eu vejo o grupo de crianças e
eu fazia parte dessa infância, porque pretendeis não me veja tão
bem quanto as outras ?
Quœrens – Mas vós não estais mais nesse grupo!
Lúmen – Ainda uma vez, esse grupo não existe mais, atual-
mente; mas eu o vejo tal qual existia à época em que partiu o raio
luminoso que hoje me chegou. E desde que diviso os 15 ou 18
meninos componentes do todo, não há razão para que o menino que
era eu desaparecesse, pelo fato de ser eu mesmo quem observa.
Outros observadores vê-lo-iam em companhia desses camaradas.
Porque quereis houvesse uma exceção quando eu próprio olho? Eu
os vejo a todos, e a mim com eles.
Quœrens – Eu não havia apreendido inteiramente o caso. É a
evidência, com efeito. Abrangendo um grupo de crianças do qual
fizestes parte, não poderíeis deixar de ver a vós próprio, desde que
víeis a todos os outros.
Lúmen – Ora, compreendereis em que estranha estupefação
devia precipitar-me uma tal visão? Esse menino era bem eu, em
carne e osso segundo a expressão vulgar e significativa. Era eu no
início do meu segundo lustro de idade. Eu me via, tão bem quanto
os companheiros do jardim que brincavam comigo. Não era mira-
gem, visão, espectro, reminiscência, ilusão: era realidade pura,
positivamente a minha personalidade, meu pensamento, meu corpo.
Estava lá, sob meus olhos. Se meus outros sentidos tivessem tido a
Camille Flammarion – Narrações do Infinito 36

perfeição da minha vista, parece-me que eu teria podido tocar-me e


ouvir-me a mim próprio. Eu saltava naquele jardim e corria em
torno do lago rodeado de balaustrada. Algum tempo depois, meu
avô me colocou sobre os joelhos e me fez ler em um grande livro.
Mas, basta! Renuncio descrever essas impressões. Deixo-vos o
cuidado de as experimentar em vós mesmo, se estais bem identifi-
cado com a realidade física desse fato, e me limito a declarar que
jamais semelhante surpresa caiu sobre minha alma.
Uma reflexão principalmente me atarantou. Eu me dizia: esse
menino sou eu, e bem vivo. Ele cresceu e deve viver mais onze
vezes a idade que tem. Sou eu, real e incontestavelmente, eu mes-
mo.
E, de outro lado, eu que estou aqui com os 72 de vida terrestre,
eu que penso e vejo estas coisas, sou tanto eu quanto sou essa
criança. Eis-me, pois, em dois: lá embaixo, na Terra; aqui, em
pleno Espaço. Duas pessoas completas, e não menos distintas uma
da outra. Observadores, colocados onde estou, poderiam ver esse
menino no jardim tal qual o vejo e também me ver igualmente
aqui: a mim, em dois. É incontestável. Minha alma está nessa
criança, e igualmente aqui; é a mesma, a alma única, animando, no
entanto, esses dois seres. Que estranha realidade! E não posso dizer
que me engano, que estou em ilusão, que um erro óptico me domi-
na. Ante a Natureza e ante a Ciência, eu me vejo, ora menino e ora
velho, lá e aqui... lá, descuidoso e alegre; aqui, pensativo e emo-
cionado.
Quœrens – É estranho realmente.
Lúmen – E positivo. Buscai, na criação inteira, e encontrareis
um paradoxo mais notável do que esse?
Ora, que é o tempo? Suponde que um octogenário tem diante
do olhar dois retratos representando, o primeiro, seu pai quando
infante, saindo do primeiro lustro de idade, por exemplo, e o se-
Camille Flammarion – Narrações do Infinito 37

gundo, ele próprio, na idade atual de oitenta. Onde está a criança,


onde está o velho? Sem dúvida, o genitor está mais idoso do que
ele, mas esse tempo já passou, pois o genitor já faleceu. Suas duas
existências foram sucessivas; é tudo que poderíamos dizer. Ante
esses dois retratos, o pai é a criança, a criança um avô. Visto de
mais longe, desaparecido o tempo, o passado dá lugar a um presen-
te perpétuo. O tempo desaparece também em astronomia.
Eu vos dizia há pouco que ocasiona bastante fadiga mensurar
as posições precisas de pares de estrelas duplas que não existem
mais. A luz que recebeis hoje partiu há séculos e séculos, e desde
essa época o par foi destruído por uma conflagração cósmica que
vereis dentro de um milênio. Mas, estudais, apesar disso, o inexis-
tente, e, muitas vezes, com verdadeira paixão. Não vos importa.
Isso, aliás, é um prazer matemático. Não é inútil refletir a respeito
dessas verdades: elas nos elevam acima das contingências pueris da
vida.
Que acrescentarei agora à minha narrativa? Eu me segui, as-
sim, crescendo na vasta cidade parisiense. Eu me vi, em 1804,
ingressando no colégio e fazendo minhas estréias no momento em
que o Primeiro Cônsul se coroava com a dignidade imperial. Co-
nheci essa fronte dominadora e pensativa de Napoleão num dia em
que passou em revista o Carrocel.
Não me havendo jamais encontrado em sua presença, fiquei
satisfeito em vê-lo atravessar meu campo atual de observação. Em
1810 eu me revi na formatura da Escola Politécnica e em palestra
no pátio com o melhor dos meus camaradas, Francisco Arago. Esse
jovem já pertencia ao Instituto e substituía Monge na Escola, devi-
do ao jesuitismo de Binet, do qual o Imperador se queixava. En-
contrava-me desse modo na plenitude dos brilhantes tempos da
minha adolescência e dos meus projetos de viagem de exploração
científica, em companhia de Arago e Humboldt, viagens que este
se decidiu empreender sozinho. Depois, eu me reconheci, mais
Camille Flammarion – Narrações do Infinito 38

tarde, sob os Cem-Dias, atravessando rapidamente o pequeno


bosque do velho Luxemburgo, a rua do Este e a aléia do jardim da
rua de S. Jaques, e vendo acorrer minha bem-amada para me rece-
ber sob os lilases em flor. Doces horas de solitude a dois, de confi-
dências de coração, silêncios da alma, transportes do amor, efusões
da tarde – vós vos oferecestes à minha vista emocionada, não mais
no grau de saudades longínquas, porém na vossa atualidade absolu-
ta!
Assisti de novo ao combate dos Aliados na colina de Mont-
marte, à sua descida na Capital, à queda da estátua da praça Ven-
dôme, arrastada nas ruas, por entre gritos de alegria, ao campo dos
ingleses e dos Prussianos nos Campos Elíseos, à devastação do
Louvre, à viagem de Gand, à reentrada de Luís XVIII! A bandeira
da ilha de Elba flutua sob meus olhares e, mais tarde, porque bus-
casse no Atlântico a ilha solitária onde a águia fora acorrentada,
asas quebradas, a rotação do Globo aproximou de minha vista
Santa-Helena, onde identifiquei o Imperador, imaginando junto de
um sicômoro.
Assim passou cada ano presente ao meu olhar. Acompanhando
sempre a minha própria individualidade, no meu casamento, nas
minhas iniciativas, minha vida de relação, minhas viagens, estudos,
etc., assisti ao desenvolvimento da história contemporânea. À
restauração de Luís XVIII sucede o governo efêmero de Carlos X.
As jornadas de Julho de 1830 mostraram as suas barricadas e, não
longe do trono do Duque de Orleães, vi aparecer a coluna da Basti-
lha. Rapidamente passaram esses 216 meses. Apercebi-me no
Luxemburgo, nessa avenida magnífica, que fora aberta por Napole-
ão e substituíra velhos mosteiros. Revi Arago no Observatório e a
turba que se apertava às Portas do novel anfiteatro. Reconheci a
Sorbona de Gousin e de Guizot. Depois, meu coração se constrin-
giu, ao ver passar o enterro de minha mãe, senhora austera e talvez
um pouco severa demais em seus julgamentos, porém que eu sem-
Camille Flammarion – Narrações do Infinito 39

pre muito amei, conforme sabeis. A singular pequena revolução de


1848 surpreendeu-me não menos vivamente do que quando me
pareciam ser os próprios acontecimentos. Reconheci, na praça da
Bolsa, Lamoricière, falecido no ano passado, e, nos Campos Elí-
seos, Cavaignac, também já desaparecido, há um lustro mais ou
menos. O 2 de Dezembro veio encontrar-me observador na minha
estação celeste, tal qual eu o havia sido na minha torre solitária, e,
sucessivamente, se escoaram assim acontecimentos que me haviam
emocionado, e outros de mim desconhecidos.
Quœrens – E esses acontecimentos passavam com rapidez ante
vosso olhar?
Lúmen – Não saberia apreciar a medida do tempo; mas todo
esse panorama retrospectivo se sucedeu de certo em menos de um
dia... ou horas, talvez.
Quœrens – Nesse caso, não compreendo melhor! Perdoe a um
velho amigo esta interrupção um tanto viva; mas, segundo havia
imaginado, pareciam-me ser os próprios acontecimentos que se
apresentavam aos vossos olhos, e não um simulacro unicamente,
em virtude do tempo necessário ao trajeto da luz, esses sucessos
estavam atrasados quanto ao momento da sua ocorrência. Se, pois,
864 meses terrestres passaram sob vosso olhar, eles deviam ter
gastado esse período de tempo para vos aparecerem, e não algumas
horas. Se o ano 1793 vos surgiu em 1864, o ano de 1864, em retro-
cesso, não deveria, conseqüentemente, aparecer antes de 1936.
Lúmen – Vossa objeção, nova, tem fundamento e demonstra
que haveis perfeitamente compreendido a teoria desse fato. Sei que
estais satisfeito por havê-la formulado. Também vou explicar
porque não me foi necessário aguardar 864 novos meses para rever
minha vida, e por que, sob o impulso de uma força inconsciente, eu
a pude rever em menos de um dia. Continuando a seguir o desenro-
lar da minha existência, cheguei aos últimos tempos, notáveis pela
Camille Flammarion – Narrações do Infinito 40

transformação radical feita em Paris. Vi meus velhos e queridos


amigos, vós inclusive, minha filha e seus lindos filhinhos, minha
família e meu círculo de conhecidos; e, enfim, chega o momento
em que, pela percepção dos raios ultravioleta, atravessando os
mundos, eu me vi, deitado no meu leito de morte. Penetrei na
câmara mortuária e assisti à derradeira cena, o que equivale dizer
que eu regressara à Terra.
Atraída pela contemplação que a empolgava, minha alma havia
depressa esquecido a montanha dos anciães e Capela. Tal qual
acontece por vezes em sonho, abalava-se com o que via. Disso não
me apercebi imediatamente, tanto a estranha visão absorvera todas
as minhas faculdades.
Não vos posso explicar qual o poder que permite às almas
transportarem-se tão rapidamente de um lugar a outro; mas, a
verdade é que eu voltara à Terra, em menos de um dia, e que pene-
trei em meu aposento de dormir, no preciso momento de ser amor-
talhado.
Por isso que em tal viagem de regresso caminhava ao encontro
de raios luminosos, eu encurtava sem cessar a distância que me
separava da Terra; a luz tinha cada vez menos percurso a vencer e
restringia assim a sucessão dos acontecimentos. No meio do cami-
nho, os raios luminosos, chegando-me apenas com a metade do
atraso (432 meses), não mais me mostravam a Terra dos 864 ante-
riores, mas a daquela metade de tempo. Nas três quartas partes do
percurso, os aspectos eram os de 216 meses de retardo. Na metade
do último quarto do tempo chegavam com a diferença de 108
meses decorridos, e assim por diante, de modo que a minha exis-
tência se condensou em menos de um dia, em conseqüência da
volta rápida de minha alma vindo ao encontro dos raios luminosos.
Quœrens – Essa combinação de marchas não é menos estranho
fenômeno!
Camille Flammarion – Narrações do Infinito 41

Lúmen – Não vos acode ao espírito outras objeções, ouvindo-


me?
Quœrens – Confesso que essa combinação foi a última, ou pelo
menos me intrigou de modo a excluir qualquer outra no momento.
Lúmen – Eu vos farei notar a existência de umas outras, astro-
nômicas, que revelarei imediatamente para que não reste dúvida.
Tal combinação depende do movimento da Terra. Não somente o
movimento diurno do Globo deveria impedir-me de bem apanhar a
sucessão dos fatos, mas também esse movimento, sendo desmesu-
radamente acelerado pela rapidez do meu regresso rumo à Terra, e
864 meses escoando-se em menos de um dia – refleti ser surpreen-
dente que eu de tal não me apercebesse. Mas, tendo visto apenas
um número relativamente restrito de paisagens, de panoramas e de
fatos, é provável que, retornado ao nosso planeta, eu me mantives-
se, por mui rápidos instantes isolados, sobre pontos que sucessiva-
mente me interessaram. De qualquer modo, devia render-me à
evidência, e constatar que, sem fadiga, havia assistido à sucessão
célere dos sucessos do século e da minha própria existência.
Quœrens – Essa dificuldade não me escapara, e pensei que ha-
veis navegado no Espaço à maneira de um balão arrastado pela
rotação do globo. Certo, a inconcebível rapidez com que deveis ter
sido levado é das de causar vertigens; mas não me limito, todavia,
a essa hipótese, meditando sobre vossa afirmativa.
Assinalando que a vossa visão, e assim a vossa insciente apro-
ximação da Terra, eram devidas à intensidade de atenção sobre o
ponto do globo onde vos víeis de novo, não é inadmissível que vos
mantivésseis constantemente preocupado com o dito ponto.
Lúmen – A esse respeito, não vos afirmo coisa alguma, pois de
tal permaneci inconsciente; mas, sobre isso, penso diferente. Não
revi todos os acontecimentos da minha existência, mas apenas um
pequeno número dos principais, que, sucessivamente escalonados,
Camille Flammarion – Narrações do Infinito 42

me mostraram o conjunto da minha vida. Apresentaram-se quase


todos sobre o mesmo raio visual. Tudo quanto sei é que a atenção
indizível, que me prendia soberana e imperiosamente à Terra, agia
na forma de uma corrente que me religasse a ela, ou, se preferis a
expressão, com o poder dessa força ainda misteriosa da atração dos
astros, em virtude da qual os pequenos tombariam diretamente
sobre os mais importantes, se não fossem retidos nas suas órbitas
pela força centrífuga.
Quœrens – Cogitando desse efeito da concentração do pensa-
mento relativamente a um ponto único, e da atração real que ele
sofre logo, com relação a esse ponto, creio assinalar que aí está o
eixo principal do mecanismo dos sonhos.
Lúmen – Dissestes a verdade, meu amigo, e vos posso afirmar,
eu, que, durante largo tempo, fiz dos sonhos o assunto especial de
minhas observações e estudos. Quando a alma, liberta das aten-
ções, preocupações e tendências corporais, vê em sonho um objeto
que a encanta e para o qual se sente atraída, tudo desaparece em
torno de tal objeto – que permanece só e se constitui o centro de
um mundo de criações; ela o possui inteiramente e sem reservas,
contempla-o, dele se apossa e o faz seu, o universo inteiro se apaga
da reminiscência, para deixar um domínio absoluto ao objeto da
contemplação da alma, e, tal qual me aconteceu em meu regresso à
Terra, não vê mais do que o dito objeto, acompanhado das idéias e
das imagens que engendra e faz sucessivamente surgir.
Quœrens – Vossa rápida viagem a Capela, e assim vosso re-
gresso não menos veloz à Terra, tinham, pois, por fundamento
causal, essa lei psicológica, e agistes mais livremente ainda do que
em sonho, porque vossa alma não mais estava peada pelas engre-
nagens do organismo. Recordo-me de que, em nossas conversações
passadas, vós, com efeito, dissertastes muitas vezes a respeito da
força da vontade. Assim, pudestes retornar ao leito de morte antes
que vosso envoltório mortal fosse sepultado.
Camille Flammarion – Narrações do Infinito 43

Lúmen – Regressei, e bendisse as saudades sinceras da minha


família, acalmei as dores da nossa amizade ferida, esforcei-me por
inspirar a meus filhos a certeza de que eu não era mais aquele
envelope mortal, e que eu habitava a esfera dos Espíritos, o Espaço
celeste, infinito e inexplorado.
Assisti ao meu próprio enterro e assinalei aqueles que se dizi-
am meus amigos e que, por uma ocupação de medíocre importân-
cia, não se deram ao incômodo de levar meus despojos terreais à
derradeira morada. Ouvi as variadas conversações que versavam
sobre o meu cortejo funerário. Pareceu-me que muitos se entreti-
nham principalmente com os seus interesses personalíssimos; mas
verifiquei a presença de irmãos de pensamento no convívio dos
quais sempre me encontrava e, embora nesta região de paz não
tenhamos avidez de elogios, eu me senti feliz em constatar que
uma suave lembrança da minha passagem pela Terra lhes havia
ficado na memória.
Quando a pedra do túmulo caiu e separou a terra dos mortos da
Terra dos vivos, dei um derradeiro adeus ao meu pobre corpo
adormecido e, porque o Sol já descesse para o seu leito de púrpuras
franjado de ouro, permaneci na atmosfera até à noite próxima,
mergulhado na admiração dos belos espetáculos que se desdobra-
vam nas regiões aéreas. A aurora boreal estendia por cima do pólo
o seu turbante prateado, estrelas errantes choviam de Cassíope e a
Lua-cheia, vagarosa, se elevava no Oriente, qual um novo mundo
surgindo das ondas. Vi Capela cintilante, que me fixava com o seu
luminoso olhar tão vivo, e distingui as coroas que a circundavam,
príncipes celestes de uma divindade. Então, esqueci de novo a
Terra, a Lua, o sistema planetário, o Sol, os cometas, para me
deixar prender sem reservas à intensa atração da refulgente estrela,
e fui transportado no seu rumo pela ação do meu desejo, com uma
rapidez maior do que a das setas elétricas. Depois de algum tempo,
cuja duração não me foi possível verificar, cheguei ao mesmo anel
Camille Flammarion – Narrações do Infinito 44

e à montanha onde estivera na antevéspera, e vi os anciães ocupa-


dos no seguimento da história da Terra, no período retardado de
860 meses. Estavam vendo os acontecimentos da cidade de Lião,
do dia 23 de Janeiro de 1793
Confessar-vos-ei qual a causa misteriosa da minha atração para
com a estrela Capela? Maravilha! Existem na Criação ligações
invisíveis que não se rompem, qual acontece com os laços mortais,
correspondências íntimas que subsistem entre as almas, apesar da
separação pelas distâncias. Na noite desse segundo dia, porque a
lua-esmeralda se incrustasse no terceiro anel de ouro (tal é a medi-
da sideral do tempo), surpreendi-me percorrendo solitária avenida
envolta de flores e perfumes. Flutuei nela alguns instantes, quando
vi aproximar-se de mim a minha tão amada e cara Eivlys. Estava
linda qual outrora; as primaveras desaparecidas resplenderam ante
meus olhos. Não me deterei a descrever a alegria de tal reencontro,
pois não é cabível aqui, e talvez um dia nos entretenhamos em falar
a respeito das afeições ultraterrestres que sucedem às da vida car-
nal. Desejo apenas salientar, a propósito do reencontro em ligação
com esta tese, que bem depressa procuramos juntos, no Céu, a
Terra – a nossa pátria adotiva, onde desfrutáramos dias de paz e
ventura. Estimamos, com efeito, dirigir nossos olhares rumo desse
ponto luminoso onde a nossa condição atual nos permitia distinguir
um mundo; sentíamos prazer em consorciar o passado da nossa
saudade ao presente que nos chegava nas asas da luz. E no êxtase
em que nos mergulhava essa singularidade tão nova para ambos,
buscávamos ardentemente ressurgir ante a vista os acontecimentos
da nossa mocidade. Assim, revimos, então, os amados tempos do
nosso primeiro amor, o pavilhão do Convento, o jardim florido, os
passeios dos arredores de Paris, tão faceiros e formosos, e nossas
viagens, sozinhos os dois, através dos campos. Para reconstruir
esses períodos, bastava avançarmos, juntos, no Espaço, em direção
da Terra, até às regiões em que tais aspectos, trazidos pela luz,
Camille Flammarion – Narrações do Infinito 45

estavam gravados. Aí tendes revelada, meu amigo, a estranha


observação que vos havia prometido. Eis a aurora que se avizinha,
e já a estrela de Lúcifer empalidece sob a Alba Rósea. Volto às
constelações...
Quœrens – Ainda uma palavra, ó Lúmen, antes de findar esta
palestra. De vez que os aspectos terrestres só se transmitem suces-
sivamente no Espaço, deve haver, pois, um presente perpétuo para
as vistas escalonadas nesse Espaço, até um limite fronteirado ape-
nas pela extensão da visão espiritual.
Lúmen – Sim, meu amigo. Coloquemos, por exemplo, um pri-
meiro observador na distância da Lua: ele se aperceberá dos fatos
terrestres um segundo e 1/4 depois de ocorridos. Situemos um
outro em distância quádrupla; esses acontecimentos sofrerão uma
demora de 5 segundos. Um terceiro os verá com a diferença de 10
segundos. A uma distância dupla ainda da precedente, o quarto
observador os distinguirá com o intervalo de 20 segundos. E assim
sucessivamente. À distância do Sol, já existe uma diferença de 8
minutos e 13 segundos. Com relação a certos planetas, a demora
será de muitas horas, conforme assinalamos já. Mais longe, são
necessários dias inteiros. Para além ainda, meses, mais de um ano.
Das estrelas mais próximas, só se percebem os acontecimentos
terráqueos um, dois lustros depois de realizados. Há estrelas bas-
tante longínquas, as quais a luz atinge com o retardo de alguns
séculos, e mesmo em dezenas de séculos. Nebulosas existem onde
a luz chega somente depois de uma viagem de milhões de ciclos
anuais.
Quœrens – De sorte que, para ser testemunha de ocorrências
históricas ou geológicas dos tempos passados, bastaria que esses
observadores se afastassem suficientemente. Não se poderia rever
verdadeiramente o dilúvio, o paraíso terrestre, Adão e...
Camille Flammarion – Narrações do Infinito 46

Lúmen – Já vos disse, meu velho amigo, que a chegada do Sol


ao hemisfério põe em fuga os Espíritos. Uma segunda palestra
permitirá aprofundar melhor um assunto do qual só vos pude apre-
sentar hoje o esquema geral, e que é fértil em novos horizontes. As
estrelas me chamam, e já desapareceram. Adeus, Quœrens, adeus.
Camille Flammarion – Narrações do Infinito 47

Segunda narrativa 4

Refluum temporis

I
Quœrens – As revelações interrompidas pela aurora, ó Lúmen,
deixaram, desde então, minha alma ávida de penetrar mais fundo o
singular mistério. De igual modo que a criança, a quem se mostrou
um fruto saboroso, deseja nele meter gulosamente os dentes, e
quando prova mais deseja, assim minha curiosidade procura novos
júbilos nos paradoxos da Natureza. É acaso temerária indiscrição
submeter-vos algumas questões complementares que meus amigos
me comunicaram, desde o dia em que os fiz participantes da nossa
conversação? E posso pedir continueis a narrativa das vossas im-
pressões de além-Terra?
Lúmen – Não posso, meu amigo, consentir em tal curiosidade.
Embora perfeitamente disposto que seja vosso Espírito para bem
receber minhas palavras, estou persuadido, não obstante, de que as
particularidades do meu assunto não vos tocaram harmonicamente,
não tiveram todas aos vossos olhos a evidência da realidade. Acu-
sou-se de mística a minha narrativa. Não se compreendeu que aqui
não existe romance, nem fantasia, e sim uma verdade científica, um
fato físico, demonstrável e demonstrado, indiscutível, e que é tão
positivo quanto a queda de um aerólito ou a translação de um
projétil de canhão. O motivo que vos impediu, a vós outros, de bem
apreender a realidade do fato, reside em que o caso se desenrola
fora da Terra, numa região estranha à esfera de vossas impressões,

4
Escrita em 1867.
Camille Flammarion – Narrações do Infinito 48

e não acessível aos sentidos terrestres. É natural que não compre-


endais (perdoai minha franqueza, mas no mundo espiritual predo-
mina a franqueza: os pensamentos são mesmo visíveis). Só com-
preendeis o que pertence ao mundo das vossas impressões. E por-
que estais propensos a ter por absolutas as vossas idéias a respeito
do Tempo e do Espaço, que são relativas, tendes o entendimento
fechado às verdades que residem fora da vossa esfera, e que não se
acham em correspondência com as vossas faculdades orgânicas
terrestres. Assim, meu amigo, eu vos prestarei meritório serviço,
prosseguindo a narrativa das minhas observações extraterráqueas.
Quœrens – Não é por espírito de curiosidade, crêde-me since-
ramente, ó Lúmen, que me permito evocar-vos do alto do mundo
invisível, onde as almas superiores devem fruir inenarráveis júbi-
los. Compreendi, melhor do que a vossa acusação o admite, a
grandeza do problema, e é sob a inspiração de uma avidez estudio-
sa que procuro aspectos mais novos ainda do que os precedentes
(se assim me posso expressar), ou melhor, mais grandiosos e mais
difíceis de compreender ainda. À força de refletir, cheguei a crer
que quanto sabemos é nada, e o que ignoramos é tudo. Estou, pois,
disposto a tudo acolher e, por isso, vos peço: deixai-me partilhar
das vossas impressões.
Lúmen – Em verdade, meu amigo, eu vo-lo asseguro, ou não
estais muito disposto a entendê-las, ou estais. No primeiro caso,
não as compreendereis; na segunda hipótese, sereis mui crédulo e
não lhes apreciareis o valor. Por isso, volto...
Quœrens – Ó meu companheiro querido dos dias terrestres!...
Lúmen – Além de tudo, os fatos que eu teria de narrar são mui-
to mais extraordinários do que os precedentes.
Quœrens – Eu sou a semelhança de Tântalo no centro do seu
lago, na mesma condição dos Espíritos do vigésimo-quarto canto
Camille Flammarion – Narrações do Infinito 49

do Purgatório, igual aos braços estendidos para os pomos odorantes


das Hespérides, na ânsia do desejo de Eva...
Lúmen – Algum tempo depois da minha partida da Terra, os
olhos de minha alma se voltaram melancolicamente para esta pá-
tria, quando atento exame sobre a interseção do 45º grau de latitude
boreal e do 35° de longitude mostrou-me um cinzento triângulo de
terra firme, acima do mar Negro, ao bordo do qual, ao oeste, um
triste grupo de pobres irmãos meus terrestres se entrematavam
encarniçadamente. Entreguei-me à meditação sobre a barbárie
dessa instituição, pseudogloriosa – a Guerra, que ainda pesa sobre
vós outros –, e reconheci que nesse recanto da Crimeia sucumbiam
oitocentos mil homens, ignorando a causa do seu mútuo massacre.
Nuvens passaram sobre a Europa. Estava agora, não em Capela,
mas no Espaço, entre essa estrela e a Terra, na metade da distância
de Vega, e, saído da Terra desde algum tempo, eu me dirigia a um
montão de estrelas que se distingue, da vossa pátria, à esquerda do
astro precedente. Meu pensamento, no entanto, de tempos a tempos
retornava para a Terra. Um pouco depois da observação de que
falei, meu olhar, incidindo sobre Paris, foi surpreendido ao ver a
Capital presa de uma insurreição popular. Examinando com aten-
ção acurada, divisei barricadas nos bulevares, próximo da Prefeitu-
ra Municipal, nas ruas extensas, e cidadãos alvejando-se mutua-
mente a golpes de fuzil. A primeira idéia que me ocorreu foi a de
que uma nova revolução se processava aos meus olhos e que Napo-
leão III fora derrubado do trono imperial; mas, por uma correspon-
dência secreta das almas, minhas vistas foram atraídas para certa
barricada do arrabalde de Santo Antônio, na qual estava estendido
o arcebispo Denis-Auguste Affre, que eu conhecera ligeiramente.
Seus olhos extintos miravam, sem ver, o céu onde me encontrava;
sua mão segurava um galho verde. Estavam, pois, ante mim os dias
de 1848, e em particular o 25 de Junho. Alguns instantes (ou horas,
talvez) se escoaram, durante os quais minha imaginação e meu
Camille Flammarion – Narrações do Infinito 50

raciocínio buscaram, pela ordem natural, a explicação de tal fato


particular: ver 1848 depois de 1854, quando meu olhar, de novo
atraído para a Terra, assinalou uma distribuição de bandeiras trico-
lores, em extensa praça da cidade de Lião. Procurando distinguir a
personagem oficial que fazia tal distribuição, consegui identificar
os uniformes e recordei-me de que, depois da ascensão de Luís
Filipe, o jovem Duque de Orleães havia sido enviado a aplacar as
agitações da capital da indústria francesa. Conclui-se disso que,
após 1854 e 1848, estava diante do meu olhar um acontecimento
ocorrido em 1831. Pouco mais tarde, minha visão incidiu sobre
Paris em dia de festa. Gordo rei, de abdômen proeminente, face
rubicunda, era conduzido em caleche suntuosa e atravessava nesse
momento a Ponte-Nova. O tempo era magnífico. Jovens vestidas
de branco estavam dispostas, qual corbelha de alvos lilases, sobre o
terrapleno da ponte. Estranhos animais, coloridos de nuanças cla-
ras, corriam ao longo de Paris. Era evidentemente a reentrada dos
Bourbons em França. Eu não teria compreendido esta última parti-
cularidade, se não houvesse recordado que, em tal ocasião, tinham
sido lançados para os ares artísticos balões em forma de animais.
Vistos do alto do céu, pareciam correr desajeitadamente sobre os
telhados das casas. Rever um acontecimento transcorrido eu com-
preendia, explicando-o pelas leis da luz; mas, rever esses eventos
em sentido contrário à sua ordem real, eis o que me parecia fantás-
tico, e mergulhava o meu entendimento numa estupefação crescen-
te. No entanto, estando os fatos diante dos meus olhos, não os
podia negar, e excogitava, por isso, qual a hipótese que poderia dar
conta de semelhante singularidade.
A primeira hipótese foi esta: E sem dúvida alguma a Terra que
estou vendo, e por um secreto destino, somente de Deus conhecido,
a história de França repassa proximamente pelas mesmas fases já
atravessadas; a nação avançou até um certo maximum, que acaba
de fulgir às vistas maravilhadas dos povos, e eis que retorna rumo
Camille Flammarion – Narrações do Infinito 51

das suas origens, por uma oscilação que pode existir, à semelhança
das variações da agulha imanada das bússolas, a exemplo dos
movimentos dos astros. As personagens que me pareceram ser no
momento o Duque de Orleães e Luís XVIII, são talvez outros
príncipes que estão repetindo exatamente quanto os primeiros
fizeram.
Tal hipótese, todavia, me pareceu pouco verossímil, e me deti-
ve em outra mais racional.
Dada a multidão de estrelas e de planetas que gravitam em tor-
no de cada uma delas, perguntava-me eu, qual a probabilidade para
que se encontre no Espaço um mundo exatamente igual à Terra?
O cálculo das probabilidades responde a esta questão. Quanto
maior o número dos mundos, maior será a probabilidade de que as
forças da Natureza hajam dado origem a uma organização seme-
lhante à terrestre. Ora, o número exato dos mundos ultrapassa toda
a numeração humana escrita ou passível de ser escrita. Se compre-
endemos o Infinito, ser-nos-á talvez permitido dizer que esse nú-
mero é infinito. Daí concluir eu que há mui alta probabilidade em
favor da existência de muitos mundos exatamente semelhantes à
Terra, à superfície dos quais se realiza a mesma história, a mesma
sucessão de acontecimentos, e que se acham habitados pelas mes-
mas espécies vegetais e animais, a mesma Humanidade, os mesmos
homens, as mesmas famílias, identicamente.
Perguntei-me, em segundo lugar, se tal mundo, sendo análogo
à Terra, não lhe poderia ser simétrico. Aqui ingressava eu na geo-
metria e na teoria metafísica das imagens. Cheguei a admitir possí-
vel que o mundo em questão fosse semelhante à Terra, mas todavia
inverso. Quando vos examinais diante de um espelho, vereis que o
anel-aliança (de casamento), posto na mão direita, passou para o
dedo anular da mão esquerda, o que modifica o seu símbolo; que,
se piscais o olho direito, o sósia piscará o esquerdo; que, se esten-
Camille Flammarion – Narrações do Infinito 52

deis o braço direito, vossa imagem esticará o braço esquerdo. É


impossível, pois, que, na infinidade de astros, exista um mundo
exatamente inverso do orbe terráqueo? Seguramente, em uma
infinidade de mundos, o impossível, ao contrário, seria não existir
tal mundo, e mais facilmente milhares em vez de um. A Natureza
deverá ter-se não só repetido, reproduzido, mas ainda desempenha-
do, sob todas as formas, o papel da Criação. Pensei, pois, que o
mundo onde via essas coisas não era a Terra, e sim um globo seme-
lhante, cuja história era precisamente o inverso da vossa.
Quœrens – Tive também a idéia de que podia ser assim. Mas,
não vos foi fácil ter a certeza do acontecimento e constatar se
tratava da Terra, ou se outro astro se achava sob vossa vista, exa-
minando a respectiva posição astronômica?
Lúmen – Foi o que fiz sem tardança, e tal exame me confirmou
a minha idéia. O astro onde acabava de aperceber quatro fatos
análogos a outros tantos acontecimentos terrestres, porém inversos,
não me pareceu estar na mesma posição primitiva. A pequena
constelação do Altar não existia mais e desse lado onde vos recor-
dais me aparecera a Terra no meu primeiro episódio havia um
polígono irregular de estrelas desconhecidas. Fiquei, assim, na
persuasão de que não era a nossa Terra sob o meu olhar; a dúvida
não me foi mais possível e persuadi-me de haver por terreno de
observação um mundo muito mais curioso, de vez que não era a
Terra, e sua história parecia representar, em ordem inversa, a histó-
ria do nosso mundo.
Alguns acontecimentos, é verdade, não me pareceram ter o
respectivo correspondente na Terra; mas, em geral, a coincidência
foi muito notável, tanto mais quanto meu desapreço aos falsos
instituidores da guerra me havia feito esperar que tal burlesca e
desalmada loucura não existisse em outros mundos e que, ao con-
trário, a mor parte dos sucessos por mim testemunhados eram ainda
combates ou preparativos.
Camille Flammarion – Narrações do Infinito 53

Depois de uma batalha que me pareceu muito semelhante à de


Waterloo, vi a das Pirâmides. Um sósia de Napoleão imperador se
tornara Primeiro Cônsul e vi a Revolução suceder ao Consulado.
Algum tempo decorrido, notei a praça do castelo de Versalhes
repleta de carruagens de luto e, em um atalho aberto de Ville-
d'Avray, reconheci o lento caminhar do botânico João Jaques
Rousseau, o qual, sem dúvida, nesse momento filosofava sobre a
morte de Luís XV. O acontecimento que mais feriu minha atenção
foi, em seguida, uma das festas de gala do começo do reino de Luís
XV, dignas sucessoras das da Regência, nas quais o Erário da
França escorria em pérolas de água por entre os dedos de três ou
quatro cortesãs adoradas. Vi Voltaire, em gorro de algodão, em seu
parque de Ferney, e mais tarde Bossuet passeando no pequeno
terraço do seu palácio episcopal de Meaux, não distante da colina
cortada em nossos dias pela via-férrea, mas não distingui o menor
traço desta indústria. Nessa mesma sucessão de acontecimentos,
via os caminhos repletos de carros-diligência, e sobre os mares
vastos navios de vela. O vapor havia desaparecido, com todas as
usinas que move em nossos dias. O telégrafo estava aniquilado e
bem assim todas as aplicações da eletricidade. Os balões, que se
tinham mostrado de tempos a tempos em meu campo de observa-
ção se haviam perdido e o último que eu vira fora o globo informe
aerizado em Annonay, pelos irmãos Montgolfier, em presença dos
Estados-Gerais. A face do mundo estava transformada. Paris, Lião,
Marselha, o Havre, Versalhes notadamente, estavam irreconhecí-
veis. Aquelas primeiras haviam perdido seu imenso movimento; a
última tinha ganhado um brilho incomparável. Eu me havia forma-
do uma idéia incompleta do esplendor realengo das festas de Ver-
salhes; estava agora satisfeito por assistir a uma, e não foi sem
interesse que reconheci Luís XV, em pessoa, no esplêndido terraço
do Oeste, rodeado de mil senhores enfitados. Era de tarde; os der-
radeiros fulgores de um ardente Sol se reverberavam na fachada
palaciana e casais galantes desciam gravemente os degraus da
Camille Flammarion – Narrações do Infinito 54

escadaria de mármore, ou se inclinavam rumo das alamedas silen-


ciosas e sombrias. Minha vista se limitava de preferência sobre a
França, ou pelo menos na região do mundo desconhecido que me
representava a França, porque é agradável estar longe, bastante
longe da sua pátria, e nela sonhar sempre, deixando que, a cada
vez, a ela retorne o pensamento com júbilo. Não creiais que as
almas desencarnadas sejam desdenhosas, indiferentes, libertas de
toda recordação; teríamos assim bem triste existência. Não. Guar-
damos a faculdade de nos recordar, e nosso coração não se absorve
na vida do Espírito. Foi, pois, com um sentimento de júbilo íntimo
(do qual vos deixo a apreciação) que revi toda a História da nossa
França desenrolar-se, qual se as fases se houvessem positivado em
uma ordem inversa. Depois da unificação do povo, vi a soberania
de um potentado. Após isso, a feudalidade dos príncipes Mazarin,
Richelieu, Luís XIII e Henrique IV apareceram-me em Saint-
Germain. Os Bourbons e os Guises recomeçaram para mim as suas
escaramuças; acreditei distinguir a matança de São Bartolomeu.
Alguns fatos particulares da história de nossas províncias rea-
pareceram, tal, por exemplo, uma cena de diabruras de Chaumont,
que tive ocasião de observar diante da igreja de S. João, e o massa-
cre dos Protestantes em Vassy. Comédia humana! muitas vezes
tragédia! Subitamente, vi erigir-se no Espaço o cometa magnífico,
em forma de sabre, de 1577. Em um plano brilhantemente adorna-
do, divisei Francisco I e Carlos V saudando-se. Luís XI me apare-
ceu sobre um terraço da Bastilha, acompanhado das suas duas
sombras pandilheiras. Mais tarde, meus olhos, voltando-se para
uma praça de Ruão, distinguiram forte fumarada e chamas; no
meio delas, consumia-se o corpo de Joana d'Arc, a virgem de Orle-
ães.
Na persuasão de que esse mundo era a exata contra-partida da
Terra, eu adivinhava de antemão os acontecimentos que ia ver.
Assim, quando, depois de haver avistado S. Luís, que morria sobre
Camille Flammarion – Narrações do Infinito 55

cinzas perto de Tunis, assisti à oitava cruzada, depois à terceira


(onde reconheci Frederico Barbaroxa, com a sua barba), e ainda à
primeira (na qual Pedro, o Eremita, e Godofredo me recordaram o
Tasso), senti medíocre admiração. Desejei, em seguida, ver, suces-
sivamente, Hugo Capeto encabeçar uma procissão em pluvial de
oficiante; o concílio de Tauriacum decidir que o julgamento de
Deus vai pronunciar-se na batalha de Fontanet, e Carlos, o Calvo,
fazer massacrar 100.000 homens e toda a nobreza Merovíngia;
Carlos Magno coroado em Roma, a guerra contra os Saxões e
Lombardos; Carlo Martel martelando os sarracenos; o rei Dagober-
to fazendo edificar a abadia de Saint-Denis, de igual modo que vi o
papa Alexandre III colocar a primeira pedra de Notre Dame; Bru-
nehaut (ou Brunhilde) arrastado, nu, pelas ruas, preso a um cavalo;
os Visigodos, os Vândalos, os Ostrogodos, Clóvis, Meroveu (ou
Merowig), aparecer no país dos Salienos – em uma palavra, as
origens mesmas da história de França, desenrolando-se em sentido
retrospectivo da sua sucessão –, foi efetivamente o que ocorreu.
Muitas questões históricas de grande importância, que haviam
permanecido obscuras até então, foram tornadas visíveis para mim.
Assim, constatei, entre outras, que os franceses são originários da
margem direita do Reno e que os alemães nenhuma razão têm para
disputar esse rio e principalmente a margem esquerda.
Existia em verdade, para mim, um interesse maior – que eu
não saberia expressar – em assistir às particularidades de aconteci-
mentos dos quais possuía vaga idéia formada através dos ecos não
raro enganadores da História, e de visitar países transformados
desde muito tempo. A vasta e brilhante capital da civilização mo-
derna havia rapidamente envelhecido ao nível das cidades ordiná-
rias, embora bastilhada de torres ameadas. Admirei alternativamen-
te a bela cidade do século XV, os tipos curiosos da sua arquitetura,
a célebre torre de Nesle; os vastos mosteiros de Saint-Germain-des-
Prés. Lá, onde flore agora o jardim da Torre Saint-Jacques, reco-
Camille Flammarion – Narrações do Infinito 56

nheci o pátio sombrio do alquimista Nicolau Flamel. Os telhados


redondos e pontudos ofereciam o aspecto bizarro de cogumelos nas
bordas de um rio. Depois, essa aparência feudal havia desapareci-
do, para abrir lugar a um pesado castelo erguido no meio do Sena,
rodeado de algumas choupanas, e, enfim, a uma verdadeira planície
onde se distinguiam apenas algumas choças de selvagens. Paris não
existia mais, e o Sena rolava suas águas silenciosas por entre ervas
e salgueiros. Ao mesmo tempo, salientei que dessa civilização o
foco se havia deslocado e descido rumo ao Sul. Devo confessar-
vos, meu amigo, em circunstância alguma experimentou minha
alma um sentimento assim de tão vivo júbilo, quanto no momento
em que me foi dado ver a Roma dos Césares em seu esplendor. Era
um dia de triunfo e, sem dúvida, sob os principados sírios, pois, no
meio das magnificências exteriores, de carros luzidos, de aurifla-
mas de púrpura, duma assembléia de damas elegantes e de minis-
tros de ribalta, distingui um imperador molemente estendido em
amplo e dourado carro, inteiramente vestido de seda clara e coberta
de pedrarias, de ornamentos de ouro e prata refulgindo sob o Sol de
meio-dia. Só poderia ser Heliogábalo, o sacerdote do Sol. O Coli-
seu, o templo de Antino, os arcos de triunfo e a coluna Trajano
estavam erguidos, e Roma se encontrava em toda a sua beleza
arqueológica, derradeira beleza que era apenas uma cena de teatro
para coroados. Algo mais tarde, assisti à grandiosa erupção do
Vesúvio, que sepultou Herculano e Pompéia.
Por um momento vi Roma em chamas e, embora não haja po-
dido destacar Nero no seu terraço, persuadi-me de que tinha sob
meu olhar o incêndio do ano de 64 e o sinal das perseguições cris-
tãs. Algumas horas decorridas, minha atenção estava presa em
examinar os vastos jardins de Tibério, em Capreia (hoje Capri), e
acabava de ver esse imperador chegar perto do tabuleiro de rosas,
rodeado de um grupo de mulheres nuas, quando, em conseqüência
da rotação da Terra, a Judéia veio colocar-se sob minhas vistas, que
Camille Flammarion – Narrações do Infinito 57

adivinharam imediatamente Jerusalém. Jesus, carregando sua pesa-


da cruz, subia custosamente a colina do Gólgota, escoltado por
uma tropa de soldados e seguido pela populaça de judeus. Esse
espetáculo é um daqueles que jamais esquecerei. Foi para mim bem
diferente do que para os assistentes de então, pois a glória futura (e
contudo passada) da Igreja cristã se desenrolava, a meu ver, no
nível de uma coroação do divino sacrifício... Não insisto; compre-
endeis quais os diversos sentimentos que agitaram minha alma
nesta observação suprema...
Revindo mais tarde rumo a Roma, reconheci Júlio César es-
tendido sobre a sua pira, tendo à cabeceira Antônio, cuja mão
esquerda segurava, creio, um rolo de papiro. Os conjurados desci-
am apressadamente às bordas do Tibre. Remontando, por legítima
curiosidade, à vida de Júlio César, eu o reencontrei com Vercingé-
torix no meio dos Gauleses, e pude constatar que de todas as hipó-
teses dos nossos contemporâneos a respeito de Alésia, nenhuma
acerta com o lugar verdadeiro, atendendo-se a que essa fortaleza
estava situado sobre...
Quœrens – Perdoai minha interrupção, mestre, mas aguardei
com empenho a ocasião de vos solicitar um esclarecimento sobre
ponto particular do ditador. Uma vez que revistes Júlio César,
dizei-me, eu vos rogo, se a sua figura se assemelha em verdade à
que o imperador Napoleão III, que reina atualmente sobre a Gália,
nos dá na grande obra que escreveu sobre a vida do famoso capi-
tão. É verdade que o ditador romano e o general corso têm a mes-
ma cabeça, a mesma fisionomia?
Lúmen – Sim. A semelhança é notável, tanto quanto a seme-
lhança moral, a ponto de me haver perguntado a mim mesmo se
Júlio César e Napoleão Bonaparte não constituem uma só e única
personalidade em duas reencarnações diferentes.
Camille Flammarion – Narrações do Infinito 58

De qualquer modo que seja, retrocedi de Júlio César aos côn-


sules e aos reis do Lácio, para me deter um instante no rapto das
Sabinas, com o que fiquei bastante satisfeito por poder observar
diretamente esse tipo de costume antigo. A História aformoseou
muitas coisas e reconheço que a maior parte dos fatos históricos
foram totalmente diferentes do que se nos apresentou. Nesse mes-
mo momento apercebi o rei Candaulo, em Lídia, na cena do banho,
que vós conheceis; a invasão do Egito pelos Etíopes; a república
oligárquica de Corinto; a oitava olimpíada da Grécia; e Isaías
profetizando na Judéia. Vi construir as pirâmides por levas de
escravos, dirigidos por chefes montados em dromedários. As gran-
des dinastias da Bactriana e da Índia, eu as vi, e a China me mos-
trou as artes maravilhosas que já possuía antes mesmo do nasci-
mento do mundo ocidental. Tive oportunidade de perquirir a res-
peito da Atlântida de Platão e constatei efetivamente que as opini-
ões de Bailly sobre esse continente desaparecido não são destituí-
das de fundamento. Na Gália só se distinguiam vastas florestas e
pântanos; os próprios druidas haviam desaparecido e os selvagens
dali muito se pareciam aos que ainda hoje habitam a Oceânia. Era
bem a idade da pedra reconstituída pelos arqueólogos modernos.
Mais tarde ainda, vi que o número de homens diminuía pouco a
pouco e que o domínio da natureza parecia pertencer a uma grande
raça de símios, ao urso das cavernas, ao leão, à hiena, ao rinoceron-
te. Chegou o momento em que me foi impossível distinguir sequer
um único homem na superfície do mundo, nem mesmo o menor
vestígio da raça humana. Tudo havia desaparecido. Os tremores de
terra, os vulcões e os dilúvios pareciam assenhoreados da superfí-
cie planetária, não permitindo a presença do homem em meio de
tais ruínas.
Quœrens – Confessar-vos-ei, ó Lúmen, aguardar com impaci-
ência o momento de vossa chegada ao Paraíso terrestre, a fim de
saber de que forma se apresenta a criação da raça humana sobre a
Camille Flammarion – Narrações do Infinito 59

Terra. Estou até surpreso de não haverdes parecido cogitar de tão


importante observação.
Lúmen – Eu vos relato unicamente quanto vi, meu curioso a-
migo, e guardar-me-ei bem de substituir os testemunhos dos meus
olhos pelas fantasias da imaginação. Ora, não vislumbrei qualquer
remoto traço desse Éden tão poeticamente descrito pelas teogonias
primitivas. Além disso, seria bem extraordinário que a semelhança
do mundo que eu tinha sob os olhos e a Terra chegasse até elas,
tanto mais quanto, se o paraíso terreal tem sua razão de ser no
berço da Humanidade, nas graciosas lendas orientais, não vejo em
que ele possa ter a mesma razão nos fins da sociedade humana.
Quœrens – Creio, ao contrário, que seria mais justo supô-lo li-
gado aos fins do que ao começo, em resultado e recompensa, do
que em forma de prelúdio incompreendido, de uma vida de sofri-
mento. Mas, de vez que não vistes o Éden, não insisto no assunto.
Lúmen – Chegou, enfim, ao término da observação desse mun-
do singular, cuja história era precisamente o inverso da vossa, a
ocasião de ver animais fantásticos de monstruosidade combatendo-
se nas praias de vastos mares. Serpentes gigantes, armadas de patas
formidáveis; crocodilos que voavam nos ares, agitando asas orgâ-
nicas mais longas que o seu próprio corpo, peixes disformes, cuja
goela teria deglutido um touro; aves de rapina travando terríveis
batalhas nas ilhas devastadas. Continentes inteiros, cobertos de
vastas florestas; árvores de folhagem enorme cresciam umas sobre
as outras, vegetais sombrios e severos, porque o reino vegetal ainda
não possuía então nem flores, nem frutos. As montanhas vomita-
vam cascatas inflamadas; os rios tombavam em cataratas; o solo
dos campos abria-se em forma de fauces profundas, deglutindo
colinas, bosques, ribeiros, árvores, animais. Bem depressa, impos-
sível se me tornou distinguir mesmo a superfície do Globo; um mar
universal parecia cobri-lo e o reino vegetal, e assim também o
animal, se apagaram lentamente para dar posto a monótonas verdu-
Camille Flammarion – Narrações do Infinito 60

ras lavradas de brilhos e fumaças brancas. Era, desde então, um


mundo agonizante. Assisti às derradeiras pulsações do seu coração,
reveladas por fulvos clarões intermitentes. Pareceu-me depois que
chovia simultaneamente sobre a superfície inteira, pois o Sol não
iluminava mais que nuvens e goteiras de chuva. O hemisfério
oposto ao Sol pareceu-me menos sombrio do que antes e apagadas
claridades se deixavam aperceber através das tempestades. Esses
clarões ganharam intensidade e se propagaram sobre a esfera total.
Amplas fendas apareciam vermelhas, lembrando o ferro em brasa
das forjas. E porque o ferro sucessivamente queimado na ardente
fornalha se torna vermelho-claro, depois alaranjado, em seguida
amarelo, passando a branco e incandescente, assim o mundo pas-
sou por todas as fases do aquecimento progressivo. Seu volume
aumentou; o movimento de rotação foi mais lento. O globo miste-
rioso ficou semelhante a uma esfera imensa de metal fundido,
envolta de vapores minerais. Sob a ação incessante da sua fornalha
interior e dos combates elementares dessa estranha química, adqui-
riu proporções enormes e a esfera de fogo passou a esfera de fuma-
ça. Desde então, iria desenvolvendo-se sem cessar e perdendo a
personalidade. O Sol, que primitivamente a iluminava, não a ultra-
passava mais em brilho e ela própria agrandou a sua circunferência
de tal modo que se tornou evidente, para mim, estar o planeta
vaporoso destinado a perder a sua existência mesma por efeito de
reabsorção na atmosfera crescente do Sol.
Assistir a um fim de mundo é ocorrência rara. Por isso, em
meu entusiasmo, pensava comigo mesmo, com uma espécie de
vaidade: Eis, pois, um fim de mundo, ó Deus, e eis o destino reser-
vado às inumeráveis terras habitadas!
– Não é o fim – respondeu uma voz à minha idéia íntima –; é o
começo.
– Quê? É o começo? pensei eu em seguida.
Camille Flammarion – Narrações do Infinito 61

– O princípio da Terra mesma – respondeu a mesma voz –. Tu


reviste toda a história da Terra, distanciando-te dela com velocida-
de superior à da luz.
Tal afirmação não me surpreendeu mais do que o primeiro epi-
sódio da minha vida ultraterrestre, pois, já familiarizado com os
efeitos chocantes das leis da luz, estava desde então preparado para
toda a nova surpresa. Eu havia duvidado do fato por certos detalhes
que não vos pude narrar, para não perturbar a unidade da minha
exposição, porém, sem embargo, incomparavelmente mais extraor-
dinárias ainda do que a sucessão geral dos acontecimentos.
Quœrens – Mas, se se tratava realmente da Terra, como se ex-
plica que a vossa observação astronômica, feita antes para reco-
nhecimento na constelação do Altar, vos haja indicado, ao contra-
rio, que o mundo por vós examinado não era a Terra, nem uma
estrelinha do Altar?
Lúmen – É que essa constelação, em conseqüência da minha
viagem no Espaço, havia mudado de posição. Em lugar das estrelas
de terceira grandeza e das de quarta que constituem essa figura
(vista da Terra), meu distanciamento rumo da nebulosa havia redu-
zido tais astros a pequenos pontos imperceptíveis. Estavam lá
outras estrelas brilhantes, sem dúvida alguma do Cocheiro, estrelas
diametralmente opostas às precedentes, quando se observa da
Terra, mas que se interpuseram quando foram por mim transpostas.
As perspectivas celestes haviam mudado, já, e impossível quase se
tornava determinar a posição do nosso Sol.
Quœrens – Não tinha pensado nessa inevitável mudança de
perspectivas para além de Capela. Assim sendo, tratava-se mesmo
da Terra à vossa vista. Ademais, sua história se desenrolou em
sentido inverso da realidade. Vistes os velhos acontecimentos
chegando depois dos fatos modernos. Por que processos pôde a luz
fazer-vos assim subir o rio do Tempo?
Camille Flammarion – Narrações do Infinito 62

Além disso, ó Lúmen, dissestes haver observado particularida-


des curiosas relativas à própria Terra. Desejaria particularmente
formular algumas questões a respeito de tais detalhes. Ouvirei,
pois, com interesse, as histórias extraordinárias que devem comple-
tar esta narrativa, persuadido de que, tal qual ocorreu anteriormen-
te, elas responderão antecipadamente à minha curiosidade.
Camille Flammarion – Narrações do Infinito 63

II
Lúmen – A primeira circunstância se prende à batalha de Wa-
terloo.
Quœrens – Ninguém melhor do que eu recorda essa catástrofe,
pois recebi uma bala na espádua, perto do Mont-Saint-Jean, e um
golpe de sabre em cima da mão direita, vibrado por um dos biltres
de Blücher.
Lúmen – Pois bem, meu velho camarada, assistindo de novo a
essa batalha, eu a vi de modo diferente daquele pelo qual se desen-
rolou. Julgareis disso bem depressa.
Quando reconheci o campo de Waterloo, ao sul de Bruxelas,
divisei primeiramente um considerável número de cadáveres, sinis-
tra assembléia da morte deitada sobre o chão. Ao longe, por entre o
nevoeiro, lobrigava-se Napoleão chegando em recuo, com o seu
cavalo seguro pela rédea; os oficiais que lhe faziam séqüito mar-
chavam igualmente retrocedendo! Alguns canhões deveriam come-
çar o seu ribombo, pois, de tempo em tempo, eram vistas as tristes
luzes dos seus clarões. Quando a minha vista se aclimatou suficien-
temente ao panorama, vi, em primeiro lugar, que alguns soldados
mortos despertavam, ressuscitavam da noite eterna e se levantavam
de um só movimento! Grupos a grupos, um grande número ressus-
citou. Os cavalos mortos despertaram tal qual os cavaleiros e estes
remontaram nos bucéfalos. Tão logo dois ou três mil desses ho-
mens voltaram à vida, eu os vi formarem em perfeita linha de
batalha; as duas hostes se defrontaram e começaram batendo-se
com encarniçamento, furor mesmo, que quase se poderiam tomar
por desespero. Uma vez iniciada a luta pelas duas partes, os solda-
dos ressuscitavam mais rapidamente: Franceses, Ingleses, Prussia-
nos, Hanoverianos, Belgas; capotes cinzentos, uniformes azuis,
túnicas vermelhas, verdes, brancas, levantam-se do exército fran-
Camille Flammarion – Narrações do Infinito 64

cês, distingui o imperador; um batalhão em quadrado o envolvia: a


Guarda-Imperial havia ressurgido!
Então, os imensos batalhões avançaram dos dois campos, pre-
cipitando suas pesadas ondas humanas: da esquerda e da direita
entrecruzaram-se os esquadrões. Os cavalos brancos faziam flutuar
ao vento sua aérea crina. Recordo o estranho desenho de Raffet e
recordo-me do epigrama espectral do poeta alemão Sedlitz:
Rufa o tambor estranhamente,
com toda a força o som ressoa;
por essa força ressuscitam
quantos soldados lá morreram.
E deste outro:
É a grande revista que,
em ponto de meia-noite,
tenta nos Campos Elíseos
o César já falecido.”
Era bem Waterloo, mas um Waterloo de além-túmulo, porque
os combatentes eram ressuscitados. Afora isso (singular miragem),
marchavam em recuo uns contra os outros. Uma tal batalha produ-
ziu efeito mágico, que me impressionava, tanto mais fortemente,
porque eu imaginava ver o autêntico acontecimento e esse se apre-
sentava estranhamente transformado na sua imagem simétrica.
Detalhe não menos singular: quanto mais se combatia, mais o
número de lutadores aumentava; a cada claro aberto pelo canhão
nas fileiras cerradas, um grupo de mortos ressuscitava imediata-
mente para preencher falhas. As tropas escoaram o dia a estraça-
lhar-se pela metralha, canhões, balas, baionetas, sabres, espadas;
quando a imensa batalha terminou, não havia um só morto, um
único ferido; os uniformes, há pouco rasgados ou em desordem,
Camille Flammarion – Narrações do Infinito 65

voltaram a bom estado, os homens se tornaram válidos; as fileiras


corretamente formadas.
Os 340.000 soldados que constituíam os dois exércitos se afas-
taram lentamente, um e outro, como se a ardente peleja não hou-
vesse tido outro fim senão fazer ressuscitar, sob a fumaça do
combate, os cem mil cadáveres e feridos jacentes no plano algumas
horas antes. Que batalha exemplar e digna de inveja!
Infalivelmente, estava ali o mais singular dos episódios milita-
res. E o aspecto físico fora sobrepujado pelo aspecto moral, quando
refleti que tal batalha tivera em resultado, não o vencer Napoleão,
mas, ao contrário, pô-lo sobre o trono. Em vez de perder a pugna, o
imperador a ganhara, e de prisioneiro se tornou soberano. Waterloo
fora um 18 brumário!
Quœrens – Só compreendo pela metade, ó Lúmen!, esse novo
efeito das leis da luz, e muito vos agradeceria se me désseis mais
clara explicação, caso a tenhais apreendido.
Lúmen – Eu vo-la deixei adivinhar, há pouco, ao dizer-vos que
me distanciava da Terra com uma velocidade maior do que a da
luz.
Quœrens – Explicai-me, porém, de que maneira esse distanci-
amento progressivo no Espaço vos mostrou os acontecimentos em
ordem inversa daquela em que se realizaram?
Lúmen – A teoria é bem simples. Suponde que partis da Terra
com uma velocidade exatamente igual à da luz; tereis sempre con-
vosco o aspecto que a Terra apresentava no instante da vossa parti-
da, por isso que vos afastais do globo com a velocidade igual à que
leva esse cenário através do Espaço. Ainda mesmo que viajásseis
durante dez ou cem séculos, tal aspecto vos acompanharia sempre,
à semelhança de um retrato que nunca envelhecesse, apesar do
tempo encanecer o original dessa fotografia.
Camille Flammarion – Narrações do Infinito 66

Quœrens – Esse fato eu já o compreendi em nossa primeira pa-


lestra.
Lúmen – Bem. Suponhamos agora que vos distanciais da Terra
com uma velocidade superior à da luz. Que acontecerá? Encontra-
reis, à medida que avançardes no Espaço, os raios saídos antes de
vós, isto é, as fotografias sucessivas que, de instantes em instantes,
se evolam para a imensidão. Se, por exemplo, partis em 1867, com
a velocidade idêntica à da luz, olhareis eternamente esse panorama
de 1867; se, porém, marchais mais rápido, ireis contemplando os
raios de luz que partiram em cada ano anterior e levam gravada a
fotografia respectiva de cada tempo.
Para melhor pôr em evidência a realidade desse fato, peço a-
precieis raios luminosos saídos da Terra em diferentes épocas O
primeiro será o de um momento qualquer do primeiro dia de Janei-
ro de 1867. À razão de 300.000 quilômetros por segundo, terá, no
instante em que vos falo, feito um certo percurso desde a ocasião
da sua passagem pela Terra, e se encontra agora a uma determinada
distância, que exprimirei pela letra A. Consideremos a seguir outro
saído um século antes, em 1 de Janeiro de 1767: levará dez decê-
nios de avanço sobre o primeiro e se encontrará a uma longitude
muito maior, distância que designarei pela letra B. Terceiro raio,
que localizo em 1 de Janeiro de 1667, estará ainda mais longe, num
trajeto igual ao que percorre a luz em 36525 dias. Chamarei C o
local onde se encontrará esse terceiro raio. Enfim, um 4°, 5°, 6°
corresponderão, respectivamente, a 1 de Janeiro de 1567, 1467,
1367, etc., e estarão escalonados a distâncias iguais, D, E e F,
mergulhados cada vez mais no infinito.
Eis, pois, uma série de fotografias terrestres em degraus da
mesma linha, de distância em distância, no Espaço. Ora, o Espírito
que se afasta, passando sucessivamente pelos pontos A, B, C, D, E,
F, neles encontrará, sucessivamente também, a história secular da
Terra em tais épocas.
Camille Flammarion – Narrações do Infinito 67

Quœrens – Mestre! a que distância estarão essas fotografias


umas das outras?
Lúmen – O cálculo é dos mais fáceis; o intervalo que as separa
corresponde ao percorrido pela luz durante um século. Ora, à razão
de 300.000 quilômetros por segundo, vereis que viajou 18 milhões
em um minuto, mil e oitenta milhões em uma hora, vinte cinco
bilhões novecentos vinte três milhões e duzentos mil em um dia,
nove mil trilhões quatrocentos e sessenta e sete bilhões duzentos
oitenta milhões em um ano, tendo em conta os bissextos. Disso se
conclui, em conseqüência, que o intervalo entre dois pontos que
guardam um século de distância será de 946 trilhões e 728 bilhões
de quilômetros aproximadamente.
Eis, disse eu, uma série de fotografias terrestres escalonadas no
Espaço a intervalos respectivos. Suponhamos agora que entre cada
uma dessas imagens seculares se encontram escalonadas, a seu
turno, as imagens anuais, guardando entre cada uma a distância que
a luz percorre em um ano, e a que venho de me referir; e pois que
de permeio a cada imagem anual temos as de cada dia; e pois que
cada dia contém as das horas e cada hora, afinal, a imagem dos
seus minutos, e estes a dos segundos que os formam, e o todo
sucedendo-se de acordo com a distância correspondente a cada um
deles; teremos em um raio de luz, ou, para melhor dizer, em um
jato de luz composto de uma série de imagens distintas, justapos-
tas, a inscrição cósmica da história da Terra.
Quando o Espírito viaja nesse raio etéreo de imagens com ve-
locidade superior à da luz, encontra sucessivamente as antigas.
Chegando à distância onde se acha então o aspecto partido em
1767, já remontou a um século de história terrestre. Atingindo o
ponto no qual encontra o panorama de 1667, terá alcançado dois
séculos. Quando chega à fotografia de 1567, o Espírito já reviu três
séculos, e assim por diante. Eu vos disse, de início, dirigir-me
então a um montão de estrelas situado à esquerda de Capela. Esse
Camille Flammarion – Narrações do Infinito 68

conjunto se encontra a uma longitude incomparavelmente maior do


que a da própria estrela, embora da Terra pareça estar à ilharga, por
isso que os dois raios visuais são vizinhos. Tal proximidade apa-
rente é devida apenas à perspectiva. Para vos dar idéia do distanci-
amento provável desse longínquo universo, direi não ser ele menos
vasto do que a Via-Láctea. Pode-se assim imaginar a que distância
seria preciso transportar a Via-Láctea, para que ficasse reduzida ao
aspecto daquela nebulosa. Meu sábio amigo, Arago, fez tal cálculo
(que não ignorais, pois ele o repetia em cada ano do seu curso no
Observatório, e foi publicado postumamente). Seria necessário
supor a Via-Láctea mudada a uma distância igual a 334 vezes a sua
extensão. Ora, despendendo a luz 150 séculos na travessia da Via-
Láctea – de um extremo ao outro, a conclusão é que deverá empre-
gar 334 vezes 150 séculos, ou seja, mais de 50.000 séculos para vir
de lá. Eu havia remontado o raio da Terra até essas remotas regiões
e se a minha visão espiritual fosse mais perfeita eu teria podido
distinguir, não somente a história retrospectiva 5 de cem ou mil
séculos, mas ainda a de cinqüenta mil séculos.

5
Esta concepção da história retrospectiva, dos acontecimentos revolvi-
dos, foi assinalada por Henrique Poincaré em suas sábias dissertações
matemáticas. Podem-se ler as linhas seguintes em sua obra “Ciência e
Método” (págs. 71-72), publicada, em 1908:
As leis da Natureza ligam o antecedente ao conseqüente, de tal sorte
que o antecedente é determinado pelo conseqüente tão bem quanto o
conseqüente pelo antecedente. Flammarion havia imaginado outrora
um observador que se distanciasse da Terra com velocidade maior do
que a da luz, para o qual o Tempo teria mudado de significação e a
história se tornaria retrospectiva – Waterloo precedendo Austerlitz.
Para tal observador os efeitos e as causas seriam intervertidos.
E mais adiante (pág. 83):
Não estamos no final dos paradoxos. Retomemos a ficção de Flamma-
rion, aquela em que o homem anda mais rapidamente do que a luz e
Camille Flammarion – Narrações do Infinito 69

Quœrens – O Espírito pode, pois, pela sua própria potência, a-


travessar todo gênero de espaços incomensuráveis dos céus?
Lúmen – Pelo seu próprio poder, não, mas servindo-se das po-
tências da Natureza. A atração é uma dessas energias. Ela se
transmite com velocidade muitíssimo superior à da luz, e as teorias
astronômicas – as mais rigorosas – são forçadas a considerar tal
transmissão no nível de quase instantânea. Acrescentarei que, se
pude apreender os acontecimentos de tais longitudes, isso não foi
pela apreciação visual física que vós conheceis, e sim por um
processo diferente, mais sutil, que pertence à ordem psíquica. Os
movimentos etéreos constitutivos da luz não são luminosos eles
próprios, vós o sabeis. Um órgão visual não é necessário para os
perceber. Vibrando a alma sob sua influência, percebe-os tão bem
(e muitas vezes incomparavelmente melhor) quanto um aparelho de
óptica orgânica. É de óptica psíquica. Assim, por exemplo, a atra-
ção atinge instantaneamente os cento e quarenta e nove milhões de
quilômetros que separam a Terra do Sol, enquanto que a luz em-
prega para isso 493 segundos.

para quem o Tempo mudou de símbolo; para ele todos os fenômenos


pareceriam devidos ao acaso. Que quer isso dizer? Para Lúmen, pe-
quenas causas pareceriam produzir grandes efeitos. Que ocorreria
quando grandes causas gerassem pequenos efeitos? Eis a hipótese em
que não atribuiríamos o fenômeno ao acaso, enquanto que Lúmen,
precisamente ao contrário, tê-lo-ia por fruto do acaso. Ele veria surgir
um mundo cada vez mais variado de uma espécie de caos primitivo;
as mudanças que observasse seriam para ele imprevistas e impossíveis
de prever e pareceriam oriundas de não-sei-que capricho; mas, este
capricho seria diferente do nosso acaso, por isso que rebelde a toda
lei, enquanto que o nosso acaso teria ainda as suas. Todos esses pon-
tos demandariam longos desenvolvimentos, que ajudariam talvez a
compreender a irreversibilidade do universo. – Henri Poincare.
Camille Flammarion – Narrações do Infinito 70

Quœrens – Quanto tempo dura tal viagem, rumo desse univer-


so longínquo?
Lúmen – Não percebestes já que o tempo não existe, fora do
movimento da Terra? Que eu haja empregado um ano ou uma hora
em tal exame, é a mesma duração ante o infinito.
Quœrens – Eu havia pensado isso: as dificuldades físicas me
parecem enormes. Permitis agora, que vos submeta uma estranha
idéia que me surgiu no cérebro?
Lúmen – É precisamente para atender às vossas reflexões que
vos faço estas narrativas.
Quœrens – Eu me perguntava se essa mesma inversão poderia
ter lugar para o ouvido tal qual para a vista; se, podendo ver um
acontecimento ao avesso da sua realidade, seria possível ouvir um
discurso – começando pelo fim. É sem dúvida uma questão frívola
e talvez de aparência ridícula, mas, no terreno do paradoxo, por
que estacar?
Lúmen – O paradoxo é apenas aparente. As leis do som dife-
rem essencialmente das da luz. O som percorre somente 340 me-
tros por segundo, e seus efeitos nada têm em absoluto de comum
com os da luz. Todavia, é evidente que, se avançamos no ar com
uma velocidade superior à do som, ouviremos ao inverso os sons
saídos dos lábios de um interlocutor. Se, por exemplo, este recitas-
se um alexandrino, o audiente, distanciando-se com a predita rapi-
dez – a partir do instante em que ouvisse a última sílaba –, encon-
traria sucessivamente as outras onze – pronunciadas antes – e
ouviria o verso ao avesso.
Quanto à teoria em si, ela nos inspira uma reflexão curiosa, e é
que a Natureza teria podido fazer com que o som não percorresse
340 metros por segundo, e sua velocidade, dependente da densida-
de e elasticidade do ar, fosse diversa do que é, mais lenta, muito
mais demorada mesmo. Porque, por exemplo, não se transmite ele
Camille Flammarion – Narrações do Infinito 71

no ar com a velocidade de alguns centímetros apenas por segundo?


Ora, vede que resultaria, se assim fosse. Os homens não se poderi-
am falar, andando. Dois amigos, em palestra; um dá um passo, dois
passos à frente, distanciando-se cem centímetros, suponhamos. E
porque o som empregaria muitos segundos para transpor esse
metro, resultaria que, ao invés de ouvir a continuação da frase
pronunciada pelo amigo, o avançado ouviria de novo, em ordem
inversa, os sons constitutivos das frases anteriores. Que mal, se não
se pudesse conversar, caminhando, e que três quartas partes das
criaturas não se pudessem entender? Estes reparos, meu amigo, me
tentam, relativamente às vossas meditações, a um assunto bem
digno de atenção e do qual muito pouco se há cogitado até aqui: a
adaptação do organismo humano ao ambiente terrestre. A maneira
pela qual o homem vive, e percebe, suas sensações, seu sistema
nervoso, sua estatura, seu peso, sua densidade, sua locomoção, suas
funções, em uma palavra, todos os seus atos são regidos, constituí-
dos mesmo, pelo estado do vosso planeta. Nenhuma de vossas
ações é absolutamente livre, independente: o homem é o resultado
dócil, ainda que inconsciente, das forças orgânicas da Terra. Sem
dúvida, não sendo a alma humana função do cérebro, existindo
autônoma, desfruta de liberdade relativa; mas essa liberdade é
inteiramente ligada às suas faculdades, sua potência e sua energia;
ela se determina segundo as causas que a decidem. Ao nascer de
todo homem, aquele que conhecesse exatamente as faculdades
dessa alma e as circunstâncias que rodeiam essa vida, poderia, por
antecipação, escrever tal vida em todos os seus detalhes. O orga-
nismo é o produto do planeta, mas não é em conseqüência de uma
fantasia divina, dum milagre, de uma criação direta que o homem
está constituído tal qual se encontra. Sua forma, em suma, tem
causa no estado do vosso planeta, na atmosfera que respirais, na
alimentação que vos nutre, no peso sobre a superfície da Terra, na
densidade dos materiais terráqueos, etc.. O corpo humano não
difere, anatomicamente, do de um mamífero superior e, se remon-
Camille Flammarion – Narrações do Infinito 72

tardes às origens das espécies, encontrareis transformações gradu-


ais estabelecendo, por testemunhos irrecusáveis, que toda a vida
terrestre, desde o molusco até o homem, é o desenvolvimento de
uma só e única árvore genealógica. A forma humana tem por ori-
gem a forma animal; o homem é a borboleta saída da crisálida das
idades paleontológicas.
De tal fato resulta a conseqüência de que, nos outros mundos,
a vida orgânica difere da existente aqui, e de que as humanidades –
resultantes, lá tanto quanto aqui, das forças em atividades em cada
planeta – sejam absolutamente diversas em suas conformações da
gente terreal. Por exemplo, nos mundos onde não se come, o tubo
digestivo e as entranhas desapareceram. Nos mundos fortemente
eletrizados, os seres são dotados de um sentido elétrico. Em outros
a vista é constituída de raios ultravioletas e os olhos nada têm de
comum com os vossos, nem vêem o que vedes, e sim o que não
enxergais. Os órgãos se acham em relação com as respectivas
funções.
Quœrens – Não somos, pois, o tipo absoluto da Criação? E a
Criação é, ela mesma, um perpétuo vir a ser, uma resultante, se-
gundo as forças em atividade?
Lúmen – A própria alma se encontra nesse caso. Há tanta di-
versidade entre as almas quanta entre os corpos. Para que ela exis-
ta, na condição de ser independente, com consciência de si mesma,
para que conserve a lembrança de sua identidade e esteja apta para
a imortalidade, é necessário que desde esta vida ela saiba que
existe em realidade. De outra forma, terá avançado no amanhã da
morte tanto quanto na véspera e cairá, qual um sopro insensível, no
cego turbilhão do Cosmos, na igual condição de qualquer outro
centro de força inconsciente. Muitos homens na Terra blasonam de
admitir apenas a matéria (sem saberem, aliás, o que estão dizendo,
pois não a conhecem) e, além desses, outros, mais numerosos
ainda, que não pensam coisa alguma, não são imortais, por não
Camille Flammarion – Narrações do Infinito 73

terem consciência da sua existência. Os Espíritos que vivem real-


mente da vida espiritual são apenas os que estão aptos para a imor-
talidade.
Quœrens – E são muitos?
Lúmen – Eis, meu amigo, a aurora que, de novo, me convida a
regressar ao seio do Espaço – povoado de coisas desconhecidas da
Terra, veio fecundo no qual os Espíritos reencontram os salvados
das existências transcorridas, os segredos de muitos mistérios, as
ruínas de mundos destruídos e a gênese de mundos futuros. Seria
de resto supérfluo alongar esta narrativa de detalhes inúteis. Minha
intenção foi mostrar que, para ter o espetáculo de um mundo e de
um sistema de vida inteiramente opostos ao vosso, basta distanciar-
se da Terra com velocidade superior à da luz.
Nesse arrojo da alma, rumo aos horizontes inacessíveis do in-
finito, se encontram os raios luminosos refletidos pela Terra e
pelos outros planetas desde há milhares e miríades de ciclos anuais,
e, observando-se os planetas de tão longínqua distância, pode-se
assistir de visu aos acontecimentos da sua história passada. Assim
se sobe o rio do Tempo até suas nascentes. Uma tal faculdade deve
iluminar, para vós, de novas claridades as regiões da eternidade. Eu
me prometo fazer-vos bem depressa conhecer as conseqüências
metafísicas, se, segundo espero, admitistes o valor científico da
documentação deste estudo ultraterrestre.
Camille Flammarion – Narrações do Infinito 74

Terceira narrativa 6

Homo homunculus

Quœrens – Eu vos escutei com interesse, ó Lúmen!, sem estar,


eu o confesso, inteiramente persuadido de que tudo quanto tivestes
a bondade de me narrar seja realidade absoluta. Estou sob a im-
pressão de um possível vôo imaginativo. Em verdade, é muito
difícil crer que se possam ver tão distintamente todas as coisas.
Quando há nuvens, por exemplo, não podeis observar através delas
o que se passa na superfície da Terra. O mesmo ocorre do interior
das casas.
Lúmen – Desenganai-vos, meu amigo: as ondulações do éter
atravessam obstáculos que poderíeis supor intransponíveis. As
nuvens são formas de moléculas entre as quais um raio de luz pode
muitas vezes passar. E a luz não é o que ela parece ser: raios invi-
síveis para os vossos olhos atravessam os corpos opacos e certos
aspectos da Terra poderiam, mesmo através das nuvens, levar sua
fotografia ao longe no Espaço. Tal irradiação é um movimento
vibratório do éter; pode ser visto por outro processo que não o
exercitar da retina e do nervo óptico. As vibrações do éter são
perceptíveis por outros sentidos que não os vossos. Se for a derra-
deira objeção que tendes a fazer, confessemos estar longe de irres-
pondível.
Quœrens – Tendes particular maneira de resolver todas as difi-
culdades. Talvez seja isso um privilégio dos seres espirituais. Tive
sucessivamente que admitir vosso transporte a Capela, com veloci-
dade superior à da luz; que chegastes a um mundo independente-

6
Escrita em 1867.
Camille Flammarion – Narrações do Infinito 75

mente de reencarnar ali; que vossa alma permanece liberta de


qualquer invólucro corporal; que vossa percepção ultraterrestre é
bastante poderosa para distinguir desde o alto tudo quanto se passa
aqui; que podeis avançar ou recuar no Espaço, a vosso arbítrio;
enfim, que as próprias nuvens não constituem empecilho a que
possais distinguir a superfície do nosso globo. Devemos convir que
em tudo isso há bem grandes dificuldades para a compreensão.
Lúmen – Quanto sois terrestre ainda, meu velho amigo, e quan-
to vos surpreenderíeis agora, se vos demonstrasse a infantilidade
dessas objeções, e bem assim que quaisquer outras opostas nesse
sentido seriam puros efeitos da vossa ignorância nativa! Que pen-
saríeis, se vos dissesse não existir um entre os homens que tenha
uma idéia, ao menos, do que se passa sobre a face da própria Terra,
e que nenhum compreende a Natureza?
Quœrens – Em nome das indiscutíveis verdades da ciência
moderna, eu ousaria supor ser vossa intenção impor...
Lúmen – Deus seja louvado! Escutai, meu amigo. As maravi-
lhosas descobertas da ciência contemporânea deveriam abrandar a
esfera das vossas concepções. Vindes de descobrir a análise espec-
tral! Pelo exame de modesto raio de luz lançado de longínqua
estrela, constatais que elementos constituem essa estrela inacessí-
vel e lhe alimentam o fulgor. Aí está, meu jovem irmão espiritual,
um acontecimento mais estupendo – por si só – do que todas as
conquistas dos Alexandres, dos Césares, dos Napoleões; do que
todas as descobertas dos Ptolomeus, dos Colombos, dos Guten-
bergs; do que todas as bíblias dos Moisés, dos Confúcio, dos Je-
sus.7 Pois quê! imensidades cavam abismos que vos separam de
Sírio, Arcturus, Vega, Capela, de Castor e Pólux, e vós analisais as
substâncias constitutivas desses sóis, parecendo que os pegais nas
mãos e os submeteis ao cadinho do laboratório. E vos recusais a

7
Opinião pessoal de Lúmen. (Nota da Editora)
Camille Flammarion – Narrações do Infinito 76

admitir que, por processos de vós desconhecidos, a visão da alma


possa apreender, por ela mesma, o aspecto luminoso de um mundo
distante e nele distinguir os mínimos detalhes? O telégrafo leva em
um instante inapreciável vosso pensamento da Europa à América
através dos abismos do Oceano; dois interlocutores conversam em
voz baixa a milhares de quilômetros de distância, e não quereis
admitir minhas comunicações somente porque não as compreen-
deis de todo, completamente? E compreendeis de que modo o
despacho voa e se transmite? Não, não é verdade? Deixai, pois, de
conservar dúvidas que nem mesmo têm o valor de ser científica.
Quœrens – Minhas objeções, meu caro mestre, não possuem
outro intento que obter novas luzes para minha inteligência. Estou
longe de negar a realidade de tudo quanto me fizestes bondosamen-
te conhecer; mas, procuro adquirir uma idéia racional e exata.
Lúmen – Ficai certo, meu amigo, de que nunca me formalizo,
de modo algum, e para elevar ao meu grau a esfera das vossas
concepções posso, imediatamente, abrir vosso olhar ante a insufici-
ência das vossas faculdades terrestres, e sobre a pobreza fatal da
ciência chamada positiva, convidando-vos a refletir em que as
causas das vossas impressões são unicamente modalidades de
movimento, e que quanto orgulhosamente se denomina ciência não
passa de percepção orgânica muito limitada. A luz, por intermédio
da qual vossos olhos enxergam, o som, veículo para que vossas
orelhas ouçam, são diferentes modos de movimento que vos im-
pressionam; os odores, os paladares, etc., são emanações que vêm
chocar em nosso nervo olfativo ou em nosso paladar. É ainda mo-
vimento vibratório que se transmite ao cérebro. Podeis apenas
apreciar alguns desses movimentos através dos sentidos de que
fostes dotados, principalmente pela vista e pelo ouvido. Vós outros
acreditais (ingenuamente) ver e compreender a Natureza? Não
representa nada, quanto alcançais. Recebeis alguns dos movimen-
tos em atividade sobre o vosso átomo sublunar: eis tudo. Fora das
Camille Flammarion – Narrações do Infinito 77

impressões que apreendeis há uma infinidade de outras que não


podeis alcançar.
Quœrens – Perdoai, mestre! porém esse novo aspecto da Natu-
reza não me parece bastante claro para que o possa bem compreen-
der. Detalhai...
Lúmen – O aspecto, para vós, efetivamente é novo, mas uma
reflexão atenta fará que o assimileis. O som é formado por vibra-
ções que, executando-se no ar, vêm ferir a membrana do vosso
tímpano acústico e vos dão a impressão de tons diversos. O homem
não percebe todos os sons. Quando as vibrações são muito lentas
(aquém de 40 por segundo), o som é muito baixo; a orelha não o
apreende. Quando as vibrações são demasiado rápidas (acima de
36.000 por segundo), o som se torna muito agudo: vosso ouvido
não o capta mais. Acima ou abaixo desses dois limites do organis-
mo humano, existem ainda vibrações perceptíveis por outros seres,
certos insetos, por exemplo. Os mesmos raciocínios são aplicáveis
à luz. Os diferentes aspectos desta, as nuanças e as cores dos obje-
tos são identicamente devidos a vibrações que tocam vosso nervo
óptico e nele produzem a impressão de intensidades diversas da
luz. Vossos olhos não vêem tudo quanto poderia ser divisado por
outros órgãos. Quando as vibrações são muito lentas (inferiores a
458 trilhões por segundo), a luz é bastante fraca: vosso olhar não a
vê. Quando muito velozes (para além de 727 trilhões por segundo),
a luz ultrapassa a vossa faculdade orgânica de percepção e se torna
invisível para vós outros. Acima e abaixo dessas duas fronteiras,
vibrações etéreas existem perceptíveis por outros seres. Não co-
nheceis, pois nem vos é possível conhecer, senão as impressões
que possam fazer vibrar as cordas da vossa lira corporal que se
chamam nervo óptico e nervo auditivo.
Imaginai, por um instante, a extensão das coisas imperceptí-
veis para vós outros. Todos os movimentos ondulatórios que exis-
tem no universo, entre aqueles que dão a cifra de 36.000 e os que
Camille Flammarion – Narrações do Infinito 78

fornecem a de 458 trilhões (458.000.000.000.000) na mesma uni-


dade de tempo, não podem ser percebidos, nem vistos por vós, e
fatalmente permanecerão desconhecidos às vossas faculdades de
apreensão. Experimentai medir tal escala. A ciência contemporânea
começa a penetrar um pouco por esse mundo invisível, e sabeis que
acabam de mensurar as vibrações inferiores a 458 trilhões (os raios
caloríficos, invisíveis, infravermelhos) e as superiores a 727 tri-
lhões (raios químicos, também invisíveis ultravioleta). Os métodos
científicos, porém, têm capacidade apenas para estender um pou-
quinho a esfera da percepção direta, sem poder elastecê-la muito. O
homem permanece isolado no meio de infinito.
Mais ainda: inumeráveis outras vibrações existem na Natureza,
as quais, não estando em correspondência com a vossa organização
e não podendo ser recebidas por vós, permanecem sempre de vós
ignoradas. Se tivésseis outras cordas em vossa lira, dez, cem, mil...,
a harmonia da Natureza se traduziria mais completamente, fazendo
que entrassem em vibração, cada uma na gama correspondente.
Poderíeis atingir uma grande quantidade de fatos, que se desdo-
bram em vosso redor sem que deles possais adivinhar a existência
sequer, e, ao invés de duas notas dominantes, seria possível formar
idéia do conjunto do concerto. Sois, porém, de lastimável pobreza,
da qual não deveis duvidar, pois que é pobreza geral, em tal grau,
que impossível se torna a compareis com a riqueza de certos seres
superiores aos habitantes da Terra.
Os sentidos que possuís bastam para vos indicar a existência
possível de outros, não somente mais poderosos, porém até de
espécie completamente diversa. Pelo sentido do tato, por exemplo,
conseguis identificar a sensação do calor, mas é fácil imaginar a
existência de um sentido especial (análogo àquele pelo qual a luz
vos dá o aspecto dos objetos exteriores), tornando o homem capaz
de julgar da configuração, da substância, da estrutura interna e das
outras qualidades de um objeto, pela ação das ondas caloríficas
Camille Flammarion – Narrações do Infinito 79

deste emitidas. Idêntico raciocínio poderia ser formulado com


relação à eletricidade. Podeis de igual modo idealizar a existência
de um sentido que, sendo para os olhos o mesmo que o espectros-
cópio é para o telescópio, desse o conhecimento dos elementos
químicos dos corpos.
Assim, já sob o ponto de vista científico tendes bases suficien-
tes para imaginar dos modos de percepção de todo diferentes dos
característicos da Humanidade terrestre. Tais sentidos existem em
outros mundos, e bem assim uma infinidade de maneiras de perce-
ber a ação das forças da Natureza.
Quœrens – Confesso, ó mestre, singular e nova claridade se fez
em meu entendimento e as vossas explicações valeram para mim
por uma interpretação genial da realidade. Havia eu imaginado já a
possibilidade de semelhantes coisas, mas não as pude adivinhar,
envolto que me encontro ainda pelos sentidos terrestres. Bem certo
é que se necessita estar fora do nosso círculo para julgar verdadei-
ramente o conjunto das realidades. Assim, dotados que somos de
alguns sentidos restritos, podemos conhecer apenas os fatos acessí-
veis à percepção desses sentidos. O resto permanece, naturalmente,
ignorado. E será tal resto muito, ao lado do que conhecemos?
Lúmen – Esse resto é imenso, e quanto sabeis é quase nada.
Não somente vossos sentidos deixam de perceber os movimentos
físicos que, a exemplo da eletricidade solar e terrestre (cujos eflú-
vios se cruzam na atmosfera), o magnetismo dos minerais, das
plantas e dos seres, as afinidades dos organismos, etc., se tornam
invisíveis para vós; mas ainda percebem menos os movimentos do
mundo moral – as simpatias e antipatias, os pressentimentos, as
atrações espirituais, etc. Eu vos digo, em verdade: quanto sabeis, e
tudo que pudésseis conhecer, por intermédio dos sentidos terreais,
é nada em face do que existe.
Camille Flammarion – Narrações do Infinito 80

Esta verdade é tão profunda que se poderia fazer coexistirem


na Terra seres substancialmente diferentes de vós, desprovidos de
olhos e orelhas, e de qualquer dos vossos sentidos, mas dotados de
outros, capazes de perceber o que não percebeis, vivendo no mes-
mo mundo convosco, capazes de conhecer o que não podeis conhe-
cer e, ainda, formando da Natureza uma idéia completamente
estranha à que formais.
Quœrens – Isso agora excede de todo a minha mentalidade.
Lúmen – E melhor ainda, ó meu terrestre amigo, posso acres-
centar, com toda sinceridade, que as percepções por vós recebidas,
que constituem a base da vossa ciência, não são, mesmo, percep-
ções da realidade. Não. Luzes, claridades, cores, aspectos, tons,
ruídos, harmonias, sons diversos, perfumes, sabores, qualidades
aparentes dos corpos, etc., não são outra coisa além de formas.
Essas modalidades entram em vosso pensamento pelos portais dos
olhos e das orelhas, do olfato e do paladar, e vos apresentam apa-
rências, mas não a essência mesma das coisas... A realidade escapa
inteiramente ao vosso Espírito e estais em absoluto incapazes de
compreender o Universo... A matéria, ela própria, não é o que
julgais. Ela não tem absolutamente nada de sólida; vosso corpo
mesmo, um pedaço de ferro e de granito não têm mais solidez do
que o ar que respirais. Tudo isso é composto de átomos, que não se
tocam sequer e se acham em perpétuo movimento. A Terra, átomo
do Céu, corre no Espaço com a velocidade de 106.000 quilômetros
por hora, ou de oito vezes o seu diâmetro; mas, relativamente às
suas dimensões, cada um dos átomos que constituem vosso próprio
corpo e circulam em vosso sangue corre com velocidade ainda
maior. Se vossos olhos fossem bastante capazes de bem observar
essa pedra, eles não a veriam mais, porque a atravessariam. Reco-
nheço, porém, na perturbação íntima do vosso encéfalo, concentra-
do em circunvoluções fechadas, e nas agitações fluídicas que atra-
vessam vossos lóbulos cerebrais, que não compreendeis absoluta-
Camille Flammarion – Narrações do Infinito 81

mente nada das minhas revelações. Não prosseguirei, pois, neste


assunto, apenas esboçado aqui no intuito de mostrar quanto seria
profundo vosso erro de ligar importância às dificuldades oriundas
da vossa sensação terrestre e de vos deixar entender que nem vós,
nem homem algum sobre a Terra, podeis formar idéia, mesmo
aproximada, do Universo. O homem terrestre é um homúnculo.
Ah! se conhecêsseis os organismos que vibram sobre Marte ou
em Urânus; se vos fosse dado apreciar os sentidos em atividades
sobre Vênus e num satélite vizinho do anel de Saturno; se alguns
séculos de viagem vos tivessem permitido a observação das formas
da vida nos sistemas de estrelas duplas, sensações da vista nos sóis
coloridos, impressões de um sentido elétrico (vosso desconhecido)
nos grupos de sóis múltiplos; se uma comparação ultraterrestre, em
suma, vos tivesse fornecido elementos de novo conhecimento,
compreenderíeis que seres vivos possam ver, ouvir, sentir – ou,
para melhor expressar, conhecer a Natureza –, sem olhos, sem
orelhas, sem olfato; que um indeterminado número de sentidos
existem em outros mundos, sentidos essencialmente diferentes dos
vossos, e que há, dentro da Criação, uma quantidade incalculável
de fatos maravilhosos que vos é atualmente impossível imaginar.
Nessa contemplação geral do Universo, meu amigo, se apercebe da
solidariedade que une o mundo físico ao mundo psíquico; sabe-se
de mais alto a força íntima que eleva certas almas experimentadas
pelos grosseiros choques da matéria, porém depuradas pelo sacrifí-
cio, rumo às regiões solenes da luz espiritual; e compreende-se a
imensa felicidade reservada a esses seres, os quais, mesmo sobre a
Terra, conseguem eximir-se das paixões corporais.
Quœrens – Voltando à transmissão da luz no Espaço: será que
a luz não se perde, afinal? Será que o aspecto da Terra fica eterna-
mente visível e não se atenua, ao contrário, em razão do quadrado
da distância, para se aniquilar a um certo termo?
Camille Flammarion – Narrações do Infinito 82

Lúmen – Vossa expressão, afinal, não tem aplicação, atenden-


do-se a que não existe fim no Espaço. A luz se atenua, é verdade,
com a distância, os aspectos se tornam menos intensos, porém nada
se perde inteiramente. Um número qualquer, perpetuamente redu-
zido pela metade, por exemplo, jamais poderá ficar igual a zero. A
Terra não é visível por todos os olhos a uma determinada distância,
mas o seu aspecto existe nesse tempo, mesmo que não seja perce-
bido, e vistas espirituais podem distingui-lo. Ademais, a imagem
de um astro, levada nas asas da luz, se afasta por vezes a insondá-
veis profundezas nos obscuros desertos do vácuo.
Há no Espaço vastas regiões sem estrelas, países dizimados pe-
lo tempo, de onde os mundos se foram sucessivamente distancian-
do pela atração de focos exteriores. Ora, a imagem de um astro,
atravessando esses negros abismos, se encontra na condição análo-
ga à da imagem de uma pessoa ou objeto que o fotógrafo obtém na
câmara escura.
Não é impossível que essas imagens encontrem em tais vastos
espaços um astro obscuro (a mecânica celeste constatou a existên-
cia de muitos), de condição particular, cuja superfície (formada de
iodo, quiçá, a acreditar-se na análise espectral) seria sensibilizada e
capaz de fixar sobre ela mesma a imagem do mundo longínquo.
Assim viriam gravar-se os acontecimentos terrestres sobre um
globo obscuro. E se tal globo gira sobre si próprio, tal qual os
outros corpos celestes, apresentará sucessivamente suas diferentes
zonas à semelhança da face terrestre e tomará a feição de fotografia
contínua dos acontecimentos sempre subseqüentes. Demais, des-
cendo ou subindo, segundo um eixo perpendicular ao seu equador,
a linha onde as imagens se reproduzissem descreveriam, não mais
um círculo, e sim uma espiral, e, após terminar o primeiro movi-
mento de rotação, as imagens novas não coincidiriam com as anti-
gas e não se superporiam, e sim se seguiriam acima ou abaixo. A
imaginação poderá agora supor que tal mundo não é esférico, mas
Camille Flammarion – Narrações do Infinito 83

cilíndrico, e ver assim no Espaço uma coluna imperecível sobre a


qual se gravariam e enrolariam na superfície os grandes aconteci-
mentos da história terrestre... Eu próprio não vi tal realização tendo
deixado a Terra havia pouco tempo, mal pude encetar a contempla-
ção dos primeiros panoramas das maravilhas celestes. Assegurar-
me-ei proximamente da realidade desse fato, se se verificou dentro
da riqueza infinita das criações astrais, quer pela Natureza mesma,
quer pela indústria das suas humanidades longínquas.
Quœrens – Se o raio luminoso partido da Terra jamais se des-
trói, ó mestre! as vossas ações se tornam eternas?
Lúmen – Vós o dissestes. Um ato que se realizou não poderá
ser apagado e nenhuma potência terá força para o desfazer. Um
crime é praticado em pleno campo deserto. O criminoso se afasta,
permanece incógnito e supõe que o ato por ele realizado passou
para sempre. Lavou as mãos; arrependeu-se; acredita sua ação
apagada. Em realidade, porém, nada se destrói. No momento em
que o crime foi consumado, a luz o apanhou e o transmitiu pelo céu
com a rapidez do relâmpago; foi incorporado em um raio de luz
eterna, e eternamente se transmitirá no infinito. Eis uma boa ação
praticada ocultamente; o benfeitor a escondeu: a radiação, visível
ou não, dela se apossou. Longe de ser esquecida, subsistirá para
todo o sempre.
Napoleão ceifou em plena floração da existência cinco milhões
de homens, na média de seis lustros de idade, os quais deviam
viver mais sete lustros, segundo os cálculos das probabilidades e
das leis da vida humana. Isso vale por 175 milhões de anos que ele
destruiu em vidas, sendo metade, aproximadamente, apenas para
satisfazer sua ambição pessoal. Ele merecia, em expiação, ser
conduzido no raio de luz que partiu das planícies de Warteloo, em
18 de Junho de 1815, distanciar-se no Espaço com a mesma velo-
cidade da mesma luz, e ter constantemente ante os olhos o momen-
to crítico em que viu esboroar-se, para sempre, a fogueira da sua
Camille Flammarion – Narrações do Infinito 84

vaidade, e sofrer, sem trégua, a dor do mesmo desespero, e ficar


preso a esse raio de luz durante os milhares de séculos destruídos
pela sua responsabilidade. Realmente, sem padecer tal vertiginosa
viagem, ele tem constantemente ante a visão esse indelével pesade-
lo.
E se vos fosse dado entrever o que se passa na ordem moral,
tão nitidamente quanto observais o que ocorre na ordem física,
reconheceríeis vibrações e transmissões de uma outra natureza que
fixam, nos arcanos do mundo espiritual, as ações e até os mais
secretos pensamentos.
Quœrens – Vossas revelações são espantosas, ó Lúmen! Deste
modo, são nossos destinos intimamente ligados à construção do
próprio Universo. Eu pensei, algumas vezes, no problema especu-
lativo de uma comunicação qualquer entre os mundos, com o auxí-
lio da luz. Muitos físicos têm idealizado a possibilidade de se
estabelecer um dia comunicações entre a Terra e a Lua, e mesmo
entre os planetas, por meio de sinais luminosos. Mas, se pudesse
fazer sinais da Terra a uma estrela, e se a luz respectiva empregas-
se, por exemplo, um século de percurso, o sinal da Terra não che-
garia ao seu destino antes desse tempo e a resposta não nos viria
antes de igual intervalo. Decorreriam dois séculos entre a pergunta
e a resposta. O observador terrestre teria morrido de há muito,
quando chegasse ao observador a sua mensagem sideral, e a este
teria, sem dúvida, acontecido o mesmo, quando a sua resposta
fosse lá recebida!...
Lúmen – Isso seria, com efeito, uma conversação entre vivos e
mortos.
Quœrens – Perdoareis, mestre, uma derradeira questão, um
tanto indiscreta... uma última, pois vejo Vênus empalidecer e sei
que vossa voz vai cessar de se fazer ouvir.
Camille Flammarion – Narrações do Infinito 85

Se as ações são de gênero a se tornar visíveis das regiões eté-


reas, poderemos ver, após nossa morte, não somente nossas pró-
prias ações, mas ainda as dos nossos semelhantes, aquelas que nos
interessem, bem entendido.
Por exemplo, um par de almas gêmeas e sempre unidas gostará
de rever durante séculos as doces horas que passaram juntas na
Terra; distanciar-se-á no Espaço com a velocidade igual à da luz a
fim de manter ante o olhar a mesma hora ditosa. Por outras pala-
vras, um esposo seguirá com interesse a vida completa de sua
companheira e, no caso de surgir algum particular detalhe inespe-
rado, ele poderá examiná-lo com detença, e bem assim quantos lhe
pareçam interessantes à sua sensibilidade... Poderá mesmo, se a
companheira desencarnada residir em alguma região vizinha, atraí-
la para observarem em comum tais fatos retrospectivos. Nenhuma
negativa poderia prevalecer ante esse flagrante testemunho. Quem
sabe se os Espíritos se proporcionam assim o espetáculo de alguns
fatos íntimos?
Lúmen – No céu, ó meu terrestre amigo, pouco se apreciam es-
sas lembranças de ordem material, e muito me admiro de que este-
jais a isso preso ainda. O característico que vos deve particular-
mente impressionar, no conjunto dos fatos que constituem as nos-
sas duas palestras, é que, em virtude das leis da luz, podemos rever
os acontecimentos depois de ocorridos, e até mesmo quando depois
de consumados, se hajam dissipado, em realidade.
Quœrens – Acreditai, mestre, que essa verdade jamais se apa-
gará da minha memória. Foi precisamente esse ponto que me ma-
ravilhou. Esquecei a minha digressão anterior. Para vos falar a
verdade, o que ultrapassa de muito a minha imaginação, desde a
vossa primeira palestra, foi o pensar que a duração da viagem do
Espírito pode ser não somente nula, negativa, mas ainda retrógrada.
Tempo retrogrado! duas palavras que decerto estranham o encon-
trar-se juntas. Ousa-se acreditar? Partis hoje para uma estrela, e
Camille Flammarion – Narrações do Infinito 86

chegais ontem! Que disse eu? ontem? chegareis há 26.300 dias. E


ireis mais e mais longe e lá chegareis há um século! Seria necessá-
rio reformar a gramática.
Lúmen – É incontestável. Falando em estilo terrestre, não há
erro em exprimir-se assim, pois que a Terra está em 1793, etc.,
para o mundo onde chegamos. Aliás, tendes sobre o vosso globo
mesmo certos paradoxos aparentes que, de longe, dão uma idéia
disso. Por exemplo, o do recado telegráfico, que, enviado de Paris
ao meio-dia, chega a Nova Iorque, às 6 horas e 55 minutos da
manhã.
Mas, não são as aplicações particulares ou os aspectos curiosos
que convém guardeis em vosso espírito, e sim a revelação de que
eles são a forma da metafísica da qual se tornam a expressão sensí-
vel. Sabeis que o tempo não é uma realidade absoluta, mas somente
uma transitória medida causada pelos movimentos da Terra no
sistema solar. Considerado pelo olhar da alma e não pelos olhos do
corpo, esse quadro não fictício, mas real, da vida humana, tal qual
foi sem dissimulação possível, atinge, por um lado, o domínio da
teologia – nesse em que se explica fisicamente um mistério ainda
inexplicado: o do julgamento particular, e feito por nós mesmos, de
cada um após a morte. Sob o ponto de vista do conjunto, o presente
de um mundo não é uma realidade momentânea, que desaparece
logo em seguida à sua aparição, um aspecto sem consistência, um
alçapão no qual o futuro – atingido de catarata – tomba perpetua-
mente no passado, um plano matemático no Espaço; é, bem ao
contrário, urna realidade efetiva que se distancia deste mundo com
a rapidez da luz e, embrenhando-se gradualmente no infinito, se
converte assim num presente eterno.
A realidade metafísica desse vasto problema é tal, que pode ser
concebido no grau da onipresença do Universo em toda a sua dura-
ção. Os acontecimentos se esvaem para o local que lhes deu ori-
gem, mas perduram no Espaço. Essa projeção sucessiva e sem fim,
Camille Flammarion – Narrações do Infinito 87

de todos os fatos consumados em cada um dos mundos, se efetua


no seio do Ser infinito, cuja ubiqüidade toca por esse modo cada
coisa em uma permanência eterna.
Os acontecimentos realizados na superfície da Terra, desde sua
origem, são perceptíveis no Espaço a distâncias tanto mais longín-
quas quanto mais são eles recuados. Toda a história do globo e a
vida de cada um dos seus habitantes poderiam ser, pois, vistas à
vez, pelo olhar que abrangesse esse Espaço. Compreendemos
opticamente, desse modo, que o Espírito eterno, presente em toda a
parte, veja todo o passado em um mesmo momento. O que é verda-
de em nossa Terra é verdade de todos os mundos do Espaço. As-
sim, a história inteira de todos os universos está presente à vez na
universal ubiqüidade do Criador. Que olhos transcendentes possam
realmente ver semelhante história, pouco importa: ela existe, ela
está inscrita.
Posso ajuntar que Deus conhece todo o passado, não somente
por essa vista direta, mas ainda pelo conhecimento de cada coisa
presente. Se um naturalista, qual o foi Cuvier, soube reconstruir
espécies animais desaparecidas, apenas com o auxílio de ossamen-
tas, o Autor da Natureza conhece pela Terra atual a Terra do passa-
do, o sistema planetário e o Sol da época pretérita, e todas as con-
dições de temperatura, de agregações, de combinações pelas quais
os elementos chegaram a formar os compostos existentes atualmen-
te.
De outra parte, o futuro é também completamente presente a
Deus em seus germens atuais quanto o passado o é em seus frutos.
Cada acontecimento é ligado de maneira indissolúvel com o passa-
do e o futuro. Este será também atraído pelo presente, e portanto
logicamente deduzível, e existe tão exatamente quanto o passado
foi inscrito para que existisse e fosse reconhecível.
Camille Flammarion – Narrações do Infinito 88

Para o Absoluto, o tempo não existe; o passado e o futuro são


lidos na página aberta de um presente perpétuo.
Mas, repito, o ponto capital das nossas palestras foi fazer-se
compreender que a vida passada dos mundos e dos seres existe
sempre no Espaço, graças à transmissão sucessiva da luz através
das vastas regiões do Infinito.
Camille Flammarion – Narrações do Infinito 89

Quarta narrativa

Anteriores vitae

Depois do dia em que se deu o nosso último encontro, ó Lú-


men, 104 semanas se escoaram. Durante esse período, insensível
para vós – habitantes do espaço eterno, porém muito sensível para
nós outros – os da Terra, elevei bastantes vezes meu pensamento
rumo aos grandes problemas nos quais me iniciastes e novos hori-
zontes se desvendaram ante a visão da minha alma. Sem dúvida
também, desde aquela vossa partida da Terra, as observações e
estudos vossos se acresceram sobre um campo de pesquisas cada
vez mais vasto. Tendes, de certo, inumeráveis descobertas a entre-
gar à minha inteligência melhor preparada. Ah! se sou digno, e se
as posso compreender, narrai, ó Lúmen, as viagens celestes que
conduziram vosso Espírito no rumo das esferas superiores, das
verdades desconhecidas que vos foram reveladas, das perspectivas
que vos foram abertas, dos princípios que vos foram ensinados
sobre o misterioso assunto do destino dos homens e dos seres.
Lúmen – Preparei vossa alma, meu caro e velho amigo, para
receber essas impressões estranhas, que nenhum espetáculo terres-
tre jamais produziu, nem seria capaz de engendrar. É necessário,
não obstante, que torneis vosso Espírito inteiramente livre de qual-
quer preconceito terrestre. Quanto vou narrar, causará pasmo, mas
recebei tudo, primeiramente com atenção, qual se fosse uma verda-
de constatada, e não com a idéia de romance. É um primeiro esfor-
ço que reclamo do vosso estudioso ardor. Quando houverdes com-
preendido (e compreendereis, se empregardes nisso um critério
matemático e uma alma livre), concebereis que todos os fatos
constitutivos da nossa existência ultraterrestre são, não somente
Camille Flammarion – Narrações do Infinito 90

possíveis, mas ainda verdadeiros e muito mais em harmonia íntima


com as nossas faculdades intelectuais já manifestadas sobre a
Terra.
Quœrens – Ficai certo, ó Lúmen, de que estou nisto de espírito
liberto, despido de qualquer servidão intelectual, e disposto arden-
temente a escutar essas revelações que ouvido humano jamais
ouviu.
Lúmen – Os acontecimentos que se farão objeto desta narrativa
não têm somente a Terra e os astros vizinhos por cenário, mas se
estendem pelos campos imensos da Astronomia sideral e farão que
conheçamos verdadeiras maravilhas. Sua explicação será dada, tal
qual as precedentes, pelo estudo da luz – ponto mágico projetado
de um astro a outro, da Terra ao Sol, da Terra às estrelas –, da luz,
movimento universal que enche os espaços, sustém os mundos em
suas órbitas e constitui a vida eterna da Natureza. Preparai-vos com
o maior cuidado para ter diante dos olhos a transmissão sucessiva
da luz no Espaço.
Quœrens – Sei que a luz, esse agente que torna os objetos visí-
veis ao nosso órgão visual, não se transmite instantaneamente de
um ponto a outro, mas sucessivamente, tal qual tudo que se move.
Sei que voa na razão de 300.000 quilômetros por segundo e que
percorre três milhões em 10 segundos, ou seja, dezoito milhões em
cada minuto. Sei que emprega mais de oito minutos em transpor a
distância de 149 milhões de quilômetros que nos separam do Sol.
A Astronomia moderna tornou essas noções muito familiares.
Lúmen – E vós imaginais exatamente o movimento ondulatório
da luz?
Quœrens – Eu o creio. Comparo-o, de boa mente, com o do
som, ainda que aquele se processe numa escala incomparavelmente
mais vasta. Ondulações por ondulações, o som se propaga no ar.
Quando os sinos vibram em continuado toque, seu mugido sonoro,
Camille Flammarion – Narrações do Infinito 91

que é percebido no mesmo momento em que o badalo bate por


aqueles residentes em redor da igreja, só é recebido um segundo
depois pelos que se encontram a três hectômetros e meio; dois
segundos por quantos se achem além de sete hectômetros; três
segundos mais tarde por aqueles estacionados à longitude de um
quilômetro da igreja. Assim, o som chega, sucessivamente, de
lugar em lugar, tão longe quanto possa ir. De igual modo, a luz vai,
sucessivamente, de uma região mais vizinha a outra mais distante
no Espaço, e se afasta dessa maneira, sem se extinguir, a longitudes
que participam do infinito. Se pudéssemos ver, da Terra, um acon-
tecimento que se desenrolasse na Lua; se, por exemplo, tivéssemos
bons e eficientes instrumentos para perceber daqui a queda de um
fruto tombado de uma árvore na superfície da Lua, não veríamos
esse fato imediatamente à sua realização, mas 1 segundo e um
quarto depois, por isso que, para vir da distância da Lua, a luz
emprega 1 segundo e 1/4, aproximadamente. Se pudéssemos ver,
igualmente, um acontecimento ocorrido sobre um mundo situado
dez vezes mais longe do que a Lua, só o perceberíamos passados
13 segundos da sua realização. Se esse mundo estivesse cem vezes
mais afastado da Lua, tomaríamos conhecimento do fato 130 se-
gundos decorridos da sua efetivação; mil vezes mais distante, só
depois de 1.300 segundos, ou 21 minutos e 40 segundos depois. E
assim progressivamente, na proporção das longitudes.
Lúmen – É exato, e sabeis ser essa a razão pela qual o raio lu-
minoso, enviado da estrela Capela à Terra, emprega 864 meses
para atingir tal destino. Se, pois, recebemos hoje o aspecto lumino-
so da estrela, dali saído há 3.744 semanas, reciprocamente os habi-
tantes de Capela só poderão ver, hoje, a Terra de há 864 meses
antes. A Terra reflete no Espaço a luz que recebe do Sol, e de longe
parece brilhante, tal qual vos parecem Vênus e Júpiter, planetas
iluminados pelo mesmo Sol que a ilumina. O aspecto luminoso da
Terra, sua fotografia, viaja no Espaço à razão de 300.000 quilôme-
Camille Flammarion – Narrações do Infinito 92

tros por segundo, e só chega à distância da estrela Capela depois de


3.744 semanas de marcha ininterrupta. Eu vos recordo esses ele-
mentos para que, tendo-os bem exata e, solidamente fixado no
Espírito, estejais apto para compreender, sem esforço, os aconteci-
mentos ocorridos em minha vida ultraterrestre depois da nossa
última palestra.
Quœrens – Esses princípios de óptica são claramente estabele-
cidos por mim. No dia seguinte ao da vossa morte, em Outubro de
1864, quando vos acháveis (segundo me haveis confidenciado)
rapidamente transferido a Capela, fostes surpreendido ao ver a cena
dos astrônomos-filósofos dali observando a Terra de 1793 e um
dos atos mais ousados da Revolução Francesa. Não fostes menos
surpreendido revendo-vos criança, a correr nas ruas de Paris. E,
aproximando-vos da Terra, a uma distância menor do que a de
Capela, ficastes na zona onde chegava a fotografia terrestre partida
à época da vossa infância, e vos revistes na idade de pouco mais de
um lustro, não em reminiscência, mas em realidade. De vossas
narrações anteriores, é o que tenha maior dificuldade de crer, isto é,
de compreender e de apreender com exatidão.
Lúmen – O que desejo fazer-vos compreender agora é bem
mais surpreendente ainda; porém, necessário se torna admitir os
antecedentes para ouvir eficazmente o que se vai seguir. Distanci-
ando-me de Capela e aproximando-me da Terra eu revi as minhas
3.744 semanas de existência terrestre, minha vida inteira, direta-
mente, tal qual se desdobrou, isso porque, avizinhando-me da
Terra, tinha ante mim zonas sucessivas de aspectos terrestres,
trazendo na sua extensão a história visível do nosso planeta, inclu-
sive a de Paris e da minha pessoa ali residente. Percorrendo retros-
pectivamente, em um dia, o caminho que a luz vence em 864 me-
ses, havia eu revisto toda a minha existência em 24 horas e chegava
a tempo para o meu enterro.
Camille Flammarion – Narrações do Infinito 93

Quœrens – Equivale a, retornando de Capela para a Terra, ha-


verdes encontrado 72 fotografias escalonadas de ano em ano. A de
maior longitude da Terra, aquela mais remotamente saída, a que se
encontrava à altura de Capela, mostrava 1793; a segunda, que
partira um ano depois, e ainda não chegada lá, levava a imagem de
1794; a décima, 1803; a trigésima sexta, chegada apenas à metade
do caminho, dava o aspecto de 1829; a quinquagésima, 1843; a
setuagésima primeira, 1864.
Lúmen – É impossível melhor assimilar essa realidade, que pa-
rece misteriosa e incompreensível ao primeiro golpe de vista.
Agora eu vos posso narrar quanto me aconteceu em Capela, depois
de haver revisto minha existência terrestre.
Camille Flammarion – Narrações do Infinito 94

I
Enquanto estava, havia pouco tempo ainda (mas não sei ex-
pressar esse tempo em rotações terrestres), ocupado, em meio de
melancólica paisagem de Capela e no prólogo de uma noite trans-
parente, a contemplar o céu estrelado, e nesse céu a estrela que é o
vosso sol terreal, e na vizinhança dessa estrela o pequeno planeta
azulado que é a vossa pátria; enquanto observava uma das cenas da
minha primeira infância, minha jovem mãe, sentada no meio de um
jardim, trazendo em seus braços uma criança (meu irmão) e tendo
ao lado outra criança que não contava ainda mais de duas primave-
ras (minha irmã), e um rapazinho com o dobro de idade desta (eu);
enquanto eu me via nessa idade em que o homem não tem ainda
consciência da vida intelectual, e traz sem embargo disso na fronte
o gérmen da sua vida inteira; enquanto pensava na singular reali-
dade que me mostrava a mim mesmo no início da minha carreira
terreal, sentia a atenção desviada do vosso planeta por um poder
superior, e meus olhares dirigirem-se a um outro ponto do céu, que
me pareceu ligado à Terra e à minha carreira nesse planeta por
algum liame oculto. Não pude evitar ficasse minha vista presa a
esse novo ponto do céu: uma potência magnética a acorrentava.
Várias vezes ensaiei retirar dali meu olhar e reconduzi-lo à Terra
(que tanto estimo), mas, obstinadamente, voltava à estrela desco-
nhecida.
Essa estrela, na qual a minha visão buscava, por assim dizer,
instintivamente adivinhar alguma coisa, faz parte da constelação da
Virgem, asterismo cuja forma varia um pouco, visto de Capela. É
uma estrela dupla, isto é, a associação de dois sóis, um de brancura
argêntea, outro amarelo-ouro vivo, que giram em torno mútuo,
numa revolução de sete quartos de século. Vê-se essa estrela a olho
nu, da Terra, e está inscrita sob a letra Gama (grega) da constelação
da Virgem. Em volta de cada um dos sóis que a constituem, há um
Camille Flammarion – Narrações do Infinito 95

sistema planetário. Minha vista fixou-se sobre um dos planetas do


sol de ouro.
Nesse planeta existem vegetação e animais, à semelhança do
que ocorre na Terra; suas formas se aproximam das terrestres,
posto que no fundo os organismos estejam aclimados em modo
bem diferente. Há um reino animal análogo ao vosso; peixes nos
respectivos mares e quadrúpedes na sua atmosfera, onde os seres
humanos voam, naturalmente, em razão da densidade atmosférica e
do fraco peso. Os homens desse planeta apresentam aproximada-
mente a conformação humana terreal. Embora o crânio seja despi-
do de cabeleira; tenham nas mãos três polegares oposíveis, grandes
e finos, em lugar de cinco dedos, e três outros no calcanhar, ao
invés de nas palma dos pés; as extremidades dos braços e das
pernas flexíveis qual se fossem de borracha; dois olhos, nariz e
boca, o que torna suas fisionomias parecidas às dos terráqueos.
Não possuem duas orelhas abertas lateralmente à cabeça, mas
apenas uma, em forma de pavilhão cônico, instalado na parte supe-
rior do crânio, à guisa de pequenino chapéu. Vivem em sociedade e
não se exibem nus. Já vedes que, em suma, diferem pouco, exteri-
ormente, dos habitantes da Terra.
Quœrens – Existem, pois, em outros mundos seres tão diferen-
tes de nós outros, para que estes, mau grado tais dessemelhanças,
mereçam ser comparados conosco?
Lúmen – Uma distinção profunda, inimaginável para vós, sepa-
ra em geral as formas animadas dos diferentes globos. Essas for-
mas são o resultado dos elementos especiais a cada orbe e das
forças que o regem: matéria, densidade, peso, calor, luz, eletricida-
de, atmosfera, etc., diferem essencialmente de um mundo a outro.
Em um idêntico sistema, essas formas já diferem. Assim, os ho-
mens de Titã, no sistema de Saturno, e os do planeta Mercúrio não
se assemelham em nada aos homens da Terra; e aquele que os visse
pela primeira vez não identificaria neles nem cabeça, nem mem-
Camille Flammarion – Narrações do Infinito 96

bros, nem sentidos. Os do sistema planetário da Virgem, rumo aos


quais meu olhar estava voltado com persistência toda passiva,
assemelhavam-se, ao contrário, pela sua forma, a habitantes do
globo terrestre. Igualmente se aproximavam pelo estado intelectual
e moral. Algo inferiores a nós outros, estão colocados nos degraus
da escada das almas que precedem imediatamente aos que pertence
a Humanidade terráquea, no conjunto total.
Quœrens – A Humanidade terrestre não é homogênea em seu
valor intelectual e moral, mas me parece muito diversificada. Dife-
renciamo-nos bastante, nós outros os europeus, das tribos da Abis-
sínia e dos selvagens das ilhas da Oceânia. Qual o povo que, para
vós, representa o tipo grau médio da inteligência sobre o orbe
terráqueo?
Lúmen – O povo árabe, capaz de produzir os Képleres, os
Newtons, os Galileus, os Arquimedes, os Euclides, os d'Alembert,
e, por outro aspecto, tocando, nas suas raízes, as hordas primitivas
vinculadas aos rochedos de granito. Não é necessário, porém,
escolher aqui um povo para protótipo; é preferível considerar o
conjunto da civilização moderna. Além disso, não existe tão grande
distância, quanto poderíeis supor, entre o entendimento de um
preto e o de um cérebro da raça latina. De qualquer modo, se vos é
indispensável, em absoluto, urna comparação, eu vos direi que os
homens desse planeta da Virgem se encontram quase na situação
intelectual dos povos escandinavos.
A diferença mais essencial existente entre tal mundo e a Terra
está em não haver ali sexos, nem nas plantas, nem nos animais,
nem na Humanidade. A geração dos seres se processa espontanea-
mente, em resultado natural de certas condições fisiológicas reuni-
das em algumas férteis ilhas do planeta, e os filhos não se formam
em órgãos femininos, conforme acontece com as mães terrenas.
Explicar semelhante processo seria inútil, atendendo a que não
podeis julgar e compreender, fora das idéias terrestres, os fatos
Camille Flammarion – Narrações do Infinito 97

daquele planeta, completamente distintos. O resultado de tal situa-


ção orgânica é que o matrimônio não existe, em qualquer modali-
dade, nesse planeta, e que as amizades entre os humanos jamais
têm a mescla das atrações carnais que sempre se manifestam aqui,
mesmo nas relações amistosas mais puras entre duas pessoas de
sexos diferentes. Vós vos lembrais, de resto, que durante o período
protozóico os habitantes da Terra eram todos surdos-mudos e sem
sexo. A divisão dos sexos só se fez relativamente tarde na história
da Natureza, nos animais e nas plantas. Atraídos, conforme vos
disse, para aquele longínquo planeta, os olhos de minha alma exa-
minaram atentamente a respectiva superfície. Demoraram-se em
particular, e sem que me apercebesse da razão predominante, sobre
uma ilha branca, ao longe uma região coberta de neve; mais é bem
provável não se tratasse de neve, por inverossímil que pudesse
existir água nesse planeta, nos mesmos estados físicos e químicos
peculiares à Terra. Na orla dessa cidade, uma avenida conduzia a
vizinho bosque, formado de árvores amarelas. Não tardei em assi-
nalar especialmente na dita avenida três personagens que pareciam
dirigir-se lentamente para o bosque. O pequeno grupo era formado
por dois amigos, que pareciam conversar intimamente um com o
outro, e por um ser, dessemelhante deles, pela vestimenta vermelha
e pela carga que conduzia, aparentando tratar-se de um criado,
escravo ou animal doméstico de ambos.
Enquanto mirava curiosamente as duas personagens principais,
a da direita elevou o olhar para o céu, tal como se fosse atraída do
alto por um balão e fixou-se precisamente para Capela, estrela que
sem dúvida ela não divisava, pois a cena se passava durante o dia
para a dita pessoa. Oh! meu velho amigo, jamais esquecerei a
impressão súbita que me causou tal vista... Chego a duvidar de
mim próprio, quando em tal cogito...
Camille Flammarion – Narrações do Infinito 98

Esse ser do planeta da Virgem que me olhava sem me suspeitar


presente, era... ousarei vo-lo dizer, sem outro preâmbulo? Pois
bem: era eu...
Quœrens – De que modo podia ser – vós?
Lúmen – Eu próprio, em pessoa. Reconheci-me instantanea-
mente, e bem podeis avaliar da minha surpresa!
Quœrens – Sem dúvida! Mesmo porque não compreendo, dis-
so, absolutamente nada.
Lúmen – O fato é que aí está uma situação completamente no-
va e que exige explicação.
Era eu, em verdade, e não tardei em reconhecer meu rosto e
minha forma de outrora, mas ainda, na pessoa que andava a meu
lado, um amigo íntimo, o meu caro Kathleen, que foi o meu com-
panheiro de estudos nesse planeta. Eu nos segui com o olhar até ao
bosque dourado, através de valezinhos deliciosos, sombreados de
áureas cúpulas, de árvores cobertas de largas ramarias de nuanças
alaranjadas e por entre bordos de folhagens cor de âmbar! Uma
fonte murmurante gorjeava sobre a areia fina e nos sentamos às
suas margens. Recordo as doces horas que passamos juntos, dos
belos e muitos 365 dias escoados nessa terra longínqua, das nossas
confidências muito fraternais, das impressões mútuas que experi-
mentávamos ante as formosas paisagens do bosque, em face das
planícies cheias de silêncio, das colinas vaporosas, dos pequenos
lagos que sorriam do céu. Nossas aspirações se elevavam rumo à
grande e santa Natureza, e adorávamos Deus em suas criações.
Com que ventura eu revi essa fase da minha precedente existência
e reatei a corrente dourada interrompida sobre a Terra! Em verda-
de, meu caro Quœrens, era bem eu quem vivia, então, nesse planeta
da Virgem. Eu me via realmente, e podia prosseguir observando a
série das minhas ações e rever diretamente os melhores momentos
dessa existência já longínqua. Além disso, se houvesse duvidado da
Camille Flammarion – Narrações do Infinito 99

minha identidade, a incerteza teria sido desfeita durante a observa-


ção, porque, enquanto eu me considerava, vi sair do bosque e apro-
ximar-se o meu irmão dessa existência, Berthor, que veio reunir-se
à nossa conversação, no beiral da fonte murmurante.
Quœrens – Mestre, não consigo compreender de que maneira
vos pudestes ver, em tal realidade, sobre esse planeta da Virgem.
Tínheis o dom da ubiqüidade? Podíeis estar, à semelhanças de
Francisco de Assis ou Apolônio de Tiana, em dois sítios simultane-
amente ?
Lúmen – De modo algum. Examinando as coordenadas astro-
nômicas do sol Gama da Virgem, e conhecendo sua paralaxe, vista
de Capela, cheguei a constatar que a luz desse sol não podia em-
pregar menos de 2.064 meses para atravessar a distância que o
separa de Capela.
Eu recebia, pois, naquela atualidade, o raio luminoso saído
desse mundo 8.944 semanas antes. Ora, verifica-se que, a essa
época, eu vivia precisamente na face do planeta de que se trata, e
estava no meu vigésimo ano de existência.
Verificando as idades, e comparando os diferentes estilos pla-
netários, reconheci, com efeito, haver nascido nesse mundo da
Virgem no ano 45.904 (correspondente ao ano 1677 da era cristã
da Terra), e morrido de acidente no ano 45.913, que corresponde
ao ano 1767. Cada ano desse planeta equivale a 10 dos nossos. No
momento em que me via, conforme vos narrei, parecia contar 20 de
idade terrestremente falando; mas, no estilo do dito planeta, conta-
va apenas 2. Atinge-se ali muitas vezes a 15, que passa por ser o
limite da vida em tal globo, e equivale a século e meio das eras
terrestres.
O raio luminoso, ou, para falar mais exatamente, a fotografia
desse mundo da Virgem – empregando 2.064 meses terráqueos
para atravessar a imensa extensão que o separa de Capela, e estan-
Camille Flammarion – Narrações do Infinito 100

do eu neste último, eu a recebia somente agora com a imagem da


constelação da Virgem de 8.944 semanas antes. E, ainda que as
coisas se hajam vigorosamente modificado depois; que muitas
gerações se hajam sucedido; que eu próprio tenha morrido e, de-
pois dessa época, tido tempo de renascer uma nova vez, e viver
quase três quartos de século sobre a Terra, contudo, a luz havia
empregado todo esse interregno em percorrer seu trajeto da Virgem
a Capela, e trazia-me impressões frescas de tais acontecimentos
desaparecidos.
Quœrens – Estando demonstrada a duração do trajeto da luz,
nada mais tenho a objetar quanto a tal ponto. Não posso, no entan-
to, furtar-me à confissão de que semelhante singularidade ultrapas-
sa tudo quanto eu podia esperar da faculdade criadora da imagina-
ção.
Lúmen – Não existe imaginação aqui, meu amigo, e sim uma
realidade eterna e sagrada que tem seu lugar respeitável no plano
da criação universal. A luz de todo astro, direta ou refletida, de
alguma sorte diz o aspecto de cada sol e de cada planeta, expandin-
do-se no Espaço segundo a velocidade que conheceis, e o raio
luminoso contém tudo quanto existiu. E porque nada se perde, a
história de cada mundo, contida na luz que dele emana incessante-
mente e sucessivamente, atravessa por toda a eternidade o espaço
infinito, sem que jamais possa ser aniquilada. O olhar humano não
a saberia ler. Há, porém, olhos superiores aos terrestres. Se uso
nestas narrativas os vocábulos ver e luz, é apenas para me tornar
compreensível; mas, conforme assinalamos em palestra anterior,
falando de modo absoluto, não existe luz: há vibrações do éter; não
existe vista: há percepções do pensamento. Além disso, mesmo na
Terra, quando examinais no telescópio, ou melhor ainda, no espec-
troscópio, a natureza de uma estrela, sabeis muito bem não estar
ante os olhos o aspecto atual, mas o passado, que um raio de luz
vos trouxe, partido de lá talvez há 100 séculos... Não ignorais
Camille Flammarion – Narrações do Infinito 101

também que um certo número de astros, dos quais vós outros,


astrônomos da Terra, buscais atualmente determinar os elementos
físicos e numéricos, e que brilham luminosamente sobre vossas
cabeças, podem muito bem não mais existir desde o início do mun-
do terráqueo.
Quœrens – Sabemos. Assim, vistes desenrolar-se, em retroces-
so, vossa existência anterior – 864 meses depois de transcorrida.
Lúmen – Melhor dizendo, uma fase dessa existência. Eu teria
podido, porém, evidentemente, revê-la por inteiro, aproximando-
me daquele planeta, a exemplo do que fizera para com a minha
existência terrena.
Quœrens – De sorte que haveis revisto na luz vossas duas úl-
timas encarnações?
Lúmen – Exatamente, e mais, eu as vi e as vejo ainda juntas,
simultaneamente, de algum modo, uma ao lado da outra.
Quœrens – Vós as revedes ao mesmo tempo?
Lúmen – O fato é fácil de compreender. A luz da Terra des-
pende 864 meses para atingir Capela. A do planeta da Virgem
(quase vez e meia mais distante de Capela) gasta 2.064. Ora, vi-
vendo eu há 864 meses sobre a Terra e um século antes em outro
planeta, essas duas épocas me chegaram precisamente juntas em
Capela. Tenho, pois, diante de mim, olhando para os ditos mundos,
minhas duas últimas existências, que se desenrolam tal como se eu
não estivesse aqui para as ver, e sem que me seja possível mudar
coisa alguma dos atos em via de realização, em uma ou outra, de
vez que tais atos, embora presentes e futuros para minha observa-
ção atual, ocorreram em realidade.
Quœrens – Estranho! Verdadeiramente, bem estranho!
Lúmen – O que mais me impressiona nessa observação inespe-
rada das minhas duas existências – desdobradas juntas e presente-
Camille Flammarion – Narrações do Infinito 102

mente em mundos diferentes, e o que surpreende mais singular-


mente minha atenção, é que essas vidas se assemelham da maneira
mais bizarra. Vejo que tive mais ou menos os mesmos gostos,
numa e noutra, idênticas paixões, iguais erros. Nem criminoso,
nem santo, na primeira e na segunda. Demais (coincidência admi-
rável!) vi, na primeira, paisagens análogas às que tenho visto sobre
a Terra. Assim, tenho a explicação do gosto inato que trouxe,
quando vim à Terra, pela poesia do Norte, pelas narrativas legendá-
rias de Ossian, pelas paisagens sonhadoras da Irlanda, as monta-
nhas e as auroras boreais. A Escócia, a Escandinávia, a Suécia, a
Noruega, com os seus fiordes, o Spitzberg com as suas solitudes
me atraíram. As velhas torres arruinadas, os rochedos e as gargan-
tas selvagens, os pinheiros sombrios, sob os quais murmuram os
ventos do norte, tudo isso me parecia ter na face da Terra alguma
relação oculta com os meus pensamentos íntimos. Quando vi a
Irlanda, pareceu-me que ali havia eu já vivido. Quando fiz pela
primeira vez a ascensão do Rigi e do Finsterahorn, e assisti ao
despontar esplêndido do Sol nos píncaros nevados dos Alpes,
pareceu-me ter visto outrora esses aspectos. O espectro de Brocken
não me pareceu novidade. É que eu havia habitado anteriormente
regiões análogas no planeta da Virgem. Mesma vida, iguais ações,
idênticas circunstâncias, mesmas condições. Analogias, analogias!
Quase tudo que havia visto, feito, pensado sobre a Terra, eu tinha
já visto, feito, pensado um século antes nesse mundo anterior.
E eu havia sempre duvidado!
O conjunto da minha vida terrena é, no entanto, superior ao da
existência precedente. Cada criança traz, ao nascer, faculdades
diferentes, predisposições especiais, dissemelhanças inatas, além
de incontestáveis, que não se podem explicar ante o espírito filosó-
fico e diante da Justiça eterna, senão pelos labores anteriormente
realizados pelas almas livres. Mas, embora a minha vida seja supe-
rior à que a antecedeu, principalmente sob o ponto de vista do
Camille Flammarion – Narrações do Infinito 103

conhecimento mais exato e mais profundo do sistema do mundo,


devo, sem embargo disso, salientar que certas faculdades físicas e
morais, possuídas anteriormente, me faltaram sobre a Terra. Reci-
procamente, possuía neste mundo faculdades que não havia recebi-
do na existência procedente.
Assim, por exemplo, entre as faculdades que me faltaram na
Terra, citarei principalmente a de voar. No planeta da Virgem, vi
que voava tantas vezes quantas andava, e isso sem aparelho aero-
náutico e sem asas, simplesmente com os braços e pernas, tal qual
se nada entre as águas. Examinando bem esse modo de locomoção,
que eu me via claramente empregar naquele planeta, reconheci sem
dificuldade não ter (que eu não tinha, quero dizer) nem asas, nem
balões, nem hélice. A um momento dado, eu me impulsiono do
solo, qual se fosse por um golpe de salto, com as pernas, e, esten-
dendo os braços, nado sem fadiga, no ar. Além disso, descendo, a
pé, escarpada montanha, eu me projeto para diante no Espaço,
tornozelos unidos, e desço lenta e obliquamente, por minha vonta-
de, até onde meus pés tocam o chão e me encontro firme, ereto.
Mais ainda: vôo lentamente, ao modo de um pombo que descreve
uma curva para entrar no pombal. Isso, o que me vi fazendo distin-
tamente nesse mundo. Pois bem: não foi só uma vez, mas centenas
de vezes, mil quiçá, em que me senti arrebatado na forma dos meus
sonhos terrestres; exatamente assim, doce e naturalmente, sem
auxílio de aparelhos. Como poderiam tais impossibilidades surgir
tantas vezes em nossos sonhos? Nada as justificariam; nada de
análogo existe sobre o globo terrestre. Para obedecer instintiva-
mente a semelhante tendência inata, em várias oportunidades eu
me atirei na atmosfera, suspenso à bolha de gás de um aeróstato;
mas a impressão não é a mesma; não se sente voar, e acredita-se
estar quase imóvel. Tenho agora a explicação dos meus sonhos:
enquanto dormiam meus sentidos terrestres, à alma afloravam as
reminiscências da existência anterior.
Camille Flammarion – Narrações do Infinito 104

Quœrens – Também eu, repetidas vezes, sinto-me voar em so-


nho, e exatamente assim, por um movimento do corpo – movido
pela vontade, sem asas e sem aparelhos. Será que eu já vivi no
planeta da Virgem?
Lúmen – Ignoro. Se possuísseis vista transcendente, o sentido
das percepções etéreas, ou instrumentos apropriados, poderíeis,
mesmo do vosso globo, aperceber esse planeta, examinar-lhe a
superfície, e se acaso ali houvésseis existido, à época em que de lá
partiram os raios luminosos agora chegados à Terra, poderíeis
talvez reencontrar-vos neles. Tendes, porém, olhos muitíssimo
imperfeitos para tentar semelhante pesquisa. Aliás, não é indispen-
sável tenhais habitado aquele mundo, para possuir a faculdade da
aviação. Há um considerável número de mundos onde o vôo cons-
titui o estado normal, e onde toda a raça humana só vive por esse
dom. Na realidade, em poucos planetas os seres rastejam pelo
modo dos da Terra.
Quaerens- Resulta da visão precedente que a vossa existência
terreal não é a primeira, e que, antes de viver na Terra, já havíeis
habitado um outro mundo. Acreditais, por isso, na pluralidade das
existências para a alma?
Lúmen – Esqueceis que falais a um Espírito desencarnado?
Tenho de me render à evidência, ante a visão da minha vida terres-
tre e da anterior no planeta virginal. Recordo-me, além disso, de
muitas outras existências.
Quœrens – Eis precisamente o que me falta para estabelecer
em mim uma convicção. Não me lembro, em absoluto, de coisa
alguma que tenha podido preceder meu nascimento terrestre.
Lúmen – Estais ainda encarnado. Aguardai vossa liberdade, pa-
ra que possais lembrar-vos da vida espiritual. A alma não tem
plena memória, integral posse de si mesma, senão na sua vida
normal, na vida celeste, isto é, entre suas encarnações. Só então ela
Camille Flammarion – Narrações do Infinito 105

vê, não somente a sua vida terreal, mas ainda as outras existências
precedentes.
De que modo a alma, envolta nos liames grosseiros da carne
terrestre, e aí acorrentada para um trabalho transitório, poderia
recordar-se da sua vida espiritual? Quantas vezes tal lembrança
seria prejudicial? Que entraves não trariam à liberdade dos atos, se
tal recordação mostrasse à alma suas origens e seu destino? Qual
mérito poderia ter se conhecesse as sanções futuras? As almas
encarnadas na Terra ainda não atingiram um grau de progresso
bastante elevado, para que a lembrança do seu estado anterior lhes
possa ser útil. A imanência das impressões psíquicas não se mani-
festa neste orbe de passagem. A lagarta recorda acaso a sua vida
rudimentar no casulo? A crisálida adormecida tem reminiscência
dos dias empregados no labor, quando se rojava sobre as plantas
rasteiras? A borboleta, que voa de flor em flor, não precisa recor-
dar o tempo em que a sua múmia sonhava suspensa na teia, nem o
crepúsculo no qual a sua larva se arrastava de erva em erva, nem à
noite quando a casca de uma pevide a envelopava. Isso não impede
que o óvulo, a lagarta, a crisálida e a borboleta sejam um único e
mesmo ser.
Em alguns casos da própria vida terrena, tendes exemplos no-
táveis da ausência de recordação, tais os do sonambulismo, natural
ou provocado, e os de certas condições psíquicas que a moderna
ciência estuda. Não existe, pois, nada de surpreendente no fato de
que durante uma existência seja esquecida a anterior. A vida urâni-
ca e a vida planetária representam dois estados distintos um do
outro.
Quœrens – Entretanto, mestre, já tendo vivido outra existência,
alguma coisa dessa anterior vida devia perdurar. De outro modo,
tais encarnações equivalem a inexistentes.
Camille Flammarion – Narrações do Infinito 106

Lúmen – E não representa nada, o chegarmos à Terra trazendo


aptidões inatas? A hereditariedade intelectual não existe. Duas
crianças, nascidas do mesmo pai e da mesma mãe, recebendo idên-
tica educação, são objeto dos mesmos cuidados, habitando o ambi-
ente. Examinemos cada um. São iguais? De modo algum: a igual-
dade das almas não existe. Este possui instintos pacíficos e uma
vasta inteligência: será bom, laborioso, sábio, circunspecto, ilustre
quiçá entre os pensadores. Aquele traz consigo instintos perversos:
será mandrião, invejoso, gatuno, assassino. Fraca ou fortemente
acentuada, tal dessemelhança de caráter, que não depende nem da
família, nem da raça, nem da educação, nem do estado corporal, se
manifesta em todos os seres. Os ascendentes dos maiores entre os
grandes homens não brilharam por um espírito superior, e até
mesmo, na maior parte do tempo, não compreenderam o seu des-
cendente ilustre. A alma não se transmite pela geração. Nisso
podeis refletir com os vossos próprios recursos: chegareis à con-
vicção de que a diversidade absoluta das almas não encontra sua
razão de ser fora dos estados anteriores.
Quœrens – A maior parte dos filósofos e dos doutores teólogos
não têm ensinado que a alma é criada ao mesmo tempo em que o
corpo?
Lúmen – Em que momento preciso? pergunto eu. Na ocasião
do nascimento? A lei, e também a fisiologia anatômica, sabem
perfeitamente que a criança vive antes de ser liberta das entranhas
maternas, e destruir um nascituro de oito meses é já cometer um
assassínio. A que tempo supondes que a alma apareceria no cérebro
fluido do feto ou do embrião?
Quœrens – Os antigos julgavam que a verdadeira animação es-
piritual do ser humano chega durante a sexta semana da gestação.
Os modernos tendem a fixá-la no momento em que a concepção se
opera.
Camille Flammarion – Narrações do Infinito 107

Lúmen – Ó derrisão amarga! Vós pretendeis que os desígnios


eternos do Criador fossem submetidos na sua execução ao capri-
choso desejo, flama intermitente de dois corações apaixonados!
Ousais admitir que nosso ser imortal é criado ao contacto de duas
epidermes. Estais dispostos a crer que o Pensamento supremo
governador dos mundos se colocaria à disposição do acaso, da
intriga, da paixão e, algumas vezes, do crime! Julgais que o núme-
ro das almas dependeria do número das flores tocadas pela meiga
poeira do pólen de asas douradas? Uma semelhante doutrina, tal
suposição não é atentatória da dignidade divina e da grandeza
espiritual da nossa própria alma? E, além disso, não seria a materi-
alização completa da nossa faculdade intelectual?
Quœrens – Logo...
Lúmen – Sim, efetivamente assim parece porque, em vosso
planeta, alma nenhuma se pode encarnar sem ser sob a forma de
embrião humano.
É uma lei da vida terrena. Mister se faz, porém, ver através do
véu. A alma não é um efeito; o corpo lhe serve apenas de vestimen-
ta.
Quœrens – Concordo em que seria muito singular, se um acon-
tecimento tão importante quanto a criação da alma imortal ficasse
subordinado a uma causa carnal, fosse o resultado fortuito de uni-
ões mais ou menos legítimas. Convenho também em que a diferen-
ça das aptidões que cada um traz, ao entrar neste mundo, não po-
dem ser explicadas pelas causas orgânicas. Eu me pergunto, porém,
para que serviriam muitas existências, se, quando se recomeça uma
nova vida, não se tem recordação das precedentes. Eu me interrogo
mais, se é verdadeiramente desejável termos em perspectiva uma
viagem sem fim, através dos mundos, e uma transmigração eterna.
Afinal, é preciso que tudo isso tenha um termo e que, após tantos
séculos de viagem, concluamos em um repouso. Senão, tanto vale
Camille Flammarion – Narrações do Infinito 108

como se descansássemos imediatamente depois de uma única


existência...
Lúmen – Ó homens!, não conheceis nem o Espaço, nem o
Tempo, ignorais que fora do movimento dos astros o tempo não
existe mais e que a eternidade não é mensurável; não sabeis que, no
infinito da extensão sideral do Universo, o espaço é vã palavra e
também não tem medida; desconheceis tudo: princípios, causas,
tudo vos escapa; átomos efêmeros sobre um átomo que se move,
não tendes a respeito do Universo nenhuma apreciação exata; e
numa ignorância assim, em tal obscuridade, pretendeis tudo julgar,
tudo abranger, tudo apreender! Seria, porém, mais fácil encerrar o
oceano em uma concha de noz do que fazer assimilar a lei dos
destinos pelo vosso cérebro terrestre. Não vos podeis, pois, fazendo
uso legítimo da faculdade de indução que vos foi dada, deter nas
conseqüências diretas resultantes da observação razoável. A obser-
vação raciocinada vos demonstra que não somos iguais ao chegar a
este mundo; que o passado é semelhante ao futuro e que a eterni-
dade posta ante a nossa frente também se acha para trás; que nada
se cria na Natureza e coisa alguma se aniquila; que a Natureza se
estende a toda coisa existente e que Deus, espírito, lei, número, não
são fora da Natureza outra coisa que matéria, peso, movimento;
que a verdade moral, a justiça, a sabedoria e a virtude existem na
marcha do mundo tão bem quanto a realidade física; que a justiça
ordena a equidade na distribuição dos destinos; que os nossos
destinos não se cumprem sobre o planeta terrestre; que o céu empí-
reo não existe e a Terra é um astro do céu; que outros planetas
habitados planam com o nosso na imensidão, abrindo às asas da
alma um território inesgotável; e que o infinito do Universo corres-
ponde, na criação material, à eternidade das nossas inteligências na
criação espiritual. Tais certezas, acompanhadas das induções que
nos inspiram, não são suficientes para libertar vosso Espírito dos
Camille Flammarion – Narrações do Infinito 109

velhos preconceitos e entregar ao seu livre julgamento um panora-


ma digno dos vagos e profundos anseios de nossas almas?
Eu poderia ilustrar esse esboço geral com exemplos e detalhes
que vos impressionariam talvez por muito tempo. Que me baste
acrescentar isto: há dentro da Natureza outras forças além das que
conheceis, cuja essência, e bem assim o modo de ação, diferem da
eletricidade, da atração, da luz, etc. Ora, entre essas forças naturais
desconhecidas, uma existe em particular, cujo estudo ulterior trará
singulares descobertas para elucidar o problema da alma e da vida.
É a força psíquica. Essa força fluídica invisível estabelece uma
ligação misteriosa entre os seres vivos, despercebidamente para
eles, e já em muitas circunstâncias pudestes reconhecer a sua exis-
tência. Eis dois entes que se amam; impossível lhes é viverem
separados. Se o império das circunstâncias acarretar um afastamen-
to, os nossos dois namorados ficarão desorientados e suas almas
estarão repetidamente ausentes do corpo para que se possam reunir
através das distâncias. Os pensamentos de um serão comuns ao
outro; viverão juntos, apesar da separação. Se alguma desgraça vier
atingir um deles, o outro sofrerá o contragolpe. Tem-se visto a
ocorrência dessas separações causar a morte. Quantos fatos não
tendes constatado, sob testemunhos irrefragáveis, de aparição
espontânea de uma pessoa a amigo íntimo, de esposa ao marido, de
mãe a um filho, e reciprocamente, ocorrida no momento preciso da
morte da pessoa que aparece, morte que ocorre muitas vezes a
grande distância? A crítica, por mais severa, não pode hoje negar
esses fatos autenticamente constatados. Duas crianças gêmeas,
vivendo a cem quilômetros uma da outra, em condições muito
diferentes, são acometidas simultaneamente de idêntica moléstia,
ou se um se fadiga além do natural, o outro se ressentirá de indis-
posição sem causa aparente. E assim por diante. Esses fatos múlti-
plos provam a existência de ligações simpáticas entre as almas, e
mesmo entre os corpos, e nos convidam a constatar, uma vez mais,
Camille Flammarion – Narrações do Infinito 110

estarmos bem distantes do conhecimento de todas as forças em


ação dentro da Natureza.
Se eu vos entrego a esses quadros, ó meu amigo, é para vos
mostrar, principalmente, que podeis pressentir a verdade antes
mesmo de morrer e que a existência terrestre não é tão desprovida
de luz a ponto de impedir que, pelo raciocínio, se chegue a conhe-
cer os traços precípuos do mundo moral. Demais, todas essas ver-
dades deviam ressaltar do prosseguimento das minhas narrativas,
quando vos demonstrei que vira não somente a minha penúltima
existência diretamente, graças à lentidão da luz, mas ainda a ante-
penúltima vida planetária, e até à presente, mais de dez existências
que precederam aquela na qual nos conhecemos sobre a Terra.
A serventia científica que as nossas conversações vos podem
trazer é o haver demonstrado que a luz constitui o modo de trans-
missão da história universal.
Segundo a lei de tal transmissão sucessiva da luz, todos os a-
contecimentos do Universo, a história de todos os mundos, são
espargidos no Espaço em quadros imperecíveis, verídicos e grandi-
osos, da Natureza inteira.
Camille Flammarion – Narrações do Infinito 111

II
Quœrens – A reflexão e o estudo, ó Lúmen, já me haviam feito
próximo da crença na pluralidade das existências da alma. Mas,
estando tal doutrina longe de ter em seu favor provas lógicas,
morais e mesmo físicas, tão numerosas e tão evidentes quanto a da
pluralidade dos mundos habitados, confesso que até esse então a
dúvida permanecia no meu pensamento. A óptica moderna e o
cálculo transcendental, que nos fazem, por assim dizer, tocar os
outros mundos com a ponta dos dedos, mostram o decurso do ano,
das estações, dos dias desses mundos, fazem com que assistamos
às variações da Natureza viva nas suas superfícies; todos esses
elementos permitiram à Astronomia contemporânea fundar a dou-
trina da existência humana nos outros astros sobre base sólida e
imperecível. Mas, ainda uma vez, não ocorre o mesmo com a pa-
lingenesia e, embora pendendo fortemente para a transmigração
das almas em um verdadeiro céu (pois que é meio único pelo qual
podemos representar a vida eterna), minhas aspirações reclamam,
no entanto, para que se sustenham e consolidem, uma luz que não
tive ainda.
Lúmen – É precisamente essa luz que se faz objeto de nossa
conversação de hoje, e desta se evidenciará. Tenho, confesso, uma
vantagem sobre vós, pois posso falar de visu, e limito-me rigoro-
samente ao papel de intérprete fiel dos acontecimentos com os
quais a minha vida espiritual é, na atualidade, entretecida. Vossa
inteligência, sabendo agora compreender a possibilidade, a veros-
similhança da explicação científica da minha narrativa, só pode,
ouvindo-me, aumentar o seu saber.
Quœrens – É por esse motivo, principalmente, que sempre es-
tou sedento da vossa palavra.
Lúmen – A luz, compreendestes, se encarrega de dar à alma
desencarnada a vista direta das respectivas existências planetárias.
Camille Flammarion – Narrações do Infinito 112

Depois de haver revisto minha vida terrestre, vi a penúltima,


sobre um planeta da Gamma-Virginis. Não se me apresentando
aquela, pela luz, senão decorridos 864 meses, e a outra após 2064,
hoje eu vejo, de Capela, o que fui, na Terra, no primeiro dos tem-
pos, e o que fui, no mundo virginal, há 8944 semanas. Eis, pois,
duas existências passadas e sucessivas que se tornaram para mim
presentes e simultâneas aqui, em virtude das leis da luz que a mim
as transmite.
Há cinco séculos, aproximadamente, vivi em um mundo cuja
posição astronômica, vista da Terra, é precisamente a do seio de
Andrômeda, do seio esquerdo. Os habitantes desse orbe mal sus-
peitaram decerto que os cidadãos de um pequeno planeta do Espa-
ço reuniram as estrelas por linhas fictícias, traçaram figuras de
homens, mulheres, animais, objetos diversos, e incorporaram todos
os astros (para lhes dar uma denominação) nessas figuras mais ou
menos originais. Espantar-se-iam muitos homens planetários, se
lhes dissesse que, na Terra, certas estrelas têm o nome de Coração
do Escorpião (que coração!), Cabeça de Cão, Cauda da Grande
Ursa, Olho de Touro, Colo do Dragão, Testa de Capricórnio! Não
ignorais que as constelações desenhadas sobre a esfera celeste, as
posições das estrelas nessa esfera não são reais, nem absolutas, mas
unicamente fundadas na situação da Terra no Espaço, e assim não
passam de uma simples questão de perspectiva. Aquele que, do alto
da montanha, apreende o panorama circular e fixa do seu plano a
posição correspondente de todos os píncaros que lhe são visíveis,
das colinas, dos vales, dos povoados, dos lagos, traça um mapa que
serve somente para o lugar onde se encontra. Se se transportar à
distância de vinte quilômetros, os mesmos cumes são visíveis, mas
situados já em posições recíprocas completamente diversas, em
resultado da mudança de perspectiva. O panorama dos Alpes e do
Oberland, visto de Lucerna e do Pilato, não se assemelha em nada
ao que se observa do Faulhorn ou da Scheinige-Platte, acima de
Camille Flammarion – Narrações do Infinito 113

Interlaken. E, no entanto, são os mesmos cimos e os mesmos lagos.


Outro tanto acontece com as estrelas. São vistas quase as mesmas
da estrela Delta da Andrômeda e da Terra. Contudo, não há conste-
lação alguma que possa ser fixada; todas as perspectivas celestes
mudaram; as estrelas da primeira grandeza passaram à segunda e
terceira; algumas de ordem mais inferior, vistas de mais perto,
tomaram esplendor brilhante, e principalmente a respectiva situa-
ção de umas para com as outras variou, como resultado da diferen-
ça de posição entre essa estrela e a Terra.
Quœrens – Assim, as constelações que durante tanto tempo se
acreditou traçadas irrevogavelmente sob a cúpula celeste, são fruto
apenas da perspectiva. Mudando de posição, as perspectivas mu-
dam, e o céu já não é o mesmo. Então, devíamos nós mesmos ter a
mudança das perspectivas celestes a seis meses de intervalo, por
isso que, nesse interregno, a Terra tem variado fortemente de posi-
ção e se acha a 298 milhões de quilômetros de distância do ponto
que ocupava um semestre antes.
Lúmen – A objeção prova que haveis compreendido perfeita-
mente o princípio da deformação das constelações, à medida que se
avança de qualquer lado do Espaço. Seria tal qual enunciastes, se,
com efeito, a órbita terráquea fosse de dimensão bastante vasta
para que dois pontos opostos dessa órbita pudessem mudar o as-
pecto da paisagem celeste.
Quœrens – Quase trezentos milhões de quilômetros.
Lúmen – Nada representam na ordem das distâncias celestes, e
não podem cambiar as perspectivas das estrelas, assim como um
passo sob o zimbório do Panteão não mudaria para o observador a
posição aparente dos edifícios de Paris.
Quœrens – Certos mapas da Idade-Média dão ao Zodíaco a
função de sustentáculo do Empíreo e colocam algumas constela-
ções, Andrômeda, Lira, Cassíope e Águia, na mesma região dos
Camille Flammarion – Narrações do Infinito 114

Serafins, Querubins e Tronos. Seria isso alta fantasia, se as conste-


lações não existissem em realidade, e afinal se deve a simples
aproximações aparentes, devidas à perspectiva?
Lúmen – Evidentemente. O antigo céu teológico não tem hoje
mais razão de ser, e o próprio bom-senso testemunha a sua inexis-
tência. Duas verdades não se podem opor uma à outra; é necessário
que o céu espiritual se acomode com o céu físico. É isso que as
minhas diferentes palestras têm por especial objeto demonstrar-
vos.
No mundo de Andrômeda, do qual vos falo, não se tem, com
efeito, mais coisa alguma da Constelação desse nome. As estrelas
que, vistas da Terra, parecem reunidas e serviram para desenhar
sobre a paisagem celeste a figura da filha de Cefeu e de Cassíope
estão disseminadas na vastidão, a todas as distâncias e a todas as
direções. Não seria possível reencontrar, lá junto, nem alhures, o
menor vestígio dos traços da mitologia terrena.
Quœrens – A poesia aí perde... Seria certamente uma doce sa-
tisfação o saber que vivera uma existência inteira no seio de An-
drômeda. Isso tem encanto. Está aí todo um conjunto de perfume
mitológico e uma sensação vital. Estimaria certamente a ela ser
transportado, sem temor do monstro que a morde, sem pensar nas
cadeias que a acorrentam à ribanceira e sem inquietação pelo jo-
vem Perseu, acompanhado da sua cabeça de Medusa e do famoso
Pégaso. Agora, porém, graças ao escalpelo da ciência, não existe
mais a princesa exposta sem véus na borda das vagas, nem Virgem
empunhando a espiga de ouro, nem Orion perseguindo as Plêiades;
Vênus desapareceu de nosso céu crepuscular e o velho Saturno
deixou a foice cair na noite. A Ciência fez tudo isso desaparecer!
Lamento esse progresso.
Lúmen – Preferis, pois, a ilusão à realidade? Não sabeis ainda
que a verdade é incomparavelmente mais bela, maior, mais admi-
Camille Flammarion – Narrações do Infinito 115

rável e maravilhosa mesmo do que o erro mais bem ornamentado?


Que há de comparável, em todas as mitologias passadas e presen-
tes, com a contemplação científica das grandezas celestes e dos
movimentos da Natureza? Que impressão poderia tocar mais pro-
fundamente do que o fato da imensidão ocupada pelos mundos e da
enormidade dos sistemas siderais? Que palavra é mais eloqüente do
que o silêncio de uma noite estrelada? Que imagem seria capaz de
transportar o pensamento a um abismo de assombro mais implacá-
vel, do que essa viagem intersideral da luz, tornando eternos os
acontecimentos transitórios da vida de cada mundo? Despojai-vos,
pois, ó meu amigo, dos vossos antigos erros e sede verdadeiramen-
te digno da majestade da Ciência. Escutai o que se segue.
Em virtude do tempo que a luz emprega para vir do sistema de
Andrômeda a Capela, eu revi, depois da nossa última palestra,
minha antepenúltima existência, vivida há cinco séculos e meio.
Esse mundo é singular para nós outros. Só existe ali um reino, o
animal, à superfície. O reino vegetal não existe. Mas aquele é bem
diferente do nosso; sua espécie superior, sua espécie inteligente só
possui quatro sentidos, porém, nenhum dos nossos, salvo talvez o
da vista, diferente todavia. É um mundo sem sono e sem fixidez.
Está inteiramente envolto por um oceano róseo, menos denso do
que a água terrestre e mais do que o ar. É uma substância que
forma o ambiente no grau intermediário entre o ar e a água. Não
busqueis fazer dele idéia exata, pois seria inútil esforço, atendendo-
se a que a química terreal não vos pode oferecer uma substância
semelhante. O gás, ácido carbônico, que se forma invisível no
fundo de um copo e se despeja juntamente com o líquido, pode
oferecer-vos uma imagem. Tal estado provém de uma determinada
quantidade de calor e de eletricidade em permanência sobre esse
globo. Não ignorais que sobre a Terra, na textura de todos os seres
minerais, vegetais e animais, só existem três estados para os cor-
pos: o sólido, o líquido e o gasoso, e que esses três estados têm por
Camille Flammarion – Narrações do Infinito 116

origem o calor projetado do Sol à superfície do orbe terrestre. O


calor interno do globo exerce ação insensível sobre dita superfície.
Menor aquecimento solar liquefaria os gases e solidificaria os
líquidos; maior calor fundiria os sólidos e evaporaria os líquidos.
Basta supor maior ou menor quantidade de aquecimento, para
produzir ar líquido (ar líquido, entendeis?) e mármore gasoso. Se,
por uma causa qualquer, o planeta terreal deslizasse lentamente
sobre a tangente da sua órbita e se distanciasse na obscuridade
gelada do Espaço, veríeis toda a água terrestre tornar-se sólida, e os
gases à sua vez liquefazerem-se, e depois se solidificarem... Verí-
eis? não, vós não veríeis, permanecendo na Terra, mas poderíeis,
do fundo do Espaço, assistir ao curioso espetáculo, se o vosso
globo entendesse escapar pela tangente. E notai além disso que, se
a chegada a esse frio colossal se fizesse de súbito, os seres encon-
trar-se-iam repentinamente gelados no local onde estivessem e o
orbe transportaria pela imensidão o panorama singular de todas as
raças humanas solidificadas e imobilizadas nas várias posições que
cada indivíduo e cada ser tivesse guardado no momento da catás-
trofe.
Mundos existem em tal condição. São certos planetas excêntri-
cos, cujos habitantes, detidos insensivelmente na sua vida pela fuga
rápida do planeta para longe do Sol, se encontram na condição de
milheiros de estátuas. A mor parte está deitada, atendendo-se a que
tão profunda mudança de temperatura demandou alguns dias para
se completar. São aos milhares, promíscuos, mortos, ou, para me-
lhor dizer, adormecidos em uma letargia completa. O frio os con-
serva. Trinta ou quarenta séculos mais tarde, quando o planeta
retorna do seu afélio escuro e gelado para o brilhante periélio,
rumo do Sol, o calor fecundo acaricia essa superfície com os seus
raios benfazejos; medra rapidamente. E quando chega ao grau que
caracteriza a temperatura natural de tais seres, estes ressuscitam, na
mesma idade de quando adormeceram, retomam seus afazeres da
Camille Flammarion – Narrações do Infinito 117

vigília (remota vigília!), sem saber de modo algum que dormiram


(sem sonho) durante tantos séculos. Ocorre mesmo a continuação
de uma partida de jogo começada e até a conclusão de uma frase
cujas primeiras palavras foram pronunciadas quarenta séculos
antes. Tudo isso é muito simples. Já vimos que o tempo não existe,
em realidade.
É, em ponto maior, o que se passa, em menor escala, na Terra,
com os vossos infusórios ressurgentes, esses curiosos rotíferos, que
renascem sob a chuva depois de largo período de morte aparente.
Mas, voltando ao nosso mundo de Andrômeda, a atmosfera ro-
sa, quase líquida, que o toma inteiramente qual um oceano sem
ilha, é a morada dos seres animados desse globo. Sem nunca re-
pousar no fundo de tal oceano, que nenhum jamais tocou, flutuam
perpetuamente no seio do elemento móbil. Desde o nascimento até
a morte, não têm um só instante de descanso. A atividade constante
é a condição mesma da sua existência. Se parassem, pereceriam.
Para respirar, isso é, para fazer penetrar em seu interior o elemento
fluido, são obrigados a mover, sem parar, os tentáculos e a manter
seus pulmões (emprego este vocábulo para me fazer compreendi-
do) constantemente abertos. A forma exterior dessa raça humana é
um pouco a das sirenas da antiguidade, mais ou menos elegante, e
aproximando-se ao organismo da foca. Vedes a diferença essencial
que separa essa constituição da dos homens terrestres? E que sobre
a Terra a respiração se faz sem que nos apercebamos de tal, sem
despender trabalho para obter o nosso oxigênio, sem ser necessário
esforço para a transformação do sangue venoso em arterial – pela
absorção do oxigênio. Naquele outro mundo, ao contrário, impera
uma nutrição que não se obtém senão a custo de trabalho, a preço
de incessantes esforços.
Quœrens – Então esse mundo é inferior ao nosso em grau de
progresso?
Camille Flammarion – Narrações do Infinito 118

Lúmen – Sem dúvida alguma, pois eu o habitei antes de vir à


Terra. Não julgueis, porém, que a Terra seja muito superior, pelo
fato de respirarmos mesmo dormindo. Não se pode negar a vanta-
gem de possuirmos um mecanismo pneumático que se abre por si
mesmo, de segundo em segundo, cada vez que o nosso organismo
tem necessidade de um sopro de ar, e que funciona sistematicamen-
te noite e dia. O homem, porém, não vive só de ar; é necessário
ainda ao organismo terrestre um complemento mais sólido, e esse
complemento não lhe vem por si próprio. Que resulta daí? Olhai
por um momento a Terra. Vede que triste, que desolador espetácu-
lo! Todas essas multidões curvadas para o solo, que esgravatam
penosamente, no intuito de obter dele o pão; todas essas cabeças
pendidas para a matéria, ao invés de erguidas na contemplação da
Natureza; todos esses esforços e labores, trazendo no seu séqüito a
debilidade e a doença; todos esses tráficos para ajuntar um pouco
de ouro a custa de todos; a exploração do homem pelo homem; as
castas, as aristocracias, os roubos e as ruínas; as ambições, os
tronos e as guerras; em uma palavra, o interesse pessoal, sempre
egoísta, muitas vezes sórdido, e o reino da matéria sobre o Espíri-
to! Eis o quadro normal da Terra, situação governada pela lei que
rege vossos corpos, que vos força a matar para viver e a preferir a
posse dos bens materiais, sem cogitar do além-túmulo, à posse dos
bens intelectuais, dos quais a alma guarda sempre a riqueza inalie-
nável.
Quœrens – Falais, ó mestre, à maneira de quem pensa que se
pode subsistir sem comer.
Lúmen – E julgais que se esteja adstrito a uma coisa tão ridícu-
la sobre todos os mundos do Espaço? Felizmente, na mor parte dos
mundos, o Espírito não se acha submetido a semelhante ignomínia.
Não é tão difícil supor, à primeira vista, e compreender a pos-
sibilidade de atmosferas nutrientes. A manutenção da vida no
homem e nos animais depende de duas causas: a respiração e a
Camille Flammarion – Narrações do Infinito 119

nutrição. A primeira reside naturalmente na atmosfera; a segunda


reside na alimentação. Desta provém o sangue; deste resultam os
tecidos, os músculos, os ossos, as cartilagens, a carne, o cérebro, os
nervos, em uma palavra, a constituição orgânica do corpo. O oxi-
gênio que respiramos pode ser considerado substância nutritiva,
pois que, combinando-se com os princípios alimentícios absorvidos
pelo estômago, completa a sanguificação e o desenvolvimento dos
tecidos.
Ora, para imaginar a nutrição total transferida para o domínio
atmosférico, basta observar que, em suma, um alimento completo
se compõe de albumina, açúcar, gordura e sal, e imaginar que um
fluido atmosférico, em vez de ser composto somente de azoto e de
oxigênio, seja formado daquelas diversas substâncias em estado
gasoso.
Tais alimentos se encontram nos corpos sólidos que absorveis,
e é à digestão que está confiada a tarefa de os desagregar e assimi-
lar. Quando comeis um pedaço de pão, por exemplo, introduzis no
estômago fécula e amido, substância insolúvel na água e que não se
encontra no sangue. A saliva e o suco pancreático transformam o
amido insolúvel em açúcar solúvel. A bílis, o suco pancreático e as
excreções intestinais mudam o açúcar em gordura, e é assim que,
pelo processo da alimentação, os alimentos foram desagregados e
assimilados no corpo.
Vós vos admirais, meu amigo, de que, no mundo celeste, onde
resido desde há algum tempo contado pela Terra, eu me recorde
ainda de todos esses termos materiais, e de que desça a referir-me
aos mesmos assim. As lembranças que me acompanharam da Terra
estão longe de esmaecer, e pois que tratamos determinadamente de
uma questão de fisiologia orgânica, não experimento nenhuma
espécie de falsa vergonha em dar a cada coisa o nome apropriado.
Camille Flammarion – Narrações do Infinito 120

Se, pois, supusermos que, ao invés de serem combinados ou


misturados na constituição dos corpos sólidos ou líquidos, os ali-
mentos se encontrem em estado gasoso na formação da atmosfera,
criaremos com isso atmosferas nutritivas, que nos dispensem da
digestão e das funções ridículas e grosseiras.
O que o homem apenas é capaz de imaginar na esfera restrita
onde suas observações se exercem, a Natureza soube realizar em
mais de um ponto da criação universal.
Eu vos asseguro, de resto, que, quando não mais se está acos-
tumado à operação material da introdução do alimento no tubo
digestivo, não se pode fugir à impressão do quanto tal operação é
brutal. É a reflexão que eu fazia ainda há poucos dias, quando, ao
deixar meus olhares errantes sobre uma das mais opulentas paisa-
gens do vosso planeta, fui impressionado pela beleza suave e toda
angélica de uma jovem, reclinada em uma gôndola que flutuava
docemente nas águas azuis do Bósforo, diante de Constantinopla.
Almofadas de veludo vermelho, bordadas de cetim, formavam o
divã da formosa Circassiana; pesadas borlas de ouro tombavam até
junto às vagas. Ante a moça, um pequeno escravo preto, ajoelhado,
tangia um instrumento de cordas. Esse corpo feminino era tão
juvenil e tão gracioso, o braço em curva tão elegante, os olhos se
mostravam tão puros e inocentes, e a fronte, já pensativa, aparecia
tão calma em face da luz do céu – que eu me deixei, por instante,
cativar numa espécie de admiração retrospectiva para com essa
obra-prima da Natureza viva. Pois bem! enquanto aquela candura
da juventude que desperta, aquela suavidade da flor me entretinha
num gênero de encantamento transitório, o barco chegou o bordo a
uma plataforma saliente, e a jovem, apoiando-se no escravo, veio
sentar-se num sofá, perto de bem disposta mesa, servida copiosa-
mente, em torno da qual outras pessoas estavam reunidas. A linda
jovem começou a comer! Sim, ela come! durante uma hora talvez
(é com esforço que me submeto à razão das minhas recordações
Camille Flammarion – Narrações do Infinito 121

terrestres). Que espetáculo ridículo! Um ser tão lindo, levando


alimentos à boca e enchendo, de instante a instante, mal sei de que
matérias o interior do seu corpo encantador! Que vulgaridade! E,
depois, pedaços de um animal qualquer esses dentes perolados
tiveram a coragem de mastigar! E, em seguida, fragmentos de um
outro animal viram sem hesitação, ante eles, abrirem-se aqueles
lábios virginais para os receber e tragar! Que regímen! uma triste
mistura de ingredientes tirados do gado ou da caça brava, que
viveram nos charcos e foram massacrados em seguida. Horror!
Desviei com tristeza meu olhar desse estranho contraste, para fixar
um mundo mais distinto, onde a Humanidade não está reduzida a
semelhantes contingências.
Os seres flutuantes pertencentes ao mundo de Andrômeda, on-
de se escoou minha antepenúltima existência, estão ainda submeti-
dos bem mais servilmente do que os habitantes da Terra ao traba-
lho da nutrição. Dispõem eles de ar que, à semelhança do que
ocorre em vosso orbe, só os alimenta três quartas partes: é forçoso
que busquem isso a que se pode denominar seu oxigênio, e, sem
trégua, estão condenados a fazer funcionar seus pulmões e a prepa-
rar ar nutriente, sem jamais dormir e sem nunca se saciarem desse
ar, por isso que, a despeito de todo o trabalho, só o podem absorver
em pequenas porções de cada vez. Passam assim a vida inteira, e
sucumbem por esse esforço.
Quœrens – Desse modo, valia mais não ter nascido. Mas, a
mesma reflexão não será aplicável à Terra? Para que serve nascer,
afadigar-se em mil variados labores, girar durante seis ou dez
decênios no mesmo círculo cotidiano: dormir, comer, agir, falar,
correr, andar, agitar-se, sonhar, etc.? Para que serve tudo isso? Não
seria avançado o extinguir-se no dia seguinte ao do nascimento, ou
melhor ainda, deixar de nascer? A Natureza não marcharia pior por
isso, e nem mesmo de tal se aperceberia. E, de resto, pode-se a-
Camille Flammarion – Narrações do Infinito 122

crescentar, para que serve a própria Natureza, e por que existe o


Universo?
Lúmen – É o grande mistério. É preciso que todos os destinos
se cumpram. Esse mundo de Andrômeda é muito inferior.
Para dar idéia da fraqueza intelectual da Humanidade dali, es-
colherei os dois assuntos que exprimem geralmente a medida do
valor de um povo: a religião e a política. Ora, em religião, em vez
de buscar Deus na Natureza, de fundar seus julgamentos pela Ciên-
cia, de aspirar à verdade, de se servir dos olhos para ver e da razão
para compreender, em uma palavra, ao invés de estabelecer os
fundamentos da sua filosofia sobre o conhecimento tão exato quan-
to possível da ordem que rege o mundo, dividiram-se em seitas
voluntariamente cegas, acreditaram render homenagem ao seu
pretenso Deus, cessando de raciocinar, e crêem adorá-lo, susten-
tando que o seu formigueiro é o único existente no Espaço, reci-
tando palavras, injuriando-se de seita para seita, e, incrível!, ben-
zendo armas, ateando fogueiras, autorizando massacres e guerras.
Há tais e tais asserções nas suas doutrinas, que parecem imaginadas
expressamente para ultrajar o senso comum. E são precisamente
essas as que constituem os artigos de fé das suas crenças!
São da mesma força em política. Os mais inteligentes e os
mais puros não conseguem entender-se; também a República pare-
ce ali uma forma de governo irrealizável. Tão longe quanto se
possa remontar nos anais da sua história, evidencia-se que os povos
débeis e indiferentes preferem não o governo de si próprios, mas o
serem dominados pelos indivíduos que se proclamam seus Basi-
leus. Esse chefe lhes toma três quartas partes dos recursos, faz
guardar – sob suas vistas – pelos da malta a essência mais rósea da
respectiva atmosfera (isto é, o que de melhor existe no dito mun-
do), numera-os a todos e, de tempos a tempos, os envia a entres-
bordoarem-se com o povo vizinho, submetido este, à sua vez, a um
Basileu análogo. Semelhantes a cardumes de arenques, dirigem-se,
Camille Flammarion – Narrações do Infinito 123

das duas partes, rumo a um campo de batalha, que denominam o


campo da honra, e se destroem mutuamente feito loucos furiosos,
sem saber porquê e sem se compreenderem sequer, atendendo-se
ao fato de não falarem o mesmo idioma. Alguns privilegiados do
acaso regressam. E acreditais que estes, de retorno, tomam aversão
pelo Basileu? Nem por sombra. Repenetrando nos seus lares móbi-
les, os destroços das hostes guerreiras têm por mais imediato cele-
brar, em companhia dos dignitários da sua seita, ações de graças,
suplicando ao seu Deus que dê longos dias de bênçãos ao digno
homem que se intitula deles paternal Basílio!
Quœrens – Deduz-se desse relato que os habitantes do Delta
Andrômeda são física e intelectualmente muito inferiores a nós
outros, pois, na Terra, estamos bem longe de seguir semelhante
conduta... Em suma, não existe ali senão um reino animado, um
reino móbil, sem repouso, sem sono, entregue à agitação perpétua
por um inexorável fatalismo. Tal mundo me parece bem bizarro.
Lúmen – Que diríeis, pois, daquela que habitei há quinze sécu-
los? Mundo igualmente dotado de um reino único, não de um reino
móbil, mas, ao contrário, de um reino fixo, à parecença do vosso
reino vegetal?
Quœrens – Animais e homens presos pela raiz?
Camille Flammarion – Narrações do Infinito 124

III
Lúmen – Minha existência anterior à do mundo de Andrômeda
foi vivida no planeta Vênus, vizinho da Terra, onde me recordo que
tive o sexo feminino. Não a revi diretamente, pela lei da luz, por
isso que esta despende o mesmo tempo para vir de Vênus ou da
Terra à estrela Capela, e, por conseqüência, olhando Vênus, eu
olhava atualmente o seu aspecto de há 864 meses, e não o que fora
há nove séculos, época da minha existência lá.
Minha quarta vida anterior à existência na Terra se passou em
um imenso planeta anelar, pertencente à constelação do Cisne, e
situado na zona da Via-Láctea. Esse mundo é habitado somente por
árvores.
Quœrens – Quer isso dizer que ali existem plantas, e não há
animais, nem seres inteligentes e falantes?
Lúmen – Tal qual. Somente plantas, é verdade; mas, nesse vas-
to mundo de plantas, existem raças vegetais mais avançadas do que
as que medram sobre a Terra; plantas existem que vivem de modo
igual a nós outros: sentem, pensam, raciocinam e falam.
Quœrens – Mas é impossível!... Oh, perdão! quero dizer, é in-
compreensível, e completamente inconcebível.
Lúmen – Essas raças inteligentes existem de fato, tanto assim
que fiz parte delas, há quinze séculos, quando fui árvore racioci-
nante.
Quœrens – De que maneira? De que forma pode uma planta
raciocinar sem cérebro e falar sem língua?
Lúmen – Ensinai-me, eu vos rogo, qual o processo íntimo de
que vos servis para pensar, e bem assim qual a transformação de
movimentos de que se serve a vossa alma para traduzir suas con-
cepções mudas em palavras audíveis...
Camille Flammarion – Narrações do Infinito 125

Quœrens – ...Busco, ó mestre! porém não encontro explicação


essencial desse fato, aliás comum.
Lúmen – Não se tem o direito de declarar impossível um fato
desconhecido, quando se ignora a lei da maneira de ser a ele con-
cernente. Pela circunstância de que o cérebro é o órgão fisiológico
posto na Terra ao serviço da inteligência, julgais que devam existir
cérebros análogos, cérebros e medulas espinais em todos os orbes
do Espaço? Isso seria um erro ingênuo, verdadeira ilusão antropo-
mórfica. A lei do progresso rege o sistema vital de cada um dos
mundos. Esse sistema vital difere, segundo a natureza íntima e as
forças particulares a cada globo. Quando atinge um grau suficiente
de elevação, que o torna suscetível de entrar ao serviço do mundo
moral, o Espírito, mais ou menos desenvolvido, eis que aparece.
Não penseis que o Pai eterno cria diretamente em cada globo uma
raça humana. Não. A espécie superior do reino animal recebe a
transfiguração humana pela força das coisas, pela lei natural, que
lhe enobrece o dia em que o progresso a conduz a um estado de
superioridade relativa. Sabeis porque tendes um tórax, um estôma-
go, duas pernas e dois braços, e uma cabeça munida dos sentidos
visual, auditivo e olfativo? É porque os quadrúpedes, os mamíferos
que precederam a aparição do homem estavam assim constituídos.
Os macacos, os cães, os leões, os ursos, os cavalos, os bois, os
tigres, os gatos, etc., e, antes deles, os rinocerontes ticorinus, a
hiena das cavernas, o cervo de chifres gigantescos, o mastodonte, o
sarigue, etc., e, ainda antes desses, o plessiossauro, o ictiossauro,o
iguanodonte, o terodáctilo, etc., e, mais anteriormente, os peixes,
os crustáceos, os moluscos, etc., foram o produto de forças vitais
em ação sobre a Terra, dependentes do estado do solo e da atmos-
fera, da química inorgânica, da quantidade de calor e da gravidade
terrestre. O reino animal da Terra seguiu, desde a sua origem, essa
marcha contínua e progressiva rumo ao aperfeiçoamento da forma
do tipo dos mamíferos, despegando-se cada vez mais da brutalida-
Camille Flammarion – Narrações do Infinito 126

de da matéria. O homem é mais belo do que o cavalo, este mais


formoso do que o urso, e o urso mais do que a tartaruga. Uma lei
semelhante regeu o reino vegetal. As plantas pesadas, grosseiras,
sem folhagem e sem flores, começaram a série. Depois, com os
séculos, as formas se tornaram mais elegantes e mais refinadas. As
folhas surgiram, derramando nos bosques deliciosa sombra. As
flores, a seu turno, vieram embelezar o jardim da Terra e espargir
doces perfumes na atmosfera até então insípida. Essa dupla série
progressiva dos dois reinos se encontra hoje, nos terrenos terciá-
rios, secundários e primordiais, visitados pelos olhos escrutadores
da Geologia. Houve uma época sobre a Terra em que algumas ilhas
apenas emergiam do seio das águas quentes, nos vapores abundan-
tes de uma atmosfera sobrecarregada, aí não havia outros seres que
se distinguissem do reino inorgânico além de longos filamentos em
suspensão nas vagas. Fungos, algas, tais foram os primeiros vege-
tais. Sobre os rochedos formaram-se seres que o espírito hoje se
embaraça de nomear. Lá, esponjas intumescem; aqui, mais uma
árvore de coral se eleva; mais longe, medusas se destacam, lem-
brando hemisférios de gelatina. São animais? São plantas? A Ciên-
cia não nos responde. São animais-plantas, zoófilos.
Mas, a vida não estaciona nessas formas. Eis aqui seres não
menos primitivos e também simples, que assinalam a determinação
de um gênero de vida especial: os anelídeos, os vermes, os peixes
reduzidos ao estado de tubo, seres sem olhos, sem orelhas, sem
sangue, sem nervos, sem vontade, espécies vegetativas, dotadas,
todavia, da faculdade de locomoção. Mais tarde, rudimentos de
órgãos visuais apareceram, pródromos de órgãos de locomoção,
princípios de uma vida mais livre. Peixes, anfíbios se sucedem. O
reino animal terrestre se transforma por si próprio. Quem sabe o
que teria acontecido, se um primeiro ser não houvesse abandonado
seu rochedo! se esses elementos primitivos da vida terrestre per-
Camille Flammarion – Narrações do Infinito 127

manecessem fixados no ponto de origem e se, por uma causa qual-


quer, a faculdade de locomoção não houvesse tido um começo?
Aconteceria que o sistema vital terrestre, em lugar de se mani-
festar em duas direções, mundo de plantas e mundo de animais,
chegaria não apenas à formação de sensitivas, plantas superiores
dotadas já de verdadeiro sistema nervoso; não se limitaria a produ-
zir flores, algo vizinhas de nós outros nos seus atos orgânicos e em
seus amores; mas, continuando a ascensão, o que se produziu no
reino animal ter-se-ia realizado no mundo vegetal. Existem vege-
tais sentindo e agindo: ver-se-iam plantas sentindo e fazendo-se
compreender. A Terra não teria sido privada, por isso, da série
humana; apenas o gênero humano, ao invés de ser móbil, conforme
é, estaria fixada ao solo pelos pés.
Tal é o estado do mundo anelar que habitei, há vinte séculos,
no seio da Via-Láctea.
Quœrens – Sem contradizer, esse mundo de homens-plantas
me pasmou ainda mais do que o precedente. Dificilmente eu me
posso figurar a vida e os costumes de tais seres singulares.
Lúmen – O gênero de vida ali é, com efeito, bem diferente do
vosso. Não se constroem cidades, não se fazem viagens, nem se
impõe qualquer forma de governo. Desconhece-se a guerra, esse
flagelo da Humanidade terráquea, e também o amor próprio nacio-
nal que vos caracteriza. Prudentes, cheios de paciência e dotados
de um feitio moral permanente, os seres dali não têm a mobilidade
e a fragilidade dos homens da Terra. Vive-se lá, em média, cinco a
seis séculos, de uma existência calma, doce, uniforme, sem revolu-
ções. Não julgueis, entretanto, que esses homens-plantas tenham
apenas uma vida vegetativa. Ao contrário, sua existência é muito
pessoal e muito absoluta. São divididos, não em castas, segundo o
nascimento ou a fortuna, conforme se pratica entre os da Terra, sim
por famílias, cujo valor natural difere precisamente segundo a
Camille Flammarion – Narrações do Infinito 128

espécie. Têm uma história social, não escrita, pois nada se pode
perder entre eles, atendendo-se à ausência de emigrações e con-
quistas, história feita por tradições e por gerações. Cada uma co-
nhece a história da sua raça. Possuem também os dois sexos, tal
qual ocorre com os terrestres, e suas uniões se processam de um
modo análogo, porém incomparavelmente mais casto. E não é
indispensável a união consangüínea; há fecundações a distância.
Quœrens – Mas, afinal, como podem comunicar mutuamente
seus pensamentos, se é que pensam? E, além disso, mestre, de que
modo vós mesmo vos reconhecestes nesse mundo singular?
Lúmen – Uma resposta só vos dará a das duas perguntas. O-
lhava esse anel da constelação do Cisne, e a vista ali se me prendia
com persistência; estava surpreendido, eu mesmo, de enxergar
apenas vegetais naquela superfície, e notei principalmente os sin-
gulares agrupamentos existentes nas campinas: aqui, dois a dois;
mais adiante, três a três; pouco além, dez a dez; noutras partes, em
maior número. Via os que pareciam sentados ao bordo de uma
fonte; outros semelhavam estar deitados, tendo em redor pequenos
rebentos; procurei entre todos identificar as espécies terrestres, tais
os abetos, os carvalhos, os álamos, os salgueiros, mas não assinalei
essas formas botânicas. Enfim, fixei muitas vezes meu olhar sobre
um vegetal com a forma de figueira, sem folhagem e sem frutos,
tendo flores vermelho-escarlate. De súbito, vi a enorme figueira
alongar um ramo, à guisa de braço gigantesco, levar a extremidade
desse braço à altura correspondente à cabeça, destacar uma das
flores magníficas que lhe serviam de cabeleira e apresentá-la em
seguida, inclinando a fronte, a uma outra figueira, esbelta, elegante,
portadora de suaves flores azuis, colocada a alguma distância, em
frente da ofertante. A distinguida pareceu receber a flor vermelha
com um certo prazer, porque estendeu um ramo (dir-se-ia cordial e
fina mão) ao vizinho, e pareceu terem assim ficado por longo tem-
po. Sabei que, em certas circunstâncias, basta um gesto para reco-
Camille Flammarion – Narrações do Infinito 129

nhecer uma pessoa. Foi o que me aconteceu ante tal cena. O gesto
da figueira da Via-Látea despertou em meu Espírito todo um mun-
do de recordações. Esse homem-planta era ainda eu, de há quinze
séculos, e identifiquei meus filhos nas figueiras de flores violeta
que me cercavam, pois lembrei que a cor das flores descendentes
resulta da fusão das cores dos ascendentes paterno e materno.
Os homens-plantas vêem, ouvem e falam, sem olhos, sem ore-
lhas e sem laringe. Na Terra, já tendes flores que distinguem muito
bem, não somente o dia da noite, mas ainda as diferentes horas do
dia, a altura do Sol no horizonte, um céu puro de um nublado; que,
mais ainda, têm a repercussão dos diversos ruídos com esquisita
sensibilidade; que, finalmente, se entendem à maravilha entre elas
e até com as borboletas mensageiras. Esses rudimentos são desen-
volvidos a um verdadeiro grau de civilização no mundo do qual
vos dou notícia, e os seres dali são tão completos no respectivo
gênero quanto o sois vós outros na Terra, no vosso. Sua inteligên-
cia está, é certo, menos avançada do que a média intelectual da
Humanidade terrena; porém, nos costumes e nas relações recípro-
cas, revelam em todas as ocasiões uma doçura e uma delicadeza
que poderiam muitas vezes servir de modelo à mor parte dos habi-
tantes da Terra.
Quœrens – Mestre, de que modo se pode ver sem olhos e ouvir
sem orelhas?
Lúmen – Cessareis o assombro, meu velho amigo, se refletir-
des que a luz e o som são apenas dois modos de movimento. Para
apreciar uma ou outra de tais maneiras de movimento, é necessário
(e basta) ser dotado de aparelho em correspondência com uma das
duas, ainda que o aparelho seja um simples nervo. Os olhos e as
orelhas constituem os ditos aparelhos para a natureza terreal. Em
outra organização, de outra natureza, tanto o nervo óptico quanto o
auditivo terão outra forma para a função de órgãos. Além disso,
não existem dentro da Natureza somente esses dois modos de
Camille Flammarion – Narrações do Infinito 130

movimentos: luminoso e sonoro; posso mesmo dizer que tais quali-


ficativos derivam da vossa maneira de sentir, e não da realidade.
Há, sem dúvida, no seio da Natureza, não um, porém dez, vinte,
cem, mil diferentes modos de movimento. Na Terra fostes forma-
dos para apreender principalmente aqueles dois citados, que consti-
tuem quase toda a vossa vida de relação. Em outros mundos, há
também outros sentidos para apreciar a Natureza sob diferentes
aspectos, sentidos que têm, uns, a localização dos vossos olhos e
das vossas orelhas, e, outros, são dirigidos rumo a percepções
completamente estranhas às acessíveis aos organismos terrestres.
Quœrens – Quando me falastes, há pouco, a respeito dos ho-
mens-plantas do mundo do Cisne, tive idéia de perguntar se as
plantas terrestres têm alma.
Lúmen – Sem a menor dúvida. As plantas terrenas são, sim,
dotadas de alma, de igual maneira que os animais e os homens.
Sem alma virtual nenhuma organização constituiria um ser. A
forma do vegetal é dada pela sua alma. Por que a bolota e um
caroço, plantados ao lado um do outro, no mesmo solo, sob a mes-
ma exposição e identicamente nas mesmas condições, produzirão, a
primeira, um carvalho e, o segundo, um pessegueiro? Porque uma
força orgânica residente no carvalho construirá seu vegetal típico, e
uma outra força orgânica, uma outra alma, imanente no pesseguei-
ro, levará ao caroço outros elementos para formar igualmente seu
corpo específico, pelo mesmo princípio que a humana alma cons-
trói – ela própria – o seu envoltório corporal, servindo-se dos mei-
os postos à sua disposição pela natureza terrena. Apenas, a alma da
planta não tem consciência de si mesma.
Almas de vegetais, almas de animais, almas de homens são se-
res chegados já a um grau de personalidade, de autoridade suficien-
te para dobrar à sua ordem, dominar e reger debaixo de sua direção
as demais forças não personalizadoras e esparsas no seio da imensa
Natureza. A mônada humana, por exemplo, superior à mônada do
Camille Flammarion – Narrações do Infinito 131

sal, à mônada do carbono, à do oxigênio, as absorve e as incorpora


na sua obra. A alma humana, em nosso corpo terrestre, sobre a
Terra, rege, sem disso se aperceber, todo um mundo de almas
elementares, formando as partes constitutivas do seu corpo. A
matéria não é substância sólida e espaçosa; é um complexo de
centros de forças. A substância não tem importância. De um átomo
a outro, existe um vácuo imenso, relativamente às dimensões dos
átomos. Ao alto dos diversos centros de forças constitutivas que
formam o corpo humano a alma humana governa todas as almas
ganglionárias que lhe são subordinadas.
Quœrens – Confesso, meu erudito instrutor, não ter apreendido
bem claramente essa teoria.
Lúmen – Também vai ser ilustrada por um exemplo que a fará
passar, para vós, à categoria de fato.
Quœrens – A categoria de fato? Sois acaso a reencarnação da
princesa Scheherazade, e me haveis fascinado em um novo conto
das Mil e uma Noites, as mil e uma noites da Urânia moderna?
Lúmen – Uma derradeira palestra fará com que realizeis comi-
go, no espaço celeste, uma viagem que desenvolverá sob vossos
olhares o infinito variado da Criação.
Camille Flammarion – Narrações do Infinito 132

Quinta narrativa

Ingenium audax – Natura audacior

Lúmen – Conheceis a esplêndida constelação de Orion que rei-


na soberana nas vossas noites de inverno, e curiosa estrela múlti-
pla, Thêta, que se encontra sob a Espada suspensa do Talim e
brilha no centro da afamada nebulosa.
Esse sistema Thêta de Orion é um dos mais singulares que e-
xistem no escrínio, tão diversificado, agora, dos diamantes celestes.
É composto de quatro sóis principais dispostos em quadrilátero.
Dois deles, formando o que se poderia denominar a base do quadri-
látero, são, por outra parte, acompanhados, um, de um sol, e o
outro de dois. É, pois, um sistema de sete sóis, em torno de cada
qual gravitam planetas habitados. Visitei um dos planetas que gira
em volta de secundário sol, sendo que este último se move em
torno de um dos quatro sóis principais. Por sua vez, este principal,
em concerto com os demais, circula em redor de invisível centro de
gravidade colocado no interior do quadrilátero. Não insisto a res-
peito desses movimentos; a mecânica celeste já vo-los explicou.
Eu estava, pois, iluminado e aquecido nesse planeta por sete
sóis simultaneamente: por um maior e mais ardente, em aparência,
do que os outros seis, por estar mais próximo de mim, por um
segundo, muito grande e também mui brilhante, por três de média
dimensão e por dois pequenos, gêmeos. Não se achando todos
reunidos no alto do horizonte, há sóis do dia e sóis da noite! Isso
significa não existir ali noite, propriamente dita, e, em conseqüên-
cia, não haver o sono.
Quœrens – Como pode ser? Coincidem no céu sóis duplos e
múltiplos!
Camille Flammarion – Narrações do Infinito 133

Lúmen – Em grande número. O sistema de que vos dou notícia,


entre outros, é conhecido dos astrônomos da Terra, que contam aos
milhares os sistemas de estrelas duplas, múltiplas e coloridas.
Podeis, vós mesmo, constatar isso ao telescópio.
Ora, sobre o planeta de Orion, que designei há pouco, os seres
não têm a natureza vegetal, nem animal; não poderiam mesmo
caber em nenhuma das catalogações terrenas, ou ainda, em uma das
duas grandes divisões: reino vegetal e reino animal. Não encontro
verdadeiramente maneira de os comparar, para vos dar uma idéia
da forma respectiva. Vistes acaso, nos jardins botânicos, o áloes
gigantesco, o cereus giganteus?
Quœrens – Conheço particularmente esse vegetal. Seu nome
deriva da semelhança com os tocheiros de três ou mais ramifica-
ções que se acendem nos templos.
Lúmen – Pois bem, os homens de Theta Orionis oferecem al-
guma parecença com essa forma. Apenas se movem lentamente e
se mantêm aprumados graças a um processo de sucção análogo ao
das ampolas de certas plantas. A parte inferior da sua haste verti-
cal, a que pousa no chão, prolonga, à maneira das estrelas do mar,
pequenos apêndices que se fixam ao solo e produzem o necessário
vácuo. Andam muitas vezes em bandos e mudam de latitude, se-
gundo as estações do tempo.
Eis aqui, porém, o mais curioso ponto da respectiva organiza-
ção, o que põe em evidência o princípio, do qual vos falei, da
reunião de almas elementares no corpo humano.
Visitei um dia esse mundo e me encontrei no meio de uma pai-
sagem oriônica. Um ser estava lá, semelhante a um vegetal de dez
metros de altura, sem folhagem e sem flores, essencialmente cons-
tituído por cilíndrica haste, terminada na parte superior por muitas
ramificações, lembrando os de um lustre. O diâmetro do talo cen-
tral, e assim o das ramificações, podia aproximar-se ao terço do
Camille Flammarion – Narrações do Infinito 134

metro. A extremidade superior da haste e dos ramos era coroada


por argênteas franjas.
De repente, esse ser agitou as ramificações e esvaiu-se.
Com efeito, nesse mundo, acontece que indivíduos bem dis-
postos se abatem literalmente num todo.
As moléculas que os constituem tombam de uma vez, todas,
sobre o solo. O indivíduo cessa de viver pessoalmente; as molécu-
las se separam e se dispersam.
Quœrens – Desagregam-se?
Lúmen – Mais ou menos. Recordo-me que essa desassociação
do corpo ocorre muito freqüentemente durante a plena vida. Tanto
resulta de uma contrariedade, quanto da fadiga, ou ainda de desar-
monia orgânica entre as diferentes partes. Vive-se integralmente,
tal qual existis neste momento, e, de súbito, fica-se reduzido à
expressão mais simples. A molécula cerebral (que, em vós, vos
constitui essencialmente) sente-se desprendida e em descenso,
como resultante da queda das suas co-irmãs ao longo das extremi-
dades, e chega à superfície do chão solitária e independente.
Quœrens – Esse modo de desaparição seria alguma vez cômo-
do processo aqui, sobre a Terra. Para sair de embaraçosa situação,
por exemplo, de urna cena conjugal do gênero Molière, ou de um
quarto de hora desagradável, igual ao de Rabelais, ou ainda de um
impasse doloroso – a plataforma do cadafalso –, bastava não suster
os átomos constitutivos, e ... boa-noite, meus senhores...
Lúmen – Levais o assunto em jocosidade, mas eu vos afirmo
que a realidade é incontestável. Outro tanto existiria sobre a Terra,
à semelhança do que ocorre no planeta de Orion, se o princípio do
domínio não reinasse tão fortemente entre vós outros. Lá existe tal
princípio elementarmente. Vosso corpo é formado de moléculas
animadas; vossa medula espinal, conforme se expressou um dos
eminentes fisiologistas da Terra, é uma série linear de centros
Camille Flammarion – Narrações do Infinito 135

independentes e ao mesmo tempo governados. As partes essenciais


constitutivas do vosso sangue, da vossa carne e dos ossos estão no
mesmo caso. São verdadeiras províncias com administração autô-
noma, porém, submetidas a uma autoridade superior.
O funcionamento dessa diretriz superior é uma condição da vi-
da humana, condição menos exclusiva nos animais inferiores. Em
cada anel do verme chamado lombriga há um verme completo, de
sorte que uma lombriga representa uma série de seres semelhantes,
constituindo verdadeira sociedade de cooperação vital. Cortado por
anéis, o verme representa outros tantos indivíduos independentes.
Na tênia – ou verme – solitária, a cabeça já é mais importante do
que o resto, e possui, tal qual ocorre com as plantas, a faculdade de
reproduzir o resto do corpo do qual tenha sido separada. A san-
guessuga é igualmente um ser formado de indivíduos unidos e,
cortada de cinco em cinco anéis, da operação resultam outras tantas
sanguessugas. De igual modo que um galho rebrota a árvore, a
perna do caranguejo ou a cauda do lagarto se reconstituem. Em
realidade, os animais vertebrados (o homem, por exemplo) são
compostos na sua árvore essencial (a medula espinal e seu prolon-
gamento superior até ao cérebro) de segmentos justapostos, de
centros nervosos, cada um dos quais dotado de alma elementar.
A lei de autoridade em ação sobre a Terra determinou, na série
animal, uma ação preponderante. Sois constituídos por uma verda-
deira multidão de seres grupados e submetidos pela atração plástica
da vossa alma pessoal, a qual, do centro do ser, formou o corpo,
desde o embrião, e reuniu em torno dele, no respectivo microcos-
mo, todo um mundo de seres destituídos ainda de consciência da
sua individualidade.
Quœrens – No planeta de Orion, a Natureza é constituída, pois,
em estado de república absoluta ?
Lúmen – República, sim, mas governada pela lei.
Camille Flammarion – Narrações do Infinito 136

Quœrens – Quando, porém, um ser se encontra assim desagre-


gado, de que modo pode, em seguida, reconstituir-se integralmen-
te?
Lúmen – Pela vontade, e muitas vezes sem o menor esforço,
por um desejo até furtivo. Por serem separadas da molécula cere-
bral, as corporais não deixam de lhe estar presas intimamente; a um
momento dado, elas se reúnem e retomam cada qual o seu lugar. A
molécula diretora atrai as outras a distância, com a mesma faculda-
de com que o ímã atrai a limalha de ferro.
Quœrens – Imagino, de boamente, ver todo esse exército lili-
putiano, surpreendido por um apito, comprimindo-se para o seu
centro, organizar a reunião de todos os pequenos soldados, os
quais, subindo agilmente uns sobre os outros, chegam, em um
pestanejar de olhos, a reconstituir o homem que me haveis pintado.
Em verdade, é preciso certamente ter deixado a Terra para observar
semelhantes novidades.
Lúmen – Julgais ainda a Natureza universal pelo átomo que
tendes sob os olhos, estais apto para compreender os fatos contidos
na esfera das vossas observações. Mas, vo-lo repito, a Terra não é o
tipo do universo.
Esse mundo de Theta Orionis, com os sete sóis rodantes, é po-
voado por um sistema orgânico análogo ao que vos defini. Vivi ali
há vinte quatro séculos.
Foi lá que conheci o Espírito (encarnado no presente na Terra)
que publica seus estudos sob o nome de Allan Kardec. Durante
nossa vida terrena não nos recordamos de que éramos velhos co-
nhecidos, mas nos sentíamos, por vezes, atraídos um para o outro
por singulares aproximações de pensamentos. Agora que retornou,
tal qual eu, ao mundo dos Espíritos, ele se lembra também da
singular República de Orion e pôde revê-la. Sim, bem singular e,
no entanto, real. Não tendes noção alguma, no vosso pobre planeta,
Camille Flammarion – Narrações do Infinito 137

da diversidade inimaginável que distingue os mundos, em sua


geologia, na fisiologia orgânica, nas condições da habitabilidade,
nas formas humanas, nas mentalidades. Ides julgar por uma série
de exemplos muito variados. Estas conversações podem servir para
esclarecer vosso conhecimento a respeito do fato geral, tão impor-
tante à concepção do Cosmos: a universal diversidade.
Viajei um grande número de países celestes diferentes, e atu-
almente estudo a Criação, sem me fixar em particular. Espero, no
decurso do século próximo, reencarnar-me em um mundo depen-
dente do cortejo de Sírius. A Humanidade ali é mais bela do que a
da Terra. Os nascimentos lá se efetuam segundo um sistema orgâ-
nico menos doloroso, menos brutal e menos ridículo do que o
processo terrestre; a beleza da virgem não se quebra pela fecunda-
ção; o amor e a maternidade não são contraditórios.
Mas, o caráter mais notável da vida nesse mundo é que o ho-
mem se apercebe das operações físico-químicas que se realizam no
interior do corpo. Em vosso organismo terráqueo não vedes a
maneira, por exemplo, pela qual os alimentos absorvidos são assi-
milados, o modo pelo qual o sangue, os tecidos, os ossos se reno-
vam; todas as funções se executam instintivamente, sem que o
pensamento as perceba. Também, de mil moléstias manifestadas, a
causa é desconhecida e muitas vezes impossível de descobrir. Lá, a
criatura sente os movimentos da sua manutenção vital, no mesmo
grau em que sentis um prazer ou um sofrimento. De cada molécula
do corpo parte, por assim dizer, um nervo que transmite ao cérebro
as variadas impressões recebidas. O interior do corpo é tão visível
quanto o exterior. A alma conhece absolutamente o corpo, que ela
rege de modo soberano. Se o homem terrestre fosse dotado de um
tal sistema nervoso, ao mergulhar olhares no organismo por inter-
médio dos nervos, veria de que maneira o alimento se transforma
em quilo, este em sangue, o sangue em carne, em substância mus-
cular, nervosa, etc.; ver-se-ia a si próprio. Mas, disso estais bem
Camille Flammarion – Narrações do Infinito 138

distante, por se achar o centro anímico de vossas percepções emba-


raçado pelos múltiplos nervos dos lóbulos cerebrais e mantilhas
ópticas.
Esse meio de vista interior difere daquele de que vos falei, de-
vido a olhos construídos de maneira diversa da dos vossos e que
percebem o interior dos corpos. Aqui, neste caso de que trato, não é
um órgão de visão, mas uma organização do sistema nervoso-
cerebral. Pode-se ver sem o intermédio dos olhos.
Outro caráter precioso da organização vital do mundo siriano é
que a alma pode mudar de corpo sem passar pela circunstância da
morte, tantas vezes desagradável e sempre tristonha. Um sábio que
trabalhou durante toda a vida para instrução da Humanidade, e vê
chegar o fim dos seus dias, sem haver podido terminar seus nobres
pensamentos, pode trocar de corpo com um jovem adolescente e
recomeçar nova vida, mais útil ainda do que a primeira. Bastam,
para tal transmigração, o consentimento do moço e a operação
magnética de um médico competente. Vê-se, assim, por vezes, dois
seres, unidos por laços doces e fortes de amor, operarem essa per-
muta de corpos depois de largo período de ventura: a alma do
esposo vai habitar o corpo da consorte, e reciprocamente, para o
resto da existência. O conhecimento íntimo da vida resulta incom-
paravelmente mais completo para cada um deles. Sobre a Terra, o
homem e a mulher não podem compreender-se exatamente, por
isso que não sentem, não vibram de modo idêntico.
Em um mundo que não é sem analogia com o precedente, mu-
da-se de sexo, naturalmente, por evolução mesma do organismo,
em uma idade que corresponde ao quarto decênio da Terra. Todos
os seres são femininos até essa idade e, em seguida, por metamor-
fose – toda natural – se tornam do sexo masculino. Resulta de tal
que os homens, fortes e robustos, amam sempre mulheres jovens.
A mulher não pode envelhecer. E cada um conhece as sensações
dos dois sexos.
Camille Flammarion – Narrações do Infinito 139

Igualmente, observei que em um planeta, iluminado pelo bri-


lhante sol hidrogenado Vega da Lira, o pensamento não é forçado a
passar pela palavra para se manifestar. Quantas vezes não vos
aconteceu, quando uma idéia luminosa ou engenhosa vem de bri-
lhar em vosso cérebro, querer exprimi-la ou escrevê-la, e, durante o
tempo em que começais a falar ou escrever, sentir a idéia dissipada,
voejando, obscurecida ou metamorfoseada. Os habitantes desse
planeta têm um sexto sentido, que se poderia denominar fonográfi-
co, em virtude do qual, quando o autor a isso não se opõe, o pen-
samento se comunica ao exterior e pode ser lido sobre um órgão
situado ao alto da fronte. Tais conversações silenciosas são muitas
vezes as mais profundas e as mais precisas; são sempre mais since-
ras.
Estais ingenuamente dispostos a crer que a organização huma-
na não deixa coisa alguma a desejar sobre a Terra, e nisso pecais
por falta de lógica, o que não é raro em vosso modo de pensar. Não
lamentastes nunca ser obrigado a ouvir, a contragosto, palavras
desagradáveis, maledicências ou calúnias, um discurso absurdo,
um sermão oco de qualquer mérito, música de má qualidade, reale-
jos manivelados sob vossas janelas, a barulheira de uma festa
pública, etc.? Vosso vocabulário há por bem pretender que podeis
fechar ouvidos a esses discursos, mas desgraçadamente isso não
serve de nada. Não podeis fechar as orelhas com a mesma facilida-
de com que o fazeis aos olhos. Existe nisso uma grande lacuna. O
ruído é um verdadeiro horror para os homens que trabalham com o
Espírito. Visitei planetas, menos incompletos do que o vosso, onde
a Natureza estabeleceu melhor o sentido auditivo. Existem ali
muito menos cóleras ocultas do que entre vós outros; mas as divi-
sões entre os partidos políticos são mais acentuadas, de vez que os
adversários recusam ouvir e assim conseguem êxito, apesar dos
esforços dos advogados mais loquazes.
Camille Flammarion – Narrações do Infinito 140

Em um orbe do sistema de Aldebarã os olhos humanos são or-


ganizados de tal modo que se tornam luminosos durante a noite e
iluminam à maneira de emanação fosforescente irradiada do seu
estranho foco. Uma reunião noturna, composta de grande número
de pessoas, oferece aspecto verdadeiramente fantástico, de vez que
a claridade, e assim a cor dos olhos, variam segundo as paixões
diversas que as animam. Demais, o poder desses olhares é tal que
exerce influência elétrica e magnética de intensidade variável, e
que, em certos casos, podem fulminar, fazer cair morta a vítima
sobre a qual se fixe toda a energia da sua vontade.
Esse globo oferece ainda outra particularidade: pela densidade
e constituição física da sua atmosfera, pode-se ver de cada ponto o
conjunto do orbe, por efeito de miragem de refração. Os raios
luminosos, por serem curvilíneos e fazerem a volta no referido
planeta, trazem as imagens dos mais distanciados objetos. A esfera
inteira apresenta à vista um plano horizontal. É a realização física
da anedota do diabo mostrando a Jesus todos os reinos da Terra.
A variedade é imensa entre os mundos. Era um dos planetas do
sistema alfa do Cisne, muito curioso sob este ponto de vista; os
vegetais são todos compostos de substância análoga ao amianto,
por isso que a sílica e o magnésio dominam na sua constituição. Os
animais só se nutrem dessa substância. Quase todos os habitantes
dali são incombustíveis.
Não longe de lá gravita um mundo onde a noite é quase desco-
nhecida, embora não possua sol noturno, conforme ocorre no qua-
drilátero de Orion, nem satélites. As rochas das montanhas, cuja
composição química lembra os fosfatos e os sulfuretos de barita,
armazenam a luz solar recebida durante o dia e emitem no decorrer
da noite uma tépida e calma fluorescência, que ilumina as paisa-
gens com uma tranqüila e noturna claridade. Vêem-se ali também
árvores curiosas que produzem flores brilhantes à noite, semelhan-
Camille Flammarion – Narrações do Infinito 141

do pirilampos: parecem-se a castanheiros cujas flores de neve


fossem luminosas.
O fósforo desempenha importante papel nesse mundo tão sin-
gular; sua atmosfera é constantemente eletrizada; seus animais são
luminosos, a exemplo das plantas, e sua Humanidade está em
idênticas condições. A temperatura é ali muito elevada e os habi-
tantes não tiveram quase motivo para inventar vestimentas. Ora,
acontece que certas paixões ali se traduzem pela iluminação de
uma parte do corpo. É, em ponto maior, a reprodução do que ocor-
re em vossas campinas terrenas, onde se assinalam, nas formosas
noites de verão, os vaga-lumes, consumindo-se silenciosamente em
amorosa flama.
O aspecto dos casais luminosos é curioso de observar à noite,
nas grandes cidades. A coloração da fosforescência difere segundo
os sexos, e a intensidade varia conforme as idades e temperamen-
tos. O sexo forte acende uma flama vermelha, mais ou menos
prolongada, e o sexo gracioso uma flama azulada, por vezes pálida
e discreta. Os pirilampos da Terra servem apenas para dar idéia
mui rudimentar da natureza das impressões experimentadas por
aqueles seres especiais. Nos lampiros do Norte, que se encontram
na França, os do sexo masculino têm asas e não são luminosos,
enquanto que os do sexo contrário são luminosos, porém privados
do privilégio aéreo. Já nos vaga-lumes da Itália os dois sexos têm a
liberdade das asas e a faculdade de se tornarem luminosos. A Hu-
manidade de que se trata aqui possui todas as vantagens deste
último tipo. É um mundo de lucíolas humanas, de bela estatura.
Nesse mundo de que vos narro aspectos as noites são ilumina-
das por fosforescentes claridades. Visitei outros onde as noites não
existem de modo algum, porque não são subordinados às alternati-
vas diurnas e noturnas que se sucedem na Terra, e sim iluminados
constantemente, em toda a sua esfera, por muitos sóis que não os
deixam jamais privados de luz por um instante sequer. Lá, o sono
Camille Flammarion – Narrações do Infinito 142

não se manifesta, nem para os homens, nem para os animais, nem


para as plantas. No vosso planeta, o sono, que consome a terça
parte da existência, tem por origem primitiva o movimento de
rotação da Terra, mergulhando sucessivamente as diferentes regi-
ões do globo na luz solar ou na luz da Lua. Nesses orbes, de eter-
nos dias, não se dorme nunca, e muita surpresa causaria lá saber-se
da existência de Humanidade cuja vida, na razão de um terço, se
escoa na letargia semelhante à morte.
O homem que viveu na Terra oito decênios, dormiu e perdeu
quase três!
Certos caracteres fisiológicos da vida terrestre são encontrados
entre muitas espécies de Humanidade siderais. Assim, da mesma
forma que, na Terra, no mundo das formigas, o dia das suas estra-
nhas núpcias aéreas acarreta o esgotamento e a morte de todos os
do sexo masculino; de igual maneira que, no mundo das abelhas, os
procriadores são impiedosamente sacrificados; do mesmo modo
que, entre as aranhas, estes são devorados pelas companheiras, se
não fugirem imediatamente; de igual forma que um grande número
de insetos jamais vê a sua progenitura, e põem os ovos, previden-
temente, em local onde os récem-vindos encontrem a primeira
alimentação; por idêntico motivo, mundos existem onde a velhice é
desconhecida: ardentes amores consomem, em fantástico delírio,
todos os seres empenhados em fruir o momento de hoje, sem cogi-
tar do desconhecido amanhã. O sexo ativo não vê o dia seguinte
das núpcias; o sexo passivo, ovíparo, dorme o derradeiro sono,
depois de haver assegurado a perpetuidade da espécie.
Esses recantos celestes, onde não se envelhece nunca, não são
quiçá os mais mal aquinhoados. Enquanto que, na Terra, os tempos
finais da idade avançada fazem saudade dos iniciais, suprimem as
voluptuosas alegrias da juventude, trazem enfermidades, fazem
lenta e tristemente descer ao túmulo; naqueles felizes mundos, a
vida humana começa à maneira da dos insetos, primeiro humilde,
Camille Flammarion – Narrações do Infinito 143

grosseira, pesada, material (à semelhança das larvas e das lagartas),


depois, passado ligeiro sono, dá lugar à expansão da força e da
beleza, e, tal qual as borboletas aéreas e gentis, os humanos termi-
nam sua existência no fogo das paixões superiores, na alegria e na
luz. São planetas privilegiados, os da vida ascensional, enquanto
que na Terra cada ser humano representa desgraçadamente o tipo
da vida descontínua.
Um dos mundos mais graciosos que visitei tem por habitantes
pássaros unicamente. Poder-se-ia chamar, com verdade, mundo dos
pássaros.
Não há ali outras espécies vivas, salvo as borboletas e as flores
voadoras. A evolução orgânica não conduz, lá, nem aos pesados
quadrúpedes, nem aos saurianos, nem aos répteis, nem aos molus-
cos, nem aos peixes. É uma vida aérea, encantada, toda de movi-
mento, de brilhantes colorações, de canção e de amor. Por toda
parte ninhos, flores, asas. Nessas espécies aladas, a raça superior, a
raça intelectual, a raça humana é verdadeiramente privilegiada. Ela
não conhece da vida senão os mais delicados sentimentos do cora-
ção, luta apenas pelas volúpias e brilha eternamente na alegria e na
luz. Não se discute nunca, mas se canta sempre. Em um sistema
solar cujo foco central emite principalmente luz hidrogenada, na
qual as radiações mais rápidas são preponderantes, os organismos
humanos não têm a humilhação dos nossos, nisso que concerne às
uniões amorosas. Não é vergonhoso ver, nos livros de Medicina da
nossa pretensa civilização, agrupamentos de palavras tais, por
exemplo órgãos gênito-urinários? É uma infâmia. No sistema de
que vos dou notícia, só se poderá cogitar de órgãos gênito-
cerebrais. Lá, tudo é nobre, tudo é divino, tudo é puro, e seria
enorme surpresa ouvir-se falar das grosseiras associações da ana-
tomia terrestre.
Nesse mundo, mais sutil do que o vosso, o organismo feminino
não está sujeito aos períodos inconvenientes desagradáveis, e mui-
Camille Flammarion – Narrações do Infinito 144

tas vezes dolorosos, que fazem da metade das mulheres terrestres


verdadeiras vítimas. As flores dão frutos na inalterável serenidade
de encantadora primavera. Que variedade prodigiosa entre as di-
versas regiões do Cosmos!
Recordo haver chegado, certo dia, em uma viagem, buscando
novos mundos, a um iluminado por uma espécie de sol crepuscular.
Sombrio vale se estendia ante mim; estranho espetáculo se ofere-
ceu aos meus olhares. Em árvores disseminadas pelos dois flancos
do local, pendiam seres humanos envoltos em sudários. Estavam
presos aos galhos pela cabeleira e assim dormiam no mais profun-
do silêncio. Mas, o que me havia parecido sudário era, em realida-
de, um tecido formado pelo alongamento dos seus próprios cabelos
amalgamados e encanecidos. E porque me pasmasse ante essa
situação, fui inteirado de que é aquele o processo de sepultamento
e de ressurreição ali. Sim, nesse mundo, que pertence à constelação
de Fênix, os seres humanos desfrutam da faculdade orgânica dos
insetos do vosso planeta, que têm o dom de adormecer em estado
de crisálida, para se transformarem em aladas borboletas. Vale isso
por uma dupla raça humana, e os estagiários da primeira fase, os
seres mais grosseiros e mais materializados, só aspiram a morrer,
para que possam ressurgir na mais esplêndida das metamorfoses. O
período anual desse mundo é um pouco mais longo do que os de
Netuno e atinge aproximadamente dois séculos terrestres. Vive-se
ali dois terços do ano em estado inferior, um terço (inverso) em
condições de crisálida e, na primavera seguinte, os suspensos sen-
tem insensivelmente a vida retornar em sua carne transformada;
movem-se, despertam, deixam a carcaça na árvore e desprendem-
se, seres alados maravilhosos, cigarras extraterrestres, arrebatando-
se nas regiões aéreas, para viverem um novo ano fenixiano, isto é,
os dois séculos do vosso tão efêmero planeta. Existem ali planetas
cuja meteorologia, longe de ser incoerente e insuportável, qual a da
Terra, está admiravelmente regulada, onde, por exemplo, chove
Camille Flammarion – Narrações do Infinito 145

somente durante a noite, aproximadamente a quinta parte do ano,


em épocas fixas. Só de tal circunstância resulta imensa superiori-
dade na organização dos atos da vida exterior; as cerimônias, as
reuniões, as viagens, os passeios, as mais simples parcelas de re-
creio são ali estabelecidas de antemão, sem que os habitantes desse
mundo se vejam expostos a todos os contratempos que constante-
mente perturbam os projetos terreais.
Mundos há onde os movimentos vitais, o respirar, a assimila-
ção, os períodos orgânicos, o dia e a noite, as estações, o ano, são
de extrema lentidão, embora o sistema nervoso dos humanos aí seja
muito desenvolvido e o pensamento tenha prodigiosa atividade. A
vida parece de duração sem fim. Os que morrem de velhice exce-
dem um milênio, porém estes são raros, de modo que só alguns
poucos puderam ser conservados nas memórias históricas dessa
Humanidade. A guerra jamais foi ali inventada, de vez que só
existe uma raça, um povo, um idioma único. A constituição natural
dos organismos é notável: as doenças são quase desconhecidas e
não existem ali médicos. Resulta que, para a intensa atividade
cerebral, a duração da vida se torna uma perspectiva sem fim e não
tarda a constituir pesado fardo. Também ali todo mundo sai da vida
pela morte voluntária. Essa prática foi gradualmente insinuada nos
costumes desde mui remota antiguidade, e os raros macróbios que,
por um motivo qualquer, não a adotam, são considerados criaturas
excepcionais, originais, mais ou menos extravagantes. A morte
voluntária é a lei geral.
Enfim, falarei ainda do mais extraordinário mundo que imagi-
nar se possa para o astrônomo, um mundo onde a noite seria sem
estrelas e onde, conseqüentemente, a Ciência não pôde surgir?
Essas qualidades de mundos também existem. São os que se acham
situados em certas regiões da imensidade, de onde as estrelas se
encontram distanciadas. Nenhuma fere a vista humana. Ficam
todas para além do alcance dessa vista e o telescópio não foi ali
Camille Flammarion – Narrações do Infinito 146

inventado. Nenhum habitante desse mundo pode duvidar que exis-


tem. Também os cidadãos dessas moradas estão absolutamente
certos de que são os únicos habitantes no Infinito. A organização
política desses mundos é radicalmente teocrática.
Em nossa terceira conversação eu vos assinalei vibrações do
éter que não podem ser percebidas pelos sentidos humanos terres-
tres: são raios invisíveis para nós outros. Minhas considerações
teóricas resultaram de fatos práticos e reais para mim em minhas
excursões intersiderais. Poderia citar mundos onde os humanos têm
olhos que não enxergam nenhum dos raios do espectro solar que
vossa vista percebe, desde o vermelho até o violeta, mas que vêem
certos raios elétricos invisíveis para vós outros e para os quais o
vidro é opaco, enquanto que a madeira, os tecidos e a carne são
transparentes. Esses seres vêem principalmente o seu próprio es-
queleto. A Natureza é, para tais olhos, toda diferente do que se
apresenta para os vossos. Em uma floresta, eles não vêem as árvo-
res, mas somente a seiva sob o aspecto de fontes que jorram. Em
um canteiro de jardim, não vêem as flores, e sim filetes líquidos e
emanações, formando para eles toda uma outra ordem de coisas. A
luz, o calor e a eletricidade não são para os sentidos deles a mesma
coisa que para os vossos representam. Seus olhos se tornam cegos
para as vibrações compreendidas entre 450 e 750 trilhões, do infra-
vermelho ao ultravioleta, porém se tornam clarividentes para as
superiores a 750 trilhões até 2 sextilhões.
O corpo humano terrestre deve sua forma e seu estado ao meio
atmosférico e às condições de densidade, peso e nutrição dentro
das quais a evolução vital terrestre se exerceu. O ser humano pro-
vém da fusão de um microscópico corpúsculo masculino com um
minúsculo óvulo feminino. Tal fusão dá lugar a um pequeno fruto,
que se transforma em embrião, e neste aparecem gradualmente o
local do coração, da cabeça, dos membros e dos diversos órgãos. O
sistema nervoso desse embrião é comparável a irradiações de fios
Camille Flammarion – Narrações do Infinito 147

delicados, partindo de um ponto central que se tornará o cérebro.


Sob a influência da luz solar, vibrações do ar, odores e sabores, um
desses nervos se desenvolveu na periferia para formar o olho,
primeiro informe, quase cego e rudimentar, dos trilobitas e dos
peixes do período siluriano, e que afinal se tornou o admirável
aparelho visual dos pássaros, dos vertebrados e do homem; o nervo
auditivo foi desenvolvido pelos mesmos processos; o sentido do
olfato e o do paladar marcharam paralelamente; estes dois últimos
são os mais antigos, os mais necessários à vida, com o do tato, o
mais remoto de todos e o mais primitivo. Por assim dizer, só dois
sentidos põem o homem em relação com o mundo exterior: a vista
e o ouvido, mas ainda é a vista que estabelece verdadeiramente a
comunicação com o Universo.
Milhões de filetes nervosos vão do cérebro à carne, sem dar o-
rigem a nenhum sentido, salvo a tecla, por assim dizer, das sensa-
ções íntimas e pessoais, sendo que uma já foi até classificada de
sexto sentido. Vós me entendeis.
Ora, não há razão alguma para tudo quanto se passou e esta-
cionou no vosso minúsculo planeta, também se haja passado e
estagnado de igual forma por toda parte.
E a prova é que, não há muito ainda, visitei dois mundos onde
os seres humanos possuem dois sentidos a respeito dos quais não
tendes a menor idéia da Terra.
Um desses sentidos poderia ser classificado de elétrico. Um
dos filetes nervosos de que vos falei há pouco se desenvolveu,
ramificou, multiplicado, numa forma de buzina, a qual, no escalpe-
lo e no microscópio, mostraria tubos justapostos cuja extremidade
exterior recebe os eflúvios elétricos e os transmite ao cérebro, de
maneira quase idêntica à do vosso nervo óptico, quando transmite
as ondas luminosas, e à do auditivo, com relação às sonoras.
Camille Flammarion – Narrações do Infinito 148

Os entes munidos de tal sentido percebem o estado elétrico dos


corpos, dos objetos, das plantas, das flores, dos animais, da atmos-
fera, das nuvens, o que constitui para eles um manancial de conhe-
cimentos ocultos para vós outros.
As sensações orgânicas de tais seres são de todo diversas das
vossas. Seu modo de existência difere também completamente. A
causa da formação e do desenvolvimento desse sentido é o estado
de saturação elétrica de tal mundo. A tensão elétrica não é bastante
forte sobre a Terra para exercer ação importante na organização
dos seres. Não é, entretanto, nula, e disso se tem prova na crepita-
ção, por vezes fosforescente, da cabeleira de certas mulheres, na
sua sensibilidade especial, na irritabilidade nervosa dos contactos
no meio da atmosfera seca e fria dos países muitas vezes visitados
pelas auroras boreais. Ditos efeitos são encontrados, mais nítidos,
em certos peixes elétricos, da classe da tremelga (torpedo), do
ginoto (enguia), do siluro (bagre) e seus congêneres. Essa fauna
elétrica, que não pôde no vosso planeta atingir todo seu desenvol-
vimento, representa o estado normal em certos mundos. Lá, o
sentido principal é o elétrico; a vista fica em segundo plano.
No mundo número dois, o que mais me aturdiu foi a existência
de um outro sentido ainda, muito diferente: o do rumo. Outro filete
nervoso, partindo do cérebro, deu lugar a uma espécie de orelha
dotada de ligeiras asas por intermédio da qual a criatura percebe a
direção. Sabe-se, assim, sem o auxílio da vista, se se marcha para o
norte, sul, este ou oeste. A atmosfera está repleta de emanações que
vos são desconhecidas. Esse sentido singular se orienta sem erro
possível. Também serve para descoberta de coisas ocultas no inte-
rior do solo e dá diversas noções da Natureza que para vós outros
são absolutamente interditas.
Poderia assim mostrar-vos que nos canteiros do jardim da Cri-
ação existe infinita diversidade, e que seria necessário uma eterni-
dade para saborear os respectivos frutos e flores.
Camille Flammarion – Narrações do Infinito 149

Quœrens – Meu caro mestre, ainda sou muito terrestre, muito


sem dúvida, devido à minha juventude, e longe de atingir essa
metade da vida de onde começa a descida subseqüente, feita com
serenidade, rumo às praias eternas em que tantas promessas nos
aguardam. É isso que explica certamente a razão pela qual este
planeta me parece bom e a sua Humanidade verdadeiramente bem
sucedida. Ontem ainda, em Paris mesmo, eu expunha as vossas
teorias uranográficas a uma senhorita, que as escutou com interes-
se. Ela não me fez objeção alguma; simplesmente me olhava muito,
com todo o esplendor de uma beleza admirável. E, mau grado meu,
contemplando-a, dizia a mim mesmo: Podem elas ser mais belas
em outros mundos do que aqui?
Lúmen – Sim, meu amigo, sois muito terrestre. Felizes os vos-
sos olhos, por serem tão imperfeitos e não poderem perceber mais
do que a superfície desses corpos! Não quero dissecar o vosso
poético encantamento. Além disso, eu o confesso, à Natureza terre-
al não falta harmonia. Mas essa harmonia existe em todos os mun-
dos, muitas vezes em graus incomparavelmente superiores. Os
lobos e as lobas se acham belos e os hipopótamos se buscam à
noite, sob o luar argênteo, no lodo dos pântanos selvagens. Tudo é
relativo e um homem do sistema de Arcturus desdenharia absolu-
tamente a mulher mais formosa da Terra.
Mas, meu caro amigo, não me é possível entretê-lo com as cu-
riosidades todas do Universo. Que vos baste haver levantado o véu
para vos permitir entrever a incomensurável diversidade que existe
nas produções animadas de todos os sistemas disseminados no
Espaço.
Eis que bem depressa vem a aurora, que põe em fuga os Espíri-
tos, e vai fazer desmaiar a nossa palestra, tal qual a luz de Vênus se
esmaece à aproximação do dia terrestre. Desejo agora acrescentar
aos aspectos precedentes uma observação assaz curiosa, inspirada
pelas mesmas contemplações.
Camille Flammarion – Narrações do Infinito 150

Ei-la: Se um Espírito sutil partisse da Terra no momento da


fulguração de um relâmpago e viajasse durante uma hora ou mais
tempo com a luz, veria o relâmpago durante tanto tempo quanto o
olhasse. Esse fato é estabelecido segundo os princípios já expostos.
Se, porém, em vez de se distanciar exatamente com a velocidade da
luz, o fizesse com uma rapidez algo inferior, eis a seguir o que
poderia observar.
Admitamos que essa viagem de afastamento da Terra, durante
a qual o Espírito sutil olha o relâmpago, dure um minuto, e supo-
nhamos que o clarão perdure por espaço de um décimo de segundo.
O contemplados continuará enxergando o relâmpago durante seis-
centas vezes a sua duração; mas, se em vez de voar parelho cem a
velocidade da luz, mover-se mais lentamente, e, por exemplo,
empregar um décimo de segundo para chegar ao mesmo ponto, não
verá sempre o mesmo momento do relâmpago, e sim sucessiva-
mente os diversos momentos que constituíram a duração total do
relâmpago, que foi igual a um décimo de segundo. Naquele minuto
inteiro, teria tido vagar para ver, primeiro, o começo do clarão, e de
analisar o desenvolvimento, as fases e a continuação, até ao fim.
Concebei que estranhas descobertas poderiam ser feitas na natureza
íntima do relâmpago, aumentado 600 vezes na ordem de sua dura-
ção! Que pugnas espantosas teríeis tempo de perceber em suas
flamas! Que pandemônio! Que sinistro de átomos! Que mundo
oculto, por sua fugacidade, aos olhos imperfeitos dos mortais!
Se pudésseis ver pelo pensamento, separar e contar os átomos
que constituem o corpo de um homem, esse corpo desapareceria
para vós, porque há nele bilhões e bilhões de átomos em movimen-
to e, para o olhar do analista, o conjunto se tornaria uma nebulosa
animada pelas forças da gravitação. Swedenborg não imaginou que
o Universo, visto em conjunto, tem a forma de colossal gigante? É
o antropomorfismo. Mas tudo se assemelha. O que sabemos de
Camille Flammarion – Narrações do Infinito 151

mais seguro é que as coisas não são tal qual nos parecem, nem no
espaço, nem no tempo. Voltemos, porém, ao relâmpago retardado.
Quando viajais com a velocidade da luz, vedes constantemente
o aspecto existente no momento da partida. Se permanecêsseis
durante um ano levado por essa mesma rapidez, teríeis ante os
olhos, durante um ano, o mesmo acontecimento. Mas, se para
melhor apreciar um acontecimento que não houvesse durado mais
de alguns segundos (o desabar de um monte, uma avalanche, um
tremor de terra, por exemplo), o Espírito sutil, posto em ação por
mim, parte de modo a apreciar o começo da catástrofe e, diminuin-
do um pouco a marcha em relação à da luz, de modo que não veja
constantemente o princípio, mas o imediato momento que o seguiu,
depois o segundo, e assim sucessivamente, de maneira que não
chegue ao fim antes de uma hora de exame, e seguindo quase a luz,
o acontecimento dura para ele uma hora, ao invés de alguns segun-
dos; ele vê os penhascos ou as pedras suspensos no ar e pode,
assim, render-se conta do modo de produção do fenômeno e das
peripécias retardadas. Já podeis, nas possibilidades científicas
terrestres, apanhar fotografias instantâneas dos momentos sucessi-
vos de um fenômeno rápido, tais o relâmpago, um bólido, as vagas
do mar, erupções vulcânicas, a queda de um edifício, e fazê-los em
seguida passar aos olhares com lentidão calculada ante a persistên-
cia retiniana. De igual maneira, mas em sentido contrário, podeis
fotografar o aparecimento da flor em botão até seu total desabro-
char e daí até ao fruto, o desenvolvimento de uma criança, desde o
nascer até a idade madura – e projetar essas fases sobre um fundo
apropriado, fazendo desfilar em alguns segundos a vida de um
homem ou de uma árvore.
Li, em vosso pensamento, haverdes comparado esse processo
ao de um microscópio que aumentasse o tempo. É exatamente isso:
vemos assim o tempo amplificado. O processo não pode receber
Camille Flammarion – Narrações do Infinito 152

rigorosamente a denominação de microscópio, mas, mais depressa,


o de cronoscópio, ou o de crono-telescópio (ver o tempo de longe).
A duração de um reino poderia, pelo mesmo processo, ser au-
mentada segundo o arbítrio de um partido político. Assim, por
exemplo, Napoleão II, tendo reinado apenas três horas, poderia ser
visto reinar durante três lustros sucessivamente, dispersando-se os
180 minutos constitutivos das três horas ao longo dos 180 meses,
com o distanciar-se da Terra em velocidade um pouco inferior à da
luz, de maneira que, partindo no primeiro minuto em que as Câma-
ras reconheceram Napoleão II, não se chegue ao derradeiro minuto
de seu reinado fictício antes de três lustros. Cada minuto seria visto
durante um mês, cada segundo por espaço de doze horas.
Ademais, a medida do tempo não é essencialmente relativa e
apropriada às nossas impressões? Isso, porém, não é mais do que
um desvio no itinerário da nossa viagem.
Acompanhando-me em Espírito nessa excursão intersideral,
passastes algumas horas longe da Terra. É conveniente isolar-se,
por vezes, assim, pelas celestes veredas. A alma tem maior posse
de si mesma e, nessas reflexões solitárias, penetra profundamente
através da realidade universal. A Humanidade terráquea, já com-
preendestes, é, tanto no moral quanto no físico, a resultante de
forças virtuais da Terra. A forma humana, o talhe e o peso depen-
dem dessas forças. As funções orgânicas são determinadas pelo
planeta. Se a vida está repartida, entre vós outros, em trabalho e
repouso, em atividade e em sono, isso se deve à rotação do globo,
que produz a noite: nos mundos luminosos, naqueles em que um
hemisfério é eternamente iluminado por um sol ao qual apresenta
constantemente a mesma face, e sobre aqueles que são perpetua-
mente alumiados por vários sóis alternativos, não se dorme. Se sois
forçados a comer e beber, tal é devido à condição imperfeita da
vossa atmosfera. Os corpos dos seres dispensados da necessidade
de comer não têm a mesma vossa construção, pois dispensam
Camille Flammarion – Narrações do Infinito 153

estômago e ventre. Os olhos terrestres vos mostram o Universo sob


um determinado aspecto; o olhar saturniano o vê de modo diferen-
te, pois os dali são dotados de sentidos que percebem outras coisas
vedadas a vós outros, de igual modo que não podem ver o que
vedes na Natureza.
Assim, cada mundo foi, é e será habitado por várias raças, isto
é, essencialmente diversas, e que, por vezes, não são vegetais, nem
animais. O tipo Homem não é universal. Há seres pensantes de
todas as formas possíveis, de todas as dimensões, de todos os pe-
sos, cores, sensações e caracteres. O Universo é um infinito. Nossa
existência terrestre é apenas uma fase nesse infinito. Diversidade
inesgotável enriquece o campo maravilhoso do sempiterno Semea-
dor.
O papel da Ciência é estudar o que os sentidos terreais são ca-
pazes de apreender. O da Filosofia está em formar a síntese de
todas essas noções restritas e determinadas e desenvolver a esfera
do pensamento. Que tarefa seria, se eu vos pretendesse entreter,
não somente com a variedade física, mas também com a diversida-
de intelectual e moral das Humanidades! As variantes seriam tam-
bém consideráveis; mas compreenderíeis menos ainda.
Para vos assinalar apenas um exemplo, observai que, em vossa
Humanidade terrestre, o valor intelectual e moral para nada serve,
não é aplicado ao progresso, resulta nulo, não tem futuro, se aquele
que o possui não dispuser da vontade e do poder de o colocar em
evidência, seja pela vitória das suas idéias, seja por interesse pes-
soal. Jamais se vai buscar o mérito oculto. É mister que se paten-
teie ele próprio e se avilte à luta contra a intriga, a cupidez e a
ambição. É a antítese do que devera acontecer. Resulta que os mais
altos valores permanecem desconhecidos e improdutivos, e que as
honras sociais e a fortuna sejam quase sempre conquistadas pelos
intrigantes sem valor.
Camille Flammarion – Narrações do Infinito 154

Pois bem, ainda há pouco, em uma das regiões mais luminosas


da Via-Láctea, um sistema de mundos que visitei me apresentou
em todos os seus orbes, sem exceção, uma ordem intelectual abso-
lutamente diversa. Lá, a organização dos Estados é constituída de
tal sorte, que os homens escolhidos, pelas suas virtudes, para o
governo dos cidadãos, não têm outras funções além de irem ofere-
cer aos valores intelectuais as posições que lhes devem pertencer.
Busca-se descobrir as inteligências, tal qual vós outros procurais
encontrar ouro e diamantes. É para proveito da Humanidade. Não
se criaram academias, mas não se conceberia que um homem de
valor, em lugar de ser por elas solicitado, estivesse na contingência
de perder seu tempo em visitas de lisonja, para se ver em seguida
preferido muitas vezes um nulo dourado que soube captar os sufrá-
gios. É verdade que o referido sistema de mundos está em grau
intelectual muito superior.
Acrescentarei ainda, pois falamos da diversidade moral das
Humanidades, que um dos planetas que me pareceu dos mais feli-
zes é um orbe do grupo de Vega, onde a hidra da Guerra (que
devora entre vós outros 1.100 homens por dia, desde há 50 séculos)
foi decapitada de modo bem simples. Recentemente ouvi contar a
história do que ocorreu.
Um dia, as Câmaras dos diferentes povos (porque havia tam-
bém nações separadas) votaram a mesma lei, declarando que os
interesses das nações entram por vezes em rivalidades inevitáveis,
cabendo à sorte das armas ainda em certas circunstâncias decidir;
importava considerar, no entanto, que os povos são os verdadeiros
soberanos e constituem a base fundamental da Humanidade, e que
era inútil, oneroso e inconveniente derramar sangue de um tão
grande número de homens. Foi decidido que se limitaria daí em
diante o resultado desses choques a um combate único, singular,
entre os chefes de Estado, e que, quando a honra e a dignidade dos
povos o exigissem, os dois chefes das nações beligerantes se de-
Camille Flammarion – Narrações do Infinito 155

frontariam em duelo público, o qual somente cessaria com a morte


de um dos ditos representantes oficiais das pátrias em rivalidade.
A lei foi aplicada em todo o seu rigor. E, após dois ou três due-
los, e em menos de meio século, os chefes dos diferentes países
entenderam-se para assegurar uma confederação amiga de Estados-
Unidos de todos os povos do planeta, sob a previdência desses
representantes oficiais, formando o Grande Conselho Internacional
da República Universal, e a guerra desaparecia para sempre. A paz
reina ali desde há 100 séculos. Em vez de serem regidas por força
bruta, onerosa para todos e de uma selvageria bestial, as rivalidades
de interesses são discutidas em Conselhos de criaturas razoáveis.
Há, meu caro amigo terrestre, mundos incomparavelmente su-
periores à Terra, sob o ponto de vista da sabedoria e da felicidade,
e também sob o aspecto das condições físicas e orgânicas de que
falamos há pouco. Estas narrativas de além-túmulo não têm tido
outro intuito senão dar-vos uma exposição sumária das realidades
siderais desconhecidas da Terra.
Agora, tendes uma idéia do posto infinitamente pequeno, po-
rém real, ocupado pela Humanidade terrestre no Universo; sabeis
elementarmente o que é o Céu, e bem assim o que é a Vida... e o
que é a Morte.
A conclusão destas palestres, meu caro Quœrens, reside toda
ela no seu princípio. Quis que soubésseis que a lei física da trans-
missão sucessiva da luz no Espaço é um dos elementos fundamen-
tais das condições da vida eterna. Por essa lei, todo acontecimento
é imperecível e o passado resulta presente. A imagem da Terra de
há sessenta séculos está atualmente no Espaço, à distância que a
luz percorreu nesses sessenta séculos; os mundos situados em tal
região vêem à Terra daquela época. Nós outros podemos rever a
nossa própria existência diretamente, e nossas diversas existências
anteriores: basta para tanto estar à distância conveniente dos mun-
Camille Flammarion – Narrações do Infinito 156

dos onde houvermos vivido. Há estrelas vistas da Terra que não


existem mais, por isso que extintas, depois de haverem emitido os
raios luminosos que agora somente vos chegam; de igual modo que
poderíeis receber a voz de um homem distante, o qual poderia estar
morto no momento de se lhe ouvir a voz, dada a hipótese de ser
acometido de apoplexia imediatamente depois de haver projetado
um grito. Assim, estas conversações estabeleceram que os aconte-
cimentos do passado existem sempre, levados no éter do Espaço
infinito.
Sinto-me feliz por me haver esse quadro permitido traçar ao
mesmo tempo um panorama da diversidade das existências planetá-
rias, e bem assim das inúmeras formas vivas desconhecidas da
Terra. Aqui ainda, as revelações de Urânia são mais vastas e mais
profundas do que as de todas as suas irmãs. A Terra não passa de
um átomo no Universo.
Detenho-me aqui; todas essas numerosas e diversas aplicações
das leis da luz vos eram desconhecidas. Na Terra, nessa caverna
obscura, tão judiciosamente qualificada por Platão, vegetais em
plena ignorância das gigantescas forças em ação do Universo. O
dia virá em que a ciência física descobrirá na luz o princípio de
todo o movimento e a razão íntima das coisas. Já, desde há algum
tempo, a análise espectral tornou possível identificar, no exame de
um raio luminoso vindo do Sol ou de uma estrela, as substâncias
que constituem esse Sol e essa estrela; já podeis determinar, atra-
vés de uma distância de bilhões e trilhões de quilômetros, a nature-
za dos corpos celestes, dos quais recebeis apenas o raio luminoso!
O estudo da luz vos prepara resultados mais magníficos ainda, na
ciência experimental e em suas aplicações à filosofia do Universo.
Mas, eis que a refração da atmosfera terrestre estende para a-
lém do zênite a luz emanada do vosso Sol. As vibrações do dia
impedem me comunique por mais tempo convosco...
Camille Flammarion – Narrações do Infinito 157

Adeus, meu digno amigo. Adeus! ou antes, até breve! Talvez


regresse algumas vezes para conversar ainda com o vosso Espírito,
para demonstrar que jamais vos esqueço. Depois, mais tarde, quan-
do a hora da vossa alforria terrestre houver soado à sua vez, quando
o vosso corpo adormecer no derradeiro sono neste medíocre plane-
ta, eu virei ante vosso Espírito, e faremos então uma viagem real
através dos inenarráveis esplendores da imensidade. Nos sonhos
mais temerários da vossa fantasia não formareis jamais uma idéia,
sequer aproximada, das estupendas curiosidades, das maravilhas
inimagináveis que vos aguardam.

– Fim –
Camille Flammarion – Narrações do Infinito 158

Amigo(a) Leitor(a),

Se você leu e gostou desta obra, colabore com a divulga-


ção dos ensinamentos trazidos pelos benfeitores do plano
espiritual. Adquira um bom livro espírita e ofereça-o de pre-
sente a alguém de sua estima.
O livro espírita, além de divulgar os ensinamentos filosó-
ficos, morais e científicos dos espíritos mais evoluídos, tam-
bém auxilia no custeio de inúmeras obras de assistência social,
escolas para crianças e jovens carentes, etc.
As obras espíritas nunca sustentam, financeiramente, os
seus escritores; estes são abnegados trabalhadores na seara de
Jesus, em busca constante da paz no Reino de Deus.
Irmão W.

“Porque nós somos cooperadores de Deus.”


Paulo. (1ª Epístola aos Coríntios, 3:9.)

Você também pode gostar