Diário Intimo de José Vieira Couto de Magalhães

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José Vieira Couto de Magalhães

Diário Íntimo de um Estadista do Império

Organização, Introdução e Notas

Maria Helena P. T. Machado


Universidade de São Paulo

**Edição preparada para publicação pela Companhia das Letras (1998).


Primeiro Caderno 2

INTRODUÇÃO

O diário que aqui apresentamos é fruto de uma descoberta fortuita, ocorrida há


alguns anos atrás, nas dependências do Arquivo do Estado de São Paulo, ocasião em que
eu realizava pesquisa a respeito do movimento da Abolição em São Paulo. Interessada
como estava na movimentação de súditos ingleses pela província de São Paulo e de suas
possíveis conexões com movimentos escravos — fato este apontado pela documentação
policial da época —comecei a rastrear as caixas de documentos denominadas “Súditos
Ingleses”, as quais, além de estarem, pelo menos até aquele momento, completamente
inéditas, continham séries documentais bastante originais. Dentre a massa de manuscritos
aí existente, topei com duas cadernetas de capa preta e anônimas. A leitura de tais
documentos tornou-se, desde as primeiras páginas, uma atividade totalmente fascinante.
Escrito em português, em forma de diário, o manuscrito contido nos cadernos,
possuía entradas diárias quase em sua totalidade grafadas em língua inglesa, apontava
como lugar de registro Londres, e os anos de sua anotação 1880-1881. Dentre os assuntos
aí tratados, estavam descritos o dia-a-dia, os sonhos, as doenças, os negócios, os
relacionamentos pessoais e íntimos de seu autor, despertando dúvidas a respeito de sua
identidade, sexo, ocupação, nacionalidade, enfim de seu perfil histórico. Claro estava que
o autor dos diários era indivíduo de projeção social e econômica. Seus negócios, sua
caderneta de endereços da qual constam banqueiros, capitalistas e figuras destacadas do
Império, o comprovavam. Ao mesmo tempo, porém, as descrições das selvas aí gravadas,
as anotações em tupi, as referências ao mundo dos sertões e frentes de expansão,
tornavam o diário e seu autor uma incógnita.
A leitura completa dos manuscritos apontou serem estes da pena do General José
Vieira Couto de Magalhães. Em determinada altura seu autor, ao transcrever um
telegrama auspicioso, recebido ao cabo de dias de ansiedade e insônia, revela sua
identidade, como receptor da missiva. Pesquisas posteriores comprovaram sua autoria.
De fato, a Coleção Revista de História de 1974,1 já trazia o fac-símile do Diário do
General Couto de Magalhães, para os anos de 1887-1890. Embora tenha sido este
aludido diário censurado pela família e expurgado de suas passagens mais
Primeiro Caderno 3

comprometedoras, a letra, o estilo de escrita, as lembranças e outros aspectos atestam,


sem margem de dúvida, serem estes que ora apresento também da autoria de Couto de
Magalhães.
José Vieira Couto de Magalhães (1837-1898), natural da Província de Minas Gerais,
bacharelou-se na Faculdade de Direito de São Paulo em 1859, ocasião em que iniciou
uma bem sucedida carreira literária, política e empresarial. Em termos da primeira
modalidade, já em 1860 lançava ele o romance histórico sobre a fundação de São Paulo,
intitulado Os Guaianás2 e o estudo A Revolta de Felipe dos Santos em 1720, que lhe
facultou, ainda muito jovem, a entrada no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.
Mais tarde, na década de 1860, publicou Couto de Magalhães um livro de memórias, o
Viagem ao Araguaia,3 escrito no decorrer de expedição pelos rios Araguaia e Tocantins,
onde estão propugnadas uma série de medidas para o progresso e integração dos sertões
de Goiás à economia e sociedade imperial.
Sua obra mais famosa, no entanto, O Selvagem, composta a pedido do Imperador,
figurou na biblioteca americana da exposição universal realizada em Filadélfia em 18764
e contém suas idéias principais atinentes ao processo de civilização dos índios e
conseqüente integração dos mesmos e de seus descendentes mestiços à população
brasileira e às atividades econômicas rentáveis. Valorizando o estudo da língua como
estratégia principal para atração pacífica das populações selvagens, Couto apresenta na
obra em questão um curso de língua geral tupi/nhengatú, bem como a tradução de lendas
tupis, compiladas no decorrer de suas viagens e expedições, junto aos recrutas índios e
mestiços que as compunham. Contém igualmente este volume uma seção de perfil

1. Coleção Revista de História, São Paulo, 1974.


2. Os Guayanás. Conto Histórico sobre a Fundação de São Paulo. São Paulo, Tip. Spíndola
e Siqueira, 1902.
3. 7ª edição, São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1975.
4. Sublinhe-se a importância política atribuída pelo Imperador à Exposição Universal de
1876, ocorrida nos Estados Unidos. Tendo justificado a viagem do monarca, a inauguração desta
Exposição contou com sua participação, ladeado pelo presidente dos EUA. O livro O Selvagem
ao ser aí apresentado surgia como uma obra que ilustrava a preocupação do imperador com a
civilização dos índios, a construção de uma identidade nacional brasileira e com a preservação
das populações indígenas, questão em voga na época. Lilia Schwarcz, A Roupa Nova do Rei. As
construções iconográficas e simbólicas em torno de um monarca tropical: o imperador Pedro II.
Seminário Interno do Cebrap, maio de 1997.
Primeiro Caderno 4

etnológico onde seu autor descreve hábitos, costumes, idéias religiosas e mentalidades
das tribos indígenas do platô central brasileiro, procurando, segundo o mesmo, derrubar
uma série de preconceitos e injustiças que eram vítimas as populações indígenas
brasileiras. Apesar do pano de fundo evolucionista, próprio a seu tempo, a obra O
Selvagem é inquestionavelmente simpática à população indígena e mestiça, procurando
valorizá-la enquanto verdadeiros e mais fiéis representantes da nacionalidade brasileira.5
Esta obra insere-se em toda uma corrente de valorização do indianismo que no Segundo
Reinado ganhava um tom oficial e palaciano, integrando-se ao projeto literário e artístico
encetado a partir do trono e posto em prática tanto no Instituto Histórico Geográfico
Brasileiro quanto na Academia Imperial de Belas Artes, mais além de sua inserção no
romantismo nativista. No Segundo Reinado, a distribuição dos títulos de nobreza com
nomes indígenas, a revivência , agora em torno da Corte e Província de São Paulo, da
voga de trocar o sobrenomes de origem portuguesa por aqueles de raiz indígena - tupi,
que havia marcado, na Independência, o alvorecer do nacionalismo das elites brasileiras,
sobretudo das províncias nordestinas, o surgimento de estudos etnológicos e históricos
das populações indígenas, atestavam que o indianismo tornara-se instrumento na
construção de uma identidade nacional. O papel do selvagem e de seus descendentes
mestiços na constituição de uma raça americana-brasílica, esta sustentáculo de uma
nacionalidade peculiar brasileira, encontra-se bem sintetizado na argumentação
desenvolvida por Couto de Magalhães na obra O Selvagem6.
Homem do Império, tendo sido, ao longo da década de 1860, sucessivamente
Presidente das Províncias de Goiás, Pará e Mato Grosso, nesta última província também
se destacou como comandante em chefe do exército, tornando-se herói da Guerra do
Paraguai. Sempre ligado ao Visconde de Ouro Preto, o último cargo político por ele
exercido foi o de Presidente da Província de São Paulo já em 1889. Distinguia-se, porém,
Couto de Magalhães pela defesa quase obsessiva de dois projetos: o de implementação
dos meios de transporte e dos estudos indigenistas, nos quais ele se sobressaiu como
divulgador do nhengatú, tupi falado no século XIX, sobretudo na Amazônia.

5. José Vieira Couto de Magalhães, O Selvagem. Trabalho preparatório para o


aproveitamento do selvagem e do solo por ele ocupado no Brasil. São Paulo, EDUSP, 1975.
Primeiro Caderno 5

No mundo dos negócios Couto de Magalhães se destacou como empresário das vias
de comunicação, tanto da navegação a vapor como do transporte ferroviário. Indivíduo
conectado ao mercado capitalista e financeiro das praças européias e norte-americanas
das últimas décadas do XIX, ousado em seus investimentos e sagaz na percepção das
oportunidades de ganho e especulação financeira que se abriam nas áreas coloniais do
globo, a partir dos chamados processos de modernização e criação de uma infra-estrutura
de transporte e saneamento, Couto acumulou capitais e ações. Tendo fundado a
Companhia de Navegação do Araguaia em 1868, obteve, em 1875, a concessão, em
sociedade com o Visconde de Mauá, talvez a partir da massa falida do mesmo, da
construção da estrada de ferro sul-mineira, ligando Cruzeiro, em São Paulo, à cidade
mineira de Três Corações, a Minas and Rio Railway Ltd., vulgarmente conhecida como
Estrada de Ferro do Rio Verde. 7 Nesta operação, concretizada entre 1880 e 1881, na
praça de Londres, Couto, associado a empresários e banqueiros ingleses — os Waring
Brothers — e numa operação eivada de dúvidas e conflitos, articulou uma jogada
financeira na qual foram emitidas, a descoberto, isto é sem nenhum lastro ou garantia, as
ações da companhia ferroviária que se pretendia criar, diretamente ao público. Sendo bem
sucedida esta estratégia, a companhia se constituiu a partir do capital acionário de um
milhão de libras, com o governo brasileiro garantindo dividendos de 7% a ano. A
companhia igualmente emprestou setecentas e cinquenta mil libras contra os debentures,
a juros de 6%. A especulação que teve lugar desde o início da emissão das ações, que
alcançaram preços acima do valor mínimo inicial, acarretaram, conforme descrito no
diário, sérias preocupações, ansiedades e insônias em seu mentor.
A esta operação, que multiplicou em muito seu já vultoso patrimônio, refere-se
Couto quase constantemente em seu diário, seja em termos eminentemente pessoais —
ansiedades, inseguranças e temores que cercaram a concretização da transação — seja
compondo um quadro que, embora parcial, é valioso para o acompanhamento de uma

6. Sobre a construção de um projeto político, ideológico e simbólico da monarquia no


Segundo Reinado ver: Schwarcz, A Roupa Nova do Rei, op. cit.
7. Para maiores informações sobre suas atividades ver: Afonso Celso de Assis Figueiredo,
“José Vieira Couto de Magalhães. Subsídios para uma biografia. Revista do Arquivo Público
Mineiro, ano III, Ouro Preto, Imprensa Oficial de Minas Gerais, 1898, pp. 499-518, sobre a
Primeiro Caderno 6

operação financeira típica das décadas finais do oitocentos e inícios deste século, quando
os capitais ingleses ainda mantinham a proeminência na economia brasileira. A transação
financeira que resultou na constituição da Minas and Rio Railway Ltd. se assemelha a
muitas outras realizadas no período, inserindo-se no processo fundamental à economia
das áreas coloniais da segunda metade do século XIX, balizado pelas aspirações
modernizantes das elites locais e pelo expansionismo dos capitais europeus e norte-
americanos. Este processo se concretizou sobretudo nas tentativas de construção de uma
infra-estrutura capitalizada, em termos de meios de transporte, saneamento e melhoria
urbanas. Seria igualmente interessante para o esclarecimento do processo de constituição
e internacionalização da infra-estrutura de transporte brasileira comparar as negociações
descritas no diário com aquela relacionada à entrada em cena, em princípios do século
XX, do truste norte-americano de Percival Farquhar, que além de obter o controle de
muitas estradas de ferro no estado de São Paulo, comprou a concessão da Madeira-
Mamoré Railway Company.8
Interessado nas ciências — tais como geologia, astronomia, arqueologia — membro
atuante do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, ao qual apresentou diversas
notícias e comunicações a respeito das raças selvagens e interlocutor do Imperador em
seus estudos tupinológicos, Couto tornou-se conhecido por suas excentricidades sempre
ligadas ao universo das viagens e dos sertões. Filho das elites políticas e com elas
compartilhando tanto a formação intelectual quanto o perfil político, de monarquista
liberal, Couto de Magalhães fez-se igualmente sertanista: homem de hábitos retraídos,
ferrenho crítico dos estrangeirismos que não cansava de ironizar, lembrando em todas as
oportunidades as origens americanas ou indígenas dos hábitos, costumes e nomes
correntes que a moda e o bom tom consideravam de mau gosto. Assim, em seu “Curso da
Língua Geral pelo Método de Ollendorf”, não se furtou Couto em saudar o Imperador e
introduzir o assunto apenas em nhengatú. Ainda em 1897, em conferência apresentada
em comemoração ao Tricentenário de Anchieta, inicia seu texto dizendo: “Tupã

Minas and Rio Railway Ltd. consultar: Richard Graham, Britain and the Onset of Modernization
in Brazil, 1850-1914, Cambridge, Cambridge University Press, 1968, pp. 57-59.
8. Sobre este último assunto ver: Francisco Foot Hardman, Trem Fantasma. A Modernidade
na Selva. São Paulo, Companhia das Letras, 1991, pp. 117-154.
Primeiro Caderno 7

amogaraiba, yawé ara catú omehê peeme (Deus vos abençoe e vos dê também tempos
felizes).”9
Compõem-se estes diários de duas cadernetas de capa preta dura, com anotações em
ambos os lados. O primeiro caderno, relativo principalmente ao ano de 1880, contém:

1º lado: Notas de renda e despesas:


Diário propriamente dito, com entradas quase cotidianas, relativas as
atividades do dia-a-dia, negócios - sobretudo a venda das ações da
Companhia Estrada de Ferro Rio Minas - doenças e reflexões mais íntimas;
2o lado: Agenda de endereços de Londres e Paris:
Anotações sobre exercícios de caligrafia;
Anotações médicas;
Diário de providências a tomar;
O segundo caderno, relativo ao ano de 1881, com anotações esparsas dos anos
seguintes até1887, compõe-se de:

1º lado: Diário de Sonhos — Iniciado em 31 de janeiro de 1881 e contendo o


registro esparsos dos sonhos ocorridos no período, porém com a seqüência
diária, entre janeiro e fevereiro do citado ano
2º lado: Iniciado em 13 de janeiro de 1881, porém sem constar datas nas páginas
seguintes contém:
Extratos de Medicina retirados de Hipócrates, Celso e de tratados médicos
do século XIX, com prescrição de regimes, dietas e tratamentos;
Regras e exercícios de caligrafia;
Diário de coisas a fazer e diário propriamente dito de junho de 1884;
Minha renda mínima de janeiro de 1886;
Texto contendo reflexões pessoais, intitulado “Da Tranquilidade. Make the
Best of It”, de 30 de janeiro de 1886.
Em seu conjunto, os diários que aqui apresentamos cobrem apenas um curto período
da vida de seu autor, qual seja o de sua permanência em Londres, e são apenas uma
pequena mostra do que seria sua produção no gênero. De fato, todos os seus biógrafos
afirmam ter sido Couto de Magalhães um escritor compulsivo de diários, todos redigidos
em tom decididamente íntimo, o que justificaria tanto o expurgo sofrido pelo diário já

9. Magalhães, O Selvagem, p. 141.


Primeiro Caderno 8

publicado, quanto a não divulgação dos restantes. Ora, é exatamente este tom intimista e
decididamente espontâneo do diário que o tornam realmente valiosos.
Trata-se, de fato, de um tipo de documento praticamente inexistente, ou ao menos
muito raro, na história do Brasil. Refiro-me ao diário pessoal e íntimo que, contraria-
mente à popularidade alcançada pelo gênero na Europa ocidental e nos EUA do século
XIX, sempre escassearam na nossa sociedade. Pouco afeita às letras em geral, e menos
ainda à valorização da reflexão íntima e do registro pessoal, que apenas tardiamente se
vulgarizou na sociedade brasileira, em tempos mais modernos, via psicanálise, a escrita
do diário, enquanto gênero, esteve quase ausente entre nós. Fato este que já por si só
justificaria a transcrição, anotação e divulgação do diário de um indivíduo da segunda
metade do século XIX. Documento histórico este a colaborar no estudo das mentalidades
vigentes entre as elites letradas e econômicas de um Brasil que se defrontava então com
as vicissitudes da expansão do imperialismo e da integração tangencial ao mundo
moderno do capital. Acrescente-se que o autor destes diários, filho das elites do Império e
da sociedade tradicional, escravista e bacharelesca que o sustentava, defrontou-se, no
decorrer de sua vida, exatamente com a experiência da modernidade do capitalismo, da
especulação, do risco e da vida urbana das cidades européias, e nela foi bem sucedido.
Seu substrato existencial, porém, diferentemente do que se poderia supor, não provinha
da vivência intelectual e afetiva do Brasil do sudeste cafeeiro, que tratava de se urbanizar
e europeizar, mas inspirava-se numa visão idílica e sensual da vida livre dos sertões e das
populações selvagens e mestiças que o habitavam. Informava-o, assim, uma vivência
própria às áreas de fronteira, às frentes de expansão, povoada por populações avessas à
civilização, ou apenas superficialmente integradas, por força do recrutamento militar que
se fazia aplicar, com rigor draconiano, nas regiões do interior.
A leitura dos diários esclarece este pano de fundo intelectual e emocional, no qual
uma população percebida como selvagem ou quase, trafega numa paisagem deserta,
atemporal e luxuriante. Em outras palavras, sua vivência entranhava-se às atividades de
viajante, conquistador e militar do Brasil dos sertões e das frentes de expansão. Paisagem
esta, no entanto, que o próprio Couto, assim como praticamente todos os seus pares, isto
é as elites intelectuais políticas e econômicas do Império, consideravam fadada ao
Primeiro Caderno 9

desaparecimento, através da conquista e da integração ao mundo do capitalismo do


século XIX.
Escritor compulsivo e minucioso em seu dia-a-dia, sistemático em seus registros
pessoais, a respeito de sua contabilidade, atividades sexuais, doenças e incômodos, Couto
procurava estabelecer, com a crônica do cotidiano e com análise acurada dos fatos
diários, um mecanismo de compreensão e controle de sua vida pessoal. É como se a
passagem do tempo, com seus imprevistos e ansiedades, pudesse ser domesticada através
do relato cuidadoso e sistemático da seqüência das ocorrência do cotidiano. Ao mesmo
tempo, o traço marcante da nostalgia e de uma certa melancolia, vincadas pelas
lembranças das selvas, dos rios caudalosos, dos sertões que compuseram o cenário de
uma vida errante e livre durante certo período de sua vida, funcionam como contraponto
ao registro bastante realista e pé-no-chão de sua vida ao tempo do diário.
Dentre a variedade de questões que se acham registradas no diário, duas surgem
como fundamentais ao encadeamento mesmo do relato cotidiano. São estas, em primeiro
lugar, as relacionadas à saúde e aos cuidados médicos e, em segundo, as relacionadas à
sexualidade e às atividades sexuais propriamente ditas, as quais se encontram em sua
maior parte registradas em tupi ou código. A compreensão do diário exige o
esclarecimento de pelo menos alguns aspectos destas, tarefa bastante árdua, uma vez que
não se trata de apenas lançar luz sobre os fundamentos intelectuais de seu raciocínio, mas
sim de partir desta compreensão, para recuperar a subjetividade do registro íntimo.
Um dos assuntos mais enfocado no dia-a-dia de Couto, conforme atesta a leitura dos
diário, referia-se à saúde e aos cuidados médicos e dietéticos capazes de assegurar o
perfeito funcionamento de seus órgãos e funções vitais. De fato, é com perseverança
inquebrantável que Couto procura , ao longo de todo o diário, estabelecer um regime
dietético conveniente a seu estado de saúde, pretensamente debilitado. E para tal não
mede esforços; lê, relê, anota e resume tratados e mais tratados de medicina. Fazendo uso
igualmente de seus dotes empiricistas, expõe-se sistematicamente a todo o tipo de
experiência dietéticas e medicamentosas, frente as quais dedicava-se ele, com afinco, a
avaliar e julgar. O resultado deste processo é que grande parte de seus registros parecem
se ater a uma crônica minuciosa de um imaginário estado de saúde. Note-se que embora
Primeiro Caderno 10

seja este aspecto do diário um tanto quanto nebuloso e repetitivo, é nele que reside, ou
que se esconde, em grande dose, a subjetividade de seu autor.
Cabe, porém alinhavar algumas observações úteis para o entendimento dos registros
a respeito do assunto. Em primeiro lugar ressalte-se que todas as idéias, diagnósticos,
regimes e medicamentos de que fazia uso Couto de Magalhães ao tempo do registro do
diário não provinham de indicação médica, mas sim do próprio alvitre de seu autor. De
fato, grande parte de seu tempo Couto dispende estudando medicina. Assim, ele lê e
muito a respeito de variados assuntos médicos. Autores como Armand Trousseau,
professor de clínica médica do Hotel-Dieu de Paris e autor de manuais de medicina
constantemente reeditados ao longo das últimas décadas do XIX e Maximilien Paul
Emile Littré, positivista, autor de tratados médicos e tradutor de clássicos gregos, eram
autores constantes nas leituras de Couto, através das quais ele buscava se colocar a par
das abordagens médicas mais modernas.10 Inspirado nestas leituras é que Couto fala de
dispepsias, flegmasias, broncorréias,11 auto-prescrevendo medicamentos como alcalinos,
Epson Salt ou nux vômica, todos constantes dos tratados médicos lidos.
No entanto, a base de seu raciocínio a respeito da saúde e do tratamento dietético
adequado para si repousa em terreno muito distante da medicina cientificista e especiali-
zada dos finais do século XIX. De fato, dentre a variada gama de leituras de Couto as que
mais se sobressaem são os clássicos gregos e latinos, dentre eles imperando os textos
médicos e as prescrições dietéticas de Hipócrates, disponíveis nos países europeus, na
década de 1880, tanto em latim quanto em traduções modernas. Dentre as possibilidades
existentes com relação à obra de Hipócrates, destaca-se a recopilação e tradução para o
francês, realizada por Littré e editada entre os anos de 1839-1861, citada inclusive no
decorrer do diário.12 Neste caso, uma pequena digressão a respeito tanto dos princípios

10. Tais como A. Trousseau, Clinique Medicale de l’Hotel-Dieu de Paris. 2ª edição, Paris,
Baillière, 1865 ou Traité de l’art de formuler comprenant de notions de pharmacie, la
classification par familles naturelles de medicamants simples, les plus moités, leur dose, leur
mode d’administration etc, suivi d’un formulaire magistral, par Trousseau et O. Reveil. Paris, E.
Thunot et Co, s.d., ou ainda de Maximilien Paul Emile Littré, Dictionaire de médecine, de
chirurgie, de pharmacie et des sciences qui s’y rapportent. Paris, Baillière, 1842.
11. Respectivamente indigestão, inflamação e inflamação dos brônquios.
12. Maximilien Paul Emile Littré, Hippocrates: Ouevres Complètes; traduction nouvelle
avec le texte grec en regard. Paris, Baillière, 1839-1861.
Primeiro Caderno 11

médicos hipocrático, quanto do tipo de leitura realizada por Couto, podem muito
colaborar para a compreensão mais ampla dos registros contidos no diário.
Em primeiro lugar, cabe notar que Hipócrates (460-437AC), considerado como o pai
da medicina ocidental, foi o primeiro a se esforçar por estabelecer uma patologia e uma
nosologia a partir da observação mesma do doente, de suas doenças e sintomas.
Estabelecendo uma primeira cisão entre o pensamento mágico a respeito da doença, de
suas causas e terapêuticas e a observação empírica do fato concreto das enfermidades,
Hipócrates tornou-se marco das origens da ciência médica. Claro está que seus
conhecimentos nos campos tão distintos como da genética, anatomia, cirurgia etc,
estavam já no século XIX totalmente superados, o que não impediu que a obra do mestre
da Escola de Cós se mantivesse extremamente popular, mesmo entre os médicos e
estudantes de medicina europeus e brasileiros.13
No entanto, apesar do caráter empírico da observação de Hipócrates, seu horizonte
intelectual e a concepção filosófica que inspirava a doutrina provinham de muitas fontes
da antigüidade, encontrando sua filiação mais explícita na filosofia pré-socrática e
pitagórica. Neste sentido, o processo de constituição das doenças, que Hipócrates
colocava em paralelo com a estrutura do universo, originava-se da doutrina do micro-
macrocosmo.14 E nesta a enfermidade pode ser entendida como uma metáfora de
combate, sendo a arte de curar, a de se opor à doença. Assim, a terapêutica dos contrários
é fundamental à medicina hipocrática, conforme atesta sua fórmula mais famosa: “Os
contrários são o remédio dos contrários”.
Neste sentido, e apesar do caráter empírico e racionalista de suas observações
médicas, seus tratados demonstram ser tributários de um pensamento arcaico, no qual a
doença era compreendida como uma força demoníaca e a terapêutica concebida como

13. Robert Joly afirma que o estudo dos textos de Hipócrates, conhecidos diretamente ou
através de comentários de intermediários, nutriram a teoria e a prática médica até pelo menos a
metade do século XIX. Hippocrate, Du Régime. Texte établi et Traduit par Robert Joly. Paris,
Belles Lettres, 1967, prefácio de sua autoria, p. 8. A seguinte afirmação pode dar idéia da
popularidade de Hipócrates entre os estudantes de medicina do Brasil, provavelmente no decorrer
do XIX: “Durante vários meses compulsando velhas teses de doutoramento, apresentadas às
Faculdades de Medicina da Bahia e do Rio de Janeiro, observamos que era de praxe encerrarem-
nas com a reprodução, em latim, de seis dos aforismos hipocráticos.” Hipócrates, Aforismos,
tradução e Nota Introdutória de Leduar de Assis Rocha. Prefácio de Gilberto Osório de Andrade.
Recife, Arquivo Público Estadual, 1957, p. 15.
Primeiro Caderno 12

estratégia para expulsá-la dos corpos, através do pharmakon ou de um remédio


evacuante, que ajudaria a vítima a purgar de seu corpo o invasor.15 Assim, entre os mais
notáveis procedimentos médicos aconselhados por Hipócrates está o da evacuação, onde
igualmente atua sua visão dos contrários e da oposição entre o alto e o baixo. Assim,
considerava Hipócrates que o homem possui duas cavidades principais: a cavidade do
alto, ligada ao peito e a de baixo, relacionada ao ventre. Neste sentido, vômitos e
evacuações propriamente ditas são constantemente recomendadas tanto à título
preventivo, em termos dietéticos, quanto curativos, como fórmulas para eliminar a
doença, entendida como impureza e o tratamento como rito de purificação.16
Muito ainda se poderia falar sobre a doutrina hipocrática, da concepção dos humores
e das fleumas que habitam o corpo humano, a necessidade do equilíbrio dos elementos
que compõe o ambiente e o próprio corpo humano, quais sejam, ar, água, terra e fogo —
e aqui mais uma vez a doutrina do micro-macrocosmo —, que resultaram numa visão
médica, sobretudo preventiva e dietética.17
Em seu exemplo mais bem acabado, a concepção médico-dietética de Hipócrates se
encontra na obra Du Régime, onde a prescrição de um regime saudável e corretivo, vem
balizada tanto por injunções a respeito do sexo, da idade e da profissão dos pacientes,
quanto pela variedade dos climas, das estações, dos ventos e dos alimentos. Subjacente a
esta doutrina dietética encontra-se a crença na necessidade de estabelecer um regime de
equilíbrio entre o paciente e seu meio ambiente, ou melhor dizendo, corrigir os
inevitáveis desvios que ocorrem ao longo da existência dos mesmos, que acabavam por
se manifestar na forma de enfermidades crônicas ou agudas.
Ora, a leitura dos diários sugere que o que Couto efetivamente absorve das leituras
hipocrática, mais além das prescrições específicas, é esta linha dietética, plena de regras e
admoestações muito claras e diretas a respeito da construção do verdadeiro equilíbrio
entre o ser humano e o ambiente, capaz de ser concretizado através de um
comportamento guiado pela moderação. Acrescente-se, em seu sistema pessoal de

14. Hippocrate, Du Régime, op. cit., p. XIX.


15. Jacques Jouanna, Hippocrate. Paris, Fayard, 1992, pp. 202, 259 e 224.
16. Jouanna, Hippocrate, pp. 224-225.
17. Sobre o assunto ver: Hippocrate, Du Régime, op. cit.
Primeiro Caderno 13

crenças, a influência do pensamento do poeta latino Horácio (65AC-8DC). Seguindo a


doutrina epicurista, o mestre latino propugnava uma vida aproveitada ao máximo, através
da moderação que permitia ao homem gozar o presente, guardando a tranquilidade da
alma, ao mesmo tempo despreocupando-se do futuro. A sequência dos registros do diário
apontam que a busca incessante da moderação percorre de forma prática o dia-a-dia do
seu autor, contrapondo-se a reflexão meramente teórica a respeito da desimportância da
acumulação dos bens que garantem o futuro do indivíduo.
Estabelecimento de regras de conduta claras, normatizando um cotidiano repleto de
ansiedades e riscos, parece ter sido, no caso de Couto, a função mais clara das máximas
latinas e das prescrições hipocráticas, nas quais a abordagem racionalista dos fenômenos
físicos e ambientais, resultou numa doutrina bastante objetiva. Prescrições estas que
embora se chocassem com os avanços mais recentes da ciência médica de seu tempo,
pelo menos tinham a vantagem de estabelecer regras e procedimentos de conduta claros,
coisa que a própria evolução da ciência no XIX parecia momentaneamente obscurecer.
Além deste aspecto cabe considerar outro ângulo do problema, relacionado aos tipos
de obra de Hipócrates que Couto efetivamente leu. E neste caso a resposta parece ser que
as prescrições que Couto mais se utilizou são aquelas constantes de seus aforismos. De
fato, muitos destes, escritos num estilo claro e conciso, do qual se encontra expurgada
toda e qualquer teoria, estão transcritos ou foram indiretamente utilizados pelo autor dos
diários, como regra de conduta e estratégia de diagnóstico de fenômenos mórbidos,
imaginários ou não.
E nem surpreende que Couto tenha se utilizado tão profusamente de tal gênero
literário e estilo de pensamento. Ora, os ditos célebres, aforismos, sátiras, máximas e
prescrições — enfim, todo este gênero de sentenças morais, breves e conceituosas —,
parecem ter sido bastante populares no século XIX, tendo inclusive se impregnado numa
cultura bacharelesca, como a brasileira, que prezava o conhecimento — embora um
pouco precário ou resumido — dos clássicos gregos e latinos e a retórica de efeito.18 E

18. Indícios da popularidade do gênero podem ser encontrados nas inúmeras publicações,
como, por exemplo: Hipócrates, Aforismos, op. cit., Artur Rezende, Phrases e Curiosidades
Latinas. Rio de Janeiro, 5ª edição, IBGE, 1955, Marques de Maricá, Máximas, pensamentos e
reflexões. Rio de Janeiro, Tip. J. Villeneuve e Cia, 1837 e Dr. João Caetano de Deos e Silva,
Primeiro Caderno 14

nem espanta que alguns registros, aparentemente tão obscuros, fossem simplesmente
fruto da interpretação de fenômenos físicos pelas lentes dos aforismos hipocráticos. Cito
aqui um só exemplo: Na entrada do dia 30 de agosto de 1880 Couto registrava ter
passado uma péssima noite . . .:

“Estava cheio de terrores vagos e entre outros de ser acometido de


epilepsia e cometer algum crime! De manhã ainda estava mui apreensivo
e cismático; às 12 a densidade da urina subiu a zero; no entretanto eu fiz
um estudo detalhado da moléstia e cheguei a conclusão que nem tinha
nem era provável tê-la. Tudo desapareceu como por encanto; o receio foi-
se; a sensação esquisita do braço esquerdo desapareceu; voltou a saúde a
tranquilidade; fui ao Regent Park remei; dormi tranquilo. Dois fenômenos
são dignos de nota: a variação da densidade da urina que cuja densidade
variou na razão descendente de 16 para 0 - (vide diário clínico) e o
desaparecimento da sensação do braço . . . um outro fenômeno curioso o
ataque foi precedido imediatamente de curiosas alterações nas
evac[uações] alv[inas] 1º cor avermelhadas; 2º evac[uações] não
flutuantes e mais brancas do que o ordinário, saúde — evacuação
flutuantes e mais escuras. Há entre os fenômenos alguma reação de causa
e efeito? Parece que sim.”

Toda esta passagem, na qual fenômenos eminentemente psíquicos, de insônia,


terrores vagos e ansiedades, foram imediatamente ligados às partes baixas, quer dizer, a
alterações nas evacuações, podem se esclarecer frente a alguns dos aforismos de
Hipócrates, nos quais a doutrina dos opostos se explicita:

“Varizes e hemorróides que sobrevenham nos maníacos, resolvem a mania”.

Ou ainda, detalhando estas afirmações:

“É preciso examinar as qualidades das evacuações que se fazem através


da bexiga e dos intestinos, e (as excreções) que se fazem através das
carnes (pele) e se o corpo se afasta, em alguma cousa, do estado natural;

Máximas Políticas, Moraes e Econômicas para Uso dos meninos nas Escolas do Império,
compostas em 1829. Rio de Janeiro, 3ª edição, Tip. Nacional, 1836.
Primeiro Caderno 15

menos ele se afasta mais a doença é benigna; mais se afasta, maior é o


perigo de morte.”19
Constantemente aterrorizado com seu estado de saúde e com o descontrole mórbido
de seus órgãos e funções vitais se dedicava ele, com afinco, a encontrar a chave do bem
estar, através de uma análise sistemática do corpo e de suas reações. Embora o desfiar
constante de sintomas e mal-estares, do que se pode deduzir a partir de seus registros,
Couto não sofria de nenhuma enfermidade propriamente dita, podendo ser estas
sensações corporais entendidas como expressão da subjetividade de seu sujeito, expressa,
inclusive por ele, no rótulo do “nervosismo”. E neste ponto as prescrições hipocráticas,
com sua visão de oposição, impureza e purgação, surgiam como respostas a este estado
de reconhecido nervosismo, que se reflete tanto no desequilíbrio das emoções quanto do
corpo.20 E não seria descabido acrescentar que todo esta preocupação com o
funcionamento do corpo e do espírito poderia ser entendida como uma metáfora de
ansiedades concernentes a uma outra função, que se encontra tão presente, quanto
elipticamente tratada no decorrer do diário, que é a da sexualidade.
Sem dúvida a questão da sexualidade merece menção especial, seja por que o
assunto recebeu um tratamento relevante no próprio desenrolar do diário, seja pelo
surpreendente caráter íntimo e espontâneo com o qual o assunto foi abordado. Registros
deste tipo, tão raros numa sociedade vincada pela moral vitoriana, como o eram as
européias do século XIX, são ainda mais valiosos em se tratando da sociedade brasileira,
na qual muito esparsamente penetravam as reflexões a respeito da constituição de uma
individualidade, sensualidade e sexualidade. A concepção de interioridade e da
constituição de um eu (self), em contraste com as pressões provenientes das nascentes
sociedades de massa, próprias à vida européia e norte-americana, parecem, a primeira
vista, terem estado ausentes do cenário brasileiro, ainda muito marcado pelos laços
tradicionais das famílias e de uma sociabilidade paternalista e patrimonialista. No
entanto, o documento que à frente se nos apresenta sugere os caminhos mais ou menos

19. Aforismos nº XXI e LXXXI, Hipócrates, Aforismos, op. cit, pp. 102, 104 e 126.
20. Aqui sugere-se a leitura de Ruth Harris, Assassinato e Loucura. Medicina, Lei e
Sociedade no fin-de-siècle. Rio de Janeiro, Rocco, 1993, sobretudo os itens “Neurofisiologia
evolucionária, automatismo humano e o “inconsciente”, pp. 35-46 e o capítulo “Mulheres,
Histeria e Hipnotismo”, pp. 173-228.
Primeiro Caderno 16

enviesados que estas reflexões penetraram no universo pessoal de pelo menos parcelas
das elites letradas do país, implicando, no caso de Couto, num emaranhado singular de
questões, sobressaltos e fantasias.
Acrescente-se que por tratar-se de um documento de cunho íntimo, a abordagem de
seus registros, sobretudo daqueles concernentes às atividades sexuais, requerem uma
aproximação cuidadosa e empática, avessa a sensacionalismos e julgamentos moralistas,
que destruiriam a própria riqueza do documento que a frente se apresenta. Ressalto aqui
que os registros de Couto aproximam-se, em termos da intimidade dos registros sexuais,
daqueles de autoria do famoso herói nacionalista irlandês Roger Casement (1864-1916).
Viajante das terras coloniais, corajoso em suas denúncias contra a extrema exploração
das populações nativas na era do imperialismo e militante do movimento nacionalista da
Irlanda, Roger Casement legou a seus contemporâneos, além da sua obra humanitária, a
tarefa de decifrar seus famosos e controvertidos diários íntimos. A divulgação dos
mesmos, embora tenha alimentado longa celeuma entre os os estudiosos da prosa e da
história dos movimentos nacionalistas da Irlanda, parece hoje escorada em amplo
consenso: a de que os materiais ali contidos fazem parte, eles próprios, da história dos
movimentos sociais irlandeses 21.
No que diz respeito aos registros sexuais, o acompanhamento do diário de Couto de
Magalhães desafia o leitor a penetrar no universo íntimo de seu autor, construído a partir
de um vocabulário próprio, que mescla passagens em tupi/nehengatú com a utilização de
códigos pessoais. O uso de uma língua estrangeira e hermética, no caso o tupi/nhengatú,
surge aí como recurso distanciador e mediador dos materiais reprimidos,22 que desta
forma afloram de forma elíptica, permitindo o registro daquilo estava obviamente
proibido de ser expresso na linguagem corrente dos princípios morais e religiosos. No

21
. Sobre os diários e biografia de Roger Casement ver: Singlenton-Gates, Peter e Girodias,
Maurice, The Black Diaries of Roger Casement. With the Account of His Life and Times, Nova
Iorque, Grove Press, 1959. Sobre a importância do diário no desenvolvimento dos estudos
irlandeses cito a conferência de Lucy McDiarmid: Roger Casement: Nation, Sex and
Controversy, Universidade de Michigan, Departamentos de Literatura Inglesa, 4 de outubro de
1997.
22. Conforme chama atenção Gay, a respeito da utilização do latim, pelo próprio Freud, no
decorrer de sua auto-análise, na transcrição de suas memórias mais reprimidas. Ver Peter Gay,
Freud. Uma Vida para o Nosso Tempo. São Paulo, Companhia das Letras, 1989, pp. 25-26.
Primeiro Caderno 17

entanto, ressalte-se que a pulsão sexual, seus prazeres e seus desconfortos se encontram
presentes neste relato: a uma homossexualidade que se manifesta em sonhos,
rememorações e fantasias, acresce-se uma constante preocupação com os órgãos sexuais
e seu funcionamento e a presença concreta, embora notavelmente opaca em termos
afetivos, de Lily Grey, amante constante de Couto de Magalhães e com a qual ele
concretamente vivia uma experiência de intimidade sexual.
No entanto, é necessário seguir o curso das fantasias para acompanhar uma
sensualidade que liberta das peias da linguagem do dia-a-dia, da lingua pátria que traduz
os afetos primários mas estabelece códigos de comportamento e os freios da repressão,
estabelece uma narrativa, constituída pelo vocabulário do prazer. Índios, negros, cafuzos,
curibocas e tapanhunos aparecem, desta forma, no registro livre das fantasias, como
contrapartidas deste vocabulário, colocando-se na encruzilhada de muitas línguas.
Surgem eles, por uma parte, como o desdobramento da línguagem exótica e bárbara do
tupi-nhengatú, afinal os corpos sobre o quais se inscreve esta linguagem sensual são
também, eles próprios, selvagens e livres, organicamente ligados à natureza. Por outra
parte, a mesma narrativa que os coloca como seres sensuais assim o faz através da
projeção no outro daquilo que no sujeito-autor está interdito, portanto, o que se inscreve
aí é a sensualidade do narrador e suas fantasias, aprisionando numa teia de passividade e
despersonalização corpos que não chegam a constituir seres. Em outras palavras, seria
esta narrativa sensual, ao mesmo tempo, um discurso de poder, capaz de transformar o
outro na matéria flexível com o qual as fantasias do autor podem ser preenchidas.
Questões muito íntimas e subjetivas percorrem as páginas deste diário e encontram
seu desaguadouro na seção intitulada “Diário de Sonhos”, na qual inspirado pelo Tratado
dos Sonhos, de Hipócrates,23 dispõe-se a reter na memória, registrar e analisar suas
atividades oníricas.
No entanto, este livro é tido como um dos únicos da obra de Hipócrates na qual a
intervenção divina, com seus presságios e sinais é admitida abertamente, ao lado de um
simbolismo já não tão explicitamente conectado à divindade, mas sim aos indícios de
saúde ou moléstia do indivíduo sonhador. Assim, por exemplo, afirma Hipócrates:

23. Hipócrates, Du Régime IV ou Des Rêves. Paris, Belles Lettres, 1967.


Primeiro Caderno 18

“Todos os sonhos que repetem durante a noite as ações e intenções do


sujeito, da maneira como estas foram realizadas ou concebidas durante o
dia, como respostas a atividades convenientes, todos estes sonhos são
bons para o indivíduo. Eles indicam, com efeito, a saúde pois a alma
persiste nos projetos do dia, sem ser dominada por uma plenitude, uma
evacuação ou qualquer outro fator externo. Quando os sonhos se opõem
às ações do dia ou que aí se produz um enfrentamento ou uma luta, isto
indica o advento de um problema no corpo...”24

Aqui, no entanto, a abordagem de Couto parece ter sido outra. A leitura do Tratado
de Sonhos, embora o inspire, não parece tê-lo impressionado. Pelo contrário, segundo
uma concepção muito mais moderna, ele inverte a proposta de Hipócrates, refletindo a
respeito da autonomia dos sonhos e de sua misteriosa capacidade de condicionar as ações
despertas. É interessante observar a maneira como o autor dos diários intuiu a existência
de impulsos e estímulos existentes fora do alcance do consciente e os persegue,
registrando minuciosamente seus sonhos. Embora anterior ao advento da psicanálise e da
publicação da obra clássica de S. Freud A Interpretação dos Sonhos, que só viria a lume
em 1900, Couto parece sensível a respeito da importância dos sonhos para a compreensão
da vida mental e dos estados emocionais dos indivíduos. Esta sua visão poderia se
esclarecer frente aos estudos relativos ao hipnotismo, à histeria e ao “nervosismo”,
inclusive masculino, que surgiram nas décadas finais do XIX, e que já indicavam a
existência de um território do inconsciente, situado mais além das fronteiras do controle e
da consciência desperta. O acompanhamento destas discussões científicas ou pseudo-
científicas, que inclusive ganharam rápida popularidade, impressionando o público dos
tribunais, das tendas dos mágicos e espiritualistas e os auditórios dos hospitais,
encontraram seu representante mais marcante na figura de Charcot, médico do hospital de
alienados de Salpêtrière e estudioso da histeria feminina.25
Todos estes aspectos sutis que perpassam a leitura dos diários que se seguem e
colaboram para torná-los ainda mais valiosos. Pois, mais do que um documento original

24. Idem, Ibdem, p. 98-99.


25.Sobre o assunto ver, por exemplo: Harris, Assassinato e Loucura, op. cit., pp. 173-228.
Primeiro Caderno 19

no panorama da historiografia brasileira, as anotações de Couto de Magalhães expressam


um emaranhado íntimo de sentimentos, pulsões e pensamentos que refletem, de maneira
bastante arguta, alguns dos desafios com os quais se defrontaram as elites do Império
brasileiro frente ao advento da modernidade, com seu corolário de inquietações e
angústias, até agora considerados como exclusivos das classes médias dos países centrais.
Claro está, que estas questões como da descoberta da sexualidade, individualidade,
libertação feminina, homossexualidade, colocavam-se ao lado de muitas outras, relativas
ao âmbito das decisões políticas e econômicas com as quais as elites brasileiras se
debateram, e devem ser analisadas nos quadros de um universo mental mediatizado pelas
experiências do colonialismo, da escravidão e da existência das populações não-brancas,
idilicamente concebidas como selvagens, ou mais realisticamente encaradas como
inferiores e fadadas ao desaparecimento, senão genético ao menos cultural.
Talvez seja esta a maior virtude do documento que se segue. Desvendando o
processo de constituição de uma individualidade adequada à modernidade do fin-de-
siècle e seus desafios, os diários de Couto de Magalhães exemplificam, acima de tudo, o
confronto desigual que tinham que enfrentar as elites brasileiras, a partir da vivência da
realidade colonial, as pressões de um mundo em rápida transformação.

Nota sobre o Estabelecimento do Texto


Uma vez que o texto que ora apresentamos é um manuscrito de caráter pessoal
datado dos finais do século XIX, encontrava-se grafado no modo correntes da época,
além de apresentar peculiaridades próprio a um registro íntimo. Em vista disto alguns
procedimentos foram observados para facilitar a compreensão do leitor moderno, sem, no
entanto, alterar o sentido original do texto. São estas:
1. Todas as abreviaturas foram desdobradas.
2. Os trechos sublinhados no original aparecem aqui em negrito.
3. As palavras em língua estrangeira estão em itálico.
4. Os acréscimos introduzidos pela organizadora para facilitar a compreensão do
texto aparecem entre chaves - [].
5. As glosas do autor, mesmo quando marginais ao texto, aparecem também entre
chaves.
Primeiro Caderno 20

6. A ortografia do documento foi corrigida e atualizada, inclusive em inglês, no


próprio corpo do texto.
7. No caso do latim, a ortografia original foi mantida no corpo do texto e a tradução
destas passagens nas notas se preocupou apenas em estabelecer o sentido da passagem,
sem se ater aos erros de grafia, morfologia, sintaxe e semântica que porventura
existissem.
8. No caso das passagens em tupi-nhengatú, a ortografia original foi também
mantida no corpo do texto. Nas notas, porém, primeiro se apresenta a grafia correta,
atualizada e desdobrada das frases e , em seguida, sua tradução para o português.
9. Os códigos que aparecem no entremeio, por serem intraduzíveis, foram mantidos
como no original.
Primeiro Caderno 21

Primeiro Caderno

L. C. 366 libras. Dispendendo 20 libras por semana, ano 1.040 a 25 = 1300, a 30 = 1560 a
35 = 1820 a 40 = 2080, dispendendo a 15 libras = 780. Escrever: além das outras regras:
— o cabo da pena abaixo do nó da última falange; e o punho de modo a que movendo o
braço ele siga uma direção paralela as linhas do papel, todos os dedos mui leves, e a mão
deitada de modo que o chato da caneta descanse no 3º dedo, as últimas articulações do 4º
e do quinto dedo encolhidos sobre a palma; o punho acima do papel; o dedo polegar
assentado na última falange do 2º Stokes Rapid writing.26

Renda segura que tenho hoje 12 de agosto de 1880

Capital Renda

200 Apólices do Brasil 6% 200:000$ 12:000$

50 Ações do Banco do Brasil 10% 10:000$ 1:000$

365 das da Compania São Paulo Rio 7% 73:000$ 5:110$

42 Apólices do Pará 8% 42:000$ 3:360$

10 Consols ingleses L.10.000 3% 100:000$ 3:000$

50 Bonds argentinos27 1871 6% 50:000$ 3:000$

475:000$ 27:470$

Deduzindo despesas anuais no Rio e Pará 5:470$

82 2:400$

Mais a 25 de agosto 86 a 3% 557:000$ 24:400$

[glosada na mesma página, sob rubrica “Probabilidades”, diversas contas rascunhadas]

26
. Aqui o autor se refere a um manual popular de caligrafia.
27
. Bonds argentinos são notas do tesouro nacional da Argentina.
Primeiro Caderno 22

Cálculo aproximativo de sustento um dia


Almoço
2 ovos 3d.
2 sardinhas 3d.
4 onças de pão 1
Manteiga 1
8
Outro
2 costeletas 1s.
Arroz 03
Pão manteiga 2
1.5
Jantar
1 libra de Steak ou 2 costeletas 1.4
Beans 0.3
Salad .1
4 ounces bacon 3s.
2 ovos 3s.
2.2
Açúcar 4 onças 1
Tea 5
2.8
1.5
4.328

28
. Em valores da época, d (pence) = 1/12 shillings; s (shilling) = 1/20 libra; h (halfpenny) =
1/24 shillings.
Primeiro Caderno 23

Continuação do Diário

31 de Julho de 1880 Saturday. Fechei ontem o caderno que começou com este ano e
principio este às 9 1/4 da noite na casa nº 2 de Park Place (Regents Park). Passei o dia
fazendo um resumo do estado atual de minha fortuna pecuniária e cheguei a conclusão
que possuo muito mais capital dinheiro do que capital tempo, e portanto é o último que
merece particular atenção.

Com efeito um pouco de reflexão mostrará a justeza deste juízo assim:

Tendo eu nascido em 1º de novembro de 1837 tenho hoje 42 anos e 9 meses diga-se 43


anos. Tomando a vida humana pela medida dada por Moisés isto é: três vintenas e 10; a
saber 70 anos temos: eu não considero ter vivido os 13 primeiros anos da vida; não
considero igualmente que se viva depois dos 65 por conseguinte tenho vivido 30 anos e
resta-me a viver 27, se eu chegar aos 70; deduzindo destes os 5, resta líquido 22, que a 24
contos por ano custarão 480 contos. Ora o capital dinheiro que possuo hoje dá para muito
mais, e portanto o que falta é tempo e não dinheiro. Ora eu posso aumentar o dinheiro,
mas, tempo, a única coisa que eu posso fazer é economizar, o que é equivalente a
aumentar, pelo menos é o único equivalente que está absolutamente em meu poder e no
de qualquer. Portanto: o que é que eu devo fazer para tirar o melhor partido possível dos
22 anos que provavelmente me restam a viver? Isto é um problema complexo que não
pode ser resolvido senão depois de dividir o assunto em diversos pontos, o que farei em
seguida (depois de abrir um parêntesis para tomar nota dos acontecimentos do dia que são
os seguintes):

A noite passada coceiras pelo corpo — sonhos; mau estado do estômago. Apliquei
poaia29 e dieta; melhorei. Ocupei o dia em fazer cálculos de finanças que lancei em outro
livro e que me alegraram. Li nos jornais as questões do dia Oriente isto é Turquia e
Grécia e Afeganistão 30. Veio o João ao meio dia; continua adoentado. Não saí de casa.

29
. Produto extraído da raiz da planta denominada ipecacuanha, muito usado no Brasil
durante o século XIX por suas propriedades medicinais.
30
. Referência às constantes perturbações políticas e militares que conflagravam o decadente
Império Otomano. Tumultuado por complexas questões como o renascimento do pan-islamismo,
a emergência de sangrentos conflitos étnicos-religiosos, a tendência à russificação de parte do
Primeiro Caderno 24

Senti um pouco de frio. Li a notícia do Dr. Tanner, que está jejuando há 32 dias. Recebi o
aviso do solicitor31 que tinha mandado assinar segundo minhas ordens 5 ações de 5
libras cada uma da Army and Navy Hotel. Depois do jantar li algumas sátiras do
Juvenal32. As 8 3/4 cheguei a Regent Park Place onde estou, e com isto termina-se o
registro do dia que considero que fez um dia feliz apesar do não mui bom estado de
saúde.)

Disposição do tempo. A primeira condição para que o homem faça uma disposição
razoável do seu tempo é que ele o tenha livre.

Daqui resulta a seguinte regra: 1º Tudo aquilo que nos obriga a empregar o tempo de uma
maneira independente de nossa vontade é uma perda irreparável. É muito conveniente
entrar num exame detalhado das coisas que nos obrigam a aplicar o tempo independente
de nossas vontades e olhar-se a questão pelo lado prático, isto é por aquilo que acontece
na vida, veremos que a maior parte do tempo que de fato perdemos sob esta denominação
resulta de falta de energia da nossa parte, de maus hábitos, de concurso de circunstâncias
enfim, que as mais das vezes dependem da nossa vontade. Feita esta reflexão preliminar
eu passo a dividir o assunto para melhor o tratar.

A questão é esta: o que é que se deve considerar como tempo perdido?

Há diversos graus nesta perda, sem falar daquelas que não dependem de nossa vontade,
por que estas não valem a pena serem consideradas, pois como diz a máxima: — o que
não tem remédio remediado está. Tomando portanto as perdas que mais ou menos podem
ser controladas pela vontade eu as classificarei do maior para o menos assim:

1ª perda: o tempo que dispendemos sob a pressão de qualquer ansiedade ou cuidado.

território, o Império Otomano defrontava-se principalmente com a expansão imperialista dos


países europeus ocidentais, sobretudo a Inglaterra, que colocava em xeque a já tumultuada
situação local. Maurice Crouzet, História Geral das Civilizações, Tomo 6, vol.2. São Paulo,
Difusão Européia do Livro, 1969, cap.IV. Aqui Couto acompanha com interesse o destino da
região interessado como estava nos investimentos estrangeiros que àquela altura se realizavam,
por capitalistas ingleses, principamente em estradas de ferro. Sugerindo, assim, a vinculação do
avanço imperialista sobre as áreas coloniais do oriente com o desenvolvimento dos negócios em
infra-estrutura de transportes – estradas de ferro e navegação a vapor – no Brasil, com os quais
Couto estava vinculado.
31
. Procurador.
Primeiro Caderno 25

2ª O que dispendemos contra nosso gosto com maçantes, indiferentes ou importunos.

3ª O que dispendemos para ganhar dinheiro posição ou glória, quando já temos aquilo
que é necessário e indispensável.

4ª O que gastamos em irresoluções e incertezas, até tomar uma resolução e pô-la em


prática.

5ª O que gastamos sem consciência de gastar, ou aborrecidos, quando podíamos gozar.

E estas cico perdas ou coisas ou modos de perder o tempo podem ser resumidas na
seguinte: O tempo que passamos mal podendo passar bem.

Londres Sunday 1st August 1880. Levantei-me às 8 1/2 e vim para casa às 9, tomei a nux
vômica e catumba de que estou usando agora almocei sem carne às 10 horas, li o
Dispatch; escrevi no livro de finanças o cálculo dos meus projetos monetários deste ano;
veio o João às 11, escrevi e copiei no livro de notas um orçamento de despesas da família
dele, que está agora mui pobre em consequência do pai se haver dado a embriaguez e
haver fugido; e mandei a ela 1 libra de auxílio para a semana pois é nisso que montam as
despesas, e esta boa obra me alegrou o coração. Depois tomei o meu chocolate, e comecei
alegre e plácido a escrever estas notas. Passei para o fim deste livro as addresses que
estavam no outro diário assim como as notas do expediente que reclama atenção, no qual
felizmente não há nada de urgente, e nem que deva inspirar ansiedade. São duas e meia.
Com a dieta a saúde está ótima hoje e eu alegre apesar do dia estar chuvoso e escuro. A
disposição do resto do dia está planejada assim: tomar alguns extratos de escritores
latinos e gregos respeito a ideais de felicidade e depois meditar, cismar e dormir; o que
não é diário neste livro e que se refere portanto ao que estava agora meditando isto é o
uso do tempo será iniciado sempre com este sinal +.

+. Agora a questão é esta: Qual é o tempo que passamos bem, e que não devemos julgar
perdido?

1º Aquele que dispendemos em satisfazer as necessidades físicas do nosso corpo.

2º Aquele que dispendemos para satisfazer as necessidades morais ou espirituais.

32
Juvenal (Décimus Junius Juvenales), 55-140, poeta satírico latino.
Primeiro Caderno 26

3º Aquele em que gozamos.

4º Aquele em que praticamos ações heróicas.

Cada uma destas espécies está rodeada de muita dificuldade por que não há medida
alguma para distinguir o que é necessidade física, necessidade moral, gozo, heroismo; e
cada uma dessas coisas dependem tanto da educação hábitos e prejuízos do indivíduo,
que qualquer quadro que se fizesse dessas coisas pareceria incompleto para uns e
excessivo para outros, pois isto seria nem mais nem menos dizer em que é que consiste a
felicidade.

Para procedermos com método comecemos por examinar quais são os elementos, os
meios que se deve possuir para ser feliz.

Os únicos elementos sobre os quais a humanidade está de acordo, se é que mesmo nisto
está de acordo é o mens sana in corpore sano, de Juvenal, isto é: um espírito são em um
corpo são.33

Excetuado isto a humanidade está, esteve, e provavelmente estará sempre em


divergência.

Causas principais da divergência no ideal de felicidade

No entendimento do homem há duas coisas que estão sempre em luta e são o ideal e o
real. Não são mui numerosas mesmo os entendimentos que são capazes de distinguir o
real daquilo que é ideal. Não temos meio nenhum para averiguar se nossos ideais tem
alguma realidade se não a crença que parece natural a toda humanidade que Deus, o
Criador ou a Natureza (desse-lhe o nome que se quiser) sendo bom não podia por esses
ideais em nossa cabeça para nos iludir; mas como também essa crença é um ideal a
solução dada por ela é incerta, e quem quiser examinar os motivos de certeza que

33
. O latim utilizado por Couto de Magalhães ao longo do diário é um latim bárbaro e
estropiado, apresentando erros ortográficos, morfológicos, sintáticos e semânticos, bem como
erros provenientes da cópia incorreta de passagens bem conhecidas, tais como as dos aforismos
amplamente registrados pelo autor do diário. A opção da tradução foi a de atentar para o sentido
da frase, portanto desconsiderando os erros que de outra maneira dificultariam muito a
compreensão dos registros. Apenas nos casos em que a tradução se mostrou impossível é que a
tradução enfoca o problema. Note-se que mesmo nas passagens copiadas dos autores latinos
encontra-se um latim muito incorreto. Juvenal, sátira X, v. 356, in: Artur Rezende, Phrases e
Curiosidades Latinas. Rio de Janeiro, 5ª edição, IBGE, 1955, p. 410.
Primeiro Caderno 27

resultam dos ideais podem ler com vantagem duas obras de Kant, filósofo geralmente
conhecido de Konigsberg, e que se intitulam a primeira n Crítica da razão pura a segunda
Crítica da razão prática.

2d of August Monday. Recebi hoje uma carta do senhor Costa dando notícia que tinha
sido expedida a ordem para ser paga a subvenção do Tocantins; isto me faz entrar em
novos cálculos de investimentos, cálculos que são para mim um prazer por que vejo o
fruto de meu longo e arriscado trabalho — e sinto-me seguro do meu futuro, depois
destes cálculos percorri o Marcial34 para ver se encontrava as poesias como ideal dele, o
que encontrei porém não como eu supunha que ele era depois disso descansei jantei; e
marco mais este dia com uma pedra branca. Continuo em seguida o estudo anterior.

O ideal não tem limites mas o real tem. Vou tratar de registrar aqui alguns ideais.

Um dos mais conhecidos é o de Horácio que começa: Beatus ille qui procul a negotio.
Feliz daquele que passa a vida longe dos negócios.35

Para Horácio e para em geral os filósofos epicuristas a maior das venturas era passar uma
vida sem cuidados. Ter o necessário, viver para si, escrever poesias e ler.

O ideal de Marcial é alguma coisa semelhante a este. Ter uma pequena casa de campo
que lhe desse o parco necessário, uma vida sem processo, boa saúde, noites com sono.

Le Sage em Gil Braz de Santilhana36 põe em um fidalgo português o seguinte ideal:

34
. Marcial (Marcus Valerius Marcial), c.40-104, poeta latino.
35
. Em referência a ode de Horácio, (Quintus Horacius Flacus), 65 AC-8 DC, poeta latino.
Citado no texto trecho de Epodas, Ode II, VL in: Rezende, Phrases, op. cit., p. 60, no qual o
poeta descreve os encantos do campo, em contraste com as ocupações ruidosas da cidade:
Feliz aquele que, longe dos negócios,
como o faziam os antigos mortais,
cultiva os campos paternos, com seus próprios bois,
livre de qualquer dívida.
36
. Alain-René Le Sage, 1668-1747, romancista e dramaturgo francês, que compôs a
personagem de Gil Blaz de Santilhana, entre 1715-1735, através da qual o autor fazia a crítica à
sociedade da época.
Primeiro Caderno 28

A felicidade consiste na preguiça, esse fidalgo tinha dividido sua fortuna de modo a que
ela chegasse para toda sua vida, e todo o seu cuidado era viver de modo que ninguém o
aborrecesse.

Há nessa obra um cônego que passa a vida ocupado com os bons petiscos que devia
comer no dia seguinte, e no mais tudo quanto fazia era dormir.

A tudo isto Horácio chamava porcus a gregos epicurii37.

Os brâmanes da Índia faziam consistir a felicidade na completa imobilidade e


contemplação da natureza.

Os faquires maometanos fazem igualmente consistir a felicidade na completa


imobilidade. Alguns há que se assentam e não se levantam por espaço de 30 anos.

O ideal da felicidade cristã deste mundo consiste em pensar no céu, e não tomar cuidado
nem um nas coisas deste mundo. Desprezar as riquezas a ponto de não se ocupar nem do
sustento, e da roupa por que Deus se ocupará de uma e de outra coisa. Assim como provê
o sustento dos pássaros do ar, e do lírio do vale. A afeição pela mulher e mesmo a da
família não são deveres, parece que é daí que resulta o ideal da vida monástica, que não é
senão uma exageração disto.

Rezar, comer e dormir! Tal é o meio de preencher completamente as vistas de Deus com
a criatura; ou esse é o melhor meio de ganhar a imortalidade! Como é que os homens de
juízo são se poderão jamais entregar a estas estultices é o que com dificuldade se poderá
compreender no futuro.

Rabelais diz que os frades tidos em geral desdém por que eles são como latrinas
destinadas a receber o excremento da humanidade, isto é a comer os pecados dos outros.

Para o Árabe a felicidade é ter muitas mulheres.

Wednesday 4 August 80. Passei um dia um pouco abatido. Má digestão que aliás corrigi
com dieta. O jejum de 34 dias hoje do Dr. Tanner muito me tem admirado e o fato é que
não há para mim recurso para restaurar a saúde igual ao de diminuir a comida. Em quase

37
. Passagem adulterada da Epístola I, 4, 16 de Horácio.Tradução: Um porco da grei de
Epicuro.
Primeiro Caderno 29

todas as coisas é assim; quando a força não está em proporção com o trabalho a ser
realizado de duas uma ou se há de aumentar a força ou diminuir o trabalho. Quando a
receita não é suficiente para a despesa o equilíbrio só pode resultar ou pelo aumento da
receita; ou pela diminuição da despesa. Em trabalho mecânico pois, em finanças assim
como em saúde o processo é o mesmo. A causa principal da minha tal ou qual depressão
hoje foi a viagem do Sales para Vichy. Eu estava com esperanças de assegurar por
intermédio dele o contrato para o Tocantins em termos que no meu modo de pensar eram
igualmente vantajosos à Companhia do Amazonas e à mim. Porém em última análise
toda a minha ansiedade em matéria de dinheiro é atualmente uma doença do espírito e
nada mais certamente que todas as minhas despesas podem ser encerradas em 15 libras
por semana; em caso de necessidade podem ser feitas com muito menos.

Thursday 5th August 1880. Chegaram-me hoje de Paris diversos livros que estou
devorando — História da Literatura Grega de Bourroul e Tardieu Atentados contra os
costumes; este último faz uma pintura tão viva e triste do deboche que é a meu ver uma
boa cura para todos aqueles que se sentirem tentados de seguir a vida desordenada dos
devassos.

Às 12 veio o João — às 2 fui ao banho; não tomei lunch 38, a não ser um copo de água
com açúcar. Esfreguei óleo pelo corpo pela terceira vez por me ter parecido que as duas
primeiras experiências deram bom resultado. Às 5 veio o Senhor Hunt que nada disse de
novo. Depois do banho senti-me leve e de melhor saúde. Estou voltando à estória de que
não há gozo igual ao da imaginação e razão. Não se entende geralmente o platonismo, e o
platonismo é uma verdade. Passei ainda hoje uma revista na minha fortuna e o que
encontrei me pareceu satisfatório.

Friday the 6th August 1880. O dia não foi mau hoje. De manhã saí e encomendei caixas
para livros a fim de estar pronto para a viagem. Voltei à casa e fui à leste de Regents Park
onde admirei ou gozei uma quieta contemplação os centos e milhares de plantas que ali
estão agora em plena florescência. De volta veio o senhor Hunt que me deu notícia de
que o último proposto sindicato deu em nada. Recebi uma carta do Banco do Brasil
dizendo que havia comprado as 200 apólices segundo uma ordem que eu dera em maio.
Primeiro Caderno 30

O câmbio está porém subindo, e se ele atingir a 25 eu vendo o que lá tenho para comprar
coisas aqui. Com isto minha renda líquida ficou elevada a 21 ou 22 contos por ano; ainda
assim eu me não julgo seguro! Estar tranquilo a respeito do futuro é uma questão que
depende mais do estado dos nervos do que qualquer outra coisa. Fiz o cálculo em uma
das páginas anterior que tendo eu a viver 22 anos devia pospor outros quaisquer cuidados
da vida em favor de viver; isto é o que eu não tenho cumprido e o que é muito difícil
cumprir por que há tanta coisa que se opõe a que dirijamos nossa atenção para um objeto
determinado que é necessário uma grande força de vontade para dominar as distrações.
Horácio em uma das suas odes pede aos deuses que lhe conservem o que ele tem; não
pede que aumente. Feliz Horácio.

London Saturday the 7th August 1880. Fui hoje a Harrow, o dia estava chuvoso e eu não
estava de muito bom humor. Com tudo não deixei de gozar; o aspecto daquela
comparativa solidão; a verdura do campo e das árvores e até a chuva, tudo isso me
transportou de alguma forma a outras cenas. O João me acompanhou, e com o seu
inqualificável desleixo quebrou-me uma das cadeiras eu o puni puxando-lhe o nariz
doente; ele chorou, e eu mais uma vez refleti que a cólera é uma coisa que a todo custo
deve ser evitada; ele merecia a punição; mas a forma de infringí-la foi grosseira. Desde
que eu o castiguei, ele no repente da cólera me disse: — “Ah, Senhor, eu não lhe
acompanharei mais”. Coitado — aqui vai o despotismo do dinheiro — eu o trato com
grande caridade e benevolência, apesar dos altos e baixos do meu caráter — trata-se eu
porém muito mal ele não me podia largar por que são os alguns shillings que ele ganha de
mim que sustentam a ele e a uma família de 5 pessoas das quais o único que atualmente
ganha alguma coisa é ele. Tomei nota da alimentação dessa família em outro livro; isso
devia ser uma lição para mim, e não é. Vivem 6 pessoas com uma libra por semana, o que
deduzida a renda da casa 7 shillings, deixa por dia menos de dois shillings, e vivem talvez
mais alegres e contentes do que eu, que podia gastar 10 libras por dia se quisesse. Não,
não é o dinheiro que faz a felicidade deste mundo se bem que seja algum dinheiro
indispensável para viver. Terêncio diz: peçamos aos deuses; mens sana in corpore

38
. Em inglês: almoço, que na Inglaterra costuma ser uma refeição ligeira.
Primeiro Caderno 31

sano.39 Uma pequena fortuna, digamos 600 libras por ano, com boa saúde e com um
espírito tranquilo e sereno é muito preferível a uma grande fortuna com má saúde, talvez
seja preferível mesmo a uma grande fortuna com boa saúde. Dai-me o necessário ó
deuses, dizia Horácio, e mais não quero. Horácio tinha razão. Parece que há uma
maldição na riqueza e é: quanto mais temos tanto mais nos parece que é necessário para
vivermos. Eu ouvi isto muitas vezes, e sempre que isto ouvia me dizia a mim mesmo que
eu seria uma exceção a esta regra e não fui, mas hei de ser ainda; porquanto o receio de
ser pobre, receio infundado, só se apodera de mim quando eu estou desprevenido e é
nessas ocasiões que a necessidade de adquirir novas riquezas surde de novo do poço em
que eu tentei sufocá-la.

Park Place — 8 de Agosto de 1880 — Sunday. Trabalhei hoje alguma coisa escrevendo
para o Rio e pondo em ordem alguns papéis. Diverti-me igualmente em fazer um
statement40 do atual estado da minha fortuna. Li um pedaço de Aristóteles41 dando uma
descrição do caráter dos velhos que é uma peça de mestre. É um fragmento que hei de
copiar para ler muitas vezes porque como nele o filósofo faz a crítica dos defeitos ou
antes das fraquezas que a velhice nos traz o fato de vê-los clara e distintamente pelo seu
lado ridículo, pondo o orgulho interessado em corrigí-los, dá a nossa razão o auxílio do
nosso orgulho o que lhe facilita a tarefa, como acontece todas as vezes que uma
deliberação é tomada em favor de uma paixão. Ele também, isto é Aristóteles, trata da
felicidade, e diz, se não me engano, que ela consiste na harmonia. Li também novamente
aquela ode de Horácio dirigida a Póstumo em que ele começa: — “Há Póstumo,
Póstumo, fugazes fogem os anos, e não há como evitar as rugas e injúrias da velhice”.42
Parece que há muitos anos a humanidade pensa na rapidez da vida do homem; nem por
isso porém parece que a filosofia tenha feito algum esforço para que o indivíduo
economize o seu tempo. A espécie humana, essa sem dúvida alguma que tem ganho

39
. Terêncio, (Publius Terencius Afer), 190AC-159AC, poeta cômico latino. Note-se, porém,
que aqui houve distração por parte do autor pois, conforme ele próprio assinalou em dia anterior,
esta frase é da autoria de Juvenal e não de Terêncio.
40
. Extrato.
41
. Aristóteles, 384 AC-322 AC, filósofo grego.
42
. Em referência a uma das odes de Horácio dentre as dirigidas a seus amigos, redigidas no
século I da era cristã.
Primeiro Caderno 32

muito em tempo, com a invenção do vapor e do telégrafo; mas o indivíduo me não parece
que tenha lucrado com isso. Qualquer que fosse o fim da natureza teve em vista com a
criação do homem uma coisa parece fora de dúvida e é que esse fim é mais atingido pela
espécie do que pelo indivíduo. As idéias que nós temos de unidade são naturalmente
limitadas pela pequenez de nossa inteligência; quem sabe se isto que nós ligamos a idéia
de gênero e de que formamos uma unidade teórica não é realmente para uma natureza
superior uma verdadeira unidade real e natural. Ainda que assim fosse isto nunca passará
para nós de uma hipótese por que nós não temos meio algum de verificar; é a questão do
ponto de apoio para a alavanca que moveria o universo se tal ponto de apoio pudesse ser
descoberto ou inventado. Para o cego não há cores; para o homem tudo aquilo que excede
aos elementos apreciáveis pela sua inteligência não existe; e o que excede aos elementos
apreciáveis pela sua inteligência; ele o sabe que há coisas que excedem a isso, porém qual
a proporção delas isso ele ignora inteiramente. E para o que saberia? O Que é que ele ou
que o criador alcançaria com isso? Depois da invenção do microscópio e do telescópio
nós ficamos fazendo uma melhor idéia da proporção que as grandezas reais mantêm com
as grandezas apreciáveis aos nossos sentidos. O infinitamente pequeno pode apenas ser
conhecido pela imaginação; certo a imaginação não pode acompanhar a escala que vai do
objeto que apenas é visível para um objeto de uma polegada até a nebulosa de que o sol e
o sistema solar formam apenas um pequeno ponto; se nas coisas visíveis aquilo que cabe
sobre o domínio dos sentidos excede tanto ao que pode ser abarcado pela imaginação é
mais que provável que no mundo moral as escalas sejam ainda muito mais vastas.

— Máxima de saúde: — Quando o vosso estômago não puder digerir, ou vossos


absortores não puderem assimilar a força que despendeis, mudai de gênero de vida e
tratai de diminuir a despesa da força até que a ponhai em equilíbrio com a produção.”

(Dúvida: — Essa diminuição de trabalho não resultará no desaparecimento do sistema


pela regra de que o órgão que não é exercitado se atrofia e tende a passar para o estado
rudimental.

[glosa na margem superior: 126 peso do Dr. Tanner no último dia. 130 na mesma tarde
do dia que terminou o jejum.]
Primeiro Caderno 33

Monday 9th of August 1880. O jejum de 40 dias do Dr. Tanner dos Estados Unidos
terminou-se ontem; a sua perda total de peso durante esse tempo foi de 36 libras;
tomando isso como base para calcular a dieta temos que um homem como ele (162 libras
de peso) necessita de absorver cada dia 14 1/2 onças de sólidos, sais etc. Minha dieta tem
regulado estes dias a razão de 25 onças por dia. Hoje levei a Lily ao jardim zoológico, e
depois passei deitado no parque mais de duas horas e fui feliz durante esse tempo; escrevi
à mãe do João para prevenir que ele deixasse de vir às horas marcadas. E a mãe fez-me
uma visita a tarde, e daí resultou que eu ficasse com pena de ambos. No parque hoje
estavam milhares de meninos, e era uma cena curiosa vê-los brincar; é incalculavelmente
boa a influência destes parques na saúde e energia da população de Londres.

Tuesday 10th August 1880. Ontem e hoje esplêndidos, quentes e brilhantes dias como se
estivéssemos em clima intertropical, termômetro 73 graus. Passei hoje o dia deitado no
parque. Uma troça de meninas pobres veio ajuntar-se ao pé de mim e do João; tomei leite
e lá me demorei das 12 às 6. À vista quieta das árvores, o sol fulgurando sobre elas, era
para mim um espetáculo quase novo, aqui em Londres. Em todo caso este é um dia em
que vivi; amanhã tenciono continuar levando as odes de Horácio para ler.

Wednesday and Thursday 11 /12th August 1880. É hoje o quarto dia de calor e sol; o
termômetro tem regulado a 73 fahrenheit. Ontem voltei novamente ao Park e lá encontrei
o grupo de urchins43 que me divertiu, não tanto como no dia antecedente pois eram
muitos; tomei leite como lunch, e dei-me bem. Reputo o dia um dia agradável. Voltei do
parque às 4 1/2 e junto a Baker Street Station44 encontrei a L. too flash,45 o que me
desagradou. Recebi uma carta de um membro do Parlamento pedindo informação
respeito a leis brasileiras. O Senhor Hunt seguiu para Brighton. Wednesday — hoje —
Não saí de casa; comecei a reescrever as cenas e lugares que me ficaram na imaginação
com memória de alegria sem mistura de amargo. Esfreguei novamente o corpo com óleo,

43
. Garotos ou moleques travessos. Também significa meninos de rua.
44
. Baker Street Station, estação do trem urbano.
45
. Provavelmente too flashy isto é, referindo-se que L. (Lily) estaria vestida de forma muito
vistosa ou espalhafatosa.
Primeiro Caderno 34

por me parece que isso me tem feito beneficio. Tomei o lunch de leite, li o Brillat Savarin
46, dormi ...

Esta e a página seguinte são um parêntesis. (Como saltei estas duas páginas vou aqui
tomar notas de coisas relativas a digestão ) :

12 de Agosto — Quarta-Feira: Comecei com o lunch de leite segunda-feira do corrente.


A proporção dos sonhos tem diminuído muito nestes últimos tempos, assim como a
sequidão nos dois lóbulos do lábio inferior que, me parece, indicavam febrícula. Quanto
aos fenômenos nervosos parece-me igualmente que estão grandemente diminuídos. Não
me parece já sentir a diferença que sentia entre o lado esquerdo e direito; hoje quando me
afumentava com óleo notou o João que o músculo do lado esquerdo do peito estava igual
ao músculo do lado direito, ou quase igual. Já não sinto os intestinos como sentia, a
minha urina não faz os depósitos que fazia e grande parte dos cabelos brancos pouco
numerosos que me apontavam na barba caíram espontaneamente. Hoje às 9 e 27’ ligeiro
ardor no topo da orelha direita.

A dor que senti no escroto esquerdo quando estive em Park Road cessou inteiramente.
Apareceu de novo a dor na espádua esquerda (volta da pá) se bem que muito mais leve.

Domingo 15 de Agosto. Às 8 da manhã e 3 tomei 4 grãos de poaia por estar com a língua
amarela e por ter estado ontem com o estômago mui cheio de gases, e ameaçado de
cólica. Primeira ânsia às 8 e 34’, vômito ácido às 8.43. — Até 10-5 tomei meia dose de
Epson Salt — primeira ânsia, almoço à 1 hora da tarde; às 11 almocei bem — as
evacuações alvinas fedito de cicuta mui pronunciado —; às 2 segunda evacuação — o
mesmo inema reté ahe 47. O último ataque de gases que tive foi no dia 30 de julho isto há
16 dias; ambos vieram com comida depois do banho, e passeio depois da comida.)

Quase uma hora das quatro as 5, jantei com bom apetite, li o Echo, e vim para Park Place
onde estou escrevendo estas notas e assim passei um dia calmo sonhador e feliz. Nestes
últimos dias fiz umas alterações no meu regimen alimentício com as quais me parece que
me estou dando bem, e são: 1º passei para as 9 1/2 a hora do meu almoço; 2º excluir a

46
. Anthelme Brillat-Savarin, 1755-1826, magistrado, gastrônomo e escritor francês.
47
. Tradução: Fede muito depois.
Primeiro Caderno 35

carne do almoço e substituir por ovos e peixe. Não tomei nota exata da data em que
comecei com a alteração; mas há mais de um mês se bem que não tem sido sistemática
senão ultimamente; a outra alteração é o lunch de leite; hoje fiz uma outra e foi adiar o
jantar para 7 1/4. Um efeito curioso do novo regime é que o instinto genésico se tem
notavelmente acalmado, e bem assim tem desaparecido os ardores nas orelhas. Uma coisa
singular é que me parece que digiro melhor desde que deixei de prestar atenção a
comidas de fácil digestão.

Friday 13th August 1880. Outro dia quieto e feliz. De manhã me vieram os caixões para
livros, e como não estivessem satisfatórios, os mandei voltar, indo depois à oficina;
vieram de tarde prontos. Arrumei os livros, continuei a leitura de Brillat Savarin, que
muito me continua a interessar; o calor era grande o sol brilhante, pus-me à fresca, e
deitando-me no sofá depois de tomar a pinta de leite passei 3 horas beatíficas. Às 4 1/2
veio o Senhor Alves negociante do Rio perguntar se o Rio Verde48 estava feito, ao que
respondi que sim. Arrumei os livros e o quarto que tomou um melhor aspecto. Recebi
uma carta de um membro do parlamento convidando-me para visitar a casa dos
comuns49, que não aceitei. Li de manhã o Daily Telegraph e de tarde o Echo; as notícias
são boas porque o tempo tem estado soberbo, a colheita de trigo promete ser excelente.

Saturday 14 de Agosto de 1880. De manhã cedo dei ao João licença para ir pescar em
Welch Harp. Li o D. T. [Daily Telegraph]. Fui ao banho de fricção. Na volta tomei uma
pinta de leite. Fui pela segunda vez à galeria do Doré 35 New Bond Street; de caminho
comprei o perfeito angler,50 um caniço, e recursos de pesca ao pé de Londres. Jantei às 7.
Antes de jantar aqui veio o senhor Primrose. De manhã escrevi a Russel. Depois do jantar
senti ameaças de cólica; às 8 1/2 tomei um grão de poaia que me fez expelir os gases;
dormi e sonhei sonhos indiferentes.

Domingo 15 de Agosto. 8 1/2 da manhã, estou sofrendo de gases no estômago e a dor é


exatamente no orifício pilórico igual a que sentia quando estudante em São Paulo. Tomei

48
. Trata-se da Minas and Rio Railway Company, vulgarmente conhecida por Estrada e Ferro
do Rio Verde, localizada no Sul de Minas Gerais. Para maiores informações recorrer a
Introdução.
49
. Aqui ele se refere à House of Commons, a Câmara Baixa do Parlamento inglês.
Primeiro Caderno 36

um pouco de poaia que me fez lançar e depois um meio purgante de sulfato de magnésio,
almocei bem; a dor passou inteiramente. Não tomei lunch; jantei às 7. Não me parece que
purgante e vomitório me tenham abatido, pois sinto-me forte às 20’ para 1. Com a
moléstia o dia não pôde ser feliz com tudo foi um dia calmo. Devo resolver se viajo ou
não durante este mês e o outro.

Monday 16th August 1880. Passei hoje um dia sem consciência e por isso indiferente:
nada de ardores nas orelhas; a digestão sem ter sido das melhores não foi contudo má!
Veio o Senhor Dias do East Bourn e tomou emprestadas £5. Más notícias da República
Argentina, que fizeram os títulos descer. Planejei ir amanhã a West Drayton pescar de
anzol.

Tuesday 17 August 1880. Fui a West Drayton — a Thorney Broad Fishery arrendada por
M. Godofrey51 — segui pelo Great Western RR., trem das 10:19. Saltei pela primeira
vez em Pread Street e pela primeira vez entrei a estação do dito G.W. [Great Western].
Mr. Godofrey é um velhinho enérgico e ativo. O rio é belíssimo; alguma coisa como o
Tamanduateí de São Paulo. E o contemplar aquela água corrente e aquele lindo campo
era uma beatitude.

Wednesday 18th August 1880. Passei um dia indiferente, e desses que se não contam;
contudo como nada me aconteceu de mal eu podia ter sido plenamente feliz. De manhã li
o jornal o que me tomou até às 10; das 10 às 12 estive com João a estudar lugares de
pescarias. Das 12 à uma 1/2 estive com o senhor Hunt que veio de Brighton, mas que
nada deu de novo; em seguida veio o Reed, que tomou-me uma hora sem resultado.
Pouco depois chegou o caixeiro que trouxe os aforismos de Hipócrates cortei-os, aprontei
o jantar e jantei, e assim passaram-se as 12 horas do dia. Vim para casa da Lily às 8 1/2
encontrei-a assustada de estar envenenada por um gato, tranquilizei-a, escrevi estas notas.
Uma medição que concorre para tornar o homem feliz e tranquilo que versar sobre os
males que ele tem passado. A análise das ansiedades passadas faz realçar os bens e calma
que gozamos. Uma das máximas de Horácio é esta: quando te julgares feliz não te deixe

50
. Vara de pescar.
51
. Trata-se de uma reserva de pesca.
Primeiro Caderno 37

ensoberbecer. Li hoje umas máximas de Celso 52 respeito as pessoas de saúde delicada


que são sólidas e iguais ao que de melhor tenho lido.

Thursday 19 August 1880. A L. passou mal a noite passada com um susto que tomou
pensando que tinha apanhado mange53 (grande) de um gato, e por mais absurda que
fosse a idéia exauri minha eloquência sem poder tranquilizá-la. Li o artigo de dispepsia54
de Trousseau,55 uma das melhores coisas, ou a melhor coisa que jamais li a respeito; é
isso o que se chama de médico. Amanhã começarei a extratar o tratamento tendo já
empregado um pouco do ácido hidroclórico com vantagem, e sinto-me agora alegre e
animado. Vou continuar a noite.

Friday 20th August 1880. Foi hoje um dia energicamente despendido. Ontem à noite
tomei um banho frio e fiz a mesma coisa esta manhã. Almocei, li um pouco, e segui
depois para Hyde Park com o João onde remei por uma hora, seguindo as regras do
tratado de remar que me aproveitaram; tomei lunch às 2 1/2 de conserva de pêssego que
comprei em Baker Street; dormi um pouco entre 3 e 4 — mandei aprontar uma receita de
soda magnésia ecran aconselhada por Trousseau56; tomei uma dose que me pareceu fazer
bem. Com ela tenciono continuar assim como com o tratamento do ácido. Hoje cha

52
. Celso, médico romano do século I da era cristã.
53
. Sarna.
54
. Dispepsia conceituada pela medicina atual como indigestão. “Indigestão é um termo
frequentemente usado pelos pacientes para descrever uma variedade de sintomas compreendidos
como distúrbios relacionados com a ingestão de alimentos. Não sendo específico, o termo pode
ter diferentes significados para os doentes e médico”. Harrison, Medicina Interna, vol.1, Rio de
Janeiro, 10ª edição, Guanabara Koogan, 1984, p. 209.
55
. Em referência a um dos livros de Armand Trousseau, médico famoso e professor de
clínica médica do Hotel-Dieu de Paris. Dentre os muitos livros de sua autoria, publicados e
reeditados ao longo da segunda metade do XIX, Couto parece se referir ao seu manual de clínica
geral: Clinique Medicale de l’Hotel-Dieu de Paris. 2ª edição, Paris, Baillière, 1865, que foi
profusamente utilizado pelos estudantes de medicina, tendo sido objeto de sucessivas reedições,
atingindo a oitava edição em 1894.
56
.Quando se refere à fórmulas e compostos medicamentosos Couto pode estar se utilizando
de outra obra de Trousseau, Traité de l’art de formuler comprenant de notions de pharmacie, la
classification par familles naturelles de medicamants simples, les plus moités, leur dose, leur
mode dadministration etc, suivi dun formulaire magistral, par Trousseau et O. Reveil. Paris, E.
Thunot et Co, s. d.
Primeiro Caderno 38

Recoana yumuncana o me: arama; inti cha menãn. Ce rak. inti (código) 57. Agora à noite
vou ler o Hipócrates. Tenho feito todo o possível para melhorar minha saúde julgando
que isso é um dever; até o presente os resultados conseguidos não estão em proporção
com os esforços empregados. Tenciono persistir e persisto porque tenho esperanças de
conseguí-lo. Agora todas as circunstâncias são favoráveis: boa e independente fortuna,
tranquilidade de espírito, bom clima — O plano do dia de amanhã é o seguinte: — banho
de manhã, estudo das 10 às 12 — exercício de remo e andar até as duas. Lunch — estudo
e dormir até às 7 — jantar às 7. Escrever estas memórias às 8 — Ler a noite o Hipócrates
ou o Trousseau.

Saturday 21. Li o Trousseau até às 2. Tomei por lunch uma xícara de água quente com
açúcar; remei em Hyde Park, o qual estava digo o lago cheio de remadores e pequenos
navios de vela; o João em um bote eu em uma canoa. Dia de sol claro do meio dia em
diante. Tomei as duas doses dos alcalinos. Notei de manhã que as fezes além de serem
mais abundantes nadavam melhor; urinas perfeitamente transparentes; língua má antes do
jantar, o fastio; contudo jantei sofrível, e não senti peso no estômago depois do jantar.
Continuaram oyamunisaua omh? (código), inti sea munhã! Até o presente inti
osantansaua (código) arama 58. Continua ainda um pouco de diferença entre o lado
direito e esquerdo, sendo o esquerdo o pior; resumo dos sinais para julgá-lo pior são:
sensibilidade mórbida da orelha; ponto preto no olho; supurenta pequena na gengiva; dor
as vezes debaixo da espádua esquerda; atrofia leve ou comparativa do músculo da mama;

57
. As passagens grafadas em tupi-nhengatú apresentaram uma série de dificuldades para sua
tradução decorrentes principalmente dos seguintes fatores: abreviação das palavras, grafia
incorreta das mesmas, utilização de códigos pessoais no meio das frases e, sobretudo, a utilização
metafórica de termos comuns da língua geral, aqui atribuídos um significado sexual. Assim, por
exemplo, a palavra sakanga ou rakanga significa literalmente galho, porém foi utilizada
claramente no sentido de pênis. Note-se que estes significados foram atribuídos especificamente
por Couto de Magalhães na construção de um vocabulário íntimo, sendo portanto passíveis de
uma interpretação compreensiva e não apenas de uma tradução literal. Frente às dificuldades da
tarefa a estratégia dos tradutores – Prof. Auxiliomar Ugarte, com assessoria de seu pai, Hermes
Ugarte, que tem o nhengatú como língua nativa –, foi a de reconstruir as palavras, refazendo as
frases em grafia correta, completa e atualizada, para em seguida apresentar sua tradução,
procedimento mantido no decorrer do texto. Hoje ixé arikuã yumuçuã umee arama; ti ixé amenu.
Ce ra[kanga] ti[maá]. Tradução: Hoje deram-me um abraço; não fiz sexo. Meu galho, nada.
Primeiro Caderno 39

nevralgias do lado da cabeça, parece que menor força no braço; diferença de secreção
sudorífica desse lado especialmente debaixo do braço; inflamação do prepúcio desse
lado; disposição para inflamação dos gânglios inguinais; atrofia do lobo da coroa do
pênis (quase insensível); sensação de frio no grande músculo que cobre a bacia digo a
phissa ylíaca esquerda; varicocelli dos canais diferentes no escroto desse lado;
temperatura diversa dessa perna, hemorróidas e pequenas varizes do ânus desse lado;
predisposição para furúnculos e tumores também desse lado. Pelo lado porém dos
intestinos e vísceras o pior lado é o direito, as cólicas que tenho tido são todas do lado do
hypocondrio59 direito, assim como é desse lado que sinto os borborigmas60 e desordens
quando tem lugar as quais parecem que tem sua sede no duodeno e no cólon ascendente.
Nos sinais do lado esquerdo cumpre mencionar igualmente as hemorragias da gengiva
que são sempre desse lado. Tudo isso espero corrigir e curar, e hei de conseguí-lo com
paciência e perseverança. Sei que é uma coisa difícil por que a medicina está atrasada, e o
melhor recurso que eu tenho é a minha própria observação e o proceder por tentativa; é o
caso de dizer-se com Hipócrates: Vita brevis; ars longa, occasio proceps, experiencia
fallax, judicium dificile.61 O que é difícil não é impossível; e se for ficará a satisfação de
have-lo tentado.

Domingo de manhã — 22 de Agosto de 1881. A noite passada ou antes esta madrugada


ixa xa maité (okeri ána ramé) que ixe xa men’ oikô oipé cunhã pixuna 62. A última que
foi a 27 de Julho e portanto há 27 dias ou três semanas e 4 dias; comecei o uso da potassa

58
. Continuaram uyamiçawa [...] (código), ti se’ amunhã! Até o presente ti usantaçawa
(código) arama. Tradução: Continuaram apertados (código)? Eu não fiz! Até o presente [ele]
(código) não endureceu.
59
. Cada uma das partes laterais do abdome, sob as falsas costelas.
60
. Ruído surdo ou rouco dos intestinos, produzido pelos gases.
61
. No que diz respeito ao primeiro aforismo de Hipócrates: “A vida é curta, a arte é longa, a
ocasião fugidia, o empirismo perigoso, o raciocínio difícil”. Hipócrates, Aforismos. Tradução e
Nota Introdutória de Leduar de Assis Rocha. Prefácio de Gilberto Osório de Andrade. Recife,
Arquivo Público Estadual, 1957, p. 39.
62
. Grafia modernizada, completa e correta: A noite passada ou antes esta madrugada ixé
amaité (ukiriã ramé) que ixé amen[u] uyku iepé kunhã pixuna. Tradução: ....... eu sonhei que
estava fazendo sexo com uma mulher preta.
Primeiro Caderno 40

chalk63 e magnésia na noite de sexta-feira 20 do corrente. As fezes de hoje foram


escassas mais duras e mescladas de grumos amarelos escuros com massa mais
branquicenta; Hipócrates64 as descreve como más.

A Noite: Ajustei e paguei as contas da casa pois ontem a tarde chegou a landlady65 de
volta de Moorgate. Passei parte do dia extratando o tratamento da dispepsia pelo
Trousseau que se vê do outro lado deste livro. Iche cha reko reté oyumuin çana omi ar! se
(código) reté ana. Xa caká rame sainha (código) sui cetá coó aiqueãna 66 Alimento hoje
24 onças ou 25. Quanto ao tratamento me estou sujeitando aqui vai as observações:
parece que a injeção digo ingestão dos alcalinos tem promovido ou agravado a produção
da saburra por que tenho observado que a língua se tem conservado mais amarela,
sobretudo entre o almoço e o jantar. A bolsa da boca também parece que está deixando de
encher-se com a frequência com que o fazia; parece que há uma grande tranquilidade nos
intestinos. Sinto no entretanto a cabeça um pouco pesada, mas o espírito enérgico, e nada.
Alguns gases ainda no estômago mas parece que não pesam como os outros. Pulso às 9
1/4 de 83 a 85 pulsações por minuto. De manhã urinas turvas saturadas de sais terrosos;
nenhuma sede depois do jantar: durante o dia urinas abundantes. A minha cachexia67 é
pois uma hipocondria — mas como a última é apenas o ementório onde se joga tudo
quanto é ignorância, o dizer que ela existe nada adianta. Hoje o lunch foi de água com
açúcar. O plano do dia de amanhã é o seguinte: escrever pelo correio ao Costa — ao
Banco do Brasil — mandar o dinheiro ao Francelino — ir a uma ao parque e remar.

63
. Pó de potássio.
64
. O autor provavelmente se refere ao tratado de Hipócrates, Du Regime. Texte établi et
traduit par Robert Joly. Paris, Belle Lettre, 1967. Couto também pode estar se reportando ao
Aforismos de Hipócrates onde estão descritas e diagnosticadas de maneira suscinta muitas das
situações apresentadas no diário como, por exemplo, o aforismo de número LXX, que reza:
“Quando as dejeções alvinas se apresentam cruas, provêm da bile negra; se esta bile é abundante,
a doença é muito pronunciada; se é pouco abundante, a doença é mais fraca”. Aforismos.
Tradução e nota introdutória Leduar de Assis Rocha. Prefácio de Gilberto Osório de Andrade.
Recife, 5ª edição, IBGE, 1955, p. 124.
65
. Senhoria, ou proprietária do imóvel que o autor aluga.
66
. Ixé ariku reté yumiçawa um[enu] ar[am]! Seé (código) retana. Ixé assaka ramé sainha
(código) suí upitá suu aykueã. Tradução: Eu estava bem escondido fazendo sexo! [É ] muito
gostoso (código). Enquanto eu tirava de seu caroço (vulva) (código), ela ficava como um animal.
67
. Em latim no texto. Caquexia: estado de desnutrição ou enfraquecimento geral.
Primeiro Caderno 41

Às 3 e 10 minutos da madrugada (22 para 23) acordei e perdi o sono, e começando a me


lembrar do passado fiquei muito incomodado com a lembrança daquela dívida do Gomes
ao Capitão Constâncio pela qual até certo ponto eu sou responsável. Apareceu pigarro no
lado direito da traquéia-artéria porém fácil de destacar-se, pelo que não incomoda e é
efêmero. Sinto-me forte e com energia dos meus melhores anos. Será o remédio? Será a
continência? Será duradouro? O estômago porém continua com gases, assim como o
intestino, mas parece que tudo está modificado, e que esses gases são agora saudáveis. Há
contudo um pouco de peso ainda no colum assendens, mas, mesmo esse parece saudável.
São 4 horas da madrugada.

Monday 23 de Agosto 1880. Aqui cheguei em Park Place e encontrei tudo em grande
row68 por que o relógio da Lily tinha sido roubado, e ela estava muito excitada, e com
ela as duas velhas francesas, e um polícia na porta; a final decidiu-se por conselho das
velhas e do polícia que a Lily fosse fazer a sua deposição na polícia. E lá foram. Eu não
deixo de estar incomodado por que é em todo caso um escândalo, sobre tudo se quiserem
ter a casa procurada. Não liguemos porém importância a isto por que, em última análise,
não vale à pena; é um negócio de cabeças ocas que dará em nada, bem que não deixa de
ser extremammente annoing.69 Vamos à descrição do dia. Como passei parte da noite
acordado levantei-me mais tarde; antes do almoço obtive a post order70 e mandei-a ao
Francellino. Almocei, e depois do almoço segui para comprar uma balança para me pesar
a mim mesmo: fui à Kings Cross, dali à Market Lane, dali à pé até Leicester Square, onde
comprei a balança em casa de Yung & Sons por £ 2.15 — voltei a pé para casa, fui ao
carpinteiro encomendar o pé para a balança que custará 14 ou 15 shillings — voltei para
casa, cozinhei o jantar, e assim passou-se um dia indiferente. Agora quanto a clínica do
dia: continuo com o medicamento; senti-me robusto todo dia; não tive calores na orelha,
e poucos gases no estômago; completamente quietos oyumunçana om. ar. 71e isto prova
que é fácil vencer quando se resolve resistir dois dias. Dejeções alvinas não tão brancas
como antes, mas menos coloridas do que antes do medicamento. No incidente da L. a

68
. Barulho, confusão, desordem.
69
. Corretamente annoying: aborrecido, irritante.
70
. Vale postal.
Primeiro Caderno 42

criada me disse que ela lhe havia dito que eu não era seu mar[ido] o que é verdade —
mas se ela o disse, que fins tem com isso! Tomei ao jantar um pouco de cerveja — não
sei se fará bem; tomei-a na fé do Trousseau. Com o termômetro hoje a 71 graus, senti
mais calor do que em outros dias com ele a 73. Agora anoitece às 7 1/2 mas às 5 é dia.

24th August 1880. Uma carta do Costa datada de 29 de julho comunicando que estava
paga a subvenção do Tocantins, e isto eleva meus saldos arrecadados a 573:694$000; se
isto ajuntar-se o pagamento das letras do Mello mínimo 37 contos segue-se que a minha
caixa hoje é de 608:000$ contos o que a 5% dá 30 contos. No modo porém por que está
colocada a minha renda líquida hoje é de 24:260$ ou 2 contos por mês, muito mais do
que o necessito para ser feliz. O que devo pois fazer é colocar esse saldo em apólices, e
deixar-me ficar tranquilo, e não pensar mais em fortuna, o que é pura ilusão. Escrevo
estas notas às 10 da noite no nº 320 de Marylebone Road para onde a Lily se mudou em
consequência do acidente de ontem.

Wednesday 25 de Agosto. Dia mui sombrio e desagradável — temperatura 68 1/2 fahr.


não chuva. Passei calmo e tranquilo: de manhã comprar salsicha para Lily. Não saí de
casa; li jornais — Afeganistão; recrudescência de sentimentos hostis entre Alemanha e
França. Escrevi uma descrição do meu estado patológico minucioso; dormi 1/2 hora
durante o dia; jantei bem porém tenho gases no estômago não doloridos; alguma sede
pouca. Às 7 da noite.

Thursday 26 A. Chegando em casa escrevi as observações clínicas da noite, lavei-me


tomei remédio, almocei, li os jornais o que tudo me tomou até meio dia; senti-me forte;
segui para Hyde Park onde remei 2 horas — segui depois para Albert Monument, cheguei
em casa às 5 — jantei e foi em resumo um dia feliz e dispendido energicamente. Amanhã
tenciono . . .

Friday 27th August 1880. Amanheci alegre e de boa saúde, digeri bem (código) pupé72
mas à tarde depois do jantar estava cismático, naquele estado de excitação particular a
que se chama nervos. Qual foi a razão dessa singular modificação? Nem uma outra me
parece senão uma coleção de preconceitos auxiliados pela solidão. Notei hoje que haviam

71
. ...uyumiçawa um[enu] ar[ama]. Tradução: [e] escondidos para fazer sexo.
Primeiro Caderno 43

hemorróidas e que as evacuações alvinas eram avermelhadas; observarei de agora em


diante se a excitação nervosa é sempre precedida desse fenômeno. Agora o diário.
Chegando em casa lavei-me, li o jornal, almocei, e com isto despendi cerca de 2 horas;
escrevi ao Dias e ao Herman da Silva em Port Said. Veio o Senhor Dias conversou até
depois das 11. Às 12 1/4 veio o João retirou-se às 2. Escrevi o diário de clínica; li um
longo artigo sobre moléstias de pele, dormi 3/4 de hora; acordei com apetite jantei bem;
depois do jantar tomei ainda algumas notas — aí apareceu a implicância com a balança.
Li as precauções a tomar-se no caso de um resfriamento que ameace bronquite; fui à
Baker Street onde encomendei o remédio nux vômica para mim e para a Lily que
encontrei incomodada com uma exacerbação da moléstia da garganta; receitei um pouco
de brandi, água quente, açúcar e casca de limão; escrevi estas notas, o que tudo ocupou
até s 9 1/2 da noite, e assim foi passado este dia que pela saúde e independência em que
me acho, idade, bom clima, cômodos devia ser feliz e não foi sem ter sido contudo
infeliz. Quanto mais experiência tenho da vida tanto mais claro e manifesto se me torna
que a felicidade depende mui pouco das circunstâncias externas; é um fenômeno íntimo e
subjetivo, que mui pouco depende daquilo que nos rodeia e depende principalmente de
nós mesmos. Depois desta série incessante e monótona de cuidados, ansiedades e
temores, a morte é um descanso.

Saturday 28. Dia mui quente. Acordei bem disposto e enérgico; encontrei em casa o
Anglo-Brazilian Times que li até a hora do almoço; depois do almoço fui ao carpinteiro
para obter o pé da balança; voltei à casa e como não estivesse bom segui para comprar 2
ganchos, voltei e isto me tomou até meia hora depois do meio dia. Não estando ainda a
balança boa segui para Leicester Square em um cab73 de 4 rodas ajustado por 3 shillings.
Troquei a balança comprei uma pequena, comprei em Griffin’s um aereómetro
Beaumé74, voltei contudo chegando a casa às 2. Tomei por lunch água com açúcar.
Pesei-me nu e vestido, 140 e 150 libras respectivamente. às 3 mandei o João embora; das
4 1/4 às 4 1/2 dormi. às 7 recebi uma carta do Presidente do Banco do Brasil
comunicando que havia recebido a subvenção do Tocantins, o que eleva o que tenho

72
. Dentro.
73
. Carruagem de aluguel, táxi.
Primeiro Caderno 44

atualmente em caixa ou títulos equivalentes a caixa à 560 contos mais ou menos; sou pois
enfim, com as poucas necessidades que tenho, um homem rico! Custou uma grande luta,
risco de vida, viagens enormes e arriscadíssimas, ansiedades indescritíveis, noites sem
sono, desarranjo das funções do meu estômago. Resta porém a metade da vida a viver e
eu sou agora independente para o pão nosso de cada dia. Agora o ponto é dispor
convenientemente do tempo, e viver de modo a ser agradável a mim e útil aos meus
semelhantes. Meu grande esforço e minha principal atenção é agora dirigida para a saúde;
se consigo restaurá-la ao menos até ao ponto em que eu a tinha quando estava em Mato
Grosso ficarei plenamente satisfeito, e começarei então a trabalhar em outras coisas.
Particularizando os pontos de saúde que eu desejo corrigir, são 1º a digestão: presume-se
que um sangue forte e bem elaborado traz como consequência a robustez do sistema
nervoso, e portanto a solidez da inteligência que é de todas as coisas a principal. Segundo
lugar precaver-me contra os bronquites que, sendo um elemento de fraqueza, além do
desconforto que traz, produz necessariamente prostração.

Sunday the 29. Um fenômeno curioso — notei de manhã que as evacuações alvinas não
flutuavam: de tarde — às 4 tive uma irritação de hipocondria que aturou até às 6, e da
qual não estou ainda completamente livre às 6 1/2. Jantei menos, e o efeito da facilidade
da digestão foi excelente; é de notar-se que hoje não houve ardor em nenhuma das
orelhas. O pretexto do ataque de hipocondria foi a leitura do artigo sobre epilepsia do
Trousseau. Durante a manhã eu estive alegre e o dia foi dispendido assim: — Levantei-
me tarde, às 8 1/2. Almocei às 10 — passei a lançar o meu inventário segundo a
comunicação que tive do Banco do Brasil; ao meio dia veio o João e estudei um pouco de
flauta e cortei as brochuras de um e meio volumes do Trousseau e o João as outras.
Mandei-o embora e deitei-me para ler medicina e foi esse o pretexto do ataque que no
entretanto suportei com alguma filosofia. Em última analise o estado de saúde não é mau,
e eu não o posso melhorar, o que por enquanto não é certo, pelo menos o posso conservar
com dieta e abstinência de comida. Formulei contudo as seguintes regras de higiene e
tratamento; enquanto eu não sentir perturbação pelo lado do estômago tratarei de
empregar o tempo o melhor possível usando de tudo modestamente; quando vier um

74
. Instrumento usado para medir a densidade do ar ou de um gás.
Primeiro Caderno 45

ataque de boca amargosa, ou ameaço de cólica, ou perturbação nervosa então aplicar


remédio. No entretanto estou um pouco em dúvida se devo ou não continuar com o tônico
que principiei hoje. A resolução atual é que continuarei até ver com mais alguns dias se
aparece algum efeito apreciável. Dos medicamentos do estômago há que ainda não
experimentei; é a pepsina. Tanto porém quanto eu posso julgar pela minha atual
experiência ela não passa de um paliativo.

Monday 30 August. Passei ontem uma péssima noite; excessivamente nervoso, a


qualquer toque ou antes um toque fez-me sofrer um grande choque. Estava cheio de
terrores vagos e entre outros de que eu podia ser acometido de epilepsia e cometer algum
crime! De manhã estava ainda apreensivo e cismático; às 12 a densidade da urina subiu a
zero; no entretanto eu fiz um estudo detalhado da moléstia e cheguei a conclusão que
nem tinha nem era provável tê-la. Tudo desapareceu como por encanto; o receio foi-se; a
sensação esquisita do braço desapareceu, voltou a saúde a tranquilidade; fui ao Regents
Park remei; dormi tranquilo. Dois fenômenos são dignos de nota: a variação da densidade
da urina que cuja densidade variou na razão descendente de 16 para 0 — (vide diário
clínico) e o desaparecimento da sensação do braço. Notei tambm que a língua que se tem
conservado amarela por mais de 15 dias ficou melhor, um outro fenômeno mui curioso o
ataque nervoso foi precedido imediatamente de curiosas alterações nas evacuações
alvinas 1ª cor avermelhadas; 2ª evacuações não flutuantes e mais brancas do que o
ordinário, saúde — evacuação flutuantes e mais escuras. Há entre fenômenos alguma
relação de causa e efeito? Parece que sim.

31 August Tuesday. Fui ver o orangotango no Aquário; mui curioso. Levei a Lily.
Voltamos cena do (código). Densidade da urina hoje 27! Continuo com o tônico de nux
vomica e catumba — Dia perfeitamente saudável, nem um fenômeno mórbido.

September Wednesday the first. Fui hoje de cab a Willesdon, Welch Harp, Hampstead e
outros lugares do N[orth] W[est] de Londres; fui com a Lily que está doente, não me
diverti e nem creio haver adquirido nem uma informação. Às duas horas estava em casa
sem grande prazer, porém em paz. Escrevi o diário clínico, fazendo diversas experiências.
Ensaiei depois ler um autor latino em latim dormi uma hora, jantei às 5, li o Echo depois
Primeiro Caderno 46

do jantar; está pendente a batalha entre general Robert e Jowab Kan ao pé de Candaar.75
Os fundos ingleses estão baixos à 7 3/12. Li um pouco respeito a viagem à
Constantinopla. Está me parecendo que a melhor coisa que eu tenho a fazer é seguir para
o Brasil no inverno. Da noite passada para esta sonhei com marinheiros viagens etc, e
com meu ex-escravo Luís.

Thursday 2nd September 1880. Passei um dia calmo e feliz daqueles que se devem
marcar com uma pedra branca. A temperatura hoje esteve elevada à 78 graus, o que é
grande calor em Londres. De ontem para hoje sonhei com o príncipe Bismark e o rei
Guilherme. De manhã li o Times e Daily Telegraph, depois fiz experiências em clínica;
as 12 f.! x. cerak. (código) 76. Li os autores gregos, li viagem ao Egito. Li o Anglo-
Brazilian Times. Jantei com apetite, li o Echo e vim para 320 Marylebone onde a Lily
está doente sofrendo do pé com uma erupção eczematosa.

Friday 3d September 1880. Um outro dia perfeito e feliz. De manhã li o Times e o Daily
Telegraph. Recebi uma carta do meu banqueiro Glyn Mills Currie & Cia. comunicando
que dos meus Bonds Argentinos 20 haviam sido sorteados para pagamento; ao que
respondi dando ordem para comprar outros 20, o que deixa-me um lucro de 240 £. Recebi
uma visita de Robert Messer, consulting Engineer — 47 Finisbury Circus — dizendo que
Wilson queria ficar com o Rio Verde; ao que respondi que o negócio estava nas mãos do
Waring.

Saturday 4 Setembro. Passei um dia cheio de cismas, lendo medicina e uma noite cheia
de ansiedades; atribuo isso ao excessivo calor; entre os sintomas imaginários um havia
real, e era o desejo e a necessidade de repuxar o braço esquerdo, afora isso tudo mais era
imaginação.

Sunday 5 Setembro 1880. Recebi aviso do Senhor Glyn da Cia que havia comprado os 20
Bonds Argentinos, meu lucro total nesta transação foi de £500 em um mês, o que é

75
. Cidade no Afeganistão, Candaar foi objeto de sucessivas tentativas frustradas de
penetração inglesa ao longo do século XIX. Em 1880 a guarnição inglesa da cidade foi salva
devido apenas à temerária marcha liderada por Roberts. Tais conflitos se inserem no contexto da
disputa imperialista dos países europeus no tumultuado cenário do Império Otomano. Atlas
Historicos. De la revolucion Francesa a nuestros dias. Madri, Istmo, 1975, p. 93-95.
76
. X.[ikuara] ce rak[anga] (código)! Tradução: Ânus ,meu galho (código!
Primeiro Caderno 47

excelente. Tentei (código) e não fui. Houve hoje um meeting77 de irlandeses em Hyde
Park a que não assisti. Passei o dia fazendo cálculos de colocação de dinheiro, mas não
cheguei a nem uma conclusão.

Monday the 6 Setembro 1880. Dormi bem, sonhos agradáveis ou indiferentes de que
tomei nota. Segui para casa li com grande interesse os reports da Victoria de Sir
Frederick Roberts, e o Times. Estes jornais no entretanto me tomam um tempo que eu
poderia empregar melhor guardando os jornais para quando viesse cansado da rua; isto
porém depende um plano para estudar Londres. (código) mas não pude ir por
impossibilidade. Ainda hoje estive cismático, depois do jantar porém senti-me melhor. É
de notar-se que o estômago, em consequência do almoço esteve mau. Aumentei há cerca
de 3 dias a dose de álcool, e tomo agora cerca de 3 quartos de um cálice de Genebra por
dia, isto é 3 onças pouco mais ou menos. Conclui o uso dos remédios de que estava
usando. Tive hoje o pé esquerdo dormente. Estive hoje pensando se devia fazer durante
este mês a viagem para Portugal visto que se eu a deixar para o mês de outubro, o frio me
surpreenderá aqui e provavelmente eu não seguirei para fora de Londres e eu não devo
passar aqui o inverno. Tenho porém por agora dois interesses que serão melhor atendidos
se eu estiver aqui em Londres e são o contracto com a Companhia do Amazonas para a
navegação do Tocantins; segundo terminar o negócio do Tocantins.78 Parece pois que o
mais prudente e o mais razoável é mesmo o que eu tenho feito.

7 de Setembro de 1880. Fui à city, 79 tirei dinheiro. Estou bom e inteiramente


desapreensivo. Tomei um pouco de sulfato de quina.

77
. Ou seja, uma manifestação política.
78
. Em 1868 Couto de Magalhães havia inaugurado a navegação a vapor do complexo
Araguaia-Tocantins-Marajó, através da obtenção da subvenção imperial de 40 contos anuais.
Embora tenha tentado, conforme consta de seu diário acima, negociar esta companhia com
empresas estrangeiras, foi esta vendida ao goiano João José Correia de Morais, o qual em 1887-
88 transferiu-a para a companhia norte-americana, Pará Transportation and Trading Company. O
advento da República, tendo extinguido a subvenção original que a sustentava levou a companhia
à falência. Ver Aureliano Leite, O Brigadeiro Couto de Magalhães. Rio de Janeiro, Sauer
Gráfica, 1936, pp. 91-109 e Couto de Magalhães Sobrinho e José Couto de Magalhães, “Prefácio
da 2ª edição” in: Couto de Magalhães, Viagem ao Araguaia. São Paulo, Companhia Editora
Nacional, 1975, pp. 15-28. Para informações complementares ver o artigo introdutório aos
Diários.
79
. City of London, parte mais antiga da cidade, onde se localizava, como ainda hoje, o
centro financeiro de Londres e suas principais instituições. Monica Charlot e Roland Marx,
Primeiro Caderno 48

8 de Setembro 1880. Escrevi para o Banco do Brasil, mandando pagar a conta da Fazenda
Cafezal; mandei dar ao Costa 200$, e mandei pagar na minha conta o último dividendo
do Banco. Escrevi ao Costa dizendo que as obras do Rio Verde serão começadas no mês
de novembro se Deus quiser. Grande parte do dia passei discutindo comigo mesmo que
melhores aplicações podia eu dar ao meu dinheiro de modo a pô-lo mais seguro. Eu tenho
medo da circulação de papel do Brasil e por isso estou pensando que convinha converter
as apólices em 4 1/2 Bonds de juro a ouro. Se o câmbio subir à 24 — 100 contos serão
iguais a £ 10.000, os quais compram 116 Apólices a 86 que é o atual preço, as quais
darão o juro anual de £ 522. Tomei hoje um pouco de genebra que me fez bem ao
estômago, (código) e fui perfeitamente bem lendo os ensaios de literatura, e passeando
com a imaginação pelo rio Cuiabá e sertões do Araguaia. Os terrores dos dias passados
me fazem agora rir ou pelo menos excitam-me desprezo.

Thursday 9 Setembro 1880. Li os jornais. Ao meio dia tive uma visita do Dr. Passos da
Estrada de Ferro Pedro 2º e do Oliveira; escrevi ao Hunt, estudei um pouco a topografia
de Londres nas ruas de Londres que rodeiam o Banco. Às 3 horas saí e dei um passeio
por Oxford Street, voltando para casa às 6 horas; jantei, seguiu-se boa digestão, li o
romance de Dumas Os irmãos gêmeos, pensei muito durante o dia se devia seguir já para
o Brasil e assim passou-se o dia. Eis na verdade agora o ponto que eu estou discutindo
comigo mesmo, a saber se devo seguir para fora de Londres, e nesse caso para onde.

Friday 10th Setembro 1880. Dia esplêndido; temperatura 70o. Fiz um pequeno passeio de
manhã à Portland Place e quando cheguei encontrei em casa o Oliveira e o Dr.
Vasconcelos. O primeiro retirou-se às 11, o segundo demorou-se até às 2, houve uma
conversação relativa ao Rio Verde mui indiscreta. Excitado provavelmente pelo cansaço
tive um leve ataque de hipocondria.

Saturday 11 September 1880. Levantei-me um pouco mais tarde; as digestões nestes dias
tem sido excelentes. Ensaiei escrever um artigo respeito às finanças do Brasil, mas não
conclui e nem estou satisfeito com ele. Saí depois às 3 1/2 para Paddington Station, vi na
ponte um jovem melancólico encostado a um poste de lampião que me excitou

Londres, 1851-1901. A era vitoriana ou o triunfo das desigualdades. Trad. Lucy Magalhães. Rio
de Janeiro, Jorge Zahar, 1993, no cap. “O Poder: The City, Fleet Street, Westminster” de autoria
de A. Plessis, J. Black, G. L. H. Le May, pp. 149- 174.
Primeiro Caderno 49

curiosidades. Ao passar por uma loja de livros vi o romance de Sir Walter Scott — The
Abbot — o abade que me trouxe ao espírito aquele calmo e não ansioso tipo do
preguiçoso frade da idade média que foi e é uma das idéias que muito me acalma; e por
ver essa pintura comecei a conceber novamente aquele romance que principiei a fantasiar
na Espanha e que agora tem por título: Como dispender bem £ 30 por semana sem
ansiedade e nem maçadas.

Há felicidade no egoísmo, ou também isso é ilusão? Ocupei uma parte da tarde em


estudar a topografia da City entre Tarrington Street ao Sul; Bishopsgate ao Norte, o
underground railway80 à Oeste, e o Tâmisa à Leste. Uma das grandes dificuldades da
topografia de Londres resulta da multidão de nomes que tem a mesma rua, conforme a
altura em que se está.

Sunday 12 September. 320 Marylebone Street — A tarde — Passei um dia agradável. Fui
de manhã ao parque, o sol era lindo. Voltei fiz uma visita ao Dr. Vasconcelos e Senhora.
Passei pela casa da Lily onde deixei o peixe que o João pescou ontem. De volta à casa
estive a imaginar diversas viagens as quais provavelmente não realizarei. Jantei, vim às 7
para a casa, e parei ouvindo um pregador em Marylebone; um velho e gordo padre
protestante. A Lily tinha perdido as chaves da caixa eu vim com muitas: abri a caixa e
voltei à 202 para guardar as chaves; ao passar pelo hospital de parturientes um homem
magro me assustou dizendo que lhe faltava dinheiro para não sei o que e que havia
chegado de Liverpool; eu lhe respondi que não tinha dinheiro e segui meu caminho.

Monday 13th Setembro 1880. Levantei-me cedo encontrei em casa uma carta do Dr.
Assis remetendo o balanço da Empresa de Marajó. Segui a passear na City, saindo pela
primeira vez em Aldersgate, seguindo para St. Paul, Canon Street, London Bridge etc.
Em Paternoster Row encontrei um urchin mui curioso. Comprei diversos mapas (21
London in Balcon). Tomei lunch à 1- em Farringdon Street; aí uma grande pancada de
chuva e esperei que ela passasse protegido pelo viaduto. De Farringdon à Baker Street —
gasta-se 13 minutos pelo underground; a distancia de uma estação a outra é comumente
percorrida em 3 minutos. Voltei para casa aonde cheguei à 1 1/2.O João que aí se achava

80
. Trem subterrâneo, precursor do metrô de Londres, inaugurado em 1890. Charlot e Marx,
Londres 1851-1901, p. 187.
Primeiro Caderno 50

estava doente, sofrendo de dores pelas juntas devido a uma chuva que apanhou no
sábado. (código) e foi embora. Dormi cerca de meia hora. Li depois o Telegraph e
amanhã tenciono escrever ao Assis.

Tuesday 14th Setembro 1880. Passei o dia escrevendo ao Assis e pondo em dia a minha
c/c com a ex-empresa de Marajó. A noite choveu desbragadamente.

Wednesday 15 Setembro 80. Sonhei muito esta noite e entre outras figuras com aquele
coronel boliviano que foi prisioneiro em Corumbá; acordei muitas vezes com pulgas.
Como tivesse cometido um engano na carta do Dr. Assis escrevi a ele uma outra, assim
como ao Afonso mandando uma procuração para me representar na massa falida do
Mauá e Cia. O João não apareceu; presumo que está doente. Tenho passado moralmente
muito melhor depois que me dediquei a uma vida mais ativa.

Thursday 16 Setembro 1880. Fui a Regent Street comprei um par de calças e um de


botinas. Passei o dia muito aborrecido, e vou sentindo que a falta de que fazer é não
pequeno inconveniente.

Friday 17 Setembro. Segui de manhã para a city, saí em Bishopsgate rodei a estação de
Liverpool Street, segui por Bishopsgate até Canon Street, dei diferentes voltas para
conhecer os complicados becos e passagens em torno do Banco de Inglaterra e do Stock
Exchange81, tomei passagem em Canon Street, saí em Charing Cross, daí segui a pé por
White Hall e Parliament Street, tomei lunch ao pé das casas do Parlamento, fui ao meu
Solicitor.

Saturday 18 September 1880. Há alguns dias que tem estado constante digo mui
comumente chovendo. A temperatura baixou alguns graus. Desapareceu aquele ponto da
vista que no lado esquerdo era sinal quase infalível de dispepsia. Lendo hoje um artigo no
Echo vejo que alguns doutores aconselharam a pacientes seus que se queixavam de
pontos na vista que tomassem vinho do Porto. O fato é que a minha fraqueza melhorou
com o uso de um pouco de álcool. Hoje depois de ler uns jornais saí para a City, apeei-me
em Moorgate Street, segui pelas ruas em torno do Banco da Inglaterra, tomei em Canon
Street o trem para Charing Cross que para em Waterloo Junction; chegando a Charing

81
. Bolsa de valores de Londres.
Primeiro Caderno 51

Cross vi pela primeira vez que a ponte dava passagem igualmente a passageiros
pedestres! Ora haver estado ali centos de vezes por quase dois anos e meio, e pensar que
conhecia aquela região aos palmos e por fim de contas verificar que eu desconhecia uma
ponte no Tâmisa! É alguma coisa de humilhante, mas isto prova o que já foi há muitos
anos observado por J. J. Rousseau isto é: — Não há nada mais difícil de observar do que
aquilo que é comum. De Charing Cross subi para Leicester Square, e aí na praça do
Alhambra observei (código).

Não tenho estado em mui bom humor estes dias; a incerteza acerca do procedimento do
Assis comigo me deprimiu, tenho igualmente estado sob a pressão depressante da
irresolução se vou ou se deixo de ir para o Rio; e até agora somadas todas as razões me
parece que o partido mais sábio é me demorar até que eu veja um fim para a questão do
Rio Verde. Na noite de ontem para hoje fomos ao Metropolitan Music Hall e nada de
notável a não ser o (código). De volta tomei o bond em Piccadily Circus, apeei-me em
Regent Circus, comprei um perú por 9 shillings e convidei o Dr. Mariano e o Francelino
para jantarem comigo.

Sunday 19 September 1880. Passei um dia indiferente. O Francelino e o Dr. Mariano não
vieram para o jantar, provavelmente não receberam as cartas, o Francelino por que não
reside no address que me deu, e o Mariano por que? Jantei sózinho, mas nem por isso
pior. Depois do jantar começou a me apertar a saudade do Brasil, ou antes a necessidade
das (código). E não só isso; estes seis meses de frio entre outubro e março são realmente
desoladores aqui. Como passá-los feliz? Se eu tenho de deliberar-me a seguir devo fazê-
lo já, por que depois do paquete de 9 de outubro será tarde.

Monday 20th September 1880. O dia sem ter sido desagradável não é contudo daqueles
que segundo Horácio devem ser marcados com uma pedra branca. Levantei-me tarde e
planejei ir a A. & N. Stores, para isso vesti-me, estava almoçando quando apareceram o
Dr. Mariano e Francelino; conversaram até às 11 e retiraram-se. Eu me preparava para
sair quando aparece um empreendedor do St. Gotard dizendo-se comissionado para
comprar o Rio Verde por 6 milhões de francos, ao que lhe respondi que o negócio estava
nas mãos do Waring.
Primeiro Caderno 52

Às 4 1/2 se retirou, e eu escrevi uma carta ao Waring dando parte da entrevista. Ainda
hoje estive novamente discutindo comigo mesmo se devia ou não seguir já para o Rio.
Conclusões é sempre o mesmo, isto que tomando tudo em consideração eu não devo sair
daqui senão quando o Rio Verde estiver concluído. Eu pergunto a mim mesmo se ao em
vez de estar a entrar o inverno fosse o verão que estivesse a entrar sairia eu daqui? Não
saía; portanto o principal motivo que eu tenho para sair não é a necessidade ou
conveniência da minha presença no Brasil, é sim o medo do inverno.

Tuesday the 21 Setembro 1880. Foi um dia menos mau, e dos que se houvessem sido
passados conscientemente mereciam ser marcados com a pedra branca de Horácio.
Levantei-me às 8 ½, tive sonhos e entre eles um mui desagradável. Sonhei com um
crioulo que se fotografava e na fotografia depois de impressa a fotografia conservava a
faculdade de rir. E no riso se parecia com o Timóteo, ou com algum desses que eu
conheci. Fui para casa, banhei a cabeça, almocei com grande apetite, passei em revista as
coisas que eu terei de fazer se tiver de seguir para o Brasil em outubro depois fui a Edge
Road a ver se podia comprar roupa para o João e não comprei; tomei passagem em Edge
Road Station segui para Height Holborn82 onde fiz as compras dispendendo 4 libras e
meia. Voltei para casa às 5. Tentei (código) e não fiz: o X.83 estava dolorido. Há em
Londres uma indizível miséria dependente do vício da embriaguez. De novo começo a
pensar que eu devo gastar mais do que gasto.

Recebi uma carta do Senhor Hunt participando que o Stuart havia escrito à ele
perguntando se eu estava ainda em Londres, e no entretanto quando o sujeito veio falar
comigo perguntou-me se sabia aonde o Hunt estava! Farsistas! E isto é a vida! As
alegrias tão poucas, tanta ansiedade, e por fim de contas morre-se e aí fica tudo. Eu tenho
a ambição de fundar alguma coisa que preserve meu nome do esquecimento. Penso que
esses antigos senhores feudais que fundaram famílias foram felizes. Quando porém se lê
a história da humanidade fica-se desanimado; a mais antiga família do mundo não
alcança a mil anos; a exceção de ruínas não há coisa alguma que ature há mais de 1.000
anos; e o que são mil anos em comparação com as épocas geológicas? O que é que eu

82
. Isto é, High Holborn, rua importante comercial de Londres. Charlot e Marx, Londres, op.
cit.
Primeiro Caderno 53

posso fazer que iguale nem de longe ao que fez Mohamed, Confúcio e qualquer dos
heróis da história humana? Nada; no entretanto, onde estão suas famílias? Tudo está
desaparecido na voragem do tempo. Mas se eu não posso fazer coisas iguais aos grandes
conquistadores, ou aos homens de ação será certo que eu não posso fazer alguma coisa no
sentido do que fizeram os grandes filósofos?

Deixando porém de parte essas grandes ambições venho ao prosaico estado da vida de
todos os dias e pergunto a mim mesmo por que razão não despendo eu a renda que tenho?
A razão principal que eu tenho é a seguinte: tenho medo de habituar-me a gastos e depois
ver-me forçado a cortar por eles para reduzir-me a uma existência mais parca. É isto
razoável? Em última análise: — será por ventura provável que gastando mais do que eu
gasto passarei melhor? Duvido muito disso. Os gozos que a minha imaginação figura são
coisas que só tem encantos enquanto não saem do domínio da imaginação.

22 de Setembro de 1880 Wednesday. 9 1/2 da manhã — fiz uma leitura do artigo insânia
do Reynolds, e cheguei a seguinte conclusão: o melancólico pode ser consolado assim: —
“supõe que todos os nossos terrores são reais, o máximo que pode vir de tudo é a morte, e
a morte é uma coisa inevitável; portanto o aumento do mal é apenas em abreviar o tempo
que naturalmente tinha de trazer essa transformação ou essa destruição”.

Às 12 segui pelo bus apeei-me em Picadilly Circus, segui pelo Alhambra, Charing Cross
até Victoria Street, fui às stores onde comprei 3 ceroulas de lã, 3 gravatas, uma camisa de
flanela, 5 pares de meia, o que tudo custou £ 2.10, voltei para Westminster, engraxei os
sapatos aí, tomei o bus Atlas, saí em Marylebone e cheguei em casa às 3 1/2. Escrevi ao
Hunt e Costa, continuei a leitura do artigo insânia tratamento, jantei com apetite e depois
do jantar li o Telegraph. Vim para o nº 320 de Marylebone onde escrevo estas notas,
esqueci-me de dizer que antes de jantar tomei um banho de pés que muito me acalmou.
Vou recomeçar a estudar inglês, ou talvez italiano e alemão que já comecei há algum
tempo.

83
. X[ikuara]. Tradução: Ânus.
Primeiro Caderno 54

Thursday 23 de Setembro de 1880. Quaha pituna ramé iché cha maite que (código) 84.
Foi um sonho engraçado. Hoje passei um dia alegre inteiramente livre daquelas cismas
que me aborreceram ontem e anteontem. A causa primordial disso foi a carta do Assis, a
qual foi por assim dizer a gota de água no copo cheio que fez entornar.

Friday 24 Sptember 1880. A Lily teve a noite passada um ataque histérico mais
pronunciado do que os outros e que me excitou muito a compaixão; pobres mulheres e
pobre humanidade. Conservou-nos isso acordado até à meia noite. Dormi e sonhei maha
(código) inti cha omehen 85. Levantei-me às 9, lavei-me almocei li jornais, e ao meio dia
vim buscar a Lily, com ela entrei em Edgeware Road Station saímos em Moorgate, dali a
St. Paul, Canon Street Station, Charing Cross tomamos o bus e cheguei em casa às 3 da
tarde. Li outras partes do jornal; o João não veio, li depois o Pantagruel — jantei mal, li
depois o Echo, vim para 320 — estudei mais uma lição de francês e inglês. Recebi uma
carta do tal empreiteiro do Saint Gottard.

Saturday the 25th September 1880. Passei hoje um dia mui agradável — o sol estava
brilhante, a temperatura quente, o João apareceu às 10 1/2 e às 11 seguimos para o Jardim
Zoológico; as árvores estão já amarelas, e as folhas começam a cair; é aquela quadra
melancólica do outono descrita por Millevoye86. Depois de percorrer o jardim saí pela
porta do Norte, desci por aquele canal que eu tanto amo por me trazer à lembrança as
cenas dos rios selvagens em que eu vivi os mais apaixonados anos da minha vida. Voltei
para a casa à 1 1/2. Tomei a minha água quente (código) e foi perfeitamente às 2 ou 2
1/2. Como estivesse mui cansado, subi para meu quarto de dormir com o Rabelais, li um
pouco e dormi cerca de uma hora, acordei me, quando eu jantava veio o paper boy87 e
jantou comigo por companhia. Depois do jantar li o Globe, e vim para aqui onde apliquei
uma hora a estudar inglês e francês, e assim como a me exercitar mais em caligrafia.

84
. Tradução: Durante esta noite eu sonhei que (código).
85
. ...maa (código) ti axé amee. Tradução: ... (código) que não dava.
86
. Charles Millevoye, 1782-1816, poeta francês.
87
. Entregador de jornais.
Primeiro Caderno 55

Esqueci-me de dizer que li o Times, o Daily Telegraph, e que escrevi um capítulo do


descabelado romance Calmirú.88

Sunday 26 September 1880. Foi ainda este um dia digno de ser marcado com uma pedra
branca; dia de gozo tranquilo, cismar íntimo como aqueles dias de garoa de São Paulo.
Amanheceu claro, mas pouco depois veio a garoa; depois do almoço veio o João e
colocou-me a triste história das perturbações que sofria na família — (código). Li o
Times de ontem assim como o Dispatch de hoje — Às 4 segui para o parque e assentei-
me solitário gozando em silêncio — às 4 1/2 voltei para casa, jantei bem, deitei-me vim
para 320 estudei francês e inglês — antes jantar escrevi uma carta ao Waring e outra ao
Hunt. Achei a Lily de mau humor e não sei se por isso sinto-me um pouco abatido e com
algumas idéias fúnebres.

Monday 27 de Setembro de 1880. Foi ainda este um dia feliz se bem que passado um
pouco inconscientemente. Li de manhã o Times e Daily Telegraph, cheios atualmente de
interesse por causa da questão do Montenegro89 que está tomando um caráter mui sério.
Li igualmente a questão relativa a prisão de 47 indivíduos que estavam em um baile de
máscara em Manchester sendo que 22 estavam vestidos de mulher, e presos por que
dançavam o cancan. Às duas subi a pé por Regent Street, Strand, Dairy Lane, Farringdon
e voltei às 5 — jantei, escrevi francês e inglês — são 10 e 25 vou dormir; o dia esteve
quente, temperatura 70o.

88
. Aqui Couto se refere a um romance picante, intitulado As Fantasias Devassas do Dr.
Calmirú, que ele estava escrevendo neste mesmo período, aparentemente relatando episódios
reais ocorridos em suas viagens pelo interior do Brasil, conforme atesta sua referência ao assunto
na página 47. Lembro que o gênero da literatura pornográfica estava em grande voga no época,
sobretudo na Inglaterra.. Realmente, foi na Era Vitoriana, com sua excessiva preocupacão com a
moralidade sexual e em contraponto a ela, que a literatura pornográfica tornou-se uma indústria, é
verdade subterrânea, mas extremamente lucrativa. Ver, por exemplo: Steven Marcus, The Other
Victorians. A Study of Sexuality and Pornography in Mid-Nineteenth-Century England. Nova
Iorque, Basic Books, 1966.
89
Em referência às consequências da crise dos Balcãs (1875-1878), que havia culminado
com o Congresso de Berlim em 1878, a partir do qual Montenegro havia se tornado independente.
Note-se que o pano de fundo da conflagração balcânica eram tanto produto dos conflitos entre
cristãos e muçulmanos, quanto ocasionado pelas disputas imperialistas dos países europeus,
estando a agressiva política externa alemã de Bismarck como um dos principais fatores no
desequilíbrio da região. Atlas Historique, Paris, Librairie Stock, 1968.
Primeiro Caderno 56

28 de Setembro de 1880. Ainda um dia calmo e feliz se bem que monótono. Levantei-me
cedo, li os jornais antes do almoço. A questão do Montenegro está em seu auge. A minha
previsão é que ela se aquieta sem guerra geral. A coisa que mais me tem incomodado
estes dias são as minhas relações com o Assis. A Lily também tem estado tão esquisita
que começo a suspeitar ou por outra começo a confirmar o que já muitas vezes tenho
pensado e é que continuar a viver junto com ela é uma grande tolice.

29 de Setembro de 1880. De ontem para hoje f. a Lily e passou com cólica até a meia
noite. Pesei-me hoje às 1/2 hora depois do meio dia — havendo urinado antes e tido
regulares evacuações alvinas e achei que o meu peso nu é 142 libras e 4/9 onças inglesas.
Tenho ganho pois, depois do tratamento alcalino pelo menos 1 libra (cerca de 2 libras).
No diário clínico do dia 28 de agosto vejo que meu peso depois de duas xícaras de lunch
era 140 libras.

O dia foi em geral agradável. Às 3 saí, fui ao parque, voltei pelo canal chegando a casa às
5. O João foi à pesca. A noite grande quarrel90 entre a Landlady [e] Mrs. MacGeorge.
Cena desagradável porém enfim briga de mulheres de muita palavrada e nada mais.
Resultou disto que dormimos muito tarde.

30 September Thursday evening. Levantei-me tarde, li os jornais lavei-me, almocei bifes


e voltei a Lily às 10 1/2. Às 10 3/4 veio o João e continuou-se a leitura. Às 2 segui para o
parque, às 3 1/2 voltei, a espera do Senhor Hunt que chegou às 5. Antes tinha recebido
uma notícia dos credores da massa falida do Walker que remeti ao meu advogado. O
Hunt não me disse grande coisa de novo, contudo me disse que terça-feira às 3 horas me
virão ver, tenho esperança que alguma coisa de definitivo estará assentado; é tempo já
para isso. Jantei com o Senhor Hunt e conquanto eu não diga que o dia foi mau contudo
não passou de um dia indiferente. A Lily mudou-se para 5 — Lisson Street.

September Friday the 1st October 1880. Eis chegado o mês de outubro que parecia tão
longe quando o Sales veio despedir de mim. Na concepção do tempo, depois dos 35 anos
de idade o homem é sujeito a seguinte mui curiosa ilusão: o tempo futuro parece 4 ou 3
vezes mais comprido do que o tempo passado. Na Inglaterra de 15 outubro à 24 de

90
. Disputa ou discussão.
Primeiro Caderno 57

dezembro é que custa passar; certo o mês de Janeiro é muito frio, as noites mui longas os
dias obscuros; mas se o efeito da imaginação for sendo sentir que o sol já vem chegando
como que abrevia o pesadelo do inverno. Parece no entretanto que foi o mês passado que
eu fui à Paris, e já há quase um ano, pois foi em Janeiro. Deixemos porém de filosofia e
vamos a narração do que aconteceu hoje: Levantei-me às 8 fui para Baker’s Street
stationer91 comprei o Times voltei para casa li-o assim como o Telegraph — e isto me
consumiu uma grande parte do dia. Veio depois o João que me narrou a história dos
longos sofrimentos por que ele está passando na casa dele com as exigências exageradas
que o pai e a mãe fazem de dinheiro. Compreendi tarde que os empréstimos anteriores
foram um erro, e que o único fruto foi encorajar a bebedeira do pai. Eles pois não se
importam que o filho fique desmoralizado contanto que lhe não falhe a ração de cerveja.
Agora é que eu começo a compreender praticamente o como é que a caridade aqui na
Inglaterra não é julgada uma virtude quando ela é exercida indiscricionadamente. É pois
necessário não ser fraco; ser metódico, e ser pouco cavalheiro, pois cavalheirismo aqui é
julgado tolice.

Saturday the 2nd of October 1880. Passei hoje um dia triste. Levantei-me cedo, lavei-me
aqui, chegando em casa escrevi uma carta a mãe do João para prevenir que exerçam
pressão sobre ele afim de que ele obtenha dinheiro de mim, a consequência provável é
que pai e mãe ficarão contra mim mas deixaram quieto o rapaz. Será essa a
consequência? Li depois disso os jornais, almocei, segui para a casa do meu solicitor que
me disse que nem uma notícia tinha da deliberação relativa a aplicação que o Waring
pretende que eu faça para as ações. Voltei a pé por White Hall, Trafalgar, Piccadilly,
Regent Street, Oxford, Baker Street, e cheguei em casa às 1 1/2 banhei-me dormi.
Durante o passeio senti-me hoje mui triste, abatido e melancólico sem por hora poder
encontrar outra causa além do mau estado da minha saúde. Quando cheguei em casa
encontrei 2 cartas, uma do Mello do Pará comunicando haver dado a viagem do mês de
setembro, outra do Costa que me aborreceu por que me parece que ele procura tomar uma
posição por demais íntima, o que eu não julgo prudente consentir e portanto escreverei à

91
. Stationer é papelaria. Possivelmente, refere-se à Baker’s Street station, isto é, estação de
trem.
Primeiro Caderno 58

ele uma carta que corte isso. Mas há self interesse92 no que ele faz, ou ele o faz por zelo?
— Duvido que deixe de haver muito boa dose de self interesse. É uma coisa curiosa que
apesar de sabermos que o self interesse é o grande e principal motor das ações humanas
todas as vezes que nosso amor próprio é interessado quase sempre nos enganamos e
atribuímos o procedimento a dedicação pela nossa sagrada pessoa. A propósito desta
melancolia que me assalta: hoje a minha urina estava sobrecarregada de depósito branco,
alguma coisa como grude mal cozido de farinha de mandioca. Hoje a minha consolação
foi a seguinte: que amanhã ou depois a melancolia estará passada a alegria voltará e tudo
continuará como dantes. Comecei hoje a escrever uma memória contendo as minhas
recordações de viagens pelo Rio Cuiabá. É um assunto que espero que me há de distrair,
se bem que o que esperava que pudesse mais facilmente ser convertido em um livro útil
havia de ser a minha viagem à Europa. Hei de procurar trabalhar nisso agora com alguma
constância. Está-me há muito tempo a dançar na cabeça o projeto de fazer uma viagem à
Itália; já principiei mesmo a estudar o italiano, mas parei creio que na segunda ou terceira
lição. Falta-me o estímulo e a coragem para empreender agora qualquer coisa; Quantum
mutatus ab illo.93 No entretanto bem examinada a matéria não há mudança. O meu
movimento para Ouro Preto foi forçado pela necessidade, e como que foi anti-
espontâneo. Foi durante a minha estada em Ouro Preto que se desenvolveu a paixão que
tem sido o grande motor da minha existência; ela me trouxe para o Rio, me fez aborrecer
o Rio e desejar e aceitar com ardor a presidência de Goiás; ela me levou ao Araguaia,
inspirou a minha viagem ao Pará, quando eu devia ir à Minas; ela me inspirou voltar ao
Pará, me fez empreender a viagem do Tocantins em que tantas vezes estive exposto à
morte; ela me inspirou a viagem ao Mato Grosso, a expedição à Corumbá, a viagem
depois ao Araguaia, a navegação daquele rio, as viagens ao Pará ao Rio, tudo se fez
poético ao influxo de seu encanto; não foi ela certamente que me inspirou a viagem à
Londres, mas ela tornou agradável as neves do inverno de 1879 a 1880, e fez possível a
minha continuação aqui com prazer.

92
. Self-interest, em inglês, significa causa própria.
93
. Quão diferente do que era! Citação de Virgílio, Eneida, liv. II, v. 274 in: Rezende,
Phrases, op. cit, p. 631.
Primeiro Caderno 59

A única coisa pois que eu empreendi sem auxílio da deusa foi a viagem à Europa que eu
não teria provavelmente sustentado se ela me não tivesse vindo auxiliar com suas asas
brancas. Por que razão pois quando eu empreendo alguma outra coisa me não ponho,
como me punha dantes, debaixo de sua proteção?

Sunday 3rd of October 1880. Um dia pacífico e feliz. Esteve contudo frio pelo que tive
fogo aceso. Levantei-me às 8, segui para o parque por onde dei uma volta por que o sol
estava claro, o céo azul se bem que frio; às 9 estava em casa, li o Dispatch, almocei às 10,
e comecei a escrever uma narração das minhas impressões de viagem no rio Cuiabá
durante a guerra do Paraguai,94 e escrevi 6 páginas menos mal. Estava no entretanto
apreensivo e incomodado com a carta que escrevi a mãe do João. Às 11 apareceu ele, dei-
lhe £ 1 e ele se foi embora para voltar às 4. Durante a ausência escrevi como disse as tais
impressões de viagem. Às 4 ele voltou; o fogo estava aceso, o quarto confortavelmente
quente, e distraí-me em ouvir as histórias interessantes da vida de uma família pobre em
Londres. (código). Li um artigo em um guia de viagem que dá uma idéia tristíssima da
pobreza da população rural da Itália. Se o que diz é exato aquele seria o lugar para
estabelecer uma fazenda e viver feliz. Tenho ultimamente discutido comigo mesmo se há
ou não vantagem em ter a companhia de uma mulher. Há dois anos que eu conservo tal
companhia, e realmente não tenho juízo formado. No Araguaia eu tinha essa companhia e
uma vez só me não vieram saudades disso. A que tive no Pará igualmente me não deixa
saudades; ao que tive em Londres a mesma coisa. Para o meu gênio independente e
pontual é um pesadelo, escravidão disfarçada que me tira grande parte do meu tempo, e
que me dá uma compensação pouco satisfatória.

Agora é o caso de julgar e de tomar uma deliberação se devo seguir ou retirar-me para
fora de Londres. E a causa do problema de passar ou não aqui o inverno. Sem dúvida
alguma que enquanto o negócio do Rio Verde não estiver decidido eu não devo retirar-
me. A probabilidade porém é que o negócio esteja terminado este mês; devo em tal caso
retirar-me ou não? Esta é a questão que convém que fique decidida este mês. Está se
aproximando a idade em que devo terminar este continuado movimento em que me tenho
colocado, ou em que as circunstâncias me tem colocado para escolher um lugar em que

94
. O manuscrito, até hoje inédito, encontra-se no acervo do Museu Paulista.
Primeiro Caderno 60

parar; qual esse lugar? O calor e a porcaria do Rio de Janeiro são realmente
desanimadores. Viver no Rio quer dizer: ter a vida mais curta e muito mais cheia de
moléstias do que em um lugar mais salubre. Mas no Rio mesmo lugares há melhores do
que outros. Santa Teresa, por exemplo. Eu porém não possuo uma residência lá.
Petrópolis . . . mas esse é um lugar tão feio, aquelas serras abruptas e estéreis aqueles
precipícios escuros trazem a idéia constante do suicídio. Eu poderia porém viver no Rio
no tempo do inverno, e no tempo do verão seguir para São Paulo. Isso é o que parece
melhor; mas mesmo assim, atingiria eu por essa forma a um clima em que se pudesse
razoavelmente viver? Viver porém fora do país natal, viver vida de desterrado, isolado
sem parentes sem amigos e fiando-me somente nos indivíduos que dependem do meu
dinheiro, tal seria a vida que eu poderia levar na Inglaterra, na Itália ou em Portugal.
Entre as fantasias que as vezes me atravessam o cérebro uma que me sorri é a de ter uma
casa no Rio e sair daí em expedições para o interior explorando países desconhecidos,
examinando produtos, estudando história natural e gozando. Do Rio ao Pará com os
paquetes americanos são 12 dias de viagem; não é pois muito, e não fosse a região tão
quente seria o país próprio para eu realizar um dos meus ideais. Já tive idéia de morar no
Pará!!! Aquela mesma paixão que tornou possível a minha morada nos sertões do
Araguaia por 4 anos e por muito mais se não fosse o padre Siqueira Mendes, era o que
me inspirava o desejo de viver no Pará! São Paulo é porém mui preferível; com os
caminhos de ferro eu me posso facilmente transportar ao pé dos rios piscosos e daqueles
campos saudáveis, dos rios Mogi Guaçu, Tietê e outros onde a pesca seja alguma coisa
divertida e mais ou menos semelhante ao que poderia ter no Pará; depois não há febres,
não sairia do centro das minhas relações sociais e faria a viagem com todo descanso
dentro de 4 dias a saber do Rio à Cachoeira 1, da Cachoeira à São Paulo 2; de S. Paulo à
Piracicaba ou à Mogi 1. Aí estão 3 dias e dentro deles eis-me em pleno sertão. Outras
vezes me vem a idéia de comprar uma fazenda n’algum lugar bonito da estrada de ferro
do Rio Verde e de aí estabelecer uma fazenda; isso é porém asneira que nunca passará a
fato; o que é provável pois é que tudo isso continue em projeto, e que eu passe vacilando
mais uns dez anos, findos os quais como provavelmente me hei de sentir cansado e sem
forças (se viver até lá) hei de parar e me fixar onde então me achar.
Primeiro Caderno 61

Monday 4 de Outubro de 1880. Foi hoje um dos mais úmidos melancólicos e tristonhos
dias possíveis nesta triste atmosfera de Londres e contudo eu o passei alegre e pacífico,
de fogo aceso no meu quarto, e escrevendo a expulsão dos paraguaios da província de
Mato Grosso. Amanhã às 3 horas está anunciada uma conferência com o Waring que se
espera será alguma coisa de definitivo. Estou meio brigado com a L. e passei a noite aqui
escrevendo inglês e estas poucas notas.

Tuesday 5 de Outubro de 1880. Passei hoje igualmente um dia calmo, se bem que um
pouco indiferente. Levantei-me cedo e chegando em casa li os jornais, continuei a
escrever alguma coisa de memória relativa à invasão de Corumbá e depois tomei notas da
minha viagem à província de Mato Grosso marcando os pousos. Veio o Maximiliano
Nothman a quem não vi e marquei uma audiência para amanhã às 10 horas da manhã.
Veio o João e mandei-o comprar o Wilson, The Ocean as a health resource.95 Veio o
Waring e a visita dele me desapontou, pelo fato de ter de fazer a emissão sem o auxílio de
nem um sindicato.

Wednesday 6 October 1880. Passei um dia pouco interessante se bem que eu não possa
dizer que tenha sido inteiramente desagradável. Passou-se assim: li de manhã os jornais
veio depois o Nothmann que conversou até às 3 horas. Saiu eu ensaiei concluir o diário
de minha viagem ao Mato Grosso, o que mais ou menos consegui. Li o Echo, e estive
incomodado pensando no que o Watson e seu rancho poderão fazer.

Thursday 7th October 1880. Um dia calmo e feliz pois passei-o recordando e escrevendo
aquelas cenas da vida que me deixaram impressões agradáveis. Veio o Senhor Hunt
morar comigo e custa a hospedagem dele 9shillings por dia. Tive igualmente uma visita
agradável do senhor Sales. Comprei um coelho do João que mandei de presente para Lily.
Escrevi 4 páginas contendo o diário da minha estada em Goiás que não está concluído.
Está porém escrito de uma forma que facilita muito o ser reduzido a coisa regular e que
de futuro possa ser reduzido a livro. “Acertei igualmente com um melhor jeito de
escrever no qual conquanto eu não possa escrever muito depressa tenho contudo a
vantagem de escrever letra igual, e de fazê-lo sem me cansar — os principais pontos são:
fazer as letras com o movimento do polegar descansando a mão nos ângulos direitos dos
Primeiro Caderno 62

dois últimos dedos e tendo a cautela de fazer com que a última falange do 3º exceda as do
4º e 5º que devem estar levemente encolhidos sendo o 4º por fora do quinto. É igualmente
mui importante formar as letras balançando a mão sobre os dois últimos dedos e
movendo mui pouco com os 3 primeiros.”[sublinhado no original]

Friday the 8th of October 1880. Passei hoje um excelente dia e este é dos que se marcam
com pedra branca por que não só foi calmo por que de mais a mais foi mui bem
trabalhado; continuei e conclui as recordações da minha viagem à Goiás o que me dá
muito prazer em escrever. A história do dia é pois a seguinte: levantei-me fui para casa
lavei-me, assentei a escrever, e continuei até às 3 horas tempo esse em que suspendi por
um pouco, saí a rua vindo por Marylebone até a estação de Portland Road de onde voltei.
Tenho estado estes dias com uma grande coceira no corpo uma espécie de brotoejas no
pescoço, pernas, tronco etc. À noite veio o senhor Hunt e contou-me os novos rumores da
pretendida injunção do Watson e tudo isso me está parecendo que é uma história; mister é
que eu obre com muita prudência por que, do contrário, daí pode resultar grande mal, isto
é pode resultar que eu pague aquilo que não devo; é isso que deve ser evitado. Por via de
regra porém quando uma pessoa quer fazer qualquer coisa destas coisas não anda dizendo
a todo mundo que as fará; se pois ele o diz, o que resta verificar, é por que quer algum
dinheiro.

Saturday the 9th October 1880. Um calmo e agradável dia cuja história é tão simples
como a calma do dito agradável dia e é em resumo a seguinte: levantei-me às 8; segui
para casa para procurar os papéis que o Hunt havia pedido para o Winckworth, assim
como a carta do Watson; ao chegar o Hunt veio para o meu escritório e contou-me que o
Waring pensava que se não chegássemos a um compromisso com o Watson antes de
publicar a emissão nos havíamos de arrepender por que publicado o prospecto seremos
forçados de nos submetermos às condições que ele impuser; em tal caso, disse eu, a coisa
é impraticável, e se havemos de conhecer que é assim daqui a um ou dois meses melhor é
conhecer isso já e obrar em conformidade. Contou-me mais o Hunt que há suspeitas de
que o Watson esteja sendo auxiliado neste negócio pelo Barão Grant; e muito duvido que
assim seja; este é e foi sempre um ponto delicado que necessita de ser decidido e tratado

95
. “O mar como recurso para a saúde”.
Primeiro Caderno 63

sem sentimento, e sim com juízo; merece pois particular atenção, e eu hei de ainda pensar
sobre ele para prever ou tratar de prever o que tem de acontecer e estar com as soluções
prontas. Passada esta conversação almocei e em seguida progredi com o escrever a
continuação de minhas recordações de viagem nas províncias de Goiás e Mato Grosso e
escrevi as notas que se referem à viagem entre Goiás e o Rio Claro não ficando completo
este capítulo por que estando o escrevendo apareceu de novo o senhor Hunt e referiu-me
uma visita que tinha feito ao Stuart a qual lhe contou que tinha projetado um arranjo para
as pretensões deles relativas ao Rio Verde, o qual arranjo era o seguinte: ele receberia
2.000 £, W. 3.000 por que? W. 5.000 — Hansen 7.000, fazendo pois um total de £
17.000! É necessário pensar o que farei. Parece-me que se eu enfezar não pago nada e no
entretanto não correrei mais risco. Não será porém melhor ceder e obrigar o W. a
modificar as condições de pagamento, fazendo-as mais seguras? Tudo isso é necessário
esperar os acontecimentos e ver como se eles desenvolvem para poder obrar. No
entretanto as coisas parecem agora muito menos dignas de ansiedade do que pareceram
antes. Mas realmente isto é uma grande experiência que tive e certamente que eu conheço
hoje muito melhor o mundo do que o conhecia quando aqui cheguei. Ainda agora acabo
de fazer uma descoberta é que a minha criada vende-me velas a 2d. que custam 1d.
Amanhã e depois hei de verificar isso. Continuando porém com a narração do dia: fiz
esforços para escrever com o punho virado para fora e o resultado foi excelente por que
se não serve para escrever mais depressa tem a vantagem de produzir uma letra mui igual,
e pode-se escrever horas e horas sem cansar o que incontestavelmente é de uma grande
vantagem. A facilidade comparativa com que estou escrevendo me deu mui grande
satisfação e vou lançar as respectivas regras em um papel separado a fim de as não
esquecer por que isto é a coroa de esforços que inutilmente fiz por muito tempo e dos
quais só depois de muitos anos eu vejo agora os primeiros resultados.

Sunday 10th October 1880. Igualmente um dia muito calmo hoje e muito agradável pois
passei-o escrevendo a primeira viagem ao Mato Grosso que tantas saudades me deixou, e
com o escrevê-las a imaginação vagueia por aquelas solidões, e eu gozo novamente da
viagem quase tão completamente como se a tivesse novamente fazendo e sem o
inconveniente das canseiras e contratempos que sempre acompanham as viagens. Escrevi
igualmente uma narração das minhas negociações com Hansen e Watson. Escrevendo
Primeiro Caderno 64

todas essas coisas fi-lo voltado para o lado direito com o papel perpendicular à mesa o
que altera o tipo de letra tornando-a clara, inteligível e igual o que eu não consegui nunca
enquanto não tomei essa posição e esse ensino o devo ao livro de Stocks, tem ainda esse
modo de escrever a vantagem de não cansar a mão, o que me abriu o desejo de escrever
todas as minhas recordações de viagem. I have written this on the 10 of October 1880
Lily Grey aged 18 two years ago.96 As viagens que contém maior número de episódios
que me interessam à imaginação são: 1ª aquela viagem à ilha do Marajó com o
Marimbondo, o Dr. Assis, o Colares, aquele soldado de artilharia de nome Constantino, o
compadre João Cancio, e não sei quem mais. A segunda que me deixou igualmente mui
agradáveis recordações foi aquela viagem ao Furo do Pagé com o prático mor do Arsenal
o Valério, o Justino, o Maciel Parente/Antônio. Tenho tido há quatro antes há 8 dias uma
grande coceira por todo o corpo mas com ela aquela melancolia profunda que as vezes
me assaltava, e que ainda ultimamente me assaltou quando eu fui pela última vez à casa
do Winckworth.

Depois que tomei o alcali o estômago melhorou muito; com o álcool comecei a me sentir
muito mais forte, e agora que estas coceiras parece que vão pondo para fora maus
humores, a saúde do espírito, a última a manifestar-se apareceu finalmente. Em um dos
anteriores capítulos descrevendo os sofrimentos que eu tinha eu disse que havia de curar-
me até que eu pudesse dizer que julgava minha saúde perfeita isso quase que eu consegui,
e se o não consegui completamente estou no caminho de o conseguir. Isto até certo ponto
eu o devo ao acaso, porém o que poderia o acaso fazer se eu me não houvesse preparado
para que ele operasse favoravelmente? Isto me dá muita satisfação; pois foi o resultado de
energia e força de vontade.

Monday 11th October 1880. Não foi o dia de hoje tão agradável como o de ontem por
que conquanto não tivesse coisa alguma que me aborrecesse, contudo perdi uma grande
parte do tempo a princípio calculando preços de sustento, e depois escrevendo a história
da negociação com o Hansen; e só depois é que recomecei a escrever a história da viagem
ao Mato Grosso o que me deu muito prazer e tanto ou mais hoje do que nos outros dias
principalmente por que com a nova posição da mão, o escrever me não cansa e me dá

96
. “Escrevi isto no dia 10 de outubro de 1880 Lily Grey completou 18 anos há dois anos”.
Primeiro Caderno 65

indizível prazer. De manhã veio o senhor Hunt de sua excursão ao lugar em que está a
mulher, seguiu para Westminster e voltando à tarde me trouxe a muito agradável notícia
de que os turcos haviam cedido, o que termina de uma maneira inesperadamente
favorável a dificuldade do Dulcigno e provavelmente as outras97. A consequência é que
o mercado vai ficar muito bem, e que o Rio Verde ficará provavelmente terminado nestas
duas semanas. Acabada a questão aqui principiará a questão lá no Brasil. Eu já fiquei tão
cansado com a matéria que o só pensar nela já me causa tédio grande.

Tuesday 12 October 1880. Confirmou-se a notícia de a Turquia estar disposta a entregar


Dulcigno o que solve a debatida questão pendente da intervenção européia. Com isso o
mercado melhorou muito e vai-se emitir na praça o Rio Verde sexta-feira que vem. Passei
o dia da seguinte forma: lavei-me, li os jornais almocei, veio então o Senhor Dias, para
buscar dinheiro e conversou cerca de uma hora; retirou-se eu revi os papéis relativos à
negociação Hansen, Watson e outros, escrevi o começo da história de tais negociações, e
depois pouco mais de uma página da viagem do Mato Grosso. Veio o João conversei,
mandei buscar o Echo, li as notícias da Turquia. Às 5 chegou o Senhor Hunt com o
proposto prospecto da Companhia que lemos, jantei, continuei a ler, e fiquei sabendo que
a emissão começará a ser anunciada no dia 15 do corrente, sexta-feira para ser encerrada
sábado que vem, de modo que sábado que vem a maior parte da ansiedade que este
assunto trazia will be over.98

97
. Dulcígno ou Ulcinj: cidade localizada na costa do Adriático, perto da fronteira da
Albânia, hoje Montenegro. Sendo um dos principais portos produtores de sal marinho, Ulcinj
esteve sob domínio turco até 1878. O episódio citado se inscreve no contexto da crise política e
financeira do Império Otomano, agravada pela suspensão do pagamento dos juros da dívida a
partir de 1875. Em termos políticos, os conflitos diplomáticos entre as potências européias
alimentavam um quadro de instabilidade e de acordos polítcos precários e voláteis.Com
referência à questão da dívida externa, em 1881, ao final de um período de forte tensão
diplomática, o sultão Abdulaziz, sob pressão dos governos europeus,acabou permitindo a
supervisão das finanças do estado, por banqueiros estrangeiros. Note-se a importância dada a tais
eventos por Couto, que acompanhava com olhos interessados os investimentos estrangeiros nas
áreas coloniais como as oscilações dos mercados, procurando diagnosticar as tendências corretas
para o investimento estrangeiro nos negócios no Império brasileiro. Atlas da História do Mundo.
São Paulo, Folha da Manhã, 1995 e The Columbia Lippincott Gazeteer of the World. Nova
Iorque, Columbia University Press, 1952.
98
. “Terá passado”.
Primeiro Caderno 66

Está me causando um pouco de ansiedade o novo sistema em que entrei com a landlady
de fazer as despesas sem marca, justamente por que isso me obriga a prestar um pouco
mais de atenção à vida real. Com a provável solução do Rio Verde vem novamente a
questão de seguir daqui para o Brasil. Seguirei, ficarei aqui ou que partido tomarei? O
mais provável é que siga para o Brasil. No entretanto talvez isso não seja o mais sábio. É
assunto esse que necessita de ser ainda estudado e resolvido por que há tantos prós e
contras, que sem muita reflexão não pode ser decidida. Parece porém que se ficar
resolvida a questão principal assim como as acidentais mui dificilmente eu poderei
ocupar o meu tempo em Londres, e portanto em tal caso forçoso será seguir viagem, e se
eu a seguir voltarei ainda à Europa? Quem sabe?

Wednesday 13th October 1880. Passei um excelente dia; levantei-me às 8 — lavei-me li


jornais, ajustei a conta da despesa da casa depois comecei de novo a pensar se devo ou
não seguir para o Brasil no caso de ser bem sucedida a emissão do Rio Verde e agora a
minha conclusão que aliás ainda não é definitiva é que devo seguir. Hei de discutir esse
assunto mais plenamente amanhã. Ontem a noite passei mui nervoso e triste. Qual a
causa? Começo a confirmar-me na idéia de que a continência é o que as mais das vezes
me excita o nervosismo. Os fatos que pela primeira vez excitaram a minha atenção foram
os da Ilha. Eu atribui durante algum tempo ao vinho; ocorreram-me depois aquelas
anedotas que o Cerqueira Cesar contava do vigário do Braz, depois aqui o dito de Sir
Henry Thompson, e finalmente a minha própria observação; no entretanto o meu juízo
ainda não é definitivo; o fato porém é que estando ontem e hoje muito nervoso e tendo
interrompido a continência sinto-me agora mui bem, com a inteligência clara a vontade
energica. Em fisiologia, porém como em terapêutica, tanto dá-se o post hoc ergo propter
hoc 99 que não é prudente tirar conclusões sem muito exame e o fato porém fica debaixo
da atenção para ser observado. Parece que é coisa bem averiguada que os excessos em tal
caso produzem enfraquecimento da razão, memória e vontade. É muito possível, e eu
hoje julgo mui provável, que o excesso contrário produza os mesmos efeitos. As

99
. Em seguida a isto; logo causa disto. Fórmula pela qual se designava na Escolástica o erro
consistente em tomar por causa o que é apenas um antecedente no tempo. Rezende, Phrases, op.
cit., p. 595.
Primeiro Caderno 67

alucinações dos santos católicos talvez não tenham outra explicação: a verdade pois
parece ser outra: tudo deve ser feito com moderação.

Quando se quer observar e julgar com segurança qualquer destas coisas é que se avalia a
justeza da observação de Hipócrates: ars longa, vita brevis experiencia fallax. Na
verdade, é muito, muito difícil concluir do fato para a causa. Das 2 às 4 estive mui
ansioso a espera do João, o qual só apareceu às 4. Escrevi uma parte daquela fantasia
devassa que se intitula o Dr. Calmirú (código). E o episódio é o do João Maciel Parente,
passado na Itaboca, durante a viagem do vapor Pará. Nada escrevi relativo a questão do
Hansen por que entendi que para a emissão isso será inútil; que se eles nada fizerem
então haverá tempo de sobra para discutir a matéria depois se eles estão deliberados a
fazer, com o escrever agora eu não previnirei nada. Em todo caso o melhor é que a
situação se esclareça por que façam o pior e isso é preferível a este estado de incerteza ou
antes a esta espada de Democles presa por um fio e pensa constantemente sobre a cabeça
ameaçando a cada momento ferir-vos sem nunca o fazer, e sem nunca vos deixar
tranquilo. Certo que a minha esperança é que eles não passem de ameaças por que como
dizia o Harding qualquer outra coisa will not suit their purposes.100 Isso é assim exceto
se eles puderem ter uma ordem da court 101 mandando parar a subscrição por que então,
como dizia o Read, a coisa fica perdida e estragada. Vamos porém figurar o pior isto é:
eles obtém uma ordem, ou ameaçam de fazer algum mal e põe a questão no seguinte
terreno: — ou você faz isto ou nós fazemos aquilo: — Resposta = o que estou disposto a
fazer é isto; se você aceita, muito bem; se não aceita do whatever you like and I will
defend myself.102

Thursday 14th October 1880. Passei hoje igualmente um excelente dia, se bem que me
senti um pouco resfriado de manhã. Levantei-me às 8, li os jornais lavei-me almocei;
ajustei as contas do dia, quando desceu o Senhor Hunt que está morando comigo e me
referiu a uma conversa com o Watson que muito me agradou. Recebi depois um
telegrama de Mrs. Hunt, saí para responder e apanhei um pouco de frio voltei para casa e

100
. “Não servirá seus propósitos”.
101
. Ordem judiciária.
102
. “Faça o que bem entender e eu me defenderei”.
Primeiro Caderno 68

tentei escrever alguma coisa mais do que o episódio de Maciel Parente e pouco fiz por
que havendo me disposto para sair fiquei por muito tempo irresoluto. Tive a visita de um
advogado que deseja saber qual a posição dos administradores nas massas falidas
segundo as leis do Brasil, e eu lhe disse qual era, e ele pede que eu seja affidavit103 na
matéria, o que eu não duvido fazer com quanto isso me não de incomodo posterior, ou me
não traga responsabilidade. Recebi uma carta do Beaten, gerente do N. L.& B. Bank
Limited perguntando o que devia responder ao senhor Hotman que perguntava se o
Banco tinha algum claim104 contra a massa do Walker em conexão com a nota
promissória do mesmo. A tarde recebi uma carta do meu solicitor pedindo que eu lhe
fosse falar amanhã e respondi dizendo que estaria lá entre 11 e 12. Li com interesse o que
diz respeito à exposição de comidas que está tendo lugar atualmente no Agricultural Hall
e tenciono ir ver o que diz respeito aos armazéns de congelação que é uma coisa mui
curiosa, e que praticamente pode ser de muita utilidade para o Brasil. Hoje estive a
fantasiar o ter um bote e guarnição para viajar e passar na baía do Rio de Janeiro. Agora
com as estradas de ferro de São Paulo não é difícil avançar até as zonas piscosas e
desabitadas do Tietê, e talvez mesmo não seja difícil avançar até o alto Paraná. Com o
escrever as minhas viagens pelo interior do Brasil está-me novamente vindo a idéia da
vida que passei entre os 25 e os 35 anos, que ocupa na minha imaginação um espaço
aparentemente mais longo de que todo outro resto da minha existência.

Saturday 16th October 1880. Ontem depois do almoço segui a pé até a casa do meu
solicitor que não encontrei; voltei a pé fazendo algumas compras. À tarde veio o senhor
Hunt trazendo os prospectos do Rio Verde impressos nos diversos jornais diários digo
semanais, e dando-me a notícia de que em todos os diários sairiam a notícia hoje. Às 6
horas veio o meu solicitor que jantou comigo e Hunt. Passei o dia com o estômago mau, e
por isso jantei pouco. Estava aqui em Lisson Street nº 5 quando o João bateu à porta para
pedir 2shillings alegando que a mãe tinha ido para Brighton deixando a ele e as outras
crianças sem que comer. Continua a erupção miliar e a coceira que está irritando a pele
há alguns dias e que eu presumo que é um meio de que se serve a natureza para dominar

103
. Affidavit, isto é uma declaração juramentada, que o autor parece entender como
“testemunha”.
104
. Protesto legal.
Primeiro Caderno 69

o veneno que ainda me existia no sangue. À tarde estava um pouco ansioso respeito ao
êxito da emissão e matérias conexas com isso.

Saturday 16th October 1880. Hoje li em todos ou quase todos os diários o prospecto do
Rio Verde sendo que no Daily News veio um artiguinho ou um parágrafo contra no
money market article,105 que foi o único, os outros limitaram-se a dar a notícia sendo
que o Daily Chronicle fez um reclamo à favor. Fiz hoje uma experiência com acender
fogo que deu mui bom resultado, e consiste em acender o fogo no topo em vez de acendê-
lo em baixo. À uma hora segui para o Agricultural Hall em Islington para assistir a
exposição de comidas conservadas, e principalmente para ver os aparelhos de congelação
para por meio do frio preservar comida, assunto que não deixa de ser de grandíssima
importância para o Brasil. Voltei para casa, comprei o Echo, o João se foi embora e eu
jantei com o rapaz do jornal que é bem pobre companhia, mas fiz isso em falta de melhor.
Sinto-me inconfortável em casa; tornei-me muito familiar com a landlady neste sentido
que converso muito com ela; parece que o mais razoável que tenho a fazer é ausentar-me;
onde é porém que eu hei de encontrar coisa melhor do que o que eu tenho aqui? Sinto-me
hoje em muito mau humor — descrido impertinente.

Sunday 17th October 1880. Passei um dia calmo e tranquilo. O dia esteve mui escuro
com fog.106 De manhã somei as contas de despesa da casa, e deram em resultado um
pequeno engano descoberto. Depois detive-me em pensar se devia ou não ir para o Brasil
desde que estivesse concluído o Rio Verde mesmo com o risco de encontrar tempo mui
quente no Rio e não cheguei a conclusão final. A landlady esteve doente. Às 3 veio o
João. Li alguns jornais do domingo. (código). Às 6 horas veio o Waring e contou-me o
que se havia passado com o Labouchere e com outro redator o qual vive em um
cottage107 ao norte da cidade. Disse-me mais que a publicação foi promovida por Mr.
Morton Rose da Companhia unido a um corretor; que tinham solicitado do redator, que
com um artigo contra, impedisse a publicação dos prospectos e portanto a emissão. No
entretanto ele Waring me parecia mui inquieto, e concluiu que eu pedisse ao Winckworth

105
. Seção do jornal tratando do mercado de capitais.
106
. Nevoeiro, característica do clima londrino.
107
. Uma casinha.
Primeiro Caderno 70

que fizesse digo apresentasse o pedido para as ações; portanto ainda não se pode contar
com o êxito da coisa; quod volumus facile credimus, e por agora todos os reports108 que
eu tenho tido são de pessoas que volumus; nesse caso estou tão bem eu, e por isso o meu
juízo é que a coisa flutua; se assim não for que faria? Eis aqui uma pergunta que eu nunca
fiz a mim mesmo, e que é necessário fazer de modo a não passar por nem uma decepção
quando por acaso a hipótese se der.

Monday 18th October 1880. Coisa singular, a emissão do Rio Verde que eu supunha seria
acompanhada de imensa ansiedade vai correndo suavemente, e eu vou passando
tranquilo, deitado e dormindo até! Os perigos previstos são maiores vistos de longe do
que de perto; os imprevistos são quase sempre fatais. Levantei-me quietamente e em boa
saúde, comprei os diários a ver se havia alguma coisa contra; nada havia; almocei; ao
meio dia veio Mrs. Hunt e tivemos uma agradável conversa; estava ela e o Hunt ainda em
casa quando veio o Winckworth. Este mostrou-me no Daily News o desmentido dado
pelo editor e depois me disse que o Waring queria que eu adiantasse £ 2.000 para
subscrever ações, o que recusei, e ele concordou que eu fazia bem em recusar. Depois
referi-me que o Hansen sábado; ou antes o solicitor do Hansen sábado foi ao Winckworth
e perguntou: — Você tem alguma proposta a fazer-me? W. respondeu: Nenhuma — O
outro: Você está disposto a fazer proposta? Winck — Não; mas você deve fazer. O outro:
— Você está autorizado a abrir negociação sob a base de £ 15.000? Não estou e nem
apresento semelhante proposta ao Dr. Couto; o máximo que eu apresentarei a ele, e isso
mesmo sem tomar compromisso algum de que ele o aceite são £ 10.000. Com isto o
sujeito retirou-se ficando de voltar segunda-feira, o que não fez. Às 6 veio o Hunt e me
deu a grata notícia de que £250.000 estavam subscritas; estamos pois dependendo apenas
de £50.000, caso não haja algum engano na matéria, o que não presumo. Contou-me mais
que o Hansen havia escrito uma carta ao Cope dizendo a ele que ia escrever uma carta a
cada um dos diretores apontando que não estava na intenção do governo dispender a
quantia da cláusula 9ª na forma por 5 que está consignada no contrato. E quando eu soube
disso disse a mim mesmo: ele está sem armas. Por agora nada ouvi do Watson, Smith,

108
. Tradução do latim: ...;o que nós queremos, facilmente acreditamos, e por agora todos os
reports (do inglês: notícias ou relatórios) que eu tenho tido são de pessoas que querem
[corretamente: volumunt].
Primeiro Caderno 71

Walker, Stuart. Agora: onde é que eu sou mais forte aqui ou no Rio? Por agora me parece
que eu sou muito mais forte aqui. O máximo que ele pode fazer é trazer-me aqui ao poder
judiciário; lá ele me pode atacar na imprensa e fazer-me mal maior do que aqui.

19 October 1880 — Tuesday. Afinal está feito o Rio Verde. A subscrição ficou hoje em
30.000 ações, isto é 7.500 ações mais do que podemos emitir! É a vitória de 7 anos de
lutas e ansiedades. A história do dia é a seguinte: — De manhã andei a verificar preço de
açúcar; até à 1 hora estive a fazer a conta da casa; às 2 1/2 fui ao banho; de volta recebi
um telegrama do Waring dizendo-me para estar amanhã às 10 1/2 no escritório dele. —
Saí, respondi; pouco depois recebi um telegrama para pedir a autorização da Companhia
no Brasil — Segui para a Legação onde cheguei depois das 4 e combinei com o Corretor
para mandar digo a forma do telegrama. Voltei; às 5 1/4 chega o Stuart e contou-me que
o Hansen foi a ele dizendo que o obstáculo a um settlement109 comigo dependia do meu
solicitor, disse a ele que não era assim. Neste ponto chega um telegrama do Waring
dizendo que estavam subscritas só em Londres 30.000 ações; mandei chamar o telegraph
boy e dei-lhe a vista do Stuart 5shillings dizendo-lhe: Thank you my boy; this is for you
as you brought me good news.110 Com isto o Stuart ficou muito excitado e perguntou se
eu julgava que as ações obteriam prêmio para em tal caso ele faria aplicação para
algumas, e com isto retirou-se; depois que ele saiu veio o Hunt o qual me deu notícia,
digo confirmou a notícia do telegrama.

20 October 1880 Wednesday. Não pude dormir durante a noite senão depois das três
horas da madrugada, o que deu em resultado levantar tarde; esqueci-me dizer que o Hunt
seguiu para a City às 7 da noite para expedir dois telegramas para o Brasil um para o
Ministro da Agricultura, e outro para o Afonso Celso. Hoje segui para casa às 9, cozinhei
o meu almoço, e ao sair levei um grande tombo, escorregando no gelo. Fui à conferência
com o Waring onde o Cope muito nos fez rir; o objeto da conferência era dizer que
estando tomadas todas as ações ele se propunha pagar a maior parte da sua dívida em
dinheiro; ao que anuí e ficou entendido assim se bem que nada foi escrito. Despedi-me e

109
. Um acordo.
110
. O autor dá uma gorjeta ao mensageiro (telegraph boy), e diz: “Obrigado, meu filho; isto
é para você, porque me trouxe boas novas”.
Primeiro Caderno 72

saí com o Winckworth para ver o affidavit111 no caso do Visconde de Mauá; quando lá
cheguei, entrou o Mr. Kent advogado de Hansen o qual disse que se eu estivesse disposto
a dar a Hansen £12.000 ele acreditava que Hansen aceitaria porém que isso era proposta
que devia ser feita por mim; ao que o solicitor respondeu que eu nem estava disposto a
dar as £ 12.000 e nem fazer proposta. Jurei a affidavit e retirei-me chegando em casa à 1
1/2. Dei à filha do senhorio da minha casa 5 libras esterlinas como presente de anos.
Como me sentisse mui escandecido tomei um enema.112 Deitei-me, jantei e vim para
aqui onde a L. está na sua má tempera. Sinto uma estranha sensação de prazer que é
semelhante a aquelas que eu sentia quando terminei grandes e perigosas coisas, por
exemplo quando nos Dourados soube da vitória da expedição de Corumbá; quando no
seco de São Miguel soube da passagem do vapor Colombo; quando me vi a salvo em
Santa Maria velha da perigosa viagem desse vapor. No entretanto de todas as coisas que
fiz nenhuma exigiu tanta constância, inteligência, diplomacia, noites não dormidas,
ansiedades como o Rio Verde. São 7 anos de suplício; ela eleva consideravelmente a
minha fortuna a qual fica sendo o dobro, mas com que custo, e quando meus
descendentes gozarem dela não serão por certo capazes de avaliar nem de longe o quanto
isto me custou; não importa, cada homem tem um destino a cumprir neste mundo e eu
creio que tenho cumprido o meu; meu honrado e bem pai deu-me uma excelente
educação e com isso deu-me o principal instrumento da minha fortuna; eu porém a
edifiquei por mim mesmo; economizei dos meus ordenados formei um pequeno capital
de 30 contos que era o que eu possuía em 1869 quando faleceu meu pai, meti-me no
negócio deliberei viagens para o rio da Prata e dali para o Amazonas em 3 horas;
trabalhei com meu corpo como se fosse uma máquina de aço; negociei com New York
Paris e Londres, e através de perigos, fome e ansiedade, trabalhos imensos edifiquei uma
renda anual de 100 contos da qual com estas últimas operações provavelmente se elevará
a 136 contos isto é a mais de 10 contos por mês. Agora necessito consolidar isto, e de
descansar; o cérebro em que eu tenho posto toda esta pressão necessita urgentemente de
repouso; nestas últimas duas noites eu não tenho podido dormir; chegou pois o tempo de
descansar, pena de que se for adiado o cérebro recuse o repouso.

111
. Declaração juramentada.
Primeiro Caderno 73

Thursday 21 October 1880. Nem uma novidade hoje; e assim esta semana que parecia
cheia de ansiedades e tempestades passou plenamente calma. Hoje tem estado
extremamente frio; e eu estado um pouco ameaçado de cólica. Escrevi uma carta ao
Conde d’Eu comunicando o sucesso do Rio Verde. Rabisquei uma comunicação ao
Buarque dizendo que the subscription amounted to over three times the sum asked
for.113 À tarde veio o senhor Hunt que confirmou as agradáveis notícias. De manhã veio
o Francelino que levou £5. Rabisquei duas contrariedades no negócio do Hansen e
tenciono ver o solicitor amanhã.

Friday the 22 October 1880. Enfim! Terça feira à noite despachei para o Rio um
telegrama pedindo a aprovação da Companhia. Aconteceu que depois disso a minha
orelha esquerda começou a arder, pelo que fiquei mui ansioso pois este era um dos pontos
que eu temia; quarta feira à noite eu estava ainda mui ansioso; quinta a mesma coisa; hoje
ainda fiquei mais ansioso quando o Waring me veio em casa e me comunicou que alguns
dos diretores estavam cheios de medo por que alguns sujeitos começaram a cantar nos
ouvidos deles que as concessões estavam ilegais, e outras que tais. Nesse estado passei
até as duas horas da tarde. Vamos porém narrar o dia. De manhã estava me vestindo para
o almoço quando chegou o Waring e depois de me haver contado o que ficou narrado
acima me pediu instantemente que fosse à casa dele para atender a um meeting de
Diretores; almocei pois às carreiras, tomei um cab e cheguei lá às 10 1/2 o que era ainda
muito cedo; chegaram depois um senhor Stuart e um senhor Wolf vice-presidente com os
quais não me simpatizei muito; e nem um ponto foi levantado no qual a minha opinião
pudesse ser útil, e eu realmente fiquei em dúvida qual fosse a vista do Waring pedindo a
minha presença lá; em resumo porém a minha impressão geral foi má, porque começa a
me parecer que a matéria do pagamento não seria coisa tão simples e fácil como eu estava
pensando. Pouco importa, eu me assegurei tanto quanto era possível, e agora é o caso de
dizer se: enough for the day is the toil of the day.114 Depois de sair do Waring fui ao
Winckworth para ter a minha defesa ou antes contradição do caso do Hansen, o que fiz
aditando três pontos importantes, feito o que segui para a estação de St. James onde me

112
. Injeção de medicamentos ou de alimentos pelo reto; clister.
113
. “A subscrição chegou a três vezes a quantia inicialmente solicitada”.
Primeiro Caderno 74

embarquei e cheguei a Baker Street às 2 ou quase às duas; quando vinha vindo para casa
dizia a mim mesmo: como eu seria feliz se encontrasse em casa o telegrama anunciando
que a companhia estava autorizada a funcionar no Império; abri a porta vi sobre a mesa
um envelope amarelo, entrei para o escritório abri era o telegrama desejado, e rezava
assim: Couto de Magalhães — 202 Marylebone Road — Companhia autorizada — Rio
de Janeiro 21 outubro 1880. Celso. Saí imediatamente para a estação telegráfica e dirigi o
seguinte ao Waring: Received from solicitor Rio — following telegramme: Decree
authorising Compa. signed yesterday evening.115 Feito isto tirei um longo fôlego do
fundo do peito e disse ah!!! consumatum est so far.116

Saturday the 23 October 1880. Esta passada a semana suposta da ansiedade. Hoje foi um
dia de trabalho e passou assim: — De manhã vesti-me almocei e segui para o escritório
do Waring, onde fui apresentado ao banqueiro Hopkinson, ao corretor Mr. Trotar, ao
Secretário. Gostei do Hopkinson etc; não penso porém que ganhei muito com o estar
metido com eles; agora porém eu devo tratar de satisfazer ao Waring.

Sunday 24 October 1880. Passei o dia trabalhando, a saber escrevi uma carta ao Afonso
de 4 páginas, e uma ao meu solicitor relativa ao Hansen. Vindo porém da minha casa para
aqui eu perguntei a mim mesmo se não seria melhor pagar ao tal sujeito por mais injusta
que seja a sua exigência do que estar a martirizar-me com semelhante maçada? Certo que
com o demorar eu o martirizo; o que lucro porém com isso? Tenho mais do que aquilo
que necessito por que razão me hei de deixar embaraçar por estas questões? A razão é a
seguinte: no momento em que eles pensarem que eu cedo uma polegada hão de querer
um palmo, e se eu ceder ainda um palmo hão de querer uma braça e assim por diante.
Não sei se o meu solicitor foi sábio em dizer que me remeteria a carta; eu preferia que ele
dissesse que me não mandava a carta, e depois mandasse. Agora o que é melhor fazer?

114
. Citaçã incompleta do ditado popular, algo como “basta para o dia o trabalho do dia”.
115
. “Recebi do procurador no Rio — seguinte telegrama: decreto autorizando a companhia
assinado ontem à noite”.
116
. Está tudo acabado, so far, isto é, “até agora”. São João, cap. XIX, v. 30 in: Rezende,
Phrases, op. cit., p. 102.
Primeiro Caderno 75

Penso que o melhor é dizer à ele que eu não pago nem um farthing,117 e que ele pode
tomar suas medidas em conformidade.

25 de Outubro de 1880 Monday. Executei o plano e escrevi uma carta ao Hansen na qual
em resumo lhe disse que tendo intentado ação judicial contra mim era nos tribunais que
ele me havia compelido a discutir se ele havia sido útil a mim e a empresa ou se tinha
sido o maior obstáculo que eu havia encontrado para realizá-la, que em quanto juízo não
fosse passado na ação ele não tinha o direito de pedir-me coisa alguma. Minha previsão é
que ele ficará abatido e que entrará em minha razoável composição mais depressa do que
por qualquer outro meio. Veremos se é assim, e se for sê-lo-á anotado em lugar oportuno
deste livro. Refletindo porém ainda agora penso que fiz bem; melhor é saber o que ele
está disposto e pode fazer do que ter constantemente suspensa sobre a cabeça a espada de
Damocles que ele teve a arte de prender sobre a minha, e com a qual tanto me tem
martirizado. Certamente que uma liga de todos eles é uma coisa perigosa; mas eles não se
ligarão, Watson tem a promessa do Waring, ou pensa ter e portanto nada faz, Stuart tem a
minha, e com ela parece tranquilo, Walker está em má posição e tem a inteligência bem
clara para ver que ele não ganhará ação judicial se a intentar contra mim; a liga não é pois
provável; era porém uma verdadeira e temível conspiração de velhacos; se as coisas não
fossem feitas com a prontidão com que foram, se em vez de nos dirigirmos ao público
nos dirigíssemos a um sindicato eu teria sido forçado à submeter-me ao que eles me quis
essem impor, e quanto a isso me amargaria muito. Como é porém tudo isto terminará? De
pois de muita velhacada pode terminar por eu dar dinheiro; em ordem porém a fazê-lo
com segurança é necessário cansá-los primeiro, diminuir as pretensões deles, como fez o
sultão no negócio do Dulcigno por que depois eles receberão com prazer aquilo que eu
lhes der, ao passo que agora, em quanto as pretensões são altas e em quanto eles
presumem que eu tenho medo deles eles subirão a cifra; que cifra os contentará?
Provavelmente entre 4 e 6. Em todo o caso o que eu tenho de expender não excede a 150;
tendo de receber 850 ficarão líquidas 700.

O dia hoje passou-se assim: Despachei a carta do Hansen que escrevi antes do almoço;
fui ao solicitor mostrei a ele a carta que ele aprovou; entreguei à ele o telegrama para

117
. Um quarto de penny, uma insignificância.
Primeiro Caderno 76

remeter ao Cope; dali saí pelo embankment118, até Watter digo Blackfriars bridge,119
engraxei as botinas aí; em seguida dirigi-me para Farrington e quando ia entrar em um
carro de segunda-classe, já depois de aberta a porta a vista do Capitão Renie sentado mui
confortavelmente no mesmo carro; eu encontraria e viajaria mais confortavelmente com o
tinhoso do que com o ilustre sea layer120 como lhe chama o Stuart — voltei face e corri
e apanhei um carro de terceiraa-classe em que me meti. Chegando a Baker Street quando
eu pensei que o maldito se tinha deixado ficar n’alguma das estações anteriores, ei-lo que
surge como Asmodeo121 de dentro da garrafa encantada. Subi as escadas ligeiro como
uma flecha, e em vez de tomar para o lado da minha casa tomei para o oposto e tão
perturbado estava que só dei pelo engano quando estava ao pé da St. John’s Wood
Station; quando cheguei em casa olhei pela rótula pois não estava certo de me ter visto
livre do maçante; estava banhado em suor apesar do frio que fazia. A noite dei à L. 1 £
para tirar o retrato por que ela estava mui impaciente para isso.

Tuesday the 26 October 1880. Foi hoje um dia calmo se bem que cheio de ansiedade por
causa do Hansen. (código). Nada escrevi; passei o dia pensando no tal grupo e não tenho
razão por que em última análise eles me foram úteis, e se contentassem com uma soma
razoável o melhor é satisfazê-los, e dar a coisa por acabada. Porém a carta ao Hansen era
uma necessidade; o que pode ele fazer? Escrever para o Brasil comunicando os termos do
contrato; isso pode ser muito mau antes de eu receber o dinheiro; mas depois de recebê-
los praticamente pouco importa. O Hansen porém não é mais forte do que o alemão
Tropman nem do que o Walker por conseguinte o provável é que a minha carta o traga ao
sentimento exato de sua posição; e depois dela a possibilidade é que a negociação se
tornará muito mais fácil suponhamos porém que se não torna; é muito melhor em todo
caso ter de pagar a ele com demora do que já. Que garantia tenho eu, com um tratante
desse jaez que, recebido o dinheiro, ele não aparecerá fazendo o mesmo que dantes e de

118
. A calçada ao longo do rio Tâmisa.
119
. O autor ia escrever Waterloo Bridge, que ele corrige por Blackfriars Bridge, pontes sobre
o rio Tâmisa.
120
. Não fica claro o significado desta expressão, obviamente referência jocosa ao capitão.
Talvez se trate de sea liar, grafado foneticamente, que significa mentiroso do mar.
121
Asmodeu: Demônio vencido por Tobias. Livro de Tobias, Livros Históricos, Antigo
Testamento, Bíblia Sagrada.
Primeiro Caderno 77

mais a mais com o dinheiro? A posição que eu tomei de ajustar as pretensões deles foi a
única razoável; veja-se que posição triunfante teriam eles agora se tivessem a um tempo
ação contra Waring e contra mim. Em fim, não resistir era além de ato de covardia, coisa
muito perigosa, dos caminhos que me foram deixados eu tomei em tudo e por tudo o
melhor e agora que tenho a Companhia aprovada, eles são a bem dizer impotentes.

Ao sair para aqui à tarde recebi uma carta do Waring pedindo-me para estar lá amanhã às
11. Paguei as contas da casa. Tem chovido.

Wednesday 27th October 1880. Dia calmo; não pensei muito no Hansen. Às 10,25 segui
para [ ] do Waring onde contei a ele o que se havia passado com referência à carta, ele
riu-se muito. Tivemos uma conversação de cerca de 3 horas respeito ao Brasil,
perguntando-me ele respeito a suas finanças, produção forma de riqueza, e outras coisas
análogas. Depois dirigiu ele a conversação sobre o como faria a estrada de ferro lá, os
perigos e riscos que havia na matéria. Entre outras observações fez ele a seguinte:
suponha que (código) qual será minha posição. A minha conversa com ele foi sumamente
tola por minha parte: entre outras coisas eu disse à ele que eu era (código). Tolice; pouco
importa porém, isto nada influi: há um único ponto importante e esse ponto é rekó
semiára ariré amú amú ce arãma 122. O certo é que em resumo sinto-me displicente; não
posso bem avaliar todas as razões e motivos, mas sinto-me displicente — por que?

Agora vejamos a questão Hansen: ele pode começar uma ação contra a companhia pela
forma por que a Companhia vai dispender a soma da cláusula 9ª do Decreto nº 5683 —
certo que isto seria uma lembrança diabólica, e que certamente me colocaria em uma
posição difícil. Essa foi porém a ameaça dele; suponhamos que ele a realiza, escreve as
cartas e que a diretoria em consequência se opõe ao pagamento? Eu tenho a garantia, isto
é o Waring fica obrigado a pagar-me os 10%; o que não é garantia; porém a minha
resposta é a seguinte: se você não quer pagar pois essa verba pague por outra qualquer.

Thursday 28 October 1880. Nada de novo do Hansen, e se até segunda-feira eu nada


ouvir dele é sinal que a carta deu-lhe juízo. No entretanto ele e o grupo foram o objeto
constante ou quase constante de meu pensamento, pelo receio de que uma liga deles
Primeiro Caderno 78

acompanhada por uma carta protestando contra a despesa da verba do 9º traga como
consequência a demora do meu pagamento e alguma complicação; paciência; já agora
necessário é levar as coisas pelo caminho em que elas estão; não há outro remédio. Às 3
horas chovia muito fui para o escritório do Waring para me encontrar com os diretores
encontrei lá os dois diretores Smith e Hopkinson, e depois vejo o Presidente única figura
a quem o Waring presta consideração; ouvi ler umas cartas fazendo objeção ao prospecto
que se fora comigo teriam me incomodado muito, mas aqueles homens tomaram aquilo
tão indiferentemente e tão em forma de negócio que foi uma lição. Li ao Waring e este
aos diretores a minha carta ao Conde d’Eu e a resposta dele o que ele julgou muito
satisfatória e o Cope repetiu very satisfactory indeed123. Ontem houve grande
tempestade aqui; e hoje choveu muito, quando voltei da casa do Waring e quando para lá
fui usei de cabs o que me custou 4shillings e o cocheiro da volta parecendo bêbado; dei
um grande presente à landlady por ser o aniversário do dia em que entrei para casa dela.

Friday 29 October 1880. O dia hoje foi menos inquieto, se bem que ainda me não sinto
seguro ainda contra as passadas dos tratantes; do Hansen até hoje não tenho novas e, para
contraminá-lo, dei não menor passada do que ir ao Watson ao qual não encontrei nem o
Smith deixando-lhes porém o meu cartão; em seguida fui ao Sales com quem conversei
longamente; prometi à ele apresentação ao Waring e recomendação para lugar de diretor
da M. R.R.124 Voltei às 3 chegando em casa respondi uma carta do Fred Twyman, e
depois assentei de escrever ao Watson para não deixar a imaginação dele e do Smith
trabalhando; o que disse à ele consta do meu copiador e eu entendo que foi conveniente
tanto ir como escrever a carta; amanhã terá ela produzido o desejado efeito e pois se até a
tarde o Hansen não tiver feito suas combinações ele estará perdido.

Vindo para casa pela Lisson Street, tive uma cólica produzida por pimentas, e faz hoje
exatamente um ano que tive moléstia idêntica. Um senhor Grant exigiu da Lily £ 5,5 —
que ela não deve pelo que escrevi ao sujeito uma carta que ele podia fazer o que quisesse
que a L. não pagava.

122
. ...[u]riku semiara ariré amu-amu ixé rama. Tradução: ... ele tem a sua caça, depois ele
me dá outros.
123
. De fato, muito satisfatório.
Primeiro Caderno 79

Saturday 30 October 1880. Nada de novo durante o dia de hoje; menos ansiedade ainda.
Fui ao meu solicitor para saber se ele tinha ouvido alguma coisa do solicitor do Hansen, e
ele me disse que nada tinha ouvido, mas que havia apresentado a defesa da qual me deu a
cópia, assim como do statement of claim125; o dia era claro mui frio e o céu azul —
depois de dar instruções relativas ao meu pagamento, digo para requisitar do Cope meu
pagamento, saí a pé, atravessei a ponte de Westminster, gozei daquela bela e poética vista
do rio Tâmisa; assentei-me em um dos bancos do cais e pus-me a ler acusação e defesa e
não deixei de rir ao contemplar a impotência dos sujeitos agora. No entretanto eles não
são agora importantes para o mal pelo menos enquanto eu não houver recebido o
pagamento. Quando voltei à casa o Watson tinha me vindo visitar e pedido uma
entrevista para segunda-feira. Antes do jantar saí comprei um par de botinas para mim
outro para o João, e um casaco para mim e outro para ele.

Sunday 31 October 1880. Passei um dia de trabalho escrevendo uma sinopse das passadas
do Hansen para mostrar ao Watson, com quem tenho de estar amanhã à uma hora da
tarde. Vale muito a pena pagar £ and get rid of it.126 Agora vamos ver o quanto está
melhorada a posição: eles podiam 1º atrapalhar a emissão, 2º atrapalhar que a Companhia
fosse aprovada; qualquer dos dois seriam golpes mortais; hoje o máximo que podem
fazer é demorar o meu pagamento, e isso mesmo é dificílimo, e é só o Hansen que pode
fazer. Que fazer pois? Esperar resistindo, por que qualquer passo para eles, servirá apenas
para aumentar-lhes as pretensões deles. No entretanto até o presente me parece que
manobrei bem, a carta de Paris ao Walker, e a última carta ao Hansen são duas peças de
mão de mestre. Foi tão bem mui conveniente ter a matéria dos estudos settled127 com o
Hunt.

No ano passado por este tempo eis as questões que estavam de pé: — estudos em poder
do Oliveira e a possibilidade de alguma manobra dele, Hansen pretendendo 20 ou 23.000
pelas plantas, sem tomar as responsabilidade dos estudos, o tempo da Companhia senão

124
. Provavelmente em referência à companhia de estrada de ferro, Minas Railroad.
125
. Declaração de protesto.
126.
Do inglês: “e livrar-se da coisa”.
127
. Settled, isto é, resolvido em forma de acordo.
Primeiro Caderno 80

extinto pelo menos dúvidas levantadas à respeito e não solvidas. As concessões presas no
safe deposit Cº.128 Tudo isso está removido, e ainda assim eu estou com medo. No
entretanto uma reclamação levantada pela velha Companhia é talvez coisa mais séria do
que uma reclamação do Hansen e certamente que vale a pena dispender alguma coisa
para evitá-la; a seriedade da coisa é apenas enquanto eu não recebo o meu pagamento,
por que recebido ele não há possibilidade de perigo senão de me fazer as £ 1.500.

Thursday the 1st November 1880. Segunda-feira 1º de novembro fiz 43 anos de idade e
passei trabalhando, por que recebi carta do Walker que entendi mui conveniente
responder; planejei muitas respostas e não fiquei satisfeito com nenhuma; às 10 horas
veio o Waring e me convidou para um jantar em casa dele. Ao meio dia veio o Watson,
digo à uma, e a conversa com ele hábil como foi teve o inconveniente de talvez criar
esperanças que não podiam ser satisfeitas sobre tudo o que foi repetido no nome do
Waring foi grande inconveniente pois que a conversa com o Waring foi toda
confidencial.

Tuesday 2 November 1880. Escrevi a resposta ao Walker que foi uma peça magistral, e
remeti a eles por intermédio do solicitor que a aprovou. Com isto consumi o dia.

Wednesday 3 November 1880. Fui ao solicitor que me disse que a ação com o Hansen
não tendo a menor probabilidade de ir para diante não pode custar mais de 200 ou 300 £;
mas ainda que vá, não há menor possibilidade de que custe incluindo tudo que isso custe
senão 800 £. À noite, às 8 fui ao jantar em casa do Waring. Eis a descrição — tocado o
sino e aberta a porta três criadas que, uma apontou para o banco onde por a ulster129,
chapéu etc; feito o que indicou a escada; nisto chegou Mrs. Hunt, que eu deixei subir
adiante, indo em seguida; em cima na primeira sala estava um empregado do escritório
que anunciou alto — General Couto de Magalhães — na entrada da sala fui recebido
junto a Mrs. Waring que me disse as prosas banais da apresentação feito o que caminhei
para ao pé do fogo onde me entretive um pouco com Mrs. Hunt; pouco depois veio o
Waring que me introduziu ao cunhado [e à] mulher do irmão da mulher dele, e reconheci
a introdução por um profundo bem da minha cabeça, o que fiz à imitação de um outro

128
. Safe deposit, caixa forte de um banco.
129
. Ulster, um sobretudo.
Primeiro Caderno 81

que vi apresentado ao Mrs. Hunt. Com poucos momentos de conversa seguimos para o
jantar levando eu pelo braço a Sra. que me havia sido apresentada: como a escada era de
caracol tive de passá-la do braço direito para o esquerdo a fim de dar-lhe a parte mais
larga dos degraus. Na mesa ela tomou à direita guiando-me para o nosso assento que era
o em seguida ao do Ministro dos Estados Unidos, digo inglês nos Estados Unidos. À
minha direita assentava-se a filha do Vice-Presidente da Companhia Wolf. Essa era a
meu ver a rainha da festa, por que além de formosa falava espanhol, francês, alemão e,
tinha muitas informações relativas à linguística. Terminado o jantar as senhoras
retiraram-se e ficaram os homens bebendo porém com muita moderação, pois só havia na
mesa uma garrafa de vinho. Conversou-se pois por cerca de meia hora feito o que
subimos, tomando cada homem conta de uma senhora no salão. Eu desejava que me
tocasse a bela loura minha vizinha da direita do jantar, o que não aconteceu, a dona da
casa porém veio assentar-se ao pé de mim e trava uma conversação que terminou por eu
lhe ensinar como acender o fogo sem fumaça. Quase às 11 um dos hóspedes retirou-se, e
eu levantei-me quase imediatamente digo mal a loura foi quem passou por mim e disse-
me em espanhol: — despedindo-se: buenas noches senhor = ao que respondi buenas
noches senhorita. Levantei-me imediatamente e a dona da casa perguntou-me se já ia
indo, ao que disse que sim apertando-lhe a mão. Desci e enquanto punha a ulster desceu a
Mrs. Hunt que me perguntou se eu iria com ela por que todos eles tinham carruagem
menos eu, ao que respondi que não, o Waring me perguntou se eu tomaria um cab, ao que
respondi que ia à uma casa em Oxford Street, ao que o Waring tornou, toma um cab? Não
— do you walk, yes 130. Às 11 1/2 cheguei em casa, tirei a casaca e vim para Lisson
Street. Esqueci-me narrar que na terça a Lily saiu para visitar a mãe, e que voltou às 11
da noite tendo eu a esperado até essa hora.

Thursday 4th November 1880 (hoje). Nada de novo de manhã. Passei parte do dia lendo
minha correspondência do Rio Verde, e nisso estava quando apareceu a Lily com as
provas da fotografia dela e em muito mau humor. Fez-me minutar uma carta para ela.
Retirou-se. Veio o João que me disse que os irmãos estavam com fome e pelo que dei-lhe
2 shillings e mandei comprar pão e peixe para levar para eles; parte do tempo passei

130
. Você vai a pé? Sim.
Primeiro Caderno 82

apanhando pulgas (triste divertimento). Às 4 da tarde recebi uma carta do Walker dizendo
que lhe tinham dito que eu prometera um por cento: a isto respondi que não o tendo visto
nem ele nem alguém por ele desde que havia começado a negociação Waring eu desejava
ser informado de quem é que ele ouviu que eu havia feito tal promessa; despachei a carta
tirei uma cópia que mandei ao solicitor e fui jantar. Acabado o jantar vim para aqui e
encontrei a L de mau humor. Escrevi todas estas notas que termino 10 minutos para as
10. O dia está mui frio porém durante ele o sol esteve brilhante.

Friday 5th November 1880. Dia pouco importante, mas a ansiedade já vai passando.
Levantei-me às 8, tomei a minha xícara de café na taverna segui para casa, não encontrei
carta alguma, diverti-me em ler a minha correspondência respeito ao Rio Verde. Depois
escrevi uma carta ao Watson perguntando se era certo que ele havia escrito uma carta
para o Rio que o compromete; o fim dessa carta é para ele ver que eu não estou disposto a
deixar que eles circulem no Brasil quanta peta131 quiserem, e mais para que ele veja que
se quer haver algum dinheiro é necessário comportar-se. Escrevi ao meu solicitor pedindo
à ele que remetesse ao Watson uma cópia da carta que dirigi ao Walker por que estando
este de viagem me disse que a ia entregar ao Stuart, e eu não creio que o Stuart a mostre
ao Watson. Jantei com o João e depois do jantar recebi uma carta do Waring dizendo
necessitar de me falar e que me veria às 9 1/2 da manhã. Estive deitado depois do jantar
gozando da calma resultante do desentanglemento132 dos tais tratantes que em última
análise não vale nada desde que eu tenha o pagamento, o qual pagamento estou
esperando que seja feito até sábado 21 do corrente — e depois de feito peguem-lhe com
um trapo quente, como dizia meu finado pai.

Tive a noite passada um curioso sonho, e há muito que não sonho, desde que tomei os
alcalinos. O sonho foi: oyepé kurumi’ wasu tapayuna opoú se (código) e quase (código).
Coisa singular: — hoje durante o dia estive me lembrando daquele rapazinho que era
escrevente do Adolfo de Barros, e que orekó oyepé (código) osúakanga 133. Estou

131
. Mentira.
132
. Provavelmente disentanglement, desembaraço.
133
. O sonho foi: yepé kurumi-wasu tapayuna opoú (código) e quase (código) ... uriku yepé
(código) usuakanga. Tradução: O sonho foi: um rapaz negro pegava (código) e quase (código).
Primeiro Caderno 83

ficando com saudades do Brasil e a minha solitária ilha, e as noites quietas que eu ali
passei, e a poesia daquele clima intertropical formam alguma coisa peculiar que é
impossível obter aqui em Londres com todas as incontáveis vantagens desta enorme terra.

Saturday 6 November 1880. Nada de novo. Tive hoje uma conversa do Waring que me
parece que me quer pump.134

À tarde uma carta do Hunt que me impressionou mal; é preciso cautela com o sujeito.
Devo antecedê-lo ou não? Em todo caso devo por-me pronto para isso, e para isso só
tenho 20 dias a nada mais.

[Na última página do diário]

Mandar o Francelino seguir para o Pará conforme ele pede.

Contas de investimentos e despesas.

Coisa singular: hoje durante o dia estive me lembrando d’aquele rapazinho que era escrevente do
Adolfo de Barros, e que tinha (código) uma cabeça grande.
134
. Sondar.
Verso do Caderno

Regra 4 de Outubro 1880. Ponha os 3 primeiros dedos espichados no vão dos 3 prenda a
pena descansando a mão nos topes do 4º e 5º punho levantado, chato da pena virado para
a extremidade dos 3 dedos, e escreves depressa e inteligível.

9 de outubro de 1880. Para escrever com este tipo de letra ponha-se o papel perpendicular
à mesa, o punho voltado para o lado direito de modo a que a mão forme um arco com o
antebraço assim: [desenho da mão]. Faça a mão descansar no lado direito das falanges
dos dedos nº 4 e 5. O dedo grande e todos os outros mais ou menos estendidos.

[glosa de ponta cabeça no pé da página: James Pool 39 Spencer Street].

[glosa em cima da página:

Dias 105 Langley Road — 52 Welleck St.

Cavendish Square]

Addresses
Costa — Senhor dos Passos nº 190
Winckworth 31 Abingdon Street Westminster

[glosa acima: 128 Holland Road Kensington]


Glyn Mills Currie & Cº 67 Lombard Street E. C.
Ministro em Paris Rue Teheran nº 17

Hunt 23 Victoria Road — Kensington

Conde dEu 27 Rue de la Faisanderie — Passy — Paris

Dias 11 Lanark Villas, Maida Valle [sic]

C. Waring — 10 Victoria Chambers — Westminster

Dr Tencham 13 Belgrave Road — Victoria Station

Salles 6 Great Winchester Street Buildings.

Wild Broad Sanctuary — Westminster.


Verso do Caderno 85

Russel — at Millossowich & Cº — 9 Bury Court

9 Leinster Square — Bays Water W.

Ste Mary Axe E. C. de 12 a 1.

[corroído]saght Finigan M.P.135 5 Kings Bench Walk.

The Temple E. C.

at 23 Prestonville Road (Brighton).

nº 8 Gloucester Road (South Kensigton).

Southwick St 8 (Hyde Park)

Vasconcelos (Paris — 39 Rua Valois — Palais Royal).

Assis — Lavradio 162 —

W 4 Copthal Buildings (Moorgate Street)

17B Grosvenor Square Waring private residence.

3 horas e 10º da noite de 22 para 23 de Agosto 80.

Providenciar respeito à dívida do Capitão Antônio Gomes Pinheiro ao Capitão


Constâncio Dias Martins escrevendo a respeito ao Major Caetano Nunes da Silva em
Goiás.

Providenciar para que o Banco do Brasil pague a meu credito os dividendos das minhas
ações.

Ordem a Companhia S. Paulo e Rio entregar ao Banco do Brazil as ações subescritas.

Dia 1 de Agosto de 1880

Coisas que necessitam de ser providenciadas

1º Escrever ao Afonso respeito ao Rio Verde [frase riscada no original]. Feito à 8 de


Agosto 1880.

2º Providenciar os arranjos com a Companhia do Amazonas respeito do Tocantins.

135
. M. P. é Member of Parliament, integrante do parlamento inglês.
Verso do Caderno 86

3º Providenciar respeito Parkins ou General Joiner.

4º Providenciar respeito Maria Amélia.

5º Providenciar respeito do investimento do dinheiro que tenho em C/C no Banco do


Brasil [frase riscada no original]. Feito pelo B. do Brasil à 12 de Julho recebi a
comunicação à 5 de Agosto 1880.

6º Providenciar respeito a pagamento da décima da minha casa no Rio digo em Niterói.

Providenciar respeito ao pagamento dos juros da divida de 6:000$ ao B. do B. da Fazenda


Cafezal.

8 de Agosto de 1880

Devo seguir para o Rio já ou devo estar aqui até outubro.

Devo ficar aqui; é provável que o Rio Verde se faça; aqui eu acautelo melhor o negócio
do Tocantins fazendo primeiro contrato com a Companhia do Amazonas.

8 de Agosto providenciar para abertura de crédito na Army and Navy.

Trousseau

Extracto do tratamento da dispepsia: 22 agosto 1880

Regimen

1º O melhor regimen de dieta é aquele que o doente por própria experiência julga tal. Não
obstante: as sopas leves, gordas ou magras, as carnes brancas, peixe, os legumes não
farinados, convém aos estômagos inflamados, quando não são contra indicados. Convém
insistir nas bebidas fermentadas em pequena quantidade, vinho e algumas vezes cerveja
com água; regularidade nas horas da comida, mastigação completa, ausência de exercício
com o estômago cheio, exercícios moderados quando vazio, ou passado o primeiro
período da digestão que é de cerca de 2 horas — são coisas mui importantes.

Hipócrates aforismo 357 pag. 159 — Devem preferir-se os alimentos e bebidas


agradáveis, ainda que menos sãs, a outras melhores porém não tão agradaveis aos
enfermos.

Tratamento
Verso do Caderno 87

Diástese136 herpética

3º pag. 47. A flegmasia do estômago ou intestino pode depender de uma diástese


herpética, por ela ser entretida. A metástase da pele sobre a mucosa é evidente em casos
de tosse etc. e não o vemos em casos de flegmasia pulmonar, gástricas, genésicas etc.

Eméticos. Quando a dispepsia é acompanhada de qualquer sintoma de flegmasia pelo


lado do estômago convém aplicar o emético para principiar; ele atua como tópico, pags.
49 e 50.

A propósito de eméticos e purgativos Hipócrates conclui alguns aforismos mui


pertinentes, 373 pag. 164 =: No verão é preferível o vomitório; no inverno o purgante.
Antes e durante os calores grandes (canícula) as evacuações são penosas (374). As
pessoas delicadas que vomitam com facilidade devem preferir o vomitório ao purgante,
tomando muita cautela no inverno (378), os de constituição mediana devem purgar
tomando cautela no verão (379). É mui útil purgar os melancólicos. Fastio, boca amarga,
contrações, como mordedura na boca do estômago, vertigens, com ausência de febre
indicam a necessidade de vomitivos (386 pag. 168) — Ferimentos no ventre, peso nos
joelhos, dores lombares, ausência de febre indicam a necessidade de purgante (387). As
varizes, um fluxo de sangue pelas vias hemorróidas curam a loucura (Celso 122 p.350).
Espirro para o soluço? Idem 123.

Purgativos. O calomelano, o hydragyrum cum creta, a blue pill e outras preparações


mercuriais afetam favoravelmente as flegmasias gástricas. Vomitivos e purgativos devem
ser empregados com parcimônia para não criar uma inflamação pior do que aquela que se
está tratando de extinguir Trousseau, pag 50 — 3º v.

Outros modificantes. Aos eméticos e purgativos se devem substituir outros agentes que
com o obrarem menos rapidamente, não são contudo menos enérgicos e estes são o
subnitrato de bismuto, e a craie preparada. Nas moléstias cutâneas, no intertrigo137 dos
meninos por exemplo o Dr. Lasege os aplicava com grande vantagem em ajudas; de 5 à
10 gramas de craie misturada com igual quantidade de subnitrato de bismuto. A

136
. Fermento ou outra substância produzido por células vivas, por seres vivos microscópicos
ou por glândulas e que decompõe os alimentos.
Verso do Caderno 88

flegmasia da membrana mucosa gástrica cedendo aos vomitivos purgantes e


modificadores as secreções do estômago tornão-se normais. Casos há em que é
necessário auxiliá-la com alcalinos e ácidos.

Ácidos. pag. 51 — 3º. Ácidos, especialmente ácido clorídrico, são mui convenientes nas
dispepsias ligadas às gastrites crônicas (clorídrico). Muitas vezes alcalis e ácidos
sucedem em indivíduos diferentes quando aliás os casos e circunstâncias parecem ser as
mesmas. Nas afeções crônicas, quando o doente tem sido submetido ao tratamento
tópico, e conserva com tudo digestões difíceis e laboriosas ora as águas minerais
alcalinas; ora os ácidos (mais raramente estes) são de proveito. Pelas experiências de
Claude Bernard se sabe que os alcalis aumentam ao passo que os ácidos diminuem a
secreção do suco gástrico.138 Opium e belladona na bullimia.

Opium e Bismuth. Graves dizia que as secreções anômalas do suco gástrico eram
convenientemente modificadas (Claude Bernard Cours de Medicine au College de
France. Liquides de l'organisme, Paris, 1859) por agentes que atuavam no sistema
nervoso; a formula dele era:

Extrato gomoso tebaico 5 miligramas iguais a 1/10 de

de grão

Subnitrato de bismuto 12 grãos

Magnésia 12 grãos

Trousseau pag. 57.

1 dose antes das duas principais comidas.

Dispepsia flatulenta nervosa histérica

Os alcalinos prestam alguns serviços empregados por 4, 5 ou 6 dias e seguidos depois de


bebidas amargas. A fórmula é a seguinte:

Bicarbonato de soda 1 grama

137
. Assaduras.
138
. Bernard (1813-1878), médico experimental.
Verso do Caderno 89

Craie preparée 2 gramas

Magnésia 1 grama

Divida em três partes, uma antes de cada comida; a terceira no momento de deitar
ajuntando que a cada manhã o doente toma uma infusão de quascia amarga139 que se
prepara assim:

Quascia amara 2 gramas

Deixe infuso, em uma xícara de chá, 12 horas. Ou então: Tome o alcalino por 4, 5 ou 6
dias e depois siga com a quassia. Veja Trousseau 3º pag. 18 e 58.

Nestes casos tem aplicação tão bem o vinho de quina, que se dá desde que o doente tenha
posto no estômago algum pouco de comida.

Flatus. Nestes casos Anisette de Hollande, liqueur jaune de la Grande Chartreuse; infusão
de Cadiane, d’anis d’ordinnaire; prepara-se com isso papéis de pós grosseiros de qualquer
destas coisas — dose 50 centigramas; a infusão é tomada imediatamente depois da
comida. As águas Nieder Brown, Forbach (quase águas do mar) são as convenientes. As
águas de Seltzer naturais são mui vantajosas. A hidroterapia e os banhos de mar são
igualmente vantajosos neste caso.

Figado. Quando há concomitantemente com a dispepsia uma flegmasia do fígado as


águas cujo princípio mineralizador é o bicarbonato de soda como as de Carlsbad Vichy
Vals são as melhores. (Diário: sonho que dou um jantar em que está o Afonso, sonho
obscuro noite de 24 para 25).

Fenômenos físicos que acompanham o estado de Nervosismo:

Segundo as observações feitas aqui ultimamente o nervosismo é acompanhado senão


precedido da diferença de sensação na perna e braço esquerdo. Não me é mui fácil
descrever isso a que eu chamo diferença de sensação se bem que eu a sinto perfeitamente
bem. A melhor idéia que eu posso dar é que eu sinto esta parte do corpo ao passo que não
sinto a outra; ora como muito bem diz Trousseau = quando você sente uma parte
qualquer do corpo e não as outras sinal é que alguma coisa aí não está direita porque a

139
. Planta medicinal de origem sul-americana, utilizada para males do estômago.
Verso do Caderno 90

simples sensação prova de que a correlação ou harmonia desapareceu. Porém o que é


certo é que é muito difícil dominar o espírito quando o corpo está debaixo de um tal
estado. Esta tarde ainda eu estava debaixo desta sensação; janto; começa uma boa
digestão todos os fenômenos se moderam, e aparece a tranquilidade. Há certamente muito
e muito que aprender ainda em medicina, e ao passo que qualquer pessoa começa a
estudar com sinceridade os fenômenos que convencionalmente se chamam psíquicos se
convence que eles dependem de um modo muito direto daquilo que convencionalmente
também se assentou de chamar matéria. Digo convencionalmente por que nós não
conhecemos nem em uma nem outra coisa; o que sentimos é o que percebemos sem ver
nem apalpar, eis a única base da distinção. Vamos porém ao que estava sendo descrito.
Será real o tal estado de nervosismo que se manifesta principalmente por fenômenos
psíquicos dependa de um estado físico? Ou é o estado do espírito que influi, e modifica o
corpo? Parece que em uns casos é o espírito que modifica o corpo e parece que em outros
casos é o corpo que modifica o espírito. Assim sobre a influência de terror a secreção da
urina se aumenta desproporcionalmente e a sua ansiedade decresce na mesma razão. Tive
disto um exemplo há dias quando li o Trousseau respeito ao que ele chama le petit
mal140 . Mas o que é que torna o sentimento do medo possível, ou pelo menos o que é
que o exagera? Para os materialistas não pode ser outra coisa senão uma alteração da
matéria.

(A proteção que o inglês dá ao incapaz) — mulher, menino; cão, cavalo.

No caso de ir para o Rio há as seguintes coisas a serem resolvidas:

1ª — Watson Hansen etc.

140
. Petit-mal: Forma de epilepsia caracterizada por breve supressão da consciência com
movimentos convulsivos raros e ausentes. Grande Enciclopédia Delta-Larrousse. Rio de Janeiro,
Ed. Delta, 1970. Note-se que a epilepsia associava-se, neste momento à histeria, a “doença” mais
comentada dos finais do XIX e que estava sendo profusamente descrita, em todas as suas mazelas
físicas e morais, a partir de bases médicas cientificistas e eugênicas. O caráter polimórfico e
teatral desta “doença”, transformada em espetáculo para o público burguês e educado da virada
do século, influenciou profundamente a imaginação da época, inclusive a de Couto que acredita
possuir muitos dos sintomas da histeria e do nervosismo, tais como contratura musculares – note-
se aqui a descrição de seus sintomas de perda da sensibilidade da metade do corpo – confusão
mental e moral, susgestionabilidade, convulsões e perda de consciência, todos igualmente
próximos às crises de epilepsia. Ruth Harris, Assassinato e Loucura. Medicina, leis e sociedade
no fin de siècle. Rio de Janeiro, Rocco, 1993.
Verso do Caderno 91

2ª — Dinheiro com o Glyn Mills Currie & Cia.

3ª — João e Lily.

4ª — Que bagagem levar ou deixar?

5ª — Francelino.

6ª — Que coisas comprar nas stores para mandar levar? — Waring.

Quanto a primeira dar instruções ao solicitor para settle the matter, ou fait [sic] it over141
— dentro do limite de £.

2º Deixar o dinheiro como está passando para conta do solicitor £ 500; talvez mandar
comprar Brasileiros de 4 1/2%.

3º Mandar a Lily para a casa da mãe providenciar para que £4 lhe sejam pagas pelo meu
solicitor mensalmente.

4º Levar o João e mandá-lo embora de volta.

141
. Settle the matter, resolver o assunto, ou fait it over, ou seja, fight over it, brigar.
Diário de Sonhos

31 January 1881. Li ultimamente o tratado de sonhos de Hipócrates142, que me não


pareceu grande coisa, e como a matéria me excita a curiosidade porque sonhar é trabalhar
com o cérebro quando o cérebro deve de estar repousando aqui continuo a lançar o diário
dos que tenho tido digo, dos que terei.

De 30 para 31 de Janeiro: Jantei ontem um pouco mais do que de costume, a digestão foi
boa, amanheci forte no entretanto passei quase toda noite sonhando. Pessoas que me
apareceram em sonhos: o Barbosa caboclo — o Benedito Marcondes Homem de Mello e
o irmão me dando almoço; o Sargento hoje alferes Espírito Santo de Goiás, o Chiquinho
Caiapó do Araguaia, o Capitão José Manoel; uma Companhia de soldados ingleses; um
crioulo quase como o Brás mas que não era o Brás e finalmente Mrs. Clench. Coisas que
vi: — como um quintal fechado e o fecho era de leiva e parece que eu havia comprado o
tal quintal pois quando eu ia por ele adentro dizia a mim mesmo estes jesuítas foram
sempre mui comodistas para terem aqui dentro de Londres uma coisa tão cômoda e cheia
de bosque, mistério e sombra como esta residência, e o caminho que eu seguia era aí de
nascente para poente. Depois na cena do Benedito ele me deu almoço e esse era de
galinha. Na do Sargento Espírito Santo era um grande quartel como aquele do terceiro de
artilharia do Pará, e os meus trens estavam em um quarto quando os soldados chegaram,
e eu me mudei então para outro, e o Chiquinho me veio buscar o meu pente e escova de
cabelo a pedido do Cap. José Manoel e como eu os não quisesse emprestar ele os
pretendia tomar.

Sonhei toda a noite acordei muitas vezes; não me parece que haja sido mau modo do
estômago porque já estou com bastante apetite para o almoço que desejo que seja sólido e
abundante. O dia está hoje esplêndido e parece um dia de verão.

Adendo ao Sonho: Vi igualmente o Buarque de Macedo como ministro, acompanhado do


irmão do Adolfo de Barros, e o dito Buarque mui enfunado com a posição de ministro, e

142
. Em referência à obra de Hipócrates, 460AC-437AC, médico grego, Du Régime IV ou
Des Rêves. Paris, Belles Lettres, 1967, pp. 97 a 109.
Diário de Sonhos 93

o Cavalcante fez o seguinte comentário a propósito de uma ordem maçante do Buarque:


— Que quer meu amigo, eu necessito do meu ordenado e aposentadoria, e não tenho
remédio senão aturar!

De 31 de Janeiro a 1º de Fevereiro. Pessoas: meus dois irmãos Antônio e Antonino. Um


fogo do qual haviam sido tiradas formigas. Umas árvores, e eu atracado do galho de uma
delas, ameaçado de quebrar, e muitos outros que tendo sido muito vagos já se não
conservam na memória. Amanheci menos forte hoje.

De 1º para 2 de Fevereiro. Não tomei notas mesmo porque os sonhos não foram de
grande impressão, digo não deixaram memória clara do que consistiram.

De 2 para 3: Pessoas: — um crioulo como o César porém moço; o Joaquim Nabuco. O tal
crioulo creio me deu parte de não sei que despesa e eu estava envolvido em uma grande
quantidade de roupa suja abrindo a carteira quando apareceu o Nabuco o que muito me
contrariou. Este sonho é muito esquisito porque nenhum destes indivíduos está no hábito
de me passar pela lembrança.

De 3 para 4: Sonhei que estava vindo para Londres, e que ia caindo de uma canoa que
estava sobre um viaduto. Depois vi o trem do caminho de ferro de Southampton muito
apinhado de gente e dirigindo-se para Londres. Apareceram no sonho diversos indivíduos
que me escaparam da memória.

Noite de 6 para 7 de Fevereiro de 1881: Tive diversos sonhos curiosos os quais aliás não
deixaram muita impressão. As personagens que neles apareceram foram o Barão Homem
de Mello, o Lafaiete, o Washington, irmão dele, e depois uma grande porção de pardais
mudando seus ninhos! Com o Homem de Mello a conversa era respeito a uma
conferência que eu tinha de dar creio que em presença do Imperador com Washington era
uma conversa relativa a segundo casamento dele.

Noite de 7 para 8 de Fevereiro de 1881: Diversas pessoas vistas em sonho, mas a que foi
vista mais claramente foi o Maneco do Araguaia o qual veio por um morro abaixo em um
velocípede de madeira pintado de vermelho, digo de verde, e o caminho era em morro de
terra vermelha de Leste para poente, porém o plano era voltado para o Sul. Depois à noite
ou ao anoitecer no mesmo caminho ele veio e no fundo do caminho era mata densa e
Diário de Sonhos 94

corria um córrego; e ele seguiu, e eu não quis seguir porque receava o assalto de uma
onça.

De 8 para 9 de Fevereiro de 1881: Passei a noite toda sonhando e os sonhos não foram
tão confusos como nas noites antecedentes — os personagens que apareceram nos sonhos
foram o velho Cabo Dionísio distribuindo mudas de plantas — O Chico João vindo me
mostrar inoportunamente uma página do Dicionário pequeno do Padre Vieira quando eu
estava deitado ao sul, de barriga para o ar gozando da leitura de um livro que eu
explicava ao crioulo Brás e estávamos no alto de um morro coroado por um edifício
semelhante à cozinha do seminário de Mariana.

Depois uma dissertação minha a propósito de maçonaria e contra ela, e o Tomás deitado
me protestou que me denunciaria ao dito estabelecimento, e que eu dali em diante não
poderia viver nele.

Finalmente eu a cavalo seguindo para uma caçada de perdiz, passando em um rio que
corria no fundo de duas barrancas de talco roxo, e o caminho seguia depois costa arriba
pelo morro no rumo de leste para oeste inclinando para o norte.

E depois num alto uma porção de rapazes caboclos oferecendo se para se assentar na
minha guarnição e eu dizendo a eles que não haveria fartura de comida um, deles
observou que quanto a isso estava satisfeito pois havia visto os barris de cachaça se
arrumando e encargando nos quartos do rancho; e o lugar desta cena parece que era no
alto do Bacalhau em Goiás.

Noite de 10 para 11: Diversos e curiosos sonhos se bem que não fossem dos que deixam
impressão mui viva — a saber:

Uma conversa com aquele padre de S. Cristóvão para ele comprar de sociedade comigo
uma casa, e era um domínio coberto de belas matas, mas sem grande abundância de água;
mais ou menos como a minha fazenda em Juiz de Fora, porém voltado ao inverso da
minha dita fazenda isto é olhando de Sul para Norte, e o defeito que eu encontrava no tal
lugar era não haver grande abundância de água; e haviam duas grandes e velhas casas
como fazendas.
Diário de Sonhos 95

Depois minha alma transportou-se para uma capoeira velha, onde o terreno era rico, e de
onde brotavam numeroso côcos de acuri que faziam o solo rachar, e a pessoa que comigo
estava ia cortando alguns deles para deixar a terra rachar livremente.

Depois ainda minha alma transportou-se à um cerrado denso, coberto de flores brancas
como acontece com a guabirobeiras no tempo da primavera, e era um lugar como o
Coxipó, se bem que não tão estéril como ele, isto é como o Coxipó e com estes sonhos
amanheci alegre e bem disposto apesar de haver havido uma queda no preço dos
argentinos.

Noite de 11 para 12: Os sonhos desta noite tiveram de particular que as personagens que
nele apareceram não são pessoas que aparecem mui comumente na muita imaginação, e
foram o Vicente Ferreira, morto em 1864, isto é há 17 anos, o Danim, Mateus,
Guimarães, Morais e outros do Pará.

Os sonhos foram os seguintes: três rapazes iam passando cada um com uma manguara na
mão, e eu que desejava a companhia do Vicente disse a ele: Vamos tarrafear e os outros
disseram: — Vai Vicente, e ele deitou a manguara no chão mas preparando-se para me
acompanhar me disse: eu ia para a festa da Penha, eu que não queria perturbar-lhe o
divertimento disse a ele — pois vai; não faltará ocasião para tarrafearmos mas a festa só
tem lugar uma vez por ano, e eu não desejo que a perca; ele seguiu com os três, que no
sonho eram meus conhecidos, mas que agora depois de acordar eu me não lembro mais
quem eles sejam, e eles seguiam de Sul para Norte.

Uma casa com varanda voltada para o sul e dois pés de coqueiro plantados, aquele ano
carregados com fruta e eu mui admirado de que em tão pouco tempo tivessem crescido e
dado fruta; e subindo no sótão vi que os ditos pés de coqueiro já alcançavam o telhado, e
descendo depois um tapuio me notou, apontando para os côcos derribados: capital e
excelente água a destes côcos; e dois dos côcos os maiores, verdes, grandes e bonitos
tinham de seguir para o Danim, e eu quis suspender a ordem de seguirem os tais côcos
para ele, pois me parecia injusto que ele que não plantou os côcos tivesse logo os dois
primeiros melhores porém, como já estavam cortados e em via de seguir eu fiquei com
vergonha de dar a contra-ordem e deixei-os seguir.
Diário de Sonhos 96

Depois à noite eu deitado nos baixos de uma casa dormindo (código) vi que estava
deitado ao meu lado e eu perguntei a ele: eu já (código)? E ele me respondeu: Você
(código) porém mui ligeiro e logo depois a tirou, se hx. ou não, não sei.

E eu estava deitado de leste para oeste.

Nota: O dia hoje está formosíssimo; geou à noite porém o sol agora está brilhante como
em um formosíssimo dia de verão, e eu com a cabeça cheia de sonhos e de ideais, e
planejando ir ao meu solicitor e depois a Westminster Bridge a fim de ver o que há por ali
de novo.

Noto que estou escrevendo de trás para diante com a pena paralela as 2ª e 1ª falanges do
polegar e com o dedo nº 3 um pouco mais encolhido do que eu usava o que me esta
parecendo que me dá o jeito necessário para escrever a tão desejada letra inglesa; a pena é
colocada de modo a pegar o papel pela esquerda.

Segunda-Feira 14 de Fevereiro de 1881 de 13 para 14: Sonhei com meu irmão Antonino.

E depois sonhei que estava dando um almoço ao Waring de couves e bacalhau, e que a
preta Joana lá de casa veio do quintal com umas couves na mão e era de noite e como era
ela que trazia a candeia na mão eu e o Waring a fomos seguindo até o quarto de minha
mãe que era um quarto mui enfumaçado alguma coisa de semelhante ao saguão do
palácio de Goiás sem ser o dito palácio e eu a repreendi pela estupidez de nos haver
levado até o quarto de minha mãe sem nos prevenir que ela minha mãe lá se achava. A
casa era voltada de este para oeste com frente para o norte e o quintal ficava ao sul, e
morro arriba, ficando a casa no pendor do morro que olhava para o lado do sul.

O resultado prático é que o sonho me deu vontade de almoçar bacalhau, o que fiz
chegando aqui.

Devo notar o seguinte que muitas coisas nós fazemos na nossa vida inspirados por sonhos
e fazemos inconscientemente porque a lembrança do sonho se dissipa, deixando somente
a impressão e quando nós fazemos a coisa já é movido pelo sentimento e não pela
lembrança das coisas que vimos em sonho!
Diário de Sonhos 97

Tuesday the 14 para 15 February 1881: Noite de 14 para 15 de Fevereiro. Acordei às 2 da


madrugada e como custasse a conciliar o sono tomei nota dos seguintes sonhos antes da
meia noite:

Um salão iluminado voltado de leste para oeste, uma porção de soldados, e entre eles o
Dionísio, o Pedro; o Cabo Gama conversando comigo e chamando minha atenção para o
como o Dionísio era um fino espécime de tapuio. Depois Cururu143 em dois salões um
voltado de leste para oeste e outro, mais de sul para norte e eu no do leste para oeste me
admirando que havendo paulistas na dança não cantassem canções de S. Paulo — Depois
um edifício como o seminário de Mariana ou Academia Militar, eu e o mano Antônio
conversando mui familiarmente com a gente dali, e ouvindo como um tiro de espingarda
e o Antônio me perguntando o que seria, respondi que era o Antonino que se estava
divertindo no quintal.

Depois uma passagem por baixo de um arco como em Londres, e eu seguindo de oeste
para leste e entro em um grande salão onde estavam diversos colegas de Academia, e
passo entre o João Francisco e o José Hipólito. Depois eu sentado no fundo de um vale, e
um charco e ervaçal em frente eu voltado para o norte ce ra. ipieuína, sant. e com desejo
ardente oyum, ae Valentim rique pupé144 e depois eu dizia a mim mesmo que isso não
podia ser mas que podia ser o Adão soldado do 20.

(Depois de dormir de novo)

Depois um crioulo meu em companhia de um mulatinho em mangas de camisa e


simplório e ambos de 15 anos de idade em minha companhia, passamos um bar com
compoteiras com açúcar, e saímos em um lago mui grande coberto de muito lodo verde, e
nos banhamos os três nesse lago. Ixe oyuputar om. curiboca, tapayuna; anahen oiko
tapayuna sak. opirari uana i pupé 145. No cantinho do lago um reguinho de água mui

143
. Dança indígena ou dança de roda em que se canta ao desafio.
144
. ... ce ra[kanga] ipiauía, sant[asawa] e com desejo ardente uyum[içawa], aé Valentim
[a]rik[u] pupé e ...Tradução: ....eu voltado para o norte [com] meu galho enfurecido e com
desejo ardente de estar escondido dentro do Valentim, ...
145
. Ixé aputári am[enu] kuribuca, tapayuna; anhee uyku tapayuna sa[kunha] upiráriã i
pupé. Tradução: Eu quero fazer sexo com um mestiço, com um preto; eu falo que o membro viril
do preto foi tirado de dentro.
Diário de Sonhos 98

clara e transparente e cheio de peixinhos e entre estes dois lambaris querendo comer
outros peixinhos, que gemiam e faziam barulho quando os lambaris davam rabanadas
entre eles; e a parte do reguinho onde os lambaris estavam achava-se coberta com folhas
de uva. Este lago era alguma coisa semelhante a Welch Harp. O lago era alguma coisa
semelhante também àquele outro lago acima da Welch Harp. O reguinho correndo de
leste para oeste.

Depois, caminho conhecido de sul para norte apertado entre um muro de casas e árvores,
e uma pinguela arruinada sobre um esgoto; e o Andrade Pinto depois de passar
balançando a dita pinguela para mostrar o quanto estava arruinada; eu passei e estirei-me
depois do outro lado com os pés voltados para o sul, e tive de passar por uma sucessão de
esteios de que o velho Bahia não havia tirado os pregos.

Depois ainda eu montado na minha mula, a Águia, e ela fazendo muita força para mover
um carro em um longo caminho coberto de terra solta vermelha e depois ao chegar em
uma ponte com pranchas soltas eu saltei no chão.

De 15 para 16: Minha chegada ao Rio, partida para Mato Grosso, o novo Bispo
concluindo uma descompostura ao clima, o Bispo do Pará ao pé de mim.

O presidente do Mato Grosso subindo uma ladeira por orgulho me não quis
comprimentar primeiro e como eu também o não comprimenta-se ele depois me
comprimentou, e parecia o Bandeira de Mello gordo.

Depois uma perdido em um lugar que havia como que um arraial no meio da montanha
que ficava à esquerda e eu vinha vindo de oeste para leste depois acertamos o caminho
seguindo ao longo de um corgo seco.

Depois margeando um lago pelo arco de sul à norte, escorreguei nos capins que
ocultavam um rego e borrei a calça branca.

Observação: Neste sonho não havia sensação de prazer nem de amor porém houve o
sentimento de orgulho ofendido quando o Bandeira me não cumprimentou.

O Zeferino já é morto, e no sonho eu não tinha-o como tal. O meu arrieiro me ameaçou
de me dar um tiro com o seu revólver e eu não tive sensação de medo que seria natural
em um fato desses.
Diário de Sonhos 99

De 16 para 17: Não tomei nota.

De 17 para 18: Um castelo rústico em França, uma torre no meio do terreiro; os edifícios
e o terreiro de leste para oeste, e a porteira de entrada do lado sul, eu olhando para o norte
e à esquerda não distante um rio como o Araguaia correndo com águas barrentas de sul
para norte. Sonho depois com o Leonardo e era um outro lugar. Iche chaputari om. ahe;
ahe oputari om. ich146 .

Observação:

Sensação de prazer vendo o rústico castelo francês; o rio, e água. Sensação de grande
alegria pelo encontro com o Leonardo. Esse já é falecido; mas no sonho eu não tinha
consciência disso.

De 18 para 19: Passei toda a noite sonhando. Os personagens que apareceram no sonho
conhecidas foram: o Timóteo de Goiás, o Capitolino do Rio, e o Herman da Silva de
Londres. Personagens desconhecidos: uma porção de crioulos, tendo tido lugar já a
emancipação e os ditos acomodados em um crioulo home147 no alto de uma ladeira
correndo a rua de oeste para leste, semelhante à rua da Forca em S. Paulo ou a do alto da
cadeia em Goiás, e depois um bando de índios e um deles filho de um poderoso capitão, e
com uma placa de cobre, e ele falou-me em tupi; eu custei a responder por fim porém o
pude fazer dizendo a ele em tupy: — Inche renhenhen nhengatú, ao que ele respondeu
muito alegre Hem Hem 148.

Com o Timóteo a cena foi a seguinte: iche aput. Reté amé ahe; ce rac. Sant. Ahé oputá
oyum. x. p. e seguimos até um vale úmido de água, e segui depois costa a riba por um
morro, um caminho no meio da mata densa, e no sonho o caminho me era mui conhecido,

146
. Ixé aputári am[enu] aé; aé uputári um[enu] ixé. Tradução: Eu quero fazer sexo com ele,
e ele comigo.
147
. Casa.
148
. – Indé renhee nheengatu [?], .... ee, ee. Tradução: Tu falas nheengatu? Ao que ele
respondeu muito alegre sim, sim!
Diário de Sonhos 100

porém não o reconheço depois de acordado; o Timóteo figurava muito mais moço do que
ele não é atualmente e depois perdi me dele, e inti an. Ahe149 .

Capitolino: No sonho oiko (código) pupé apohu sak. san. ipuxuna sakanga pupé apohu
ramé sak. iche ce rori catu. Aramé iche onhahen ixupe: chaput. chan. ndo x.pu — Ahe
osuachara?: Icatú 150; antes porém vamos fumar. Procurando o fumo e o papel para os
cigarros acordei. (Observação: O Capitolino eu o conheci em 1877, a ultima vez que o vi
foi em 1877).

Herman da Silva: Este eu o conheci em Londres. No sonho segui eu em passeio com ele.
Ariré ya oiko oipé casa pupé; iche cha ame oiko rete ahe (código) ce rak. oyumuquau i
barriga pupé; ariré iche tirei-a para fora, e rasguei a calça de algodão americano branco
ame. arama itimãn pupé. Iche amahen oiko akanga ce rak opuxuna putera icatú, porém
inti apauana 151.

Observação: Os crioulos que vi eram mais ou menos do tipo tapuio do Brás.

As sensações de todos estes sonhos foram todos tão reais como se as cenas pelas quais eu
passei neles fossem reais.

O primeiro episódio não é coisa que eu possa bem definir. Oferece porém de notável o
seguinte, que fiz um longo passeio inteiramente desproporcionado ao tempo em que o
sonho teve lugar. Timóteo, Capitolino e Herman da Silva figuram todos em uma noite, e

149
. ... ixé aput[ári] reté ame[nu] ce rak[anga] [u]santa[çaua] aé oputa[ri] ayum[içawa]
x[ikuara] p ... ti an[hee] aé. Tradução: Eu quero muito fazer sexo com ele, meu galho preto
endurecido quer estar escondido no ânus p. ... , e não falei com ele.
150
. Capitolino: No sonho uyku (código) pupé upuu sak[anga] sant[tasawa] ipixuna sakanga
pupé apuu ramé sak[anga] ixé ce ruri katu. Aramé ixé anhee i supé: ixé aputari am[amã]
[i]nd[é] se’pu – Aé usuaxara?: Ikatu; antes porém vamos fumar. Tradução: Capitolino: No sonho
ele pegava {código) dentro o galho preto e endurecido enquanto eu também pegava seu galho
dentro e estava muito alegre. Então falei para ele: quero que amarres minha mão. – [O que] ele
respondeu?: Está bem, antes porém vamos fumar.
151
. Ariré iayku yepé casa pupé; ixé amee uyku reté aé (código) ce’rak[anga] uyumukau i
barriga pupé; ariré ixé tirei-a para fora, e rasguei a calça de algodão americano branco
ame[nu] arama itimã pupé. Ixé amee uyku akanga ce rak[anga] upixuna putera ikatu, porém ti
apauã.Tradução: Herman da Silva: Este eu o conheci em Londres. No sonho segui em um passeio
com ele. Depois estávamos numa casa; dava com meu galho (código) em sua barriga; depois
tirei-o para fora, e rasguei a calça de algodão americano branco para fazer sexo em sua perna.
Dei a cabeça de meu galho preto, [ele] chupa bem, porém não acabei.
Diário de Sonhos 101

no entretanto que eu os conheci ou vi pela ultima vez a saber; o Capitolino em 1877, e o


Herman em 1880, isto são reproduzidas em uma só noite sensações e noções que o
cérebro recebeu no intervalo de 7 anos.

Sunday the 27th February 1881: Não tenho registrado sonhos estes dias, não sei porque
pouco tenho sonhado, como também porque tenho estado mui preocupado com a questão
de aprender a escrever por um modo mais fácil do que aquele com que eu o fazia.

De ontem para hoje sonhei com o Aarão aquele meu escravo que vendi em Cuiabá com o
Luís, e com aquele negro árabe que conheci em West India Road — ele estava deitado
em umas lapas, com as costas viradas para fora. Ahe oyumuquau ana oiko i (código) e
pitera cati man iche cha mahen sak. sant. turussú opixuna alumiando, e o rego fendido e
as chapeletas proeminentes como em um desenho que tenho. Ahe oiko iche voltada para
traz e o que avistava era somente a cabeça negra luzente e calva. Ahe (código) oiko152 .

Monday the 28th February 1881: Muitos sonhos durante a noite, coincidindo com um
jantar de peru. No sonho um rio de águas mui claras no fundo de grandes e altíssimas
barrancas, e eu com medo de cair dentro. Depois uma porção de gente e entre elas o
padre Siqueira Mendes que feitas as pazes comigo, me oferecia uma porção de rolão
embrulhado em um pedaço de jornal; depois em uma igreja como a do Carmo (Convento
do Pará) ele mandava tocar campainha para fingir que estava dizendo missa, e como
alguém lhe exprobrasse o engano, ele gritou para baixo ao sacristão dizendo — toca a
campainha, meu filho, que assim me ensinou meu mestre. Depois era a minha eleição de
senador, e eu incomodado porque o Danim e o Malcher a não esposaram, e eu estava em
uma estrada nova aberta por entre um cerrado espesso; como alguns do Araguaia,
correndo costa arriba por um outeiro, de leste à oeste, curvando um pouco para o sul,
alguma coisa como a estrada do Embirussú e no topo dela a cidade. Depois alguém
sugeriu a lembrança que o meio mais simples de resolver a dificuldade da eleição
senatorial era nomear Dr. Cintra presidente. Noto: que o Dr. Cintra é falecido há muitos

152
. Aé uyumukuauã uyku ii (código) e pitera katu umaã ixé amee sak[anga] sant[asawa]
turuçu upixuna ... Aé uyku ixé ....Aé (código) uyku. Tradução: Ele está na água enlouquecido
(código) e chupa bem, vê-me dar o galho duro, grande, preto alumiando, e o rego fendido e as
chapeletas proeminentes como em um desenho que tenho. Ele está comigo, voltado para traz e o
que eu avistava era somente a cabeça negra luzente e calva. Ele está (código).
Diário de Sonhos 102

anos, e que no sonho apesar de eu reconhecê-lo perfeitamente me não lembrava que ele
era morto.

De 28 de fevereiro para hoje 1º de março: Ontem janta abundante às 5 1\2. À noite


muitos sonhos; agradáveis na primeira parte da noite e desagradáveis das 3 da madrugada
em diante. Será isto indício que a digestão se fez melhor no estômago do que no duodeno,
ou em qualquer outra parte do intestino.

Resta a observar: se os sonhos desagradáveis, quando aparecem se coincidem sempre


com a segunda parte da noite, porque eu tenho a idéia de que os incômodos que eu sofro
no tubo digestivo são provenientes de qualquer desarranjo situado na parte inferior do
intestino, provavelmente no ileon.

Agora quanto aos sonhos:

O primeiro sonho foi com uma rapariga de grande cabeleira, ama de uma mocinha de 12
ou 13 anos que me deixou impressão amorosa.

O segundo foi com uma pescaria de rede em um rio de águas límpidas, que me deixou
aquela impressão agradável que em geral sempre me deixaram as pescarias e os rios de
águas formosas.

2ª parte da noite — desagradáveis — um caixão com defunto.

Uma casa velha a qual eu subi e da qual estava em iminente perigo de cair.

Observações:

1. Na primeira parte do sonho noto que iche cha assassau ce po cunhã mueu kb.(código)
sui, cheirei e senti o cheiro de tix.(código) portanto não é exato o que alguns
observadores tem dito, isto é; que não se sente cheiro em sonhos 153.

A menina estava dormindo levantou-se vestida e saindo do quarto me disse — Sakajana o


que eu entendi que significava adeus ou boas noites.

153
. ... ixé assassau ce’pu kunhã kambi suí, ... Tradução: Na primeira parte do sonho noto
que passei a mão no seio da mulher, cherei e senti cheiro de tix. Portanto não é exato o que
alguns observadores tem dito, isto é, que não se sente cheiros em sonhos.
Diário de Sonhos 103

2. Não é a primeira vez que em sonhos uma língua estranha me é falada e que eu entendo
perfeitamente o sentido dela; até o presente porém a língua que mais frequentemente me
impressionou no sono foi o tupi, ou o latim não me recordo de sonho algum em que se
tenha falado em uma língua cujo sentido eu não entenderia acordado, como certo não
havia de entender a palavra sakajana.

3. Observo mais que quando acordo de noite me parece que levei todo tempo sonhando;
se tomo nota a noite conservo muito mais número de fatos do que quando deixo para
tomar nota de manhã e quando deixo de tomar nota de manhã para fazê-lo mais tarde, o
número de fatos é ainda muito menor. E mais — a memória do fato desaparece quase
sempre porém a impressão produzida quase sempre subsiste.

Daqui resulta uma muito importante consequência e é:

Muitas vezes de manhã cedo estamos tristes, indispostos alegres, desejando viajar, com
projetos e idéias que de todo estavam ausentes de nossa cabeça na véspera; ignoramos
como é que essas impressões se produziram no dito cérebro; para mim elas são o mais
das vezes resultados de sonhos que não conservamos memória, mas cuja sensação
subsiste: é assim que a primeira idéia que eu tive de ir para Mato Grosso durante a guerra
do Paraguai me veio em um sonho que me figurava com o Dr. Danim ambos a cavalo em
um campo discorrendo a propósito das probabilidades de vitória ou derrota. Devo notar
que a minha ida ao Mato Grosso determinou por assim dizer o resto da minha existência,
e tudo na minha dita vida se encadeia àquilo tão profundamente que o meu destino seria
totalmente outro se eu não houvesse feito a dita viagem.

Nota sobre o tempo: o dia hoje esta brilhantíssimo, e a temperatura baixa da manhã esta
agora agradável. Ontem vi em snow drops154 as primeiras flores da atual primavera.

De 11 para 12 de Março de 1881. Hoje às 7 horas da manhã me apareceu o Luís com uma
facada debaixo do peito (em sonho) e me disse que o Waring havia sido assassinado, e
isto me fez acordar.

4 agosto 81. Prossigo no diário de sonhos

Às 3 a digestão foi má até a urina era mui pouca densa de manhã.


Diário de Sonhos 104

Sonhos de 3 para 4: sonhei caçadas e entre outras pessoas com o Paula Sousa.

Diário de coisas pequenas a fazer:

31 de janeiro de 1886

Pagar as contas do mês e ver o que rendem as minhas casas para fazer orçamento.

Escrever hoje carta de fiança do Abrão e liquidar a conta do mesmo.

Responder a carta ao meu advogado em Londres relativa as despesas com a Lily.

Comprar a astronomia popular do Flamarion.

Escrever ao Dr. Assis no Pará — Farinha c/c, posição da Maria dos Anjos.

Falar amanhã ao senhor Silvestre relativamente a colocar Benedito pequeno em


lugar onde ele aprenda.

Tirar as conclusões do artigo relativo a felicidade da vida, ou prudência no


manejo da mesma, isto é da vida.

Quando for a cidade comprar fumo.

Colocar na Caixa Econômica a quantia de 130$ pertencente ao Abrahão Pires.

Mandar comprar selos de cheques.

Pago ao Abrão 130$000 para ajuste de conta.

São Paulo 7 de Fevereiro de 1886

Mandar fazer as despesas [riscado no original].

Fazer o plano das viagens com demora, e das viagens rápidas.

Nota sobre o desconto dos senhores Lofgren e do Benedito [riscado no original].

Estudar se convém ou não fazer viagem percorrendo lugares de província de


Minas.

Extratos jornais científicos.

154
. Flocos de neve.
Diário de Sonhos 105

Formular plano geral para saúde do corpo e saúde do espirito diminuindo o fumar
que toma muito tempo.

Ver a roupa para o [ilegível; riscado no original].

Tirar o meu retrato a óleo pelo Almeida Jr.

Nos extratos de jornais científicos ver o que diz respeito ao tratado elementar de
instrumentos de reflexão na Nature.

16 de Fevereiro de 87. Estrada de Ferro do Norte — Viagem para Caxambu ou Lambari


— Partida pelo expresso às 6:40 que chega à uma hora da tarde no Cruzeiro onde há hotel
sofrível — Saí do Cruzeiro no dia seguinte ao meio dia devendo tomar bilhete para
Contendas, procurando aí o hotel do Senhor Pedro que é quem arranja animais para o
Lambari. Neste o melhor hotel é o do Mello com ducha etc diária 4$000.

Estrada Inglesa — O expresso sai às 6 da manhã — A bagagem pode ir na véspera para a


estação para seguir no dia seguinte — e eu seguir nesse mesmo dia às 10 ou às 3 da tarde
com tanto que não seja domingo porque no domingo só há expresso às 6 da manhã.

Aos 18 de Fev. dei ordem para o Senhor Winckworth me mandar 3 livros a saber:

Our Eyes and how to preserve them.155

Hours with 3 inch telescope.156

Webs Celestial objects.157

Astronomia : luneta ordinária 0.110 diâmetro da objetiva — Flamarion Terras do céu


pag. 33.

Vieira de Carvalho é procurador do Barão [ileg.] de Oliveira — Fazenda Aguirre — S.


Carlos — com produção de 8 a 10.000 com terrenos para plantar estação do Visconde do
Rio Claro a 1 légua mais ou menos — mais de 40 escravos.

155
. “Nossos olhos e como preservá-los”.
156
. “Passando horas com um telescópio de três polegadas”.
157
. “Objetos celestiais”.
Diário de Sonhos 106

Extratos de Medicina

Londres, 13th January 1881

Dificuldade da observação médica — Vita brevis, ars longa, occasio proceps, experiencia
fallax, judicium dificile, 1º Ap 158.

Definição: É a arte de curar pelos contrários, a arte de curar pelo mesmo método porque
espontaneamente cura a natureza.

Regra geral: As moléstias provenientes de repleção curam-se por evacuação, as de


evacuação por repleção. Outras se curam igualmente por seu contrário, 2º

Evacuações: É útil expelir do corpo por purgativo os humores tais como saíram por si
mesmos. Convém porém coibir toda e qualquer evacuação que não seja desta espécie, 3º Os
humores devem ser artificialmente expelidos por aquela mesma saída pela qual a natureza
naturalmente expele.

Hemorróides ou varizes que sobrevém aos alienados curam sua alienação, 9.

Evacuações biliosas cessão se sobrevém surdez. Se esta existe, e sobrevém diarréia ela se
cura.

Ventre os que em jovens tem o ventre relaxado ficam ressequidos com a idade; os que o
tem ressequidos o contrário, 44.

Humidades nos orgãos genitais Quibus nares natura humidiores. A genitura humidios
imperfectius savi sunt; quibus naro contraria perfectius, 49.159

Ventre solto Os que de moços tem o ventre lasso são mais sadios do que os que o tem
ressequidos, 50.

158
. Ver nota 36, acima.
159
. Embora citado entre aforismos de Hipócrates não foi este localizado nem em sua versão em
português acima citada, nem na versão francesa, mais completa. Hippocrates, Aphorismes, trad. do
grego por M. de Mercy, Paris, Crochard, 1811, do qual consta não apenas do texto grego como de
sua versão latina, e dos comentários de Celso e Galeno. A tradução da passagem não pode ser
realizada devido à inúmeros erros na composição da frase, no entanto foi possível interpretá-la da
seguinte maneira: Quanto aos que têm narinas muito úmidas e que são por nascimento mais
imperfeitos; são saudáveis. O contrário acontece com o nariz mais perfeito (não úmido).
Diário de Sonhos 107

Cura aos doidos: Insanientibus se varises ant hemorroides supervenirent insanios solutis
fit.160

Brônquios — nas asmas Trous. 11-474.161 Ao passo que o sujeito à catarros brônquicos
gostam dos pequenos quartos, os asmáticos desejam sempre o ar livre.

A asma é uma moléstia geral que se manifesta por dispenéia, corisas especiais, catarros,
ataques de gota articular, áreas [sic], reumatismo, e hemorróidas; é principalmente uma
moléstia dos climas intertropicais.

As afeções toráxicas são comparativamente raras nos climas equatoriais onde predominam
as do tubo digestivo, fígado e outros acessórios.

3º Depois do ataque da dispenéia asmática o indivíduo cobra seu gozo da perfeita saúde; na
dispenéia proveniente de uma lesão orgânica do coração ou dos grossos vasos, a opressão
nunca é absolutamente ausente.

A tosse produz mecanicamente o enfisema.

5º O catarro do asmático é globulosos como uma pérola do tamanho de um grão de


cheneviz — não tem mistura de ar pardo, escuro ou negrisente.

Laennec 162 os chamava catarro seco, 480.

A asma pode existir sem catarro, p. 481.

7º É uma afeção nervosa, pag. 482.

Todas as solaneas163 viscosas fumadas em cigarro servem para isso; entre elas: datura,
tabaco, jusquiana, beladona, estramônio, pag. 491.

Broncorréia — nela o catarro é fétido 1o. p. 676.

Laringite estridulosa: é uma moléstia da infância 1o. 636.

160
. Em alusão ao Aforismo XXI: Varizes e hemorróidas que sobrevenham nos maníacos,
resolvem a mania. Hipócrates, Aforismos, op. cit., p. 104.
161
. Armand Trousseau, Clinique Medicale de l’Hotel-Dieu de Paris, op. cit.
162
. Laënnec (1781-1826), médico e descobridor dos métodos da anatomia patológica e da
ascultação.
163
. Solanáceas: Família de plantas superiores.
Diário de Sonhos 108

Catarro: 10 grãos de Dover’s powder dado à noite, seguido de escalda-pé e uma tigela de
mingau comumente para cold 164.

Outro Um bem grande copo de água ao deitar-se pode remover um catarro no princípio.
Aforismos de Celso.

2. Desidia (ociosidade) alque luxuria (intemperança): hoc duo in Gretia corpora vitiarent,
desidia apud nos aflixerunt.165

Higiene dos fortes

O robusto e de boa saúde não se deve sujeitar a nenhum regimen. Faça exercício em terra e
no mar, habite de preferência o campo; a ociosidade debilita o corpo e o trabalho o fortifica.
Aquele faz envelhecer mais depressa; este prolonga a juventude (27 pag. 318).

É mais conveniente correr duas do que uma vez por dia; não importa que as comidas sejão
abundantes contanto que o estômago digira bem, 28 pag. 319.

Não se deve fugir e nem praticar demasiadamente a fornicação. Pois anima quando rara, e
abate quando frequente. Deve considerar-se não tanto a repetição dos atos, como o
temperamento, idade e forças do indivíduo. Sum nom inutilem case, quem corpo vai neque
languor nequel dolor sequitur (languor faintness fraqueza grande) 29 319.166

Higiene dos fracos

As pessoas fracas, no número que está a maior parte dos que habitam as cidades, as que se
dedicam aos trabalhos literários, não devem madrugar senão no caso que digira bem. O que
teve uma digestão laboriosa se conservará na cama. O que não tiver digerido nem se
levantará e nem faça exercício mental ou corporais, 31 pag. 321.

Se tiver de trabalhar não o faça depois de comer, porém depois que houver concluído a
digestão, 32-321.

164
. Resfriado, em inglês.
165
. A ociosidade e a luxúria: estas duas, na Grécia, corromperam os corpos. A ociosidade se
abateu entre nós.
166
. Eu não sou (inutilem case) [intraduzível], quem corpo vai nem o langor, nem a dor se
seguem.
Diário de Sonhos 109

Nunca é útil a mínima saciedade, e muitas vezes é inútil a muita abstinência; quando
houver intemperança é mais seguro que seja de bebida do que de comida 33-321.

Post satictatem nihil agendum 16733-322.

Regras gerais

Não é prudente mudar-se de um lugar doentio para um salubre e nem vice-versa, 135 pag.
322.

Tampouco não se deve passar da abstinência a um regimen de saciedade e nem vice-versa.

Nem também de um regimen de trabalho ao de repouso e vice-versa.

Quando se queira mudar qualquer regimen de vida é necessário fazer de pouco a pouco.

Uma bebida fria é insalubre não só quando se esta suando por muito exercício, como
também quando se está cansado ainda que não seja suor, 342-42.

A mudança de trabalho ou ocupação descansa, 43.

O que é contra o costume é nocivo, seja bom seja mau, 44-324.

Cada homem tem uma parte do corpo mais débil do que outros.

Celso tradução Nisard.168

21 de Janeiro de 1881. Ver as coisas em seu conjunto é a característica da antiga medicina;


vê-la em detalhe, e deles remontar as generalidades, é o da moderna.

Littré tradução de Hipócrates pag. 444.169

Tom. 1º — De Hipócrates à Celso medeiam 400 anos.

Asclepíades170 dizia: o melhor remédio para febre é a própria febre. Celso IV.

167
. Depois da saciedade não se deve fazer nada.
168
. Esta tradução não pode ser localizada mas cita-se para esclarecimento Celso, Traité de la
Medecine, 8 vols., trad. M. Charles de Étangs, Paris, 1846. Algumas das observações aqui
constantes a respeito de Celso podem ter sido retiradas da obra de A. Trousseau, “Celse”, Médecine
et Médecins, 3a ed., Paris, Didier, 1875.
169
. Em referência a Hipócrates, Oeuvres Complètes, trad. Maximilien Paul Emile Littré, Paris,
Baillière, 1839-1862.
170
. Asclepíades (124-40AC), médico grego que combateu as idéias de Hipócrates.
Diário de Sonhos 110

Catão171 aprendeu grego aos 80 anos de idade.

Moléstias das partes genitais VI-18.

Leonardo Targa viveu 84 anos, e destes consagrou 40 ao estudo de Celso.VII.

“O deboche e a ociosidade são as duas causas que estragaram a saúde dos corpos; os
recursos da medicina, inúteis outrora, e ainda hoje inúteis à muitas nações, são apenas
suficientes para levar alguns de nós às portas da velhice”, 1º

Os ramos da medicina que tem por objetivo curar por meio do regimen contam o maior
número de grandes escritores — pag. 2-1.

Não são as causas ocultas mas as evidentes que se devem investigar no tratamento das
moléstias (pag. 8). É importante de saber se a fadiga, a sede, o calor ou o frio, a insônia, a
abstinência, o excesso no beber ou no comer ou o abuso dos prazeres é que deu origem à
moléstia.

1º pag. 11: É por si um código de sabedoria:

Prazeres venéreos para o homem robusto: — Não se deve temer e nem procurar com
excesso; em intervalos raros aumenta as forças, repetido prostra e esgota. Em geral não
fazem mal quando não são seguidos de prostração ou dor. Convém muito menos de dia do
que de noite; de dia não convém comer depois e à noite, não convém trabalhar e nem velar
depois deles. Isto se aplica às pessoas robustas.

Para os fracos: — Quando a digestão não se faz é necessário repouso absoluto.

Urinas (pag. 12) Se a urina de manhã é e pelo dia adiante avermelhada, é indício de boa
saúde.

O frio é o inimigo dos magros e dos velhos, pag. 21.

7 Regras para achar o limite de um bom regimen por L. Lessius172 .

171
. Catão, o Antigo ou o Censor, Marcius Portus Cato (234-149AC), político e escritor
romano.
172
. Leonardo Lessio (Leendert Leyes): Jesuita flamengo, (1554-1623), autor de vasta obra
teológica e científica.
Diário de Sonhos 111

1º Não tomar ordinariamente mais do que uma quantidade tal de comida que se possa
depois dela aplicar-se à funções puramente espirituais, à súplica, à meditação e ao estudo,
113 (é mais conveniente evitar o fumo depois de jantar do que tomá-lo).

2º Tomar tal quantidade de comida que depois dela não se sinta nem uma preguiça, peso ou
languidez corporal, 175.

Segundo ele: se nós não sentirmos depois em uma disposição tão viva e livre como antes da
refeição sinal é de que se ultrapassou a medida natural, exceto se é o efeito ao resto de
alguma moléstia.

O comer e o beber longe de sobrecarregar e enfraquecer a natureza, devem pelo contrário


torna-lá mais livre alegre e animada. Aqueles pois que são de um temperamento a sentir
este peso devem examinar com cuidado se o incômodo provém do excesso no comer ou
beber, ou de ambos, e depois de havê-lo verificado diminuirão pouco a pouco uma e outra
coisa, até que cheguem àquela medida em que não sejam mais incomodados.

3º Não passar repentinamente de uma vida desregrada para uma vida regulada, mas fazê-lo
insensivelmente.

4º Não exceder de 11 onças de sólido e 14 onças de líquido, o que contudo depende do


temperamento de cada um, 178-179.

5º Os alimentos devem ser tão somente aqueles que o indivíduo digere bem (a escola de
Salerno 173 dizia: queijo mais prudente é aquele que não come nenhum; nozes vale mais
comer duas do que três), pag. 183.

Para passar bem, diz Hipócrates é necessário “toujours demeurer sur son apetit et faire
quelque exercise” (pag. 202).174

Galiano 175 on ne peut tomber malade tant que l’on evite avec souci tout ce qui peut causer
des crudités; l’intemperance tue plus que l’epee, (id.).176

173
Escola de Salerno: Escola de medicina do período medieval (século X), mantida pelos
clérigos.
174
. “É preciso atentar sempre ao apetite e praticar algum exercício”.
175
. O autor se refere à Galeno (131-210), médico grego.
Diário de Sonhos 112

14 de Fevereiro de 1881, segunda-feira. Na noite de sábado para domingo, de 12 para 13,


senti-me enjoado, e lancei, segundo o conselho de Celso e o resultado foi: 1º não sonhei,
segundo, no dia seguinte estava com o estômago bom.

Londres, 14 de Fevereiro de 1881. Tenho estado estudando estes dias a arte de escrever;
tenho feito até o presente pouco progresso já fiz porém bastante para reconhecer o quão
defeituoso era o meu anterior sistema de escrituração e se bem que ainda não possa
executar uma boa escrita contudo me parece que estou no caminho próprio para chegar a
esse desideratum 177.

Pontos sobre os quais estou ainda em dúvida:

1. Convém deitar a mão um pouco para o lado direito de modo que ela descanse nos lados
esquerdos das unhas dos dedos 4 e 5 ou não?178

2. (o plano da mão direita deve estar paralelo ao papel) A falange superior do dedo mínimo
deve estar por baixo da falange correspondente do dedo nº 4 ou paralela? Por baixo e a mão
deve assentar no monte dos ditos dedos.

3. O dedo grande deve apertar a pena pousado por assim dizer por baixo dela, ou acima
calcando sobre o dedo nº 3 e sobre o dedo nº 1.

4. Será melhor mover a mão da direita para a esquerda conservando os dedos de movimento
no mesmo lugar ou será preferível ir movendo os ditos dedos à proporção que a palavra vai
progredindo? o último.

5. Convém que os dedos números 4 e 5 estejam com as últimas falanges voltadas para a
palma da mão ou convém que estejam um pouco em pé — que estejam um pouco voltadas
para dentro.

176
. “Não se adoece quando se evita atentamente tudo que pode causar mau estar; a
intemperança mata mais que a espada”.
177
. Aspiração.
178
. Note-se que ao descrever, nos parágrafos que se seguem, cada método caligráfico, Couto
de Magalhães os escreveu no estilo indicado.
Diário de Sonhos 113

6. A separação, ou digo o vértice do ângulo formado pelos dedos números 3 e 4


compreende somente as duas primeiras falanges do topo ou atinge as falanges médias ou de
mesmo além? os três primeiros dedos são independentes.

Solução

Escreve uma linha sem tirar a ...

A pena que aponte um pouco para o lado direito do ombro direito.

Mão voltada para a direita pena do papel tratando de fazer as letras o mais perfeitamente
que puderes ensaiando todos os diversos sistemas e aquele com o qual você melhor poder
executar este trabalho certamente que será o melhor contanto que as letras sejam todas
igualmente claras e bem formadas.

Não descansando nos topos 3 e 5 escreve uma linha sem tirar a pena do papel por um e
outro sistema e aquele com o qual puderes escrever certamente que será o preferível.

Pelos desenhos this is writem writen.179

Observação importante

A pena deve escrever à esquerda da mão do escrivão, quanto a obter com isso a necessária
inclinação é matéria que será estupidamente verificada e estudada depois.

Observação não menos importante

Volta o teu punho para a direita do teu antebraço quanto for compatível com a regra de ter o
topo da pena apontando para o lado direito do teu ombro direito.

Convém notar que o fato de dobrar o punho não impede que a pena aponte um pouco para o
lado esquerdo da mão direita.

Nota feita a noite

A posição da mão varia segundo se está escrevendo no princípio da linha no meio ou no


fim. Isto é coisa para ser investigada depois.

É necessário observar igualmente que quando se tem o cotovelo out180 a posição da mão
também varia e muito da posição da mesma quando o cotovelo está junto do corpo!
Diário de Sonhos 114

15 de Fevereiro de 1881. Depois da lição do Senhor C. William Jr.

Dedos de movimento: Estes fidalgos exigem mui particular atenção pois devem ser postos à
esquerda do dedo grande de modo que a mão por assim dizer trabalhe sobre eles como
sobre uma mola, principiando com eles vistos mais à direita e ficando eles mais à esquerda
a proporção que progride a formação da palavra.

Nota escrita à 19 de Fevereiro de 1881.É melhor que eu me não volte um pouco para a
direita e sim que me conserve voltado para a mesa porque isso me compelirá a conservar a
munheca voltada para o lado direito, exercício que ainda não tenho e que convém que
adquira.

25 de Fevereiro de 1881. O ângulo de suta da escrita é menos inclinado quando se inclina a


mão um pouco para a direita.

26 de Fevereiro. Desce o ombro de modo a que o peso do braço descanse na borda da mesa
porque assim a mão ficará livre do braço e se poderá mover mais depressa sem oprimir os
dedos números 4 e 5.

Outro ponto muito importante é o seguinte: não podes escrever mui depressa senão
conservando o cotovelo fora do corpo e o punho virado inteiramente para a direita.

7 de Março de 1881. No intervalo que aqui há estive ocupado com escrever, e com o fazer a
conversão dos meus títulos em coisa mais segura.

Trousseau: Extrato relativo ao tratamento da dispepsia, tom. 3º pag. 45.

Resumo: O regimen alimentício é de todas as coisas a mais importante. O melhor regimen é


aquele que o doente sabe que lhe convém.

Muitas dispepsias são ligadas a diatesis herpéticas.

Os modificadores gerais da flegmasia181 gástrica são: os vomitivos, os purgativos


mercuriais, o subnitrato de bismuto, craie preparée alcalinos; ácido láctico, e clorídrico.182

179
. This is written, ou seja, está escrito.
180
. Fora.
181
. Na concepção da medicina da antiguidade flegmasia se referia ao que modernamente se
conceitua como inflamação. Hipócrates, Aforismos, op. cit., p. 32.
Diário de Sonhos 115

a. Vomitivos pag. 49 — operam como modificadores.

b. Subnitrato de Bismuto pags. 50 e 51.

Scollis

Em muitos casos a dispepsia é o resultado de uma inflamação crônica e pouco intensa da


mucosa do estômago, que produz alguma coisa semelhante a optalmia dos olhos, ou os
catarros no nariz. Os vomitivos, assim como outros tópicos atuam na mucosa do estômago
da mesma forma pela qual os tópicos, nitrato de prata, sulfato de cobre e outros atuam na
mucosa do olho, do nariz ou de qualquer ferida, isto é irritando o mal, trazendo uma
inflamação maior que é passageira, e que quando se acerba, vira igualmente inflamação
crônica.

É claro pois que quando se ultrapassa o fim, isto é quando em vez de uma inflamação
passageira leve se produz uma intensa e duradoura, não se faz bem, porém, mal, e grande,
ao enfermo.

Inflamação do estômago ou gastrite crônica, é a mesma coisa, e para aqui há apenas uma
questão de grau.

Como reconhecer que há uma flegmasia?

Trousseau

Espermatorréia Tomo 2 pag. 730

A espermatorréia é muitas vezes causada por uma inflamação crônica das vias urinárias, ou
do intestino reto.

Outras vezes ela depende de um excesso de contractilidade das vesículas seminais.

Outras vezes da atonia dos condutos ejaculadores; o tratamento deve variar segundo as
diversas espécies; tratamento das duas últimas pelas compressas e pelas aplicações tópicas
de calor ou frio, segundo as indicações.

182
. Provavelmente se reportando à obra de Trousseau, Traité de l’art de formuler, par
Trousseau et O. Reveil, op. cit.
Diário de Sonhos 116

Diário de coisas a fazer183

9 de Junho de 84:

Pago à D. Belisária:

Semana 30$000

Carolina 25$000

Atrasado Cavalinhas 4$000

59$000

Remetido ao Pe. Correa de Almeida 50$000

10 de Junho. Escrevi uma carta a Carlos Williams Jr. 56 Pentonville Road dizendo que
mandaria 100 libras ou 50 de modo a estarem lá em setembro.

Coisas a fazer: Aguiar

Expediente do Tocantins

Oficial de gabinete do Ministro da Guerra Modesto Benjamim Lins de Vasconcelos.

Gama: adiantado ao Gama 70$000

Ignácio José de Camargo — Itapecerica — João e Firmino Filho.

Dia 11 de Junho. Ontem (código). Ajustei dois tocadores. Escrevi ao Guilherme e ao


Octaviano P. Ferreira, 69, Rua da Gamboa.

Hoje li toda a apresentação do ministério às câmaras e vou despachar as cartas.

14 de Junho

S. João — Casa da rua do Rosário (S. Bento) — expediente do Rio Verde — Tocantins.

Arca — De S. João do Rio Claro à S. Paulo a viagem com 5000k. custa 25.000, cada quilo
5 réis. Pagar o camarote do ator.

Antoninha — 17 anos — cabelos louros — olhos azuis. Carolina — espanhola — loura —


olhos azuis — mediana — magra.

183
. Note-se que entre o registro anterior e este três anos se passaram e em 1884 Couto de
Diário de Sonhos 117

Lamurça —

Estatutos da companhia.

Responder a uma carta do Antonino F.

16 de Junho. Escrevi ao Afonso,184 ao Guerra Mendes, 90 rua Direita, ao Mateus José Leal
— Araguaia.

Tomar por máxima que devo olhar tudo alegremente — lembrei-me hoje de José Agapito e
daquela caçada de perdizes ao longo da serra Dourada.

18 de Junho de 1884. Escrevi ao Glyn mandando-lhe 11 libras etc. Ao Banco do Brazil


dando a ordem. Continua aterro do centro da chácara — mato ou ilha de mato. Cortei
diversos artigos de jornais, vou comprar Amaral Tesouro artístico.

Minha renda mínima a 31 de Janeiro de 1886

200 apólices de 5% rendem 10:000$000

211 na Caixa Filial a 5 1/2 11:605$000

1000 apólices empréstimo 1879 a cambista 45:000$000

66:000$000

A renda real é de 87 contos segundo se vê no balanço.

Despesa pelo máximo 41:605$000

Saldo anual mínimo 25:000$000

Posso gastar pelo máximo e ainda mais 25 contos sem diminuir nada fortuna.

Da Tranquilidade. Make the Best of It.185

S. Paulo 30 de Janeiro de 1886. Nas excitações cerebrais que resultam de nossas paixões e
nos desgostos que sentimos ao vermo-nos contrariados nada há que acalme mais

Magalhães já estava morando em São Paulo.


184
. Trata-se do Visconde de Ouro Preto, Afonso Celso de Assis Figueiredo, destacada figura
política do Partido Liberal no II Reinado, seu amigo íntimo e que o apadrinhou politicamente.
185
. “Aproveite o máximo”.
Diário de Sonhos 118

prontamente o espírito do que a comparação da pequenez de tudo quanto nós e até a própria
humanidade podem fazer em comparação com o que faz a natureza.

A pretendida imortalidade dos atos humanos não alcança no máximo 5.000 anos, ao passo
que um só dos movimentos da terra ao longo do círculo chamado de deslocação polar
consome 25.765 anos; isto é porque o polo terrestre vá sucessivamente apontando para em
diversos astros em que toca a linha ideal da prolongação de seu eixo desde Alpha da
pequena ursa em que está agora, até voltar a esse mesmo ponto consumirá esses quase
26.000 anos.

A época geológica mais moderna da idade da terra é chamada de aluvião, de a qual nós
somos contemporâneos. Um pequeno espaço desse tempo foi medido pelos mais notáveis
engenheiros, submetido por medida o tempo que o Nilo e o Ganges gastaram para depositar
a lama em seus respectivos deltas, julgado igual a 30 mil anos. Sendo certo que no princípio
destes 30 mil anos já a humanidade era velhíssima sobre a terra pois não há hoje um só
homem de ciência que conteste que ela existe desde o princípio do período quaternário, vê-
se que os 5 mil anos que conhecemos de sua história são em comparação com o tempo de
sua existência tão pouca coisa que Moisés e os faraós David e Salomão ficam quase nossos
contemporâneos.

Se das coisas que se medem pelo tempo passamos àquelas que se medem pelo tamanho, a
pequenez, o nada do que pode fazer a humanidade em confrontação com que faz a natureza
é ainda tanto ou mais aparente. E assim tudo quanto as gerações passadas,presentes e
futuras podem fazer é infinitamente menor do que este mundo que vivemos; e este mundo
em que vivemos o que é ele em relação aos outros?

Se fizermos o sol como do tamanho de uma laranja seleta o mundo será apenas do tamanho
de um grão de mostarda, ou da cabeça de um dos menores alfinetes que se vendem em
nossas lojas de ferragens; o sol por sua vez é um grão de mostarda um quase átomo em
relação à massa da nebulosa de que ele e nós fazemos parte.

Se tomarmos por ponto de comparação não o tamanho dos astros mas as distâncias em que
eles se acham de nós e as compararmos com as que a humanidade pode percorrer em trem
de ferro então a nossa pequenez desse abaixo do grão de poeira. A estrela mais próxima que
temos como quem diria nossa vizinha de parede e meia é uma da constelação de Centauro
Diário de Sonhos 119

que aqui de S. Paulo se avista no mês de Fevereiro ao sudeste isto é mais ou menos pela
altura do Ipiranga; essa nossa vizinha está a 32 trilhões de quilômetros; para correr em um
trem de estrada de ferro que andasse a 32 quilômetros por hora gastar-se-ia mais de 3
bilhões de anos, 3.000.000.000! No entretanto essa distância é quase nada se a
compararmos com a distância que medeia entre nós e qualquer das estrelas da constelação
das Plêiades, essa a que cá na linguagem da terra o povo chama Sete Estrelas, e que vemos
agora para os lados da Cantareira.

As estrelas porém estão mui longe de nós e o conhecimento de seus tamanhos, as distâncias
que boiam nos mares infinitos do espaço só podem ser apreciados pelos que conhecem
matemáticas e dispõem dos instrumentos necessários para sua observação.

Mesmo a terra, entre os insetos o poder dos pequenos é ainda infinitamente superior ao
poder do homem.

A comissão científica presidida pelo professor Agassiz 186que visitou o Brasil em 1866
verificou que desde os Abrolhos na Bahia até o Cabo de S. Roque no Ceará prolonga-se ao
longo da costa uma serra de muitíssimo mais extensão do que a da Mantiqueira feita pelo
humilde e atrasado bichinho chamado coral. Nem um dos gigantescos trabalhos executados
pelos egípcios, babilônios ou romanos na antiguidade ou pelos ingleses nos tempos
modernos são nem de longe comparáveis a esta obra só do insignificante e atrasado zoófito
de nossas costas.

Até para guerrear a humanidade os infinitamente pequenos são mais poderosos do que os
mais formidáveis exércitos da Alemanha da França ou da Rússia ou todos eles juntos
somados com a esquadra da Inglaterra.

O pequeno ser que produz o cólera asiático, o coma bacilos, bacilo vírgula, ou como melhor
nome tenha é de dimensões tão pequenas que no espaço ocupado por um grão de mostarda
ou pela cabeça de um alfinete podem conter-se milhares. Cada uma das imigrações desse
infinitamente pequeno que parte do Ganges com os peregrinos muçulmanos que vão à
Meca e que dali a espalha pelo mundo é mais poderosa (para produzir a morte) do que os

186
. Luiz Agassiz (1807-1873), zoólogo e naturalista, chefiou uma expedição científica norte-
americana que visitou o Brasil entre 1865-1866, redigindo, em parceria com Elizabeth Cary
Agassiz, o livro Viagem ao Brasil, Belo Horizonte, São Paulo, Ed. Itatiaia, Edusp, 1975.
Diário de Sonhos 120

exércitos de Gengis Kan, os dos romanos, os dos bárbaros na idade média, ou todos os
modernos somados porque uma só dessas imigrações do bacilo criando epidemias coléricas
na Ásia, Europa e América matou quase 2 milhões de criaturas humanas, ao passo que as
mais mortíferas guerras nunca produziram coisa igual. A mais mortífera (mortalidade pela)
guerra dentre um ano e de que temos notícias que merecem fé é a produzida pela libertação
dos escravos nos Estados Unidos de 1863 à 1864; pois bem esse cataclismo de ferro,
sangue, fogo e pó apenas arrebatou a vida de 950 mil homens o que é menos do que a
metade do que fez o pequeno micróbio em uma só das epidemias que gerou ou da guerra
que não declarou. A guerra do Paraguai custou, durante os 4 anos de sua duração, a vida de
100 mil homens, o que é apenas a vigésima parte das vidas arrebatadas pelo bacilo
microscópico na epidemia a que aludimos.

Ainda ha pouco lia eu aqui na Revista de Edinburgh de outubro do ano passado a estatística
oficial da guerra feita pelos insetos na agricultura dos Estados Unidos e passava para estas
notas a estatística oficial de que é chefe o senhor R. D. Walsh e segundo a qual os insetos
destruíram em algodão, trigo, batatas só nos Estados Unidos e só dentro em um ano 300
milhões de dollars, quase sete centos mil contos de nossa moeda, ou um valor igual a toda
renda geral do Brasil durante um quinquênio!

À vista deste e outros fatos que se poderão repetir ao infinito de que valem nossas ambições
ou as grandezas do homem; são menos do que um grão de poeira, e as que parecem mais
imortais aturaram no máximo 6 mil anos o que é menos que um segundo do tempo mesmo
comparado com o ano polar da terra.

Se uma coisa grande o homem pode fazer neste mundo é desenvolver seu entendimento de
modo a compreendendo a marcha da natureza entrar mais depressa no papel final que lhe
está reservado por ela; fora disso o que ele faz ou o que faz a humanidade tudo
insignificantemente pequeno, nulo, transitório e como dizia Salomão — é pura e
simplesmente vaidade.

7 de Fevereiro de 1887

Índice de Jornais.
Aperfeiçôo as saúdes do corpo e espírito.
Diário de Sonhos 121

Cronologia
1837 – Nasce na Fazenda do Gavião, Município de Diamantina MG, em 1o de novembro,
filho do Capitão Antônio Carlos de Magalhães, português, e de D. Teresa Antônia
do Prado Vieira Couto. É neto, por parte materna, do matemático, minerólogo e
naturalista José Vieira do Couto.

1847 – Inicia estudos secundários no Seminário do Caraça, em Minas Gerais.

1854 – Muda para a cidade de São Paulo para cursar a Faculdade de Direito, tornando-se
bacharel em 1859 e doutor em 1860. Durante este período, publica na Revista da
Academia seus primeiros textos, como “O estudante e os monges” e “O destino das
letras no Brasil”.

1859 – Durante as férias escolares, escreve seus primeiros trabalhos de fôlego, Os


Guaianás, um conto histórico sobre a fundação de São Paulo, publicado em 1860,
e Um episódio da história pátria (1720), sobre a revolta de Felipe dos Santos em
Vila Rica, publicado em 1862. Estes trabalhos o credenciaram para ser admitido
como sócio correspondente do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.

1860 – Assume seu primeiro cargo público, como Secretário da Província de Minas
Gerais, durante a presidência do Conselheiro Vicente Pires da Mota. Com este
cargo Couto inicia sua vida política sempre sob a proteção de Afonso Celso de
Assis Figueiredo, o Visconde de Ouro Preto.

1862 – É nomeado Presidente da Província de Goiás, cargo que ocupa até 1864.

1863 – Publica sua Viagem ao Araguaia, narrando suas experiências na exploração do


interior da Província, bem com seus projetos a respeito do desenvolvimento da
província.

1864 – Nomeado Presidente da Província do Pará, permanece no cargo até 1866. Durante
a sua gestão, estabelece um plano de desobstrução das cachoeiras dos rios
Araguaia e Tocantins, o que possibilitaria a navegação a vapor nestes rios. Entra
em conflito com o Bispo D. Antônio de Macedo Costa, que o acusa de ter
cometido irregularidades durante o seu governo.

1866 – Em plena Guerra do Paraguai, assume a Presidência da Província do Mato Grosso,


sendo nomeado com poderes especiais de General-em-Chefe e de Presidente da
Junta Suprema Militar da Justiça. No decorrer da gestão, que vai até 1868, recebe o
título de Brigadeiro Honorário do Exército, por ter comandado as tropas que
reconquistaram, na Tomada de Corumbá, o território mato-grossense invadido.

1867 – Funda à margem esquerda do Rio Araguaia, em Itacaiú, uma colônia militar
dedicada a apoiar a navegação a vapor.

1867 – Eleito Deputado pela Província de Goiás, permanece licenciado até sair do governo
do Mato Grosso, no ano seguinte. Não chega a assumir a cadeira, no entanto,
Diário de Sonhos 122

porque a Câmara antes é dissolvida por Decreto Imperial, convocando novas


eleições. É derrotado em Goiás no novo pleito. A partir deste episódio Couto
passou a dedicar-se aos negócios da iniciativa privada, centrando sua vida
econômica em São Paulo. Participou da exportação de couros crus para a
Inglaterra, investiu em sociedades de ações e foi sócio de diversas industrias, como
a de papel de Salto de Itú . Passou a presidir, mais tarde, o cargo de diretor do
Banco de São Paulo, juntamente com o Conde do Pinhal e o Prof. Frederico
Abranches.

1868 – Funda a Empresa de Navegação a Vapor do Rio Araguaia. Para tanto, com a
autorização do governo imperial, fez desmontar às margens do rio Cuiabá um
navio de guerra, que foi transportado em carros de boi através 100 léguas de
sertões inóspitos até o porto de Itacaiú, no alto Araguaia. Episódio controverso,
esta epopéia foi alvo de críticas pela imprensa, que não acreditava na factibilidade
do empreendimento.

1871 – Estabelece o Colégio de Línguas Princesa Imperial Dona Isabel para a educação de
crianças indígenas que, junto com as colônias militares, constituíram instituições
que viriam a concretizar seu plano de civilização e integração pacífica das
populações indígenas.

1875-1876 – Obtém do governo imperial a concessão da linha férrea da Minas and Rio
Railway Limitada, vulgarmente conhecida como Estrada de ferro do Rio Verde.

1876 – Publica sua obra mais importante, O selvagem, preparada sob a encomenda de D.
Pedro II para figurar da Biblioteca Americana da Exposição Universal do
Centenário da Independência dos Estados Unidos, em Filadélfia.

1880-1881 – Instala-se em Londres, onde negocia o financiamento da companhia de estrada


de ferro Rio and Minas Railway Ltd. A companhia completa, em 1884, a
construção do trecho de Cruzeiro, em São Paulo, a Três Corações, em Minas.

1886 – Sócio-fundador da Sociedade Promotora da Imigração, sediada em São Paulo,


promovida por importantes setores da cafeicultura do oeste paulista.

1887 – Monta em sua casa, na Ponte Grande, às margens do Rio Tietê, um observatório
astronômico mais tarde doado à Escola Politécnica.

1888 – Chefe do Partido Liberal em São Paulo, é nomeado Presidente da Província,


entregando a pasta com a Proclamação da República. Monarquista convicto, Couto
nega-se a aderir à República, retirando-se novamente da vida política.

1890 – É internado no Sanatório dos Ingleses, em São Paulo, aparentemente em


decorrência de uma crise nervosa. Tendo, porém, sido diagnosticado desde 1889
como portador da sífilis pode-se supor esta crise como sintoma de sua doença.

1891 – Viaja para a Europa para tratamento de saúde.


Diário de Sonhos 123

1892-1893 – Envolvido no financiamento da Revolta da Armada, teve ordem de prisão


decretada por Floriano Peixoto. Dado seu estado de saúde precário, foi ele primeiro
internado no Hospital Militar, obtendo a seguir autorização para deixar o país,
visitando a Argélia e a Europa. É do período em que se encontrava na Argélia uma
série de cartas publicadas no Jornal do Comércio.

1897 – Prepara a conferência “Anchieta, as Raças e Línguas Indígenas” para ser


apresentada no Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, nas comemorações
do Tricentenário de Anchieta, organizadas por Eduardo Prado. Incapacitado de
apresentá-la pessoalmente, esta foi publicada a seguir.

1898 – Falece no Rio de Janeiro devido à complicações decorrentes da sífilis. Deixa


registrado em inventário vultosa fortuna a ser partilha entre seus familiares e três
filhos naturais.

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