Camille Flammarion - Narrações Do Infinito
Camille Flammarion - Narrações Do Infinito
Camille Flammarion - Narrações Do Infinito
Narrações
do Infinito
(Lúmen)
Narrações do Infinito
Camille Flammarion
Tradução de
Almerindo Martins de Castro
Copyright 1938 by
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Camille Flammarion – Narrações do Infinito 3
Índice
Primeira narrativa ........................................................................ 4
Segunda narrativa ...................................................................... 47
Terceira narrativa ...................................................................... 74
Quarta narrativa ......................................................................... 89
Quinta narrativa ....................................................................... 132
Camille Flammarion – Narrações do Infinito 4
Primeira narrativa 1
Resurrectio præteriti
I
Quœrens – Vós me haveis prometido, ó Lúmen!, fazer a narra-
tiva dessa hora, estranha entre todas, que se seguiu ao vosso derra-
deiro suspiro, e descrever de que modo, por uma lei natural, embo-
ra mui singular, revistes o passado no presente e penetrastes um
mistério que havia permanecido oculto até hoje.
Lúmen – Sim, meu velho amigo, vou cumprir a promessa e,
graças à longa correspondência de nossas almas, espero compreen-
dereis esse fenômeno estranho, conforme o classificastes. Há con-
templações cuja força o olhar mortal não pode suportar. A morte,
que me libertou dos frágeis e fatigáveis sentidos do corpo, ainda
não vos tocou com a sua mão emancipadora. Pertenceis ao mundo
dos vivos. Apesar do isolamento de ermo, nessas reais torres do
arrabalde Saint-Jacques, onde o profano não vem perturbar vossas
meditações, fazeis, sem embargo disso, parte da existência terrestre
e das suas superficiais preocupações. Não vos admireis, pois, no
instante de vos associar ao conhecimento do meu mistério, do
convite para que vos isoleis, mais ainda, dos ruídos exteriores e me
presteis toda a intensidade de atenção de que o vosso Espírito seja
capaz de concentrar nele próprio.
1
Escrito em 1866. Publicado pela primeira vez na Revista do Século
XIX, de l de Fevereiro de 1867. Desenvolvido, depois, pelas aplica-
ções sucessivas do mesmo princípio de óptica transcendente.
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2
A Anatomia fisiológica transcendente explicará talvez esse fato,
propondo admitir que uma espécie de punctum cœcum se desloca para
disfarçar o objeto que não mais se deseja ver.
Camille Flammarion – Narrações do Infinito 15
II
Quœrens – Que situação extraordinária para o vosso Espírito
analista, ó Lúmen! E qual o meio que vos permitiu chegar a conhe-
cer a realidade?
Lúmen – Os anciães da montanha tinham prosseguido a con-
versação, enquanto as reflexões precedentes se sucediam em meu
espírito. Subitamente, ouvi o mais idoso, espírito venerável cuja
cabeça nestoriana se impunha à admiração e ao respeito, exclamar,
em tom tristemente ressonante: “De joelhos, meus irmãos, implo-
remos indulgência ao Deus universal. Essa terra, essa nação conti-
nua a ensopar-se em sangue: uma nova cabeça, a de um rei, acaba
de tombar!”
Seus companheiros pareceram compreendê-lo, porque ajoelha-
ram sobre a montanha e prosternaram os alvos rostos contra o
chão.
Para mim, que ainda não estava habituado a distinguir figuras
humanas no meio das ruas e praças públicas, e que não havia a-
companhado a observação particular dos anciães, permaneci de pé
e insistindo no exame do quadro distante.
– Estrangeiro – disse o velho –, condenais a ação unânime de
vossos irmãos, pois que não vos unistes à prece que fizeram?
– Senador – respondi –, não posso condenar, nem aplaudir,
pois não sei do que se trata. Chegado a esta montanha há pouco,
desconheço a causa da vossa religiosa imprecação.
Então, aproximei-me do velho e, enquanto seus companheiros
se ergueram e entretinham em mútua conversação, eu lhe pedi que
me narrasse as suas observações.
Ensinou-me que, dada a intuição de que são dotados os Espíri-
tos do grau dos habitantes desse mundo, e também pela faculdade
íntima de percepção que lhes coube em partilha, possuem uma
Camille Flammarion – Narrações do Infinito 22
3
Ninguém ignora que, quanto mais distante se encontra um objeto,
mais ele parece menor. O que é visto no ângulo de um segundo, está
distante 206.265 vezes do seu tamanho natural, qualquer que seja o
objeto, pois existindo 1.296.000 segundos em uma circunferência, a
relação desta para o diâmetro é de 3,14159, e
1.296.000 / (3,14159 x 2) = 206.265
A estrela Capela não divisando o meio diâmetro da órbita terrestre
senão sob um ângulo 22 vezes menor, sua distância é 22 vezes maior;
ela é, conseqüentemente, de 4.484.000 vezes o raio da órbita terrestre.
As medidas micrométricas futuras poderão modificar as cifras desta
paralaxe, mas em nada alterarão o princípio que serviu de base ao pre-
sente livro.
Camille Flammarion – Narrações do Infinito 27
III
Lúmen – Depois de haver desviado meu olhar das cenas san-
grentas da praça da Revolução, eu me senti atraído para uma habi-
tação de antiquado estilo, fazendo face para a Notre Dame, e situa-
da no terreno ora ocupado pelo átrio. Diante da porta interior (pa-
ravento), havia um grupo de cinco pessoas, que estavam meio
deitadas sobre bancos de madeira, cabeça descoberta exposta ao
Sol. E porque pouco depois se levantassem e se dirigissem a seus
lugares, reconheci em uma a pessoa de meu pai, tão moço qual
jamais eu imaginara, minha mãe, mais jovem ainda, e um de meus
primos, falecido no mesmo ano da morte de meu pai, aproximada-
mente há 8 lustros. É difícil, à primeira vista, reconhecer as pesso-
as, pois, ao invés de serem vistas de face, são olhadas do alto,
como que de um andar superior. Não me surpreendeu muito tal
encontro. Recordei-me então ter ouvido dizer, na minha juventude,
que meus parentes residiam, antes do meu nascimento, na praça
Notre Dame.
Com estupefação maior no sentir do que no poder expressar,
senti minha vista fatigada e cessei de distinguir qualquer coisa, tal
qual nuvens se houvessem estendido sobre Paris. Acreditei, por
minutos, que um turbilhão me arrastava. De resto, já o haveis
decerto compreendido, não possuía mais a noção do tempo.
Quando revi distintamente os objetos, notei um grupo de cri-
anças correndo na praça do Panteão. Esses colegiais me pareciam
saídos da aula, pois conduziam bolsas e livros, e tinham a aparên-
cia de regressar aos lares, saltitando e gesticulando. Dois entre eles
atraíram minha atenção em especial, porque pareciam alterados por
uma rixa qualquer e começavam uma luta particular. Um terceiro
avançou para separá-los, mas recebeu um encontrão de ombros que
o atirou ao chão. No mesmo instante vi uma senhora correr para o
menino. Era minha mãe. Ah! jamais, nunca, em meus setenta e dois
Camille Flammarion – Narrações do Infinito 34
Segunda narrativa 4
Refluum temporis
I
Quœrens – As revelações interrompidas pela aurora, ó Lúmen,
deixaram, desde então, minha alma ávida de penetrar mais fundo o
singular mistério. De igual modo que a criança, a quem se mostrou
um fruto saboroso, deseja nele meter gulosamente os dentes, e
quando prova mais deseja, assim minha curiosidade procura novos
júbilos nos paradoxos da Natureza. É acaso temerária indiscrição
submeter-vos algumas questões complementares que meus amigos
me comunicaram, desde o dia em que os fiz participantes da nossa
conversação? E posso pedir continueis a narrativa das vossas im-
pressões de além-Terra?
Lúmen – Não posso, meu amigo, consentir em tal curiosidade.
Embora perfeitamente disposto que seja vosso Espírito para bem
receber minhas palavras, estou persuadido, não obstante, de que as
particularidades do meu assunto não vos tocaram harmonicamente,
não tiveram todas aos vossos olhos a evidência da realidade. Acu-
sou-se de mística a minha narrativa. Não se compreendeu que aqui
não existe romance, nem fantasia, e sim uma verdade científica, um
fato físico, demonstrável e demonstrado, indiscutível, e que é tão
positivo quanto a queda de um aerólito ou a translação de um
projétil de canhão. O motivo que vos impediu, a vós outros, de bem
apreender a realidade do fato, reside em que o caso se desenrola
fora da Terra, numa região estranha à esfera de vossas impressões,
4
Escrita em 1867.
Camille Flammarion – Narrações do Infinito 48
das suas origens, por uma oscilação que pode existir, à semelhança
das variações da agulha imanada das bússolas, a exemplo dos
movimentos dos astros. As personagens que me pareceram ser no
momento o Duque de Orleães e Luís XVIII, são talvez outros
príncipes que estão repetindo exatamente quanto os primeiros
fizeram.
Tal hipótese, todavia, me pareceu pouco verossímil, e me deti-
ve em outra mais racional.
Dada a multidão de estrelas e de planetas que gravitam em tor-
no de cada uma delas, perguntava-me eu, qual a probabilidade para
que se encontre no Espaço um mundo exatamente igual à Terra?
O cálculo das probabilidades responde a esta questão. Quanto
maior o número dos mundos, maior será a probabilidade de que as
forças da Natureza hajam dado origem a uma organização seme-
lhante à terrestre. Ora, o número exato dos mundos ultrapassa toda
a numeração humana escrita ou passível de ser escrita. Se compre-
endemos o Infinito, ser-nos-á talvez permitido dizer que esse nú-
mero é infinito. Daí concluir eu que há mui alta probabilidade em
favor da existência de muitos mundos exatamente semelhantes à
Terra, à superfície dos quais se realiza a mesma história, a mesma
sucessão de acontecimentos, e que se acham habitados pelas mes-
mas espécies vegetais e animais, a mesma Humanidade, os mesmos
homens, as mesmas famílias, identicamente.
Perguntei-me, em segundo lugar, se tal mundo, sendo análogo
à Terra, não lhe poderia ser simétrico. Aqui ingressava eu na geo-
metria e na teoria metafísica das imagens. Cheguei a admitir possí-
vel que o mundo em questão fosse semelhante à Terra, mas todavia
inverso. Quando vos examinais diante de um espelho, vereis que o
anel-aliança (de casamento), posto na mão direita, passou para o
dedo anular da mão esquerda, o que modifica o seu símbolo; que,
se piscais o olho direito, o sósia piscará o esquerdo; que, se esten-
Camille Flammarion – Narrações do Infinito 52
II
Lúmen – A primeira circunstância se prende à batalha de Wa-
terloo.
Quœrens – Ninguém melhor do que eu recorda essa catástrofe,
pois recebi uma bala na espádua, perto do Mont-Saint-Jean, e um
golpe de sabre em cima da mão direita, vibrado por um dos biltres
de Blücher.
Lúmen – Pois bem, meu velho camarada, assistindo de novo a
essa batalha, eu a vi de modo diferente daquele pelo qual se desen-
rolou. Julgareis disso bem depressa.
Quando reconheci o campo de Waterloo, ao sul de Bruxelas,
divisei primeiramente um considerável número de cadáveres, sinis-
tra assembléia da morte deitada sobre o chão. Ao longe, por entre o
nevoeiro, lobrigava-se Napoleão chegando em recuo, com o seu
cavalo seguro pela rédea; os oficiais que lhe faziam séqüito mar-
chavam igualmente retrocedendo! Alguns canhões deveriam come-
çar o seu ribombo, pois, de tempo em tempo, eram vistas as tristes
luzes dos seus clarões. Quando a minha vista se aclimatou suficien-
temente ao panorama, vi, em primeiro lugar, que alguns soldados
mortos despertavam, ressuscitavam da noite eterna e se levantavam
de um só movimento! Grupos a grupos, um grande número ressus-
citou. Os cavalos mortos despertaram tal qual os cavaleiros e estes
remontaram nos bucéfalos. Tão logo dois ou três mil desses ho-
mens voltaram à vida, eu os vi formarem em perfeita linha de
batalha; as duas hostes se defrontaram e começaram batendo-se
com encarniçamento, furor mesmo, que quase se poderiam tomar
por desespero. Uma vez iniciada a luta pelas duas partes, os solda-
dos ressuscitavam mais rapidamente: Franceses, Ingleses, Prussia-
nos, Hanoverianos, Belgas; capotes cinzentos, uniformes azuis,
túnicas vermelhas, verdes, brancas, levantam-se do exército fran-
Camille Flammarion – Narrações do Infinito 64
5
Esta concepção da história retrospectiva, dos acontecimentos revolvi-
dos, foi assinalada por Henrique Poincaré em suas sábias dissertações
matemáticas. Podem-se ler as linhas seguintes em sua obra “Ciência e
Método” (págs. 71-72), publicada, em 1908:
As leis da Natureza ligam o antecedente ao conseqüente, de tal sorte
que o antecedente é determinado pelo conseqüente tão bem quanto o
conseqüente pelo antecedente. Flammarion havia imaginado outrora
um observador que se distanciasse da Terra com velocidade maior do
que a da luz, para o qual o Tempo teria mudado de significação e a
história se tornaria retrospectiva – Waterloo precedendo Austerlitz.
Para tal observador os efeitos e as causas seriam intervertidos.
E mais adiante (pág. 83):
Não estamos no final dos paradoxos. Retomemos a ficção de Flamma-
rion, aquela em que o homem anda mais rapidamente do que a luz e
Camille Flammarion – Narrações do Infinito 69
Terceira narrativa 6
Homo homunculus
6
Escrita em 1867.
Camille Flammarion – Narrações do Infinito 75
7
Opinião pessoal de Lúmen. (Nota da Editora)
Camille Flammarion – Narrações do Infinito 76
Quarta narrativa
Anteriores vitae
I
Enquanto estava, havia pouco tempo ainda (mas não sei ex-
pressar esse tempo em rotações terrestres), ocupado, em meio de
melancólica paisagem de Capela e no prólogo de uma noite trans-
parente, a contemplar o céu estrelado, e nesse céu a estrela que é o
vosso sol terreal, e na vizinhança dessa estrela o pequeno planeta
azulado que é a vossa pátria; enquanto observava uma das cenas da
minha primeira infância, minha jovem mãe, sentada no meio de um
jardim, trazendo em seus braços uma criança (meu irmão) e tendo
ao lado outra criança que não contava ainda mais de duas primave-
ras (minha irmã), e um rapazinho com o dobro de idade desta (eu);
enquanto eu me via nessa idade em que o homem não tem ainda
consciência da vida intelectual, e traz sem embargo disso na fronte
o gérmen da sua vida inteira; enquanto pensava na singular reali-
dade que me mostrava a mim mesmo no início da minha carreira
terreal, sentia a atenção desviada do vosso planeta por um poder
superior, e meus olhares dirigirem-se a um outro ponto do céu, que
me pareceu ligado à Terra e à minha carreira nesse planeta por
algum liame oculto. Não pude evitar ficasse minha vista presa a
esse novo ponto do céu: uma potência magnética a acorrentava.
Várias vezes ensaiei retirar dali meu olhar e reconduzi-lo à Terra
(que tanto estimo), mas, obstinadamente, voltava à estrela desco-
nhecida.
Essa estrela, na qual a minha visão buscava, por assim dizer,
instintivamente adivinhar alguma coisa, faz parte da constelação da
Virgem, asterismo cuja forma varia um pouco, visto de Capela. É
uma estrela dupla, isto é, a associação de dois sóis, um de brancura
argêntea, outro amarelo-ouro vivo, que giram em torno mútuo,
numa revolução de sete quartos de século. Vê-se essa estrela a olho
nu, da Terra, e está inscrita sob a letra Gama (grega) da constelação
da Virgem. Em volta de cada um dos sóis que a constituem, há um
Camille Flammarion – Narrações do Infinito 95
vê, não somente a sua vida terreal, mas ainda as outras existências
precedentes.
De que modo a alma, envolta nos liames grosseiros da carne
terrestre, e aí acorrentada para um trabalho transitório, poderia
recordar-se da sua vida espiritual? Quantas vezes tal lembrança
seria prejudicial? Que entraves não trariam à liberdade dos atos, se
tal recordação mostrasse à alma suas origens e seu destino? Qual
mérito poderia ter se conhecesse as sanções futuras? As almas
encarnadas na Terra ainda não atingiram um grau de progresso
bastante elevado, para que a lembrança do seu estado anterior lhes
possa ser útil. A imanência das impressões psíquicas não se mani-
festa neste orbe de passagem. A lagarta recorda acaso a sua vida
rudimentar no casulo? A crisálida adormecida tem reminiscência
dos dias empregados no labor, quando se rojava sobre as plantas
rasteiras? A borboleta, que voa de flor em flor, não precisa recor-
dar o tempo em que a sua múmia sonhava suspensa na teia, nem o
crepúsculo no qual a sua larva se arrastava de erva em erva, nem à
noite quando a casca de uma pevide a envelopava. Isso não impede
que o óvulo, a lagarta, a crisálida e a borboleta sejam um único e
mesmo ser.
Em alguns casos da própria vida terrena, tendes exemplos no-
táveis da ausência de recordação, tais os do sonambulismo, natural
ou provocado, e os de certas condições psíquicas que a moderna
ciência estuda. Não existe, pois, nada de surpreendente no fato de
que durante uma existência seja esquecida a anterior. A vida urâni-
ca e a vida planetária representam dois estados distintos um do
outro.
Quœrens – Entretanto, mestre, já tendo vivido outra existência,
alguma coisa dessa anterior vida devia perdurar. De outro modo,
tais encarnações equivalem a inexistentes.
Camille Flammarion – Narrações do Infinito 106
II
Quœrens – A reflexão e o estudo, ó Lúmen, já me haviam feito
próximo da crença na pluralidade das existências da alma. Mas,
estando tal doutrina longe de ter em seu favor provas lógicas,
morais e mesmo físicas, tão numerosas e tão evidentes quanto a da
pluralidade dos mundos habitados, confesso que até esse então a
dúvida permanecia no meu pensamento. A óptica moderna e o
cálculo transcendental, que nos fazem, por assim dizer, tocar os
outros mundos com a ponta dos dedos, mostram o decurso do ano,
das estações, dos dias desses mundos, fazem com que assistamos
às variações da Natureza viva nas suas superfícies; todos esses
elementos permitiram à Astronomia contemporânea fundar a dou-
trina da existência humana nos outros astros sobre base sólida e
imperecível. Mas, ainda uma vez, não ocorre o mesmo com a pa-
lingenesia e, embora pendendo fortemente para a transmigração
das almas em um verdadeiro céu (pois que é meio único pelo qual
podemos representar a vida eterna), minhas aspirações reclamam,
no entanto, para que se sustenham e consolidem, uma luz que não
tive ainda.
Lúmen – É precisamente essa luz que se faz objeto de nossa
conversação de hoje, e desta se evidenciará. Tenho, confesso, uma
vantagem sobre vós, pois posso falar de visu, e limito-me rigoro-
samente ao papel de intérprete fiel dos acontecimentos com os
quais a minha vida espiritual é, na atualidade, entretecida. Vossa
inteligência, sabendo agora compreender a possibilidade, a veros-
similhança da explicação científica da minha narrativa, só pode,
ouvindo-me, aumentar o seu saber.
Quœrens – É por esse motivo, principalmente, que sempre es-
tou sedento da vossa palavra.
Lúmen – A luz, compreendestes, se encarrega de dar à alma
desencarnada a vista direta das respectivas existências planetárias.
Camille Flammarion – Narrações do Infinito 112
III
Lúmen – Minha existência anterior à do mundo de Andrômeda
foi vivida no planeta Vênus, vizinho da Terra, onde me recordo que
tive o sexo feminino. Não a revi diretamente, pela lei da luz, por
isso que esta despende o mesmo tempo para vir de Vênus ou da
Terra à estrela Capela, e, por conseqüência, olhando Vênus, eu
olhava atualmente o seu aspecto de há 864 meses, e não o que fora
há nove séculos, época da minha existência lá.
Minha quarta vida anterior à existência na Terra se passou em
um imenso planeta anelar, pertencente à constelação do Cisne, e
situado na zona da Via-Láctea. Esse mundo é habitado somente por
árvores.
Quœrens – Quer isso dizer que ali existem plantas, e não há
animais, nem seres inteligentes e falantes?
Lúmen – Tal qual. Somente plantas, é verdade; mas, nesse vas-
to mundo de plantas, existem raças vegetais mais avançadas do que
as que medram sobre a Terra; plantas existem que vivem de modo
igual a nós outros: sentem, pensam, raciocinam e falam.
Quœrens – Mas é impossível!... Oh, perdão! quero dizer, é in-
compreensível, e completamente inconcebível.
Lúmen – Essas raças inteligentes existem de fato, tanto assim
que fiz parte delas, há quinze séculos, quando fui árvore racioci-
nante.
Quœrens – De que maneira? De que forma pode uma planta
raciocinar sem cérebro e falar sem língua?
Lúmen – Ensinai-me, eu vos rogo, qual o processo íntimo de
que vos servis para pensar, e bem assim qual a transformação de
movimentos de que se serve a vossa alma para traduzir suas con-
cepções mudas em palavras audíveis...
Camille Flammarion – Narrações do Infinito 125
espécie. Têm uma história social, não escrita, pois nada se pode
perder entre eles, atendendo-se à ausência de emigrações e con-
quistas, história feita por tradições e por gerações. Cada uma co-
nhece a história da sua raça. Possuem também os dois sexos, tal
qual ocorre com os terrestres, e suas uniões se processam de um
modo análogo, porém incomparavelmente mais casto. E não é
indispensável a união consangüínea; há fecundações a distância.
Quœrens – Mas, afinal, como podem comunicar mutuamente
seus pensamentos, se é que pensam? E, além disso, mestre, de que
modo vós mesmo vos reconhecestes nesse mundo singular?
Lúmen – Uma resposta só vos dará a das duas perguntas. O-
lhava esse anel da constelação do Cisne, e a vista ali se me prendia
com persistência; estava surpreendido, eu mesmo, de enxergar
apenas vegetais naquela superfície, e notei principalmente os sin-
gulares agrupamentos existentes nas campinas: aqui, dois a dois;
mais adiante, três a três; pouco além, dez a dez; noutras partes, em
maior número. Via os que pareciam sentados ao bordo de uma
fonte; outros semelhavam estar deitados, tendo em redor pequenos
rebentos; procurei entre todos identificar as espécies terrestres, tais
os abetos, os carvalhos, os álamos, os salgueiros, mas não assinalei
essas formas botânicas. Enfim, fixei muitas vezes meu olhar sobre
um vegetal com a forma de figueira, sem folhagem e sem frutos,
tendo flores vermelho-escarlate. De súbito, vi a enorme figueira
alongar um ramo, à guisa de braço gigantesco, levar a extremidade
desse braço à altura correspondente à cabeça, destacar uma das
flores magníficas que lhe serviam de cabeleira e apresentá-la em
seguida, inclinando a fronte, a uma outra figueira, esbelta, elegante,
portadora de suaves flores azuis, colocada a alguma distância, em
frente da ofertante. A distinguida pareceu receber a flor vermelha
com um certo prazer, porque estendeu um ramo (dir-se-ia cordial e
fina mão) ao vizinho, e pareceu terem assim ficado por longo tem-
po. Sabei que, em certas circunstâncias, basta um gesto para reco-
Camille Flammarion – Narrações do Infinito 129
nhecer uma pessoa. Foi o que me aconteceu ante tal cena. O gesto
da figueira da Via-Látea despertou em meu Espírito todo um mun-
do de recordações. Esse homem-planta era ainda eu, de há quinze
séculos, e identifiquei meus filhos nas figueiras de flores violeta
que me cercavam, pois lembrei que a cor das flores descendentes
resulta da fusão das cores dos ascendentes paterno e materno.
Os homens-plantas vêem, ouvem e falam, sem olhos, sem ore-
lhas e sem laringe. Na Terra, já tendes flores que distinguem muito
bem, não somente o dia da noite, mas ainda as diferentes horas do
dia, a altura do Sol no horizonte, um céu puro de um nublado; que,
mais ainda, têm a repercussão dos diversos ruídos com esquisita
sensibilidade; que, finalmente, se entendem à maravilha entre elas
e até com as borboletas mensageiras. Esses rudimentos são desen-
volvidos a um verdadeiro grau de civilização no mundo do qual
vos dou notícia, e os seres dali são tão completos no respectivo
gênero quanto o sois vós outros na Terra, no vosso. Sua inteligên-
cia está, é certo, menos avançada do que a média intelectual da
Humanidade terrena; porém, nos costumes e nas relações recípro-
cas, revelam em todas as ocasiões uma doçura e uma delicadeza
que poderiam muitas vezes servir de modelo à mor parte dos habi-
tantes da Terra.
Quœrens – Mestre, de que modo se pode ver sem olhos e ouvir
sem orelhas?
Lúmen – Cessareis o assombro, meu velho amigo, se refletir-
des que a luz e o som são apenas dois modos de movimento. Para
apreciar uma ou outra de tais maneiras de movimento, é necessário
(e basta) ser dotado de aparelho em correspondência com uma das
duas, ainda que o aparelho seja um simples nervo. Os olhos e as
orelhas constituem os ditos aparelhos para a natureza terreal. Em
outra organização, de outra natureza, tanto o nervo óptico quanto o
auditivo terão outra forma para a função de órgãos. Além disso,
não existem dentro da Natureza somente esses dois modos de
Camille Flammarion – Narrações do Infinito 130
Quinta narrativa
mais seguro é que as coisas não são tal qual nos parecem, nem no
espaço, nem no tempo. Voltemos, porém, ao relâmpago retardado.
Quando viajais com a velocidade da luz, vedes constantemente
o aspecto existente no momento da partida. Se permanecêsseis
durante um ano levado por essa mesma rapidez, teríeis ante os
olhos, durante um ano, o mesmo acontecimento. Mas, se para
melhor apreciar um acontecimento que não houvesse durado mais
de alguns segundos (o desabar de um monte, uma avalanche, um
tremor de terra, por exemplo), o Espírito sutil, posto em ação por
mim, parte de modo a apreciar o começo da catástrofe e, diminuin-
do um pouco a marcha em relação à da luz, de modo que não veja
constantemente o princípio, mas o imediato momento que o seguiu,
depois o segundo, e assim sucessivamente, de maneira que não
chegue ao fim antes de uma hora de exame, e seguindo quase a luz,
o acontecimento dura para ele uma hora, ao invés de alguns segun-
dos; ele vê os penhascos ou as pedras suspensos no ar e pode,
assim, render-se conta do modo de produção do fenômeno e das
peripécias retardadas. Já podeis, nas possibilidades científicas
terrestres, apanhar fotografias instantâneas dos momentos sucessi-
vos de um fenômeno rápido, tais o relâmpago, um bólido, as vagas
do mar, erupções vulcânicas, a queda de um edifício, e fazê-los em
seguida passar aos olhares com lentidão calculada ante a persistên-
cia retiniana. De igual maneira, mas em sentido contrário, podeis
fotografar o aparecimento da flor em botão até seu total desabro-
char e daí até ao fruto, o desenvolvimento de uma criança, desde o
nascer até a idade madura – e projetar essas fases sobre um fundo
apropriado, fazendo desfilar em alguns segundos a vida de um
homem ou de uma árvore.
Li, em vosso pensamento, haverdes comparado esse processo
ao de um microscópio que aumentasse o tempo. É exatamente isso:
vemos assim o tempo amplificado. O processo não pode receber
Camille Flammarion – Narrações do Infinito 152
– Fim –
Camille Flammarion – Narrações do Infinito 158
Amigo(a) Leitor(a),