O Sujeito Que Resta

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O SUJEITO QUE RESTA: LÍRICA, LINGUAGEM, POLÍTICA

Diogo Cesar Nunes

Historiador; mestre e doutorando em Psicologia Social


(UERJ). Pesquisador do grupo de pesquisa Subjetividade,
Narrativas, Imagens (PPGPS-UERJ/CNPq). Professor da
UNIABEU Centro Universitário; pesquisador PROBIN-
UNIABEU. Endereço eletrônico: diogodcns@gmail.com

RESUMO: O presente artigo levanta alguns apontamentos, de caráter


introdutório, acerca da relação entre linguagem, poesia e política,
Poesia;
buscando considerar como mote o problema da significação. Intenta
Linguagem;
articular, em tal contexto, destacados aspectos da filosofia adorniana
Língua; Sujeito;
com algumas contribuições de Giorgio Agamben à reflexão tanto
Poeta.
sobre a linguagem quanto em relação às noções de sujeito e poeta.

The subject that remains: lyric poetry, language, politic


Poetry; ABSTRACT: This paper discusses some introductory notes about the
Language; relation between language, poetry and politics, considering, as its
Langue; Subject; theme, the problem of meaning. In that context, it intends to
Poet. articulate some aspects of Adorno's philosophy with some reflections
of Giorgio Agamben about language and about the subject and poet
notions. 57
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Envio: 21/06/2016 ◆ Aceite: 20/07/2016

Revista Nós ¦ Cultura, Estética e Linguagens ◆ v.01 n.02 - 2016 ◆ ISSN 2448-1793
O que resta é fundado pelo poeta.
Hölderlin.

1.
Em conhecida passagem, originalmente publicada em Crítica da Cultura e Sociedade,
de 1949, Adorno (2008a, p. 25) afirmou que “escribir un poema después de Auschwitz es
barbarie, y esto corroe también al conocimiento que dice por qué hoy es imposible escribir
poemas”. Das mais enigmáticas, a frase põe sob suspeita qualquer comentador e, em risco,
tentativas de explicação, pois afirma a barbárie e a impossibilidade não somente no que se
refere a “escrever poemas”, mas implica-as também no “conhecimento” da sua razão. O
trecho que seguediz: “hasta la consciencia extrema de la fatalidad amenaza con degenerar en
palabrería”.
Interessa-nos, pois, como ponto de partida, pensar sobre a impossibilidade de
compreensão da impossibilidade da escrita poética. Correndo o risco de “degenerar
enpalabrería”, trata-se de confrontar, desde o início, o imperativo da impossibilidade da
compreensão, tomando-o como enigma e não mandamento. Pois, se o recebemos como
doutrina, haveremos de parar de frente a ele, sem nada poder dizer. Entretanto, se nos
aparece como enigma, o confronto é permitido, e sem o recusar, posto que “a essência do
enigma”, como escreveu Agamben (2012a, p. 105), esteja “no fato de a promessa de mistério
que ele gera ser sempre necessariamente gorada, uma vez que a solução consiste
precisamente em mostrar que o enigma não era mais que aparência”. Ou seja, ao tomarmos
como enigma a impossibilidade da compreensão da impossibilidade da poesia, nos
confrontamos com uma compreensão que já é, ela mesma, impossível, ou impraticável. Nossa
meta não é outra, portanto, que o fracasso, ou, dizendo em outros termos, revelar que no
fracasso da interpretação do enigma subjaz a (única) possibilidade de sua compreensão.
Cumpre observarmos que a própria noção de interpretação [Deutung] desenvolvida
por Adorno, desde A Atualidade da Filosofia (ADORNO, 1991), de 1931, sob influência
marcante de Walter Benjamin (em especial, o Prefácio da sua Origem do Drama Barroco
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Alemão), aponta para o recíproco jogo de deslocamentos e associações que negam a


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possibilidade de desvendamento da verdade como conteúdo de uma mensagem (Cf.

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MUELLER, 2009). A interpretação crítica, que define o fazer filosófico, tem pretensão de
verdade, mas sem nunca dispor de uma “chave segura”; o que aparece ao intérprete são
“figuras enigmáticas do-que-está-aí”. Ou seja, o texto a ser interpretado como enigma [Rätsel]
se apresenta como fragmentado, a compor uma “constelação cambiante”, sem forjar
qualquer totalidade de sentido: sinais, vestígios e destroços que serão deslocados e re-
arrumados, formando um novo texto que, por sua vez, há de ser “incompleto, contraditório e
descontínuo” (ADORNO, 1991, p. 87-88-89). À impossibilidade da “descoberta” da verdade
corresponde a “possibilidade de abertura inesgotável” de sentido (MALDONATO, 2014, p.
19)1.
Na frase de Adorno, uma “figura” qued esponta é a associação entre barbárie e
impossibilidade: primeiro, escrever poema após Auschwitz “é barbárie” e, na sequência, “é
impossível”.É sabido que o tema da barbárie se faz presente em destacados escritos
adornianos, sobretudo na Dialética do Esclarecimento, publicada dois anos antes de Crítica da
Cultura e Sociedade. Mas talvez não seja na própria “barbárie”, mas em “Auschwitz” que
encontremos o significante mais preciso para a (tentativa de) compreensão da associação
entre barbárie e impossibilidade. Em texto sobre a peça Fim de partida, de Samuel Beckett,
publicado em 1965, Adorno desenvolve uma reflexão semelhante ao dizer que:

Después de la Segunda Guerra Mundial todo está destruido, incluida, sin


saberlo, la cultura resucitada; la humanidad sigue vegetando arrastrándose,
tras sucesos a los que realmente ni siquiera los supervivientes pueden
sobrevivir, sobre un montón de escombros que hasta ha perdido la capacidad
de una autorreflexión sobre la propia destrucción (ADORNO, 2003a, p. 247).

A “cultura ressuscitada” é um “tormento prolongado” cuja condição é a de uma “pena


de morte vitalícia”. E é Auschwitz, pois, o símbolo absoluto dessa “cultura” dos escombros e
da destruição em que se perdeu a capacidade de refletir sobre a própria destruição. A
associação entre barbárie e impossibilidade tem em Auschwitz seu significante central, pois é
ele o símbolo da destruição – e, sobretudo, da destruição da reflexão sobre a destruição – na

1“O fragmento retorna [contra “o fantasma da unidade-identidade”] como sentido e valor em si,
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possibilidade de abertura inesgotável, espaço de leituras múltiplas que se entrelaçam com ele. A quebra
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da unidade-identidade-totalidade em tantos pedaços [...] solicita que sejam deixados para trás os
convencionalismos formalizados e se adote uma linguagem divergente, e não ancoragens fixas”
(MALDONATO, 2014, p. 19).

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medida em que seu registro seja o da “violência do indizível”: a incomensurabilidade da
experiência da ausência de experiência, e, no limite, a impossibilidade de qualquer
hermenêutica.
O que faz da Shoah o elemento central, por assim dizer, do tempo histórico presente,
é ser lido o acontecimento não como um desvio de percurso, tampouco efeito de contextos
circunstanciais, mas como evento histórico que fixa algo que lhe ultrapassa, algo que,
persistente, aponta para fora do próprio evento. Em outros termos, seria o Campo o expoente
mais nítido da desrazão da razão instrumental, técnica e totalitária, que pauta o “processo
histórico” moderno, sobre o qual não cessamos de avançar. E o que Auschwitz revela, na
condição de figura mais concreta do presente, é o vazio que desponta(ria) de qualquer
revelação: o que seu nome comunica é a incomunicabilidade e o que sua experiência
representa é o vazio de experiência. Enfim, “depois de Auschwitz” impossível é a própria
representação, que não pode representar senão sua impossibilidade – ou sua incapacidade
representativa. “No significar nada se convierteenel único significado”, anotou Adorno no
mesmo texto (Ibid., p. 294).
Se o que resta de Auschwitz é justamente a impossibilidade da representação, temos
diante de nós sempre escombros cujos significados são ausentes, a despeito de qualquer
esforço ou técnica. Entretanto, a impossibilidade da hermenêutica não implica no fim da
interpretação; ao contrário, todo escombro – vestígio, portanto –, como enigma, se oferece à
crítica, não para promover o encontro com a (ou da) verdade [ou o encontro com (ou de) “o”
significado], porque impossível, mas para, antes de qualquer coisa, desfazer com qualquer
aparência de identidade/unidade/totalidade. Pois, se “somente são verdadeiros os
pensamentos que não compreendem a si mesmos” (ADORNO, 2008b, p.187)2, igualmente “só
é verdadeira a representação que representa também a distância que a separa da verdade”
(AGAMBEN, 2012a, p. 106). Em suma, é precisamente o problema da im/possibilidade da
compreensão que aparece a qualquer tentativa de compreensão.

2 Do original “Wahrsindnur die Gedanken, die sichselbstnicht verstehen”. Na edição de MinimaMoralia


que usamos: “Somente são verdadeiras as ideias que não se compreendem a si próprias”. Mantemos
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“pensamentos” e não “ideias” para não confundir com a tese benjaminiana, contida em Origem do
Drama Barroco Alemão, de algum modo “idealista”, de que “a ideia é mônada”. Adorno aqui emprega
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Gedanken (traduzido como pensamento) e não Idee (ideia); não se referindo, nessa frase, portanto, ao
menos não de forma direta, ao “idealismo” de Benjamin.

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2.
O problema da representação, e, mais especificamente, da sua im/possibilidade, está
presente nas mais influentes obras da filosofia ocidental, de modo que nos parece
desnecessário aqui elaborar uma espécie de revisão ou de inventário. Interessa, entretanto,
demarcar algumas balizas. De acordo com Rancière, trata-se de um problema político, assim
entendido ao menos desde Platão, pois existe “na base da política, uma ‘estética’”. Trata-se
de

[...] um recorte dos tempos e dos espaços, do visível e do invisível, da palavra


e do ruído que define ao mesmo tempo o lugar e o que está em jogo na
política como forma de experiência. A política ocupa-se do que se vê e de
que se pode dizer sobre o que é visto, de quem tem competência para ver e
qualidade para dizer, das propriedades do espaço e dos possíveis do tempo.
(RANCIÈRE, 2005, p. 16-17).

O atravessamento entre política e estética está na base tanto da política quanto da


estética. Isso interessa notar, sobretudo na medida em que a discussão parece enveredar
irremediavelmente para a epistemologia. Não obstante, como Adorno (1995) havia anotado
em Sobre sujeito e objeto, teoria do conhecimento é teoria social. O que percebemos, como
percebemos, o que dizemos, como dizemos, e, a rigor, se é possível dizermos, são questões
que se encontram intimamente implicadas aos “lugares” da percepção e do dizer, e, no limite,
se referem às “propriedades do espaço e dos possíveis do tempo”. Como insinuamos, o
problema da compreensão não diz respeito somente à percepção, mas à linguagem, sendo,
em última análise, um problema político – a começar pela fenda que distingue o ruído da fala,
a phonédo logos, o som da palavra, o grunhido da linguagem propriamente dita (ou
propriamente humana).
Logo no início da Fenomenologia do Espírito, Hegel põe em questão as aporias (ou os
limites) do dizer algo a partir da percepção de algo – da “certeza sensível” kantiana. Para
Hegel, sujeito e objeto estão, desde sempre, mediatizados entre si. Ou seja, ainda que a
percepção empírica de um objeto pareça imediata, essa percepção somente pode acontecer
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a um sujeito em relação a um objeto, o que implica nessa dupla e recíproca mediatização. Não
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se trata, alerta Hegel, de uma propriedade nem de um efeito da consciência, mas da própria
natureza (ou da própria possibilidade) de uma intuição sensível (HEGEL, 1992, p. 75).
Se Kant havia determinado como a priori da sensibilidade as categorias do tempo e do
espaço, Hegel sugere a necessidade de três perguntas: o que é o Isto (o objeto sensível
percebido)?;o que é o agora?; o que é o aqui?. O problema que surge, para Hegel, é que
somente seja possível respondê-las parcialmente. Se a intuição sensível nos permite perceber
o agora (da percepção), não é possível dizê-lo sem que nesse gesto sejam ditos outros
“agoras”: o “agora” ao qual me referiria na escrita não é o “agora” da leitura, e, portanto, ao
dizer o “meu” agora, nessa palavra, digo também outros instantes que não são o “meu” agora,
ou seja, a sua negação. Esse problema não é tópico, mas estrutural de todo intento de dizer
algo: sempre se diz algo por um universal, o que significa que aquilo que é dito “é” e “não é”
aquilo que se diz. No limite, não é possível dizer a essência de algo, porque mediado.
Contudo, essa impossibilidade é a sua própria possibilidade, ou a única possibilidade.
Quer-se afirmar que todo e qualquer “dizer algo” o diz ao mesmo tempo em que diz também
a sua negação. “Nossos ‘visar’, para o qual o verdadeiro da certeza sensível não é o universal,
é tudo quanto resta frente a esses aqui e agora vazios e indiferentes” (Ibid., p. 77). Ou seja, o
que resta é indizível.
Como provoca Hegel no início da sua Fenomenologia, o dizer expressa aquilo que quer-
dizer e o indizível daquilo, já que o dizer algo é sempre mediado (se diz sempre um universal
e o negativo do algo, implícito no dizer dele). É impossível dizermos aquilo que se quer dizer,
ou, o Isto que quer-dizer, sem que ele seja negado: negado e conservado. Firmar uma
indicação, dizer o Isto é algo que sempre escapa se se espera firmar uma
identidade/totalidade.
Mas “dizer o Isto” seria uma questão de “primeira ordem” da filosofia, de acordo com
Agamben (2006a, p. 31): “Depois de enumerar as dez categorias, Aristóteles distingue, como
categoria primeira e suprema, a essência primeira das essências segundas. Enquanto estas
últimas são exemplificadas com o nome comum, a essência primeira [...] significa Isto Que”. O
problema do ser, diz Agamben, aparece – “desde o início” – implicado no problema do
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significado, relacionado, através do pronome demonstrativo, à “esfera do indicar”. Se o


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problema das “essências segundas” diz respeito ao significado do “nome comum” (homem,

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cavalo etc.), o problema da “essência primeira” é o do significado do pronome (“este” homem,
“este” cavalo etc.). Entre indicação e significação, entre mostrar e dizer há uma cavidade, uma
fratura, que, se se refere à “essência”, por assim dizer, tanto da metafísica quanto da ciência
(já que pressupõem a distinção entre indicar e significar e se justificam a partir dessa
distinção), é correlata àquela que justificaria a definição de homem como ser político, ou
essencialmente político (Cf. AGAMBEN, 2004).
O que sustenta a definição de homem como ser essencialmente político
(anthroposphyseipolitikonzoon) é um hiato correspondente àquele que funda a ontologia,
entre indicar e significar. Physei, enquanto “natureza” e enquanto “essência”, aponta para o
atravessamento – talvez tautológico e teleológico – entre princípio e fim. Se algo ou alguém
tem determinada essência – motivação, princípio –, há de cumprir seu destino realizando-a.
A “natureza” do anthropos, sendo política, há de se cumprir na política. Trata-se, todavia, de
uma natureza ambivalente, pois, na esfera política, a vida humana é Bíos, vida qualificada, e
não Zoé, vida orgânica. Ou seja, cumprindo sua natureza de animal político (politikonzoon) o
anthropos deixa de ser “zoon”, já que politikonzoon significa a transcendência da Zoé: o Bíos.
Essa ambivalência, antes de contradição, pode nos revelar que a distinção entre Zoé e Bíos,
sendo aquela entre Phoné e Logos, é um hiato: um espaço, não vazio, da dynamis, da potência.
Se a “natureza”, a “essência”, é também “destino”, tratamos, nesse hiato, da sua
condição básica e necessária, ao ponto de podermos dizer, parafraseando Heráclito, que a
natureza do homem, em vez de “a política”, seja “a potência”3. Neste sentido, a política é
menos a realização de uma essência que o espaço em que se põe em jogo a sua possibilidade.
Ou, como disse Vladimir Safatle (2012, p. 234), a política é “o espaço no qual o homem procura
incessantemente criar modos de reconhecimento no inumano [...] ir lá até onde a imagem de
si não alcança”; ou seja, “o” espaço de encontro e de tentativa de reconhecimento na (e com
a) alteridade, com o que escapa à normatização, à identidade, à mesmidade.
O problema do espaço distintivo entre o ruído e a palavra, entre o grunhido do corpo
orgânico e a linguagem do ser político, é um problema político, ou, talvez, “o” problema
político. A phoné indica, mas somente o logos pode significar. Entretanto, seria esse “o”
63

problema político exatamente porque a “potência” que une e distingue o ruído da palavra, o
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3Cf. fragmento 119: “O ethos do homem é seu daimón” (Ver SPINELLI, 2009).

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“pode” que preenche esse hiato, é, também, e necessariamente, “pode-não”. Pois, à reflexão
sobre o possível – sobre a potência e/ou sobre a possibilidade – caberia considerar sua
contrapartida dialeticamente necessária, seu complemento imprescindível: o impossível.
Todo “pode” pressupõe e implica um “pode-não”, que, se o contraria, o mantém como
possibilidade. Em outros termos, toda potência é impotência, já que a impotência é a
possibilidade da não realização da potência (Cf. AGAMBEN, 2015, p. 243-254). Isso recoloca
em cena o problema da significação, mas considerando o conflito fundamental, instaurado no
interior de qualquer tentativa de significar, que é o seu pode-não, ou seja, sua
im/possibilidade. Se a linguagem, como argumentou Hegel, impõe o limite da significação, não
é possível significar senão por ela. O conteúdo, portanto, de qualquer significação, como
tentativa de dizer algo, é que é impossível dizê-lo. Todavia, se o impossível é a contrapartida
dialeticamente necessária do possível, sem o qual ele se esvai, assegurar a impossibilidade de
dizer algo corresponde a afirmar sua possibilidade. O que se diz, quando se diz algo, é, então,
a possibilidade de dizê-lo – ou, no limite, esse conflito.

3.

“Toda literatura que interessa depois de Baudelaire”, disse Luiz Carlos Lima (2003, p.
102),“é uma luta com a impossibilidade do ato de escrever”. O que o ato de escrever afirma,
lutando com a impossibilidade de escrever, é, ora, a sua possibilidade. A arte, a literatura, e,
em particular, a poesia, marcariam a tentativa de levar ao limite a impossibilidade de
significar, para encontrar, assim, a possibilidade da significação. Isso implica em pensar a
poesia como “gesto” que subverte, de dentro, dialetizando, o significado ausente. Não que a
poesia firme, ou fixe, um significado; exatamente ao contrário, por escapar à pretensão de
dizer o Isto é que ela “pode”, enfim, dizer algo. Do mesmo modo em que “unicamente em
vestígios e escombros pode perdurar a esperança” (ADORNO, 1991, p. 73), é no limite do
significado ausente, “no espaço vazio das obras em ruínas”, pois, que o hiato entre indicação
e significação pode se superar, como espaço de dizer algo.
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Na Palestra sobre Lírica e Sociedade, de 1957, Adorno afirmou que “a grandeza” da


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obra de arte, e em particular da poética, está “em deixar falar aquilo que a ideologia esconde”

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(Id, 2003b, p. 68). A ideologia enquanto “falsa consciência” aparece em Adorno
majoritariamente como positivação da realidade: como totalidade, reificação e
homogeneidade4. É contra a (suposta) pacificação da realidade pelo conceito – e/ou pela
teoria – que o filósofo erige sua dialética negativa: a negação determinada consiste,
outrossim, em negar a possibilidade de acordo entre conceito e coisa – ou entre significação
e realidade empírica –, buscando ir “além do conceito por meio do conceito” (Id, 2009, p. 22),
“dizer o que não pode ser dito” (Ibidem, p. 16; grifo nosso). Neste sentido, a arte é aquela
expressão que, em vez de reduzir o contraditório e o não idêntico à aparência de identidade
e não contradição, explora, através das suas particularidades formais e técnicas, os
deslocamentos entre cultura e experiência, as “fissuras” da realidade e as insuficiências de
todo esforço de significação. A arte está, assim, além da ideologia na medida em elabore, no
seu particular, as contradições do todo “danificado” sem o reificar; sem apelar, portanto, à
tentativa de submissão da experiência à representação, uma vez que são, em si mesmas e
entre si, histórica e culturalmente mediadas. Na Teoria Estética, Adorno afirmou que “mais
vale desejar que um dia melhor a arte desapareça que esquecer o sofrimento, que é a sua
expressão [...]. Esse sofrimento é o conteúdo humano que a servidão falsifica em positividade”
(ADORNO, 1982, p. 291).
Neste sentido, Agamben (2008) e Žižek concordam que seria preciso “corrigir” a
sentença adorniana sobre a impossibilidade da poesia5 e dizer que

[...] não é a poesia que é impossível depois de Auschwitz, mas a prosa [...].
Quando Adorno declara que a poesia é impossível (ou antes um exercício da
barbárie) depois de Auschwitz, esta impossibilidade é portadora de uma
capacidade: a poesia é sempre, por definição, “sobre” alguma coisa que não
pode ser nomeada diretamente, apenas aludida (ŽIŽEK, 2014, p. 19-20; grifos
do autor).

4“[...]
o oposto da ideologia não seria a verdade ou a teoria, mas a diferença ou a heterogeneidade”
(EAGLETON, 1997, p. 116).
5Para Márcio Seligmann-Silva, Adorno teria “reformulado” a frase acerca da barbárie/impossibilidade

da poesia: “Como ele escreveu em 1962 em seu trabalho Engagement, também referindo-se ao seu
65

dictum de 1949: ‘O excesso de sofrimento real não permite esquecimento; a palavra teológica de Pascal
Página

on ne doitplus dormir deve-se secularizar. [...] aquele sofrimento [...] requer também a permanência da
arte que proíbe’. No mesmo passo lemos ainda: ‘não há quase outro lugar [senão na arte] em que o
sofrimento encontre a sua própria voz’.” (SELIGMANN-SILVA, 2008, p. 81).

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Todavia, a pretensa correção ratifica, ela mesma, a própria impossibilidade da poesia
se a tomarmos não como representação da realidade, mas representação da impossibilidade
da representação da realidade – como enigma cujo conteúdo de verdade seja a própria
distância que sua forma mantém com qualquer “conteúdo”. Dizendo de outro modo: se a fala
poética é aquela que “deixa falar” o contraditório, o não idêntico e, mais precisamente, o
sofrimento, seria ela a fala impossível e, ao mesmo tempo, da im/possibilidade da fala.
Se, numa interpretação corrente, a barreira ao dizer revelada – senão instituída – na
palavra Auschwitz remete à condição traumática, em que impera a “impossibilidade de
construir um sentido corrente para o horror experimentado e, consequentemente, de
transmitir ao outro a realidade sofrida” (VIEIRA, 2010, p. 156), é possível esboçar outro
caminho interpretativo, sem, todavia, contradizer o anterior; nele, o “evento” (traumático),
como barreira da significação, resistiria à própria significação (ou, dizendo de outro modo,
enquanto “símbolo” da impossibilidade de elaboração de uma significação, não poderia ele
produzir outro significado que a ausência de significação). Retomaríamos, aqui, a reflexão de
Agamben sobre a semiologia, como em seu segundo livro, Estâncias: a barreira entre
significante e significado é, ao mesmo tempo, a possibilidade de significar e a própria
significação (AGAMBEN, 2007a, p. 221). Sendo o “símbolo” o signo que aponta para além de
si mesmo – e, assim, para uma fratura essencial em que aparecer é esconder, estar presente
é faltar (Ibid., p. 218-221) – o evento traumático, enquanto símbolo, apontaria também para
o fato, por assim dizer, de que a significação não se produz na relação entre indicar e significar,
mas no deslocamento interminável do significado.
Cabe retomar, ainda que muito superficialmente, o significado que os gregos davam a
poíesis. Enquanto “uma criação que organiza, ordena e instaura uma realidade nova, um ser”
(NUNES, 1989, p. 20), enquanto “a capacidade”, diz Agamben (2012b, p. 21), de “levar uma
coisa do não ser ao ser”, trata-se, na poíesis, de uma atividade que não se confunde com a
indicação/nomeação (daquilo que é, ou daquilo que é percebido). Toda poesia que interessa,
ousemos um pastiche à frase de Carlos Lima, é uma recusa à pretensão de significar uma
indicação, justamente porque se trata de produzir, levar uma coisa do não ser ao ser. Dizer
66

algo, aquém da indicação e além da significação, como criação desse algo, interessa na medida
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em que “esse poder pode conduzir tanto à felicidade quanto à ruína” (Ibid.). A despeito da

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estética fundada no juízo – desinteressado – do espectador, a criação (artística) interessa, pois
“aquilo que está em jogo não parece ser de modo algum a produção de uma obra bela, mas a
vida ou a morte do autor” (Ibid.).
O que está em jogo, na criação poética, é a promessa da felicidade6 e o risco
permanente da ruína, a vida e a morte do poeta. Seu lugar, portanto, é um lugar discursivo,
mas também no-tempo, oumelhor, no tempo enquanto potência – do novo, da criação:

O poeta está livre por dentro dos relógios


e o seu coração ali bate e bate e bate
lado a lado com todas as engrenagens do mundo.
O mistério, no entanto, é o jardineiro do seu sangue
exilado entre palavras que nunca foram proferidas (FÉLIX, 1993, p. 52).

No poema Porque, Moacyr Félix apresenta o poeta exatamente como aquele que joga,
com o poema, a possibilidade da sua existência; isso “Porque a poesia nunca está na soma / e
sim no tempo que é maior que o tempo / da vida medida entre doze números” (Ibid.). O lugar
do poeta é um lugar che resta – um topos, como diz Agamben (2007a, p. 15), porque lugar-
tempo –, maior que as cronometrias do mundo objetivo, mas, igualmente, no interior delas.
Um espaço de tempo que, se incomensurável, pretende-se comunicável. Kairós, o instante-
agora [Jetzt-Zeit] da criação.
Se o “todo social”, no qual qualquer experiência se condiciona como possibilidade, é,
sob o signo da barbárie, danificado e catastrófico, é também fragmentado e contraditório. Se
Agamben, em Il tempo che resta (AGAMBEN, 2006b), equipara o tempo kairológico ao tempo
messiânico, é porque, nas palavras de Benjamin (1985, p. 232), cada instante é “a porta
estreita pela qual podia penetrar o Messias”. No aforismo Final de Minima Moralia, Adorno
(2008b, p. 245) escreveu que resta “construir perspectivas nas quais o mundo se ponha,
alheado, com suas fendas e fissuras à mostra tal como alguma vez se exporá indigente e
desfigurado à luz messiânica”. A força messiânica, como elaborada em Benjamin e
desenvolvida por Agamben, tem no aforismo adorniano uma elucidação exemplar, associado
67

6Na
Página

sua crítica à estética kantiana (à noção de beleza como juízo desinteressado do espectador),
Nietzsche (1998, p. 93-94) evoca Stendhal, “que certa vez chamou a beleza de uma promessa de
felicidade”.

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o messianismo, todavia, à dialética: a “luz messiânica” revelaria (ou revelará) as fissuras e
fendas do mundo. O tempo messiânico (kairológico), diz Agamben (2010),

[...] não é um período cronológico, mas, sobretudo uma transformação


qualitativa do tempo vivido. [...]É um tempo que pulsa dentro do tempo
cronológico, que o trabalha e o transforma a partir de dentro. É, de um lado,
o tempo que o tempo emprega para terminar; de outro, o tempo que nos
resta, o tempo do qual precisamos para fazer o tempo terminar, para atingir
a meta, para nos libertarmos da nossa representação ordinária do tempo.

Dissemos que, no poema, está em jogo a vida e a morte do poeta, e que o seu lugar,
sendo o tempo, é o instante – tempo que resta, incomensurável, que nega dialeticamente a
cronologia. Ao dizer algo, o poeta diz também o seu lugar, que é a possibilidade da
transformação qualitativa do tempo, e o seu “mistério”: o exílio entre “palavras que nunca
foram proferidas”. A arte, como afirmamos, ao elaborar no seu particular as contradições do
“todo”, comunica a incomunicabilidade da realidade sensível e, ao mesmo tempo, o próprio
esforço dessa superação. Trata-se de um “fazer aparecer contra a aparição” (ADORNO, 1982,
p. 259), ou da elaboração de uma visibilidade daquilo que não é, para o discurso meramente
descritivo, visível, ou mesmo existente (Cf. BADIOU, 2006). O instante, como afirmação do
precário da existência, da não totalidade do todo e da potência do tempo que pulsa dentro
do tempo, volta-se contra a cronologia que o pretende aprisionar:

Vim para quebrar os relógios deste tempo que dá voltas sempre


sobre ele mesmo, sempre com a mesma areia a redemoinhar-se
entre portas giratórias que se abrem e que se fecham para o oco da
existência.
Vim para inventar trajetórias que nunca existiram a não ser na medida em
que me despedaçam. (FELIX, 1981, p. 99).

No poema Sim, Moacyr Félix novamente põe em cena a relação entre poeta, poesia,
tempo e realidade objetiva. O sujeito oculto, que anuncia e se justifica na recíproca destruição
da cronologia e afirmação da potência como “despedaçamento”, deixa em aberto sua
68

identidade: o sujeito da fala não seria, pois, a representação de um idêntico (de uma
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ipseidade), mas, justamente ao contrário, a anunciação da provisoriedade do que existe no

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instante em que se afirma. “Quem veio” para quebrar os relógios e inventar trajetórias é,
como kairós, uma não-substância a despedaçar a aparência de harmonia e totalidade; o
sujeito que, ao se dizer (no poema), põe em jogo, entre a ruína e a promessa de redenção, a
sua existência.

4.

O que vimos argumentando até aqui pode ser, em certa medida, corroborado na
afirmativa, presente na Teoria Estética, de que

A tarefa de uma filosofia da arte não é tanto escamotear o momento do


incompreensível à custa de explicações – como que o fez quase fatalmente a
especulação –, mas compreender a própria incompreensibilidade. [...] A
filosofia não é tão bem sucedida como Édipo, que responde com pertinência
aos enigmas; mas a felicidade do herói revelou-se, de resto, como cega.
Porque o elemento enigmático da arte se articula apenas nas constelações
de cada obra em virtude dos seus procedimentos técnicos é que os conceitos
são não só a dificuldade da sua decifração, mas também a sua
oportunidade.(ADORNO, 1982, p. 526-542).

A decifração do enigma deixa sempre ao menos uma aresta, um resíduo de


incompreensibilidade, pois, como havia anotado Fernando Pessoa (2006, p. 381), “a arte que
dá ao obscuro uma expressão lúcida não o torna claro, mas torna-lhe clara a obscuridade”. O
conceito é a im/possibilidade da decifração do enigma (sua “dificuldade”, mas, igualmente,
sua “oportunidade”), na medida em que sua trama seja constituída pelos seus procedimentos
técnicos, e, no caso da arte poética, em especial, as figuras de linguagem fazem apontar – e
isso as define – para além dos significados ordinários, constituindo o lugar da sua elaboração
como aquele “exílio”, dito no poema de Moacyr Félix, “entre palavras que nunca foram ditas”.
Neste sentido, toda tentativa de compreensão se (des)encontra com a incompreensibilidade
do enigma, confrontando-se com o hiato que separa, e, ao mesmo tempo, liga, numa relação
incessante de deslocamento e dissimulação, forma e conteúdo. Se, por um lado, o impasse da
elucidação se dá porque o conceito é incapaz de apreender aquilo que escapa ao conceito,
69

por outro lado, é essa a sua condição – condição essa que atualiza a cada instante em que as
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palavras apontam para além de si mesmas e que a crítica, em vez de despotencializar a obra
pela sua “explicação”, se confronta com o incompreensível.7
Não há, todavia, para Adorno, dualismo entre um conteúdo da obra e suas condições
contextuais exteriores, uma vez que a “história é imanente ao seu conteúdo de verdade”
(ADORNO, 1982, p. 540). O que há, portanto, é o recíproco atravessamento entre história,
forma, conteúdo e sujeito, que se “sedimentam” entre si; daí a afirmativa de que quanto mais
a poesia lírica trata do que há de particular no sujeito, tanto mais ela alude o universal. O
primado do objeto não despreza o sujeito, mas, ao contrário, implica-o “na” forma e “no”
conteúdo da obra: “em cada poema lírico devem ser encontrados, no medium do espírito
subjetivo que se volta sobre si mesmo, os sedimentos da relação histórica do sujeito com a
objetividade, do indivíduo com a sociedade” (Id, 2003b, p. 72). Comentando a dialética
adorniana, Leandro Konder escreveu:

A maior objetividade buscada pelo pensamento dialético – a objetividade do


pensamento dialético – necessita, não de menos, mas de mais sujeito. Só
assim, enxergando-se a si mesmo como parte da realidade objetiva, o sujeito
pode se conhecer objetivamente. Só se pode alcançar o primado da
objetividade pela reflexão subjetiva sobre o sujeito. (KONDER, 2003, p. 124).

Que o sujeito se realize enquanto tal através da (atravessado pela e atravessando a)


objetividade significa que ele não é nem um dado a priori tampouco um objeto destinado à
reificação. Ao contrário, trata-se de uma possibilidade que vem-a-ser pela práxis,ou seja,
através da ação que é “autotransformação” sem se “deixar corromper numa atividade
mecânica, cega, repetitiva” (Ibid.). No caso da arte, a objetividade diz respeito também aos
procedimentos técnicos e formais, de modo que, se no objeto artístico o sujeito/autor põe em
jogo a sua vida, a possibilidade da sua própria existência enquanto tal, como afirmou
Agamben, o faz na medida em que, através da objetividade, escape à repetição mecânica:

7Cabe referenciar uma passagem de Agamben a respeito da relação entre crítica (ou, nesse caso,
70

interpretação) e criação, que diz: “Uma obra crítica ou filosófica que não se mantém de alguma maneira
Página

numa relação essencial com a criação, está condenada a girar no vazio, assim como uma obra de arte
ou de poesia, que não contém em si uma exigência crítica, está destinada ao esquecimento”
(AGAMBEN, 2013, p. 15).

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O sujeito, cuja expressão é necessária, em face da mera significação de
conteúdos objetivos, para que se alcance essa camada de objetividade
linguística, não é um adendo ao próprio teor dessa camada, não é algo
externo a ela. O instante do auto-esquecimento, no qual o sujeito submerge
na linguagem, [...] não é um instante de violência, nem sequer de violência
contra o sujeito, mas um instante de reconciliação: a linguagem fala por si
mesma apenas quando deixa de falar como algo alheio e se torna a própria
voz do sujeito (ADORNO, 2003b, p. 74-75).

A reconciliação entre sujeito e mundo, entre subjetividade e objetividade, obstruída e


impossibilitada na dialética negativa, é aqui, na lírica, vislumbrada como possibilidade; nela, a
linguagem não pretende expressar a “certeza sensível” empírica; através dela, o poeta, ao
dizer o mundo objetivo, se diz, e, ao se dizer, gesto esse que a caracteriza, diz o mundo social
sedimentado em si. Ao submergir na linguagem, ao “esquecer-se” nela, o poeta tem uma voz
própria. E o “lugar” da voz, escreveu Agamben, “não está na interioridade nem no mundo,
mas no limite entre ambos” (AGAMBEN, 2015, p. 73; grifos do autor).
Os paralelismos entre os pensamentos de Adorno e Agamben, aqui ensaiados, não têm
pretensão de ocultar ou reduzir suas diferenças, mas evidenciar alguns dos seus muitos
encontros. Ainda que em Agamben não esteja em questão a possibilidade da “reconciliação”
entre subjetividade e objetividade, o filósofo italiano, em diferentes textos, equipara “sujeito”
e “poeta”, como abordaremos a seguir. Em ambos, subjazeria a hipótese de que o distintivo
da arte poética seria a sua tentativa – frustrada – de recuperar a experiência (em sentido
existencial e não meramente epistemológico), contra sua dissimulação tanto pela ciência
moderna quanto pela própria dinâmica da vida social hodierna. Ao articular reflexões de
Heidegger e Hölderlin acerca da relação entre voz (Stimme) e vocação (Stimmung), Agamben
afirma que, no cerne do problema da linguagem, está a possibilidade da liberdade:

A liberdade só seria possível para o homem falante se ele pudesse pôr a claro
a linguagem e, apreendendo-lhe a origem, encontrar uma palavra que fosse
verdadeira e inteiramente sua, isto é, humana. Ou seja, uma palavra que
fosse a sua voz, tal como o canto é a voz dos pássaros, o fretenir é a voz da
cigarra e o zurro é a voz do burro (AGAMBEN, 2015, p. 81).
71

O homem, ao contrário dos outros animais, não tem uma “voz própria”. Assemelha-
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se, aqui, ao em aberto da condição humana (bíos), marcado pela potência que une e distingue

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indicar e nomear, o problema específico da voz: entre o ruído, forma elementar de som, e sua
superação, a articulação de uma voz propriamente dita. Não seria “fora” da linguagem,
portanto, como já havia argumentado Barthes, que residiria a possibilidade da liberdade, mas
justamente “nela”. Para o filósofo francês, na língua

[...] servidão e poder se confundem inelutavelmente. Se chamamos de


liberdade não só a potência de subtrair-se ao poder, mas também e
sobretudo a de não submeter ninguém, não pode então haver liberdade
senão fora da linguagem. Infelizmente, a linguagem humana é sem exterior:
é um lugar fechado. Só se pode sair dela pelo preço do impossível: pela
singularidade mística, tal como a descreve Kierkegaard, quando define o
sacrifício de Abraão como um ato inédito, vazio de toda palavra, mesmo
interior, erguido contra a generalidade, o gregarismo, a moralidade da
linguagem; ou então pelo amen nietzschiano, que é como uma sacudida
jubilatória dada ao servilismo da língua, àquilo que Deleuze chama de “capa
reativa”. Mas a nós, que não somos nem cavaleiros da fé nem super-homens,
só resta, por assim dizer, trapacear com a língua, trapacear a língua. Essa
trapaça salutar, essa esquiva, esse logro magnífico que permite ouvir a língua
fora do poder, no esplendor de uma revolução permanente da linguagem, eu
a chamo, quanto a mim: literatura (BARTHES, 1996, p. 14-15).

“Esquecer-se na língua”, “trapacear (com) a língua” e “encontrar uma palavra sua”


representam três variações sobre uma mesma realidade e uma mesma utopia: a relação
essencial entre a possibilidade de dizer e a possibilidade da liberdade. Entretanto, ao contrário
de Barthes e afim a Adorno, Agamben concebe o sujeito como possibilidade. Como toda
potência, seu destino é realizar-se, em ato – confrontando o poder, cujo propósito, por assim
dizer, é fazer a “gestão” da potência, impedindo-a de saltar ao ato, mantendo-a na condição
de possibilidade. O poder, disse Agamben (2012a, p. 61), ao realizar a “economia das
potências”, inverte meios e fins, tirando da potência seu sentido.

[...] existem por toda parte – também dentro de nós – forças que obrigam a
potência a permanecer em si mesma. É sobre essas forças que repousa o
poder: ele é o isolamento da potência em relação ao seu ato, a organização
da potência” (Ibid., p. 60).
72

Em O que é dispositivo?, originalmente conferência proferida em Santa Catarina, em


Página

2005, Agamben disse: “Chamo sujeito o que resulta da relação e, por assim dizer, do corpo-a-

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corpo entre os viventes e os dispositivos” (AGAMBEN, 2005, p. 13). O vivente é sujeito em
potência, que vem-a-ser mediante o confronto com os dispositivos, “máquinas de produzir
subjetivação”, que capturam ao mesmo tempo em que produzem subjetividade. Mas seria a
linguagem um dispositivo?

[...] chamarei literalmente de dispositivo qualquer coisa que tenha de algum


modo a capacidade de capturar, orientar, determinar, interceptar, modelar,
controlar e assegurar os gestos, as condutas, as opiniões e os discursos dos
seres viventes. Não somente, portanto, as prisões, os manicômios, o
panóptico, as escolas, as confissões, as fabricas, as disciplinas, as medidas
jurídicas etc., cuja conexão com o poder e em um certo sentido evidente,
mas também a caneta, a escritura, a literatura, a filosofia, a agricultura, o
cigarro, a navegação, os computadores, os telefones celulares e – porque não
– a linguagem mesma, que é talvez o mais antigo dos dispositivos, em que há
milhares e milhares de anos um primata – provavelmente sem dar-se conta
das consequências que se seguiriam - teve a inconsciência de se deixar
capturar (Ibid.).

A linguagem é a condição ao mesmo tempo em que o limite do dizer, e o mesmo


devemos afirmar sobre a língua: na condição de dispositivos (provavelmente os mais antigos),
capturam, determinam e modelam as possibilidades. Não vislumbra, assim, Agamben a
dissolução dos dispositivos, mas sua “profanação”: “liberar o que foi capturado e separado
pelos dispositivos para restituí-lo a um possível uso comum” (Ibid., p. 14). Em outro lugar
(AGAMBEN, 2007b, p. 65): profanar é “usar”. O contrário do profano é, pois, o sagrado, que
assim se mantém mediante uma “separação” instituída pelo rito e pela liturgia. Toda religião
[relegere] se constitui, para Agamben, na separação entre o sagrado e o profano, mantida
pelo respeito às normas de conduta, que subscrevem os gestos e impedem o uso. Mas, “o que
foi separado ritualmente pode ser restituído, mediante o rito, à esfera profana”, uma vez que
o próprio objeto sagrado (e não outro) se torna profano quando posto “em jogo”. (Ibid., p.
66). A profanação é, assim, o contra-dispositivo, por excelência (Id, 2007b), na medida em que
o usa de outro modo daquele prescrito pela tradição religiosa.
Aqui, portanto, “encontrar uma língua sua” e “trapacear (com) a língua” se implicam
definitivamente: trata-se de profanar a língua, de fazer “uso” dela; trapacear a tradição,
73

contrariando o dispositivo, mas sem abdicar dele. Por isso, trapacear “a” língua “com” a
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língua. Por vias diferentes, mas com precisa definição, Benjamin teria nomeado a poesia de

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Baudelaire como “a modernidade” por ela promover um “ataque surpresa”, “uma série
ininterrupta das mais pequenas improvisações”, uma conspiração da linguagem (BENJAMIN,
1994, p. 97-70-95). A linguagem conspirando contra si mesma é a sua dessacralização, que
lança a língua ao registro do “testemunho”, para além do “arquivo”. Aqui, a diferença
fundamental em relação ao “ter voz”, entre agir no domínio do rito, do sagrado, e o usar que
profana a língua, pondo-a em jogo, e, assim, também aquele que dela faz uso.

5.

Em O que resta de Auschwitz (AGAMBEN, 2008), Agamben estabelece uma linha


argumentativa algo semelhante à que seria elaborada em O autor como gesto(Id, 2007b).
Neste último, o filósofo retoma também a noção de linguagem como dispositivo e sua relação
com a produção de subjetividade: “a escritura é um dispositivo, [...] e a história dos homens
talvez não seja nada mais que incessante corpo-a-corpo com os dispositivos que eles mesmos
produziram – antes de qualquer outro, a linguagem” (Ibid., p. 63). Todo dispositivo captura e
produz subjetividade (e, por isso, todo processo de subjetivação é também de
dessubjetivação). Assim, como todo dispositivo, a escritura – e antes, a linguagem – ao mesmo
tempo em que captura a própria escrita, a permite, a propicia. Não obstante, se é possível
profanar o dispositivo – se, na condição de instrumento do poder, a linguagem é dispositivo
(condição e limite, antítese ao mero vivente) – significa que é ela, também, potência, ou seja,
que há nela possibilidades de sua superação – superação dialética, pois, que implica em
conservar e transformar ao mesmo tempo. E é nesse ponto que Agamben elabora uma crítica
significativa tanto a Foucault quanto a Benveniste a respeito das noções de sujeito e autor,
desviando a atenção do “enunciado” para a “língua”.
O enunciado, tanto em Benveniste quanto em Foucault, afirma Agamben, diz respeito
ao “ter lugar” do texto: “a enunciação assinala, na linguagem, o limiar entre um dentro e um
fora, o fato de ter lugar como exterioridade pura”(AGAMBEN, 2008, p. 142).Aoreferir-se ao
“acontecimento da linguagem”, a analítica do enunciado busca compreender as possibilidades
74

do dizer, dos discursos e das proposições, definidas como exterioridadeem relação à


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linguagem e a quem enuncia, afastando, assim, a pergunta por “quem fala?”, numa rejeição

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radical às noções de sujeito como consciência (como intencionalidade e/ou como
interioridade, seja transcendental, seja psicossomático) e de autor, substituído, por assim
dizer, no plano do enunciado, pela “função-autor”. Assim, “a partir do momento em que os
enunciados se tornam referência principal da investigação, o sujeito fica dissolvido de
qualquer implicação substancial e se torna pura função ou pura posição” (Ibid.).
Ao menos dois aspectos, certamente complementares, são levantados por Agamben
em sua crítica. O primeiro, a pergunta, “o que significa ser sujeito de uma dessubjetivação?
Como um sujeito pode dar conta do seu próprio desconcerto?” (Ibid., p. 144). O segundo, a
proposta:

Imaginemos agora repetir a operação de Foucault, fazendo com que deslize


na direção da língua, que se desloque para o plano da língua o canteiro que
ele havia criado entre [...] a língua e o arquivo. [...] tratar-se-á então de tentar
considerar os enunciados não do ponto de vista do discurso em ato, mas
daquele da língua, olhando a partir do plano da enunciação não em direção
ao ato de palavra, mas na direção da langue como tal. Ou dito de outra
forma, trata-se de articular um dentro e um fora não só no plano da
linguagem e do discurso em ato, mas também no da língua como potência
de dizer (Ibid., p. 146).

A língua como “potência de dizer”recoloca o problema da possibilidade de dizer em


outro plano, além do “arquivo”. Sendo o arquivo, na arqueologia do saber, o “conjunto de
regras que definem os eventos de discurso”, ele delimita o espaço entre o dito e não dito,
compreendendo que todo dizer se dá no interior de um “já dito”, de um discurso, que o
permite. Entretanto, ao propor inflexão ao dentro e fora da “língua”, Agamben lança luz não
ao “dito e não dito”, mas ao dizível e o indizível.
A língua, como potência de dizer, é compreendida como “um campo percorrido por
duas tensões opostas”. De um lado, a invariância; de outro, a inovação. Ao primeiro, no
registro do já-dito, corresponde o arquivo. Mas, na medida em que potência, a língua não se
encerra nele, apontando também, e necessariamente, para o porvir da própria língua, o que
a coloca na condição de “resto” – sendo este “um hiato, uma lacuna, mas uma lacuna
essencial”, dada no confronto entre conservação e transformação. No cerne deste confronto,
75
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ou seja, no “resto”, situa-se a possibilidade – e, portanto, a impossibilidade – de dizer. Assim,
a língua como potência de dizer é “contingência”:

[...] Tal contingência, tal acontecer da língua em um sujeito, é outra coisa que
o seu efetivo proferir ou não proferir um discurso em ato, o seu falar ou
silenciar, o produzir-se ou não produzir-se de um enunciado. No sujeito, ela
tem a ver com o seu ter ou não ter língua. O sujeito é, pois, a possibilidade
de que a língua não exista, não tenha lugar – ou melhor, de que esta só tenha
lugar pela sua possibilidade de não existir, da sua contingência (AGAMBEN,
2008, p. 147).

O sujeito não se confunde com o mero vivente, tampouco deve ser concebido como
realidade a priori, e é preciso rejeitar tal ideia, diz o filósofo italiano, “sem ressalvas”. Mas, ao
“atestar”, “na própria possibilidade de falar, uma impossibilidade de palavra”, o sujeito é o
“campo de forças” da potência e da impotência, e a subjetividade o “campo da luta” entre
contingência e necessidade. “O sujeito é, sim, o que se põe em jogo nos processos em que
elas [possibilidade, impossibilidade, contingência, necessidade] interagem” (Ibid., p. 148).
Importante observar que tal argumento aparece em O que resta de Auschwitz, obra
constituinte da tetralogia Homo Sacer (cujo mote, por assim dizer, é a biopolítica, e a
articulação teórica promovida pelo filósofo se dá, sobretudo, com a ciência política e o direito,
sensivelmente diferente de trabalhos como, por exemplo,O Homem sem conteúdo, Estâncias,
Infância e história e A linguagem e a morte, em que a questão da linguagem é trabalhada em
primeiro plano). Ou seja, é no âmbito da reflexão sobre a vida nua (zoé, a vida desqualificada)
e a (im)possibilidade de dizer no contexto traumático do qual Auschwitz é símbolo (ou, em
termos adornianos, sobre a barbárie) que emerge – ou ressurge – a problemática do sujeito.
Seria confrontando seu caráter contingencial que a língua apareceria “além do arquivo”, do
mesmo jeito em que o sujeito apareceria “além” de mera “função”, modo pelo qual se tornaria
possível encarar a pergunta “o que significa ser sujeito de uma dessubjetivação?”. Ao romper
com o nexo entre subjetivação e dessubjetivação, o Campo teria introduzido o impossível “à
força no real” (Ibid., p. 149), revelando a impossibilidade do sujeito e da língua.
O fracasso, realizado (ou constatado) na dessubjetivação e na impossibilidade de falar,
76

não é, todavia, absoluto, já que a impossibilidade carrega consigo o possível. A condição de


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resto – a lacuna essencial entre a possibilidade e a impossibilidade – da língua (e também do

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sujeito) é posta à prova, sobretudo, pelos testemunhos de sobreviventes do Campo. Do
mesmo modo que uma dessubjetivação pressupõe um sujeito (que, como na pergunta de
Agamben, é “sujeito de uma dessubjetivação”), a impossibilidade de narrar o trauma não é
apagada, mas, ao contrário, atualizada na fala dos sobreviventes. Ao levar à palavra aquilo
que não pode ser dito, a testemunha dá testemunho da sua dessubjetivação (sendo sujeito) e
da impossibilidade de dizer (dizendo).
“O testemunho sempre é, pois, um ato de ‘autor’” (Ibid., p. 150).A testemunha e (“e”
e “ou”) o autor são, na qualidade de sujeitos, “cindidos” (“diferença e integração de uma
impossibilidade e de uma possibilidade de dizer”), sendo esta a condição, insuperável, da sua
existência enquanto tal: o autor dá forma a uma matéria – “informe ou ser incompleto” – que
o precede, sendo sempre “co-autor”, e a testemunha fala aquilo que não pode ser dito por
aqueles que não podem dizer8.
Se na analítica do enunciado – ou, numa arqueologia do saber –, de modo bem
resumido, o que é dito se dá no interior de um campo de possibilidades delimitado por um já-
dito, tornando desnecessária a pergunta pelo sujeito (e pelo autor, “que não para de
desaparecer” e tem valor, na análise, enquanto “função”), já que interessam “as regras
através das quais” se dá a escritura, Agamben argumenta que o incessante desaparecimento
do sujeito-autor seja justamente a sua marca. Não se trata de contra argumentar as amplas e
difundidas críticasà associação direta entre “indivíduo real” e “autor” e à ideia de que o autor
seja a “fonte de significação” de uma obra, mas de afirmar que o des-aparecer do autor dá
testemunho da sua própria falta “na obra”, ou seja, que o autor é presente justamente através
da sua ausência (AGAMBEN, 2007b). Em O que resta de Auschwitz, todavia, o lugar do autor é
o “resto” (de modo que caberia ainda investigar a relação de tal noção com a de “ausência”,
o que, por ora, nos escapa), sendo tal lugar ocupado o que o define como sujeito e como
testemunha – “ser sujeito e testemunhar são, em última análise, uma única realidade” (Id,
2008, p. 158) – mas, também, como poeta. Nas páginas finais da obra, “poeta” é o nome pelo
qual Agamben chama aquele que se coloca, na língua, fora do arquivo.
77

8“[...]
é o ato imperfeito ou a incapacidade que o precedem e que ele vem a integrar que dá sentido ao
Página

ato ou à palavra do auctor-testemunha. Um ato de autor que tivesse a pretensão de valer por si é um
sem-sentido, assim como o testemunho do sobrevivente é verdadeiro e tem razão de ser unicamente
se vier a integrar o de quem não pode dar testemunho” (AGAMBEN, 2008, p. 151).

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O poeta, “o auctor por excelência” (Ibid., p. 160), é aquele que, com a palavra (poética),
situa-se na posição de resto, fundando “a língua com o que resta, o que sobrevive em ato à
possibilidade – ou à impossibilidade – de falar” (Ibid.). Seu lugar, aquele apontado por Moacyr
Félix: o exílio entre palavras ainda inexistentes.

6.

Com o atravessamento entre testemunha-autor-sujeito-poeta, é possível, à guisa de


conclusão, vislumbrar um caminho interpretativo da frase, presente n´O autor como gesto,
que diz “O autor marca o ponto em que uma vida foi jogada na obra” (AGAMBEN, 2007b, p.
61). Com ela, Agamben retoma duas noções trabalhadas em textos distintos: a de “jogo”,
como domínio próprio da profanação, e a ideia – presente já no seu primeiro livro, O homem
sem conteúdo – de que o artista, na criação da obra, “põe em jogo a sua vida”. Mas, além
destes tópicos, há o específico sobre a própria noção de “vida”, de importância central na
nossa reflexão. Ser autor, ou seja, ser sujeito, é jogar-se na contingência da língua para negar,
decididamente e “com cada uma de suas palavras”, o isolamento entre zoé e bíos9.
O sujeito é sempre, pois, um sujeito restante, que, como auctor, dá forma à matéria
“informe ou ser incompleto” (pois, não seria esse o gesto da poíesis?), mantendo, na língua, a
tensão entre a invariância (ou a norma) e a inovação, ou seja, mantendo a língua viva como
potência de transcendência do arquivo. O sujeito que resta é o poeta, que se esquece na
língua, ou seja, que, deixando-se capturar por ela, ao mesmo tempo dela escapa –
profanando-a –, se desencaixando10e desaparecendo. O poeta, assim, “obedece e ultrapassa”
(ADORNO, 2003b, p. 67), pois “para ele, ultrapassar é obedecer”:

Há que compreendê-lo! Precisa desaparecer!11


Some temendo sumir, vai além,
Sua fala ultrapassa “o estar aqui”;

9É o “isolamento da sobrevivência em relação à vida o que o testemunho refuta com cada uma de suas
palavras” (AGAMBEN, 2008, p. 157).
10No ensaio O que é contemporâneo?,aqui não diretamente tratado, Agamben define o poeta como
78

aquele que “pertence ao seu tempo” de forma anacrônica e deslocada (AGAMBEN, 2009).
11Na tradução das Elegias que utilizamos, lê-se “cumpre sumir”. Na tradução presente em O Espaço
Página

Literário, de Blanchot (2011, p. 170) consta no primeiro verso citado: “Ah, pudéssemos compreender
que lhe cumpre desaparecer!”.

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já está lá onde não há permanecer.
A grade da lira, suas mãos não a retêm.
Para ele – ultrapassar é obedecer (RILKE, 2002, p. 23).

Referências

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______ .Teoria Estética. Lisboa: Edições 70, 1982.


AGAMBEN, Giorgio. A Ideia de Prosa. Belo Horizonte: Autêntica, 2012a.

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