Direitos Humanos e Vulnerabilidades

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Copyright© 2020 by Josiane Rose Petry Veronese & Cláudio Macedo de Souza

Produção Editorial: Habitus Editora


Editor Responsável: Israel Vilela
Capa e Diagramação: Carla Botto de Barros

As ideias e opiniões expressas neste livro são de exclusiva responsabilidade dos Autores, não
refletindo, necessariamente, a opinião desta Editora.

CONSELHO EDITORIAL:
Alceu de Oliveira Pinto Junior Geyson Gonçalves
UNIVALI CESUSC–ESA OAB/SC
Antonio Carlos Brasil Pinto (in memoriam) Gilsilene Passon P. Francischetto
UFSC UC (Portugal)–FDV/ES
Cláudio Macedo de Souza Jorge Luis Villada
UFSC UCASAL–(Argentina)

Dirajaia Esse Pruner Juan Carlos Vezzulla


UNIVALI–AMATRA XII IMAP (Portugal)
Juliano Keller do Valle
Edmundo José de Bastos Júnior UNIVALI–ESA OAB/SC
UFSC- ESMESC
Lauro Ballock
Eduardo de Carvalho Rêgo UNISUL
UFSC
Marcelo Gomes Silva
Elias Rocha Gonçalves UFSC–ESMPSC
IPEMED–SPCE Portugal–ADMEE Europa–CREFAL Caribe
Marcelo Buzaglo Dantas
Fernando Luz da Gama Lobo D'Eça UNIVALI
IES–FASC
Nazareno Marcineiro
Flaviano Vetter Tauscheck UFSC–ACADEMIA DA PMSC
CESUSC-ESA-OAB/SC Paulo de Tarso Brandão
Francisco Bissoli Filho UNIVALI
UFSC

DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO (CIP)

V549d
Veronese, Josiane Rose Petry,
Direitos Humanos e Vulnerabilidades /Aline Taiane Kirch ... [et al.];
Organizadores: Josiane Rose Petry Veronese & Cláudio Macedo de Souza
recurso digital
Formato: e.book
Modo de acesso: world wide web
Inclui bibliografia
ISBN 978-65-86381-74-0
1. Direito Humanos 2. Vulnerabilidades –Brasil I. Título
CDU 341.272

É proibida a reprodução total ou parcial, por qualquer meio ou processo, inclusive quanto às características
gráficas e/ou editoriais.
A violação de direitos autorais constitui crime (Código Penal, art.184 e seus §§ 1º, 2º e 3º, Lei n° 10.695, de
01/07/2003), sujeitando-se à busca e apreensão e indenizações diversas (Lei n° 9.610/98).

Todos os direitos desta edição reservados à Habitus Editora


www.habituseditora.com.br – habituseditora@gmail.com

Impresso no Brasil
Printed in Brazil
Josiane Rose Petry Veronese
Cláudio Macedo de Souza
(Organizadores)

DIREITOS HUMANOS E
VULNERABILIDADES

Aline Taiane Kirch


Analice Schaefer de Moura
André Viana Custódio
Andrea Jakubaszko
Cláudia Maria Carvalho do Amaral Vieira
Cláudio Macedo de Souza
Daniela Richter
Dimas Pereira Duarte Júnior
Eduardo Vinicius Pereira Barbosa
Fernanda da Silva Lima
Geralda Magella de Faria Rossetto
Gláucia Borges
Helena Amália Papa
Ilva Ruas de Abreu
Ingra Etchepare Vieira
Ionete de Magalhães Souza
Joséli Fiorin Gomes
Josiane Rose Petry Veronese
Luana Renostro Heinen
Marco Antônio César Villatore
Marcel Mangili Laurindo
Marília de Nardin Budó
Marli Marlene Moraes da Costa
Martinho Martins Botelho
Rosane Leal da Silva
Silzia Alves Carvalho
Thierry Gihachi Izuta

Florianópolis
2020
SOBRE OS ORGANIZADORES

Josiane Rose Petry Veronese


Professora Titular da disciplina Direito da Criança e do Adolescente, da Univer-
sidade Federal de Santa Catarina, na graduação e nos Programas de Mestrado e
Doutorado em Direito. Doutora e Mestre em Direito pela Universidade Federal
de Santa Catarina. Pós-doutorado na Faculdade de Serviço Social da PUC/RS e
pós-doutorado junto ao Programa de Pós-Graduação em Direito da Universida-
de de Brasília, sob a supervisão do Prof. Dr. Airton Cerqueira-Leite Seelaender.
Coordenadora do NEJUSCA – Núcleo de Estudos Jurídicos e Sociais da Criança
e do Adolescente e colíder do Núcleo de Pesquisa Direito e Fraternidade do Cen-
tro de Ciências Jurídicas/UFSC. E-mail: jpetryve@uol.com.br

Cláudio Macedo de Souza


Professor de Direito na UFSC – Universidade Federal de Santa Catarina nos cur-
sos de Graduação e de Pós-graduação. Especialização e Doutorado em Ciências
Penais pela UFMG – Universidade Federal de Minas Gerais. Graduado em Di-
reito pela UNIMONTES. Coordenador do GDPI – Grupo de Pesquisa de Direito
Penal Internacional. Representante da UFSC no CONATRAP – Comitê Nacional
de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas do Ministério da Justiça e Segurança
Pública, (2018-2020). Representante da UFSC no Conselho de Execução Penal da
Comunidade de Florianópolis/SC. Chefe de Departamento do curso de Direito
da UFSC/CCJ. E-mail: clauruas@gmail.com e claudio.macedo@ufsc.br

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SOBRE OS AUTORES

SOBRE OS AUTORES
Aline Taiane Kirch
Mestre em Direito, Democracia e Sustentabilidade pelo Programa de Pós-Gra-
duação do Complexo de Ensino Superior Meridional – IMED. Graduada pela
Escola de Direito do Complexo de Ensino Superior Meridional – IMED. Advo-
gada. E-mail: aline-kirch@hotmail.com

Analice Schaefer de Moura


Mestre em Direito pela Universidade de Santa Cruz do Sul – UNISC, com taxa
CAPES PROSUC. Graduada em Direito pela mesma Universidade. Professora
do Curso de Direito da Faculdade Dom Alberto. Membro do Grupo de Estu-
dos Direito, Cidadania e Políticas Públicas do PPGD da UNISC. Especialista
em Aprendizagem Ativa pela Universidade do Vale do Taquari – UNIVATES.
Advogada OAB/RS 103.034. E-mail: analices.demoura@gmail.com

André Viana Custódio


Pós-doutor em Direito pela Universidade de Sevilha/Espanha, Doutor em Di-
reito pela Universidade Federal de Santa Catarina, sob a orientação da Pro-
fa. Dra. Josiane Rose Petry Veronese, Professor permanente do Programa de
Pós-Graduação em Direito – Mestrado e Doutorado – da Universidade de
Santa Cruz do Sul, Coordenador do Grupo de Estudos em Direitos Humanos
de Crianças, Adolescentes e Jovens vinculado ao Grupo de Pesquisa Políticas
Públicas de Inclusão Social (UNISC), colaborador externo do Núcleo de Estu-
dos Jurídicos e Sociais da Criança e do Adolescente da Universidade Federal
de Santa Catarina (NEJUSCA/UFSC). E-mail: andrecustodio@unisc.br

Andrea Jakubaszko
Professora Mestre do Departamento de Política e Ciências Sociais e Pró-Reitora
Adjunta de Ensino da Universidade Estadual de Montes Claros – Unimontes.
E-mail: andrea.jk@unimontes.br

Cláudia Maria Carvalho do Amaral Vieira


Doutora em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina, sob a orientação
da Professora Doutora Josiane Rose Petry Veronese. Bacharel e mestre em Direito
pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Pesquisadora dos Nú-
cleos de Estudos Jurídicos e Sociais da Criança e do Adolescente – NEJUSCA e de
Pesquisa Direito e Fraternidade do Centro de Ciências Jurídicas da Universidade
Federal de Santa Catarina. Professora da Universidade São Judas Tadeu em São
Paulo. Advogada em São Paulo. E-mail: claudia@cavadvogados.com.br

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DIREITOS HUMANOS E VULNERABILIDADES

Cláudio Macedo de Souza


Professor de Direito na UFSC – Universidade Federal de Santa Catarina nos cur-
sos de Graduação e de Pós-graduação. Especialização e Doutorado em Ciências
Penais pela UFMG – Universidade Federal de Minas Gerais. Graduado em Di-
reito pela UNIMONTES. Coordenador do GDPI – Grupo de Pesquisa de Direito
Penal Internacional. Representante da UFSC no CONATRAP – Comitê Nacional
de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas do Ministério da Justiça e Segurança
Pública, (2018-2020). Representante da UFSC no Conselho de Execução Penal da
Comunidade de Florianópolis/SC. Chefe de Departamento do curso de Direito
da UFSC/CCJ. E-mail: clauruas@gmail.com e claudio.macedo@ufsc.br

Daniela Richter
Doutora em Direito pela UFSC/SC, sob a orientação da Profa. Dra. Josiane Rose
Petry Veronese. Professora adjunta do Departamento de Direito e líder do Gru-
po de Estudos de Direito e Consumo Sustentável (GEDCS) da Universidade
Federal de Santa Maria (UFSM). ORCID-Id: https:// orcid.org/0000-0003-4465-
1174.E-mail: daniela.richter@ufsm.br

Dimas Pereira Duarte Júnior


Doutor em Ciências Sociais: Relações Internacionais pela PUC/SP (2008). Pro-
fessor de Direito Internacional e Direitos Humanos e pesquisador do Programa
de Pós-graduação (ME/DO) em Direitos Humanos da Universidade Tiradentes
– UNIT-SE. E-mail: dimas.duartejr@gmail.com

Eduardo Vinícius Pereira Barbosa


Graduado em Direito e Mestrando em Desenvolvimento Social pela Universi-
dade Estadual de Montes Claros – Unimontes, Especialista em Gestão Pública
pelo Instituto Federal do Norte de Minas Gerais – IFNMG. Professor Universi-
tário. Advogado. E-mail: eduardovpb@gmail.com

Fernanda da Silva Lima


Doutora e Mestre em Direito pela UFSC, sob a orientação da Profa. Dra. Josiane
Rose Petry Veronese. Pesquisadora do NEJUSCA – Núcleo de Estudos Jurídi-
cos e Sociais da Criança e do Adolescente. Pesquisadora do Núcleo de Pesquisa
em Direitos Humanos e Cidadania – NUPEC/ UNESC. Professora nas discipli-
nas de Direitos Humanos e Direito da Criança e do Adolescente pela Universi-
dade do Extremo Sul Catarinense (UNESC). E-mail: felima.sc@gmail.com

Geralda Magella de Faria Rossetto


Doutoranda pelo Programa de Pós Graduação em Direito da UFSC, sob
a orientação da Profa. Dra. Josiane Rose Petry Veronese. Mestre em Di-
reito Público pela UNISINOS; Procuradora Federal da Advocacia Geral

6
SOBRE OS AUTORES

da União/UFSC (aposentada). Professora convidada de cursos de gradua-


ção e pós-graduação. Membro da Rede Universitária para Estudos sobre a
Fraternidade (RUEF). Pesquisadora do Núcleo de Pesquisa Direito e Fra-
ternidade – UFSC; do Núcleo de Estudos Jurídicos e Sociais da Criança e
do Adolescente – NEJUSCA e do DataLab Pesquisadora do DataLab – La-
boratório de Desenvolvimento e de Pesquisa em Gestão de Dados/UFSC.
E-mail: geraldamagella@gmail.com

Gláucia Borges
Mestra em Direito pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Univer-
sidade do Extremo Sul Catarinense – UNESC. Especialista em Direito Civil e
Processo Civil e Graduada em Direito pela UNESC. É professora de graduação
em Direito junto à Escola Superior de Criciúma – ESUCRI. Integrante do Nú-
cleo de Pesquisa em Direito da Criança e do Adolescente e Políticas Públicas,
da UNESC. E-mail: glauciaborges@icloud.com

Helena Amália Papa


Professora Doutora do Departamento de História, do Programa de Pós-gra-
duação em História e Pró-Reitora de Ensino da Universidade Estadual de
Montes Claros – Unimontes, MG, Brasil. E-mail: helena.papa@unimontes.br

Ilva Ruas de Abreu


Professora Doutora do Departamento de Ciências Econômicas, do Programa
de Pós-graduação em História e Vice-Reitora da Universidade Estadual de
Montes Claros – Unimontes, MG, Brasil. Mestrado no PPGA - Programa de
Pós-graduação em Administração da UFSC - Universidade Federal de Santa
Catarina. Doutorado no Programa de Pós-graduação em História da UFMG -
Universidade Federal de Minas Gerais. E-mail: ilvaruas@gmail.com

Ingra Etchepare Vieira


Mestranda em Direito no PPGD/UFSM, sob a orientação da Professora Douto-
ra Rosane Leal da Silva. Membro do Núcleo de Direito Informacional (NUDI)
da UFSM. E-mail: ingraetchepare@hotmail.com

Ionete de Magalhães Souza


Graduada em Direito, Especialista em Processo e Direito Civil pela Univer-
sidade Estadual de Montes Claros – Unimontes. Mestre em Direito – Insti-
tuições Jurídico-Políticas – pela Universidade Federal de Santa Catarina –
UFSC, Doutora em Direito – Ciências Jurídicas e Sociais, pela Universidad Del
Museu Social Argentino – UMSA. Professora Universitária. Advogada. E-mail:
ionete@mail.connect.com.br

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DIREITOS HUMANOS E VULNERABILIDADES

Joséli Fiorin Gomes


Doutora em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Professora permanente do Programa de Pós-graduação em Relações Interna-
cionais, Professora adjunta do Departamento de Direito e pesquisadora do
Grupo de Estudos de Direito e Consumo Sustentável (GEDCS) da Universi-
dade Federal de Santa Maria (UFSM). ORCID-Id: http://orcid.org/0000-0003-
4908-9598. E-mail: joselifg@gmail.com

Josiane Rose Petry Veronese


Professora Titular da disciplina Direito da Criança e do Adolescente, da
Universidade Federal de Santa Catarina, na graduação e nos Programas de
Mestrado e Doutorado em Direito. Doutora e Mestre em Direito pela Uni-
versidade Federal de Santa Catarina. Pós-doutorado na Faculdade de Servi-
ço Social da PUC/RS e pós-doutorado junto ao Programa de Pós-Graduação
em Direito da Universidade de Brasília, sob a supervisão do Prof. Dr. Airton
Cerqueira-Leite Seelaender. Coordenadora do NEJUSCA – Núcleo de Estu-
dos Jurídicos e Sociais da Criança e do Adolescente e colíder do Núcleo de
Pesquisa Direito e Fraternidade, do Centro de Ciências Jurídicas/UFSC. Re-
presentante da UFSC na Rede Universitária de Estudos sobre a Fraternidade
– RUEF. Integra a Academia de Letras de Biguaçu/SC, com a Cadeira n° 1.
E-mail: jpetryve@uol.com.br

Luana Renostro Heinen


Doutora em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina com pe-
ríodo sanduíche na Université Paris-Ouest Nanterre la Défense, Mestre em
Direito, na linha Filosofia e Teoria do Direito, pela UFSC. Professora do
Magistério Superior Adjunto A da Universidade Federal de Santa Catari-
na. Membro do Instituto de Memória e Direitos Humanos da UFSC, coor-
denadora do projeto de extensão do Observatório dos Direitos Humanos.
E-mail: luana.heinen@ufsc.br

Marco Antônio César Villatore


Professor dos cursos de Graduação e de Pós-Graduação da UFSC – Mestrado e
Doutorado em Direito, Advogado, Coordenador da Especialização em Direitos
e Processos do Trabalho e Previdenciário da ABDConst, Professor Convidado
da Especialização da PUCRS, Pós-Doutor em Direito Econômico da Universi-
dade de Roma II – Tor Vergata, Doutor em Direito do Trabalho, Previdenciário
e Sindical da Universidade de Roma I – Sapienza, Mestre em Direito pela PU-
CSP. Membro Titular da Cadeira nº. 73 da Academia brasileira de Direito do
Trabalho. Membro Correspondente do Paraná da Academia Sul-Rio-Granden-
se de Direito do Trabalho. E-mail: marcovillatore@gmail.com

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SOBRE OS AUTORES

Marcel Mangili Laurindo


Doutorando em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e
Mestre em Sociologia Política pela UFSC. Defensor Público do Estado de Santa
Catarina. E-mail: mangili84@gmail.com

Marília de Nardin Budó


Professora no Curso de Direito da Universidade Federal de Santa Catarina
(UFSC). Doutora em direito pela Universidade Federal do Paraná. Mestre em
direito pela UFSC. Especialista em Pensamento político brasileiro pela Univer-
sidade Federal de Santa Maria. Graduada em direito e jornalismo pela UFSM.
E-mail: mariliadb@yahoo.com.br.

Marli Marlene Moraes da Costa


Doutora em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC,
sob a orientação da Profa. Dra. Josiane Rose Petry Veronese, com pós-dou-
toramento em Direito pela Universidade de Burgos – Espanha, com bolsa
CAPES. Professora da Graduação e da Pós-Graduação Lato Sensu em Direito
da Universidade de Santa Cruz do Sul – UNISC. Professora do Programa de
Pós-Graduação em Direito – Mestrado e Doutorado da UNISC. Coordenado-
ra do Grupo de Estudos Direito, Cidadania e Políticas Públicas do PPGD da
UNISC. Especialista em Direito Privado. Psicóloga com Especialização em
Terapia Familiar. Membro do Conselho Consultivo da Rede de Pesquisa em
Direitos Humanos e Políticas Públicas. Membro do Núcleo de Pesquisas Mi-
grações Internacionais e Pesquisa na Região Sul do Brasil – MIPESUL. Inte-
grante do Grupo de Trabalho em Apoio a Refugiados e Imigrantes (GTARI/
UNISC). E-mail: marlimmdacosta@gmail.com

Martinho Martins Botelho


Doutor pela Universidade de São Paulo (USP). Doutor em Teoria Econômica pela
Universidade Estadual de Maringá (UEM). Professor Permanente do Programa
de Mestrado em Direito do Centro Universitário Internacional UNINTER. Pro-
fessor de Direito Econômico e de Economia Política do curso de graduação em
Direito da UFPR. Professor da UniSanta Cruz e da FESP PR, em Curitiba, Paraná.
Advogado e Economista. E-mail: martinho.botelho@yahoo.com.br

Rosane Leal da Silva


Doutora em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina, com pesquisa
sobre criança e adolescente na sociedade informacional (2009), sob a orientação
da Profa. Dra. Josiane Rose Petry Veronese. Professora adjunta da Universidade
Federal de Santa Maria, nos cursos de Graduação e Mestrado em Direito e no Cur-
so de Direito do Centro Universitário Franciscano. Líder do Grupo de Pesquisa
Teoria Jurídica no Novo Milênio (UNIFRA) e do Grupo de Pesquisa Núcleo de

9
DIREITOS HUMANOS E VULNERABILIDADES

Direito Informacional (UFSM), ambos inscritos no CNPq. Pesquisadora do Núcleo


de Estudos Jurídicos e Sociais da Criança e do Adolescente – NEJUSCA – da Uni-
versidade Federal de Santa Catarina. Coordena o Núcleo de Direito Informacional,
na Universidade Federal de Santa Maria e o Núcleo de Proteção da Criança e do
Adolescente Internauta (UNIFRA). E-mail: rosaneleals@terra.com.br

Silzia Alves Carvalho


Doutora em Direito pela PUC/SP (2006), Mestre em Direito pela PUC/SP
(2001). Realiza estágio pós-doutoral na Universidade de Coimbra em Ciências
Jurídico-Filosóficas. Professora em regime de dedicação exclusiva de Direito
Processual Civil na FD/UFG, e, pesquisadora junto ao PPGDP/FD/UFG, a res-
peito das políticas públicas de acesso à justiça e consensualidade. E-mail: sil-
zia_carvalho@ufg.br

Thierry Gihachi Izuta


Mestrando em Direito pela UNIBRASIL. Bacharel em Direito pela UniDom
Bosco. Especialista em Direito do Trabalho e Processo do Trabalho pela PU-
CPR. Advogado. E-mail: thierryizuta@gmail.com

10
SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 13
Josiane Rose Petry Veronese
Cláudio Macedo de Souza

SOCIEDADES IGUALITÁRIAS, LIVRES E FRATERNAS: OS DIREITOS


HUMANOS E OS 75 ANOS DA ONU . . . . . . . . . . . . . . . . . . 17
Josiane Rose Petry Veronese
Geralda Magella de Faria Rossetto

OS OBJETIVOS DO DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL COMO


DIRETRIZES DE PROTEÇÃO DAS VULNERABILIDADES DA PRIMEIRA
INFÂNCIA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 37
Daniela Richter
Joséli Fiorin Gomes

A VIOLÊNCIA INTRAFAMILIAR TORNOU-SE UM PROBLEMA


DE SAÚDE PÚBLICA NO BRASIL: REFLEXÕES A PARTIR DAS
PRÁTICAS RESTAURATIVAS ENQUANTO POLÍTICAS PÚBLICAS
DE PREVENÇÃO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 55
Marli Marlene Moraes da Costa
Analice Schaefer de Moura

ENTRE INVISIBILIDADE E NEGAÇÃO DE DIREITOS: O DESAFIO


DAS POLÍTICAS PÚBLICAS NO COMBATE AO RACISMO E NA
PROTEÇÃO DA INFÂNCIA NO BRASIL . . . . . . . . . . . . . . . . . 72
Fernanda da Silva Lima

CÁRCERE E VULNERABILIDADE: AS RELAÇÕES ENTRE EXCLUSÃO


SOCIAL, JUSTIÇA CRIMINAL E ENCARCERAMENTO . . . . . . . . . . 86
Cláudia Maria Carvalho do Amaral Vieira

O DIREITO FUNDAMENTAL À ALIMENTAÇÃO NO CONTEXTO DE


VULNERABILIDADE SOCIAL EM TEMPOS DE PANDEMIA . . . . . . . 99
André Viana Custódio
Gláucia Borges

O MOVIMENTO “EXPOSED” NO CONTEXTO DA SOCIEDADE EM


REDE: TENSÕES ENTRE AS NARRATIVAS DE ABUSOS SOFRIDOS
POR INTERNAUTAS E O DIREITO AO ESQUECIMENTO DOS
SUPOSTOS OFENSORES . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 117
Rosane Leal da Silva
Ingra Etchepare Vieira

HARMONIZAÇÃO LEGISLATIVA E DIREITOS HUMANOS: DESAFIOS


DO DIREITO PENAL EM COOPERAÇÃO INTERNACIONAL . . . . . . 133
Cláudio Macedo de Souza

11
DIREITOS HUMANOS E VULNERABILIDADES

NEOLIBERALISMO E A SITUAÇÃO DOS REFUGIADOS: O


PROBLEMA DA INEFETIVIDADE DOS DIREITOS HUMANOS . . . . . 151
Luana Renostro Heinen
Marcel Mangili Laurindo

A DIGNIDADE HUMANA COMO FUNDAMENTO DA POLÍTICA


PÚBLICA DE ACESSO À JUSTIÇA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 165
Silzia Alves Carvalho
Dimas Pereira Duarte Júnior

TRABALHADOR INFORMAL E-PANDEMIA DO NOVO


CORONAVÍRUS (COVID-19): O ESCANCARAMENTO DA
VULNERABILIDADE DO TRABALHADOR BRASILEIRO E DA
DISTÂNCIA DO PLENO EMPREGO NO PAÍS . . . . . . . . . . . . . . 183
Marco Antônio César Villatore
Martinho Martins Botelho
Thierry Gihachi Izuta

VULNERABILIDADES E POLÍTICAS DE AÇÕES AFIRMATIVAS NO


ACESSO AO ENSINO SUPERIOR: O SISTEMA DE RESERVA DE
VAGAS NA UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MONTES CLAROS –
UNIMONTES – MG (2015-2020) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 199
Ilva Ruas de Abreu
Helena Amália Papa
Andrea Jakubaszko

VULNERABILIDADE E SELETIVIDADE: UMA REVISITA ÀS DECISÕES


SOBRE PRIVAÇÃO DE LIBERDADE DE ADOLESCENTES NO STJ
(2010-2020) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 211
Marília de Nardin Budó
Aline Taiane Kirch

PRÁTICAS ADEQUADAS DE EXTENSÃO JURÍDICA E


VULNERABILIDADES SOCIAIS NO NORTE DE MINAS GERAIS . . . . 235
Ionete de Magalhães Souza
Eduardo Vinícius Pereira Barbosa

12
APRESENTAÇÃO

Utopia
Seriam meras idealizações
ou algo maior:
o sonho com uma sociedade que se paute
no belo, no justo, no fraterno.
Seriam alucinações
a proposição de um mundo que saiba acolher,
que se faça ninho, amoroso e feliz?
Com certeza não se tratam de desejos efêmeros,
antes, impõem-se como grandes projetos,
que demandam tempo e ações.
Sim, a utopia nos toma e nos impulsiona.
Queremos respeito, garantias, direitos.
Que nada,
que nenhuma lágrima passe em vão.
Sim, queremos crescer em humanidade.
(Josiane Rose Petry Veronese)1

Dentre todas as muitas possibilidades e lições da utopia, uma em especial


guarda diferenciado significado ao propósito desta obra: uma ideia possível – e
não impossível ou impraticável – de designar o ideal dos direitos, em especial,
dos direitos humanos. Por assim dizer, os direitos humanos que se buscam
para o debate da sociedade dos titulares de direitos e, em especial, dos vul-
neráveis, dos excluídos, dos invisíveis, dos diferentes requer atenta proteção,
promoção e defesa, a dar conta de sua reafirmação. Não é, pois, tarefa, para
os incrédulos e os alarmistas de plantão, e sim para os feitores e artífices dos
direitos, notadamente os sujeitos dos direitos humanos.
Alasdair MacIntyre, pondera que não existem direitos humanos e “crer
neles é como crer em bruxas ou unicórnios”2. Seja como for, este estudo des-
considera: i) eventuais discussões no sentido de inexistência dos direitos hu-

1 Poema inédito, escrito quando da elaboração desta obra.


2 MACINTYRE, Alasdair. Depois da virtude. (After Virtue. A Study in Moral Theory). Tradução de Jus-
sara Simões. Revisão técnica de Helder Buenos Aires de Carvalho. Bauru-SP: EDUSC, 2001, p. 189.

13
DIREITOS HUMANOS E VULNERABILIDADES

manos; ii) a impossibilidade de sua fundamentação; e iii) o discurso de falsa


acusação de que tais direitos não passam de uma espirituosa invenção. Bem
por isso, a tarefa desta obra confere ênfase aos direitos humanos, no que tem
de realidade cotidiana, em sua disposição pública e privada de reconstrução
de direitos.
Neste sentido, a obra “Direitos Humanos e vulnerabilidades”, coordena-
da pelos professores Doutora Josiane Rose Petry Veronese e Doutor Cláudio
Macedo de Souza, consolida um importante espaço no Programa de Pós-Gra-
duação em Direito – Mestrado e Doutorado – Centro de Ciências Jurídicas, da
Universidade de Santa Catarina (UFSC).
O Programa de Pós-Graduação em Direito possui uma disciplina espe-
cífica: “Direito da Criança e do Adolescente e Sistema de Justiça”, ministrada
pela professora Dra. Josiane Rose Petry Veronese, titular da cátedra: Direito
da Criança e do Adolescente. A referida professora é coordenadora do Nú-
cleo de Estudos Jurídicos e Sociais da Criança e do Adolescente (NEJUSCA),
o qual envolve alunos dos cursos de graduação, mestrado e doutorado desta
universidade.
Desde seu ano de fundação (1999), centenas de estudantes, reconhecidas
autoridades, juristas, juízes, promotores, advogados e muitos outros profissio-
nais passaram pelo núcleo para desenvolver seus estudos centrados na temáti-
ca do Direito da Criança e do Adolescente, tendo como referência os principais
documentos jurídicos que lhes conferem identidade, patrimônio e legado aca-
dêmico, em especial a Convenção dos Direitos da Criança, de 1989, a Consti-
tuição da República Federativa do Brasil, de 1988, e o Estatuto da Criança e do
Adolescente, de 1990.
De igual modo, o Programa contempla a disciplina “Direito e Frater-
nidade”, como uma conquista da nossa Pós Graduação em Direito por tra-
zer tema de extraordinária relevância, hoje inclusive presente nos julgados
do Superior Tribunal de Justiça (STJ) e do Supremo Tribunal Federal (STF).
Neste diapasão, constitui-se, em 2009, o Núcleo de Pesquisa Direito e Fra-
ternidade, o qual não se resume a um lugar de estudos e de investigação
doutrinária acerca da fraternidade e o direito mas, também, representa um
fórum permanente de diálogo com os atores do direito, uma vez que já estão
conosco vivenciando esta perspectiva, além de professores e estudantes de
direito e áreas afins, magistrados, membros do Ministério Público, advoga-
dos, policiais, entre outros, com uma profícua relação e troca de experiências
de outras instituições.
Este livro dedica-se a uma visão global sobre o conhecimento produzido
na área dos direitos humanos, necessário para o processo crítico de aprendiza-

14
APRESENTAÇÃO

gem, não só em relação ao conteúdo das disciplinas ofertadas nos programas


de graduação e pós-graduação como, também, em relação à prática profissio-
nal cotidiana, tornando-se, portanto, fonte de informação precisa e de reflexão
estimulante para docentes e discentes.
Coordenador do GDPI – Grupo de Pesquisa de Direito Penal Internacio-
nal, o professor Macedo ofertará ao Programa de Pós-Graduação a disciplina
de “Direito Penal em Cooperação Internacional” a fim de incentivar o trabalho
de pesquisa e a investigação científica numa visão crítica da dogmática, tendo
em vista que a interdependência entre países é uma realidade.
Respaldada nos mais diversos documentos, como a Carta das Nações
Unidas (24 de outubro de 1945) e na Declaração Universal dos Direitos Hu-
manos (10 de dezembro de 1948); a cooperação em direitos humanos tende a
estabelecer uma “proximidade planetária”, na qual o global e o local, o “inter-
nacional” e o “doméstico”, passam a estar estreitamente ligados e imbricados
na prática cotidiana dos indivíduos.
Nesta perspectiva, ao representar a UFSC no CONATRAP – Comitê
Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas do Ministério da Justiça
e da Segurança Pública (2018-2020), a promoção dos direitos humanos para
a proteção da pessoa foi impulsionada, porquanto a hipossuficiência econô-
mico-social das vítimas conduz à vulnerabilidade no gozo dos direitos civis
e políticos.
No atual momento em que a Carta das Nações Unidas completa 75 anos,
o livro tem o propósito de apresentar um conjunto de pesquisas no campo dos
direitos humanos em parceria com docentes e discentes dos Programas de Pós-
-Graduação de diversas Instituições de Ensino Superior.
A participação de docentes e de discentes vinculados ao Programa de
Pós-graduação em Direito da UFSC – Universidade Federal de Santa Catarina
e aos Programas de Pós-graduação da UNIMONTES – Universidade Estadual
de Montes Claros e da UFG – Universidade Federal de Goiás contribuirá para
o desenvolvimento científico na busca pela resolução de problemas internacio-
nais, nacionais e regionais relevantes.
A contribuição da UNIMONTES reafirma o compromisso com pesqui-
sadores que atuam numa região que alcança 342 municípios, correspondente
a 40% da área total do Estado de Minas Gerais, incluindo as regiões Norte,
Noroeste e os Vales do Jequitinhonha e do Mucuri. Com relação à UFG, ao
longo dos anos, a Instituição cresceu e hoje é composta de múltiplos campi, com
estrutura administrativa multirregional. Docentes de importantes Instituições
de Ensino Superior, a participação de egressos de Programas de Pós-gradua-
ção da UFSC reflete a interdependência na busca por soluções e melhorias da

15
DIREITOS HUMANOS E VULNERABILIDADES

qualidade de vida da população.


Por fim, os coordenadores desta obra gostariam de manifestar a todos
que contribuíram com seus estudos, nosso reconhecimento profundo de gra-
tidão pela confiança, amizade e apoio. Ao lado de todos é superlativamente
emocionante a alegria de vencer as instigantes etapas da vida. Caminhemos
sempre, na certeza de que temos um grande ideal: a concretização dos direi-
tos humanos.
Santa Catarina, 11 de novembro de 2020.
Josiane Rose Petry Veronese
Cláudio Macedo de Souza

16
SOCIEDADES IGUALITÁRIAS, LIVRES E FRATERNAS: OS
DIREITOS HUMANOS E OS 75 ANOS DA ONU
Josiane Rose Petry Veronese
Geralda Magella de Faria Rossetto

Sumário: 1. Introdução; 2. A Organização das Nações Unidas (ONU)


e algumas mais organizações internacionais: características, desafios
contemporâneos e tendências globais; 3. A reafirmação dos direitos
humanos e sua posição central na agenda e garantia de direitos pela
ONU; 4. A cooperação entre países, entre setores e entre gerações: so-
ciedades livres e igualitárias em direitos e em fraternidade; 5. Conside-
rações Finais; 6. Referências.

1. INTRODUÇÃO
Quando se toma em empréstimo a lição das relações em sociedade, per-
cebidas pela dinâmica de sua história social, jurídica e política, segue impe-
rioso lançar mão de três princípios construtores dessa sociedade: a liberdade,
a igualdade e a fraternidade. A bandeira desses três princípios, além da im-
portância que detém por si, também coordenam a proteção, a promoção e a
defesa dos direitos, em especial dos direitos humanos, que se desdobraram
ao longo do processo histórico, à mercê da força e constituição desses três
fundamentais princípios.
Eivados dessa proposta, o presente estudo tem como razão e objetivo
apresentar a dinâmica das sociedades e do reconhecimento de seus direitos,
sob o condão da liberdade, igualdade e fraternidade, da mesma forma que,
em grandeza e importância, tem-se os direitos humanos, em especial a garan-
tia para que tais direitos ocupem uma posição destacada na recuperação e no
estabelecimento de um plano valioso para a cooperação entre países, setores,
organizações e gerações, dentre estes pode ser indicada a educação, e outras
igualmente importantes categorias – muitas delas, alçadas à qualidade de di-
reitos que, pela disposição na atualidade, detém a condição substantiva de di-
reitos, no caso, em específico, direitos humanos.
Nesse sentido, parte-se da Organização das Nações Unidas – desde o
seu surgimento com a Carta das Nações Unidas, firmada em São Francisco,
no pós-guerra do ano de 1945 – e demais organismos internacionais, os quais
têm papeis destacados no tema proposto, sobretudo, para as relações humanas
na sociedade da informação, em termos de prioridades a nível mundial, para

17
DIREITOS HUMANOS E VULNERABILIDADES

as atuais e futuras gerações. Sobretudo, pode-se levar em consideração o viés


educacional, tão pertinente à criança e ao adolescente.
Significativo e curioso é o fato de que, em comemoração aos 75 anos da
Organização das Nações Unidas, cujo aniversário dá-se no dia 24 de outubro
do ano em curso (2020), a ONU lançou uma pesquisa, constituída de questio-
nários, a dar conta de identificar as prioridades da comunidade internacional
no atual momento em que o mundo convive com a pandemia da Covid-19.
A cooperação tem lugar destacado nessa comemoração, na medida em
que, reconhecida pela própria ONU, que lança o chamamento de que “o
mundo precisa de solidariedade” e, diante de tal conclusão passa a apresen-
tar alguns questionamentos: “Será que esta crise vai aproximar as pessoas
umas das outras? Ou será que dará origem a mais divisões e aumentará a
desconfiança?”.
As possíveis respostas a essas questões, associadas à proteção dos direi-
tos, perante as comunidades locais, regionais e internacionais, tem um condão:
definir as prioridades a nível mundial, atuais e futuras, e garantir a adoção da
solidariedade na posição central de recuperação das economias e construção
de sociedades mais igualitárias, fraternas e sustentadas com a liberdade.
Em consideração aos aspectos metodológicos, destaca-se que esta pesqui-
sa se caracteriza pelo emprego do método dedutivo, com ênfase para a análise
de textos referenciais e bibliográficos, como também, de algumas referências
normativas.

2. A ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS (ONU) E ALGUMAS


MAIS ORGANIZAÇÕES INTERNACIONAIS: CARACTERÍSTICAS,
DESAFIOS CONTEMPORÂNEOS E TENDÊNCIAS GLOBAIS
A título de introduzir o tema do estudo, parte-se do pressuposto de apre-
sentar as organizações internacionais (OI), de forma genérica, sem o compro-
misso exaustivo de indicar todos os órgãos que dela fazem parte, exatamente
porque, segundo tem reconhecido a doutrina,
As OI expressam-se em numerosas instituições e entidades, mas mais
influentes das quais sendo as instituições multilaterais, as organizações
não governamentais (ONG) e as sociedades transnacionais, estas últimas
compreendendo empresas e entidades profissionais e de classe de alcance
internacional. (CRUZ, 2006, p. 321).
A despeito das organizações internacionais, historicamente, o pós-segun-
da guerra mundial, conferiu o nascimento de vários desses organismos, cuja
indicação tem destaque neste, dentre outras agências multilaterais, a Organi-
zação das Nações Unidas (ONU). Corroborando, dessa experiência o mundo

18
JOSIANE ROSE PETRY VERONESE – GERALDA MAGELLA DE FARIA ROSSETTO

conhecerá o nascimento de várias instâncias e organismos3, os quais, segundo


LEMOS (2016), agenciam intensa mobilização e legitimidade política, com-
partilhando propostas a favor dos países que participam com representações,
como também, ratificando pactos, declarações e decisões de conferências mun-
diais. É fato, cada organismo toma como proposta alguns temas e leva em con-
ta uma área da população para gerir e cuidar, a favor da vida e da segurança.
Assim, além da ONU, podem ser citadas também a UNESCO e a UNICEF,
indicadas aleatoriamente neste estudo, mas, levando-se em consideração, três
razões principais e uma quarta, denotativa de conclusão dessas três acepções:
i) um, porque pela primeira vez na história humana, presta-se reconheci-
mento à presença da criança e do adolescente no contexto mundial e, também,
aos seus direitos – a dizer e a dar conta de prestar solidariedade à infância e
que levará à contemporaneidade a conferir avanço à fraternidade exatamente
pelo reconhecimento desses direitos aos pequenos, que se veem reconhecidos
em seus documentos, dando préstimo incomparável aos direitos humanos, no
que Lemos et al denomina, segundo a dinâmica de capital humano, de “pri-
meira janela de oportunidades” (2016).
Com efeito, no campo da infância, com a criação, em 1946, do Fundo das
Nações Unidas para a Infância, o UNICEF, encabeçará as pretensões suprana-
cionais mais atuantes, de forma a constituir uma das redes de profundo sig-
nificado no tema dos interesses e dos direitos da criança, sendo instalada em
diversas nações, onde passa às orientações e às ações assistenciais e de cunho
humanitário. Aliás, no plano jurídico, não se pode deixar de dar ênfase à ONU,
pelo significativo contributo na esfera da Declaração Universal dos Direitos
Humanos (1948), a conferir gigantes passos na esfera dos direitos humanos e,
também, quando elaborou uma preciosa declaração de direitos: a Declaração
Universal dos Direitos da Criança, aprovada em 1959, passando a caracterizar
o sujeito de direitos para a infância, que traria uma ampliação do escopo dos
direitos infantoadolescentes.
ii) dois, a Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cul-
tura (UNESCO) tem real compromisso com a educação e, nessa linha, presta
valoroso compromisso à experiência de fraternidade, na medida em que, com-
põe prestimoso auxílio às ações voltadas à esfera educacional. Cada ano esco-
lar vencido, equivale a dar oportunidades reais a quem participa do processo
educacional, beneficiando diretamente a toda uma comunidade.

3 Segundo Lemos et al (2016): “Por exemplo, a Organização das Nações Unidas para a Educação,
Ciência e Cultura (UNESCO) visa à educação, à ciência e à cultura; a UNIFEM visa às mulheres e
sua condição; o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) atua sobre o desen-
volvimento; o Programa das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente (PNUMA) cuida das temáticas
do meio ambiente, a Organização Mundial de Saúde (OMS), da saúde, entre outras agências da ONU.
Todas foram criadas após a II Guerra Mundial, na reativação da Liga das Nações, forjada após a I
Guerra Mundial e visava favorecer a paz e prevenir a realização de novas guerras”.

19
DIREITOS HUMANOS E VULNERABILIDADES

iii) três, sendo assim, ambas as organizações, são representativas da con-


jugação de direitos da liberdade, direitos sociais e direitos humanos, pos-
suindo a seu favor, correspondente estatuto de ferramenta jurídica capaz de
pressionar formalmente os Estados nacionais, entre si e entre seus cidadãos,
com um valoroso contributo na relação entre norma e lei por meio de pactos,
declarações e conferências mundiais, a prescrever normativas internacionais
de direito, e a influenciar o Estado Democrático de Direito, os povos e as
nações, notadamente a condição universal dos direitos humanos, como, tam-
bém, a valorizar a liberdade, a igualdade – esta através do pluralismo cultu-
ral e moral, reforçando as culturas locais e, em, especial, a cooperação, no que
passa a endossar a fraternidade.
Ilustrativo a esse respeito, tem-se especiais dispositivos contidos na Con-
venção sobre os Direitos da Criança, conforme decorre:
Artigo 18
1. Os Estados Partes envidarão os seus melhores esforços a fim de assegu-
rar o reconhecimento do princípio de que ambos os pais têm obrigações
comuns com relação à educação e ao desenvolvimento da criança. Caberá
aos pais ou, quando for o caso, aos representantes legais, a responsabili-
dade primordial pela educação e pelo desenvolvimento da criança. Sua
preocupação fundamental visará ao interesse maior da criança.
2. A fim de garantir e promover os direitos enunciados na presente con-
venção, os Estados Partes prestarão assistência adequada aos pais e aos
representantes legais para o desempenho de suas funções no que tange à
educação da criança e assegurarão a criação de instituições, instalações e
serviços para o cuidado das crianças. (BRASIL, 2020).
Ora, esses dispositivos dão conta de consolidar o princípio de que o pai e
a mãe têm responsabilidade na educação e no desenvolvimento de seus filhos
e o Estado deverá apoiá-los nesta tarefa, sempre que necessário, a ensejar, por-
tanto, uma relação de fraternidade e, também, de solidariedade4.
iv) quatro, essas três razões, dão conta de uma significativa conclusão,
norteadora do desfecho deste estudo: não há, por assim dizer, exemplos tão
significativos ao binômio fraternidade-solidariedade, conforme d´antes apon-
tado, por mais que, não há, em suas considerações, análise a esse respeito, o
que, em nada diminui a conclusão. Antes, ao contrário, reforça a importância
da ONU e dos demais organismos ora analisados, no que tem de especial na
defesa, na promoção e na proteção dos direitos humanos, independentemente
da faixa etária, mas notadamente, a favor dos direitos da futura geração5.

4 Ao longo do presente item será examinada a distinção entre ambas as expressões.


5 Um típico exemplo, tem-se no Marco de Ações e Recomendações para a Abertura das Escolas”, cujo
documento, capitaneado pela UNESCO, UNICEF, Banco Mundial e Programa Mundial de Alimentos,
em razão da COVID19, dá conta de que “O fechamento de escolas em todo o mundo em resposta à
pandemia da COVID-19 apresenta um risco sem precedentes para a educação, a proteção e o bem-

20
JOSIANE ROSE PETRY VERONESE – GERALDA MAGELLA DE FARIA ROSSETTO

Assim, sem desmerecer o pertencimento e destaque das Nações Unidas


no cenário contemporâneo, o presente estudo passa a prestar ênfase e análise
à Organização das Nações Unidas (ONU), exatamente por seu compromisso
com os direitos humanos e, em especial, a despeito da ONU completar 75 anos
no ano em curso (2020), sendo razão bastante para revisar seus desafios con-
temporâneos e tendências globais.
Nesse sentido, Cruz adverte que, as organizações internacionais, ao lado
da opinião pública internacional e do sistema de Estados-Nação herdado da
ordem de Westfália de 1648 detém posição e destaque para “representar a pe-
dra angular do processo de globalização no seu vetor eminentemente político”
(2006, p. 321). Mais, segue o autor revelando que “Essa afirmação justifica-se
à medida que a multiplicação, o desenvolvimento e a expansão das esferas de
atuação das OI confundem-se elas mesmas com a aceleração desse processo,
sobretudo após o final da Segunda guerra Mundial” (2006, p. 321).
Esses aspectos detêm particular significado a esta investigação, na me-
dida em que, tanto a incontestabilidade da soberania do Estado-Nação, como
também a herança desse Estado de paz, passaram e passam a traduzir, reco-
nhecer e realizar direitos humanos. Portanto, tais direitos saíram da sua in-
venção para a sua qualidade de construção, em que pese o fato de que, na
atualidade, usufruem da qualidade de direitos que estão sendo reconstruídos
e, nessa perspectiva, reafirmados.
A Organização das Nações Unidas (ONU) tem seu papel fundante com
a Carta das Nações Unidas, assinada em São Francisco, a 26 de junho de 1945,
após o término da Conferência das Nações Unidas a respeito da Organização
Internacional, entrando em vigor a 24 de outubro daquele mesmo ano. Atual-
mente é composta por 193 Estados Membros. A missão e o trabalho das Nações
Unidas são guiados pelos propósitos e princípios contidos em sua Carta de
fundação. (ONU, 2020a e 2020b).
Segundo disposto na Carta das Nações Unidas, documento este firmado
em 19456, os propósitos das Nações Unidas são:

-estar das crianças” e, de certa forma, cumpre um importante desiderato que é o de reforçar o direito
à educação, notadamente, quando a incerteza assola governos, povos e nações sobre quais escolhas
devem ser realizadas (UNICEF, 2020). Neste sentido: “Embora ainda não tenhamos evidências sufi-
cientes para mensurar o efeito do fechamento das escolas sobre o risco de transmissão da doença, os
efeitos adversos desse fechamento sobre a segurança, o bem-estar e a aprendizagem das crianças estão
bem documentados. A interrupção dos serviços educacionais também acarreta graves consequências
de longo prazo para as economias e sociedades, como o aumento das desigualdades, impactos nega-
tivos nos avanços nas áreas de saúde e redução da coesão social. Em muitos países, os dados sobre a
prevalência do vírus são incompletos, e os tomadores de decisão precisarão realizar melhores avalia-
ções em um contexto de incertezas e informações incompletas. Os governos e seus parceiros devem
trabalhar simultaneamente para promover e salvaguardar o direito de todas as crianças à educação, à
saúde e à segurança, conforme estabelecido na Convenção sobre os Direitos da Criança. O melhor
interesse da criança deve ser primordial” (UNICEF, 2020).
6 A indicação do nome “Nações Unidas”, foi cunhada pelo Presidente dos Estados Unidos Franklin
Delano Roosevelt, que dela fez referência pela primeira vez na Declaração das Nações Unidas de 1 de

21
DIREITOS HUMANOS E VULNERABILIDADES

1. Manter a paz e a segurança internacionais e, para esse fim: tomar, coleti-


vamente, medidas efetivas para evitar ameaças à paz e reprimir os atos de
agressão ou outra qualquer ruptura da paz e chegar, por meios pacíficos
e de conformidade com os princípios da justiça e do direito internacional,
a um ajuste ou solução das controvérsias ou situações que possam levar
a uma perturbação da paz; 2. Desenvolver relações amistosas entre as na-
ções, baseadas no respeito ao princípio de igualdade de direitos e de auto-
determinação dos povos, e tomar outras medidas apropriadas ao fortaleci-
mento da paz universal; 3. Conseguir uma cooperação internacional para
resolver os problemas internacionais de caráter econômico, social, cultural
ou humanitário, e para promover e estimular o respeito aos direitos hu-
manos e às liberdades fundamentais para 5 todos, sem distinção de raça,
sexo, língua ou religião; e 4. Ser um centro destinado a harmonizar a ação
das nações para a consecução desses objetivos comuns. (ONU, 2020b).
O Sistema da Organização das Nações Unidas – ONU é formado por seis
principais órgãos, bem como por Agências especializadas, Fundos, Programas,
Comissões, Departamentos, Escritórios e Setores7. Nos dias atuais as Nações
Unidas têm 26 programas, fundos e agências vinculados de diversas formas com
a ONU apesar de terem seus próprios orçamentos e estabelecerem suas próprias
regras e metas. Todos os organismos têm uma área específica de atuação e pres-
tam assistência técnica e humanitária nas mais diversas áreas. (ONU, 2020b).
Contudo, a sua gestão de sucesso decorre de uma complexa rede de
atuação e demandas que colocam em entrecruzamentos, desde organizações,
pessoas, instituições e países, incluindo a habilidade social e política que os
caracterizam em singularidade e cultura no mundo, a assumirem de modo
responsável a entrega concreta de direitos, em uma experiência de presença
que demanda a força da cooperação e da relacionalidade, cuja atribuição deixa
claríssimo a força da fraternidade, sem desmerecer também a eficácia da soli-
dariedade, em que pese as distinções entre uma e outra categoria.
Sobre essa distinção em particular, convém destacar que a indicação da
ONU em seus últimos documentos, como é o caso da pesquisa que está sendo
levado a termo na comemoração de seus 75 anos – a qual tem em sua chamada
uma expressão pertinente, conforme se tem: “O mundo precisa de solidarieda-
de” (ONU, 2020c), requer algumas considerações, a mercê de sua proximidade
e indistinções, muitas vezes não percebidas, em face da fraternidade, a per-
mear o significado e alcance que permitem. Senão, veja-se.
Ora, em que pese a adequada distinção que convém apresentar entre uma
e outra palavra (fraternidade versus solidariedade), é de se concluir: a frater-

janeiro de 1942, durante a Segunda Guerra Mundial. (ONU, 2020a).


7 Há também 26 setores ligados à ONU, como programas, agências e fundos. Entre eles, estão a Or-
ganização Mundial da Saúde (OMS), o Banco Mundial, o Fundo Monetário Internacional (FMI), a
Organização Internacional do Trabalho (OIT), o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) e
a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco). (ONU, 2020b).

22
JOSIANE ROSE PETRY VERONESE – GERALDA MAGELLA DE FARIA ROSSETTO

nidade usufrui da posição horizontal de vínculos cooperativos e relacionais.


Respeita-se a posição de todos enquanto iguais, mas únicos em suas deman-
das, autoridades, culturas e regionalismos; a seu modo, a solidariedade ocupa
o espaço das relações verticais, onde há uma demanda de autoridade, como
ocorre tipicamente na relação de um determinado país e seu povo. Nessa con-
figuração, o governo ocupa o comando, enquanto o povo ocupa o lugar de
pertencimento, mas também de cumprimento e de observações às leis, como
ocorre no pagamento dos impostos.
Já a solidariedade tem seu primeiro compromisso com a figura da autori-
dade de onde partem a entrega de direitos, de benefícios, de gestão, de organi-
zação. É o que acontece na organização política de um País. A democracia não
a desvirtua, mas a justifica, porque, muitas vezes poderá dosar a liberdade e a
segurança de seus cidadãos – tarefa essa de difíceis respostas, mas de funda-
mental pertinência às relações e pertencimento em sociedade – o viver juntos
depende dessa boa relação.
No mais, frente a lição da solidariedade, é necessário ter em conta uma
figura, a representar a autoridade, de forma que seus cidadãos possam organi-
zar-se em um exemplo e condução de cidadania. Neste caso, se remete à rela-
ção ilustrativa entre pais e filhos, enquanto que, na esfera da fraternidade, re-
mete-se à figura da irmandade, das relações entre pares ou entre irmãos, ou no
seu contrário, conforme se pode rememorar na clássica lição de Caim e Abel8.
A questão que se propõe, é saber – “dar conta” – de duas formas princi-
pais, duas figuras, cada qual com suas particularidades. No caso, também o
que as separam (fraternidade e solidariedade), sem abrir mão de que, muitas
vezes estão unidas, neste entrecruzar-se de ocorrências, que, na ilustração cita-
da, dá-se quando, na maioria das vezes, o lugar onde se encontram, no tempo,
no espaço e no compromisso que os unem, enquanto sujeitos e organização,
ou, o ânimo em que predispõe os países a se darem as mãos, uns e outros, seja
entre si, ou entre determinado país e seus cidadãos.
Para Mardones, a amizade política ou fraternidade é expressa e observada

8 O tema apresenta a fundação de uma civilização. Bem por isso, pode-se afirmar que, ao atravessar a
meditação da linguagem simbólica, representada pelo conflito entre esses dois irmãos, o tema fornece
uma imagem humana global, a orientar a base do pensamento na história, da luta dos homens e entre os
homens, por seu poder e permanência. Caim, é o primogênito; Abel, é o menor; o primeiro é agricultor,
o outro, pastor. Baggio, a respeito do drama desses dois irmãos, notadamente sobre o “conflito fraterno
segundo a Bíblia” (2012, p. 24), pondera que: na intenção de um dos dois, a presença do outro é intolerá-
vel; há uma negação radical da existência do outro, que é percebida como uma ameaça. E é exatamente
isso que Caim faz, eliminando seu irmão. O diálogo entre Caim e o Senhor dá conta do ocorrido. Ao
perguntar «Onde está o teu irmão?» o Senhor assume que, na sua perspectiva de Criador e de profundo
conhecedor da natureza humana, é específico da condição de fraternidade cuidar uns dos outros. Nesse
sentido, a resposta de Caim é dramática porque ele se recusa a ser responsável pelo outro homem. Mas,
por outro lado, o diálogo entre o Senhor e Caim revela um importante conteúdo da ideia de fraternidade:
os irmãos são dois iguais, mas diferentes. um do outro, podendo cada um ser chamado a ser responsável
pelo outro. É precisamente esta relação que Caim pretendeu negar. (BAGGIO, 2012, p. 25).

23
DIREITOS HUMANOS E VULNERABILIDADES

como uma confiança generalizada, que corresponde amplamente ao mesmo fe-


nômeno a que se referem os conceitos de concórdia e coesão social (2012, p. 87),
qual seja, uma liderança possível e diversa do ato heróico para uma dimensão
de comunidade que permite o pertencimento dos seus, cujo ideal está centrado
em sua horizontalidade, abertura a todos, reciprocidade e universalidade.
A seu modo, referidas dimensões fornecem substrato para um conceito
próprio de solidariedade – enquanto a fraternidade porta um conceito origi-
nário, pertencente à dimensão filial – só há o filho em relação ao pai, e há o
irmão em relação ao outro irmão, enquanto a solidariedade porta a figura da
autoridade de um (do pai), em face do outro, o filho.
Na solidariedade, percebe-se a presença de um Estado, que deve ter res-
ponsabilidade para com os seus (todos os cidadãos), cuja condição repousa
de uma relação vertical, que vai da autoridade – quem porta o distintivo soli-
dário em face, de quem a recebe. Tipíco, como se dá, por exemplo, na figura
do Pai, há a força do bem querer que se estende ao filho, um pai coletivo, pos-
to sempre no seu plural. Um pai que se faz nosso, distinto do pai físico, do pai
pessoal, do pai de sangue, do caráter privado, sempre um pai, onde se roga,
a proteção, a relação, a comunicação, a segurança, em que conste a presença
de um espírito comum, que irmana os cidadãos, que são postos, sempre em
face da existência de um Estado.
Mardones, a respeito da solidariedade revela que, a mesma se estende
em sua escala planetária; não se refere apenas a um cômodo, ou a um mem-
bro do meu grupo de pertença, mas especificamente diz respeito a outro,
inclusive a um estranho, sendo esse universalismo o que equivale ao conceito
de solidariedade com o de fraternidade universal. Mais, a solidariedade é um
vínculo pautado pela razão e não pelos sentimentos, que nos chama a ajudar
e que se apóia na silimitude de interesses e objetivos, mantendo também a
diferença entre os membros. (2012, p. 101).
Neste caso a distinção é adequada, pertinente e importante, a permitir que
os rigores e as qualidades de ambas possam ser utilizadas sempre que neces-
sárias, sem ter de lançar mão de certos subterfúgios, como o de dizer que um
Estado, que aponta caminhos, não necessariamente está a permitir a educação, a
formação, por exemplo, senão o de entregar o peixe, sem, ensinar a pescar.
Diante desse retrato, pode-se claramente perceber que a pesquisa em co-
mento cuja chamada intitulada “O mundo precisa de solidariedade” levada a
conclusão pela ONU, acertaria muito mais, de forma linguística, optando pela
chamada “O mundo precisa de fraternidade”. Contudo, em nada resta preju-
dicada, se seus benefícios estão a cumprir resultados, segundo se espera e já é
possível percebê-los, na medida das perguntas e do quadro estatístico gerado,
conforme se verá a seguir.

24
JOSIANE ROSE PETRY VERONESE – GERALDA MAGELLA DE FARIA ROSSETTO

3. A REAFIRMAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS E SUA POSIÇÃO


CENTRAL NA AGENDA E GARANTIA DE DIREITOS PELA ONU
O marco relativo à origem moderna dos direitos humanos ganha tônus
com o desenvolvimento de normas relativas à responsabilidade internacional
dos Estados, no tratamento dos estrangeiros e, em especial ao direito inter-
nacional humanitário. No entanto, formalmente deve-se à criação da Orga-
nização das Nações Unidas, no ano de 1945, cuja Carta das Nações Unidas
fez referência aos direitos humanos e às liberdades fundamentais, o grande
marco histórico. Na sequência, em 1948, a Assembleia Geral da ONU adotou
a Declaração Universal dos Direitos do Homem, instrumento este represen-
tativo do consenso global a dar conta de um rol de direitos – que foram além
dos direitos então presentes, relativos aos direitos civis e políticos que des-
pontaram nas revoluções liberais do século XVIII para abarcar os direitos
econômicos, sociais e culturais. (SOUZA, 2006, p. 169).
Outro aspecto a usufruir de essencialidade na concepção dos Direitos
Humanos, conserva no fato de que a Declaração Universal dos Direitos Hu-
manos usufrui da qualidade de um modelo comum para todos os povos e
nações, constituindo-se em fonte de inspiração e base sobre a qual tem sus-
tentado as Nações Unidas para fixar as normas contidas nos instrumento in-
ternacionais de Direitos Humanos, sobretudo o Pacto Internacional de Direi-
tos Civis e Políticos e o Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e
Culturais. (SOUZA, 2006, p. 169).
Os direitos humanos funcionam como uma mensagem local para uma
mensagem global de direitos de que são portadores, a dar conta de uma con-
dição segundo ensina Souza: na medida em que há a percepção de que pro-
blemas comuns, de ordem humanitária, estão a afetar a comunidade interna-
cional e, em contrapartida, requerem uma ação conjunta, qual seja, uma certa
disposição a favor da solidariedade e da cooperação. Esses problemas podem
ser indicados na seguinte forma: a injustiça social, a cultura da violência, a ne-
cessidade de proteger grupos vulneráveis e minorias étnicas e as violações de
direitos humanos e do Direito Internacional Humanitário.
A despeito do que ora está experimentando a humanidade por conta da
pandemia da Covid-19, neste momento, os governos, seus parceiros, a comuni-
dade como um todo, podem se ver comprometidos, e muitas vezes, dar conta
de que direitos estão sendo violados e necessitam de ações urgentes à mercê
de decisões, para as quais, os subsídios para seus tomadores de decisões po-
dem restar escassos, e mesmo as evidências de que caminho tomar podem não
ser suficientes para mensurar os efeitos dessa ou daquela decisão. É fato, os
governos, as empresas, os organismos nacionais e internacionais, o povo em

25
DIREITOS HUMANOS E VULNERABILIDADES

geral, devem colocar-se em rede de cooperação, de forma a trabalhar a favor


de promover e salvaguardar os direitos de todos, com ênfase para os direitos
humanos – na medida de suas reais dimensões.
Essas considerações traduzem importantes elementos a favor dos direitos
humanos, a dar sustentação à pesquisa levada a termo pela Organização das
Nações Unidas, por ocasião das comemorações de seus 75 anos, notadamente
a pesquisa cuja chamada “O Mundo precisa de Solidariedade” (ONU, 2020c),
que levou a termo em razão deste importante momento, a permitir reflexão
sobre muitas ações, programas, objetivos e, em especial, dar conta da proteção,
promoção e defesa dos direitos humanos, conforme a seguir será exposto.
O quadro das perguntas, dali retiradas, com o objetivo de “definir as prio-
ridades a nível mundial, atuais e futuras” (ONU, 2020c), foram contemporiza-
das na seguinte ordem, elencadas sem a preocupação das possíveis respostas,
mas com o nítido propósito de apresentar o quadro geral da pesquisa, e refor-
çadas pela dimensão que os direitos humanos comportam.
Foram apresentados sete pontos, representativos de sete perguntas, apre-
sentadas de forma que os participantes pudessem selecionar três possíveis res-
postas dentre os muitos e variados temas, a reforçar a importância dos direitos
humanos, os quais, sempre dependeram de proteção, promoção e defesa por
parte de todos, em especial de esforço concentrado da Organização das Nações
Unidas, dos povos e das nações. Senão, veja-se.
i) 1-Quais devem ser as prioridades da comunidade internacional para
recuperar melhor da pandemia?
Dar prioridade ao acesso universal aos cuidados de saúde; Modernizar
as organizações internacionais para que possam obter melhores resul-
tados; Reforçar a solidariedade entre povos e nações; Dar prioridade ao
acesso universal aos cuidados de saúde; Aumentar o apoio às comuni-
dades e países mais afetados; Modernizar as organizações internacionais
para que possam obter melhores resultados; Reforçar a solidariedade
entre povos e nações.
ii) 2-Se pensar a mais longo prazo e imaginar o mundo tal como deseja-
ria que fosse daqui a 25 anos, quais são as três coisas que mais gostaria
que se realizassem?
Maior proteção ambiental; Maior igualdade entre países; Mais respeito
pelos direitos humanos; Melhor acesso à assistência médica; Consumo e
produção mais sustentáveis; Mais oportunidades de emprego; Mais opor-
tunidades de emprego; Melhor acesso à educação; Maior igualdade entre
homens e mulheres; Melhor gestão da migração internacional.
iii) 3-Quais dessas tendências globais você acha que mais afetarão nosso
futuro?
Riscos relacionados à saúde (exemplo: pandemias, maior resistência a

26
JOSIANE ROSE PETRY VERONESE – GERALDA MAGELLA DE FARIA ROSSETTO

antibióticos); Riscos com o surgimento de novas tecnologias (exemplo:


privacidade de dados, impactos em empregos); Risco de terrorismo; Mi-
gração e deslocamentos forçados (exemplo: pessoas fugindo de conflitos
ou desastres); Armas nucleares e de destruição em massa; Ruptura nas
relações entre países; Conflito armado e violência politicamente motivada;
Mudanças rápidas em nossas populações (exemplo: mais pessoas vivendo
nas cidades, envelhecimento populacional); Mudança climática e questões
ambientais (exemplo: poluição, desmatamento); Ciberguerra e novos ti-
pos de armas (exemplo: armas de inteligência artificial); Crime organiza-
do (exemplo: tráfico).
iv) 4-Quão importante é – ou não – que os países trabalhem juntos para
coordenar as tendências acima?
Essencial; Muito importante; Razoavelmente Importante; Não é muito im-
portante; Nada importante.
v) 5- A pandemia de COVID-19 fez com que mudasse de opinião sobre
a cooperação entre países?
Não, não alterou a minha opinião; sim, passei a ser a favor de MENOS
cooperação; sim, passei a ser a favor de MENOS cooperação.
vi) 6- Em geral, você acha que as pessoas em 2045 estarão em uma situa-
ção melhor, pior ou na mesma que você se encontra hoje?
Melhor; Na mesma; Pior.
vii) 7-O que você aconselharia o secretário-geral da ONU a fazer para
lidar com essas tendências globais? (resposta livre). (ONU, 2020c).
A consecução da referida pesquisa, para lá de conferir destaque aos direi-
tos humanos, também dá conta da importância da cooperação entre os povos
e com os povos, a qual, neste momento, está a cobrar por parte de todos, po-
vos, nações, comunidades, sociedade em geral, firme posicionamento na defe-
sa desses importantes temas – todos, pode-se dizer, pertencentes às variadas
dimensões, as quais, sem dúvida, compõem o rol dos direitos humanos – cujos
temas, eleitos com o afã de proporcionar a defesa da vida e dos interesses dos
direitos humanos, da mesma forma que conserva importantes canais de pro-
moção e de proteção desses direitos.
Neste viés, a não ser por vários pontos eleitos na pesquisa, certamente o
ponto da chamada, a dar destaque para a solidariedade, está a alertar sobre a
importância fundante do tema, que aliás foi destacado neste estudo, a mercê de
distinção em face da fraternidade. Seja como for o importante é que compreen-
damos a força que o tema da cooperação requer seja retomado na esfera cientí-
fica, doutrinária, política, filosófica, das tradições histórico-culturais e, também
à esfera das artes – esta, certamente, um precioso contributo à tarefa educativa.
Mais, é preciso levar em conta outro essencial papel que a “chamada” da
ONU parece despertar: o fato de que, por mais que diferentes especificidades

27
DIREITOS HUMANOS E VULNERABILIDADES

nos caracterizem, por mais que a pertença humana seja distinta, estamos todos,
cada qual enfrentando problemas das mais diversas ordem, mas, um ponto
em comum há de nos guiar: a fraternidade (estar juntos e responder por seus
iguais, em um processo comprometido de reciprocidade e de relacionalidade)
e de igual forma, também, a solidariedade (que é quando o governo e os gover-
nantes são responsáveis por seus cidadãos).
A esse respeito, uma importante voz tem dado destaque para a coopera-
ção, seja entre organizações, países, nações e pessoas. Trata-se de Yuval Noah
Harari, cuja ação e expressão a favor da cooperação, tem povoado a imprensa,
os comitês de pesquisa e a própria ciência com um recado fundamental: “Si no
se tiene una buena base científica se dicen cosas sin sentido. Hay que construir
un puente entre la comunidad científica y el público en general. En caso contra-
rio, las ideas erróneas se implantarán en la mente de la gente” (EL PAÍS, 2020a).
De igual forma, em uníssono: “O verdadeiro antídoto contra uma epidemia
não é a segregação, e sim a cooperação” (EL PAÍS, 2020b).
Ora, sem a contribuição e a influência decisiva da cooperação9 entre os po-
vos e com os povos, com os países e seus governos, dificilmente esta travessia
nos permitirá avançar sem conferir prejuízos incomensuráveis à vida humana,
seja na ordem biológica, física, química, sustentável e, até mesmo tecnológica.
Nenhum de nós há de estar autorizado a atuar no mundo sem o compromisso
que nos une enquanto seres humanos: sermos seres fraternos, equivalentes a
seres humanos solidários e cooperativos.

4. A COOPERAÇÃO ENTRE PAÍSES, ENTRE SETORES E ENTRE


GERAÇÕES: SOCIEDADES LIVRES E IGUALITÁRIAS EM DIREITOS E
EM FRATERNIDADE
Sem dúvida a Revolução Americana (1776) e a Revolução Francesa (1789)
são movimentos norteadores para a modernidade, sobretudo quanto às repre-
sentações da liberdade, igualdade e fraternidade. A tal respeito, Marques-Pe-
reira pondera que:
A primeira traduz uma perspectiva liberal que atribui toda a sua impor-
tância à liberdade individual e à igualdade de todos diante da lei. Ela rei-
vindica o direito ao voto e a participação no self-government. A segunda
defende a liberdade, a igualdade e a fraternidade em nome da universali-
dade. (2009, p.35).
Corroborando, Baggio aponta que a Revolução Francesa, de 1789, pro-

9 Leia-se fraternidade e solidariedade enquanto expressões pares, com sentidos próprios, em que pese
as distinções conferidas às categorias conforme consta do presente estudo, reforçado por construto
doutrinário que tem avançado nos dias atuais, sobretudo entre os adeptos da doutrina de Antonio Maria
Baggio (2012, 2008, 2009), e reforçada pelo Movimento Comunhão e Direito, sobretudo na América
Latina, inclusive no Brasil, como, também, na Europa.

28
JOSIANE ROSE PETRY VERONESE – GERALDA MAGELLA DE FARIA ROSSETTO

clama também a célebre divisa “liberdade, igualdade, fraternidade”, que ini-


cialmente não era oficial, cujo reconhecimento foi oportunizado na República
revolucionária de 1848, constituindo um ponto de relevância pelo fato de
que, pela primeira vez na Idade Moderna, a concepção de fraternidade foi
expressa (2008, p. 7).
O Século XX, pode-se dizer, a seu modo, também tratou de afirmar a
importância a tais princípios de um modo particularíssimo10, recepcionando-
-os (os referidos princípios) em um documento de expressão e importância
fundamental ao reconhecimento dos direitos humanos. Trata-se da Decla-
ração Universal dos Direitos Humanos, adotada pela Assembleia Geral da
ONU, firmada em 12 de dezembro de 1948, cujo instrumento, segundo ad-
verte Souza (2006, p. 169), “representou o consenso global da comunidade
internacional em torno de um rol de direitos que ia além dos direitos civis
e políticos surgidos das revoluções liberais do século XVIII para abarcar os
direitos econômicos, sociais e culturais”.
Corroborando, segundo o particular ponto de vista técnico, embora te-
nha a DUDH sido adotada por meio de uma resolução não obrigatória, seu
valor jurídico é estimado como uma autêntica interpretação da Carta11, ou
uma motivação para a reafirmação de normas costumeiras e de princípios
gerais de direito, a servir de base para a adoção dos Pactos Internacionais de
Direitos Civis e Políticos, como também, a conferir parâmetros aos Direitos
Econômicos, Sociais e Culturais, em 1966, e demais outros instrumentos de
alcance universal ou regional. Contudo, sem dúvida, uma das contribuições
mais significativas da DUDH diz respeito à concepção integral holística dos
direitos humanos – permeando-os com a interrelacionalidade, a indivisibili-
dade e a universalidade (SOUZA, 2006, p. 169-170).
Segundo se tem, a contemporaneidade também conhece a força dos direi-
tos humanos, propagada pela influência decisiva da Declaração Universal dos
Direitos Humanos. É que a criação de meios e de mecanismos de supervisão
visa corrigir o discurso dos Estados, muitas vezes distantes de sua prática e,
assim, dar conta de direitos humanos fortalecidos, implementados, portadores
de efetividade e de eficácia. Sem dúvida, os meios e mecanismos de sua pro-
teção, de que são ilustrativos os órgãos de supervisão, os relatórios periódicos
(reporting system), bem como, na seara da tutela de acesso à justiça, as petições
e as reclamações, de forma que, todas essas medidas instrumentais, dão conta
da representação da constitucionalidade e da convencionalidade de que os di-

10 Não sem antes dar expressão ao primeiro documento histórico do fim da guerra, a Carta das Nações
Unidas. (BOBBIO, 2000, p. 481).
11 Está contido em seu preâmbulo: “a fé nos direitos fundamentais do homem, na dignidade e no valor da
pessoa humana, na igualdade dos direitos dos homens e das mulheres, e das nações grandes e peque-
nas” (BOBBIO, 2000, p. 481).

29
DIREITOS HUMANOS E VULNERABILIDADES

reitos humanos alimentam-se a favor da proteção, defesa e promoção de seus


próprios direitos.
Os dias atuais tem suportado e apresentado um quadro de direitos
humanos que necessitam ser realinhados, na medida em que, na história
de formação dos direitos humanos, tem destacado menos a barbárie12 dos
tempos primevos. Da lição de sua formação, pode-se dizer, que as ações
voltadas à que esses direitos são produtos da paz, qual seja, da geração que
presenciou a guerra e não mediu esforços para que a humanidade traçasse
firmes diretivas contrárias a essa violência sanguinária de onde decorrem
os mais variados documentos de expressão internacional. Aliás, é impor-
tante dar-se conta que,
[...]o problema da paz é um dos grandes problemas que os homens são
conclamados a resolver de tempos em tempos, não é o único problema,
o problema dos problemas, cuja solução libertará de uma vez por todas a
humanidade dos males que a afligem tornando-a definitivamente feliz. O
problema dos problemas não existe. O que não exclui que o problema da
paz, mesmo no sentido negativo do termo, como o problema da limitação
e até mesmo da eliminação da guerra, seja um dos maiores problemas ao
qual os homens tentaram dar, mesmo que até agora em vão, uma solução.
(BOBBIO, 2000, p. 517).
Nesta perspectiva, colhe-se dos ensinamentos da Encíclica Fratelli Tutti,
conforme dão conta as conclusões seguintes, para citar apenas algumas pou-
quíssimas considerações:
i) Durante décadas, pareceu que o mundo tinha aprendido com tantas
guerras e fracassos e, lentamente, ia caminhando para variadas formas
de integração; ii) E ganhou força também o anseio duma integração la-
tino-americana, e alguns passos começaram a ser dados. Noutros países
e regiões, houve tentativas de pacificação e reaproximações que foram
bem-sucedidas e outras que pareciam promissoras; iii) Mas a história
dá sinais de regressão. Reacendem-se conflitos anacrónicos que se con-
sideravam superados, ressurgem nacionalismos fechados, exacerbados,
ressentidos e agressivos; iv) De novo nos envergonham as expressões
de racismo, demonstrando assim que os supostos avanços da sociedade
não são assim tão reais nem estão garantidos duma vez por todas. (PAPA
FRANCISCO, 2020, p. 5 e 9).
Entretanto, nesta atual contemporaneidade, um outro momento se apre-
senta, colocando em ameaça a saga humana com uma outra crise que, apesar de
experimentado por momentos outros da história, quando a humanidade tam-

12 Merece aprofundado estudo – e inclusive correção, se for essa a conclusão – o estudo dos direitos
humanos em face da lição da barbárie, em especial, a barbárie da reflexão, impregnada pela preocu-
pação com a vida prática e civil na medida em que examinada por Giambattista Vico (1668-1744), no
Princìpi di Scienza Nuova (Ciência Nova), de 1744, a dar conta de um importante alerta sobre os riscos
de uma barbárie ameaçadora da convivência civil – a nosso ver, que se apresenta sempre nova e que
sempre se “corrige” oportunizando novos modelos de barbáries. (VICO, 1992).

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JOSIANE ROSE PETRY VERONESE – GERALDA MAGELLA DE FARIA ROSSETTO

bém deparou com doenças incuráveis13, cuja propagação deu conta do quadro
de uma pandemia, como sói ocorrer com a Covid-19. Porém, o momento atual,
pela expressão tecnológica alcançada, é particularíssimo. Assim os revelam as
razões seguintes, sem, contudo, dar conta de respostas conclusivas, mas que
são um prenúncio da questão: “No século transcorrido desde 1918, a humani-
dade se tornou cada vez mais vulnerável às epidemias, devido a uma mistura
de aumento da população e melhores transportes” (HARARI, EL PAÍS, 2020b).
De outro modo, as questões seguintes oferecem um anúncio dessas ques-
tões, neste momento:
a)os dias de agora estão marcados pela globalização em massa; a co-
municação instantânea; o tratamento dos dados; a evolução da ciência, sem,
contudo, dar conta de novas doenças (ainda que antigas) mas que são novas
no contato e na disseminação humana; a população do planeta; as questões
ambientais; a exposição química, física e biológica e, também, o conhecimento
científico, da qual não escapa nem mesmo o avanço doutrinário – sobre este
ponto em particular, pondera Harari que “Las principales cuestiones políticas
son también científicas” (EL PAÍS, 2020a).
A partir da constatação de crise da época atual, é importante traçar algu-
mas vias conceituais e científicas, a permitir a abordagem científica do atual
tempo, pela importância fundante com que a ciência representa e se apresenta
para a crise atual, sobretudo, o declarado significado e papel que a cooperação
está a ganhar, qual seja, um revelador diagnóstico do tempo presente, a dar
conta de um lado, o modelo de cooperação e, de outro, um conceito realista de
seu diagnóstico, a compor, uma teoria crítica, preenchida pela fraternidade, e
de outro, o papel da solidariedade, cumprida pela autoridade dos organismos
internacionais e pelos Estados. Ora, a ciência dos dias atuais, não é feita da for-
ça exclusiva de uma mente, nela habitam equipes, verdadeiras bases de pensa-
mento, onde o conceito binário, menos que o quântico, está perdendo espaço.
Bem por isso, construir e apontar um diagnóstico da “cooperação”, pode
revelar a força da ciência e, igualmente, a força da fraternidade e da solidarie-
dade. Sobretudo, a fraternidade, vigora em sua mais absoluta condição, afasta-
da que foi da história humana a trazer novo alento aos direitos humanos e ao
conjunto da ciência.
Não por acaso, conforme aponta Voirol, em defesa da categoria do “reco-

13 Ao longo da história da vida humana, várias sociedades enfrentaram episódios de riscos biológicos,
tais como a Peste Negra europeia ou Peste Bubônica (1347-1351); as doenças ‘europeias’ em popula-
ções nativas da América, em vários períodos e tempos da história, e a Gripe Espanhola (1918-1920); e,
no caso do Brasil, significativa é a questão da varíola, presente nos inícios do ano de 1900, que, inclu-
sive, levou o então Presidente da República Rodrigues Alves, a enfrentar a Revolta da Vacina (1904)
no Rio de Janeiro, na época Distrito Federal, a dar conta das dificuldades enfrentadas, reveladoras da
mais absoluta ignorância e desconhecimento científico. (SEVCENKO, 2018, p. 22).

31
DIREITOS HUMANOS E VULNERABILIDADES

nhecimento”, presente na teoria crítica de Axel Honneth, dá-se conta que a tra-
dição individualista acentua corretamente o papel do indivíduo e da liberdade,
mas persiste a crítica à incapacidade de pensar a dimensão social e de conceber
o indivíduo à luz de suas próprias necessidades (2014, p. 125).
A respeito do individualismo Bobbio (2020, p. 480) apresenta três formas
de individualismo a dar conta de que, sem essas tais formas (de individualis-
mo), o ponto de vista dos direitos humanos torna-se incompreensível: o indivi-
dualismo ontológico, representativo do estudo da sociedade a partir das ações
individuais; o individualismo ontológico, cujo pressuposto, da autonomia de
cada indivíduo em relação a todos os outros de igual dignidade de cada um
deles; e o individualismo ético, em que cada pessoa é uma pessoa moral.
Entretanto, na história da afirmação dos direitos do homem, enquanto
premissa de sua universalidade, tem na sua constitucionalização, o principal
passaporte para o mundo dos direitos humanos universais, e a convenciona-
lidade, o reconhecimento de direitos invioláveis de todos, a romper com os
direitos naturais, adentrar os direitos positivos e, assim seguir a vida desses
direitos, que certamente darão conta de pensar em direitos feitos cooperativos,
em fraternidade, direitos transpostos da dimensão interna para a dimensão in-
ternacional – em uma dimensão real, de poder exigir justiça em uma instância
superior que não a do próprio Estado. Sem dúvida, está aí uma magna lição,
que foi possível por todas as razões. Porém, sem dúvida, a própria lição da
fraternidade, não deixa dúvidas de sua presença.
A seu respeito, Mardones pondera que a incorporação do princípio da
solidariedade no ordenamento da cidadania social, e, mesmo na sua própria
prática, implica em uma relação vertical do forte para o fraco; em vez disso,
a fraternidade pressupõe uma relação horizontal na partilha dos bens e do
poder (2009, p. 101).
Agora, definitivamente, ao juntarmos a peça desse quebra cabeça, po-
de-se afirmar, sem erro, que esse “novo” encontra-se inaugurado pela fra-
ternidade, de forma que, em sua lição, depara-se com o “essencial duma fra-
ternidade aberta, que permite reconhecer, valorizar e amar todas as pessoas
independentemente da sua proximidade física, do ponto da terra onde cada
uma nasceu ou habita” (PAPA FRANCISCO, 2020).
Ora, a marca da Covid-19 pode mesmo quebrar a marca do individua-
lismo e inaugurar um novo construto: de ressignificar a cooperação entre os
países, entre os Estados, entre as famílias, entre as pessoas, a dar conta de um
novo paradigma de envergadura, só comparável ao que foi vivido pela liber-
dade e pela igualdade14 – no caso, é imperioso que seja colocada à mesa de
14 A respeito da liberdade e da igualdade, pondera Baggio que referidos princípios deixaram de cumprir
com a sua própria realização, ou a mesma ficou incompleta ou fracassou. (2009, p. 11).

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JOSIANE ROSE PETRY VERONESE – GERALDA MAGELLA DE FARIA ROSSETTO

discussão os bem-vindos efeitos da fraternidade.


Em conclusão, há uma vigorosa lição da qual não se pode desmerecer –
oriunda da agenda comemorativa da ONU. Trata-se da “Declaração sobre a
comemoração do septuagésimo quinto aniversário das Nações Unidas”, em
que estabelece 12 compromissos a compor a resolução global, quais sejam:
não deixar ninguém para trás, proteger o planeta, promover a paz, respeitar
o direito internacional, colocar as mulheres e meninas no centro, construir
confiança, melhorar a cooperação digital, atualizar as Nações Unidas, garan-
tir financiamento sustentável, impulsionar parcerias, trabalhar com os jovens
e, finalmente, estar preparado. (ONU, 2020d)
Esses 12 compromissos estão a propor um recado importante, da mesma
forma que adverte: “Não estamos aqui para comemorar”, disseram os líderes
mundiais, por meio da declaração. “Nosso mundo ainda não é o mundo que
nossos fundadores imaginaram há 75 anos.” (ONU, 2020d).
Com efeito, é preciso saudar esses novos tempos, mesmo difíceis, com a
força da fraternidade universal, da cooperação e da solidariedade global.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Dentre os três princípios chaves, incluídos no documento de recepção
política de maior expressão no século XX, no caso liberdade, igualdade e fra-
ternidade, foram inseridos na Declaração Universal dos Direitos Humanos,
posto tratar-se de instrumento que deu uma nova dinâmica aos direitos – que
incorporaram – além da expressão nacional, a internacional, reconfigurando os
valores jurídicos dos direitos, a fraternidade tem ganhado expressão e força, de
forma que, não se pode mesmo desconsiderar a sua potência.
De fato, no atual momento, a humanidade tem todo o conhecimento e
as ferramentas tecnológicas necessárias à incorporação da fraternidade e, em
sua decorrência, à cooperação entre – e com – os povos, países e sociedade.
O problema real decorre do próprio ódio, da ganância, da ignorância e até
mesmo, do desprezo à ciência, no que deixou claro a presença da COVID-19
entre os seres humanos.
Assim, a menos que se possa reagir a esta crise com fraternidade, com
solidariedade global, e com cooperação, ao invés de seguir com o ódio, e até
mesmo disseminando a culpa em outros países, em pessoas – representativas
de certas minorias e até na própria religião, é certo que teremos problemas
de toda sorte, incluindo questões econômicas, pobreza, exclusão, escolaridade,
em uma lista nada desejável de problemas, ao invés de programas e agendas, a
dar conta da proteção de direitos.

33
DIREITOS HUMANOS E VULNERABILIDADES

Esse desenho poderá romper com a proteção e defesa dos direitos huma-
nos, rompendo de vez, com o compromisso de sua pesada e dificultosa agenda,
conforme tem ocorrido nos dias de agora.
Devemos imbuir sentimentos e, sobretudo, ações dirigidas a desenvol-
ver compaixão, e não ódio, e reagir com fraternidade universal, aptidão ge-
nerosa, e, sobretudo, a inspirar os países e os governos a atuar em solidarie-
dade global, desenvolvendo agenda compatível com os mais vulneráveis, os
fragilizados e os excluídos.
Munida desse intento o estudo proposto foi assim distribuído, além da
introdução, das considerações finais e das referências. Senão, veja-se:
i) na primeira parte, o primeiro item apresenta três Organização Interna-
cionais, com ênfase para a Organização das Nações Unidas – ou simplesmente
Nações Unidas – seja porque a ONU acaba de completar 75 anos, cuja história
e atuação intergovernamental, confundem-se a favor da promoção, proteção e
defesa da cooperação internacional e com tal vocação, mantém sua posição na
defesa dos direitos humanos. Para tanto, tendo em consideração a importância
dos primórdios recentes de seu nascimento (24 de outubro de 1945, em São
Francisco, Califórnia) e, com sede em Nova York, ambos nos Estados Unidos
da América), dentre os seus desafios contemporâneos, sua agenda não esque-
ceu dos difíceis momentos em que atravessa a humanidade nos dias atuais,
onde a vida humana resta comprometida.
ii) na segunda parte, foram oferecidos contrapontos sobre a reafirma-
ção dos direitos humanos e sua posição central na agenda e garantia desses
direitos pela ONU. Conforme restou destacado a ONU, com sua atuação no
mundo, tem favorecido a humanização das principais atuações dos países e
garantido a criação de uma consciência jurídica universal a favor dos direitos
humanos, e, também, tem atuado na atenção dos valores humanos em con-
traponto à atuação e razão do Estado, garantindo-se uma complexa rede de
proteção dos direitos humanos.
iii) na terceira parte, foi examinada a cooperação entre países, entre seto-
res e entre gerações, entre sociedades livres e igualitárias em direitos e em fra-
ternidade, de forma que, por influência da agenda da ONU, corroborada pelas
variadas transformações no cenário da sociedade da informação, tais como as
ocorrentes na política, na economia, na sociedade e, também, na tecnologia, da
qual se espera, um constante desenvolvimento da cooperação e, em contrapar-
tida, oportuniza-se também, a solidariedade e a fraternidade.
No mais, em relação à pandemia que nos assola, devemos desenvolver a
capacidade de discernir a verdade, sobretudo, de entender a ciência, por mais
que, ela tenha falhado em um passado recente – como ocorreu – com o genocí-

34
JOSIANE ROSE PETRY VERONESE – GERALDA MAGELLA DE FARIA ROSSETTO

dio perpetrado pelos campos de concentração que dela serviu-se. O descrédito


da ciência, nesse momento atual não parece interessar a ninguém, a não ser os
portadores de ódio e de aviltamento à vida. Portanto, ao invés de acreditar em
todas essas teorias da conspiração saudemos à fraternidade, a cooperação e a
solidariedade global. Delas pode estar a resposta que tanto procuramos para
vencer o mal desses tempos de Covid-19.
Em síntese, sejamos defensores da Chamada da ONU em seus 75 anos de
presença e de agenda na história da vida e dos direitos humanos.

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1992.

36
OS OBJETIVOS DO DESENVOLVIMENTO
SUSTENTÁVEL COMO DIRETRIZES DE PROTEÇÃO DAS
VULNERABILIDADES DA PRIMEIRA INFÂNCIA
Daniela Richter
Joséli Fiorin Gomes

Sumário: 1. Introdução; 2. A sustentabilidade como um processo; 3. Os


Objetivos do Desenvolvimento Sustentável como diretrizes de proteção
da infância no século XXI; 4. O Marco Legal da Primeira Infância face à
Agenda Global de Desenvolvimento Sustentável; 5. Considerações finais;
6. Referências.

1. INTRODUÇÃO
O presente trabalho versa sobre a sustentabilidade enquanto um processo
mais amplo do que a simples preservação ambiental. Para tanto, analisam-se
os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS), propostos pela Agenda
2030 das Nações Unidas, de modo a verificar se eles encontram ressonância na
legislação que contempla a primeira infância no Brasil, levando em considera-
ção a hipervulnerabilidade dos infantes de zero a seis anos de idade.
Objetiva, inicialmente, tratar a descrição das variadas possibilidades que
o termo sustentabilidade suscita, para, após, descrever e apresentar as refle-
xões necessárias sobre os objetivos do desenvolvimento sustentável.
Especificamente, quer demonstrar se os ODS trazem diretrizes para a
proteção da infância no século XXI e se as disposições do Marco Legal da Pri-
meira Infância (Lei nº 13.257/2016), o qual estabelece princípios e diretrizes
para a formulação e a implementação de políticas públicas a este público, jus-
tamente em atenção à especificidade e à relevância dos primeiros anos de vida
no desenvolvimento do ser humano, estão alinhadas a esta agenda internacio-
nal pela sustentabilidade.
A discussão se justifica não só pela adoção da doutrina da proteção inte-
gral e do princípio da prioridade absoluta pelo Estatuto da Criança e do Ado-
lescente, mas, também, porque o meio ambiente e a proteção contra a pressão
consumista constituem áreas prioritárias para as políticas públicas para a pri-
meira infância, áreas essas compreendidas pela visão ampliada da sustentabi-
lidade da Agenda 2030.
Para tanto, utiliza-se o método de abordagem dedutivo, partindo-se da

37
DIREITOS HUMANOS E VULNERABILIDADES

definição de sustentabilidade como processo e sua inserção em normativa de


soft law internacional – os ODS –, para verificar a sua aplicação no direito inter-
no, na norma nacional sobre primeira infância. E, empregam-se os métodos de
procedimento monográfico, abordando normativas específicas, histórico, para
entender como os ODS se formaram e como se referem à primeira infância, e
comparativo, ao se examinar como se relacionam as normativas internacional
e interna sobre o tema.

2. A SUSTENTABILIDADE COMO UM PROCESSO


O que se pretende no presente tópico é destacar a importância da com-
preensão da sustentabilidade como um processo, como uma preocupação de
uma busca, de uma meta comum de ataque à pobreza e a destruição ambiental.
Trata-se de tema interdisciplinar que precisa ser pensado sob a ótica dos direi-
tos Difusos, para que de fato, se consiga preservar para as presentes e futuras
gerações os mesmos bens ambientais do presente.
Logo, mais do que nunca se faz necessário um planejamento flexível e ne-
gociado que esteja preocupado com as questões ambientais sociais. E, por esta
razão que se discutem aqui os possíveis desdobramentos que este tema suscita.
É sabido que o Relatório Brundtland e os objetivos do milênio tratam o
desenvolvimento sustentável como “o desenvolvimento que satisfaz as neces-
sidades presentes, sem comprometer a capacidade das gerações futuras de su-
prir suas próprias necessidades”. Com efeito, a Rio 92 também contemplou
essa preocupação em seus princípios onde desde o primeiro estabelece que
“Os seres humanos constituem o centro das preocupações relacionadas com
o desenvolvimento sustentável. Têm direito a uma vida saudável e produtiva,
em harmonia com a natureza”. Afirmando, logo após, que “O direito ao de-
senvolvimento deve ser exercido de tal forma que responda equitativamente
às necessidades de desenvolvimento e ambientais das gerações presentes e fu-
turas” (Princípio 3) E, reitera a necessidade de comprometimento global e da
participação de todos, não apenas do Estado na sua implementação ao longo
dos demais princípios (PACTO GLOBAL, 1992)
Ademais, é certo que a visão de uma economia verde – aquela que supe-
ra a marrom, intensiva em recursos naturais -, sem dúvida, “significa assumir
o fomento do crescimento econômico e do desenvolvimento, assegurando
que os recursos naturais continuem a fornecer os recursos e serviços ambien-
tais dos quais a humanidade depende” (DIAS, 2014, p. 26). Estas preocupa-
ções trazem uma novidade na sociedade hodierna: aumento e procura por
padrões ecologicamente aceitáveis. Mas, para Dias (2014, p.26- 27) o uso de
novas tecnologias e a mudança do consumidor, agora receptivo ao padrão de

38
DANIELA RICHTER – JOSÉLI FIORIN GOMES

sustentabilidade não são suficientes, pois, para ele, é necessário “mais inova-
ção para que o crescimento não fique totalmente associado ao capital natural
passível de esgotamento”.
Sachs (2002, p. 71) enumera várias nuances do termo sustentabilidade.
Trata brevemente da sustentabilidade social como uma das finalidades do
desenvolvimento, já que o caos social certamente chegará antes da catástro-
fe ambiental. Diz que há um corolário do tema quando fala do viés cultural,
afirmando, inclusive que sua versão ambiental é consequência das demais mo-
dalidades. Menciona a relação direta com a distribuição territorial equilibra-
da de assentamentos humanos e atividades, relatando o mesmo em relação
à falta de governabilidade política, isto é, tais elementos são essenciais para a
organização de um programa de “[...] reconciliação do desenvolvimento com a
conservação da biodiversidade” (2002, p. 72). E, somado a isso, tem-se o dever
de harmonização do plano internacional, pois “[...] – as guerras modernas não
são apenas genocidas, mas também ecocidas-” (2002, p. 72).
Desde já, consigne-se que os objetivos do milênio foram igualmente im-
portantes nessa retomada de consciência. Depois, na Rio + 20 foram reiterados
e ratificados os objetivos propostos vinte anos antes agora sobre o enfoque
de “nossa visa comum” de promover o desenvolvimento sustentável “com a
promoção de um futuro econômico, social e ambientalmente sustentável para
o nosso planeta e para as atuais e futuras gerações”. Igualmente, reiterou-se o
compromisso político de implementar as metas e objetivos de todas as confe-
rências anteriores. Traçou-se o objetivo de “promover a integração, a imple-
mentação e a coerência: avaliar os progressos obtidos até o momento e as lacu-
nas existentes na implementação dos documentos das grandes cúpulas sobre
o desenvolvimento sustentável e enfrentar os desafios já existentes e os novos.
Abraçou-se a ideia de uma economia verde no contexto do desenvolvimento
sustentável e da erradicação da pobreza (BRASIL, 2012).
Milaré (2007, p. 68) diz que melhor do que falar em desenvolvimento sus-
tentável – “que é um processo -, é preferível insistir na sustentabilidade, que é
um atributo necessário a ser respeitado no tratamento dos recursos ambientais,
em especial dos recursos naturais”. Isto é, existem duas condições para o seu
incremento: “[...] a capacidade natural de suporte (recursos naturais existentes)
e a capacidade de sustentação (atividades sociais, políticas e econômicas gera-
das pela própria sociedade em seu próprio benefício)”.
Para Dias (2014, p. 27)
Além da modificação das tecnologias utilizadas, é levado em consideração
o papel do ser humano como indivíduo, na dificuldade de modificar seu
comportamento em relação ao consumo, à contaminação e à conservação.
Nesse aspecto, a sustentabilidade tem um duplo significado, pois trata-

39
DIREITOS HUMANOS E VULNERABILIDADES

-se tanto da conservação dos sistemas naturais como da transformação do


comportamento humano em relação à natureza, o que envolve transfor-
mações em vários aspectos da vida social, política e econômica.
É preciso um repensar das atitudes humanas e da cultura de preservação
ambiental aliada ao fato do desenvolvimento social e econômico. Boff (2013, p.
13), nesse sentido, recorda o preâmbulo da Carta da Terra onde ela impõe “a
escolha é nossa e deve ser: ou formar uma aliança global para cuidar da Terra
e cuidar um dos outros, ou arriscar a nossa destruição e a destruição da diver-
sidade da vida”.
Portanto, é comum atribuir-se três pilares comuns (econômico, social e
ambiental) para a formação de um conceito de desenvolvimento sustentável.
Tal visão é modificada, pois ela passa a ser interpretada por meio da relação do
homem e dos demais seres vivos com o meio ambiente.
No entanto, Winter (2009, p. 5) retrata a existência de dois conceitos de
sustentabilidade, um no sentido fraco, compreendido como três pilares equiva-
lentes e o outro no sentido forte tendo como base dois pilares e um fundamen-
to. O primeiro, é baseado na economia, nos recursos naturais e na sociedade
e foi acolhido pela Declaração de Johanesburgo sobre Desenvolvimento Sus-
tentável. Trata-se do tratamento igualitário dos referidos elementos, na qual
as esferas econômicas e social desprendem-se da ideia de desenvolvimento
sustentável de tal forma que eles devem ser sopesados e, em casos de conflitos,
considerações mútuas devem ser estabelecidas.
Isso faz com que se questione, de fato, a efetividade de tal conceito uma
vez que se admite que em nome do desenvolvimento é possível destruir par-
te do capital natural. Não é justo, nem ético que as gerações vindouras não
tenham acesso aos mesmos bens ambientais. Dito de outra forma, para esse
conceito admite-se a compensação do desgaste do meio ambiente em nome do
crescimento econômico.
Frente a isso, Morato Leite e Caetano (2012, p. 162) enaltecem a inaceitabi-
lidade da retirada de opções das gerações futuras. Para eles não se pode aceitar
o déficit natural, “[...] a escolha de valorar mais ou menos o estoque natural só
poderá ser respeitada se este mesmo estoque existir amanhã, por isso não se
pode aderir à justificativa de transmitir tal déficit natural às futuras gerações”
ainda que em detrimento de avanços econômicos.
Percebe-se, pois, que esta interpretação branda de desenvolvimento sus-
tentável permite uma aceitação de verdadeiros desrespeitos ao meio ambiente,
isto é, ao colocar os três critérios em patamar de igualdade, como dito, é algo
imprudente e descompromissado com o futuro.
Por outro lado, a sustentabilidade forte citada é aquela que tem um fun-

40
DANIELA RICHTER – JOSÉLI FIORIN GOMES

damento primordial que é o respeito aos recursos naturais e dois pilares – eco-
nomia e sociedade – conceito esse que permite faticamente uma visão dife-
renciada do meio ambiente natural em relação aos pilares, ou seja, eles são
deixados em um segundo nível.
Desse modo, justifica-se a discussão sob as bases dos direitos difusos,
pois é preciso discutir e questionar a durabilidade da biosfera e do meio am-
biente como um todo para as presentes e futuras gerações. Tem-se que reco-
nhecer que já se ultrapassou a esfera da simples busca pela necessidade de
regulamentação jurídica e de que os problemas relacionados ao meio am-
biente são problemas planetários e que não podem ser observados pela via
tradicional antropocêntrica.
As condições naturais do meio ambiente devem ser resguardadas sob
uma mesma base para presente e futuro de forma a condicionar uma solida-
riedade entre as gerações sempre com o dever de preservar o patrimônio am-
biental. Para maioria dos autores os pilares da sustentabilidade são erigidos a
preocupação com o resguardo do pilar econômico, ambiental e social.
Por outro lado, o consumo também há de ser sustentável. Pode ser consi-
derado por três aspectos (DIAS, 2014, p. 32-33):
Consumir menos: aqui se considera a mudança de valores individuais e so-
ciais orientados para a diminuição do consumo, como compartilhar em
vez de possuir, buscar satisfação não exclusivamente material, evitar o
modismo, etc;
Consumir eficientemente: leva em consideração o aumento da produtivida-
de dos recursos, a diminuição do uso de materiais de energia em proces-
sos produtivos e sua geração de resíduos. Uma orientação centrada na
oferta e fornecimento de serviços em lugar de produtos, em destacar os
aspectos funcionais dos produtos e serviços (por exemplo, a função do
carro é transportar pessoas, e não ser objeto de status);
Consumir responsavelmente: faz referência à adoção de uma conduta res-
ponsável, por exemplo, consumir produtos ecológicos, que tenham sido
produzidos por produtores locais, etc.
Mesmo com pequenos avanços o que preocupa é a “aberração do desen-
volvimento harmonioso, é o culto ao consumismo e a criação de necessidades
desnecessárias, impingidos por um marketing distorcido e pela ação massifi-
cante da mídia, em particular a televisão” (MILARÉ, 2007, p. 77).
Sobre a sociedade de consumidores Bauman (2008, p. 70) expressa:
Se a cultura consumista é o modo peculiar pelo qual os membros de uma
sociedade de consumidores pensam em seus comportamentos ou pelo
qual se comportam ‘’de forma irrefletida’’ – ou, em outras palavras, sem
pensar no que consideram ser seu objetivo de vida, e o que acreditam ser
os meios corretos de alcançá-lo, sobre como separam as coisas e os atores

41
DIREITOS HUMANOS E VULNERABILIDADES

relevantes para esse fim das coisas e atos que descartam como irrelevantes,
acerca de o que os excita e o que os deixa sem entusiasmo ou indiferentes,
o que os atrai e o que os repele, o que os estimula a agir e o que os incita
a fugir, o que desejam, o que temem e em que ponto temores e desejos se
equilibram mutuamente – , então a sociedade de consumidores representa
um conjunto peculiar de condições existenciais em que é elevada a proba-
bilidade de que a maioria dos homens e das mulheres venha a abraçar a
cultura consumista em vez de qualquer outra, e de que na maior parte do
tempo obedeçam aos preceitos dela com máxima dedicação.
Sob a égide do mesmo enfoque, é cediço que o ser humano tende, durante
toda sua existência, a seguir determinados padrões de comportamento, estes,
por sua vez, são ditados pela sociedade, levando-se em consideração o nível
socioeconômico, de informação e o âmbito em que estão inseridos. A mídia,
como dito, em sua gênese, como mecanismo que funciona como uma forma
de pensar e transmitir conceitos e ideologias, observando todo este cenário,
passou a utilizar-se de técnicas para fomentar ainda mais o consumo e, então,
padronizar os hábitos de uma sociedade altamente consumidora e volátil.
Pode-se dizer que há por parte de toda a sociedade uma glamorização
do ato de comprar, de adquirir bens móveis, duráveis e não duráveis, enfim, o
ato de consumir, tal imagem é superexposta pelos veículos de comunicação e
disseminada com vastidão. Entretanto, o que não se vislumbra são os prejuízos
que tais práticas acarretam, principalmente quando tais anseios são passados
aos infantoadolescente, os quais não possuem o necessário discernimento para
filtrar condutas nocivas e perigosas a sua percepção e vão crescendo sem uma
cultura preservacionista. E quem paga essa conta é justamente o meio ambien-
te e os próprios seres humanos num futuro bem próximo.
Desta feita, “o ato de consumir é um ato de satisfação de necessidades
internas e externas, primárias e secundárias. Dessa pluralidade o homem não
pode abrir mão” (COELHO, 1996, p. 16). É assim que as pessoas impõem suas
vontades, frustrações e desejos, direcionando tudo para um campo em que o
consumir poderia trazer sensação de saciedade ou até mesmo aliviar a tristeza
e o sofrimento. Como aduz Bauman “a sociedade do consumo tem por base a
premissa de satisfazer os desejos humanos de uma forma que nenhuma socie-
dade do passado pôde realizar ou sonhar” (2007, p. 106).
Portanto, existe uma diferença crucial entre o que se necessita e o que é
supérfluo, mas essa compreensão está longe de ser alcançada. “O consumis-
ta é uma espécie de pessoa mistificada, iludida e auto-iludida”. “[...] não é
apenas aquele que efetivamente consome, mas, ainda, o que sonha com esse
tipo desviado de consumo e sacrifica bens e valores essenciais simplesmente
para atingi-lo” (MILARÉ, 2007, p. 78). De tudo isso, a verdade é que a crise
ambiental tem implicações profundas na posição do consumidor e no merca-

42
DANIELA RICHTER – JOSÉLI FIORIN GOMES

do do consumo.
Milaré (2007, p. 81) expõe que
[...] não se atingirá o desenvolvimento sustentável se não se proceder a
uma radical modificação dos processos produtivos, assim como do aspec-
to quantitativo e do aspecto qualitativo do consumo. Em decorrência, o
desenvolvimento sustentável, uma vez desencadeado, facilitará processos
de produção e critérios de consumo adequados à composição dos legíti-
mos interesses da coletividade humana e do ecossistema planetário.
Freitas (2012, p. 25) em posicionamento peculiar acrescenta aos clássicos
três pilares a necessidade de assimilação de dimensões jurídico-políticas e éti-
ca, já que “a cultura da insaciabilidade (isto é, da crença ingênua no cresci-
mento pelo crescimento quantitativo e do consumo fabricado) é autofágica,
como atesta o doloroso perecimento das civilizações”. Dito de outro modo, os
males atuais são “subproduto dessa cultura de insaciabilidade patrimonialista
e senhorial, que salta de desejo em desejo, no encalço do nada” e requerem tais
complementações, sob pena de caírem no discurso vazio e retórico. O Autor
menciona a inevitabilidade da abstinência. “A sociedade terá, em dado mo-
mento, de querer se desintoxicar de prévias compreensões desastrosas e rede-
senhar o sistema em que vive” (FREITAS, 2012, p. 25-26).
Existe, pois, um dever ético indisponível de sustentabilidade ativa e que
intervém para a restauração do equilíbrio ambiental, ou seja, é um dever intrín-
seco de não depredar a natureza e ser proativo. Isso vai acarretar um bem estar
íntimo e, consequentemente, um bem-estar social.
Essa visão acaba por alterar os principais mandamentos constitucionais e,
sem dúvida, trata de incorporar um conceito de desenvolvimento no qual to-
dos são corresponsáveis no esforço e na tentativa de precaução e de mudanças.
Aliás, todas as pilastras – econômico, social, ambiental, ético, jurídico-político
são conceitos intimamente ligados e entrelaçados, sendo constituídos por com-
ponentes essenciais a estrutura do desenvolvimento.
Freitas (2012, p. 72) diz que esse inter-relacionamento de tudo e todos
e essa conexão inevitável é justamente o caráter multidimensional da susten-
tabilidade. “Vinculada às noções-chave de empatia, equidade entre gerações,
longevidade digna, desenvolvimento limpo (em termos físicos e éticos), a sus-
tentabilidade reclama uma compreensão integrada da vida” para além das
concepções românticas.
Ainda sem concretizar um conceito específico sobre sustentabilidade,
Boff (2013, p. 14) diz que ela significa
O conjunto de processos e ações que se destinam a manter a vitalidade e a
integridade da Mãe Terra, a preservação de seus ecossistemas com todos
os elementos físicos, químicos e ecológicos que possibilitam a existência e

43
DIREITOS HUMANOS E VULNERABILIDADES

a reprodução da vida, o atendimento das necessidades da presente e das


futuras gerações e a continuidade, a expansão e a realização das potencia-
lidades da civilização humana em suas várias expressões.
Percebe-se que a sustentabilidade deve ser buscada como um modo de
ser e de viver aliado “as práticas humanas e às potencialidades limitadas de
cada bioma e às necessidades das presentes e futuras gerações”. Ela deve,
pois, ser pensada de forma conjunta e globalizada de maneira equânime e
“fazendo que o bem de uma parte não se faça à custa do prejuízo da outra”
(BOFF, 2013, p. 16-17).
O que se pode denotar é que várias propostas de sustentabilidade vêm
sendo formuladas, muitas delas com conceitos de desenvolvimento sustentá-
vel totalmente inócuos, para não dizer contraditórios. Dias (2014, p. 52), no
entanto, é mais otimista e diz que devem ser preconizadas políticas públicas
para sua implementação, “pois se estas políticas forem bem projetadas, podem
fornecer benefícios sociais e econômicos, melhorando a eficiência dos recursos
e induzindo as empresas nacionais a inovar”. Tanto é importante que foi um
dos temas centrais discutidos na Rio +20, em 2012.
Em modo semelhante, Ignacy Sachs, economista que trabalhou muitos
anos no Brasil, trata o homem como centro e fator de risco global. Na opinião
de Boff (2013, p. 58) sobre Sachs:
Sachs está convencido de que não se alcançará uma sustentabilidade acei-
tável se não houver uma sensível diminuição das desigualdades sociais, a
incorporação da cidadania como participação popular no jogo democrá-
tico, respeito às diferenças culturais e a introdução de valores éticos de
respeito a toda vida e um cuidado permanente do meio ambiente.
Assim, sustentabilidade é, por tudo o que foi exposto, um princípio que
deve garantir de forma concreta e eficaz o respeito à vida com qualidade no
presente e no futuro. A postura sustentável deve ser materialmente justa e de
modo que não prejudique a biosfera. Deve-se apresentar, inclusive, como im-
portante paradigma na luta contra o antropocentrismo a cultura da insacia-
bilidade e isso deve começar principalmente na primeira infância, de modo a
descortinar uma cultura de cuidado e de preservação.
Ao mencionar tais afirmações, lembre-se de que a Agenda 21 Brasileira
trouxe uma ideia de sustentabilidade ampliada e progressiva. Ampliada por-
que “preconiza a ideia da sustentabilidade permeando todas as dimensões
da vida: a econômica, a social, a territorial, a científica e tecnológica, a política
e a cultural”. Progressiva porque “[...] não se deve aguçar os conflitos a ponto
de torná-los inegociáveis, e sim, fragmentá-los em fatias menos complexas,
tornando-os administráveis no tempo e no espaço” (AGENDA 21 BRASILEI-
RA, 2004, p. 18).

44
DANIELA RICHTER – JOSÉLI FIORIN GOMES

Nesse contexto, não se pode deixar de considerar a opinião de Freitas


(2012, p. 41) que expressamente menciona ser a sustentabilidade um princípio
constitucional que determina com eficácia plena “a responsabilidade do Esta-
do e da sociedade pela concretização solidária do desenvolvimento material e
imaterial, socialmente inclusivo, durável e equânime, ambientalmente limpo,
inovador, ético e eficiente”, com o objetivo maior de assegurar “de modo pre-
ventivo e precavido, no presente e no futuro, o direito ao bem-estar. Trata-se de
salvar a “humanidade dela mesma, enquanto é tempo” (2012, p. 44).
Assim, apresentadas as primeiras reflexões a respeito da sustentabilidade
como processo, passa-se, na sequência à análise dos objetivos do desenvolvi-
mento sustentável, para, ao final, entender como podem ser diretrizes para os
meios de implementação de políticas para a primeira infância e de proteção de
suas vulnerabilidades no cenário atual e num futuro próximo.

3. OS OBJETIVOS DO DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL COMO


DIRETRIZES DE PROTEÇÃO DA INFÂNCIA NO SÉCULO XXI
A partir da percepção de que a sustentabilidade é um processo, visuali-
zou-se que sua concretização ultrapassava questões de mera preservação am-
biental, reconhecendo-se que envolve, também, fatores econômicos e sociais,
os quais precisam ser conjugados para o alcance do desenvolvimento susten-
tável. Face a isso, no cenário internacional recente a discussão foi voltada a
refletir e revisar os objetivos globais para o desenvolvimento, os chamados
“Objetivos do Milênio”, estabelecidos até 2015.
Nesse sentido, constituiu-se um olhar mais abrangente sobre a questão
do desenvolvimento global. Em 2015, a partir de discussões entre os Estados
Membros da ONU, junto a grupos da sociedade civil (ONU BRASIL, 2020),
aprovou-se a Agenda 2030 (ONU, 2015). Trata-se de “...plano de ação para
erradicar a pobreza, proteger o planeta e garantir que as pessoas alcancem a
paz e a prosperidade” (PNUD; IPEA, 2018), apresentando os “Objetivos para
o Desenvolvimento Sustentável” (ODS), os quais conformam desdobramentos
dos mencionados “Objetivos do Milênio”. Os ODS conjugam 17 objetivos e 169
metas, que “...constituem uma ambiciosa lista de tarefas para todas as pessoas,
em todas as partes, a serem cumpridas até 2030” (PNUD; IPEA, 2018).
Diante disso, relacionam-se às dimensões econômica, social e ambiental
do desenvolvimento sustentável, traçando escopos a serem alcançados atra-
vés da participação conjugada de governos, sociedade civil, setor privado e
todos os cidadãos, fomentando ações relativas a pessoas, ao planeta, a pros-
peridade, a paz e a parcerias (PNUD; IPEA, 2018). Isso significa, segundo Sil-
veira e Pereira (2018, p.924; 914), que se constituem em “reflexos do atual es-

45
DIREITOS HUMANOS E VULNERABILIDADES

tágio dos direitos humanos globalmente considerados, seja porque consistem


numa reafirmação do rol de tais direitos, seja porque trazem metas concretas
com a finalidade de alcançá-los e protegê-los”, devendo ser compreendidos
“como parte do processo de evolução da significação e abrangência dos di-
reitos humanos, no intuito de que estes passem a exprimir a realidade e os
anseios do mundo atual”.
Nesse passo, como visto na seção anterior, os ODS abarcam uma visão de
sustentabilidade mais ampla, a qual preocupa-se em atingir a todos os aspectos
supramencionados, bem como garanti-la a todas as pessoas, já que a Assem-
bleia Geral, ao aprovar a Resolução A/Res./70/1, em 25/09/2015, afirmou que
seus Estados membros, em seu preâmbulo, comprometiam-se a “...que nin-
guém seja deixado para trás” (ONU, 2015), denotando a inclusão das gerações
presentes e futuras no foco da implementação desta Agenda Global.
Dessa forma, segundo Bhardwaj, Sambu e Jamieson (2017, p. 22), “crian-
ças estão no coração da Agenda Global 2030”, pois o relatório “Proteção dos
direitos da criança na implementação da Agenda 2030 para o desenvolvimento
sustentável”, do Alto Comissariado para Direitos Humanos da ONU, estabele-
ceu que “a realização dos direitos das crianças é a base para garantir um futuro
sustentável e cumprir todos os direitos humanos” (ONU; ALTO COMISSA-
RIADO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA DIREITOS HUMANOS, 2017, p. 3).
Nesse sentido, os ODS visam a alcançar ações que impactam todos os
aspectos da vida das crianças, projetando uma visão de mundo em que estas
não apenas vivam, nem sobrevivam, mas prosperem, atingindo seus plenos
potenciais (BHARDWAJ; SAMBU; JAMIESON, 2017, p. 22). Face a isso, verifi-
ca-se que todos os direitos previstos na Convenção das Nações Unidas sobre os
Direitos da Criança encontram ressonância e estão estruturados nos ODS, de
acordo com o mapeamento apresentado pelo UNICEF, a partir do trabalho de
Werham (2017). Ou seja, mesmo que a Agenda 2030, em seus objetivos e metas,
nem sempre traga textualmente menções à infância, todo o seu conteúdo está
ligado à promoção e proteção dos direitos das crianças (ONU; ALTO COMIS-
SARIADO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA DIREITOS HUMANOS, 2020).
Diante disso, seria possível ver os ODS como diretrizes para o alcance da
efetividade aos direitos das crianças, estabelecendo-os como mecanismos para
o monitoramento dos avanços. Contudo, para tanto, é preciso que, na imple-
mentação dos ODS e na sua aplicação à garantia dos direitos das crianças, as-
segurar a priorização da infância no desenho e realização de políticas públicas
voltadas a concretizar a Agenda 2030, para evitar o risco de que a necessária
valorização do melhor interesse infantil seja colocada em plano secundário em
meio a uma amálgama de diversos grupos vulneráveis a serem atendidos pela
agenda inclusiva de desenvolvimento sustentável. (BHARDWAJ; SAMBU; JA-

46
DANIELA RICHTER – JOSÉLI FIORIN GOMES

MIESON, 2017, p. 22)


Com isso, para que os ODS possam cumprir este papel estratégico em
dirigir a proteção à infância, tendo as crianças como protagonistas nas mudan-
ças sócio-políticas e culturais substantivas almejadas por esta agenda global,
é imperioso que sejam, efetivamente, empregadas pelos Estados membros da
ONU em políticas públicas domésticas. E, é preciso que estes, com o apoio da
organização, auxiliem no processo de coordenação do desenho e implemen-
tação de políticas análogas em todos os níveis de governo, com a participação
ativa da sociedade civil, setor privado e outros interessados, a fim de alcançar
a abrangência buscada pela Agenda 2030.
Nesse sentido, é importante analisar como o Brasil, com o Marco Legal
da Primeira Infância, atende a esta visão sobre os direitos das crianças, a
partir do quadro traçado pelos ODS, como guias para concretizar a agenda
global para o desenvolvimento sustentável, com foco na infância como pilar
do futuro ali projetado.

4. O MARCO LEGAL DA PRIMEIRA INFÂNCIA FACE À AGENDA


GLOBAL DE DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL
Diante do permanente desafio de alcançar a sustentabilidade e proteger
as vulnerabilidades infantis, sendo o direito ao meio ambiente e o direito da
criança e do adolescente claramente regrados por diretrizes internacionais, da
Constituição Federal e da legislação ordinária, é confiado ao Estado tarefas de
controle e fiscalização, onde se verifica a conformação de um direito subjetivo
público em face desse mesmo Estado ou, no mínimo, de um interesse difuso
a que crianças e adolescentes tenham pela proteção integral a eles ostentada o
direito de convivência em um meio ecologicamente equilibrado e sustentável.
Trata-se, pois, de uma gestão de desenvolvimento sustentável a ser pro-
tagonizada pelo comprometimento do poder público e pela completude do
direito de crianças e adolescentes, podendo eles próprios participar deste
processo salvaguardando os seus próprios direitos. O processo de mudança
é um caminho longo e requer interdisciplinaridade, pois no mundo sustentá-
vel, nada pode ser praticado em apartado, é preciso um diálogo permanente
entre as pessoas de uma sociedade e, aqui, quer-se demonstrar a viabilidade
do Direito da Criança e do Adolescente, em especial a atuação dos atores da
concretização da proteção integral serem capazes de desenvolver um mundo
sustentável que ratifique a condição de direitos e de proteção das vulnerabi-
lidades da primeira infância.
Não se pode esquecer que a realidade que se apresenta é que a econo-
mia ambiental está “assentada na política e, por intermédio dela se realiza. Por

47
DIREITOS HUMANOS E VULNERABILIDADES

isso, um caminho a ser apresentado para a reconciliação da economia com a


natureza localiza-se longe da monetarização do ambiente e é dependente da
modificação vinculada a práticas políticas” (DERANI, p. 125-126).
Quanto ao aspecto da proteção integral é indubitável que ela por proteger
e promover a corresponsabilidade de família, Estado e sociedade no que tange
aos direitos dos infantoadolescentes é parte integrante da luta pela efetivação
de padrões sustentáveis, para, inclusive, poder concretizar os demais direitos.
Tais assertivas reforçam a renomada teoria de Bobbio (1992, p. 1), que expressa
sobre a estrutura jurídica dos direitos fundamentais de que se deve distinguir
entre “um direito que se tem” do “direito que se gostaria de ter”. No primeiro
caso investiga-se no ordenamento jurídico positivo, do qual se faz parte como
titular de direitos e deveres, “[...] se há uma norma válida que a reconheça e
qual é essa norma”, enquanto que na segunda situação ele tenta “buscar boas
razões para defender a legitimidade do direito em questão e para convencer
um número maior de pessoas [...] a reconhecê-lo” (BOBBIO, 1992, p. 15).
Diante do contexto, salutares as palavras de Ayala (2011, p. 7):
O art. 225, caput, da CF/1988 também define um direito fundamental ao
meio ambiente como um dos instrumentos que poderia viabilizar esta rea-
lidade adicional para o conceito de existência digna, comprometida com
um projeto de justiça que não se restringe ao tempo, e que se tem sua
definição sujeita à revisão permanente das demandas condicionadas por
padrões intergeracionais de justiça.
Sob essa configuração de ordem constitucional esboçada na experiência
nacional, o valor solidariedade, e o objetivo dignidade de vida integram-
-se neste momento, como partes de um projeto de sociedade, de um modelo
de organização do poder e, sobretudo, como um dos fundamentos de uma
República ecologicamente sensível.
Portanto, quer-se instaurar um clima de fraternidade na sociedade, pelo
qual todos possam lutar pela concretização da proteção integral e da preser-
vação ambiental por meio de atitudes sustentáveis, pois se acredita no sopesa-
mento dos direitos envolvidos, em especial pelo aspecto antropocentrista dos
direitos citados e pela necessidade de concretização dos ODS.
Antes de tal enfrentamento, é preciso, ainda, falar do Marco Legal de Pro-
teção da Primeira Infância, Lei nº 13.257/2016. De acordo com seu artigo 1º,
ela estabelece “princípios e diretrizes para a formulação e a implementação
de políticas públicas para a primeira infância em atenção à especificidade e à
relevância dos primeiros anos de vida no desenvolvimento infantil e no desen-
volvimento do ser humano”, em conformidade com os princípios e diretrizes
do ECA. (BRASIL, 2016)
É sabido que a doutrina da proteção integral tem a sua coroação na Con-

48
DANIELA RICHTER – JOSÉLI FIORIN GOMES

venção da Criança da ONU de 1989. Veronese (2013, p. 171) certifica que a Con-
venção em seu preâmbulo “lembra os princípios básicos, tais como liberdade,
a justiça e a paz, os quais reconhecem que toda criatura humana é possuidora
de dignidade de Direitos Humanos iguais e inalienáveis”. Acentua, “o fato de
que as crianças, tendo em vista sua vulnerabilidade, necessitam de cuidados e
proteção especiais”, enfatizando a “importância da família, para que a criança
desenvolva sua personalidade, num ambiente de felicidade, amor e compreen-
são” (VERONESE, 2013, p. 171).
Sem dúvida ela ratifica “o fato de que as crianças, tendo em vista a sua
vulnerabilidade, necessitam de cuidados e proteção especiais; e enfatiza a im-
portância da família, para que a criança desenvolva sua personalidade, num
ambiente de felicidade, amor e compreensão” (VERONESE, 1999, p. 97).
Alerte-se de que não se tem como limitadamente conceituar essa prio-
ridade, pois “é sua condição peculiar de desenvolvimento e sua consequente
fragilidade físico-psíquica” que garantem os direitos a este grupo, “seja com
relação ao atendimento de suas necessidades, seja no tocante à formulação de
políticas públicas” (VERONESE; SILVEIRA, 2011, p. 34).
Neste passo, para Pereira (2000, p. 215) a proteção integralizada “é ali-
cerçada no fato de que crianças e adolescentes são reconhecidamente sujei-
tos de direitos, titulares de direitos pessoais provenientes de sua condição
de pessoas em desenvolvimento”, ou seja, de que “todo e qualquer aspecto
capaz de convergir para o estabelecimento de condição de liberdade e digni-
dade” deve ser garantido.
É, nesse contexto, que se insere a Lei do Marco Legal da primeira Infân-
cia, que entende que por ser a criança titular da condição de peculiar pessoa
em estágio de desenvolvimento, pelo simples fato de estarem crescendo, é
que há que se reconhecer, igualmente, que os primeiros anos de vida são
fundamentais para o desenvolvimento do ser humano. Dessa forma, apesar
de existirem direitos e oportunidades para esse público, é certo que é um
período de “vulnerabilidades e de extrema susceptibilidade às influências e
ações externas, como pobreza e violência”. Assim, “o Estado deve estabelecer
políticas, planos, programas e serviços para a primeira infância que atendam
às especificidades dessa faixa etária, visando a garantir seu desenvolvimento
integral” (BRASIL, 2020).
É aqui que se percebe, de acordo com o visto na seção anterior, que os
ODS são guias a serem seguidos para concretização dos direitos das crianças,
em especial, as compreendidas na primeira infância. Isso porque, a Agenda
2030, propõe a atuação coordenada e a responsabilidade partilhada por todos
os envolvidos no processo de desenvolvimento sustentável, articulando diver-

49
DIREITOS HUMANOS E VULNERABILIDADES

sos setores para atingir os 17 Objetivos e as 169 metas estabelecidos globalmen-


te, com vistas a construir um futuro mais inclusivo e resiliente. Nesse sentido,
verificada, na seção anterior, a indissociabilidade do tratamento da infância
como protagonista desse processo, aos Estados membros da ONU cabe o dever
de traduzir a agenda global, norma de soft law, em políticas públicas domésti-
cas, que tenham normas internas como diretoras.
Diante desse cenário, percebe-se que o Brasil parece cumprir este dever,
pois, em 2016, adotou norma específica para guiar as políticas públicas, em
todos os níveis governamentais, e em articulação com outros atores relevantes,
referentes à primeira infância, com o Marco Legal da Primeira Infância (BRA-
SIL, 2020). Em face disso, considerando que a agenda global serve de diretriz
para estabelecer políticas públicas voltadas à proteção integral da infância,
perquire-se, neste trabalho, se a normativa doméstica está de acordo com os
lineamentos trazidos pelos ODS.
Pelo que se vislumbra do disposto no referido Marco Legal, este coloca
a garantia dos direitos das crianças como prioridade absoluta e dever do Es-
tado em estabelecer políticas, planos, programas e serviços em atendimento
das especificidades da primeira infância (art. 3º), prevendo a sua execução em
atenção às vulnerabilidades próprias deste estágio de desenvolvimento huma-
no, levando em conta, ainda, a vulnerabilidade social e econômica que atinge
a várias crianças no país (art. 4º, I a IV) (BRASIL, 2020). Nesse sentido, pode-se
compreender que responde ao chamado da Agenda 2030, de que “ninguém
seja deixado para trás” (ONU, 2015).
Ademais, determina que a elaboração e a execução destas políticas e de-
mais ações se dê de forma a “articular as dimensões ética, humanista e política
da criança cidadã com as evidências científicas e a prática profissional no aten-
dimento da primeira infância” (art. 4º, V) (BRASIL, 2020), o que demonstra a
preocupação com a proteção integral da infância e com o alcance da sustenta-
bilidade ampla abrangida pelos ODS. E, para tanto, propõe, para atendimento
“integral e integrado”, abordagem “intersetorial” e “participativa”, que inclui
não apenas as crianças e seus familiares, mas, também, organizações represen-
tativas da sociedade, profissionais dedicados à infância, a descentralização de
ações entre os diversos níveis de governos dos entes da Federação, e o apoio
dos meios de comunicação social, para consolidar cultura de proteção e pro-
moção da criança (arts. 4º, VI a IX, 6º, 7º, 8º, 9º, 12º) (BRASIL, 2020). Desse
modo, o Marco Legal brasileiro alinha-se aos ODS, os quais estão destinados
à implementação coordenada por todos estes stakeholders, compartilhando res-
ponsabilidades no caminho ao desenvolvimento sustentável.
Ainda, o Marco Legal enquadra-se, perfeitamente, em todos os 17 ODS e
suas 169 metas, ao indicar, em seu art. 5º, como áreas prioritárias para a execu-

50
DANIELA RICHTER – JOSÉLI FIORIN GOMES

ção de políticas públicas para a primeira infância


[...]...a saúde, a alimentação e a nutrição, a educação infantil, a convivência
familiar e comunitária, a assistência social à família da criança, a cultura, o
brincar e o lazer, o espaço e o meio ambiente, bem como a proteção contra
toda forma de violência e de pressão consumista, a prevenção de aciden-
tes e a adoção de medidas que evitem a exposição precoce à comunicação
mercadológica” (BRASIL, 2020).
Isto está visível, também, em vários outros dispositivos da norma federal
em apreço, pois traz previsões sobre ações relativas a todas estas áreas, promo-
vendo alterações em outras normas brasileiras atinentes à temática, como, por
exemplo, o próprio Estatuto da Criança e do Adolescente e a Lei de Diretrizes
e Bases da Educação Nacional (artigos 13 a 42) (BRASIL, 2020).
Além disso, a normativa doméstica, em seu art. 10 (BRASIL, 2020), prevê
o “acesso garantido e prioritário à qualificação” aos profissionais envolvidos
nas políticas públicas de atendimento à primeira infância, estando de acordo
com o ODS n. 4, referente a assegurar oportunidades de aprendizagem ao lon-
go da vida para todos (ONU, 2015). E, isto se alinha ao compromisso, também
contido na Agenda 2030, de “fornecer educação inclusiva e equitativa de qua-
lidade em todos os níveis” (ONU, 2015).
No mesmo sentido, em atendimento ao compromisso trazido pela ade-
são à Agenda 2030, o Brasil, mediante este Marco Legal, previu, em seu art.
11, que “As políticas públicas terão, necessariamente, componentes de moni-
toramento e coleta sistemática de dados, avaliação periódica dos elementos
que constituem a oferta dos serviços à criança e divulgação dos seus resulta-
dos”. Com isso, o país propõe os meios pelos quais irá cumprir com a “res-
ponsabilidade primária de acompanhamento e avaliação...” quanto ao pro-
gresso no alcance dos ODS e suas metas, contida na Agenda 2030 e atribuída
aos Estados membros da ONU.
Frente a isso, percebe-se que, pela análise dos dispositivos contidos no
Marco Legal da Primeira Infância, o qual entrou em vigor em 2016, logo depois
de entrarem em vigor internacionalmente a Agenda 2030 e seus ODS, que o Bra-
sil, a partir de sua normativa doméstica, está, em teoria, plenamente alinhado à
agenda global de desenvolvimento sustentável, no que diz respeito a garantir e
atender às vulnerabilidades específicas da primeira infância, priorizando esta
fase humana como protagonista do processo de mudança sócio-política e cultu-
ral necessária a atingir o desiderato almejado da sustentabilidade inclusiva. Res-
ta saber, ainda que não seja o escopo deste trabalho, por questões de delimitação
e espaço para publicação, se os inspiradores e auspiciosos compromissos assu-
midos na normativa nacional, assim como os contidos na agenda internacional,
atingirão, efetivamente, a realidade, “não deixando ninguém para trás”.

51
DIREITOS HUMANOS E VULNERABILIDADES

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
O trabalho partiu da abordagem da sustentabilidade enquanto um pro-
cesso amplo, que envolve diversas dimensões além da ambiental. Com isso,
procurou-se analisar se a legislação federal sobre primeira infância no Brasil
enquadra-se na visão de desenvolvimento sustentável trazida pela Agenda
2030 da ONU, a fim de atender à hipervulnerabilidade infantil.
Em face disso, na primeira seção, tratou-se sobre as diversas acepções
que o termo sustentabilidade comporta, a fim de refletir sobre a agenda atual
relativa aos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável. Nesse passo, na se-
gunda seção, perquiriu-se se os ODS podem ser considerados como guias para
a proteção da infância no cenário atual, com vistas a, na terceira e última seção,
verificar como o Marco Legal da Primeira Infância brasileiro, encontra alinha-
mento à esta agenda internacional pela sustentabilidade.
Com isso, foi possível apontar a centralidade da primeira infância para a
consecução da Agenda 2030, demonstrando-se que os direitos garantidos em
outros instrumentos internacionais às crianças encontram-se plenamente con-
templados nos ODS, podendo-se compreendê-los como diretrizes para a pro-
teção das vulnerabilidades infantis para o século XXI. Diante disso, verifica-se
que o dever atribuído aos Estados membros da ONU em implementar os ODS
encontra reflexos importantes no que tange ao Brasil, o qual, logo depois da
entrada em vigor da agenda global de desenvolvimento sustentável, promul-
gou norma doméstica em total sintonia com o proposto por esta. Nesse sentido,
percebe-se que o Brasil possui instrumento legal adequado para a proteção da
primeira infância num cenário de busca pelo desenvolvimento global sustentá-
vel, inclusivo e resiliente, sendo preciso que se busque o engajamento de todos
os atores nele nomeados para que tragam à vida estas previsões, a fim de que
as crianças de hoje possam desenvolver-se como adultos num amanhã em que
a sustentabilidade seja a realidade.

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54
A VIOLÊNCIA INTRAFAMILIAR TORNOU-SE UM
PROBLEMA DE SAÚDE PÚBLICA NO BRASIL:
REFLEXÕES A PARTIR DAS PRÁTICAS RESTAURATIVAS
ENQUANTO POLÍTICAS PÚBLICAS DE PREVENÇÃO
Marli Marlene Moraes da Costa
Analice Schaefer de Moura

Sumário: 1. Introdução; 2. A natureza histórica da violência; 3. Violên-


cia intrafamiliar segundo o Relatório da Organização Pan-Americana de
Saúde nos Países das Américas; 4. Aplicação das práticas restaurativas na
prevenção da violência doméstica; 5. Considerações finais; 6. Referências.

1. INTRODUÇÃO
No presente artigo pretende-se colocar em discussão a possibilidade de
implementação das Práticas Restaurativas enquanto uma política pública de
prevenção a violência intrafamiliar que vitimiza mulheres e crianças no Brasil.
Foi a partir das décadas de 80 e 90, que houve um grande esforço teórico-me-
todológico e político para compreender este tipo de violência como uma ques-
tão complexa, com determinações sociais e condicionantes culturais, políticas
e econômicas, nunca um tema provocou tantos desconfortos quanto os danos
advindos deste tipo de violência. A expressão violência doméstica, segundo
Saffioti (2004) pode ser empregada como sinônimo de violência intrafamiliar,
de violência de homens contra mulheres e crianças.
Desde que se constituíram, os Estados Modernos assumiram para si o
monopólio legítimo do exercício da violência, retirando-a do arbítrio dos indi-
víduos e da sociedade civil, entregando-a ao exército, as polícias e aos aparatos
da justiça criminal. Outros fatores advém do campo específico da saúde, cuja
área tende a incorporar o social apenas como uma variável “ambiental” da
produção das enfermidades (BURKE, 2005). As relações entre o conhecimento
científico e a intervenção social, frequentemente são fragmentadas e desarti-
culadas, e neste contexto, o exercício das práticas promocionais e assistenciais
acabam ficando restritas aos contornos tradicionais (BURKE, 2005).
Até pouco tempo, o setor de saúde olhava para o fenômeno da violência,
apenas como um expectador, um reparador de estragos provocados pelos con-
flitos intrafamiliares. Essa visão começa a mudar na década de 60, numa das
especialidades mais sensíveis da medicina, quando a pediatria americana pas-
sa a estudar, a diagnosticar e a medicar a chamada Síndrome do Bebê Espan-

55
DIREITOS HUMANOS E VULNERABILIDADES

cado, colocando-a como um sério problema para o crescimento e o desenvol-


vimento infantil (SOUZA, MINAYO, 1995). Uma década depois, vários países
também reconhecem, formalmente, os maus-tratos como grave problema de
saúde pública. A partir de então, após os Estados Unidos e o Canadá, outros
países reconhecem que a situação é gravíssima e foram criados programas na-
cionais de prevenção primária e secundária, além de centrais de denúncia, tor-
nando público e passível de intervenção social um problema que até então era
considerado de foro privado (SOUZA, MINAYO, 1995).
O movimento feminista da época, debruçou-se sobre o tema e passou a
integrar em suas estratégias articuladoras, um Plano de Ação de Prevenção
à Violência Intrafamiliar. Sua filosofia procurava sensibilizar as mulheres e
a sociedade em geral sobre os impactos negativos gerados por este tipo de
violência (HEISE, 2004). Diante destes fatos, a violência fundamentada no
gênero, incluindo agressões domésticas, mutilação, abuso sexual, psicológico
e homicídios, passam a fazer parte da agenda, não apenas para os cuidados
assistenciais e pontuais oferecidos nas emergências hospitalares. Mas tam-
bém como objeto de prevenção e promoção da saúde das vítimas e de seus fi-
lhos, que incorpora a compreensão da necessidade de mudanças de atitudes,
crenças e práticas, que devem ir muito além do diagnóstico e do tratamento
das lesões físicas e emocionais.
No Brasil, foi na década de 80 que o tema da violência intrafamiliar passa
a fazer parte da agenda de debates e caminhou para uma maior consolidação
na década de 90. Tiveram papel decisivo para a referida inclusão, os movimen-
tos sociais pela democratização, as instituições de direito, as organizações não
governamentais (ONGs) de atenção a maus tratos intrafamiliares envolvendo
crianças e mulheres, e as organizações internacionais com poder de influenciar
as pautas nacionais. O grande impasse na proteção das minorias sociais no Bra-
sil, sempre foi a escassa destinação orçamentária para a efetivação de Políticas
Públicas de prevenção a este tipo de violência, seja na área da educação, da
saúde ou da segurança, etc.
No século XXI surgem novos questionamentos, novas formas de pensar
e sentir sobre a ética do cuidado, a importância do afeto no desenvolvimento
do ser humano, bem como sobre o valor da vida e dos direitos de cidadania.

2. A NATUREZA HISTÓRICA DA VIOLÊNCIA


Conceituar a violência, não é tarefa fácil, justamente por ser ela, muitas
vezes, uma forma específica de relação pessoal, política, social e cultural natu-
ralizada na sociedade, e consequentemente, no seio de algumas famílias.
Para Arendt (1994), que possui uma das mais vigorosas reflexões sobre o

56
MARLI MARLENE MORAES DA COSTA – ANALICE SCHAEFER DE MOURA

tema, considera que nenhum historiador, filósofo, político, antropólogo, pro-


fissionais da área da saúde, etc., deveria ser alheio ao grande papel que a vio-
lência sempre desempenhou nos assuntos humanos. A autora diz surpreender-
-se com quão pouco esse fenômeno é investigado pelos cientistas. A violência
tem um caráter instrumental, ou seja, é um meio que necessita de orientação e
justificação dos fins que persegue.
Domenasch (2001), enfatiza o fato de que a violência está inscrita e ar-
raigada nas relações sociais, não podendo, portanto, ser considerada apenas
como uma força exterior se impondo aos indivíduos e às coletividades, haven-
do, desta forma, uma dialética entre vítima e algoz, o que deve ser objeto de
estudo e reflexão dos estudiosos para compreensão dessa complexa relação.
Freud (1980), apresentava diversas interpretações sobre o tema, em dife-
rentes fases de seu pensamento. Em primeiro lugar associa a violência à agres-
sividade instintiva do ser humano, o que o inclina a matar e a fazer sofrer seus
semelhantes. Num segundo momento a define como instrumento para arbitrar
conflitos de interesses, sendo, portanto, um princípio geral da ação humana
frente a situações difíceis. Numa terceira posição, avança para a ideia de cons-
trução de “identidade de interesses”, que faria surgir vínculos emocionais en-
tre os membros de uma comunidade humana (um grupo familiar, etc.). Os con-
flitos de interesses seriam mediados nas sociedades modernas pelo direito e
pela lei, e a comunidade de interesses, pela identidade e busca do bem coletivo.
Como se pode perceber, todos os autores citados têm em comum a cla-
reza de considerar a violência como um problema social e histórico, bem
como, compartilham a ideia de que não se pode estudar a violência fora da
sociedade que a produziu, porque ela se nutre de fatos políticos, econômicos
e culturais, traduzidos nas relações cotidianas que, por serem construídos
por determinada sociedade, e sob determinadas circunstâncias, podem ser
por ela desconstruídos e superados (FREUD, 1996). No contexto da violência
intrafamiliar, sendo a mesma definida como “uma relação humana confli-
tuosa”, podemos compreendê-la como um comportamento aprendido e cul-
turalizado que passa a fazer parte dos padrões intrapsíquicos, dando a falsa
impressão de ser parte da natureza biológica dos seres humanos (FREUD,
1996). Neste sentido, a violência intrafamiliar necessita ser interpretada em
suas várias faces, de forma interligada, em rede, e por meio de eventos em
que se expressa, repercute e se reproduz.
O problema da violência intrafamiliar/doméstica, é um problema da so-
ciedade, que desde a modernidade o tem tratado no âmbito da justiça, da se-
gurança pública, e também como objeto de movimentos sociais. Porém, dois
fortes motivos tornam o assunto preocupação da área da saúde. O primeiro,
porque, dentro do conceito ampliado de saúde, tudo o que significa agravo

57
DIREITOS HUMANOS E VULNERABILIDADES

e ameaça à vida, às condições de trabalho, às relações interpessoais, e à qua-


lidade da existência, faz parte do universo da saúde pública. Em segundo
lugar, a violência intrafamiliar, num sentido mais restrito, afeta a saúde física
e psíquica de mulheres e crianças, porque ela representa um risco imensurá-
vel para o desenvolvimento vital humano, provoca enfermidades, e muitas
vezes, as leva a morte.

3. VIOLÊNCIA INTRAFAMILIAR SEGUNDO O RELATÓRIO DA


ORGANIZAÇÃO PAN-AMERICANA DE SAÚDE NOS PAÍSES DAS
AMÉRICAS
A Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS) em seu último Rela-
tório de junho de 2020, alerta que os Países estão falhando em prevenir a
violência contra crianças e mulheres no mundo. A informação também está
no relatório, publicado pela Organização Mundial da Saúde (OMS), UNICEF,
UNESCO, de 2020.
Metade das crianças do mundo – ou aproximadamente um bilhão de
crianças – é afetada por violência física, sexual ou psicológica a cada ano, so-
frendo lesões, incapacidade e morte em razão do não cumprimento por parte
dos países das estratégias estabelecidas para protegê-las (UNICEF, 2020).
Quase 60% das mulheres em países das Américas sofrem violência por
parte de seus parceiros, o que caracteriza uma afronta aos direitos humanos e
um problema generalizado de saúde pública (UNICEF, 2020). A situação agra-
vou-se ainda mais com o surgimento Pandemia da COVID-19, inúmeros foram
os casos de violência doméstica contra mulheres e crianças, registrados no pe-
ríodo de “confinamento” Segundo Antônio Guterres (2019), Secretário Geral
da ONU, “a pandemia da COVID-19, tem um rosto feminino” São as mulheres
que mais sofrem ameaça a direitos e liberdades, são elas as mais afetadas no
ambiente de trabalho (UNICEF, 2020).
A violência intrafamiliar, representa um problema psicossocial e jurídico
de extrema relevância nos dias atuais, pois suas consequências afetam além
dos membros das famílias envolvidas, também a economia do País e a socie-
dade de forma geral, além de cercear a garantia dos direitos humanos e funda-
mentais dos sujeitos. Portanto, a luta contra este tipo de violência diz respeito
a todos nós e, principalmente aos gestores públicos a quem cabe formular po-
líticas públicas efetivas para prevenir e combater o problema.
Alguns Estado do Brasil, entre eles o Rio Grande do Sul, Paraná, Minas
Gerais, entre outros, foram muito ativos na atuação de reestruturação de redes
de apoio intermediadas pelos municípios, objetivando efetivar políticas pú-
blicas para o enfrentamento à violência intrafamiliar que vitimiza mulheres e

58
MARLI MARLENE MORAES DA COSTA – ANALICE SCHAEFER DE MOURA

crianças, como por exemplo, a instalação dos centros de Referência da Mulher


(CRM); as Comissões de Defesa dos Direitos das Mulher; as Delegacias Espe-
cializadas em Atendimento às Mulheres Agredidas, e mais recentemente, os
Núcleos de Práticas Restaurativas, com base na Resolução 225/2016 do CNJ,
que será analisado mais adiante (AZEVEDO, 2013).
Contudo, observa-se que na prática, existem desafios a serem enfrentados
por estas redes de apoio, tais como, a instabilidade profissional, considerando
que a maioria dos cargos são oriundos de indicações políticas e, por isso, os
profissionais são frequentemente trocados ou demitidos. O fato de não haver
profissionais efetivos para ocupar as vagas, gera extrema vulnerabilidade as
pessoas que necessitam fazer uso da rede.
Não se pode perder de vista que nosso sistema Jurídico Penal está ul-
trapassado, nossas legislações são muito brandas, o judiciário demasiada-
mente moroso, além da crise ética, política e social na qual todos estamos
inseridos. Sabemos que a CF88, e a Lei n. 11.340/2006, a Lei 8.069/90, bem
como as normativas internacionais entre elas a Recomendação Geral das Na-
ções Unidas; a Declaração sobre a Eliminação da Violência contra a Mulher;
à Declaração Universal dos Direitos Humanos; a Convenção Interamericana
para prevenir, sancionar e erradicar a violência contra a mulher, “Convenção
Belém do Pará”, somadas ainda, a todas as normativas nacionais e interna-
cionais atinentes a proteção dos direitos humanos de crianças e adolescentes,
são instrumentos normativos que possuem sua importância em relação ao
problema, porém, a violência intrafamiliar não reduziu, ao contrário, aumen-
tou consideravelmente. A Pandemia do COWID -19, evidenciou ainda mais a
gravidade do problema.
Este fato permite identificar que se está operando de maneira equivoca-
da, ou seja, estamos trabalhando com os efeitos da violência e não com suas
causas. Nós criamos novas leis, aparelhamos, mesmo que de forma precária,
as estruturas de atendimento psicossocial as vítimas e seus filhos, mas isso
não é o suficiente. Precisa-se de políticas públicas específicas que trabalhem
urgentemente com as causas da violência no País. A educação nos parece ser
o melhor caminho, ela começa no seio familiar e continua na escola. As infor-
mações passadas nestes dois ambientes constroem hábitos e parecem autorizar
determinadas posturas que passamos para a sociedade.
No Brasil, os problemas que mais nos afetam em pleno século XXI, con-
tinuam sendo os mesmos do século passado, porém acrescido, de uma crise
devastadora que recebeu o nome de COVID-19, que em realidade afetou to-
dos os países do mundo. Mas os países considerados em desenvolvimento,
como é caso dos países da América Latina, entre eles, o Brasil, o impacto é bem
maior, considerando os problemas de extremas desigualdades, o desemprego,

59
DIREITOS HUMANOS E VULNERABILIDADES

a exclusão social e moral, a corrupção, a impunidade, tudo isso, tem peso na


dinâmica da violência doméstica, neste momento, acrescida de uma crise pro-
duzida pela Pandemia, que gerou a necessidade de uma “quarentena”, cujos
resultados, é o aumento da violência intrafamiliar que vitimiza, mulheres e
crianças dentro seus próprios lares.
Estudos apontam as consequências do fenômeno da violência na saúde
das mulheres e crianças, quando expostas a este tipo agressão, apresentam
uma série de sintomas e formas de adoecimentos. Para MINAYO, (1998), os
problemas de saúde vão desde dificuldades de adaptação, isolamento social,
insegurança, ansiedade, depressão, distúrbios do sono, baixa autoestima, pre-
sença de dores abdominais recorrentes, dores lombares crônicas, dores de ca-
beça, distúrbios psicossomáticos, entre outros. Além de uma importante asso-
ciação entre o uso do álcool, fumo e drogas ilícitas pelas mulheres. O estresse
permanente, a decepção com o companheiro e a falta de esperança de dias
melhores em seu relacionamento, são os principais precursores da aquisição
ou intensificação desses hábitos de vida, que muitas vezes as levam ao suicídio.
Alguns países, entre eles, a Espanha, Itália, França, Suíça, Argentina e
Colômbia, estão muito atentos a esse problema, e por isso, estão propondo
medidas que promovam e divulguem os serviços de atendimento às vítimas
de violência doméstica, bem como os serviços de orientação e acolhimento. No
Brasil, de acordo com a Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos, os dados
disponíveis são escassos, diante da falta e/ou fragilidade de tudo, a escalada da
violência contra mulheres e crianças, continua avançando de forma impiedosa.
Neste contexto, quando surge a pandemia do COVID -19, o problema de
violência contra as mulheres se agrava. Os casos de feminicídio registrados no
Brasil entre os meses de março e abril de 2020, aumentaram em 22%, se compa-
rados com os mesmos meses do ano de 2019. Segundo levantamento realizado
pelo Fórum Brasileiro de Segurança pública (2020), junto aos órgãos de Segu-
rança Pública de 12 Estados do País, e divulgados no dia 1º de junho de 2019.
Os dados analisados pelo Fórum de Segurança Pública, reforçam o problema,
ao constatar que (43%) dos casos de violência contra a mulher acontecem den-
tro da própria casa, em 2019. Demonstrado ainda, que 41% dos homens que
espancam suas esposas e companheiras, são violentos com os seus filhos, sen-
do que boa parte destas crianças tende a reproduzir a agressividade contra si e
contra outros quando crescer.
Essas ocorrências acabam refletindo no Sistema Único de Saúde Públi-
ca e na economia dos países, pois estima-se que um em cada cinco dias de
falta ao trabalho feminino decorre da violência doméstica. Ela custa a países
desenvolvidos, como o Canadá, 1,6 bilhão de dólares ao ano, somando-se
os gastos de atendimentos médicos e queda na produtividade. Nos Estados

60
MARLI MARLENE MORAES DA COSTA – ANALICE SCHAEFER DE MOURA

Unidos, segundo o BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento), estes


gastos oscilam entre 10 a 60 bilhões de dólares ao ano, dependendo dos cri-
térios de englobamento dos gastos. No Chile, a violência contra a mulher
consome cerca de 2% do PIB (Produto Interno Bruto), já no Brasil os gastos
não são menores. (AZEVEDO, 2013).

4. APLICAÇÃO DAS PRÁTICAS RESTAURATIVAS NA PREVENÇÃO


DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
Diante desta realidade que assombra o país, devemos refletir sobre os im-
pactos que o problema pode causar a curto ou a longo prazo, na saúde, nos di-
reitos fundamentais e nas liberdades individuais destas mulheres e seus filhos.
Ao analisar-se a complexa trama de causalidades destas ocorrências, des-
taca-se alguns fatores que podem colaborar com nossas reflexões (Rosen,1998).
Tais fatores devem ser agrupados em: biológicos, psicológicos e socioculturais.
Dentro dos aspectos biológicos, além da predisposição genética ao tem-
peramento violento, muitos pesquisadores têm correlacionado a agressividade
à violência, como uma desregulação no sistema límbico. Kaplan; Sadock e Gre-
bb (1998) referem que na ablação da amígdala cerebral, ocorrem significativas
modificações de conduta, com redução do temor, da agressividade, além de
alterações nos hábitos de ingestão de água e de alimentos. A ação dos neuro-
transmissores, como a serotonina, dopamina e adrenalina, poderia estar rela-
cionada com alterações do comportamento, pois servem como mediadores de
funções cerebrais importantes, como a alegria, a depressão, a raiva, etc.
No que toca aos aspectos psicológicos, Wilson (1995) ressalta a impor-
tância do ambiente familiar no equilíbrio do comportamento de crianças e
adolescentes e, portanto, no equilíbrio social dos adultos. A família fornece
a matriz dentro da qual o indivíduo é moldado e se desenvolve, é o cerne
para que ligações emocionais sejam formadas, é o primeiro grupo dinâmico
ao qual a criança é exposta e, nele, ela assimila suas primeiras experiências e
registros de relações interpessoais. Quando esta experiência é perturbada, a
criança irá assimilá-la de forma patológica. Ou seja, as atitudes e comporta-
mento dos pais, assim como a saúde física e mental destes, têm um impacto
decisivo no ajustamento psicossocial dos filhos.
Dentre os aspectos socioculturais, destacam-se as questões ligadas à po-
breza, ao excesso de pessoas residindo num mesmo ambiente, à falta de pri-
vacidade nas aglomerações humanas, à migração do campo para as grandes
cidades, à divisão de espaços e tarefas entre homens e mulheres, ao desempre-
go, a drogadição e ao alcoolismo. São fatores que estimulam o conflito e, que
isoladamente não justificam a ação violenta do agressor.

61
DIREITOS HUMANOS E VULNERABILIDADES

Refletindo sobre a gravidade deste problema, resta-nos a seguintes


indagações: Como coibir este tipo de violência que vitimiza as mulheres e
seus filhos? Que medidas preventivas devem ser estruturadas para garantir
os direitos fundamentais das vítimas? A prevenção representa o eixo mais
importante para reduzir estas agressões, que pode ser realizada através da
educação e do exercício do diálogo através das Práticas Restaurativas. Pois
é pela educação que as mulheres poderão desenvolver suas capacidades, e
consequentemente, a sua condição de agente na sociedade e na conquista de
seus direitos de igualdade.
Importante ressaltar que os aspectos psicossociais da violência domés-
tica, são frequentemente associados às questões de pobreza, (embora exista
violência em todas as classes sociais), ao excesso de pessoas morando em um
mesmo ambiente, a falta de privacidade das aglomerações humanas, à migra-
ção do campo para as grandes cidades, à divisão de espaço e tarefas entre ho-
mens e mulheres, ao desemprego, ao alcoolismo, etc. são tidos como fatores
precipitadores de conflitos.
Porém, cabe frisar que todos estes fatores, isoladamente, não explicam a
atuação violenta, é necessário analisar efetivamente a “relação psicodinâmica
conflituosa” existente no lar do agressor e da mulher vitimada, principalmente
quando sabe-se que nem sempre a mulher agredida é apenas vítima pacífica
na relação com seu parceiro. É obvio que a agressão não pode ser justificada
em hipótese alguma, daí a necessidade de se trabalhar com a prevenção dire-
cionada a uma abordagem da relação estabelecida no dia a dia dos casais em
conflitos. Temos como exemplo as Práticas Restaurativas de Prevenção a esse
tipo de Violência que estão sendo aplicadas em alguns Estados do Brasil, entre
eles Rio Grande do Sul, Paraná, São Paulo, Belo Horizonte, entre outros, cujus
resultados têm sido consistentes.
Segundo relatos dos coordenadores dos projetos nos respectivos Estados,
em linhas gerais, os projetos visam algumas etapas principais: a) o ataque às
causas dos conflitos, para evitar agressões futuras e deter os danos causados
a estas pessoas; b) melhorar a qualidade das relações entre os envolvidos no
conflito, como forma de promover uma melhora substancial das relações esta-
belecidas no seio da família e também fora dela; c) favorecer que as novas gera-
ções adotem modelos relacionais fundamentados no respeito aos direitos das
pessoas, nas responsabilidades individuais e no respeito à diferença; d) favo-
recer o estabelecimento de relações mais igualitárias entre homens e mulheres,
incentivando as divisões de tarefas domésticas, divisões nas responsabilidades
financeiras da família, fortalecer a cultura do diálogo e do colocar-se no lugar
do outro (empatia).
Somente através de medidas efetivas, multidisciplinares e multidiretivas,

62
MARLI MARLENE MORAES DA COSTA – ANALICE SCHAEFER DE MOURA

vindas das áreas da saúde, jurídica, econômica, política e social, através de


líderes comunitários, haverá colaboração para diminuir e até erradicar a vio-
lência contra a mulher e seus filhos.
É difícil quebrar barreiras, mudar mentalidades arraigadas por séculos
pelo sistema patriarcal, que separam os direitos e deveres de homens e mulhe-
res, em todas sociedades. No Brasil, apesar das verbas governamentais para
o combate à violência contra mulheres, os pesquisadores da área referem que
há grandes dificuldades na prevenção e, mesmo, na assistência às vítimas e
agressores. As mulheres denunciam muito pouco. Isso deve-se ao medo de
represálias por parte de seus agressores, ou ao receio de passarem privações
econômicas se os maridos forem presos, ou saírem de seus lares.
O tratamento aos agressores também é difícil, principalmente porque o
mesmo é compulsório, portanto, exigido pelo juiz como parte da penalidade.
Ocorre que um dos princípios básicos da psicoterapia é o desejo de se tratar,
logo isto fica, na maior parte dos casos, prejudicado no tratamento compulsó-
rio. A maioria dos homens que agridem suas esposas ou companheiras e os
filhos, não admitem ser violentos, e quando admitem, colocam nas caracterís-
ticas de personalidade da mulher, ou no comportamento da mesma, o motivo
de suas explosões coléricas.
A prevenção de ocorrências graves, ou de novas agressões, depende fun-
damentalmente da atenção dada às características das relações estabelecidas
entre os casais, e da capacidade dos profissionais mostrarem aos envolvidos
que eles podem trabalhar as diferenças de outras formas, que não seja, através
da agressão. Isso pode ser feito através da técnica da mediação para casais.
Assiste-se uma profunda desestruturação de muitos serviços sociais liga-
dos a causa da violência que vitimiza mulheres e crianças no Brasil. Diante do
considerável aumento de vítimas, a sociedade tem que organizar-se através do
exercício da solidariedade em busca da igualdade de direitos, que inicia pelo
respeito ao outro enquanto ser humano.
A aplicação de medidas preventivas e protetivas, estão distantes de se-
rem realizadas de forma efetiva em nosso país. Há enormes dificuldades para
pôr em prática medidas preventivas direcionadas a prevenção do problema.
Em países como o Canadá, França, Inglaterra e Estados Unidos, mesmo eles
tendo uma melhor estrutura de serviços e de programas de ajuda, as dificulda-
des têm suas raízes na complexidade do fenômeno e, essencialmente nas pes-
soas envolvidas nos conflitos. As barreiras culturais, os fatores educacionais,
a banalização dos comportamentos violentos, tem sido apontado por vários
autores como ligados às dificuldades em prevenir e, mesmo assistir, terapeuti-
camente, às vítimas de comportamentos violentos no lar, assim como de seus

63
DIREITOS HUMANOS E VULNERABILIDADES

agressores (SILVA, 2002).


Em países em via de desenvolvimento, como é o caso do Brasil, estes fa-
tores se mostram a agravados pela crise econômica, que já existia antes da che-
gada do COWID-19, tornando praticamente impossível a implementação de
medidas eficazes na solução do problema. Esta constatação está basicamente
fundamentada e sustentada pelo aumento do número de vítimas, inclusive de
homicídios de mulheres em todo o Brasil, apesar da recente Lei do Feminicídio.
Neste contexto, seus filhos também se tornam vítimas desta violência.
Não se quer aqui discutir apenas o elementar ao chamar o leitor sobre as pers-
pectivas gerais no entorno da violência intrafamiliar, ao contrário, busca-se
instigar acerca das nuances demagógicas que se estabelecem com a edição de
leis como a do próprio feminicídio a Lei n. 13.104/2015, que criou uma qualifi-
cadora objetiva no homicídio preceituado pelo Código Penal. Porém, devemos
ter em mente que a criação de mais uma lei de proteção à mulher no Brasil, não
vai solucionar o problema da violência de que são vítimas. Não se pode mais
remeter esta realidade somente a questões culturais arraigadas no patriarcalis-
mo arcaico dos séculos anteriores e a elaboração de uma nova lei.
É necessária a implementação de Políticas Públicas transversais, que ini-
ciem pela educação, aliás, conforme recomendado pela Comissão Internacional
de Direitos Humanos, no caso Maria da Penha, quando dentre as várias provi-
dências sugeridas ao Brasil, na época, estava a necessidade de implementação
nas escolas de uma disciplina voltada para questões relacionadas à violência
de gênero, já no ensino fundamental. O que até hoje ainda não se consolidou.
Ao abordar o tema da violência os profissionais da área e estudiosos do
tema, dão ênfase a necessidade de analisar-se as tendências epidemiológicas
e existência de políticas públicas com enfoque de promover os fatores de
sociabilidade, prevenir a cultura da dominação, da discriminação, da intole-
rância e a ocorrência de lesões físicas e emocionais e de morte, mas também
para aperfeiçoar os cuidados com a vítima, que na maioria dos casos ficam à
mercê do acaso, quando não são duplamente vitimizadas, num primeiro mo-
mento, pelo seu agressor e na sequencia pela desestrutura do sistema, que na
maioria das vezes, não está habilitado para lidar com o problema da violência
contra intrafamiliar.
Cabe ressaltar, que faltam políticas públicas integradas entre as áreas
que lidam com este tipo de violência, é necessário haver ações preventivas
que atuem sobre os fatores desencadeantes da violência, seria um proces-
so de capacitação das comunidades, para que juntos, consigam desenvolver
uma noção de sensu comum, possam atuar sobre as melhorias da qualidade
de vida das pessoas que integram esta comunidade. Podem trabalhar com

64
MARLI MARLENE MORAES DA COSTA – ANALICE SCHAEFER DE MOURA

temas relacionados a um conjunto de valores, tais como: vida, solidariedade,


equidade, participação, parceria, respeito pelo outro, etc. Para que se possa
efetivar tais ações preventivas, é necessário ter a percepção de quais são os
problemas em pauta nas respectivas localidades (comunidades), quais são as
prioridades de grupos ou indivíduos para atuação, e quais seriam as estraté-
gias mais indicadas para aplicar.
O quadro de elevados índices de violência e feminicídio contra as mu-
lheres no Brasil, não pode ser compreendido integralmente, sem que se faça
uso de determinados termos e conceitos, tais como: desigualdade, injustiça,
corrupção, impunidade, violação dos direitos humanos, banalização e pouca
valorização da vida. Como refere Arendt (1990), a resposta para a violência
destrutiva do poder está na severa frustração de agir no mundo contemporâ-
neo, cujas raízes estão na burocratização da vida pública, na vulnerabilidade
dos grandes sistemas e na monopolização do poder, que seca as verdadeiras
fontes criativas. O decréscimo do poder pela carência da capacidade de agir
em conjunto (por meio de democracias), é um convite a violência que aca-
ba perpassando todas as esferas da vida humana. Assim, segundo Arendt,
“a violência, sendo instrumental por natureza, é racional. Ela não promove
causas, nem a história, nem a revolução, nem o progresso, nem o retroces-
so, mas pode servir para dramatizar queixas e trazê-las à atenção pública”
(ARENDT, 1990, p. 99).
O trabalho em rede se fortalece com o encontro dos diferentes atores
sociais, num exercício contínuo de se pensar e avaliar as ações que estão sen-
do executadas pelos atores dentro de suas respectivas comunidades e rea-
lidades. Porém de acordo com Arendt (1990), não se pode pensar qualquer
programa de mudança no campo da violência, sem combinar a atuação no
campo macroestrutural, nas questões conjunturais que expressam problemas
estruturais, problemas de ordem cultural e nas relações interpessoais, no âm-
bito privado e público.
No campo de propostas para a prevenção da violência intrafamiliar,
está a necessidade de discussão dos direitos e liberdades das vítimas, sem
esquecer que existe um movimento da sociedade e do Estado para olhar esse
fenômeno com mais cuidado, abordando-o nos aspectos negativos (as con-
sequências) e nos aspectos positivos (a qualidade de vida). Chesnais (1981)
concluiu que os dados de violência em determinado país, são indicadores
fortíssimos para se avaliar a qualidade de vida, pois dizem respeito tanto a
condições gerais de existência, de trabalho, de sociabilidade, como a vivência
de uma cultura de diálogo e tolerância que reatualiza no cotidiano, os direi-
tos e deveres dos cidadãos.
O tema da violência intrafamiliar, deve desenvolver uma consciência

65
DIREITOS HUMANOS E VULNERABILIDADES

crítica, na sociedade e nos serviços locais de saúde principalmente, sobre o


significado da violência contra este grupo social específico, da forma mais
abrangente possível. A mentalidade (cultura patriarcal) deve ser dizimada do
mundo da vida, para que os direitos e garantias constitucionais das mulheres
e seus filhos possam perdurar.
No presente momento, vivemos numa sociedade em que a violência cons-
titui uma preocupação que não pode ser ignorada, por ser uma das questões
que mais nos causa pânico e ansiedade, quando tentamos situá-la em relação
a problemas gravíssimos, como a perda de alguém próximo, do emprego ou
das incertezas frente a um futuro sem grandes perspectivas. A violência traz
consigo uma carga de dor, sofrimento e morte, conseguindo fazer parte de nos-
sas preocupações cotidianas e avança impiedosamente sobre s esferas físicas,
mentais e sociais do indivíduo. Ela aparece em toda parte, é onipresente e mul-
tiforme, tão ambígua que não há uma única formulação teórica que a explique.
Certamente, é chegada a hora de refletir-se sobre a necessidade de traba-
lhar-se a prevenção da violência no Brasil, contudo, é necessário ter muito claro
sobre que tipo de violência estamos falando, mesmo porque, em muitos casos
ela atinge níveis de selvageria e de barbárie. Sem uma visão de mundo que
coloque para o próprio homem a necessidade de repensar o processo de huma-
nização, será muito difícil obter êxito, de forma a garantir os direitos humanos
e fundamentais das vítimas.
É preciso ter em mente, que o crescimento da violência nos vários setores
da sociedade, reflete a crise do Estado-Nação, enquanto representante do bem
comum, da manutenção da ordem em nome da lei. Para que se possa refutar a
lógica, é preciso reforçar a perspectiva de que a violência não é um fenômeno
uniforme, simplista, monolítico, que se abate sobre a sociedade como algo que
lhe é exterior e pode ser explicado através do tipo causa/efeito, como a “pobre-
za gera violência”. Pelo contrário, a violência é multifacetada, ela está em toda
parte, é onipresente e insidiosa.
É importante reconhecer que no Brasil, a maioria das estimativas exis-
tentes sobre o problema da violência doméstica, refletem somente os casos
mais graves. Talvez pela falta de procedimentos básicos para o seu reconhe-
cimento, associado a falta de profissionais capacitados, alocados nos quadros
efetivos das repartições responsáveis pelo sistema de atendimento a este pú-
blico. É necessário estabelecer uma rotina, eficiente, capaz de estabelecer flu-
xos adequados das informações relacionadas entre as instituições que lidam
com o problema.
É de fundamental importância entender a violência doméstica como
um fenômeno complexo que envolve todos os integrantes do núcleo família

66
MARLI MARLENE MORAES DA COSTA – ANALICE SCHAEFER DE MOURA

e que não se restringe apenas a um indivíduo ou a uma relação específica.


Quando um sofre, todos sofrem. Observa-se que, a mãe que é agredida, como
já apontado ao longo deste trabalho, sofre repercussões em sua saúde, é fá-
cil concluir-se que, mesmo atinentes ao casal, as consequências da violência
ocorrerão sobre toda a família. Como querer que uma mãe que vive essas
experiências que marcam negativamente a sua existência, possa cuidar ade-
quadamente de seus filhos? Como evitar que os filhos sejam negligenciados
ou agredidos e física e emocionalmente?
Gelles (1997) alerta para o fato de que, a despeito das reconhecidas pecu-
liaridades das diversas modalidades de violência, contra a mulher, a criança,
o idoso, etc., a análise isolada dos fenômenos não contribui para um melhor
conhecimento e enfrentamento do problema. A abordagem familiar da violên-
cia e a própria complexidade do fenômeno gera como consequência a necessi-
dade de integrar diferentes profissionais das mais diversas áreas, objetivando
formar equipes interdisciplinares nos programas de prevenção, e acompanha-
mento das vítimas. É necessário que a equipe se reúna e faça uma análise em
conjunto dos casos atendidos, que estão sob sua responsabilidade. As espe-
cificidades de cada profissional irá permitir que a situação seja discutida sob
diferentes pontos de vista, possibilitando um diagnóstico efetivo do problema,
bem como, um planejamento das atividades a serem desenvolvidas.
Não se pode admitir em pleno século XXI, que este tipo de problema
continue sendo tratado em forma de mosaico, ou seja, o advogado, delegado,
promotor e o juiz, não dão muita ênfase ao que constatam os profissionais da
saúde que atenderam determinado caso, por sua vez, também não se comu-
nicam entre si, sobre os casos que atendem. É necessário quebrar velhos pa-
radigmas disciplinares e construir novos, capazes de estreitar relações entre
os profissionais das áreas que trabalham com o problema da violência contra
a mulher e seus filhos.
As equipes interdisciplinares, devem ser compostas por profissionais de-
dicados em tempo integral, possibilitando concentração de esforços e experiên-
cia profissional. Também é necessário que haja integração entre as diferentes
instituições responsáveis pela prevenção da violência doméstica. Sabe-se que
os limites do trabalho da equipe e os riscos de reincidência são enormes, já
que a violência é fruto de valores culturais próprios de muitas famílias, e que
as possibilidades de modificar esses valores são limitados, mas não se pode
desistir, muitas famílias dependem do trabalho destes profissionais, para en-
xergarem uma luz no fundo do túnel, terem esperança de que conseguirão
sobreviver e essa fase de suas vidas.
Com a promulgação da Lei n. 11.340/2006, o interesse de serviços pú-
blicos, Juizados de Violência Doméstica, tornou-se importante por tratar de

67
DIREITOS HUMANOS E VULNERABILIDADES

matéria específica ligada ao gênero e recepcionar a criação de horários de fun-


cionamento do mesmo preceituado nos artigos 33 e 144. Essa nova lei, também
inova, ao recomendar em seu texto, a criação de serviços de atenção aos ho-
mens autores de violência.
No atual cenário brasileiro em que o Judiciário, por meio da Resolução de
n. 125 e da Resolução de n. 225, ambas do CNJ, é protagonista, torna-se viável
a implementação da Justiça Restaurativa e suas práticas também nos espaços
comunitários, como nos Centros de Referência Especializado de Assistência
Social – CREAS e nos Centros de Referência de Assistência Social – CRAS, nos
Conselhos de Direitos das Mulheres e nas Delegacias Especializadas para Mu-
lheres. A ideia com essa possibilidade é dizer-se que a Justiça Restaurativa e
suas práticas, na sua gênese, não pertence às instituições, ou a nenhuma em
particular, pois é inerente a condição humana. Neste contexto, pode-se afir-
mar que todo e qualquer espaço que lide com os conflitos das pessoas pode
trabalhar com as práticas restaurativas, objetivando que as partes envolvidas
no conflito juntamente com uma equipe interdisciplinar, possam encontrar-se
para falar, escutar, entender e decidir como restaurar aquelas relações que es-
tão em conflito, e como trabalhar a prevenção dos mesmos.
Segundo Pallamolla (2009), é necessário que vítima e ofensor possam
decidir livremente se desejam ou não participar do processo restaurativo. A
possibilidade de escolha é um passo rumo ao progresso no sentimento da cons-
trução conjunta, fortalece a importância que cada um tem e auxilia na reto-
mada da consciência de coletividade, considerando que é através do diálogo,
da empatia, do respeito mútuo, da compreensão e compartilhamento, o que o
processo restaurativo conduz a igualdade de direitos de cidadania.
Zehr (2018) refere que a Justiça Restaurativa através de suas práticas,
sustenta-se basicamente sobre três pilares, quais sejam: dano e necessidades,
obrigações e engajamento, justamente porque os participantes têm voz e valor
o que torna a solução para a aquele conflito com aplicabilidade real, o que nem
sempre acontece em um procedimento fora das práticas restaurativas.
A escuta ativa das partes fragilizadas ajuda ambas a se reconstruírem e
a partir disso visualizarem novas chances de se reerguerem. Os Círculos de
Paz são concebidos para ouvir todas as vozes tendo como objetivo reconectar
as pessoas, “reúnem a antiga sabedoria comunitária e o valor contemporâneo
do respeito pelos dons, necessidades e diferenças individuais[...]”. O enten-
dimento de que se compartilha de uma mesma necessidade enquanto ser hu-
mano, qual seja ter acesso a um tratamento digno e respeitoso, a necessidade
de pertencer a uma comunidade, que também pode ser vista como família
(PRANIS, 2010, p.18).

68
MARLI MARLENE MORAES DA COSTA – ANALICE SCHAEFER DE MOURA

Neste cenário, observa-se que as práticas restaurativas realmente alcan-


çam seu objetivo enquanto políticas públicas de enfrentamento e prevenção à
violência intrafamiliar e conseguem atuar na efetivação dos direitos de cida-
dania das mulheres e crianças vítimas deste tipo de violência, possibilitando
ainda a conscientização dos envolvidos.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A violência intrafamiliar é tida como um problema de saúde pública, tan-
to em países desenvolvidos, como em países em desenvolvimento, como é o
caso do Brasil, são enormes as dificuldades para enfrentar o problema. São
muitos os fatores apontados por vários estudiosos do tema, citados ao longo do
trabalho, que dificultam a efetivação dos direitos fundamentais destas mulhe-
res e seus filhos. Esta constatação está basicamente fundamentada e sustentada
pelo elevado número de casos em todo o País. Situação essa, que se agrava em
tempos de pandemia como o que estamos vivenciando.
Assim, se mostra evidente a necessidade de urgência do investimento
em políticas públicas de prevenção, do incentivo às práticas restaurativas que
atuam na restauração do elo fragilizado para que essa relação não possa ser
reorganizada, restabelecida com dignidade, respeito mútuo e diálogo.
Nos termos da resolução número 225/2016 do Conselho Nacional de
Justiça, a Justiça Restaurativa constitui um conjunto ordenado e sistemático
de princípios, métodos, técnicas e atividades que objetivam colocar em des-
taque os fatores relacionais, institucionais e sociais motivadores de conflitos
e violências.
A justiça restaurativa através de suas práticas apresenta-se como uma po-
lítica pública, capaz de confrontar essa realidade de violência, buscando solu-
cionar o problema social com o tratamento da carga emocional dos envolvido,
por meio da construção de respostas justas e de uma responsabilização que
alcance a reparação consciente, como ferramenta eficaz no tratamento desses
conflitos uma vez que a Justiça Restaurativa reconhece que todos, indepen-
dentemente de serem vítimas ou infratores estão interligados e fazem parte
de uma sociedade compartilhada. Resgatando o sentimento de pertencimento,
concedendo voz e vez para cada membro e possibilitando uma maior com-
preensão do outro dentro da sociedade
As práticas restaurativas, a exemplo da sabedoria ancestral vem ganhan-
do espaço nas comunidades modernas, atuam na construção de um novo para-
digma de justiça social. Consideram o indivíduo como um todo e como um elo
parte da comunidade. Atuam na promoção dos direitos de cidadania e desper-
tam a consciência de que todo ser humano é único e deve ser respeitado, como

69
DIREITOS HUMANOS E VULNERABILIDADES

detentor de um lugar dentro da comunidade. As Justiça Restaurativa, através


de suas práticas, contribuem para um processo de capacitação e emancipação,
através de um conjunto de valores tais como, vida, solidariedade, equidade e
participação. Além de promover uma múltipla responsabilização pelos proble-
mas que afetam o bem-estar das pessoas que ali vivem.
A ajuda mútua forma uma base de força e confiança para que cada inte-
grante se sinta acolhido e entendido, tendo a chance de empoderamento pes-
soal para que seja capaz de resolver seus conflitos. Com o poder de cada inte-
grante sendo desenvolvido é possível estabelecer laços de segurança, em um
ambiente que traga a proteção e promova o amadurecimento de um vínculo de
confiança, sendo possível detectar e tratar situações de violência.
O diálogo ocupa um espaço de suma importância dentro das práticas
pois somente uma comunidade saudável pode manter alicerces de paz, basea-
da no cuidado com os membros, objetivando um tratamento de respeito onde
se veja o que conecta e diferencia os mesmos, mas ainda os mantém como per-
tencentes ao mesmo grupo. Os Círculos partem do pressuposto de que existe
um desejo humano universal de estar ligado aos outros de forma positiva. A
visão de comunidade e de que todos têm o direito a pertencer, sendo capazes
de serem protagonistas de suas histórias, é uma estratégia da cultura de paz.
Dentro da estrutura dos Círculos de Paz existe o entendimento de que
todas as necessidades de cada participante devem ser colocadas no Círculo e
neste espaço se reproduzem relações saudáveis. A habilidade de entender cada
ser humano como único e de ainda assim fazer dessas diferenças conexões,
pois cada ser é indispensável ao grupo, tendo a possibilidade de contribuir em
diferentes formas

6. REFERÊNCIAS
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70
MARLI MARLENE MORAES DA COSTA – ANALICE SCHAEFER DE MOURA

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71
ENTRE INVISIBILIDADE E NEGAÇÃO DE DIREITOS: O
DESAFIO DAS POLÍTICAS PÚBLICAS NO COMBATE AO
RACISMO E NA PROTEÇÃO DA INFÂNCIA NO BRASIL
Fernanda da Silva Lima

Sumário: 1. Introdução; 2. A compreensão das relações raciais no Brasil:


notas sobre o racismo estrutural; 3. Direitos humanos, infância e políti-
cas públicas: os desafios para a construção de uma agenda antirracista; 4.
Considerações finais; 5. Referências.

1. INTRODUÇÃO
O direito da criança e do adolescente no Brasil consolida-se como um
ramo jurídico autônomo do Direito, responsável pela incorporação da doutrina
da proteção integral ao sistema normativo pátrio a partir de um amplo conjun-
to normativo, tais como a Constituição da República Federativa do Brasil de
1988, a incorporação da Convenção Internacional dos Direitos da Criança da
ONU de 1989, o Estatuto da Criança e do Adolescente de 1990 além de legisla-
ção esparsa. Este amplo sistema de proteção normativo humaniza as crianças
e os adolescentes, reconhecendo-os como verdadeiros sujeitos de direitos e se
orienta a partir do respeito a sua condição de pessoa em desenvolvimento.
O estudo da proteção integral aos direitos de crianças e adolescentes com-
preende também realizá-lo sob o enfoque da igualdade racial, da luta antirra-
cista no Brasil e do reconhecimento de que o racismo na sociedade é estrutural,
atingindo também as crianças e adolescentes negros. Por isto, esta pesquisa tem
como objetivo geral demonstrar os limites jurídicos e os limites das políticas pú-
blicas no que tange à concretização de direitos de crianças e adolescentes negros.
Questiona-se se, a partir das pesquisas realizadas nesta área há quase duas déca-
das, quais os principais desafios colocados no campo das políticas públicas, para
que se efetivem os direitos de crianças e adolescentes negros no País?
Neste ano em que o Estatuto da Criança e do Adolescente completa 30
anos trazer o debate racial para dentro do Direito da Criança e do Adolescente
torna-se imprescindível. E, por isso, é importante falar sobre como o racismo
estrutural afeta a vida de milhares de crianças e adolescentes negros no País.
Como já mencionei em outro texto recente, este artigo se justifica pela impor-
tância em reconhecer que:
A infância empobrecida e violentada no Brasil tem cor e é negra, e por
mais que gostaríamos de dizer o contrário, pesam sobre elas a permanên-

72
FERNANDA DA SILVA LIMA

cia diuturna nos piores indicadores sociais – saúde, condições de moradia,


taxa de analfabetismo, evasão escolar, distorção série x idade, renda fami-
liar, indicadores de violência – desde o abuso e exploração sexual às balas
que não são perdidas, mas são “achadas”. Elas encontram seus pequenos
corpos e seguem confirmando uma necropolítica engendrada garantindo
ao Estado o poder de dizer quem morre e quem vive. (LIMA, 2020)
Assim, este texto de denúncia-ação será divido em duas partes: o pri-
meiro é conhecer como ocorrem as dinâmicas sociais permeadas pelo racismo
estrutural desde uma perspectiva que se mantém viva pelos traços de coloniali-
dade não rompidos com o fim do colonialismo e do processo de escravidão no
Brasil; e o segundo é apresentar os direitos de crianças e adolescentes a partir
de uma abordagem crítica dos direitos humanos fundamentados na luta so-
cial e na perspectiva de que as políticas públicas, embora não isoladas, podem
constituir-se em ferramentas importantes no enfrentamento das desigualdades
raciais e da desumanização que recai também sobre a infância a partir das in-
tersecções com a classe, raça e geração (além de outras).
O texto utiliza o método indutivo, procedimento bibliográfico, envolven-
do a técnica de pesquisa bibliográfica.

2. A COMPREENSÃO DAS RELAÇÕES RACIAIS NO BRASIL: NOTAS


SOBRE O RACISMO ESTRUTURAL
A compreensão sobre o que é racismo se sustenta na definição do que se
entende sobre o termo raça. Neste texto emprega-se a noção de raça como um
conceito não estático1, mas sobretudo, construído a partir do século XVI no
contexto da invasão, espoliação e dominação dos povos europeus sobre a Amé-
rica, África e Ásia. Abordar sobre o racismo estrutural que assola a sociedade
brasileira de hoje tem como principal contexto histórico, a diáspora africana e
a escravização sobre os corpos negros, realizado sob a mais perversa violência
e desumanização.
Este processo de violência tem origem no projeto de expansão colonial
perpetrado pela Europa contra os povos do sul global, e neste caso, sobre os
povos das Américas e do Brasil. A raça, neste sentido, foi uma categoria que
permitiu, por meio de hierarquizações e inferiorizações, estabelecer a relação
colonizadores versus colonizados. Nesta relação dicotômica e complexa coube
ao colonizador o papel de domesticar, violentar, desumanizar e invisibilizar os
colonizados. Vários termos dão conta de explicar quem era o colonizado nes-

1 De acordo com Almeida (2018, p. 19) “Raça não é um termo fixo, estático. Seu sentido está ine-
vitavelmente atrelado às circunstâncias históricas em que é utilizado. Por trás da raça sempre há
contingência, conflito, poder e decisão, de tal sorte que se trata de um conceito relacional e histórico.
Assim, a história da raça ou das raças é a história da constituição política e econômica das sociedades
contemporâneas.” (Grifos do autor)

73
DIREITOS HUMANOS E VULNERABILIDADES

ta relação de dominação. O colonizado era considerado bárbaro, incivilizado,


inferior, preguiçoso, sem alma, sem cultura. Assim, a consciência hegemônica
universal se funda na concepção de que o Outro (o colonizado) não é plena-
mente humano, é um ser sem lugar na cultura. (SODRÉ, 2002, p. 177) Nesta
perspectiva, o colonizado, para usar a expressão de Fanon (2005, p. 58) repre-
senta a ‘quintessência do mal’.
Entre colonizador e colonizado só há lugar para o trabalho forçado, para
a intimidação, para a pressão, para a polícia, para o tributo, para o roubo,
para a violação, para a cultura imposta, para o desprezo, para a descon-
fiança, para o silêncio dos cemitérios, para a presunção, para a grosse-
ria, para as elites descerebradas, para as massas envilecidas. (CÉSAIRE,
2010, p. 31)
É desta forma deturpada da realidade que o colonizador imprime a
sua visão de mundo – eurocêntrica/cristã/ocidental/heterossexual/patriarcal
– como padrão do que é universalmente aceito e moralmente correto. Permi-
tindo-se não apenas manter as relações de poder e dominação fundadas no
colonialismo, mas invisibilizar as trajetórias de lutas dos povos considerados
subalternos como consequência da colonialidade que se mantém enquanto sis-
tema de dominação. (LIMA; BORGES, 2019) A colonialidade, portanto, “[...]
chega as raízes mais profundas e sobrevive ainda, apesar da descolonização ou
emancipação das colônias latino-americanas, asiáticas e africanas nos séculos
XIX e XX.” (OLIVEIRA, 2018, p. 46)
Se a produção teórica sobre a raça a partir do século XVI significou a
manutenção de uma estrutura social desigual mantida na relação colonizador
versus colonizados, a ciência iluminista a partir do século XIX vai criar a raça
enquanto categoria biológica. A velha dicotomia vai se transformar com o ra-
cismo científico na nova: superiores versus inferiores, civilizados versus incivi-
lizados...e por aí vai. (LIMA; 2018)
Sodré (2005, p. 27-28) vai afirmar que:
É a universalização racionalista do conceito de homem que inaugura, no
século XIX, o racismo doutrinário. Até então, as raças ou as etnias podem
ter sempre alimentado ódios ou desconfianças mútuas, mas nunca sob
alegações científicas, sob critério de uma razão universal. [...] a palavra
racismo é fruto do século XIX, consequência de um conceito de cultura
fundado na visão indifirenciada do humano.
Compreender as relações raciais no País requer conhecer como o racismo
e a própria idéia da raça se articula “[...] como instrumento de classificação e
controle social e o desenvolvimento do capitalismo mundial (moderno, colo-
nial, eurocêntrico), que se iniciou como parte constitutiva da constituição his-
tórica da América.” (WALSH, 2009, p.14)
Como já dito em outra obra (LIMA, 2018), este sistema de poder socioe-

74
FERNANDA DA SILVA LIMA

conômico, de exploração e exclusão em que se assenta o racismo foi alimen-


tado no Brasil, ao longo dos anos, por diversas ideologias raciais distintas.
Abre-se uma breve reflexão para mencionar pelo menos cinco destas que
seguem moldando a nossa estrutura cognitiva sobre o que é e como é ser
negro/a no Brasil, bem como os processos de violência e opressão sofridos
em decorrência desta realidade. São elas aqui nominadas: 1) evolucionista; 2)
eugenia; 3) branqueamento – pela migração, pelo estupro de mulheres negras
escravizadas e por assimilação cultural ou aculturação; 4) mestiçagem; e 5)
tese da democracia racial.2
Daí a importância de conhecer os aspectos sociais, históricos e políticos
do racismo, reconhecê-lo como um sistema de opressão que se assenta em re-
lações de poder. E, por conta disto, concorda-se com Silvio de Almeida (2018,
p. 39) quando diz que o que se quer enfatizar do ponto de vista teórico é que:
[...] o racismo, como processo histórico e político cria as condições sociais
para que, direta ou indiretamente, grupos racialmente identificados sejam
discriminados de forma sistemática. Ainda que os indivíduos que come-
tam atos racistas sejam responsabilizados, o olhar estrutural sobre as re-
lações raciais nos leva a concluir que a responsabilização jurídica não é
suficiente para que a sociedade deixe de ser uma máquina produtora de
desigualdade racial.
Neste contexto, é urgente e necessário enxergar o Brasil como o país pe-
riférico no sistema mundo3, considerando seu espaço geopolítico, histórico e
colonial. Ainda que o colonialismo tenha findado no Brasil, permanece-se vi-
vendo sob o julgo da colonialidade, seja nas relações pessoais cotidianas, nas
lutas, militâncias e na academia.
Formas de fraturar a colonialidade têm sido apresentadas pelos movi-
mentos sociais negros, por exemplo como narra Nilma Lino Gomes (2018) se
constituem como ator político e tem há muito tempo sistematizado vários sa-
beres – políticos, identitários e estéticos-corpóreos. Estes saberes são respon-
sáveis por educar e reeducar a sociedade permitindo não só um letramento
racial, mas ampliar as possibilidades de luta coletiva e antirracista. Além dos
movimentos, temos visto, nas últimas décadas, a academia fazendo este movi-
mento de decolonialidade ou contracolonização.
A contracolonização implica em reconhecer, no caso da população negra,
a necessidade de um protagonismo de falar por si e a partir de sua experiência.
É um sentido de (re)existência. “O falar não se restringe ao ato de emitir pala-

2 Para conhecer melhor cada uma delas ver em: (LIMA, 2018) (LIMA, 2015)
3 Neste artigo optamos pelo conceito de “sistema-mundo” no lugar de “sociedade” a partir de Grosfogel
(2018, p. 56): “O conceito de ‘sistema-mundo’ é um movimento de protesto dentro das ciências sociais
eurocêntricas contra as análises que utilizam a categoria ‘sociedade’, entendida como equivalente ao
‘Estado-Nação’. [...] A ideia da teoria do sistema-mundo é que existem processos e estruturas sociais
cujas temporalidades e espacialidades são mais amplas que as dos Estados-Nações.”

75
DIREITOS HUMANOS E VULNERABILIDADES

vras, mas de poder existir. Pensamos lugar de fala como refutar a historiografia
tradicional e a hierarquização de saberes consequente da hierarquia social.”
(RIBEIRO, 2017, p. 64)
É a necessidade de não ter mais a sua pauta de luta contada apenas a
partir da visão do outro. É primordial ouvir o que as vozes negras afirmam
sobre os processos de violência que sofrem. E, no âmbito da academia, isso
só será possível se a população negra acessar estes espaços. O lugar de fala é
assegurar a existência de que estas vozes possam de fato ser ouvidas, obvia-
mente, fora de uma concepção essencialista – a de que só o negro pode falar
de racismo, por exemplo. (RIBEIRO, 2017, p. 64)
Compreender o racismo como estrutural na sociedade implica reconhecer
que as crianças e adolescentes negros também são afetadas e por isso são negli-
genciadas no acesso aos seus direitos mais básicos, como o direito de viver feliz
e com dignidade. Se uma das formas de concretização dos direitos de crianças
e adolescentes se dá pela via das políticas públicas, reconhecer a necessidade
de transversalizar a “raça” neste debate é primordial. O item seguir reforça esta
prerrogativa e amplia a discussão da ampla proteção integral, não sem apontar
alguns limites jurídicos e os desafios futuros.

3. DIREITOS HUMANOS, INFÂNCIA E POLÍTICAS PÚBLICAS: OS


DESAFIOS PARA A CONSTRUÇÃO DE UMA AGENDA ANTIRRACISTA
A escassez de estudos na área racial envolvendo os direitos de crianças
e adolescentes é latente, não só na área do Direito, como em muitas outras.
Este ensaio é relevante porque tira da invisibilidade um problema que assola
a infância brasileira: a discriminação racial. São elas também vítimas e margi-
nalizadas socialmente em razão da sua cor, do preconceito racial e do racismo
que lhes tiram a condição de sujeitos.
Na área das políticas públicas, a temática racial é imprescindível e inadiá-
vel. Na área da infância e adolescência, o enfoque étnico-racial deve englobar
a construção de toda e qualquer política pública com o intuito de fortalecer
os princípios da igualdade e da não discriminação e promover um equilíbrio
racial na sociedade brasileira, possibilitando às crianças e aos adolescentes ne-
gros alcançarem de fato o status de sujeitos de direitos.
Como decorrência da luta dos movimentos sociais da década de 1980,
foi possível garantir no âmbito normativo constitucional direitos de proteção
à infância e adolescência no Brasil. A Constituição da República Federativa
do Brasil de 1988 abriu caminhos rumo a um novo olhar que se deve ter para
a infância e adolescência no País (art. 227). Um novo olhar de zelo, de cari-
nho, de atenção e principalmente de proteção aos seus direitos fundamentais.

76
FERNANDA DA SILVA LIMA

E de modo mais específico, as crianças e adolescentes pertencentes à raça


negra também gozam de amparo constitucional para a promoção e concreti-
zação dos seus direitos, livres de quaisquer formas de preconceito, racismo e
discriminação racial.
Quase dois anos após a promulgação da Constituição da República Fe-
derativa do Brasil de 1988, foi aprovada a Lei 8.069, de 13 de julho de 1990,
que dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente, estabelecendo em lei
específica o que já estava normatizado no plano internacional, principalmente
na Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança de 1989 da ONU.
O Estatuto da Criança e do Adolescente reveste-se num moderno ins-
trumento jurídico-político de proteção e promoção aos direitos da infância e
adolescência no Brasil, tendo surgido no ordenamento jurídico brasileiro, prin-
cipalmente pela necessidade de regulamentar os dispositivos 226, 227 e 228
da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 e para contemplar
numa lei específica a Doutrina da Proteção Integral (BRASIL, 1988).
De acordo com o que preceitua o artigo 5º do Estatuto da Criança e do
Adolescente, “nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma
de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, pu-
nido na forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos
fundamentais”. Entende-se “por discriminação tudo aquilo que distingue, se-
para, segrega” (VERONESE,1999, p. 657).
O termo “discriminação” conforme está disposto no artigo 5º deve ser
compreendido como as variadas formas de discriminação que crianças e ado-
lescentes podem sofrer, incluindo a discriminação por condição étnico-racial,
e que venham a afrontar o exercício dos seus direitos humanos e fundamen-
tais. O legislador, ao fazer essa previsão normativa no artigo 5º do Estatuto,
visou a necessidade de amparar e resguardar os direitos dessa parcela vulne-
rável da população. E talvez a importância deste dispositivo esteja no reflexo
do compromisso que o Estado brasileiro assumiu a partir da promulgação da
Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 e da incorporação da
Convenção Internacional dos Direitos da Criança e do Adolescente que con-
templa uma proteção especial e integral a esses sujeitos de direitos (LIMA;
VERONESE, 2011).
De acordo com Ramidoff (2007, p. 13), o direito da criança e do adolescente
ancora-se numa nova teoria jurídico-protetiva transdisciplinar, que dependerá
da responsabilização compartilhada entre a família, o Estado e a sociedade no
campo da efetivação dos direitos de crianças e adolescentes. O autor também
afirma que é extremamente necessário que haja um reordenamento estratégico
no campo das políticas públicas que incluam verdadeiramente as crianças, os

77
DIREITOS HUMANOS E VULNERABILIDADES

adolescentes e suas famílias. Diz que o grande desafio desta nova doutrina ju-
rídico-protetiva transdisciplinar é justamente a construção, a conscientização,
a mobilização, a implementação e a efetivação destes novos valores humanos
consagrados para as crianças e os adolescentes.
Compreende-se por políticas públicas como instrumentos de ordem
político-administrativa a serviço da população que visem aprimorar ou me-
lhorar a sua qualidade de vida de modo geral. Neste texto, utilizar-se-á as
políticas públicas que se relacionam com políticas de Estado, que não devem
cessar ou ser interrompidas em razão da renovação periódica dos governan-
tes. Secchi(2013, p. 2) informa que não há um consenso doutrinário em rela-
ção ao termo políticas públicas, no entanto, esclarece que a política pública
possui pelo menos dois aspectos fundamentais: “[...] intencionalidade pú-
blica e resposta a um problema público; em outras palavras, a razão para o
estabelecimento de uma política pública é o tratamento ou a resolução de
um problema entendido como coletivamente relevante”. Logo, é necessário
compreender que “as políticas são, em verdade, as intenções governamentais
que produzirão transformações profundas ou artificiais no mundo é real”
(GIANEZINI; BARRETO; VIEIRA, 2015, p. 163).
Portanto, as políticas públicas permitem que o Estado (com ou sem a par-
ticipação da Sociedade) a partir das demandas sociais ou não, formule,
planeje e execute ações que possam atuar no mundo real. Entretanto, é
importante destacar que política pública sem recursos necessários para
a sua execução resume-se a um rol de intenções, que não possuem o ins-
trumental necessário para a sua concretização. (GIANEZINI; BARRETO;
VIEIRA, 2015, p. 164)
Dada a multidisciplinaridade que envolve os estudos sobre as políticas
públicas, esta análise vai partir da necessidade de compreendê-las como ins-
trumento para a concretização de direitos fundamentais de crianças e adoles-
centes e, mais especificamente, no que se refere à garantia dos direitos sociais,
cuja realização só se torna possível quando há investimento estatal ou presta-
ções positivas por parte do Estado, para a garantia do direito ao lazer, à educa-
ção, à saúde, à moradia, à assistência social, aos cuidados com a maternidade e
à infância, entre outros direitos.
No estudo das políticas públicas existem algumas fases ou elementos
constitutivos, que podem variar conforme o autor que as aborda. Para Subirats
et al. (2012, p. 33), os elementos constitutivos das políticas públicas são: (1) sur-
gimento e percepção dos problemas; (2) incorporação na agenda política; (3)
formulação da política; (4) implementação; e (5) avaliação.
Subirats et al. (2012, p. 46) define a primeira fase, a da identificação do
problema, “como aquella en la que una determinada situación, produce una necesidad

78
FERNANDA DA SILVA LIMA

colectiva, una carencia o una insatisfacción identificable directamente o a través de


elementos que exteriorizan esa situación y ante la cual se busca una solución”4. Logo,
sendo identificado o problema, o próximo passo é decidir se a pauta que se está
reivindicando será ou não incorporada na agenda política. A incorporação na
agenda de um problema identificado como público vai depender em grande
medida dos atores decisivos para a tomada da decisão (SUBIRATS et al., 2012,
p. 46). Aí está a importância de ampliação da representação da sociedade – en-
volvendo uma multiplicidade de atores e demandas – nas instâncias de deci-
são, pois apenas aqueles envolvidos no processo de participação poderão ter
sucesso nas suas reivindicações.
A agenda política (agenda setting) pode ser definida como o elenco de pro-
blemas e assuntos que chamam a atenção do governo e dos cidadãos. Não
se trata de um documento formal ou escrito, e sim do rol das questões
relevantes debatidas pelos agentes públicos e sociais, com forte repercus-
são na opinião pública. A agenda nunca está dada. Não há uma agenda
‘natural’. Trata-se de uma construção permanente, que envolve forte dis-
puta política.
No mesmo sentido, Souza (2006, p. 29) chama a atenção para o estágio da
definição de agenda com a seguinte indagação: “Por que algumas pautas entram
na agenda e outras não?” Do ponto de vista de Subirats et. al. (2012, p. 133), a
definição da agenda poderia ser algo simples, uma vez que bastaria identificar
qual o problema se pretende resolver através das políticas públicas. No entanto,
existem outras dimensões de análise que envolvem esta definição5.
Em linhas gerais, as críticas propostas por Subiratis et al. (2012) e Souza
(2006) se referem ao poder político, ou ainda outros interesses, que estariam
por detrás das escolhas entre esta ou aquela política, pois, mesmo que haja a
identificação de um problema, o grupo de pessoas – ainda que representantes
do poder público e/ou da sociedade – é que decide se o problema entra ou não
na agenda, ou seja, se o problema será efetivamente inserido na pauta política
atual, ou se será postergado (LEITE, 2011, p. 65).
A presença cada vez mais ativa da sociedade civil nas questões de inte-
resse geral torna a publicização fundamental. As políticas públicas tratam
de recursos públicos diretamente ou através de renúncia fiscal (isenções),
ou de regular relações que envolvem interesses públicos. Elas se realizam
num campo extremamente contraditório onde se entrecruzam interesses
e visões de mundo conflitantes e onde os limites entre público e privado
são de difícil demarcação. Daí a necessidade do debate público, da trans-

4 Como aquele em que uma determinada situação, criada a partir de necessidades coletivas ou de insa-
tisfações, são demonstradas no âmbito social e para as quais se requer uma solução. (Tradução livre.)
5 “[...] la definición política de un problema público es el resultado de una pugna simbólica ente gru-
pos y definiciones rivales. Pugna que tiene lugar en un contexto institucional al menos parcialmente
establecido. Las modalidades de la inclusión en la agenda política de una situación juzgada colec-
tivamente como problemática son, sin embargo, complejas y merecen que nos detengamos en ellas.”
(SUBIRATS et al., 2012, p. 137)

79
DIREITOS HUMANOS E VULNERABILIDADES

parência, da sua elaboração em espaços públicos e não nos gabinetes go-


vernamentais. (TEIXEIRA, 2002, p. 2)
No caso do objeto deste artigo, em que coloca a urgência de criar uma
agenda política comprometida com a garantia de igualdade racial entre crian-
ças e adolescentes no País e consequentemente garantir os seus direitos hu-
manos e fundamentais, é imprescindível que as demandas dos movimentos
negros – entre outros – se façam presentes no momento de inserir na agenda e
no momento da elaboração das políticas públicas para a infância, e que estas
políticas sejam construídas e representadas sob a égide do direito de igualdade
e de reconhecimento da diferença.
Importante neste contexto transversalizar o debate de raça no campo das
políticas públicas que envolvem à infância. A transversalidade busca a inser-
ção de novos temas na agenda política, que por tradição sempre ficaram de
fora. “Nesses casos, é exigido que os órgãos governamentais considerem as
múltiplas facetas da realidade, possibilitando o atendimento a requisitos diver-
sos ou a consideração particular de fatores de vulnerabilização de diferentes
grupos sociais.” (SILVA, 2011, p. 1)
A transversalidade nas políticas públicas visa reduzir desigualdades em
relação a grupos sociais tradicionalmente subalternos, como é o caso dos gru-
pos raciais negros, que diante dos fenômenos do racismo, do preconceito e
da discriminação racial ainda vivem em completa exclusão e marginalização
social. Assim Bandeira (2005) e Pereira et al. (2010) destacam que é necessário
avançar nos estudos de temas transversais, e, nestes casos, é importante pelo
menos dois questionamentos: a) Os resultados das políticas públicas transver-
sais são dirigidos para quem?; e, b) Por que é importante introduzir a transver-
salidade de raça nas políticas públicas?
Num estudo elaborado em 2015 a partir da análise de Planos Decenais,
verificou-se que a transversalidade de raça no Plano Decenal dos Direitos
Humanos de Crianças e Adolescentes aparece de forma muito superficial, em
situações pontuais, como a afirmação da necessidade de inserir nos currícu-
los escolares o ensino da cultura afro-brasileira e africana, e também no que
tange à capacitação continuada dos atores envolvidos na rede de proteção
aos direitos de crianças e adolescentes. Em outras situações, o plano ainda
prevê em algumas diretrizes uma concepção de respeito às diversidades, in-
cluindo a diversidade racial, mas esta ideia fica presa no discurso, sem maio-
res medidas específicas ou objetivos concretos que impliquem o investimento
estatal em políticas de promoção da igualdade racial para a infância brasilei-
ra. (LIMA, 2015)
O Plano Decenal dos Direitos Humanos de Crianças e Adolescentes foi
planejado a partir da concepção de proteção universal dos direitos de crianças

80
FERNANDA DA SILVA LIMA

e adolescentes, tanto que a universalidade é um dos seus princípios basilares.


No entanto, pensar na proteção integral para a infância sem o reconhecimento
das diversidades, ou ainda apostando apenas nas políticas universalistas, não
darão conta de sanar os problemas sociais decorrentes das desigualdades ra-
ciais, tampouco contribuirão para promover a discussão racial necessária na
sociedade brasileira. (LIMA, 2015)
Nos outros dois planos específicos analisados, sobre trabalho infantil e so-
bre convivência familiar e comunitária, a transversalidade se manifesta de forma
ilusória. Não há qualquer ação específica capaz de enfrentar realmente o deba-
te sobre as desigualdades raciais. Considerando que os planos são nacionais,
e considerando o princípio da descentralização político-administrativa, ainda
que os estados e os municípios possam desenvolver seus programas e suas po-
líticas específicas, muitas ações levam em consideração o que foi debatido no
âmbito federal e por isso os planos nacionais de direitos assumem importante
relevância política. Infelizmente, a discussão racial em todos os planos não pas-
sou de mera superficialidade. (LIMA, 2015)
A transversalidade de raça nas políticas públicas representa um imen-
so desafio e é preciso urgentemente enfrentar este tema no âmbito das po-
líticas públicas, principalmente pelo fato de o Brasil e os demais Estados
latino-americanos terem amparado suas políticas sob o manto da ideologia
do branqueamento. Logo, as desigualdades raciais são também uma das di-
mensões que se busca superar com a introdução de políticas públicas trans-
versais. “A multicultura e a etnia dos povos latino-americanos exigem que
políticas sociais confrontem o preconceito e a discriminação.” (SPOSATI,
2011, p. 112) No mesmo sentido, “O ‘enfoque transformador’ sustenta que
é necessário transversalizar as políticas públicas, em que a justiça distri-
butiva, a equidade, a satisfação das necessidades de todos e de todas e o
desenvolvimento das capacidades se convertam em fim último.” (PEREIRA
et al., 2010, p. 429).
De fato, o que se pode perceber é que a transversalidade alcança terreno
fértil para atuação na gestão das políticas públicas, pois se desenvolve como
estratégia conceitual e operacional que incorpora visões multifacetadas de pro-
blemas complexos (SILVA, 2011).
Os três planos de direitos, ora mencionados na pesquisa de 2015, foram
construídos de forma conjunta, envolvendo o poder público e a mobilização da
sociedade civil organizada e de diferentes atores de organismos internacionais.
A construção de políticas públicas por meio desses planos tem a fundamental
relevância de consolidar a Doutrina da Proteção Integral no Brasil e ajustar a
práxis com todo o arcabouço teórico produzido até então em matéria de direi-
tos para crianças e adolescentes. (LIMA, 2015)

81
DIREITOS HUMANOS E VULNERABILIDADES

Neste ponto, é preciso ressaltar ser ainda possível verificar as distâncias


existentes entre aquilo que está previsto nos planos e a realidade concreta, pois
nem sempre é fácil materializar todas as ações previstas, mas tal tarefa deman-
daria outro estudo, envolvendo técnicas de pesquisa diversas. Contudo, fica
aqui registrado que os Planos de Direitos comprometem vários atores, na me-
dida em que atribuem certas ações à responsabilidade de órgãos específicos.
Sem dúvida, em razão disso, os Planos de Direitos se materializam também
como instrumentos de controle social, ou controle de políticas públicas para
crianças e adolescentes, pois é permitido monitorar e avaliar as suas metas e
ações conforme os prazos neles estabelecidos.
Embora os Planos Nacionais tenham sido construídos sob a égide do
princípio da universalidade, verificou-se ao longo de suas construções que o
tema da diversidade, e neste caso específico, da diversidade étnico-racial, não
ficou de fora. O que a análise descritiva destes planos demonstrou, na pes-
quisa realizada em 2015, foi a incapacidade estratégica de eles oferecem ações
capazes de potencializar o alcance de equidade racial entre crianças e ado-
lescentes por meio de políticas de garantia da igualdade racial. (LIMA, 2015)
Logo, considerando todo o arcabouço teórico e jurídico que norteia a
temática dos direitos humanos e fundamentais de âmbito geral e voltado à
proteção de crianças e adolescentes, com viés na luta pelo direito de igual-
dade racial, e ainda, toda a análise sociológica realizada acerca das relações
raciais no Brasil, ficaram evidenciados os limites e os desafios que se impõem
de forma urgente na construção das políticas públicas na sociedade brasilei-
ra. Conferir direitos humanos e fundamentais às crianças e aos adolescentes
implica reconhecer nestes sujeitos o seu direito à diferença, implica reconhe-
cer que infelizmente a transição paradigmática do menorismo à proteção in-
tegral não trouxe mudanças significativas nas suas vidas, pois permanecem
vivendo em completa exclusão e à margem da sociedade. A análise dos pla-
nos mostrou apenas um reflexo de que a questão racial sequer é discutida. A
luta antirracista deve passar pela luta contra a indiferença.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
É inegável que a transição democrática, construída a partir da Constitui-
ção da República Federativa do Brasil de 1988 e das reivindicações dos movi-
mentos sociais negros, firmou-se no combate à discriminação racial, na prote-
ção da dignidade humana e na prevalência dos direitos humanos. A Constitui-
ção incorporou ao seu rol de direitos fundamentais diversos dispositivos cuja
inspiração veio dos tratados internacionais em matéria de direitos humanos,
como proposta de promover a igualdade e a não discriminação.

82
FERNANDA DA SILVA LIMA

Assim, no que cabe neste estudo, a Constituição da República Federati-


va do Brasil de 1988 consubstanciou-se num importante instrumento de luta
em favor de uma sociedade mais justa, mais igualitária e mais democrática. O
Estado brasileiro que se intitula como “democrático” e de “direito” tem a res-
ponsabilidade de verdadeiramente promover justiça social. E, nesse sentido,
crianças e adolescentes negros também possuem amparo constitucional para a
promoção e concretização dos seus direitos fundamentais.
Como visto, a construção e a execução de políticas públicas para crian-
ças e adolescentes são ferramentas imprescindíveis para a garantia de direi-
tos, e, em relação à criança e ao adolescente negro, são fundamentais para, a
partir da Doutrina da Proteção Integral, tirar-lhes da invisibilidade e do não
reconhecimento. No campo normativo, é possível afirmar que os princípios
da igualdade e da não discriminação têm sito utilizados como instrumen-
to para a proteção de direitos, incluindo as minorias raciais. No campo das
políticas públicas, existe o desafio diário de construir políticas públicas que
efetivamente incorporem, na sua agenda política e no planejamento de suas
demandas, ações afirmativas e de reconhecimento que sejam promovedoras
da igualdade racial desde a infância.
O que é necessário aprimorar no debate jurídico brasileiro é justamente
a se fazer uma análise sistemática do conjunto de leis existentes, pois o País já
possui um amplo catálogo de normas, desde aquelas garantidoras de direitos
humanos ratificadas do plano internacional, como aquelas previstas em nor-
mas internas definidoras de direitos e garantias fundamentais que se encon-
tram tanto na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 como na
legislação infraconstitucional.
Apropriado também seria instigar o diálogo o e engajamento do Conselho
Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente com o Conselho Nacional
de Garantia de Igualdade Racial, para que seja possível pensar em estratégias
conjuntas que contribuam com a luta antirracista e que assegurem às crianças
e aos adolescentes negros o direito de igualdade racial e de exercerem os seus
direitos fundamentais de forma plena. Que a temática racial, enquanto tema
transversal, seja inserida em todas as políticas públicas destinadas para crian-
ças e adolescentes em respeito ao seu direito à diferença.
Muitos são ainda os desafios a serem enfrentados na luta antirracista e
na promoção da igualdade racial para crianças e adolescentes. Sem dúvida, a
transformação é possível a partir do investimento em políticas públicas espe-
cíficas que incluam a temática racial. Os primeiros passos rumo a essa nova
racionalidade acerca da imprescindibilidade do investimento em políticas
distributivas e de reconhecimento para a garantia da equidade e justiça social
entre os diferentes grupos étnicos já foram dados. No entanto, é fundamental

83
DIREITOS HUMANOS E VULNERABILIDADES

que estas novas políticas contemplem as crianças e os adolescentes negros


neste país, que não devem jamais estar de fora dos programas lançados pelo
governo e pela sociedade civil organizada. Não se pode mais negligenciar os
direitos de crianças e adolescentes a quem a Constituição da República Fede-
rativa do Brasil de 1988, inspirada na Doutrina da Proteção Integral, conferiu
o status de sujeitos de direitos.
A criança e o adolescente negros precisam estar representados nos planos
de diretos, pois é nestes instrumentos que as políticas públicas se constroem.
E cabe a todos, Estado, família e sociedade assegurar os direitos das crianças e
adolescentes negros com prioridade absoluta, tornando-as visíveis no processo
de construção das políticas públicas, para que a proteção integral não se cons-
titua em mera artificialidade ou de fachada.

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FERNANDA DA SILVA LIMA

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85
CÁRCERE E VULNERABILIDADE: AS RELAÇÕES
ENTRE EXCLUSÃO SOCIAL, JUSTIÇA CRIMINAL E
ENCARCERAMENTO
Cláudia Maria Carvalho do Amaral Vieira

Sumário: 1. Direito e Vulnerabilidade; 2. Cárcere e Vulnerabilidade; 3.


Mães e crianças encarceradas: a faceta mais perversa da relação vulnerabi-
lidade, justiça criminal e encarceramento; 4. Justiça criminal, vulnerabili-
dade e encarceramento: possibilidades de análise causal; 5. Considerações
finais; 6. Referências.

1. DIREITO E VULNERABILIDADE: A NECESSIDADE DA TROCA DE


SABERES
A abordagem contemporânea permite vivenciar o enfoque interdiscipli-
nar, que, no entender de Ventura (2007, p. 32), significa construir um saber pró-
prio graças ao emprego de métodos de diferentes disciplinas para esclarecer
uma situação precisa. Nesse sentido, Alves (2005, p. 21) esclarece que
[...] a interdisciplinaridade nasce da integração entre as disciplinas,
tendo em vista a compreensão de que a aquisição de conhecimento de
forma compartimentada e dissociada não representa uma forma eficaz
no processo ensino-aprendizagem, quebrando assim o paradigma car-
tesiano da decomposição da observação do fenômeno em partes para a
interpretação de uma realidade complexa que o mundo não é composto
de fenômenos isolados1.
Podemos enumerar as funções essenciais da interdisciplinaridade: 1)im-
pede a delimitação do tema sob o prisma de uma única área do conhecimento,
permitindo uma maior flexibilização nas análises e, portanto, uma visão mais
abrangente possível de um tema proposto; 2) elucida que as pesquisas em Di-

1 A autora destaca que as relações entre as disciplinas podem ocorrer em vários níveis, destacando
quatro delas: “Interdisciplinaridade: inter-relação entre as disciplinas, considerando seus objetivos e
metodologias próprias para a estruturação do conhecimento compartilhado. Exemplo: a relação entre
Psicologia, Direito e Serviço Social para atendimento ao público em um Núcleo de Prática Jurídica,
com a aplicação dos conhecimentos inerentes a cada uma das áreas envolvidas.
Pluridisciplinaridade: define objetivos pedagógicos comuns das disciplinas, proporcionando relações
complementares entre elas. Exemplo: Teoria Geral do Direito (da norma, do ordenamento jurídico, etc.).
Multidisciplinaridade: é uma etapa para a interdisciplinaridade, e é uma etapa para a transdiciplina-
ridade, ou seja, é a integração de conteúdos de disciplinas heterogêneas, mas sem comunicação entre
elas. Exemplo: triagem das pessoas atendidas em um Núcleo de Prática Jurídica feita por profissionais e
acadêmicos das áreas de Direito, Psicologia e Serviço Social, mas sem diálogo sobre os casos atendidos.
Transdisciplinaridade: grau ulterior das relações entre disciplinas, sem escopo de integração e re-
ciprocidade, mas de construção de sistema ou ciência global sem qualquer limite de fragmentação
entre elas, comunicam-se além das áreas existentes na atualidade. Exemplo: o estudo da clonagem na
Engenharia Genética, a Nanotecnologia (Micro robots) na Exobiologia (pesquisa de vida em outros
planetas)” (ALVES, 2005, p. 22).

86
CLÁUDIA MARIA CARVALHO DO AMARAL VIEIRA

reito estão conectadas com a Sociologia, a Filosofia e Ciência Política, a Histó-


ria, dentre outras disciplinas, as quais não devem ser percebidas como meras
colaboradoras para compreensão do fenômeno jurídico, antes, este somente
pode ser realmente compreendido, encarado em sua complexidade, à medida
que devidamente apreendido no universo do saber humano.
Fato é que a abordagem interdisciplinar exige do pesquisador que iden-
tifique as disciplinas a mobilizar para além do domínio do conhecimento jurí-
dico. Isso não significa que o pesquisador não precise deter, com segurança, os
conhecimentos da dogmática jurídica (enfoque disciplinar).
Como aponta Gusdorf no prefácio da obra de Japiassu (1976, p. 26), a
exigência interdisciplinar impõe a cada especialista que transcenda sua própria
especialidade, tomando consciência de seus próprios limites para acolher as
contribuições das outras disciplinas: “uma epistemologia da complementari-
dade, ou melhor, da convergência, deve, pois, substituir a da dissociação”.
A interdisciplinaridade significa um movimento da epistemologia em
uma nova direção, que permite conjugar racionalidade e historicidade me-
diante a suplantação da concepção fragmentária do saber (BOMBASSARO,
1997, p. 116-117)2.
Uma perspectiva simplesmente formalista e legalista, pautada, unica-
mente, na adequação normativa, não promove a ampliação da abordagem jurí-
dica necessária para tornar o direito “mais preparado para cumprir sua missão
de apaziguamento dos conflitos sociais, dando respostas mais justas e condi-
zentes com o clamor social, bem como com os preceitos basilares do nosso
ordenamento” (PAULO, 2012, p. 58).
Quem se restringe apenas à letra de lei e não trabalha com outros saberes,
buscando dialogar e compreender as outras áreas do conhecimento humano,
à procura de um meio mais justo e adequado de operar o Direito da Criança e
do Adolescente, cuja essência é a proteção para o desenvolvimento integral da
criança e do adolescente, faz apenas o que está determinado e não trabalha em
prol do aperfeiçoamento da proteção da criança e do adolescente.
Como salienta Penteado (2008, p. 27), é necessário ter em conta que a nor-
ma não é a única, tampouco a principal perspectiva sob a qual deve analisar o
sistema jurídico no mundo contemporâneo.
É dentro desse contexto que a análise da relação entre vulnerabilidade e
Direito se impõe, principalmente na busca em que medida se pode verificar
2 Para Japiassu (1976, p. 30), a interdisciplinaridade longe de constituir real progresso do conheci-
mento, revela muito mais um sintoma da situação patológica em que se encontra hoje o saber. O
número de especializações exageradas e rapidez do desenvolvimento de cada uma culminam numa
fragmentação crescente do horizonte epistemológico. Para o autor o saber chegou a um tal ponto de
esmigalhamento que a exigência interdisciplinar mais parece, em nossos dias, a manifestação de um
lamentável estado de carência.

87
DIREITOS HUMANOS E VULNERABILIDADES

um funcionamento sinergético entre os mesmos, buscando-se na discussão


sobre vulnerabilidade uma contribuição sobre o Direito ou para a construção
de uma novo Direito.
É importante ressaltar, como o faz Solange Gonçalves Dias3, no texto in-
trodutório da apresentação da proposta de programa de mestrado de Direito
da Faculdade de Direito da Universidade São Judas Tadeu, amplamente discu-
tido entre os professores envolvidos naquele projeto inovador, no ano de 2019,
que a vulnerabilidade vem ocupar o lugar da exclusão absoluta, que, por sua
vez substitui a concepção de marginalidade. A autora observa que “toma-se
aqui o termo vulnerabilidade de uma forma bastante ampla, como a condição
da pessoa ou grupo que se encontra em situação de risco diante de uma amea-
ça (ou ausência de proteção) à sua sobrevivência, integridade, liberdade ou
bem-estar físico, psíquico ou moral”.
Solange Gonçalves Dias destaca no mesmo texto referência que, atual-
mente, a vulnerabilidade vem ocupar o lugar da exclusão absoluta, que, por
sua vez, substituiu a vetusta concepção de marginalidade. Esta, até a década de
1990, visava enquadrar comportamentos, atitudes e modos de vida daquelas
pessoas ou grupos que, por não se adaptarem aos valores da cultura dominan-
te, eram considerados “fora da lei” e, portanto, sem direitos. Alcançados pela
lei apenas como sujeitos de criminalização e de encarceramento, prostitutas,
usuários de drogas, criminosos, minorias étnicas, indígenas, miseráveis, mo-
radores de rua, desempregados não logravam gozar, de fato, da condição de
sujeitos de direito, até que um novo paradigma se estabeleceu no Brasil, espe-
cialmente, a partir da Constituição Cidadã de 1988.
A autora ressalta, ainda, que a partir daí a ideia de inclusão social ga-
nhou espaço e a agenda política passou a contemplar a produção legislativa e
a implementação de políticas públicas voltadas a grupos minoritários ou antes
identificados à marginalidade:
Surgem, e.g., em ampla escala, os benefícios de prestação continuada, as
políticas afirmativas, as leis antidiscriminatórias (racial e de gênero), as
políticas de urbanização de favelas e de regularização fundiária para lo-
teamentos clandestinos, as leis de incentivo cultural e as leis de proteção
às pessoas com necessidades especiais, como idosos, mulheres e jovens
(crianças e adolescentes). A evolução da agenda ocorre no sentido da su-
peração de análises simplórias referentes à pobreza e à ideia preconcei-
tuosa de indolência e caminha no sentido de que a exclusão apresenta
fatores multicausais e de que deve ser compreendida pelo entrecruzamen-

3 A Professora Doutora Solange Gonçalves Dias (http://lattes.cnpq.br/9831155483089358) desenvolveu


o texto aqui transcrito na qualidade de coordenadora do projeto de um possível programa de mestrado
a ser desenvolvido no âmbito da Faculdade de Direito da Universidade São Judas Tadeu, revelando as
discussões a serem propostas em um projeto que tinha nas inter-relações entre Direito e Vulnerabilidade,
seu principal objetivo. Duas disciplinas foram desenvolvidas pela autora do presente texto: uma delas
ligada ao cárcere e vulnerabilidades e a outra relacionada a fluxos migratórios contemporâneos.

88
CLÁUDIA MARIA CARVALHO DO AMARAL VIEIRA

to desses componentes de natureza bastante heterogênea. Dissemina-se


o reconhecimento de que a fragilidade social não se restringe a situações
de pobreza, mas está associada a um amplo espectro de circunstâncias,
como déficit educacional, baixa qualificação profissional, dificuldades de
inserção social, enfermidades, violência, preconceitos, falta de acesso a
bens culturais, precariedade habitacional etc. E de que são, portanto, in-
suficientes as soluções meramente econômicas para problemas de ordem
estrutural, que em sua maioria possuem raízes profundas, como proble-
mas herdados da própria formação nacional, do passado escravagista e
patriarcal, das fragilidades do sistema representativo, do planejamento
urbano seletivo, da negligência educacional, entre outros.
A projeto de construção do mestrado concluía, de forma absolutamente
acertada, que a reflexão sobre Direito e Vulnerabilidade hoje, para além da con-
cepção de exclusão social e política deve também levar em conta, dentre outros:
(i) o grande e cada vez maior prolongamento artificial da vida, cujas consequên-
cias ainda não se conhece cabalmente; (ii) o advento da inteligência artificial e
a substituição do trabalho humano pelo trabalho da máquina e, portanto, uma
sociedade baseada na diminuição significativa do emprego e na necessidade
de reconstrução de significados para uma sociedade produtora de indivíduos
e de atividades, de bens e de conhecimentos supérfluos; (iii) a necessidade de
reconstrução de significado para a velhice e para o analfabetismo tecnológico;
(iv) a proteção à intimidade e à privacidade de dados numa sociedade extrema-
mente conectada em que a informação tem alto valor comercial; (v) a convivên-
cia respeitosa de uma sociedade multicultural em espaços desterritorializados
como a internet; (vi) a convivência do Direito com as formas não adversariais
de resolução de conflitos; (vii) a construção coletiva de políticas públicas, com
ampla participação social, baseada em recursos tecnológicos; (viii) as migrações
internacionais e infranacionais em decorrência de riscos sociais, políticos, eco-
nômicos, territoriais e ambientais; (ix) a conexão em rede de identidades que
produzem novas minorias, demandando reconhecimento e ampliação de espaço
político e social; e (x) o papel do Judiciário, dos órgãos públicos, dos estudiosos
e dos profissionais do Direito na construção de e na reflexão sobre um Direito
mais engajado na orquestração dessas fragmentadas questões, um Direito que
contribui para a reflexão sobre os problemas reais da vida contemporânea.
Para além da importância da análise das interlocuções entre Direito e Vul-
nerabilidade no âmbito da academia, ou seja, da pesquisa em si, é de impor-
tância fundamental, na atualidade, a qualificação de profissionais dispostos
a viver numa realidade em constante transformação, que saibam aprender e
conscientes da necessidade de formação contínua, da capacidade de adaptação
e de flexibilidade para absorver novos conhecimentos sempre. Os atores do
Direito, na contemporaneidade, devem ser dotados de visão crítica dos pro-
blemas jurídicos que enfrentará e ampliando-se o alcance dos debates sobre a

89
DIREITOS HUMANOS E VULNERABILIDADES

compreensão e a aplicação do direito num mundo multifacetado, onde reina a


diversidade e a conectividade. Assim, educar para a autonomia é educar para
o mundo, e para isso é necessário entendê-lo.

2. CÁRCERE E VULNERABILIDADE
Como dito, um enfoque mais amplo que o meramente jurídico permite
renunciar à tentação de examinar a pena privativa de liberdade desde o exclu-
sivo e limitado ponto de vista formal.
As prisões são muitas coisas ao mesmo tempo: instituições que represen-
tam o poder e a autoridade do Estado; arenas de conflito; negociação e resis-
tência; espaços para a criação de forma subalternas de socialização e cultura e,
principalmente, espaços onde amplos segmentos da população vivem parte de
suas vidas, formam suas visões de mundo, entrando em interação e negocia-
ções com outros indivíduos e com o Estado.
A pena que priva a liberdade é um produto social e, como tal, possui a sua
historicidade. O desenvolvimento da pena privativa de liberdade sempre esteve
ligado ao desenvolvimento do capitalismo. À medida que as cidades crescem em
população, incrementa-se, paulatinamente, a exclusão daqueles que não se veem
favorecidos pelo desenvolvimento social, criando-se os conhecidos cinturões de
pobreza. Esses espaços de pobreza são representativos da exclusão de grupos
vulneráveis ante o desenvolvimento capitalista dos países periféricos. Fato é que
indivíduos vulneráveis passam a adotar meios socialmente e legalmente inacei-
táveis para a satisfação de suas ambições, colocando-os ainda mais à margem
dos poucos benefícios sociais e econômicos que a sociedade, as instituições e o
Estado podem oferecer, potencializando-se o encarceramento.
Muitas são as dificuldades com relação à produção e à análise de dados
no âmbito da justiça penal e de execução penal. Há pouca familiaridade com
números e estatísticas e esbarra-se com a precariedade, contradição e baixa
confiabilidade dos dados a respeitos da população carcerária (questões etárias,
raciais e de gênero) disponíveis em fontes policiais, judiciais e penitenciárias.
Se a história da violência e do crime, no Brasil, remete às nossas heranças
coloniais, recente é a sua transfiguração em inquietação pública e a sua tradução
em problema social que afeta as estruturas do arranjo social e político do Brasil.
A despeito da extensa quantidade de dados e extensa bibliografia jurídica
existente sobre o encarceramento, seja ele masculino ou feminino, a vulnerabi-
lidade que permeia a vida desses homens e mulheres, quando livres, é pouco
conhecida. Isso se deve ao fato de que só recentemente a realidade prisional
brasileira tem sido estudada sob a perspectiva quantitativa e qualitativa.
Os avanços na obtenção e organização de informações a respeito da nossa

90
CLÁUDIA MARIA CARVALHO DO AMARAL VIEIRA

população carcerária exigem um olhar metodológico diferenciado não só para


qualificar essa realidade bem como para a construção de políticas públicas que
permitam alguma intervenção efetiva.
Mapear os aspectos da vulnerabilidade que estão nas origens do nosso
encarceramento, mais precisamente, analisar até que ponto a vulnerabilidade
do local de residência habitual de homens e mulheres que estão cumprindo
pena privativa de liberdade, se faz absolutamente necessário.
Encontra-se aí a formulação do problema interessante que busca, ainda,
uma resposta: O encarceramento de homens e mulheres brasileiros é impac-
tado pela vulnerabilidade que caracteriza o local de sua residência habitual?
A hipótese a ser trabalhada, em projeto de pesquisa encaminhado pelo Insti-
tuto Ânima, em 2019, atendendo edital de convocação do Conselho Nacional
de Justiça 4era que o encarceramento feminino e masculino, além de se apre-
sentar dimensionado, dentre outras, sob a perspectiva do tipo penal prati-
cado, idade e raça do agente, exige uma moldura qualificadora que tenha a
vulnerabilidade como variável.
A partir da delimitação do local de residência do encarcerado, o objeti-
vo era analisar, sob a perspectiva dos dados de vulnerabilidade já mapeados
em pesquisas já realizadas no Brasil, questões relacionadas ao aprisionamento.
Nesse sentido, foi louvável, tanto quanto fundamental, o esforço do Conselho
Nacional de Justiça em construir bancos de dados digitais, com informações
atualizadas e atualizáveis em tempo real sobre essa realidade. O Portal do Ban-
co Nacional de Monitoramento de Prisões (BNMP 2.0) tornou-se uma ferra-
menta indispensável para pesquisadores, gestores, servidores e autoridades
que lidam com a difícil questão do encarceramento no Brasil.
Para realizar esse desiderato, a pesquisa se propôs a levantar, de um lado,
informações de endereço disponíveis no BNMP 2.0, trabalhando sobre o Regis-
tro Judiciário Individual – RJI da pessoa presa ou em relação à qual existe man-
dado de prisão expedido, abrangendo os Tribunais de Justiça de todos os Esta-
dos da Federação, exceto o Estado do Rio Grande do Sul, cujo cadastramento
ainda não se completou. Dessa forma, a pesquisa abrangeria os três portes do
segmento de justiça existentes. De outra parte, seria utilizado o Atlas da Vul-

4 A proposta de pesquisa detalhada foi encaminhada ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ) em atendi-
mento a Edital de Convocação Pública da 4ª. Edição da Série “ Justiça Pesquisa” no campo temática
“ Territórios de vulnerabilidade e exclusão social, acesso a políticas públicas e a relação com privação
de liberdade” do primeiro semestre de 2019. A proposta de pesquisa elaborada denominou-se “ Segre-
gação espacial e limitações de liberdade: uma análise da política seletiva de encarceramento no Brasil”
e contou com a participação dos seguintes pesquisadores ligados ao Instituto Ânima e à Universidade
São Judas Tadeu: Adailton Cordeiro de Azevedo, Ana Paula Koury, Alexandre Luna da Cunha, Cla-
ra Moura Masiero, Antonio Sérgio Ferreira Bonato e Cláudia Maria Carvalho do Amaral Vieira. A
projeto foi classificado em 2º. Lugar, tendo sido vencedora a Universidade São Paulo. Os resultados
da pesquisa contratada estão prometidos para este 2º. Semestre de 2020. Algumas considerações a
respeito da pesquisa que está sendo desenvolvida são apresentadas no item 5 abaixo.

91
DIREITOS HUMANOS E VULNERABILIDADES

nerabilidade Social, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), uma


plataforma de disponibilização de informações que possibilita a consulta, em
diversos formatos de dados, sobre fatores de vulnerabilidade social, presentes
nos Municípios, que são as unidades político-administrativas mais próximas
da realidade dos cidadãos.
A análise seria feita através da espacialização, mediante georreferen-
ciamento, dos endereços de moradia de pessoas encarceradas efetiva ou
potencialmente – com mandado de prisão expedido (dados disponíveis no
Cadastro Nacional de Presos do BNMP 2.0 do CNJ) cruzada com as variá-
veis mapeadas pelo Atlas da Vulnerabilidade Social do IPEA em suas três
dimensões (infraestrutura urbana, capital humano e renda e trabalho) nesses
mesmos territórios de moradia.
Os principais problemas assim se definiam: qual a correlação entre o
local de moradia dos indivíduos e a privação de liberdade no Brasil? Obser-
vada essa correlação, onde estão as maiores concentrações? Qual o impacto
das políticas públicas e sociais na vida das pessoas mais suscetíveis ao risco
do encarceramento? Quais as políticas mais presentes e as mais ausentes nos
territórios que concentram o maior número de locais de moradia dos apri-
sionados? Que outras clivagens, além do local de moradia, podem estar mais
associadas à vulnerabilidade penal?
A análise de qualquer aspecto do aprisionamento masculino ou feminino
não pode ser feito sob a égide estritamente normativa. Ela identifica um modelo
de atitude e de reflexão diferenciado do pesquisador que reflete um saber olhar,
ouvir, pensar, confrontar dados fornecidos pelas instituições ligadas ao sistema
prisional acima identificadas com os já mapeados dados de vulnerabilidade.
Nas últimas décadas temos visto o aumento vertiginoso da população
carcerária. Observa-se que a relação preso/vaga no Brasil é a pior do mundo,
devendo-se chamar atenção para o fato que o grau de democracia e desen-
volvimento de um país se revela, entre outros indicadores, pela forma como
equaciona o problema do tratamento de sua população carcerária.
A triste realidade é que o Brasil tem feito investimentos vultosos em pro-
gramas de aprimoramento do sistema carcerário que não bastaram para con-
ter o sucateamento da máquina penitenciária, o despreparo e a corrupção dos
agentes públicos que lidam com o universo penitenciário, a ausência de um
atendimento à saúde da população carcerária, a superlotação nos presídios, a
convivência promíscua entre os reclusos, o crescimento das facções criminosas
e uma espécie de “ ação afirmativa carcerária”, em que pardos e negros estão
mais representados na população carcerária que a elite branca.
Do ponto de vista da realidade da execução penal da pena privativa de li-

92
CLÁUDIA MARIA CARVALHO DO AMARAL VIEIRA

berdade, fica evidenciada uma racionalidade restrita à segurança e à manuten-


ção da ordem e da disciplina dentro do cárcere, indiferente a qualquer reflexão
a respeito das razões que estão subjacentes ao agir criminoso do encarcerado.
Os cárceres brasileiros, ao retirar a liberdade de homens e mulheres por
determinado período de tempo, infligindo- lhes sofrimento mental, plena-
mente satisfazem o discurso punitivo do Estado e a trama complexa de sen-
timentos, valores e conflitos da sociedade, sem preocupação algumas com as
razões de seu agir.
Nesse sentido, o aprisionamento não é o fracasso que tanto se alardeia,
senão um verdadeiro “ sucesso” e representa, na atualidade a tradução do dis-
curso punitivo estatal e do sentimento de expiação social ante o silenciamento
de outras formas questionamento do problema.
O aprisionamento toma, assim, a forma de um espetáculo totalmente des-
vinculado de qualquer processo de ressocialização, tão aclamado na princi-
piologia da Lei de Execução Penal e burocraticamente apontado nas muitas
decisões judiciais proferidas, em que homens e mulheres são tratados como
corpos a administrar, verdadeiros refugos humanos, com os quais o Estado, a
sociedade e, muitas vezes, a própria família pouco ou não se importam.

3. MÃES E CRIANÇAS ENCARCERADAS – A FACETA MAIS


PERVERSA DA RELAÇÃO VULNERABILIDADE, JUSTIÇA CRIMINAL E
ENCARCERAMENTO
As inter-relações entre justiça criminal, vulnerabilidade e encarceramento
se revela no cenário da mais profunda miséria humana que é o encarceramento
de mães com seus filhos.
Infelizmente, elas não têm sido poupadas da trágica realidade da execução
penal no Brasil. Muitas são incluídas no contexto fático decorrente da condena-
ção de suas mães, em que se entremeiam – e, não se distinguem – o lícito e o ilí-
cito, expressão de uma realidade permanente de contensão, exclusão e descaso.
Portanto, estes meninos e meninas estão inseridos em um quadro de ab-
soluta violação de direitos. O Brasil, não apenas assinou, mas ratificou a Con-
venção sobre os Direitos da Criança. O Brasil acolheu o paradigma da Proteção
Integral em seu texto constitucional e no Estatuto da Criança de do Adolescen-
te, de modo que questionamos: onde estão assegurados a essas crianças os três
grandes princípios nela previstos: Princípio da vida e do desenvolvimento; o
princípio da não discriminação e o princípio da voz e da participação? Enfim,
uma sinfonia de violações é que presenciamos nos cárceres brasileiros, em que
constam filhos e mães presos...
A presença de crianças nos cárceres brasileiros não é algo novo. Entretan-

93
DIREITOS HUMANOS E VULNERABILIDADES

to, segundo Santa Rita5, somente na década de 1960, é que se verifica, no Estado
do Rio de Janeiro, a criação de uma instituição destinada ao atendimento à
mulher presa com filhos: a Penitenciária Talavera Bruce6.
O aprisionamento da mãe acarreta consequências inevitáveis aos filhos,
tornando qualquer proposta idealizada de proteger os direitos dessa criança
uma quimera longínqua da efetividade de seus direitos e interesses, revelando-
-se apenas mais um discurso bonito, sem conteúdo prático de efetiva Proteção
Integral ao ser em desenvolvimento.
Entretanto, são limitadas as possibilidades de efetivação da Proteção Inte-
gral no contexto da execução penal feminina da pena privativa de liberdade no
Brasil. Utópico supor que, na atual situação dos presídios brasileiros, os órgãos
ligados à execução penal no Brasil, no âmbito federal e estadual, venham a pro-
mover a construção de berçários e creches para atender a “infância confinada”.
Assim sendo, nada mais há que esperar dessa estrutura, ou seja, nada
mais poderá ser feito em favor da criança no âmbito da execução penal e
dos órgãos a ela atrelados. Numa estrutura prisional que não consegue se-
quer promover condições dignas aos milhares de homens presos e mulheres
presas que lotam seus estabelecimentos, que dizer então de movimentos em
favor da criança que ali está?
Se, por um lado, há toda uma estrutura estatal, na qual atuam o Minis-
tério Público e a Magistratura sob a perspectiva punitiva, por outro, temos o
paradigma da Proteção Integral, a prioridade absoluta e o superior interesse da
criança a balizar a atuação dos representantes dessas instituições no âmbito da
justiça especializada.
Recortes de uma mesma realidade – mãe e filho no cárcere – que exigem
atuações muitas vezes conflitantes por parte dos membros das mesmas institui-
ções. Para superar essa atuação institucional a partir de perspectivas diversas,
importa que as instituições assumam a responsabilidade por agilizar medidas
que façam com que o fluxo de informações permita que decisões integradas so-
bre um mesmo recorte da realidade efetivem os direitos de todos os envolvidos.
O fluxo dessas informações deve ser dinâmico e eficiente, com o encaminha-
mento rápido aos responsáveis para que a tomada de medidas administrativas
ou judiciais se faça com base nas informações colhidas e relatadas, em favor da
proteção das crianças envolvidas no contexto do aprisionamento de suas mães.

5 SANTA RITA, Rosangela Peixoto. Mães e crianças atrás das grades: em questão o princípio da dig-
nidade da pessoa humana. Dissertação (Mestrado em Política Social). Instituto de Ciências Humanas.
Departamento de Serviço Social. Universidade de Brasília. 2006, p. 106
6 A Penitenciária Talavera Bruce tem sua origem na Penitenciária de Mulheres do Rio de Janeiro, criada
em 1942 e administrada até 1955, pela ordem religiosa Irmãs do Bom Pastor. A partir daquele ano, a
penitenciária passou a ser administrada pelo próprio Estado, sob a tutela da Penitenciária Central do
Rio de Janeiro. Em 1966, a Penitenciária de Mulheres recebeu o nome de Instituto Penal Talavera
Bruce. Atualmente é denominada de Penitenciária Talavera Bruce.

94
CLÁUDIA MARIA CARVALHO DO AMARAL VIEIRA

No Sistema de Justiça Criminal, que envolve não só a fase de conheci-


mento como também a fase da execução penal, a ampliação do recorte da rea-
lidade submetido à apreciação do Poder Judiciário para nele incluir fatos e
informações que possibilitem um provimento jurisdicional em que se vejam
respeitados os direitos da criança que está sob a responsabilidade da mulher,
cuja conduta ‘criminosa’ foi passível de encarceramento, se faz necessária.
Essa perspectiva mais ampla somente será possível a partir de um enfo-
que da Justiça Criminal para com o encarceramento da mulher como algo que
poderá impactar profundamente a vida da criança que poderá vir a nascer ou
viver com ela dentro do cárcere, colocando a proteção aos seus direitos à prova.
A todo esse processo de construção normativa deve se destacar que no dia
8 de março de 2016, foi aprovada a Lei no. 13.257, conhecido como o Estatuto
da Primeira Infância, que estabelece princípios e diretrizes para a formulação
de políticas públicas que visam atender de forma mais efetiva os direitos da
criança na primeira infância, ou seja, os primeiros 6 ( seis ) anos completos ou
72 ( setenta e dois) meses de vida , considerados estratégicos para a promoção
do desenvolvimento humano, social e econômico. Nesse sentido é que são pro-
movidas várias mudanças, consubstanciadas na alteração da redação de regras
já existentes e acréscimos de novas normas não só no Estatuto da Criança e do
Adolescente como também na Consolidação das Leis do Trabalho. 7
No contexto da criança e sua mãe encarcerada, reconhece-se que a criança
que se encontra no estabelecimento prisional com a sua mãe tem o seu de-
senvolvimento posto em risco, tornando-se vulneráveis a problemas sociais,
emocionais e cognitivos. Fica assegurado às mães e à criança as condições fa-
voráveis de amamentação, como fator crucial para o crescimento e desenvolvi-
mento adequado da criança, sendo uma das ações mais eficientes na redução
da mortalidade infantil e no fortalecimento do vínculo mãe e filho. (Artigo 9º
do Estatuto da Primeira Infância)8
Profundas e importantes alterações vieram, entretanto, no tocante ao di-
reito à convivência familiar da criança cuja mãe está ou poderá vir a estar em
estabelecimento prisional no Brasil. Mais do que bem vindas são as alterações

7 O Estatuto da Criança e do Adolescente sofreu as seguintes alterações: a) é acrescentado um parágrafo


único ao artigo 3º;b) a redação do “ caput” do artigo 8º e seus parágrafos 1º,2º3º e5º é alterada e são acres-
cidos os parágrafos 6º7º,8º9º, e 10º; c) são acrescidos os parágrafos 1º,e 2º. ao artigo 9º;d) há alterações
de redação no “ caput” do artigo 11º e no seus parágrafos 1º e2º,bem como é acrescido um parágrafo 3º;
d) é alterada a redação do “ caput” do artigo 12º; e) acrescenta-se os parágrafo 2ºno artigo 13 e altera-se
a redação do antigo parágrafo único; e f) no artigo 14º são acrescentados os parágrafos 2º,3º,4º.
8 À respeito aponta-se a Resolução no. 3 de 5 de outubro de 2017 do Conselho Nacional de Política
Criminal e Penitenciária ( CNPCP) que no art. 1º., incisos I e II estabelecem, respectivamente, a cria-
ção de condições que permitam o aleitamento materno exclusivo até o 6º.mês e o aleitamento materno
continuado até os dois anos da criança ou mais, que está em companhia da mãe que cumpre pena
privativa de liberdade, em caráter transitório ( inciso I) e, o fornecimento de uma alimentação saudável
para a lactante, de modo que suas necessidades nutricionais sejam alcançadas para a produção de leite
materno ( inciso II).

95
DIREITOS HUMANOS E VULNERABILIDADES

promovidas no Código de Processo Penal no sentido de que a autoridade po-


licial deverá colher informações sobre a existência de filhos, respectivas idades
e se possuem alguma deficiência e o nome e o contato de eventual responsável
pelos cuidados dos filhos, indicado pela pessoa presa bem como de que quan-
do do interrogatório deverá constar a mesma informação (novas redações do
artigo 6º, inciso X e do artigo 318 parágrafo 10º. do Código de Processo Penal).9
No mesmo sentido, está a expansão das possibilidades de substituição da
prisão preventiva pela domiciliar quando o agente for gestante ou tenha filho
de até 12 (doze) anos de idade incompletos ou que, sendo homem, seja o único
responsável pelos cuidados de filho de até 12 (doze) anos de idade incompletos
(incisos IV e V do artigo 318 do Código de Processo Penal, com a nova redação
dada pelo Estatuto da Primeira Infância
É importante ressaltar que ante a alteração normativa trazida pelo Estatu-
to da Primeira Infância ao artigo 318 do Código de Processo Penal, o Poder Ju-
diciário brasileiro rapidamente reagiu, pontuando um primeiro enfrentamento
da questões apontados no presente trabalho através da decisão proferida pelo
Supremo Tribunal Federal em sede do Habeas Corpus no. 143641/SP, relatado
pelo Ministro Ricardo Lewandowski, em favor de todas as mulheres presas
preventivamente que ostentam a condição de gestantes, de puérperas ou de
mães de crianças sob sua responsabilidade, como em nome das próprias crian-
ças, concedendo a ordem para determinar a substituição da prisão preventiva
pela domiciliar – sem prejuízo da aplicação das medidas alternativas previstas
no art. 319 do CPP – de todas as mulheres presas, gestantes e puérperas ou
mães de crianças e deficientes, relacionadas no processo pelo DEPEN e outras
autoridades estaduais, enquanto perdurar tal condição, excetuados os crimes
praticados por elas mediante violência ou grave ameaça contra seus descen-
dentes ou, ainda, em situações excepcionalíssimas, as quais deverão ser devi-
damente fundamentadas pelos juízos que denegarem o benefício.

4. JUSTIÇA CRIMINAL, VULNERABILIDADE E ENCARCERAMENTO:


POSSIBILIDADES DE ANÁLISE CAUSAL.
As inter-relações entre encarceramento, atuação da justiça criminal no

9 A alteração normativa seguiu posicionamento defendido na obra: VIEIRA, Cláudia Maria Carvalho
do Amaral Vieira; VERONESE, Josiane Rose Petry: Crianças Encarceradas. A Proteção Integral da
criança na execução penal feminina da pena privativa de liberdade. 2.ed. Rio de Janeiro:Lumen Juris.
2016, p. 291. Nesse sentido, também, a Resolução no. 2 de 18 de agosto de 2017 que recomenda,
respectivamente, nos artigos 1º. e 2º. que após a lavratura do auto de prisão em flagrante delito de
mulher gestante, lactante ou mãe de filhos até ( doze) anos incompletos ou com alguma deficiência,
com as informações constantes nos artigos 6º. X e 304 parágrafo 4º do Código de Processo Penal, o
delegado de polícia encaminhe 1 ( uma ) cópia para o Centro de Referência em Assistência Social (
CRAS) ou entidade equivalente, para análise da vulnerabilidade e oferta de serviços de proteção social
básica do Sistema Único e Assistência Social ( SUAS) ( artigo 1º. ) e que as cópias serão enviadas ao
CRAS, ou entidade equivalente, mais próxima no endereço do responsável pelos cuidados dos filhos
ou, inexistindo, o endereço informado pela mulher custodiada em auto de prisão em flagrante delito.

96
CLÁUDIA MARIA CARVALHO DO AMARAL VIEIRA

encarceramento de pessoas em contexto de vulnerabilidade constitui um dos


temas de estudo da nova edição da série “Justiça Pesquisa” do Conselho Na-
cional de Justiça”, que serão concluídos no segundo semestre do ano de 202010.
De fato, essa nova fronteira de análise científica no tocante ao encarceramento
no Brasil precisava ser enfrentada.
Ao todo foram cinco pesquisas contratadas junto à Universidade de São
Paulo (USP) e ao Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (CEBRAP), por
meio de edital púbico de seleção, do qual participou o Instituto Ânima com
a proposta referida no item 2 acima. A expectativa do Conselho Nacional de
Justiça é que as pesquisas se tornem contribuições importante na análise das
causas do encarceramento no Brasil e no aperfeiçoamento de políticas públicas
que tratam dessa questão.
O Conselho Nacional de Justiça está extremamente preocupado em en-
contrar dados que façam com que o futuro do encarceramento brasileiro seja
menos assustador. As previsões são no sentido de que em 2024 a população
carcerária será de 1,5 milhão de pessoas, potencialmente controladas por 70
facções criminosas que atuam de dentro das prisões, sobre a violência e o trá-
fico nas ruas das cidades.11
Para realizar o trabalho os pesquisadores estão considerando três hipó-
teses: se a prisão ou apreensão de um indivíduo em audiência de custódia
varia conforme seu local de residência; se a probabilidade de um indivíduo
ser mantido preso em audiência de custódia varia segundo características
sociodemográficas; se a medida da presença do Estado no território, por
meio de políticas públicas, é inversamente proporcional ao índice de prisões/
apreensões em um determinado local.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Cada vez que se constrói uma penitenciária, todos devemos nos preocu-
par, principalmente, se concebermos, mesmo que a depender de comprovações
empíricas, que a criminalidade é um fenômeno que tem por causas principais,
mas não únicas: a pobreza, desigualdade e a exclusão.
Os níveis altos das causas acima citadas que, em resumo, demonstram a
vulnerabilidade de uma alta parcela da população brasileira, representam o
custo que nossa sociedade paga por adotar um determinado sistema de gover-
no e um específico modelo econômico e de organização social.
Em nossa nação, cada vez mais somos menos pessoas livres por cada pes-
10 Conselho Nacional de Justiça (CNJ)-www.cnj.com.br- 4 º edição da série “Justiça Pesquisa” Acesso:
16/10/20
11 Agência CNJ de Notícias- https://www.cnj.jus.br/pesquisas-abordam-relacao-entre-vulnerabilidade-
-imprensa-e-prisoes/. Acesso em: 16 out. 2020.

97
DIREITOS HUMANOS E VULNERABILIDADES

soa presa. O grupo de pessoas que gozam de liberdades tem se tornado mais
restrito. O Brasil possui cerca de 860 mil presos, é a terceira população carcerá-
ria do mundo, com cerca de 55% dos detentos sendo jovens com idades entre
15 e 20 anos, de baixa escolaridade de segmentos de baixa renda da população.
Estamos atrás apenas dos EUA e da China.
Muitos acreditam que o cárcere está direcionada à pessoa comum que
comete um crime. Não é a verdade dos fatos. Este país está criminalizando e
encarcerando a pobreza, ou seja, aqueles que têm pouco do Estado e da socie-
dade brasileira, além de ter permitido que o sistema penitenciário fosse assal-
tado pelo crime organizado.
Não é difícil se concluir que, mais do que nunca, a prisão está sofrendo
como instituição pública fática e simbólica, necessitando mais do que nunca de
estudos a respeito.

6. REFERÊNCIAS
ALVES, Elizete Lanzoni. A interdisciplinaridade no ensino jurídico: Construção de uma proposta
pedagógica. In: ______; SANTOS, Sidney Francisco Reis dos; MONDARDO, Dilsa. O ensino jurí-
dico interdisciplinar: Um novo horizonte para o direito. Santa Catarina: OAB-SC, 2005.
BOMBASSARO, Luiz Carlos. As fronteiras da epistemologia: Como se produz conhecimento. 3
ed. Petrópolis: Vozes, 1997.
PAULO, Beatrice Marinho. Família: uma relação socioafetiva. In: PAULO, Beatrice Marinho (org).
Psicologia na Prática Jurídica: A criança em foco. São Paulo: Saraiva, 2012, p.48-59.
PENTEADO, Luciano de Camargo. Direito das coisas. São Paulo: Ed. RT, 2008.
SANTA RITA, Rosangela Peixoto. Mães e Crianças atrás das grades: em questão o princípio da
dignidade da pessoa humana. 2006. 162 f. Dissertação (Mestrado em Política Social) Instituto de
Ciências Humanas, Departamento de Serviço Social, Universidade de Brasília, Brasília: 2006.
VENTURA, Deisy de Freitas Lima. Do direito ao método, do método ao direito. In: CERQUEIRA,
Daniel Torres de; FRAGALE FILHO, Roberto (Org.). O Ensino Jurídico em Debate. Campinas:
Millennium, 2007.
VIEIRA, Cláudia Maria Carvalho do Amaral; VERONESE, Josiane Rose Petry. Crianças Encarce-
radas: a proteção integral da criança na execução penal feminina da pena privativa de liberdade.
2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2016.

98
O DIREITO FUNDAMENTAL À ALIMENTAÇÃO NO
CONTEXTO DE VULNERABILIDADE SOCIAL EM
TEMPOS DE PANDEMIA
André Viana Custódio
Gláucia Borges

Sumário: 1. Introdução; 2. Dimensão protetiva: perspectivas internacional


e nacional para garantia de dignidade às crianças e adolescentes; 3. O di-
reito fundamental à educação como direito basilar para o pleno desenvol-
vimento de crianças e adolescentes; 4. Vulnerabilidade social, pandemia
e violação ao direito fundamental à educação. 5. Considerações finais; 6.
Referências.

1. INTRODUÇÃO
O mundo enfrenta no ano de 2020 uma nova pandemia, advinda do vírus
COVID-19, que é facilmente transmitido, ainda não possui vacina preventiva
confirmada e sequer foi solidificado medicamento eficaz para todos os acome-
tidos pela doença. Diversos grupos sociais e áreas de atuação foram atingidas
frente ao cenário que se enfrenta. Dentre essas pessoas, seja de maneira direta
ou indiretamente, estão crianças e adolescentes.
Para discutir criticamente situações que ameacem ou violem os direitos
da infância, faz-se importante ressaltar a força da tutela jurídica direcionada à
esta, pois não é possível analisá-las sem, antes, frisar que a criança e o adoles-
cente devem estar na escala número um de preocupação e atenção da família,
da sociedade e do Estado, tendo em vista serem detentoras de prioridade ab-
soluta e proteção integral.
Historicamente tidas como vulneráveis, em decorrência de seu peculiar
estado de desenvolvimento e pela dependência direta que possuem dos adul-
tos para a efetividade de seus direitos, crianças e adolescentes são elevadas a
uma categoria proeminente de proteção, lhes sendo garantidos direitos ine-
rentes a todos os seres humanos e, ainda, outros exclusivos. Todos os direitos
humanos e direitos fundamentais à pessoa na infância, portanto, devem ser
analisados sob a ótica de que os titulares são sujeitos tidos como sujeitos em
condição peculiar de desenvolvimento.
Apesar de todas essas especiais garantias, em situações típicas da vida
em sociedade, muitas ainda sofrem violações de direitos que permeiam, inclu-
sive, necessidades basilares, como é o caso do direito à alimentação. Em meio a

99
DIREITOS HUMANOS E VULNERABILIDADES

pandemia, situação atípica, há a potencialização desses riscos, o que demanda


necessária atenção da tríplice responsabilidade compartilhada.
Objetiva-se, então, trazer a compreensão da amplitude do direito funda-
mental à alimentação e como o seu não asseguramento pode se mostrar como
potencial violador para que outros direitos fundamentais destinados à infân-
cia sejam afetados, desrespeitando os preceitos da proteção integral. Além do
mais, toda situação que possa trazer ameaça ou violação aos direitos das crian-
ças e adolescentes deve ser prontamente levada à debate para que aqueles que
detêm o dever de salvaguarda, atuem.
Para compreensão do tema, o capítulo apresenta no primeiro tópico um
levante sobre a proteção internacional e nacional da infância, para frisar a im-
portância desta em âmbito jurídico formal, bem como da necessidade de que
essa proteção ultrapasse as fronteiras das normativas e materialize-se. O se-
gundo tópico conceitua o direito à alimentação como um direito social, deli-
neando as garantias jurídicas explicitas e implícitas para o mesmo, buscando
depreender a amplitude deste direito e a importância fundamental do seu as-
seguramento. Por fim, o terceiro tópico traz à tona a discussão sobre a vulne-
rabilidade de crianças e adolescentes, potencializadas por situações atípicas
como a de pandemia, e aponta a cadeia violadora de direitos fundamentais
decorrente desses períodos quando o direito à alimentação é afetado.
O método empregado foi o dedutivo, o de procedimento, monográfico, e
as técnicas de pesquisa bibliográfica e documental indireta.

2. DIMENSÃO PROTETIVA: PERSPECTIVAS INTERNACIONAL E


NACIONAL PARA GARANTIA DE DIGNIDADE ÀS CRIANÇAS E
ADOLESCENTES
Crianças e adolescentes são titulares plenos de direitos humanos, refletin-
do que essas não são apenas objetos de proteção internacional ou interna, mas
sujeitos de direitos, possuindo a seu favor, ainda, proteção específica, por se
tratar de grupo vulnerável de pessoas (MAZZUOLI, 2018, p. 324).
Isso reflete, em âmbito internacional, que a toda criança e adolescente são
reconhecidos direitos humanos próprios, condizentes com sua especial condi-
ção de seres humanos em desenvolvimento e, também, os direitos humanos
assegurados a todos os seres humanos (PIOVESAN, PIROTTA, 2012, p. 236).
Os Direitos da Criança e do Adolescente são denominados também como
direitos humanos por, ao menos, três situações específicas. Primeiro, porque
assim são denominados os direitos relacionados à dignidade da pessoa huma-
na advindos das normativas das organizações externas e foram os documentos
internacionais procedentes das Nações Unidas que deram início à rota do re-

100
ANDRÉ VIANA CUSTÓDIO – GLÁUCIA BORGES

conhecimento dos direitos relacionados à proteção integral das crianças e dos


adolescentes, influenciando o âmbito jurídico interno de cada Estado-nação.
Segundo, pois quando os direitos são assim reconhecidos, trazem consigo
as mesmas características, especialmente da inalienabilidade e da indivisibili-
dade. Por serem inalienáveis, obrigam o Estado, tanto em âmbito interno quan-
to externo, a respeitá-los, defendê-los e promovê-los. Por serem indivisíveis,
devem ser garantidos em seu conjunto, sob uma perspectiva integral e isso
reflete que o desrespeito a qualquer direito faz com que todos sejam violados
(PIOVESAN; PIROTTA, 2012, p. 237). Em decorrência, a terceira situação espe-
cífica ocorre por serem os direitos humanos considerados direitos inatos ao ser
humano, assim o sendo também os direitos humanos das crianças, garantidos
pelo simples fato de serem seres humanos e estarem em fase especial de desen-
volvimento, sendo a elas inerentes.
Por esse ângulo de análise,
[...] os direitos humanos das crianças e dos adolescentes gravitam em tor-
no da dignidade e do desenvolvimento integral da pessoa humana, ga-
rantindo-se, por conseguinte, o direito à vida e à saúde; ao bem-estar; à
assistência e à convivência comunitária e familiar; à identidade e à na-
cionalidade; à liberdade de consciência e de expressão; à cultura; ao tra-
tamento jurídico e social igualitário e adequado às condições especiais,
eventualmente verificadas (refugiados, pessoas com deficiências etc. (MA-
ZZUOLI, 2018, p. 327).
Há, dessa forma, a consolidação de uma força jurídica sui generis para
proteção de crianças e adolescentes resguardados no campo internacional, que
traz efeitos nos âmbitos nacionais com a mesma força, exigência, superioridade
normativa e proibição de retrocesso.
A Convenção sobre os Direitos da Criança de 1989 foi o marco norma-
tivo internacional que trouxe de maneira estruturada e sedimentada a ga-
rantia formal desses direitos basilares para o pleno e sadio desenvolvimento
de crianças e adolescentes. “Embora outros diplomas internacionais também
confiram proteção às crianças, a Convenção sistematizou não só direitos civis e
políticos, mas também econômicos, sociais e culturais em um só texto, voltado
especificamente para a sua proteção” (grifo original) (RAMOS, 2019, p. 336).
Segundo a UNICEF, a Convenção se organiza em quatro princípios gerais: da
não discriminação (artigo 2º), do melhor interesse da criança (artigo 3º), do
direito à vida, à sobrevivência e ao desenvolvimento (artigo 6º) e do direito
de ser ouvida e levada a sério (artigo 12).
Embasada em outros documentos internacionais, como a Declaração de
Genebra sobre os Direitos da Criança – 1924, a Declaração Universal dos Di-
reitos Humanos – 1948 e a Declaração dos Direitos da Criança – 1959, a Con-

101
DIREITOS HUMANOS E VULNERABILIDADES

venção trouxe a consolidação dos fundamentos teóricos indispensáveis para a


afirmação dos Direitos da Criança e do Adolescente.
A proteção integral constitui base epistemológica consistente que possibi-
litou reunir um “conjunto de valores, conceitos, regras, articulação de sistemas
e legitimidade junto à comunidade científica que a elevou a um outro nível de
base e fundamentos teóricos [...]” (CUSTÓDIO, 2008, p. 27-28).
A ideia central da proteção integral à criança e ao adolescente foi capaz de
articular uma teoria própria em determinado momento histórico, porque
conseguiu ao mesmo tempo conjugar necessidades sociais prementes aos
elementos complexos que envolveram mudança de valores, princípios,
regras e neste contexto conviver com a perspectiva emancipadora do re-
conhecimento dos direitos fundamentais à criança e ao adolescente (CUS-
TÓDIO, 2008, p. 31).
O Direito da Criança e do Adolescente reconhece, portanto, crianças e
adolescentes como pessoas em peculiar estado de desenvolvimento, necessi-
tando, por isso, de especiais garantias, onde sempre deve ser levado em conta
o seu melhor interesse e as elevando à prioridade absoluta.
O Brasil instituiu o Direito da Criança e do Adolescente através da
Constituição Federal de 1988, garantindo direitos fundamentais que tratam
da criança e do adolescente de forma correspondente às diretrizes internacio-
nais de direitos humanos e com os padrões democráticos de organização do
Estado e da sociedade (PIOVESAN, PIROTTA, 2012, p. 236). Essencialmente,
o direito brasileiro reconhece à pessoa na infância também a condição de
sujeitos de direitos fundamentais, a serem, obrigatoriamente, atendidos pela
família, sociedade e Estado, através de sua responsabilidade compartilhada
(VERONESE, 2019, p. 21).
Concebida junto a Constituição brasileira, ou seja, na lei maior do país, o
Direito da Criança e do Adolescente “deixa de se constituir apenas como obra
de juristas especializados ou como uma declaração de princípios propostos
pela Organização das Nações Unidas uma vez que incorporou na sua essência
a rica contribuição da sociedade civil brasileira” (CUSTÓDIO, 2008, p. 27).
O Estatuto da Criança e do Adolescente, por sua vez, tornou-se a princi-
pal norma regulamentadora dos direitos fundamentais da infância no Brasil,
trazendo os preceitos para efetivação dessas garantias, tendo como eixo fun-
damental os princípios e diretrizes da proteção integral. No entanto, aos 30
anos do Estatuto, faz-se necessário, ainda, uma reflexão para se fazer valer os
preceitos fundamentais dedicados à infância.
Assim como na comunidade internacional a infância possui todos os mes-
mos direitos humanos direcionados à salvaguarda da vida digna destinados
aos adultos e, mais ainda, outros a si especialmente dirigidos, seguindo os

102
ANDRÉ VIANA CUSTÓDIO – GLÁUCIA BORGES

mesmos preceitos e sistema protecionista, no âmbito jurídico interno brasileiro


crianças e adolescentes possuem, também, os mesmos direitos fundamentais
direcionados aos adultos e mais aqueles para si particularmente garantidos.
Em resumo, além de detentoras de direitos humanos especialmente destinados
à sua proteção, também são titulares de direitos fundamentais próprios para
que haja proteção isonômica frente a outros grupos sociais.
De acordo com o ordenamento constitucional, os direitos fundamentais
de crianças e adolescentes, ou seja, os direitos à vida, à saúde, à alimentação, à
educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à
liberdade e à convivência familiar e comunitária, devem ser assegurados com
absoluta prioridade pela família, a sociedade e o Estado. Como direitos huma-
nos incorporados e elevados à categoria de direitos fundamentais, são inaliená-
veis e indivisíveis. Violando um, todos são atingidos e crianças e adolescentes
são colocados em situação maior de vulnerabilidade.
A tríplice responsabilidade compartilha possui papel fundamental na
garantia de direitos das crianças e adolescentes, sendo que pouca efetividade
será alcançada se não houver o compromisso conjunto desses entes (CUS-
TÓDIO, 2008, p. 38). Os direitos humanos possuem interpretação irradiante,
que vincula todos os poderes públicos e agentes privados ao conteúdo dos
mesmos (RAMOS, 2019, p. 149) e, da mesma forma ocorre com os direitos
fundamentais, por assumirem centralidade na ordem jurídica. Elevando essa
interpretação para a titularidade dos direitos humanos e direitos fundamen-
tais das crianças e dos adolescentes, absoluto deve ser o comprometimento
daqueles que tem o dever de garanti-los.
A proteção integral não é apenas recomendação, mas diretriz determi-
nante do Direito da Criança e do Adolescente. Para se entender crianças e ado-
lescentes como sujeitos de direitos e garantir vida com dignidade, para que
tenham pleno desenvolvimento, faz-se necessário tornar inequívoca a gran-
diosidade da proteção integral não somente no plano formal, mas também no
material. Apesar de todas as conquistas e reconhecimentos formais que a in-
fância galgou, ainda persistem situações as quais crianças e adolescentes são
expostas, aumentando sua vulnerabilidade inerente à infância, necessitando
que a família, a sociedade e o Estado, de fato, ajam em prol da garantia de
seus direitos, através da satisfação das necessidades que são próprias desta
fase (VILLASEÑOR, SAUCEDO, SILVA, 2017, p. 170-171).
Não se pode mais conceber, sob esse ângulo, que a proteção jurídica seja
apenas formalista. O Brasil e o mundo já passaram da fase em que apenas se
reconhecem direitos e, agora, devem avançar para que a implementação seja
real, dando azo para que de fato a infância seja confirmada como categoria
superior de proteção. Assim, seja em situações típicas ou nas inesperadas,

103
DIREITOS HUMANOS E VULNERABILIDADES

dentro das diretrizes da proteção integral, o poder público e os demais inte-


grantes do Sistema de Garantias de Direitos devem estar devidamente pre-
parados para ampará-las.

3. O DIREITO FUNDAMENTAL À EDUCAÇÃO COMO DIREITO


BASILAR PARA O PLENO DESENVOLVIMENTO DE CRIANÇAS E
ADOLESCENTES
Compreendendo a proteção das crianças e dos adolescentes sob a dimen-
são internacional e nacional, ou seja, sob a perspectiva de proteção integral
em todos os âmbitos de garantias, verifica-se que, entre os direitos destacados
como essenciais e que devem ser garantidos com absoluta prioridade à pessoa
na fase da infância, está o direito à alimentação.
O direito fundamental à alimentação, tratando-se de um direito social,
possui como titulares todos os seres humanos, ou seja, possui caráter univer-
sal, e independe de qualquer outra condição (SARMENTO, 2016, p. 2012). Na
Declaração Universal dos Direitos Humanos, o artigo 25 dispõe que todo ser
humano tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e à sua famí-
lia, entre outros direitos, inclusive a alimentação (ONU, 1948). A Constituição
Federal de 1988, por sua vez, o assegurou junto ao rol do artigo 6º de Direitos
Sociais, desde a Emenda Constitucional nº. 64/2010 (BRASIL, 1988).
Os Direitos Sociais “consistem em um conjunto de faculdades e posições
jurídicas pelas quais um indivíduo pode exigir prestações do Estado ou da
sociedade ou até mesmo a abstenção de agir, tudo para assegurar condições
materiais e socioculturais mínimas de sobrevivência” (grifo original) (RAMOS, 2019,
p. 90). Nesse sentido, pode-se dizer que esses direitos são essencialmente pres-
tacionais, o que exige ações estatais e da sociedade para a superação de desi-
gualdades fáticas e situações materiais ofensivas à dignidade. Mas, também,
podem ser direitos negativos, de abstenção ou de defesa, circunstância em que
o Estado deve se abster de interferir de maneira indevida em determinados
direitos (RAMOS, 2019, p. 91).
Quando se consideraram os direitos sociais, inevitavelmente em direi-
to ao básico existencial para além do mínimo existencial. Segundo Sarmento
(2016, p. 212), o mínimo existencial se refere às condições materiais básicas
para uma vida digna, derivando diretamente do princípio da dignidade da
pessoa humana e que se manifesta como um núcleo essencial de quase todos
os direitos elencados no artigo 6º da Constituição. Apesar de as necessidades
básicas se modificarem de acordo com as variações socioculturais, algumas são
universais, decorrentes das exigências da própria natureza humana, como é
caso do acesso à alimentação (SARMENTO, 2016, p. 215).

104
ANDRÉ VIANA CUSTÓDIO – GLÁUCIA BORGES

A ONU afirma que o “direito a uma alimentação suficiente é de importân-


cia fundamental para desfrutar de todos os direitos” (ONU, 2009 p. 127). Assim
como diversos outros direitos sociais, a alimentação é vista como uma das pre-
missas básicas de sobrevivência, vez que faz parte das necessidades fisiológi-
cas humanas. Contudo, a efetivação desses direitos fundamentais esbarra nos
recursos disponíveis ao Estado para cumprimento do seu dever prestacional.
Nesse caso, sua realização se limita à reserva do possível (RAMOS, 2019, p. 91).
A reserva do possível surge justamente diante de um sistema escasso de recur-
sos estatais, por vezes incapaz de suprir todos direitos fundamentais constitu-
cionalmente assegurados que, “diante da limitação de recursos para atender a
múltiplas demandas, [...] é forçado a eleger prioridades dentre diversas neces-
sidades e exigências legítimas” (SARMENTO, 2016, p. 229).
No entanto, traz-se em pauta a discussão desse direito como um dos pre-
sentes no rol direcionado à infância. Como demonstrado, crianças e adolescen-
tes são detentoras de todos os direitos humanos e direitos fundamentais des-
tinados aos adultos e, ainda, possuem direitos especialmente a si dedicados,
em razão do seu estado peculiar de pessoa em desenvolvimento. O direito à
alimentação, sendo um direito social e, portanto, possuindo caráter universal,
é destinado a todos os seres humanos, mas, com relação às crianças e adoles-
centes, deve ser garantido com prioridade absoluta pela família, sociedade e
Estado, conforme suas competências para tal.
No âmbito jurídico formal de garantias, o direito à alimentação já foi as-
segurado desde o primeiro instrumento internacional específico a favor das
crianças, quer seja, a Declaração de Genebra sobre os Direitos da Criança, pu-
blicada em 1924, que buscou abranger a proteção e o reconhecimento ao mes-
mo (UN, 1924). Por sua vez, a Declaração Universal dos Direitos da Criança,
de 1959, o trouxe como um de seus princípios, correlacionando como uma
finalidade para garantia do direito à saúde a necessidade de alimentação
pré e pós-natal à criança e à mãe. Dispôs, também, que a criança tem direi-
to a desfrutar de alimentação, moradia, lazer e serviços médicos adequados
(UNICEF, 1959). A Convenção sobre os Direitos da Criança de 1989, seguindo
a linha protetiva da Declaração, também aponta a alimentação como garan-
tia ao direito à saúde, estabelecendo como medida apropriada o combate às
“doenças e a desnutrição, inclusive no contexto dos cuidados primários de
saúde mediante [...] aplicação de tecnologia prontamente disponível e o for-
necimento de alimentos nutritivos [...]” (UNICEF, 1989).
No Brasil, antes mesmo de compor o rol de direitos sociais a todos des-
tinado na Constituição Federal, o direito à alimentação já fazia parte dos di-
reitos fundamentais reconhecidos pelo constituinte originário no artigo 227 à
infância (BRASIL, 1988). O Estatuto da Criança e do Adolescente, diferente de

105
DIREITOS HUMANOS E VULNERABILIDADES

outros direitos fundamentais, não traz o direito à alimentação em um título es-


pecífico, abordando-o de maneira explícita brevemente em algumas diretrizes
dos direitos à saúde e à educação, como é o caso da garantia ao aleitamento
materno e à alimentação complementar do recém-nascido e a assistência su-
plementar ao direito à educação. Também surge como elemento essencial a
ser fornecido aos adolescentes em serviços de atendimento socioeducativo em
regime de semiliberdade e internação (BRASIL, 1990).
Apesar de não explícito a todo momento ao longo do Estatuto, o direito
à alimentação ainda se conecta diretamente com diversos outros direitos fun-
damentais da criança e do adolescente. Em primeiro lugar, é possível citar o
direito à vida. A vida humana é o bem jurídico mais importante e, como um
direito humano e fundamental, o direito à vida não se resume somente ao di-
reito de continuar vivo, mas de ter vida digna. Nesse sentido, é claro que, sem
a alimentação adequada, nenhum indivíduo possuirá vida digna.
A Comissão de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais da Organização
das Nações Unidas – ONU, no Comentário-Geral nº 12 do Pacto Internacional
sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais1, definiu o que seria um con-
teúdo essencial do direito à alimentação adequada:
O direito a uma alimentação adequada é exercido quando todos os ho-
mens, mulheres e crianças, estejam só ou em comunidade, têm acesso físi-
co e económico, em qualquer momento, a uma alimentação adequada ou
a meios para a obter. Deste modo, o direito a uma alimentação adequada
não deve ser interpretado de uma forma estreita ou restritiva, que o equa-
cione a um conjunto mínimo de calorias, proteínas e outros nutrientes es-
pecíficos. O direito a uma alimentação adequada terá de ser alcançado
de forma progressiva. No entanto, os Estados Partes têm a obrigação bá-
sica de adoptar as medidas necessárias para mitigar e aliviar a fome, [...]
(ONU, 2009, p. 128).
Nesse sentido, percebe-se que com relação ao direito à alimentação, há
forte imposição do dever em assegurar o acesso pelo Poder Público. Junto com
os demais Estados Partes, o Brasil comprometeu-se a adotar medidas para ga-
rantir que todas as pessoas sob a sua jurisdição tenham acesso ao mínimo de
alimentos essenciais suficientes, inócuos e nutritivamente adequados de modo
a protegê-las contra a fome (ONU, 2009, p. 130).
Outro direito fundamental da infância ao qual o direito à alimentação
se vincula é o direito à dignidade. Toda criança ou adolescente tem o direito
fundamental à dignidade como pessoa humana em processo de desenvolvi-

1 No artigo 11, do Pacto, os Estados Partes reconhecem “o direito de todas as pessoas a um nível de vida
suficiente para si e para as suas famílias, incluindo alimentação, vestuário e alojamento suficientes,
bem como a um melhoramento constante das suas condições de existência”, e reconhece que possivel-
mente deverão ser adoptadas medidas mais imediatas e urgentes para garantir “o direito fundamental
de todas as pessoas de estarem livres da fome e mal nutrição” (ONU, 2009, p. 127).

106
ANDRÉ VIANA CUSTÓDIO – GLÁUCIA BORGES

mento e como sujeitos de direitos civis, humanos e sociais (BRASIL, 1990).


O direito à dignidade decorre do princípio da dignidade humana, que “en-
volve a concepção de que todas as pessoas, pela sua simples humanidade,
têm intrínseca dignidade, devendo ser tratadas com o mesmo respeito e con-
sideração” (SARMENTO, 2016, p. 28). Se a todos é direcionado o direito à
alimentação, a não garantia deste torna-se um violador da dignidade. Afinal,
“o direito a uma alimentação adequada está inseparavelmente vinculado à
dignidade inerente da pessoa humana e é indispensável à satisfação de ou-
tros direitos humanos” (ONU, 1999, p. 128).
O direito à convivência familiar e comunitária também se conecta, de ma-
neira indireta, a esse direito fundamental. Segundo o Estatuto, a convivência
familiar e comunitária se traduz no “direito da criança e do adolescente de ser
criado e educado no seio de sua família e, excepcionalmente, em família subs-
tituta, assegurada a convivência familiar e comunitária, em ambiente que ga-
ranta seu desenvolvimento integral” (BRASIL, 1990). Nesse sentido, “mais do
que a simples convivência, este direito reflete a importância de crianças e ado-
lescentes crescerem em ambiente que garanta seu desenvolvimento integral,
ou seja, que garanta este e todos os demais direitos” (BORGES, 2020, p. 48).
Nesse sentido encontra-se um especial dever da família com relação à
salvaguarda das crianças e adolescentes. É a família o ente que recebe a res-
ponsabilidade direta sob os filhos. É no ambiente familiar que estes passam a
maior parte do tempo e devem encontrar o amparo para real proteção. Não se
retira daqui o dever da sociedade e do Estado em dar condições para que as
famílias consigam suprir as necessidades vitais das crianças e adolescentes, no
entanto, sendo a alimentação uma necessidade diária, acaba a família tendo
forte responsabilidade diante dos deveres atinentes à convivência familiar.
O lazer e o esporte se conectam também à alimentação, pois:
[...] por necessidades alimentares entende-se que o regime de alimentação
no seu conjunto inclui uma combinação de nutrientes para o crescimento
físico e mental, desenvolvimento e manutenção, e atividade física, que seja
suficiente para satisfazer as necessidades fisiológicas humanas em todas
as etapas do ciclo de vida [...] (ONU, 2009, p. 129).
O lazer e o esporte fazem parte do eixo de desenvolvimento social e
pessoal da criança e do adolescente. Encontram-se dispostos em união ao
processo educacional, sendo o lazer o direito ao descanso e ao divertimento,
entretenimento e/ou recreação e, o direito ao esporte inclui o direito à prática
e ao acesso. Além do mais, é possível afirmar que o esporte e o lazer estão
diretamente conectados ao direito à saúde mental e física do ser humanos
(BORGES, 2020, p. 56), por isso, indiretamente conectados à necessidade de
garantia de uma alimentação adequada.

107
DIREITOS HUMANOS E VULNERABILIDADES

Como ressaltado, de maneira explícita o Estatuto se refere à alimentação


com relação ao direito à saúde somente no que diz respeito às fases iniciais
da vida da criança. O cuidado da legislação protetiva à infância no Brasil sur-
ge desde o período anterior à concepção, situação que o Estatuto e a Lei da
Primeira Infância entendem por necessário cuidar da saúde da mulher para
que, sendo uma gestante saudável, proporcione o pleno desenvolvimento ao
feto, além de um nascimento com saúde. Assim, a proteção alimentar também
atinge a gestante e, nos primeiros meses de vida, há forte campanha para a
proteção do aleitamento materno e/ou a alimentação complementar (BRASIL,
1990). Contudo, da mesma forma que os demais direitos fundamentais, para
assegurar o direito à saúde é inquestionável que a nutrição adequada assegura
o desenvolvimento saudável do ser humano, afinal, “a criança e o adolescente
têm direito a proteção à vida e à saúde, mediante a efetivação de políticas so-
ciais públicas que permitam o nascimento e o desenvolvimento sadio e harmo-
nioso, em condições dignas de existência” (BRASIL, 1990).
Por fim, incluso no direito à educação, o direito à alimentação surge
como uma das garantias complementares explícitas para assegurá-lo. Trata-
-se de segurança constitucional, determinando como dever do Estado o aten-
dimento ao educando em todas as etapas da educação básica por meio de
programas suplementares de material didático escolar, transporte, alimen-
tação e assistência à saúde (BRASIL, 1988). A alimentação escolar fornecida
pela rede pública de ensino é essencial para que os estudantes, especialmente
aqueles que vivem no contexto da pobreza, estejam fortalecidos para absor-
ver o conteúdo a ser ministrado.
Verifica-se, dessa forma, que há toda uma cadeia de direitos fundamen-
tais vinculados ao direito à alimentação, que pode ser melhor ilustrada da se-
guinte forma:
Assim, havendo o descumprimento desse direito, todos em seu entorno
podem acabar, também, infringidos, fazendo surgir uma sequência de viola-
ções e tornando crianças e adolescentes mais vulneráveis. Em decorrência da
especial proteção que recebem, é importante, então, que a família, a sociedade
e o Estado tenham clareada a importância fundamental desse direito, que de-
vem ser garantidos em todas as circunstâncias, especialmente às que fragili-
zam o desenvolvimento da infância.

4. VULNERABILIDADE SOCIAL, PANDEMIA E VIOLAÇÃO AO


DIREITO FUNDAMENTAL À EDUCAÇÃO
Infelizmente, em diversos países do mundo, mas aqui especificadamente
falando do Brasil, os grupos sociais mais vulnerabilizados acabam tendo a ga-
rantia à vida digna, ou seja, dos direitos humanos e dos direitos fundamentais,

108
ANDRÉ VIANA CUSTÓDIO – GLÁUCIA BORGES

mais no plano formal que no material, o que resulta em desigualdades.


No Brasil contemporâneo, temos até boas leis, que se assentam na igual
dignidade das pessoas – Constituição Federal, Estatuto da Criança e do
Adolescente, Lei de Execução Penal, Estatuto da Igualdade Racial, den-
tre outros diplomas. Porém, a desigualdade enraizada na nossa cultura
sabota o emprego dessas normas jurídicas, que acabam não protegendo
todos os seus destinatários e se sujeitando a aplicações assimétricas pelas
autoridades estatais, inclusive do Poder Judiciário. Tal fenômeno dá-se
até mesmo com o princípio da dignidade da pessoa humana, que, apesar
do seu teor igualitário, se sujeita a abusos e silêncios eloquentes (SAR-
MENTO, 2016, p. 64).
Sarmento (2016, p. 64) comenta que o déficit de efetividade no Brasil deri-
va não apenas de uma razão apenas jurídica ou mesmo econômica, mas ainda
das raízes culturais enraizadas de que as pessoas não são igualmente dignas
a viver com plenitude de direitos. Assim, determinados grupos sociais acredi-
tam que, de fato, devem viver situações de miserabilidade, de não acesso às
políticas públicas ou simplesmente de não igualdade na garantia dos direitos.
Tendo em vista que para a infância sempre houve a concepção de fragili-
dade, sob essa perspectiva de análise de vulnerabilidade enquanto questão de
relacionamento, a vulnerabilidade infantil passou a ser verificada no sentido
de tentar limitar o poder dos adultos sobre crianças e adolescentes, para que a
lei trouxesse reciprocidade social. Além do mais, passou a envolver as intera-
ções sociais da infância tanto de ambientes públicos quanto privados (SIERRA,
MESQUITA, 2006, p. 149-150). Vulnerabilidade não é o mesmo que ser incapaz,
“mas significa ter direito a condição de superar os fatores de risco que podem
afetar o seu bem-estar. Em outras palavras, o sujeito com menos de 18 anos
depende de um conjunto de fatores que devem viabilizar a efetivação de seus
direitos” (SIERRA, MESQUITA, 2006, p. 149).
Com o reconhecimento de crianças e adolescentes como sujeitos de direi-
tos humanos e fundamentais, a partir do advento do Direito da Criança e do
Adolescente, surge a edição de diversas normativas objetivando melhorar a
proteção à pessoa na infância, especialmente por esse reconhecimento de que
estas são vulneráveis e necessitam de cuidado e proteção especiais (RIBEIRO,
VERONESE, 2020, p. 42).
Ocorre que “de qualquer modo, as crianças e os adolescentes precisam
da relação com os adultos para crescer e isso os torna vulneráveis. Vale lem-
brar que seus direitos, para serem assegurados, dependem, em grande parte,
dos deveres dos adultos” (SIERRA, MESQUITA, 2006, p. 150). Nesse sentido,
na condição de seres humanos que necessitam urgentemente que suas neces-
sidades sejam atendidas, há forte responsabilização por parte da família, da
sociedade e do Estado com a sua formação, o que demanda a necessidade de

109
DIREITOS HUMANOS E VULNERABILIDADES

investimento nas políticas da infância para reduzir essas ditas vulnerabilida-


des (SIERRA, MESQUITA, 2006, p. 150).
Com relação ao direito à alimentação, tem-se que a não garantia desse
direito está diretamente relacionada com a consequência passar fome e, viver
em situação de fome é sofrer situação de crueldade. O Estatuto da Criança e
do Adolescente é claro ao dizer que “nenhuma criança ou adolescente será
objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência,
crueldade e opressão, punido na forma da lei qualquer atentado, por ação ou
omissão, aos seus direitos fundamentais” (grifo nosso) (BRASIL, 1990).
Segundo a ONU (2009, p. 134), na assistência alimentar deve ser dada
prioridade às populações mais vulneráveis, pois a fome é um problema que
afeta toda a humanidade, ou seja, não apenas o Brasil, mas o mundo:
[...] enquanto os problemas da fome e mal nutrição são muitas vezes
particularmente agudos nos países em vias de desenvolvimento, a mal
nutrição, a subnutrição e outros problemas relacionados com o direito a
uma alimentação adequada e o direito a estar protegido contra a fome
existem também em alguns dos países economicamente mais desenvol-
vidos. Basicamente, as raízes do problema da fome e da mal nutrição não
se encontram na falta de alimentos, mas na falta de acesso aos alimentos
disponíveis, entre outras razões, devido à pobreza por parte de grandes
segmentos da população do mundo (ONU, 2009, p. 128).
Em decorrência dessa preocupação, foi formulada em 2015 a agenda
2030 para o Desenvolvimento Sustentável, a qual contém o conjunto de 17
Objetivos de Desenvolvimento Sustentável – ODS, contendo um plano de
ação para erradicar a pobreza, proteger o planeta e garantir que as pessoas
alcancem a paz e a prosperidade. O segundo dos objetivos cuida da “Fome
Zero e Agricultura Sustentável”, cujas metas2 visam acabar com a fome, al-

2 2.c Adotar medidas para garantir o funcionamento adequado dos mercados de commodities de alimen-
tos e seus derivados, e facilitar o acesso oportuno à informação de mercado, inclusive sobre as reservas
de alimentos, a fim de ajudar a limitar a volatilidade extrema dos preços dos alimentos.
2.b Corrigir e prevenir as restrições ao comércio e distorções nos mercados agrícolas mundiais, inclusive
por meio da eliminação paralela de todas as formas de subsídios à exportação e todas as medidas de
exportação com efeito equivalente, de acordo com o mandato da Rodada de Desenvolvimento de Doha.
2.a Aumentar o investimento, inclusive por meio do reforço da cooperação internacional, em infraes-
trutura rural, pesquisa e extensão de serviços agrícolas, desenvolvimento de tecnologia, e os bancos de
genes de plantas e animais, de maneira a aumentar a capacidade de produção agrícola nos países em
desenvolvimento, em particular nos países de menor desenvolvimento relativo.
2.5 Até 2020, manter a diversidade genética de sementes, plantas cultivadas, animais de criação e
domesticados e suas respectivas espécies selvagens, inclusive por meio de bancos de sementes e plan-
tas diversificados e adequadamente geridos em nível nacional, regional e internacional, e garantir o
acesso e a repartição justa e equitativa dos benefícios decorrentes da utilização dos recursos genéticos
e conhecimentos tradicionais associados, conforme acordado internacionalmente.
2.4 Até 2030, garantir sistemas sustentáveis de produção de alimentos e implementar práticas agríco-
las robustas, que aumentem a produtividade e a produção, que ajudem a manter os ecossistemas, que
fortaleçam a capacidade de adaptação às mudanças do clima, às condições meteorológicas extremas,
secas, inundações e outros desastres, e que melhorem progressivamente a qualidade da terra e do solo.
2.3 Até 2030, dobrar a produtividade agrícola e a renda dos pequenos produtores de alimentos, particu-
larmente das mulheres, povos indígenas, agricultores familiares, pastores e pescadores, inclusive por
meio de acesso seguro e igual à terra, outros recursos produtivos e insumos, conhecimento, serviços

110
ANDRÉ VIANA CUSTÓDIO – GLÁUCIA BORGES

cançar a segurança alimentar e melhoria da nutrição e promover a agricultu-


ra sustentável (ONU, 2015).
O Brasil saiu do Mapa da Fome das Nações Unidas, em 2014, fazendo
com que a fome deixasse de ser um problema estrutural. Foram realizadas
ações estratégicas através da Educação Alimentar e Nutricional – EAN, que é
uma das diretrizes da Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional
– PNSAN, para o alcance da Segurança Alimentar e Nutricional e da garantia
do Direito Humano à Alimentação Adequada – DHAA (BRASIL, 2018, p. 11).
No entanto, muito ainda é necessário se fazer para erradicação dessa violação
ao direito à alimentação.
Importante trazer à tona que esse reconhecimento das crianças e adoles-
centes como vulneráveis em decorrência da situação de pessoa em desenvol-
vimento e grande dependência dos adultos, salienta a importância da garantia
de direitos especiais para que tenham, efetivamente, proteção integral. Esse re-
conhecimento já se faz necessário em situações normais da vida em sociedade.
Contudo, quando o mundo vivência situações atípicas, como é o caso de uma
pandemia3, aumenta em potencial a fragilidade da infância.
Em 2020 o mundo sentiu, mais uma vez, a fragilidade do ser humano, a
necessidade de estrutura nas políticas públicas e garantias estatais, especial-
mente as da saúde, e da importância da união dos povos de maneira fraterna
e solidária, pois vem passando por situações inesperadas para esse momento.
A pandemia do Corona Vírus ou COVID-19 veio para confirmar a situação
de indefensabilidade e trazer mais preocupação com relação ao cuidado das
crianças e adolescentes. Além das diversas consequências causadas por uma
pandemia para a infância, como risco de morte, risco de falecimento dos pais
ou responsáveis, risco de contágio e incorrer em prejuízos à saúde que ainda
não se sabe se é de curto ou longo prazo, entre outros, também, no presente
caso do COVID-19 que trouxe a necessidade de quarentena, verifica-se ainda
as consequências do distanciamento social, proibição de funcionamento das
escolas, suspensão das atividades esportivas e de lazer, bem como o agrava-
mento da crise alimentar.
Com relação ao direito alimentar, tem-se que muitos fatores podem vir

financeiros, mercados e oportunidades de agregação de valor e de emprego não-agrícola.


2.2 Até 2030, acabar com todas as formas de desnutrição, inclusive pelo alcance até 2025 das metas
acordadas internacionalmente sobre desnutrição crônica e desnutrição em crianças menores de cinco
anos de idade, e atender às necessidades nutricionais de meninas adolescentes, mulheres grávidas e
lactantes e pessoas idosas.
2.1 Até 2030, acabar com a fome e garantir o acesso de todas as pessoas, em particular os pobres e
pessoas em situações vulneráveis, incluindo crianças, a alimentos seguros, nutritivos e suficientes
durante todo o ano (ONU, 2015).
3 Pandemia é a disseminação mundial de uma nova doença e o termo passa a ser usado quando uma epi-
demia, surto que afeta uma região, se espalha por diferentes continentes com transmissão sustentada
de pessoa para pessoa.

111
DIREITOS HUMANOS E VULNERABILIDADES

afetá-lo, como o desemprego involuntário dos pais e/ou responsáveis em de-


corrência das crises financeiras geradas no país, órgãos públicos de apoio
fechados para atendimento ao público pelo risco de contágio, atividades es-
colares presenciais suspensas, cortes de benefícios ou não atingimento dos
requisitos para recebe-los, aumento dos custos domiciliares diante do maior
período em casa.
Diante dessa situação e sabendo da relevância jurídica prioritária que a
infância é detentora, questiona-se:
Será que crianças e adolescentes hoje residentes em nosso país precisam
sofrer a crueldade da dor da fome, para demonstrarem o direito de re-
ceberem do Estado os serviços de políticas públicas oficiais necessárias
para que os alimentos indispensáveis sejam oferecidos, na medida em que
seus pais não podem provê-los, diante do cumprimento da quarentena
decorrente da covid-19? Será que ela pode esperar seus pais cumprirem os
requisitos do bolsa família ou preencherem as condições estabelecidas por
meio de um aplicativo para que finalmente recebam o alimento? (RIBEI-
RO, VERONESE, 2020, p. 43).
As crianças e os adolescentes, nesse sentido, vivenciam situação que po-
demos chamar de hipervulnerabilidade. Em situações normais já as identifi-
camos como detentoras de vulnerabilidade, por exemplo, muitas crianças e
adolescentes dependem da alimentação escolar, mais conhecida como meren-
da, para fazer a melhor refeição do seu dia. As férias escolares por si só já são
motivo de preocupação, pela ausência dessa refeição. Em situações de hiper-
vulnerabilidade como na pandemia, cujas aulas presenciais estão suspensas e
crianças e adolescente deixaram de ter essa garantia diária, não se questiona
que há violação de direito.
A falta de acessibilidade para usufruir de todos os direitos fundamentais
circunstanciada pela vivência de uma pandemia, então, torna-se ainda mais de-
safiadora e difícil, especialmente àqueles das camadas sociais mais necessitadas.
Segundo a ONU (2009, p. 129-130), a acessibilidade à alimentação ade-
quada inclui a acessibilidade econômica, que “implica que os custos financei-
ros pessoais ou familiares associados à aquisição dos alimentos necessários
para um regime de alimentação adequada devem estar a tal nível que a pro-
visão e a satisfação de outras necessidades básicas não sejam ameaçadas ou
postas em perigo”, além da acessibilidade física, que “implica que a alimenta-
ção adequada deve ser acessível a todos, incluindo aos indivíduos fisicamente
vulneráveis, tais como lactantes e crianças pequenas, [...]”.
Percebe-se, pelos exemplos demonstrados acima, que tanto a acessibilida-
de econômica quanto a física acabam prejudicadas em situações como essa da
pandemia do Corona Vírus.

112
ANDRÉ VIANA CUSTÓDIO – GLÁUCIA BORGES

Se o direito à alimentação é um dos preservados pelo básico existencial


dos direitos sociais por estarem conectados diretamente às necessidades fi-
siológicas dos seres humanos e sua violação pode resultar no rompimento da
garantia de outros direitos fundamentais, é possível confirmar que mais vulne-
ráveis ficam as pessoas na infância com a união do não asseguramento desse
direito unido aos que dele dependem direta ou indiretamente.
O direito à vida e a saúde são os primeiros fragilizados diante da disse-
minação descontrolada na pandemia e, com a falta dos nutrientes adequados
provenientes da alimentação adequada, mais propensas estarão as crianças
e adolescentes a serem contaminadas e, até, falecerem pela falta de força no
corpo. O direito à educação, cujo ensino já está prejudicado diante do neces-
sário distanciamento social e a suspensão das aulas presenciais, traz consigo
também a interrupção do fornecimento da merenda escolar, cuja alimentação
por vezes é a mais completa e abundante que muitas crianças e adolescentes
tem acesso.
Com o distanciamento social, também, crianças e adolescentes deixam de
ter contato com amigos e colegas, não praticando esportes ou tendo momentos
de lazer, frustrando mais ainda sua saúde física e mental, que já está debilita-
da sem a alimentação adequada. O direito à convivência familiar e comunitá-
ria pode ser afetada pela perda por falecimento dos seus provedores ou, ser
afetada caso a drástica situação financeira afetada não venha acompanhada
de auxílio do poder público. Não se estranhará se logo processos judiciais em
massa surgirem em todo o Brasil, responsabilizando unicamente os pais por
negligência, por exemplo. Para tanto, “na falta de nutrição adequada em razão
da família da criança e do adolescente, não cabe a separação da criança da sua
família, mas o apoio, por meio de políticas públicas adequadas à solução ime-
diata, em prioridade absoluta [...]” (RIBEIRO, VERONESE, 2020, p. 48).
Por fim, unido a tudo isso, a dignidade das crianças e adolescentes fica
completamente fragilizada. Não ter um simples prato de comida para se ali-
mentar traz uma das maiores afetações a esse direito e princípio fundamental.
Se forem focalizadas as múltiplas formas de violência que atingem
crianças e adolescentes brasileiros, sobretudo, os que se originam das
camadas populacionais mais pobres, o chamado quarto estrato social,
é possível constatar que, regra geral, os programas de cunho assisten-
cial – as chamadas políticas compensatórias – têm alcance limitado e
surtem efeitos paliativos, incapazes de ultrapassarem a área limítrofe
em que os problemas de cunho notadamente sociais se manifestam, as
quais estariam a exigir políticas sociais básicas. [...] Diante da esmagado-
ra realidade socioeconômica em que vive a sociedade brasileira, as ações
sociais são necessárias, mas é preciso admitir que tais políticas setoriais
são limitadas, pois não conseguem atingir os elementos mais complexos
da estrutura social que reproduzem e possibilitam o fluxo da marginali-

113
DIREITOS HUMANOS E VULNERABILIDADES

zação (VERONESE, 2019, p. 22).


Destaca-se que o direito à alimentação é um elo garantidor, ou seja, um
direito básico e que, para situações comuns, já não está garantido, confirman-
do a vulnerabilidade do grupo social da infância. Para situações emergenciais,
como tem sido a da pandemia do Corona Vírus, ratifica-se a ocorrência de hi-
pervulnerabilidade da criança e do adolescente, diante da ausência no cum-
primento do dever de proteção e de não reconhecimento material das mesmas
como sujeitos prioritários de direitos.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Se à infância é devida proteção integral que resulta, entre outros, em
prioridade absoluta e análise do melhor interesse em todas as circunstâncias,
clara é a enorme falha no sistema. Tendo em vista que crianças e adolescen-
tes possuem relevância a nível internacional e nacional, elevados à categoria
de superioridade, pois são pessoas em peculiar estado de desenvolvimen-
to, necessitando da salvaguarda de direitos especiais, um direito básico não
deveria ainda ser tido como mais um que as vulnerabiliza. Percebe-se que,
apesar do reconhecimento no plano jurídico formal, crianças e adolescentes
não estão sendo vistas como superiores pois, nem o básico lhes está sendo
devidamente garantido.
O que preocupa é que em situações comuns já é possível verificar o di-
reito de crianças e adolescentes sendo constantemente violados. Mas o que o
mundo vive com uma pandemia, como a do Corona Vírus, não se trata de uma
situação típica e comprova, ainda mais, a fragilidade das políticas públicas de
atendimento, a fragilidade do ser humano e a fragilidade de crianças e adoles-
centes, tão dependentes dos adultos.
Ocorre que, compreendendo a importância das crianças e adolescentes,
entende-se que devemos a elas proteção hoje, pelo que são hoje e não pelo que
serão no futuro. Assim, são as crianças e adolescentes da atualidade que estão
passando pela cruel situação de fome, tudo pelo despreparo e ausência do real
reconhecimento como prioridades absolutas. Ainda não é possível se verificar
todas as consequências que estas terão a longo prazo em decorrência da falha
na proteção integral.
Falta o devido reconhecimento da fundamentalidade do direito à alimen-
tação sob a ótica de que esse é um dos direitos basilares para a garantia de
diversos outros direitos da infância, bem como da legitima confirmação dos
demais como elementares para o pleno desenvolvimento do ser humano. Falta
a devida efetivação dos direitos em situações normais. Falta preparo para que
os direitos não sejam mais violados em situações diversas. Falta completa com-

114
ANDRÉ VIANA CUSTÓDIO – GLÁUCIA BORGES

preensão da proteção integral e as diretrizes inerentes, pois, enquanto isso, a


depender da situação em que o mundo vive, crianças e adolescentes passam de
vulnerabilizadas para hipervulnerabilizadas.

6. REFERÊNCIAS
BORGES, Gláucia. Conceitos Fundamentais do Direito da Criança e do Adolescente. Florianó-
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Brasília: Presidência da República, 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/
constituicao/constituicaocompilado.htm. Acesso em: 03 out. 2020.
BRASIL. Lei nº 8.069, publicada em 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do
Adolescente e dá outras providências. Brasília: Presidência da República, 1990. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8069Compilado.htm. Acesso em: 03 out. 2020.
BRASIL. Ministério do Desenvolvimento Social. Secretaria Nacional de Segurança Alimentar e
Nutricional. Princípios e práticas para a educação alimentar e nutricional. Brasília-DF, 2018. Dis-
ponível em: https://www.cfn.org.br/wp-content/uploads/2018/08/CADERNO_EAN_semmarca.
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MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Curso de Direitos Humanos. 5. ed., rev. atual. ampl. Rio de
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mentação adequada), 1999. In: Compilação de instrumentos internacionais de direitos huma-
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115
DIREITOS HUMANOS E VULNERABILIDADES

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VILLASEÑOR, Roxana Montejano; SAUCEDO, Martín Beltran; SILVA, Violeta Mendezcarlo. Un
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RIBEIRO, Joana; VERONESE, Josiane Rose Petry Veronese. Pandemia, criança e adolescente: em
busca da efetivação de seus direitos. Rio de Janeiro : Lumen Juris, 2020.

116
O MOVIMENTO “EXPOSED” NO CONTEXTO DA
SOCIEDADE EM REDE: TENSÕES ENTRE AS NARRATIVAS
DE ABUSOS SOFRIDOS POR INTERNAUTAS E O
DIREITO AO ESQUECIMENTO DOS SUPOSTOS
OFENSORES
Rosane Leal da Silva
Ingra Etchepare Vieira

Sumário: 1. Introdução; 2. O surgimento do movimento “Exposed” no


contexto da sociedade em rede; 3. A possível tutela do direito ao esqueci-
mento dos ofensores; 4. Considerações finais; 5. Referências.

1. INTRODUÇÃO
O desenvolvimento da Sociedade em Rede, caracterizada pela instantanei-
dade dos fluxos informacionais além das fronteiras estatais, abriu espaço para
novos movimentos que vão para além da mera busca de informação e oportuni-
dades de comunicação. Ao lado desses já usuais canais, novas formas de intera-
ção foram abertas a partir de plataformas e sites de redes sociais, desde aquelas
mais efêmeras e marcadas pelas pautas de momento até movimentos mais arti-
culados e que objetivam denunciar determinados problemas sociais, políticos e
até mesmo trazer ao conhecimento público situações de violência vivenciadas.
Essa forma de visibilidade é nova, pois se outrora as pessoas mantinham
em sua intimidade determinados fatos, recorrendo a outras estratégias para
ressignificar seus sentimentos, atualmente muitas vítimas buscam nas redes
sociais um espaço para realizar a narrativa de suas vivências, em busca de
apoio e solidariedade. E de postagem em postagem não só revelam, narram
violência e sofrimento, dando visibilidade ao que estava no âmbito de reserva,
quanto fazem denúncias e buscam angariar adeptos que também partilharam
dos mesmos problemas e são sensíveis ou simpáticos à causa. Tal comporta-
mento originou um movimento denominado Exposed.
Essa exposição revela tensões, pois se por um lado pode apontar para a
amplificação do exercício da liberdade de expressão, pois confere inéditas for-
mas de as supostas vítimas se manifestarem em busca de apoio, por outro sus-
cita cuidados e reforça as ambivalências do uso das tecnologias da informação
e comunicação. Tal cautela se justifica, pois a rapidez dos fluxos informacionais
não só retira a possibilidade de contraditório ao conduzir a julgamentos sumá-
rios dos envolvidos, por parte da opinião pública, como também perpetua a

117
DIREITOS HUMANOS E VULNERABILIDADES

mensagem, pois se sabe que é muito difícil tornar indisponível um conteúdo


após a sua publicação na Internet.
Esses novos usos das redes sociais colocam em contraste e levantam ques-
tionamentos acerca de qual direito tutelar, se a liberdade de expressão e de
organização das eventuais vítimas, que encontraram no ambiente virtual es-
paço para suas denúncias ou se, ao revés, deve-se tutelar os direitos humanos
(privacidade, honra, imagem, dados pessoais) e o direito ao esquecimento de
quem é indicado como possível agressor.
Evidenciada a contraposição entre os interesses, para responder a esse
questionamento optou-se por abordagem dialética, que permite o cotejo entre
os temas em busca de uma síntese que responda, ainda que de maneira provi-
sória, a esse novo dilema apresentado nas redes sociais.

2. O SURGIMENTO DO MOVIMENTO “EXPOSED” NO CONTEXTO


DA SOCIEDADE EM REDE
A informação e os dados pessoais se tornaram a matéria-prima da deno-
minada sociedade em rede, um verdadeiro petróleo que alimenta e coloca em
movimento a economia do informacional, alimentando empresas que se orga-
nizam em torno das interações virtuais de seus internautas. Em igual sentido,
os usuários comuns também destinam cada vez mais tempo às interações no
ambiente virtual e verbos como publicar, curtir e compartilhar parecem ter
ingressado de maneira definitiva no cotidiano de muitas pessoas, que passam
o dia a postar conteúdos.
Esses novos hábitos e práticas são tão intensas que os meios tecnológicos
e o que ocorre no ecossistema digital têm potencial para definir os rumos indi-
viduais e coletivos da vida humana, como sustentado há muito tempo por Cas-
tells (1999, p. 108), com potencial para influenciar comportamentos nos mais
variados assuntos, de temas íntimos a escolhas políticas. Numa inédita revo-
lução jamais alcançada por outra tecnologia que a precedeu, as tecnologias da
informação e comunicação possibilitaram a passagem da informação de algo
estático e passível de digitalização para a dinâmica dos fluxos informacionais.
Tal movimento originou o que Castells (1999, p. 64-65) denomina de so-
ciedade informacional, caracterizada como “[...] uma forma específica de or-
ganização social em que a geração, o processamento e a transmissão da infor-
mação tornam-se as fontes fundamentais de produtividade e poder devido às
novas condições tecnológicas surgidas nesse período histórico”.
É incontestável que as tecnologias passaram a integrar o cotidiano de
muitas pessoas ao redor do mundo, sendo utilizadas para as mais variadas
finalidades, desde trocas comerciais e atividades econômicas até o uso para

118
ROSANE LEAL DA SILVA – INGRA ETCHEPARE VIEIRA

fins de simples lazer e interação social. A variedade de usos, que se moldam e


renovam a partir das transformações ocorridas nas sociedades e nas próprias
tecnologias justificam a afirmação de Marcel Leonardi (2012, p. 28) de que “[...]
a utilização e a dependência dos diversos serviços e facilidades oferecidos pela
Internet modificaram completamente o comportamento humano”.
Dentre todas as possíveis utilizações, uma delas chama a atenção nos últi-
mos tempos, que é a transformação das plataformas digitais em espaços para a
partilha de experiências íntimas e vivências de sofrimento que teriam sido su-
portadas pelas vítimas. A experiência de ressignificar vivências pela escrita, na
tentativa de reelaborá-las e dar-lhes outro sentido não se constitui em novida-
de, pois conforme narrado por Sibilia (2003, p. 141-144) desde o século XIX há
registros literários do uso de cartas e de diários, especialmente por mulheres,
que encontravam nesses registros numa maneira de expressar sentimentos,
num exercício de reinterpretação de si.
Num universo marcadamente masculino, no qual a força do patriarcado
enclausurava as mulheres no ambiente privado e íntimo, o silenciamento era
quebrado pela escrita e era nos diários íntimos que os sentimentos secretos, as
dores e amores que não tinham vazão na arena pública eram expressos. Outro
canal bastante utilizado para exercer a liberdade de expressão era por meio de
trocas de cartas, outra prática feminina. Conforme narrado por Carvalho (2001,
p. 246), as correspondências entre amigas registravam nascimentos e mortes,
histórias de conquistas e perdas de muitas mulheres, que por meio das cartas
buscavam a compreensão e a solidariedade de quem partilhava do destino co-
mum de ser mulher num mundo em que os espaços de fala e de atuação públi-
ca eram reservados aos homens.
As mudanças sociais ocorridas nos últimos séculos são resultado de lutas
visando à abertura de espaços democráticos de fala em igualdade de condições
para todos, o que foi potencializado também pelas tecnologias da informação e
comunicação, que além de romperem com a centralidade da emissão das men-
sagens, em regra não impõem filtros ou controles aos fluxos informacionais.
Essa abertura potencializa o exercício da liberdade de expressão, mas também
impõe desafios para a proteção da privacidade, intimidade, honra e imagem
das demais pessoais, importantes direitos humanos consagrados em tantos tra-
tados internacionais e que, no pós Segunda Guerra, encontram na Declaração
dos Direitos Humanos (1948) sua mais notável fonte.
Ao tratar dos direitos humanos, Zayas (2018, p.64-65) não retira a impor-
tância dos direitos codificados nos tratados internacionais, pois consistem em
expressões práticas dos direitos, uma espécie de modelo mínimo, porém sus-
tenta que são incompletas pois há inúmeros outros direitos que se complemen-
tam e interpenetram e cuja observância assume papel essencial para a dignidade

119
DIREITOS HUMANOS E VULNERABILIDADES

humana. Essa proposição se afasta do modelo geracional de direitos humanos,


de há muito criticado por diversos autores, e sustenta que os direitos sejam orde-
nados segundo um critério cujo ponto de partida seja a fruição de outros. Assim,
sem direito à água, à alimentação e moradia seria impossível usufruir de outros
direitos, pois eles viabilizam a própria vida. De igual forma, o autor sustenta que
ao pensar no direito à educação, ao trabalho e repouso, no acesso à informação
deve-se considerar que todos eles permitem o livre desenvolvimento da perso-
nalidade, sem a qual não haverá dignidade. Seguindo sua linha de raciocínio,
haveria também direitos instrumentais, como o devido processo legal, pedido de
prestação de contas, transparência, livre exercício de suas convicções religiosas e
direito à livre expressão e de manifestação, denominados como direitos afirma-
tivos, os quais também convivem com os chamados direitos humanos negativos,
assim entendidos como proibições direcionadas aos Estados e particulares, que
devem se abster de determinadas violações e cuja observância impõe o respeito
à integridade física do titular. Esses direitos são complementados por outros,
inerentes e imanentes aos outros e que se referem à igualdade e que convocam à
justiça social. Ao concluir sua exposição, Zayas (2018, p. 65) sustenta que
Además, hay que recordar que todos los derechos se ejercen en el contexto
de los otros derechos, y que hay principios generales del derecho como la
buena fe, lo que implica la prohibición de arreglos que son por su natura-
leza contra los buenos modales o contra el orden público, y la regla que
el ejercicio de mis derechos no puede frustrar el ejercicio de los derechos
de otras personas (sic utere tuo ut alienum non laedas), y la consecuente
prohibición del abuso del derecho, un concepto avanzado por Sir Hersh
Lauterpacht. Pero, ¿a dónde desembocan todos los derechos humanos?
Certamente não é necessário grande análise para responder que todos
esses direitos, além de se interpenetrarem e se complementarem, são essenciais
para a dignidade humana.
Ao tratar dos direitos humanos na ordem internacional, Suxberger (2018)
sustenta, na esteira de Bobbio e com acerto, que não se trata de positivá-los,
mas sim de assegurar garantias para a sua observância. A compreensão dos
direitos humanos nessa quadra da história requer, portanto: a) avançar para
além do seu reconhecimento formal rumo à efetivação; b) reconhecer que a
ordem internacional consiste em mero ponto de partida e que tudo dependerá
da capacidade de os Estados promoverem internamente esses direitos ao que
se agrega neste trabalho, um terceiro elemento, a saber: c) a compreensão dos
direitos humanos num mundo acelerado e tensionado pelos fluxos requer a
habilidade em trabalhar com a tensão e a colisão entre direitos humanos.
Na mesma esteira segue Herrera Flores (2009, p. 78) ao sustentar que a
interpretação dos direitos humanos, além de superar o tradicional enfoque ge-
racional, deve ultrapassar os dualismos rumo a uma concepção integral dos

120
ROSANE LEAL DA SILVA – INGRA ETCHEPARE VIEIRA

direitos humanos. Ao invés de separá-los em direitos individuais, de um lado;


sociais e econômicos, de outro, trabalharia com outra lógica, reconhecendo di-
reitos à integridade corporal, direitos à satisfação de necessidades e direitos de
reconhecimento. Não haveria mais espaço, igualmente, para a segmentação em
direitos humanos, na seara internacional e, fundamentais em âmbito interno,
tratando-os por direitos humanos fundamentais.
Essa contribuição é importante vez que os direitos coincidem em con-
teúdo e valores que envolvem, posto que sua observância conduz ao reconhe-
cimento da dignidade humana. Quanto ao âmbito – internacional ou interno
– resta lembrar que tais direitos também foram contemplados na Constituição
Federal de 1988, vez que tratá-los por direitos humanos e fundamentais não se
constitui em problema.
Especificamente quanto à liberdade de expressão há expressa menção no
artigo 5º, inciso IV, da Constituição Federal (BRASIL, 1988) e se constitui num
importante direito, sobre o qual se alicerça a democracia. Quando se lança um
olhar mais detido sobre esse exercício na Internet convém recordar que a liber-
dade de expressão é um dos princípios norteadores do Marco Civil da Internet,
o qual “se apresenta como uma grande moldura de direitos e liberdades indivi-
duais dos usuários de internet no contexto brasileiro” (MEYER-PLUFG; LEITE,
2015, p. 440). Sua importância se evidencia pela menção que recebe ao longo do
texto, o que é feito de diferentes maneiras, nenhuma delas, no entanto, reduz
sua importância: no artigo 2º, caput, a referida Lei estabelece a liberdade de ex-
pressão como o seu fundamento, já o artigo 3º, inciso I, o elenca como princípio
basilar, enquanto o artigo 8º descreve o referido direito como condição para “o
pleno exercício do direito de acesso à internet” (BRASIL, 2014).
A liberdade de expressão pode ser exercida de múltiplas formas, possibi-
litando a manifestação de pensamentos, sentimentos e juízos de valor (BENTI-
VEGNA, 2019, p. 86). Segundo Carlos Affonso Pereira de Souza (2015, p. 380), a
liberdade de pensamento e de expressão podem ser caracterizadas como “[...] li-
berdades de conteúdo intelectual, tendo como pressuposto para o seu exercício a
interação entre indivíduos, com o escopo de fazer comunicar o produto do pen-
samento, mais especificamente, as suas crenças, conhecimentos, ideologias [...]”.
O direito de expressar-se e a comunicação, “mais do que uma caracterís-
tica do ser humano, é uma necessidade”, o que vai desde a “linguagem ges-
tual, passando pela palavra escrita epistolar até os modernos e-mails e MMS
(Multimedia Message Service) [...]”, o que conduz a crescente superação de
obstáculos, “quer na distância a que podemos comunicar, quer na quantidade
de informações comunicadas, quer na velocidade com que conseguimos comu-
nicar essa informação” (FARINHO, 2006, p. 9).
O fato é que as pessoas sentem necessidade de expressar suas opiniões e

121
DIREITOS HUMANOS E VULNERABILIDADES

sentimentos e encontram nas plataformas digitais ambiente aberto e com mi-


lhares de leitores ávidos para o que Paula Sibilia (2003, p. 147-149) chama de
“consumo de vidas alheias”. Quanto mais triste a história ou mais picantes os fa-
tos narrados, mais haverá pessoas interessadas em sua leitura, mais o texto será
partilhado com outros, disseminando-se de maneira tão incontrolável que ainda
que seu autor tenha se arrependido logo após publicá-la, não haverá mais con-
trole sobre a postagem, ou seja, ocorre a perda da autodeterminação do titular.
Trata-se de um fenômeno novo no qual a liberdade de expressão é po-
tencializada de tal maneira que abre um canal direto por meio do qual infor-
mações mais reservadas, antes guardadas na intimidade, ganham luz e visi-
bilidade, muitas vezes pela ação dos próprios titulares dos direitos, que livre
e espontaneamente revelam segredos, abrindo mão dessa esfera de proteção.
Percebe-se, pois, que a sociedade dos fluxos promove uma verdadeira teia
ou rede de interpenetração entre direitos humanos, que não podem ser vis-
tos como dissociados. Tal constatação corrobora o acerto das lições de Pérez
Luño quando este autor sustentava que sob os impactos das tecnologias os
direitos precisam ser considerados e tutelados em sua estrutura unitária, em
sua dimensão social e seu status positivo (2005, p. 339). Este enfoque positivo e
social ultrapassa o binarismo público/privado e parece oportuno à medida que
propõe a análise mais atualizada para o tema. Como destacado pelo autor, o
momento atual exige novas respostas, pautadas no que denomina “consciencia
tecnológica” e, em suas palavras “Urge tomar en serio la tarea de construir una
Teoría del Derecho abierta, y responsablemente comprometida con la respues-
ta a las nuevas necesidades y exigencias de los hombres que viven en la era de
la informática” (PÉREZ LUÑO, 1996, p. 135).
De fato, as interações mediadas por tecnologias podem produzir novas
complexidades e o exercício da liberdade de expressão por parte do titular
pode relativizar o conceito de intimidade. Quanto à esse direito, Farinho (2006,
p. 45) relembra as lições recebidas do direito alemão sobre a proteção da vida
privada, sustentando que essa proteção precisa ser proporcional às áreas de
personalidade afetadas e que cada esfera da personalidade deveria ter uma
camada de proteção específica, sendo que “as esferas que reclamam maior
proteção são aquelas que estão mais próximas de experiências definidoras da
identidade do indivíduo”. Por este critério, a esfera da privacidade abarcaria
informações relativas às emoções e contextos relacionais específicos, enquanto
a íntima teria referência ao mundo intrapsíquico dos sentimentos identitários
e sexualidade, elementos que impactam negativa ou positivamente na autoes-
tima e na autoconfiança.
O fato é que se de um lado esta proteção pode ser reclamada contra a
intromissão desautorizada de terceiros, por outro pode ser plenamente expos-

122
ROSANE LEAL DA SILVA – INGRA ETCHEPARE VIEIRA

ta pelo titular dos direitos que, fazendo uso de sua liberdade de expressão
e de sua autodeterminação revela informações pessoais íntimas, quer o faça
por necessidade de ressignificar sua história, por solidão ou para angariar o
apoio dos demais internautas. Tal comportamento já tinha sido objeto de estu-
do inclusive pela psicanálise e foi denominado de extimidade, explicado sob o
ângulo jurídico por Bolesina (2017, p. 187) para quem “[...] a extimidade passa
a ser a revelação, consciente ou não, de partes selecionadas da intimidade e o
recebimento de feedback, que é reabsorvido e, no fechar deste ciclo tem-se o en-
riquecimento da intimidade, mas, além disso, uma transformação da própria
intimidade”. Para o autor tal comportamento não pode ser confundido com o
narcisismo ou vontade de exibir-se, mas se trata de algo que é exposto em bus-
ca da validação do outro, servindo na construção da identidade.
Essa exposição pode parecer paradoxal e oferece pistas sobre a comple-
xidade dos temas atuais quando somados à tecnologia, pois ao mesmo tempo
em que as pessoas reclamam proteção à intimidade contra as interferências
alheias, elas também promovem sua auto-exposição na Internet, relativizando
ainda mais as fronteiras entre público e privado.
Muitos internautas se utilizam das redes sociais para simples busca de
informações e para interações sociais, outros interagem nesses espaços para
dar vazão a sentimentos e posicionamentos individuais, enquanto os demais
se valem das tecnologias para, a partir do encontro com outras pessoas, par-
tilhar pautas comuns e mobilizar as pessoas para um determinado objetivo,
como já apontava Castells (2013) ao tratar do que denominou de redes de
indignação e de esperança.
É neste ambiente plural e a partir dessa multiplicidade de utilizações que
recentemente, eclodiu, nas redes sociais, sobretudo no Twitter, a prática deno-
minada de “Exposed”, advinda do termo em inglês “exposto”, em que jovens
de diferentes Estados brasileiros utilizam a rede social para divulgar casos de
assédio sexual, relacionamentos abusivos, agressões e até mesmo estupro (RA-
MOS, 2020). Com o mesmo intuito, em 2017, ocorreu o movimento denomina-
do de “MeToo”, ou “eu também”, o qual alcançou repercussão mundial, com
milhares de adeptos (MESQUITA, 2020).
Em alguns casos a violência teria ocorrido no âmbito doméstico ou em
qualquer relação afetivamente íntima em que as partes coabitavam. Justifica-
vam a narrativa a partir da tutela prevista na Lei nº 11.340, de 2006, conhecida
como Lei Maria da Penha, a qual tipifica vários comportamentos que atingem
a integridade física, psicológica, moral, sexual e patrimonial da mulher. Em
outros casos, a violência não resultou de relacionamentos mais estáveis, tendo
sido praticada em encontros ocasionais e até mesmo em relações profissionais,
nas quais a vítima estava subordinada ao abusador.

123
DIREITOS HUMANOS E VULNERABILIDADES

Independente da espécie de violência ou abuso relatado, identificam-se,


na prática do “Exposed” algumas das características estabelecidas por Manuel
Castells (2017, p. 154) para descrever os movimentos sociais em rede, como a
conexão por diversas formas, a possibilidade de adquirir repercussão global,
a rápida disseminação e o desencadeamento a partir da indignação. Em rela-
ção ao último aspecto, é importante mencionar que algumas pessoas prefe-
rem divulgar os casos de abuso ou violência nas redes sociais, em virtude da
descrença nas instituições, como na autoridade policial e até mesmo no Poder
Judiciário (SERRANO, 2020).
É importante mencionar também que o movimento em questão “gera aco-
lhimento entre as mulheres e serve de ferramenta para incentivar a denúncia dos
abusos [...]” (DE UNIVERSA, 2020). Dessa maneira, possuem potencial de mo-
bilizar grande número de pessoas, sobretudo mulheres, já que “as redes sociais
digitais baseadas na internet e nas plataformas sem fio são ferramentas decisivas
para mobilizar, organizar, deliberar, coordenar e decidir” (CASTELLS, 2017, p.
158). Além disso, a Internet se reveste como instrumento para a obtenção dos fins
almejados por mobilizações e protestos (CARDOSO, 2007, p. 420).
Ainda que o exercício dessas manifestações seja legítimo e represente
uma forma de aliviar o sofrimento das integrantes do movimento, não se deve
ignorar que o direito à liberdade de expressão não é absoluto, encontrando
limites em outros direitos fundamentais e personalíssimos (MEYER-PLUFG;
LEITE, 2015, p. 431). No mesmo sentido segue o Enunciado nº 613 do Con-
selho da Justiça Federal, aprovado na VIII Jornada de Direito Civil, em abril
de 2018, com o seguinte teor: “a liberdade de expressão não goza de posição
preferencial em relação aos direitos da personalidade no ordenamento jurídico
brasileiro”. Também é importante mencionar a justificativa elaborada para a
aprovação do referido enunciado:
[...] os direitos da personalidade, que colidem frequentemente com a liber-
dade de expressão, também possuem elevado “peso abstrato”, em razão
de sua conexão direta e imediata com a dignidade da pessoa humana, ver-
dadeiro fundamento da República. Assim, revela‐se arbitrária qualquer
tentativa apriorística de privilegiar algum desses direitos. A relação de
prevalência deverá ser determinada à luz de elementos extraídos do caso
concreto. Assim, não devem ser excluídos meios de tutela que possam se
revelar adequados à proteção do direito da personalidade lesado. Isto in-
clui a possibilidade de interromper a circulação de informações [...] ou
impedir sua publicação. [...] Em determinados casos, chega‐se a propor
a limitação dos remédios disponíveis ao lesado à solução pecuniária (in-
denização). É de se recordar, porém, que o que a Constituição assegura a
todo cidadão não é o direito a ser indenizado por violações à privacidade;
é o direito à privacidade em si (BRASIL, 2018).
Logo, quando o exercício da liberdade de expressão entrar em tensão com

124
ROSANE LEAL DA SILVA – INGRA ETCHEPARE VIEIRA

outros direitos de igual importância, revelando-se abusivo e produtor de da-


nos, os atingidos poderão pleitear as medidas jurídicas cabíveis. Como adverte
Carlos Alberto Bittar (2014, p. 261), “os atos capazes de causar dano a outrem
têm se pluralizado nos meios virtuais” e neste caso não é diferente, pois ain-
da que para a suposta vítima sua narrativa possa ser verdadeira, não se pode
descartar, de um lado, a existência de falsas memórias e, de outro, o direito ao
esquecimento que teria o próprio autor do comportamento, sobretudo quando
já respondeu pelo fato perante as autoridades.
Percebe-se, portanto, que no movimento “Exposed” importantes traços
característicos dos movimentos sociais, possuindo a finalidade de mobilizar e
conscientizar as mulheres, incentivando-as a expor casos de abusos, relaciona-
mentos abusivos e violência. Entretanto, dependendo da forma como a liberda-
de de expressão será exercida, outros direitos humanos, também considerados
na legislação brasileira como fundamentais e de personalidade podem ser viola-
dos, como o denominado direito ao esquecimento, o qual será tratado a seguir.

3. A POSSÍVEL TUTELA DO DIREITO AO ESQUECIMENTO DOS


OFENSORES
O movimento “Exposed” constitui um novo canal para o exercício da liber-
dade de expressão de mulheres e jovens que se sentiram vítimas de tratamento
abusivo ou violento, encontrando no Twitter um canal privilegiado de mani-
festação. Entretanto, a liberdade de expressão das mulheres que foram vítimas
precisa ser exercida dentro dos limites legais, com cautela para não violar os
direitos fundamentais e personalíssimos dos supostos abusadores, pois de víti-
mas podem passar a agressoras, especialmente quando as postagens permitirem
identificar o autor da violência narrada. Isso ocorre porque a partir do momento
em que é identificada, a pessoa pode sofrer verdadeiros linchamentos públicos
(físicos e morais), além de reclamar o direito ao esquecimento.
Há, portanto, uma clara tensão entre direitos humanos, especialmente
aqueles que estão mais ligados à personalidade, mais propensos a colisão com
a liberdade de expressão, dentre eles o direito à privacidade (MEYER-PLUFG;
LEITE, 2015, p. 438). Trata-se, sem dúvidas, num dos direitos mais relativiza-
dos na sociedade em rede, pois a conexão constante das pessoas “na” e “pela”
Internet gera instantânea e incontrolável propagação de fluxos, dentre eles in-
formações de caráter privado, como dados pessoais.
É notória a metamorfose pela qual passou a privacidade, antes restrita à
intimidade e satisfeita pelo atendimento do direito de ser deixado só, atual-
mente passa a abarcar o direito ao controle das informações sobre sua pessoa.
Nesse sentido, Frazão (2019, p. 109) identifica novos domínios que envolvem a
privacidade, tais como “a autodeterminação informativa, o direito a não discri-

125
DIREITOS HUMANOS E VULNERABILIDADES

minação, a liberdade, a igualdade, o direito de acesso e acompanhamento dos


dados pessoais quando se tornam objeto de disponibilidade de outros, dentre
outros.” Sobressai, nesta evolução, a importância dos dados pessoais, ou seja,
qualquer informação pessoal sobre uma pessoa identificada ou identificável.
Somado à proteção em sede de direitos humanos e fundamentais, antes
já existente por força dos tratados internacionais e do disposto na Constituição
Federal, recentemente essa proteção foi ampliada e aprofundada com a Lei nº
13.709, de 14 de agosto de 2018 (LGPD), vigente desde 18 de setembro de 2020.
Ainda que ela não incida diretamente sobre a conduta das autoras das posta-
gens, pois de acordo com o art. 4º, inciso I, a LGPD não se aplica ao tratamen-
to de dados pessoais realizado por pessoa natural para fins exclusivamente
particulares e não econômicos, evidencia a importância desse bem jurídico,
reconhecendo a autonomia desse direito.
Pois bem, um dos pontos de tensão identificados na prática “Exposed”
ocorre justamente quando as narrativas de abusos oferecem uma riqueza de
detalhes que permite aos demais leituras identificar o suposto abusador, pois
informações de tal natureza poderão trazer-lhe severos problemas. Assim, ain-
da que os abusos e violências sejam verdadeiros e de fato tenham ocorrido, a
narrativa feita pela vítima ao contar sua história gerará sua própria exposição,
assim como gerará a exposição (quiçá desnecessária) de dados pessoais do su-
posto agressor que ficaria, inclusive, sujeito a ações de violência desencadea-
das por outros internautas.
Verifica-se que é assertiva a afirmação de Bentivegna (2019, p. 93) ao
sustentar que, se por um lado o uso da internet facilitou a interação social e
o exercício das liberdades, por outro “Tal facilitação propiciou igualmente a
ocorrência dos conflitos entre tal exercício e a preservação dos outros direitos
da personalidade como a honra, a imagem e a privacidade”, todos previstos
em Tratados de Direitos Humanos e também na Constituição Federal, artigo
5º, incisos V e X; igualmente contemplados no artigo 20 do Código Civil Brasi-
leiro e no Marco Civil da Internet, no artigo 3º, inciso II e no artigo 7º, inciso I.
De fato, quando se trata de exposição na Internet há verdadeiro interpene-
tração entre os direitos, conforme mencionado na primeira parte do trabalho e
tal não ocorre tão somente com os direitos da pessoa que realiza a denúncia por
se sentir vítima, mas se estende também ao suposto agressor e seus familiares.
As publicações podem trazer reflexos negativos sobre sua integridade física,
psíquica, sobre sua segurança pessoal e de sua família. Ocorre que enquanto
no caso da exposição voluntária da privacidade e intimidade a internauta tem
a autodeterminação informativa de realizar a postagem, escolhendo essa ex-
posição, tal possibilidade não se oferece ao suposto agressor, que de uma hora
para a outra passa a ter sua vida devassada e seus dados pessoais, assim como

126
ROSANE LEAL DA SILVA – INGRA ETCHEPARE VIEIRA

de sua família, expostos a todo o tipo de ação o que o autorizaria, inclusive, a


buscar a reparação civil por eventuais danos morais suportados, bem como
acionar criminalmente a autora da publicação por configurar crime contra a
honra. Para evitar que a autora da postagem passe de vítima à ofensora há
dicas jurídicas bem interessantes, ofertadas gratuitamente no Youtube por duas
jovens advogadas que, por meio do “Canal Direito Delas” ensinam como fazer
as denúncias de maneira correta e sem correr o risco de figurar como ré em
processos judiciais (CANAL DIREITO DELAS, 2019).
Tais instruções são importantes até para a que autora das postagens pos-
sa refletir se é realmente adequado protagonizar esse tipo de exposição, pois
as consequências podem ser negativas para ambos. Especialmente quando
acompanhadas de dados pessoais, a divulgação tanto pode estimular a dis-
criminação da jovem na Internet, que poderá ser rotulada pejorativamente por
grupos machistas e conservadores, com também gerar reflexos traumáticos e
quiçá incontroláveis para o suposto ofensor, pois muitas das informações serão
também dados sensíveis. Sobre essa categoria de dados pessoais pode-se dizer
que tem íntima relação com aspectos da personalidade de um indivíduo, como
a orientação sexual (PARENTONI, 2015, p. 551), opção religiosa, raça, etnia,
podem gerar preconceito ao titular. Informações e publicações de nome e so-
brenome, local de trabalho, profissão, além de poderem identificar a pesquisa
que é titular dos dados ainda permite que se chegue até os familiares, gerando
para estes uma exposição indevida.
Tal risco leva a se discutir o denominado direito ao esquecimento1 que,
segundo Sarlet (2015) caracteriza-se como direito fundamental implícito.
Seu surgimento ocorreu em meio a discussões sobre a ressocialização de
ex-detento que já cumpriu a pena, possibilitando-lhe reconstruir sua vida
(SCHREIBER, 2014, p. 173). Por este direito permite-se ao indivíduo ter sua
imagem dissociada de fatos pretéritos negativos (PARENTONI, 2015, p. 542),
o que talvez deva ser ponderado especialmente quando a natureza do direito
violado não é de interesse coletivo. Que benefício trará à vítima manter a
constante memória do fato e do seu autor e relembrar ad infinitum essa cir-
cunstância, rememorando a experiência sofrida?
É certo que as noções de tempo e espaço são relativizadas nos ambientes
virtuais e, tal como sustentado por Machado e Negri (2017, p. 372), tal fenômeno
“forja uma leitura descontínua do mundo, um processo de ‘desteritorialização’,
somado ao de fusão entre passado e presente em um único momento”. Ao ler

1 O Marco Civil da Internet (BRASIL, 2014) faz breve alusão ao direito ao esquecimento, no artigo 7º,
inciso X: “Art. 7º – O acesso à internet é essencial ao exercício da cidadania e ao usuário são assegura-
dos os seguintes direitos: X – exclusão definitiva dos dados pessoais que tiver fornecido a determinada
aplicação da internet, a seu requerimento, ao término da relação entre as partes, ressalvadas as hipóte-
ses de guarda obrigatória de registros previstos nesta lei”.

127
DIREITOS HUMANOS E VULNERABILIDADES

outros relatos ou saber de alguma circunstância que se aproxima do seu caso a


pessoa vitimada poderia retomar aqueles sentimentos como se tivessem ocorri-
do no momento presente, o que a encorajaria a juntar-se ao grupo. Mas em que
medida essa exposição de fato auxilia a vítima a ressignificar a sua experiência?
E sua superexposição? E o direito ao esquecimento do suposto agressor?
A possibilidade de restaurar postagens, retuitando conteúdos e a perda
do controle sobre o que os outros internautas publicam envolvendo os dados
pessoais do acusado justificam análise cuidadosa, pois essa exposição também
pode atingir sua dignidade.
Nesse sentido, cumpre destacar a edição número 137 da publicação Ju-
risprudência em Teses, do Superior Tribunal de Justiça (2019), a qual estabe-
leceu, na tese de número 10, que “a tutela da dignidade da pessoa humana na
sociedade da informação inclui o direito ao esquecimento, ou seja, o direito
de não ser lembrado contra sua vontade, especificamente no tocante a fatos
desabonadores à honra”. De forma semelhante a essa definição, Ingo Wolfgang
Sarlet (2015) conceitua o direito ao esquecimento como “a pretensão jurídica de
ser “esquecido” mediante a negativa e/ou restrição do acesso a determinadas
informações ou mesmo a sua supressão”.
A definição hodierna do direito ao esquecimento é entendida como “[...]
a faculdade de obstar o processamento informatizado, a transferência ou pu-
blicação de dados pessoais, além de exigir que sejam apagados, sempre que
a sua preservação esteja causando constrangimento ao sujeito envolvido[...]”
(PARENTONI, 2015, p. 577).
E na mesma linha seguem as lições de Anderson Schreiber:
Cumpre registrar que o direito ao esquecimento não atribui a ninguém o
direito de apagar fatos ou de reescrever a História (ainda que se trate tão
somente da sua própria história). O que o direito ao esquecimento assegura
é a possibilidade de se discutir o uso que é dado aos fatos pretéritos, mais
especificamente o modo e a finalidade com que são lembrados. E não raro o
exercício do direito de esquecimento impõe ponderação com o exercício de
outros direitos, como a liberdade de informação, sendo certo que a ponde-
ração nem sempre se resolverá em favor do direito ao esquecimento. O caso
concreto deve ser analisado em suas peculiaridades, sopesando-se a utilida-
de informativa na continuada divulgação da notícia com os riscos trazidos
pela recordação do fato à pessoa envolvida. Como em outros conflitos já
analisados, não há aqui solução simples. Impõe-se, ao contrário, delicado
balanceamento entre os interesses em jogo (SCHREIBER, 2014, p. 174).
Dessa maneira, quando direitos fundamentais estão em colisão, notada-
mente o direito à liberdade de expressão e direito à privacidade, proteção de
dados e esquecimento, deve-se harmonizar o conflito verificando qual direito
deve prevalecer no caso em concreto. Ao analisar o tema, Meyer-Plfug e Leite

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ROSANE LEAL DA SILVA – INGRA ETCHEPARE VIEIRA

(2015, p. 444) advertem que “a liberdade na internet, necessária à livre circula-


ção de informações e ideias, [...] não pode ser sinônimo de violação de direi-
tos individuais constitucionalmente assegurados e igualmente indispensáveis
para a manutenção de um Estado Democrático de Direito”.
Nessa mesma linha de pensamento Almeida e Silveira (2015, p. 630) de-
fendem que quando a tensão envolve direitos referentes a informações pessoais,
intrinsicamente conectados aos seus titulares, tais direitos devem prevalecer.
Dessa forma, o exercício da liberdade de expressão, com a divulgação de
abusos nas redes sociais, deveria ser feito com muita responsabilidade, nar-
rando-se o fato sem, necessariamente, dar início à exposição de dados pessoais
ou ainda pior, uma campanha difamatória que expõe não somente dados e a
honra do abusador, mas toda a sua família.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Todas as linhas argumentativas até aqui desenvolvidas permitem afirmar
que o uso das tecnologias da informação e comunicação, com suas plataformas
e inovadores aplicativos não só reconfiguraram a forma como as pessoas rea-
lizam suas interações sociais, quanto descortinaram novos problemas sociais e
jurídicos. Nunca houve tanta oportunidade de fala e de exercício da liberdade
de expressão, assim como em tempo algum foram registradas tantas situações
de exposição da vida privada, intimidade e dados pessoais.
Na sociedade em rede, fluxos informacionais não encontram barreiras de
espaço e ultrapassam as fronteiras estatais. As noções de tempo também são re-
lativizadas, pois postagens e publicações podem se perpetuar e manter tanto o
emissor da mensagem quanto o alvo de suas publicações sempre em evidência
e sem direito ao esquecimento.
Tal ocorre com o movimento “Exposed”, que difunde as situações de vio-
lências e abusos sofridos por jovens internautas. Ainda que tais denúncias nar-
rem fatos verdadeiros e o exercício da partilha possa fortalecer as vítimas e
mobilizar a opinião pública para sua causa, é inegável que tais manifestações
geram excessiva exposição tanto para a vítima, quanto para o possível ofensor.
A vítima poderá se arrepender posteriormente e tal arrependimento será
tardio, pois uma vez postado dificilmente o conteúdo será esquecido e, ainda
que seja tornado indisponível, não tardará em ser publicado em outro site. No
entanto, a pessoa que fez a publicação, ainda que esteja em sofrimento, teve a
autonomia para decidir se queria ou não se expor.
Situação mais grave é a do ofensor que muitas vezes vê seu nome e de-
mais dados pessoais expostos sem que lhe seja admitido o direito ao contradi-
tório e à ampla defesa, com possíveis reflexos negativos para si e sua família.

129
DIREITOS HUMANOS E VULNERABILIDADES

Ao trazer esse aporte crítico não se está a defender o ato de violência ou abuso,
pois se foi efetivamente praticado o seu autor deverá responder pela ação. No
entanto, a resposta precisa ser dada pelos meios adequados, com respeito a
procedimentos jurídicos e diante das autoridades competentes e não numa es-
pécie de tribunal virtual.
Uma alternativa para valorizar o ativismo digital das vítimas seria realizar
as narrativas de maneira a não conter elementos que identificassem o possível
agressor, ou seja, partilhar o fato em si, denunciar as tantas violências existentes
e que são, infelizmente, naturalizadas pela sociedade, organizar coletivos femi-
ninos de resistência sem, contudo, expor dados pessoais do ofensor. O grande
desafio é articular essas formas de resistência e de ativismo sem cair nas armadi-
lhas do excesso da liberdade de expressão, pois este direito, quando exercido de
forma que exceda as finalidades, a boa-fé e os princípios orientadores do ordena-
mento jurídico – aqui a dignidade humana do ofendido pela postagem – poderá
se constituir em abuso de direito, o que converteria a vítima em agressora.
A partir de todo o exposto, conclui-se que o movimento “Exposed” poten-
cializa o exercício do direito humano e fundamental da liberdade de expressão.
Todavia, não se trata de direito absoluto e de exercício irrestrito, pois deve
harmonizar-se com outros direitos que também integram a personalidade e
cujo respeito é condição de possibilidade para alcançar a dignidade humana.

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e familiar contra a mulher, nos termos do § 8º do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção
sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e da Convenção
Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher; dispõe sobre a cria-
ção dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; altera o Código de Processo

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ROSANE LEAL DA SILVA – INGRA ETCHEPARE VIEIRA

Penal, o Código Penal e a Lei de Execução Penal; e dá outras providências. Disponível em: http://
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132
HARMONIZAÇÃO LEGISLATIVA E DIREITOS
HUMANOS: DESAFIOS DO DIREITO PENAL EM
COOPERAÇÃO INTERNACIONAL
Cláudio Macedo de Souza

Sumário: 1. Introdução; 2. A garantia dos direitos humanos na perspectiva


da cooperação internacional; 2.1 Proteção da pessoa humana na esfera in-
ternacional; 3. Fundamentos do conceito de harmonização da normativi-
dade penal; 3.1 Crítica sobre a unificação da legislação penal; 4. Coopera-
ção penal e os direitos fundamentais na União Europeia; 5. Considerações
finais; 6. Referências.

1. INTRODUÇÃO
Este artigo objetiva propor uma metodologia que torne viável a harmo-
nização da legislação penal, pautada no respeito aos direitos humanos e na
intercessão entre a teoria culturalista e o direito penal. No enfrentamento da
criminalidade transnacional, o direito penal interno só funciona se for pensado
internacionalmente. Nesta direção, a importância da prevenção e da repressão
ao crime transnacional tem crescido em escala global.
Considerado pelas Nações Unidas como uma das principais ameaças à se-
gurança pública e entrave para o desenvolvimento social, econômico e político
das sociedades em todo o mundo, o crime organizado transnacional, enquanto
fenômeno multifacetado, manifesta-se em diferentes espécies. A criminalidade
organizada vem sendo influenciada pelo surgimento das novas tecnologias de
comunicação e de informação, com profundas transformações na vida de pes-
soas, sociedades e Estados. As tecnologias que possibilitam melhorias substan-
tivas nas vidas das pessoas, também, são utilizadas por aqueles que burlam as
leis, cometem crimes e desafiam a justiça.
Essas transformações apresentam diferentes desafios jurídico-penais, espe-
cialmente no que diz respeito à eficácia da persecução penal de crimes transfron-
teiriços. Neste campo, os desafios se ramificam em múltiplas formas de cooperação
judicial e policial que podem variar desde a escolha dos métodos de investigação a
serem utilizados1 até, mesmo, na criação de instrumentos capazes de impedir que
criminosos se aproveitem das disparidades entre legislações nacionais.

1 As medidas investigativas especiais incluem técnicas para coletar informações sistematicamente de


forma a não permitir que a pessoa-alvo saiba delas, tais como as seguintes: entregas controladas,
vigilância transfronteiriça; perseguição transfronteiriça; audição por videoconferência; interceptação
de telecomunicações; busca secreta de um sistema de computador; vigilância; e operações secretas,
conforme informações da Eurojust.

133
DIREITOS HUMANOS E VULNERABILIDADES

As disparidades entre legislações penais tornam-se responsáveis pela ne-


cessidade de aperfeiçoamento da cooperação judicial e policial internacional
pela via da harmonização legislativa. Além disso, o crime transnacional não
respeita fronteiras de nenhum país, sobretudo, quando é praticado para a lava-
gem de dinheiro; e por isso, a característica mais comum nos diversos lugares
em que ocorre consiste na sua complexidade. Toda essa realidade traz a possi-
bilidade do criminoso escolher a jurisdição mais favorável, sobretudo do ponto
de vista da legislação penal e processual penal.
A necessidade da harmonização penal surge, também, da consciência de
que o Estado não é autossuficiente e do fato de que o isolamento representa
retrocesso no combate ao crime. A intensificação da globalização e a integração
regional são fenômenos irreversíveis e, por isso, encontraremos desafios no
tocante ao controle do crescimento da criminalidade transnacional. Neste con-
texto, ressaltamos a importância deste estudo, no momento em que a harmo-
nização da legislação em matéria penal torna-se imprescindível para enfrentar
os novos desafios impostos.
Disto resulta que o problema gravitou em torno da busca pela eficácia da
persecução penal de crimes transnacionais. Este cenário exige um método ade-
quado que ofereça as condições para compreender a harmonização legislativa
enquanto instrumento de cooperação internacional. Contudo, as condições de-
senvolvidas não podem prescindir, neste caso, de uma discussão que assente
a norma jurídica sobre uma base teórica culturalista. A teorização do direito
penal, desde uma visão cultural, evidencia que as condições deontologicamen-
te associadas a mandamentos e proibições normativas não se identifica com o
processo de unificação jurídica.
Neste sentido, indagou-se: “Qual metodologia oferece as condições que
permitem a viabilidade do ideário da harmonização legislativa de modo a não
impor limites ou obstáculos artificiais aos ordenamentos jurídicos nacionais?
Ofertou-se, assim, uma solução ao problema formulado com a seguinte res-
posta preliminar: “Uma metodologia que identifique uma matriz comum a
todos os Estados baseada no respeito aos direitos humanos e, que considere a
pressuposição teórica de que as normatividades nacionais incorporam dados
culturais pode oferecer condições especiais para a realização da harmonização
da legislação penal para o combate ao crime transnacional.
O texto que se oferece à leitura divide-se em três momentos, a seguir, deta-
lhados em seus aspectos básicos. No primeiro momento, parte-se do pressupos-
to de que a proteção da pessoa humana é matéria comum à cooperação interna-
cional. Por isso, o artigo reconhece que a busca de uma resposta global para o
combate da criminalidade organizada transnacional pela via da harmonização
legislativa requer que, cada Estado seja o depositário fiel da proteção da pessoa

134
CLÁUDIO MACEDO DE SOUZA

humana enquanto valor universal. Neste aspecto, a harmonização da legislação


penal deve estar ligada, na sua essência, à garantia dos direitos humanos.
No segundo momento, ocupa-se, sob o argumento culturalista, dos fun-
damentos filosóficos do conceito de harmonização da normatividade penal.
Este momento servirá para negar a unificação jurídica, tendo em vista ser o
Direito Penal um dos aspectos da vida cultural.2 Supôs-se, então, que a meto-
dologia fundada no culturalismo-vitalista de Luís Recasens Siches, pode dar
consistência à hipótese de pesquisa.
O racio-vitalismo, enquanto ação intelectual que se coloca em contato
com a realidade da vida humana, corresponde às razões históricas e vitais
com as quais os valores passados e presentes de uma sociedade são enfoca-
dos. Neste sentido, o direito penal, fundado numa razão da vida humana, de-
verá considerar os valores indispensáveis ao homem em determinado espaço
e tempo. Este referencial teórico enfrenta os desafios das disparidades entre
legislações penais e atenta à diversidade das condições de cada sociedade nos
diferentes momentos históricos.
No terceiro momento, o debate sobre direitos humanos é retomado a par-
tir da relação entre a cooperação em matéria penal e os direitos fundamentais
na União Europeia. Paralelamente à democracia e ao Estado de direito, os di-
reitos humanos constituem, também, um dos três pilares do Conselho da Euro-
pa, sendo subscrito no preâmbulo da Convenção para a Proteção dos Direitos
Humanos e das Liberdades Fundamentais (CEDH).

2. A GARANTIA DOS DIREITOS HUMANOS NA PERSPECTIVA DA


COOPERAÇÃO INTERNACIONAL
A inclusão do direito penal na esfera internacional exige, como ponto de
partida, a discussão em torno da pessoa humana. A ideia de proteção impõe
o fortalecimento de uma consciência política de respeito a valores comuns da
humanidade. Legitimado pelos direitos humanos, a proteção da pessoa é prin-
cípio fortemente ligado à dignidade, à liberdade, à democracia e à igualdade.
O direito à proteção internacional da pessoa humana está respaldado nos
mais diversos documentos, como a Carta das Nações Unidas (24.10.1945), De-
claração Universal dos Direitos Humanos, (10.12.1948); Carta da Organização
dos Estados Americanos, (OEA 30.04.1948); Declaração Americana dos Direi-
tos e Deveres Humanos, (30.04.1948); Convenção Americana sobre Direitos
Humanos, (22.11.1969 – Promulgação), dentre outros.

2 Bettiol (1970, 23), no prefácio da segunda edição de sua obra, afirma que “a ideia do direito penal cor-
responder a uma concepção puramente platônica, e portanto situada fora do tempo e do espaço, ainda
se mantém viva no espirito de muitos penalistas, ao mesmo tempo em que deve ser tido em conta o
facto do direito peal ser um dos aspectos da vida cultural, e portanto da História de um povo.”

135
DIREITOS HUMANOS E VULNERABILIDADES

A Declaração Americana dos Direitos e Deveres Humanos foi aprovada


em abril 1948 na IX Conferência Internacional Americana realizada em Bogotá,
a mesma conferência em que foi criada a Organização dos Estados Americanos
(OEA- 30.04.1948). Historicamente, este foi o primeiro instrumento internacional
que declarou a proteção da pessoa humana, antecipando a Declaração Universal
dos Direitos Humanos, aprovada seis meses depois, (10.12.1948 – promulgação).
Entendida como um ato formal de solicitar a outro país alguma medida
judicial, investigativa ou administrativa necessária para enfrentar o crime, a
cooperação internacional, prevista nos referidos documentos, emerge como
garantia para assegurar a plena efetividade dos direitos da pessoa humana.
O enfrentamento da criminalidade, dentro de um cenário de intensifica-
ção das relações entre as nações e seus povos, demanda cada vez mais um Es-
tado colaborativo pela via da harmonização de leis. O enfrentamento do crime
transnacional não se processa mais dentro de um só Estado Soberano, pois é
necessário cooperar e pedir a cooperação de outros Estados para serem satis-
feitas as pretensões por justiça do indivíduo e da sociedade.

2.1. PROTEÇÃO DA PESSOA HUMANA NA ESFERA INTERNACIONAL


A Convenção Americana (1969) reconhece que os direitos essenciais do ho-
mem não derivam do fato de ser ele nacional de determinado Estado, mas sim
do fato de ter como fundamento os atributos da pessoa humana, razão por que
justificam uma proteção internacional, de natureza convencional, coadjuvante
ou complementar da que oferece o direito interno dos Estados americanos.3
A importância da Convenção está no estabelecimento do sistema inte-
ramericano de proteção da pessoa. Com a sistematização regional dos direi-
tos humanos na Europa, por meio da celebração da Convenção Europeia de
Direitos Humanos (1953), foi adotado também na América esta tendência,
tendo sido aprovada em 22 de novembro de 1969, a Convenção Americana
de Direitos Humanos.
Os princípios que servem de base para a Convenção Americana foram con-
sagrados inicialmente na Declaração Universal dos Direitos Humanos. Portanto,
obedeceu uma tendência de integração entre o sistema regional e o sistema uni-
versal de proteção da pessoa. O interessante é que a Convenção vai além ao afir-
mar que a proteção internacional da pessoa possui natureza convencional. E diz,
também, que a proteção possui natureza coadjuvante ou complementar. Mas, o
que significa proteção internacional de natureza coadjuvante ou complementar?
Significa que a proteção da pessoa é, em primeiro lugar, de responsabilidade dos

3 Consta do Preâmbulo da Convenção Americana que: “Reconhecendo que os direitos essenciais do ho-
mem não derivam do fato de ser ele nacional de determinado Estado, mas sim do fato de ter como funda-
mento os atributos da pessoa humana, razão por que justificam uma proteção internacional, de natureza
convencional, coadjuvante ou complementar da que oferece o direito interno dos Estados americanos.”

136
CLÁUDIO MACEDO DE SOUZA

países. Cada país tem o dever de proteger o seu nacional.4


O documento internacional diz, ainda, que a proteção da pessoa huma-
na possui natureza convencional; ou seja, os países signatários concordam em
proteger. Esta concordância revela a natureza cooperativa da proteção da pes-
soa, enquanto acordo de vontades para prestar auxílio (para colaborar) para
um fim comum. Portanto, a efetiva garantia do direito à proteção da pessoa
acontece em cooperação internacional.
A busca pela efetividade da proteção da pessoa tem sido realizada por
meio da incorporação de tratados e de convenções à ordem jurídica interna,
diante do principal desafio do direito penal em controlar a criminalidade
transnacional no cenário de legislações nacionais diferentes. Cite-se, por exem-
plo, quando o Brasil sinalizou o interesse em proteger a dignidade humana
ao tipificar penalmente o tráfico de pessoas para os mais diversos fins, dentre
eles para o fim de trabalho análogo à escravidão.5 A matéria já era disciplinada
em tratado internacional, conforme Protocolo Adicional à Convenção da ONU
contra o Crime Organizado relativo à prevenção, repressão e punição do tráfi-
co de pessoas, ratificado pelo Brasil e promulgado pelo Decreto 5.017/04.
Outro exemplo, é o instituto whistleblowing6 na proteção do sujeito de
boa-fé que leva às autoridades competentes informações as quais acredita ser
evidências de crime, conduta ímproba, violações de obrigações legais, riscos
específicos para a saúde pública, segurança ou meio ambiente, ou qualquer
outro assunto de relevante interesse público.7
E, diante do principal desafio, o direito penal em cooperação internacional
busca, também, a efetividade da jurisdição, nacional ou estrangeira. Todavia, a
efetividade da jurisdição vai depender do intercâmbio não apenas entre órgãos ju-
diciais, mas também entre órgãos administrativos, ou, ainda, entre órgãos judiciais
e administrativos de diferentes Estados. Cite-se, por exemplo, quando o Estado
brasileiro solicita ao Estado estrangeiro a entrega de pessoa contra a qual recaia
mandado de prisão decorrente de investigação, processo ou condenação criminal.
Chamamos este procedimento de extradição ativa. Ou então, de chama-

4 A Convenção Americana estabelece no artigo 2 o dever de adotar disposições de direito interno: “Se o
exercício dos direitos e liberdades mencionados no artigo 1 ainda não estiver garantido por disposições
legislativas ou de outra natureza, os Estados Partes comprometem-se a adotar, de acordo com as suas
normas constitucionais e com as disposições desta Convenção, as medidas legislativas ou de outra
natureza que forem necessárias para tornar efetivos tais direitos e liberdades.”
5 Houve a publicação, no dia 7 de outubro, da Lei 13.344/16, a chamada Lei de Tráfico de Pessoas.
6 O instituto do whistleblowing pode ser extraído da Convenção das Nações Unidas Contra a Corrupção.
Este documento assegura a proteção aos denunciantes de boa-fé e representa o interesse da comunida-
de internacional de delinear um acordo verdadeiramente global para a proteção do denunciante.
7 A Convenção das Nações Unidas Contra a Corrupção afirma no artigo 33 que: “Cada Estado Parte
considerará a possibilidade de incorporar em seu ordenamento jurídico interno medidas apropriadas
para proporcionar proteção contra todo trato injusto às pessoas que denunciem ante as autoridades
competentes, de boa-fé e com motivos razoáveis, quaisquer feitos relacionados com os delitos qualifi-
cados de acordo com a presente Convenção.”

137
DIREITOS HUMANOS E VULNERABILIDADES

mos de extradição passiva quando ocorre o contrário, em que o pedido de en-


trega é feito por Estado estrangeiro ao Estado brasileiro. A extradição é um
dos mais antigos procedimentos de cooperação jurídica internacional e, possi-
velmente, o mais incisivo. Orientado fortemente pelo princípio da justiça uni-
versal, tal instrumento visa a restringir a liberdade e a viabilizar a entrega de
pessoas que se encontrem fora das fronteiras de um Estado que as processa ou
as condenou criminalmente.
A realidade na União Europeia chama bastante atenção, porque a coope-
ração evoluiu devido ao avanço do processo de integração. Ademais, o grau de
confiança entre os Estados-membros com a aplicação do princípio do reconhe-
cimento mútuo de decisões judiciais promoveu uma diversificação de formas
de cooperação, dentre elas, o Mandado Europeu de Obtenção de Provas e o
Mandado de Detenção Europeu. Neste caso, o Mandado de Detenção Europeu
surgiu em substituição ao instituto da extradição.
Tratado que estabeleceu as Nações Unidas, a Carta da ONU tem como
propósito a cooperação internacional para a solução de problemas internacio-
nais de caráter econômico, social, cultural ou humanitário e também o respeito
pelos direitos humanos e pelas liberdades fundamentais para todos, sem dis-
tinção de raça, sexo, língua ou religião. Os direitos humanos possuem uma
dimensão interna, vinculada à ordem jurídica de cada país e, outra, externa,
vinculada ao direito internacional e com pretensões de universalidade. E, para
compreender a harmonização de leis interessa-nos desenvolver a dimensão ex-
terna (internacional) dos direitos humanos.
Ao reconhecer a cooperação internacional como fórum importante de de-
bate e de resolução de problemas comuns à humanidade, a Carta das Nações
Unidas lhe confere o status de dogmática dos direitos humanos e, por isso, a
harmonização legislativa deve receber dos direitos fundamentais os mais for-
tes impulsos. O Preâmbulo da Declaração Universal dos Direitos Humanos
reconhece que os Estados-Membros se comprometeram a promover, em coo-
peração com as Nações Unidas, o respeito universal aos direitos e liberdades
humanas fundamentais.8 Já a Carta da Organização dos Estados Americanos
reconhece a importância da cooperação interamericana para o desenvolvimen-
to integral no contexto dos princípios democráticos.9
A Declaração Universal dos Direitos Humanos, gerente dos interesses da
8 No Preâmbulo da Declaração Universal consta: “Considerando que os Estados membros se compro-
meteram a promover, em cooperação com a Organização das Nações Unidas, o respeito universal e
efetivo dos direitos do Homem e das liberdades fundamentais.”
9 O artigo 31 da Carta da OEA estabelece que: “A cooperação interamericana para o desenvolvimento
integral é responsabilidade comum e solidária dos Estados membros, no contexto dos princípios de-
mocráticos e das instituições do Sistema Interamericano. Ela deve compreender os campos econômi-
co, social, educacional, cultural, científico e tecnológico, apoiar a consecução dos objetivos nacionais
dos Estados membros e respeitar as prioridades que cada país fixar em seus planos de desenvolvimen-
to, sem vinculações nem condições de caráter político.”

138
CLÁUDIO MACEDO DE SOUZA

sociedade internacional, estabelece a proteção universal ao afirmar que, devido


à cooperação internacional, toda pessoa como membro da sociedade, tem direito
à segurança social e à realização dos direitos econômicos, sociais e culturais in-
dispensáveis à sua dignidade e ao livre desenvolvimento de sua personalidade.10
Ultrapassadas as teorias que colocavam indivíduos como simples ob-
jeto, a comunidade internacional vislumbrou a necessidade de reiterar o re-
conhecimento dos direitos fundamentais da pessoa humana após a Segunda
Guerra Mundial. A concretização e a multiplicação de normas internacionais
sobre as liberdades fundamentais consagram os indivíduos como verdadei-
ros sujeitos de direito, com atuação própria e autônoma perante diferentes
instituições internacionais.
Portanto, é legítima a exigência dos direitos humanos na construção de
uma legislação penal harmonizada como forma de barrar as violações de di-
reitos fundamentais, compromisso de aspiração moral cuja validade jurídica
e política na esfera internacional dependem da cooperação de cada Estado na
garantia da proteção da pessoa.
Relacionada à democracia, à justiça e à igualdade, a cooperação internacio-
nal é o espaço legítimo de reivindicações de liberdade e, desta forma, constitui-se
em uma ideia política e jurídica de base moral. Portanto, o ideário de cooperação
pela via da harmonização legislativa está legitimado pelos direitos humanos e
respaldado legalmente pelos mais diversos documentos internacionais.
No contexto da harmonização de leis penais, qualquer Estado tem por
obrigação legal que reconhecer o direito à proteção da pessoa, independente-
mente do sistema político e socioeconômico adotado. Portanto, o enfrentamen-
to da criminalidade organizada de forma isolada por cada Estado é o paradoxo
de uma sociedade impotente para superar o plano de um formalismo abstrato
da proteção da pessoa humana.
Para que a proteção da pessoa humana seja efetivamente garantida na
escala da cooperação internacional, será preciso que o paradigma clássico ba-
seado nas sociedades nacionais seja substituído pela sociedade global. A partir
dessa ideia, os conceitos clássicos de soberania e de hegemonia, ainda firme-
mente arraigados na doutrina política e jurídica das nações, deverão ser alte-
rados e novos horizontes deverão ser buscados para o desenvolvimento da
personalidade humana na esfera internacional.
Direito penal é matéria fortemente arraigada à soberania. Neste aspecto,
a soberania pode parecer um obstáculo intransponível para a concretização

10 Artigo 22° da Declaração Universal: “Toda a pessoa, como membro da sociedade, tem direito à segu-
rança social; e pode legitimamente exigir a satisfação dos direitos econômicos, sociais e culturais in-
dispensáveis, graças ao esforço nacional e à cooperação internacional, de harmonia com a organização
e os recursos de cada país.”

139
DIREITOS HUMANOS E VULNERABILIDADES

da cooperação, seja ela policial ou judicial. Entretanto, a identificação de uma


matriz comum a todos os Estados a partir dos direitos humanos possibilita um
aprofundado nível de cooperação em matéria penal.
A internacionalização dos direitos humanos é uma das mais importantes
questões da atualidade. Mas, é preciso acentuar que se as violações continuam
a existir, o problema não está na inexistência de tratados e de convenções, se-
não que, na necessidade de fazer funcionar mecanismos internacionais de coo-
peração, os quais ajudariam a dar consistência cada vez mais específica aos
direitos gerais e vagos contidos na Declaração Universal.
E, apesar da evidente constatação de desrespeito, é verdadeiro que os
ideais de universalidade dos direitos humanos defendidos pela Carta das Na-
ções Unidas e manifestados com a Declaração Universal dos Direitos Humanos
podem adquirir uma maior consistência por meio da harmonização legislativa.
O artigo reafirma que o desafio atual do direito penal não é apenas manter
o dogma da necessidade do enfrentamento do crime organizado transnacional
no cenário de legislações penais diferentes; mas, em realizar este enfrentamento
e, ao mesmo tempo, proteger concretamente os direitos humanos. Ademais, vi-
sando a garantia dos direitos humanos, a harmonização legislativa penal, para
além de enfrentar a criminalidade organizada transnacional, deverá no futuro
ampliar e melhorar a cooperação judicial e policial, levando os países a inves-
tigarem e julgarem as violações contra a espécie humana em caso de falha dos
sistemas nacionais, para garantir que a justiça prevaleça sobre a impunidade.
Enfim, presente nos mais diversos documentos, a recorrente e contínua
necessidade de cooperação impulsiona a construção e o desenvolvimento de
leis penais harmonizadas. Essas leis serão capazes de gerenciar interesses da
sociedade internacional destinados ao enfrentamento da criminalidade trans-
nacional, com vistas ao intercâmbio entre órgãos judiciais e administrativos e à
proteção da pessoa humana.

3. FUNDAMENTOS DO CONCEITO DE HARMONIZAÇÃO DA


NORMATIVIDADE PENAL
Atualmente, quando se pensa na formação de um bloco regionalizado,
a tomada de consciência do viver num mundo plural sustenta-se na luta en-
tre unicidade e harmonização. O ser humano tende a rejeitar o desconhecido,
talvez porque lhe cause temor. Ao ignorar uma cultura, luta para impor a sua
própria. Trata-se de depreciar, ou até mesmo em destruir a alheia, ao invés de
criar circunstâncias adequadas para que se estabeleça um diálogo positivo.
Em meio às frequentes transformações que ocorrem em cada sociedade
e à pluralidade cultural que permeia o direito, afirma-se que é necessário har-

140
CLÁUDIO MACEDO DE SOUZA

monizar e não unificar normas jurídicas. O ideário da harmonização legislativa


não é um produto da elaboração doutrinária, mas uma imposição de tratados
internacionais.11 Desvela-se, pois, que a abordagem deste tema é necessária e sua
moldura será complexa e, talvez, por isso, a produção do conceito possa ser útil.
Todavia, não basta uma construção conceitual, senão, também, uma in-
vestigação em relação ao seu próprio método; isto é, sobre qual caminho a ser
tomado para que essa ideia seja efetivada. Implica dizer que, a elaboração deste
estudo torna-se elemento de maior atenção e particular sistematização científi-
ca. Portanto, para a concretização da harmonização, é fundamental uma meto-
dologia que enfoque o jogo da normatividade penal sem cair no unilateralismo
danoso para a cooperação internacional.
Com base neste argumentos, pretende-se apresentar uma proposta meto-
dológica de acordo com os fundamentos da teoria culturalista-vitalista de Luís
Recasens Siches, foco central deste artigo. Mas, antes de examinar a face teó-
rica, sugere-se uma rápida introdução à terminologia para que sejam evitadas
interpretações ambíguas.
Em uma primeira análise, a palavra, do grego (harmonia), encerra a ideia de
“ajustamento” (Enciclopédia M. Internacional, 1976, 5.668); “concordância”, “arti-
culação”, interação (Henry C. Black, 1990, 718). Em latim (harmonia), tem o sen-
tido de “proporção entre as partes”, conciliação”, “acordo” (Lalande, 1993, 460).
A palavra é empregada com vários significados e essa multiplicidade de acep-
ções denuncia uma certa amplitude. Porém, é de todo conveniente não maximizar
questões meramente terminológicas; na verdade, os significados são análogos e
correlatos, porque exprimem a ideia de interação e expressam parte do conceito.
A harmonização não é apenas uma ideia. Se fosse assim, poderíamos con-
siderá-la apenas no aspecto formal. Juarez Freitas (1995, p. 23) afirma que o for-
malismo revela-se impróprio e arcaico, nada obstante, sua estimável contribui-
ção para a elaboração do sistema jurídico. Entretanto, a harmonização requer
concretude para o enfrentamento da criminalidade organizada transnacional.
Essa constatação sugere resposta apoiada na Teoria culturalista, a qual avalia
a normatividade penal sob uma valoração espaço-temporal. Assinala-se com
essa argumentação que, o conceito e a metodologia de harmonização da norma
penal são questões inseparáveis dos valores culturais.
Entende-se por cultura aquilo que é produzido diretamente pelo homem
para a satisfação de determinados interesses vitais, em atenção aos valores que

11 A exigência da harmonização legislativa surgiu com a constituição do Mercosul, por meio do Capí-
tulo I, artigo 1º, in fine, do Tratado de Assunção. A harmonização de leis penais na União Europeia
começou a ser estruturada nas disposições contidas no Tratado da União Europeia, (TUE, também
denominado “Tratado de Maastricht”). Com o Tratado de Amsterdam, o Tratado da União Europeia
foi modificado e a harmonização de leis penais na União Europeia começou a ganhar forma, especial-
mente em decorrência da reformulação promovida no Título VI do TUE.

141
DIREITOS HUMANOS E VULNERABILIDADES

já residem em uma sociedade de tempo e época definidos. Nessa dimensão


cultural, tanto o produto como a atividade está presente, sendo ambos, respec-
tivamente, aspectos estático e dinâmico da vida humana. Se, por exemplo, con-
sidera-se como produto cultural uma sinfonia ou uma teoria científica, serão
culturais também as atividades do compositor e do cientista.
As atividades assinaladas estão dirigidas à satisfação de interesses por
meio de produtos que se amoldam ou procuram amoldar-se aos valores de
um tempo e época, a saber, nos exemplos anteriores, na beleza e na verdade.
Todavia, os produtos não estão “vivos.” Eles não são propriamente vida cul-
tural, senão ações passadas que necessitam amoldar-se aos novos valores. Aos
produtos, Siches chamará de vida humana objetivada. Os produtos só podem
consistir numa peculiar forma de atividade pretérita, porque não são ideias
vivas, senão que sinais estáticos e objetivados.
Essas objetivações humanas são incapazes de transformar-se por si mes-
mas. Na verdade, são fotografias do passado e reveste-se de erro pensá-las
como se tivessem movimento próprio. Assim, a cultura é algo construído que
fica, tal como foi feita, em repouso; no entanto, à disposição dos seres huma-
nos, para que possa viver novamente através da ação dos tempos e dos lugares.
Em vista disso, quando o produto cultural é pensado novamente por outros
indivíduos, a ideia que antes estava em repouso, passa a requerer renovação,
correção, ou mesmo uma integral substituição por influência de novos valores.
À luz dessa teorização, a norma penal existe como depósito de valores
culturais, cujo legado está adaptado às aspirações das gerações passadas e pre-
sentes. À teoria da vida autêntica de Ortega e Gasset na qual Recasens Siches
se inspira fundamentalmente, mas não de modo exclusivo, é acrescida a ideia
da vida objetivada, quer dizer, a dimensão onde se situa a normatividade penal
e o bem jurídico tutelado.
Implica dizer que o bem jurídico fundamentado no culturalismo, encarna
sempre uma atividade humana – vida autêntica – convertida em pauta norma-
tiva – vida objetivada – apoiada pelo poder público. Importa assinalar que a
metodologia de harmonização da normatividade penal requer uma avaliação
da estrutura constitutiva do bem jurídico tutelado.
O bem jurídico tutelado possui uma estrutura constitutiva análoga à da
vida autêntica, afinal é seu produto. A sua estrutura tem, por consequente,
uma organização baseada nos afazeres humanos; é obra orientada por valores
culturais. Com isso, afirma-se que a harmonização da norma penal, obriga-
toriamente e sempre, demanda um acordo com os valores da vida autêntica
constitutivos do bem jurídico. Assim, o bem jurídico se define como patrimô-
nio objetivado pelo conjunto de regras de condutas ajustadas às circunstâncias
e aos valores compartilhados pelo homem de determinado lugar e época.

142
CLÁUDIO MACEDO DE SOUZA

Neste caso, as circunstâncias (fatos e contextos) e, também, os valores


exercem grande influência sobre a produção da norma jurídica. Na perspectiva
culturalista, o direito se transforma de acordo com as circunstâncias espaciais
e temporais associadas ao momento histórico. Nesse relato, há uma exigência
de trazer o momento histórico aos fundamentos da norma, porque ele afeta o
bem jurídico tutelado e, também, é importante para a instauração e revelação
dos valores de um lugar e de uma época.
Percebe-se, então, que a mera facticidade não fornece nenhum projeto
para a configuração do direito, porque a pauta normativa não deriva exclusi-
vamente da natureza fática das coisas. A norma traduz a expressão de como
deve realizar-se um determinado propósito ou interesse humano inspirado por
valores, levando-se em conta as circunstâncias espaço-temporais.
Em efeito, o culturalismo-vitalista não apenas explica as profundas
transformações na esfera do direito; mas, sobretudo, fornece uma interroga-
ção em torno dos valores que o compõe em cada lugar e época. Essa inter-
rogação em torno dos valores representa o fundamento da normatividade
inspirada por propósitos ou interesses, com os quais se deve construir a har-
monização da legislação penal.
Assim, a harmonização deve ser inspirada por interesses que se definem
de modo diferenciado em cada país, em meio ao mundo dos valores culturais
encarnados nos bens jurídicos protegidos pelas mais variadas ordens jurídico-
-penais. Embora as raízes grega e latina encerrem o significado de “interação”,
de “conciliação”, de “acordo”, dentre outros, o conceito de harmonização não
depende da etimologia da palavra; mas sim, das considerações valorativas pre-
sentes nas normas penais.
Neste sentido, a harmonização pode ser conceituada como instrumento
de interação de normas penais fundamentadas em valores construídos em de-
terminado momento histórico. Este conceito revela um método constituído nas
semelhanças e nas diferenças presentes nas normas, promove a aproximação
entre os sistemas jurídico-penais, respeita as particularidades de cada país e
elimina a unificação de leis.

3.1. CRÍTICA SOBRE A UNIFICAÇÃO DA LEGISLAÇÃO PENAL


A globalização e as integrações regionais potencializam a expansão e uma
certa universalização do direito.12 Segundo Sánchez (1999, p. 123), a globalização
e a integração supranacional constituem potências dessa tendência expansionis-
ta do direito penal, como forma de combater a delinquência organizada e de
conteúdo econômico. Mas, apesar do acerto desta afirmação, a tendência expan-
12 Segundo Blanquer (2000, p. 148): “Os Estados da América Latina contemporânea encontram-se dian-
te de um duplo movimento: de um lado, uma certa universalização do direito (a qual podemos ver
como tradução jurídica da globalização); de outro, uma certa expansão do direito.

143
DIREITOS HUMANOS E VULNERABILIDADES

sionista deve rechaçar qualquer caminho que constitua uma regulação invariá-
vel e universal para todas as épocas e lugares e para todas as situações históricas.
Por isso, nada mais oportuno e acertado do que começar a crítica à unifi-
cação em seu ideal jurídico, com algumas palavras de Tiedemann (1998, p. 7-8)
dedicadas a este tema. Ele afirma que o direito penal se apresenta como direito
político, com forte vinculação à tradição e à consciência de determinados va-
lores. Para o autor, sobre toda a parte especial do direito penal apresentam-se
valores e atitudes valorativas de uma sociedade.
Certamente, as normas que compõem as ordens jurídicas dos países pos-
suem aspectos semelhantes. Mas, não se pode ignorar as diferenças. Neste
caso, é improvável a existência de uma legislação unificada, a menos que as
especificidades de cada normatividade fossem anuladas. Pode-se reconhecer
facilmente o sentido da unificação a partir, por exemplo, do significado da pa-
lavra “natureza”, mas não a partir da cultura.
Nos vários significados da palavra “natureza”, especialmente em sua for-
ma adjetiva “natural”, reside aquele correspondente à ideia do “exato” e do
“único”. Quando se diz um ordenamento “natural”, não se pensa em uma or-
dem baseada na vontade humana, senão dada por si mesma e de algum modo
objetiva; ou seja, independente do querer humano subjetivo.13
Natural encerra a ideia de unicidade ou de exato. Assim, a teoria do di-
reito natural não comporta nenhuma diferença entre ordem jurídica exata e
ordem jurídica única. O direito é obra humana e, por isso, não é artificial e nem
tampouco natural. Mas, a ideia de unicidade também pode ser extraída da teo-
ria de Hans Kelsen para quem só é direito, o direito positivo como norma pura,
desvinculada de qualquer conteúdo. Ao excluir o ser do direito, esclarece tão-
-somente a lógica formal do dever-ser, suas estruturas possíveis e as conexões
com dois mundos incomunicáveis.
Desta maneira, a teoria pura não pode ocupar-se dos conteúdos sociais e
nem das vicissitudes históricas. Estuda exclusivamente as formas e, a partir de-
las não é possível dar efetividade à harmonização legislativa. As normas puras
não são “vazias”; elas têm seu próprio conteúdo, mas este só pode ser ideal,
e não cultural. Na teoria pura não é a cultura que lhe serve de sentido, mas o
dedutivismo, consistente na unificação de um conjunto de formas penais. Esta
teoria só pode integrar o debate estéril enfocado na ideia única, contrário ao
discurso favorável à harmonização.
O culturalismo-vitalista é a chave necessária para desarticular criticamen-
te, postulações de um direito penal com ênfase na unificação. Essa visão delega
à época e ao lugar históricos a gestação da norma; por isso, a unificação de leis

13 Neste sentido, afirma Kelsen (1946, p.17)

144
CLÁUDIO MACEDO DE SOUZA

afeta o direito penal naquilo que possui de mais relevante: os valores culturais.
A unicidade só pode partir de uma força unilateral, como se fosse um nexo
de causalidade, cuja causa é elemento produtor do efeito. O efeito produzido é
inerte e, depende por inteiro da causa. A unificação legislativa é pura ficção e
não pode funcionar, porque permanece fora da cultura e à margem dos valores.
O enfrentamento da criminalidade transnacional pela via da harmoniza-
ção legislativa deve afirmar a dependência entre norma penal e valores – em
sua simultaneidade e sucessão – sem estabelecer, porque não pode fazer, vin-
culações unilaterais. A necessidade de enfrentar o crime dentro de um merca-
do comum, como é o caso do Mercosul e da União Europeia, não pode apresen-
tar-se regionalmente pela via da unificação legislativa a pretexto de elaborar
um direito penal uniformizado entre os Estados-membros.

4. COOPERAÇÃO PENAL E OS DIREITOS FUNDAMENTAIS NA


UNIÃO EUROPEIA
A resistência em estabelecer a cooperação em matéria penal é compreen-
sível, uma vez que o direito penal, fortemente influenciado por elementos cul-
turais de cada região, é entendido como ultima ratio. Não obstante essa cons-
tatação, a crescente preocupação com a organização criminosa transnacional
influenciou fortemente a inclusão da cooperação penal na agenda internacio-
nal. Campo sensível aos interesses democráticos, a cooperação penal afeta di-
retamente os direitos e as liberdades dos cidadãos; e, por esta razão, os direitos
humanos devem ser especialmente fortalecidos.
A Convenção Europeia de Extradição, de 1957, foi o marco inicial de uma
cooperação em matéria penal entre países integrantes do Conselho da Europa.
Mas, o Acordo de Schengen, de 1985, foi importante precedente para o que
viria a ser a cooperação em assuntos penais dentro da União Europeia, porque
instituiu novos parâmetros na livre circulação de pessoas, sendo posteriormen-
te incorporado ao Tratado da União Europeia.
A liberalização na circulação de pessoas trouxe como consequência a ne-
cessidade de ampliar a cooperação penal entre os Estados-membros da União
Europeia. O Ato Único Europeu, de 1987, implantou novas dimensões no pro-
cesso de integração devido à proposta de um mercado interno sem barreiras.
Já, a relação entre cooperação penal e direitos fundamentais não era ex-
plícita desde a criação da Comunidade Europeia (EURATOM, CECA e CEE),
originalmente criada como uma organização internacional dotada de compe-
tência de natureza essencialmente econômica. Em decorrência desta competên-
cia, regras explícitas relativas aos direitos fundamentais durante muito tempo
não constaram em tratados.

145
DIREITOS HUMANOS E VULNERABILIDADES

Entretanto, o respeito aos direitos fundamentais foi garantido pela Con-


venção Europeia para a Proteção dos Direitos Humanos e das Liberdades Fun-
damentais (CEDH) de 1950, da qual os Estados-Membros eram signatários. Prin-
cipal instrumento de proteção dos direitos fundamentais na Europa, a adesão
de todos os Estados-Membros à CEDH afigurou-se uma solução lógica para a
necessidade de vincular a Comunidade Europeia aos direitos fundamentais.
Com o impacto direto nos direitos fundamentais produzido pelo alarga-
mento progressivo da cooperação penal, tratados foram alterados para vincu-
lar explicitamente a União Europeia à sua proteção. Ao instituir a União Eu-
ropeia, o Tratado de Maastricht incluiu uma referência à CEDH e às tradições
constitucionais comuns dos Estados-Membros enquanto princípios gerais do
direito; e, o Tratado de Amsterdam afirmou os “princípios” em que a União
Europeia deveria alicerçar-se.
Com a entrada em vigor do Tratado de Amsterdam, a antiga cooperação
nos âmbitos de justiça e assuntos internos passou a denominar-se cooperação
policial e judicial em matéria penal. Deste modo, consolidou-se a ideia de um
espaço europeu de liberdade, segurança e justiça, fazendo com que se atingisse
um novo nível para além do objetivo único de integração econômico-comercial.
Neste sentido, o Conselho Europeu afirmou alguns princípios que de-
veriam orientar o desenvolvimento da União Europeia, como o reconheci-
mento mútuo de decisões judiciais e a cooperação em matéria de combate à
criminalidade e, também foi decidida a criação da Eurojust.14 Com o Tratado
de Amsterdam, foram introduzidos novos instrumentos jurídicos de atuação
da União Europeia, como por exemplo, as decisões-quadro as quais visavam
harmonizar as legislações.15
De forma a facilitar o reconhecimento mútuo e a cooperação em matéria pe-
nal, prevê-se igualmente, em diversos domínios, a harmonização das legislações
dos Estados-Membros.16 No artigo 82.º, n.º 2, do TFUE – Tratado de Funcionamento
da União Europeia, estabelece-se a possibilidade de, mediante diretivas, adotar-se
regras mínimas incidentes sobre diversos elementos do processo penal.
Pelo artigo 83º do TFUE, embora, a harmonização legislativa do direito
penal substantivo não esteja expressamente associada à cooperação, a adoção
de regras mínimas também contribui, obviamente, para a cooperação judiciá-
ria. Ao abrigo da referida disposição do artigo 83º, já foram, entretanto, adota-

14 A Eurojust é um organismo da União Europeia criado em 2002 para estimular e melhorar a coordenação
entre as autoridades judiciárias dos Estados-Membros da União Europeia competentes para a investigação
e o exercício da ação penal relacionados com a criminalidade grave organizada de natureza transnacional.
15 Conforme artigos 29.º; 31.º, n.º 1, alínea e; 34.º, n.º 2, alínea b, todos do Tratado da União Europeia,
na versão conferida pelo Tratado de Amsterdam.
16 Conforme artigo 82 da TFUE: “1. A cooperação judiciária em matéria penal na União assenta no princí-
pio do reconhecimento mútuo das sentenças e decisões judiciais e inclui a aproximação das disposições
legislativas e regulamentares dos Estados-Membros nos domínios a que se referem o nº 2 e o artigo 83º.”

146
CLÁUDIO MACEDO DE SOUZA

das inúmeras diretivas, dentre elas, a Diretiva (UE) 2018/1673 do Parlamento


Europeu e do Conselho de combate à lavagem de dinheiro por organizações
criminosas por meio do direito penal.
O Tratado de Lisboa criou o artigo 6.º, n.º 2, que prevê a adesão obrigató-
ria da União Europeia à CEDH.17 Isto significava que, como já acontecia com os
Estados-Membros, a União Europeia passaria a estar subordinada aos direitos
fundamentais e ao controle por uma entidade jurídica “externa”, designada-
mente o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH).
Esta adesão permitiu aos cidadãos, mas também aos nacionais de paí-
ses terceiros presentes no respetivo território, impugnar diretamente perante o
Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, com base nas disposições da CEDH,
os atos jurídicos adotados pela União Europeia nas mesmas condições que os
atos jurídicos dos Estados-Membros.
Paralelamente ao mecanismo de controle “externo” previsto pela adesão
à CEDH para garantir a conformidade da legislação e das políticas com os
direitos fundamentais, foi criado um mecanismo “interno” para permitir um
controle judicial prévio e autônomo do TJUE – Tribunal de Justiça da União Eu-
ropeia. Nesta direção, idealizaram uma Carta de direitos específicos da União
Europeia; e, no Conselho Europeu de 1999, em Colônia, foi decidido convocar
uma Convenção para elaborar uma Carta dos Direitos Fundamentais.
Em 2009, com o efeito jurídico dado pelo Tratado de Lisboa à Carta dos
Direitos Fundamentais da União Europeia, o documento tornou-se um catálogo
codificado dos direitos fundamentais contra o qual os atos jurídicos da União
Europeia podem ser julgados.18 Portanto, a Carta dos Direitos Fundamentais e a
sua entrada em vigor, juntamente com o Tratado de Lisboa (“valores”, tal como
elencados no artigo 2.º do TUE – Tratado da União Europeia),19 foram os últimos
documentos destinados a assegurar a proteção dos direitos fundamentais.
Mas, também, foi criado mecanismo de sanções para assegurar que os
direitos fundamentais fossem respeitados.20 Isso significou conferir à União Eu-

17 Artigo 6º do TUE 2. A União adere à Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos do Homem e
das Liberdades Fundamentais. Essa adesão não altera as competências da União, tal como definidas
nos Tratados.
18 Os atos jurídicos da União, enumerados no artigo 288.º do TFUE – Tratado sobre o Funcionamento
da União Europeia, são os seguintes: regulamentos, diretivas, decisões, recomendações e pareceres.
As instituições da União apenas podem adotar estes atos jurídicos se uma disposição dos Tratados lhes
conferir poder para tal. O princípio da atribuição, que rege a delimitação de competências da União,
está expressamente consagrado no artigo 5.º, n.º 1, do TUE.
19 Artigo 2º do TUE afirma que: “A União funda-se nos valores do respeito pela dignidade humana, da
liberdade, da democracia, da igualdade, do Estado de direito e do respeito pelos direitos do Homem,
incluindo os direitos das pessoas pertencentes a minorias. Estes valores são comuns aos Estados-Mem-
bros, numa sociedade caracterizada pelo pluralismo, a não discriminação, a tolerância, a justiça, a
solidariedade e a igualdade entre homens e mulheres.”
20 O Tratado de Amsterdam criou um procedimento para suspender os direitos consignados nos tratados
em caso de violações graves e persistentes dos direitos fundamentais por um Estado-Membro.

147
DIREITOS HUMANOS E VULNERABILIDADES

ropeia competência para intervir em domínios deixados, de outro modo, ao


critério dos Estados-Membros, em situações de violação grave e persistente.
Neste sentido, surgiu uma fase preventiva no artigo 7º, n.º 1 do TUE auto-
rizando o início de um procedimento mediante o qual o Conselho pode deter-
minar a existência de um risco manifesto de violação grave, num Estado-Mem-
bro, dos valores da União Europeia proclamados no artigo 2.º do TUE, que
incluem o respeito dos direitos humanos, da dignidade humana, da liberdade
e da igualdade e os direitos das pessoas pertencentes às minorias.21
Sem prejuízo de outros instrumentos para a proteção dos direitos funda-
mentais,22 é imperioso destacar que, para complementar a fase preventiva previs-
ta no artigo 7º, n. 1, do TUE,23 a Comissão lançou, em 2014, um “novo quadro da
UE para reforçar o Estado de Direito.” Este quadro visa garantir uma proteção
eficaz e coerente do Estado de Direito, condição indispensável para assegurar o
respeito dos direitos fundamentais em situações de ameaça sistêmica.
Ao permitir que a Comissão encontre uma solução junto ao país envolvi-
do, o quadro objetiva evitar o surgimento de uma ameaça sistêmica ao Estado
de direito no Estado-Membro que possa vir a tornar-se num “risco manifesto
de violação grave”, na acepção do artigo 7.º do TUE, o que exigiria o lançamen-
to dos mecanismos previstos nesse artigo.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A inclusão dos direitos humanos como matriz comum no processo de har-
monização da legislação surge como pedra angular da cooperação em matéria pe-
nal. Essa tomada de decisão preserva o diálogo e a argumentação em torno da pes-
soa humana visando a negociação ampla entre os interlocutores, os quais deverão
harmonizar as disposições legais em conformidade às particularidades culturais
de cada Estado. Ademais, a consideração dos dados culturais da normatividade de
cada país favorece a preservação do espaço dos Estados e, parte da premissa que
todos têm igual importância no jogo da harmonização legislativa.
A metodologia proposta requer respeito à cultura alheia no processo de
harmonização da legislação penal e reivindica um direito penal uniformizado
21 Artigo 7º do TUE afirma que: “1. Sob proposta fundamentada de um terço dos Estados-Membros,
do Parlamento Europeu ou da Comissão Europeia, o Conselho, deliberando por maioria qualifica-
da de quatro quintos dos seus membros, e após aprovação do Parlamento Europeu, pode verificar a
existência de um risco manifesto de violação grave dos valores referidos no artigo 2º por parte de um
Estado-Membro. Antes de proceder a essa constatação, o Conselho deve ouvir o Estado-Membro em
questão e pode dirigir-lhe recomendações, deliberando segundo o mesmo processo.”
22 Em julho de 2019, a Comissão deu um novo passo na sua comunicação intitulada “Reforçar o Estado
de direito na União: Plano de ação” e lançou um ciclo de análise do Estado de Direito, que inclui um
relatório anual sobre o Estado de Direito que acompanha a situação nos Estados-Membros no atinente
ao Estado de Direito, o qual constitui a base do diálogo interinstitucional.
23 O artigo 7.º, n.º 2 e 3, do TUE prevê que, em caso de «existência de uma violação grave e persistente»
dos valores da UE, possa ser acionado pela Comissão ou por um terço dos Estados-Membros (e não
pelo Parlamento) um «mecanismo de sanções», após o Estado-Membro em causa ter sido instado a
apresentar as suas observações.

148
CLÁUDIO MACEDO DE SOUZA

que aceite e que eleja valores de cada normatividade nacional a partir da his-
toricidade que a transforma e renova. Trata-se daquilo que se poderia intitular
de concepção intercultural do direito penal, do latim o prefixo “inter” denota
separação, espaço e reciprocidade. “Interculturalismo” está relacionado a qual-
quer coisa que liga conjunto ou separadamente duas ou mais culturas, mas
sem nenhuma referência delas no mesmo espaço.24
Entretanto, o controle do processo de harmonização pelos direitos huma-
nos indica que não se deve aceitar e eleger qualquer produto alienígena, mas
reivindica-se pensar criticamente em relação à própria cultura e às outras. O
que se deve respeitar delas é o nível de enfrentamento e sua historicidade que
as levam adiante, e não a homogeneidade.
Enfim, a metodologia constituída na teoria culturalista do direito penal
tem lastro no quadro jurídico da União Europeia cuja harmonização vem sen-
do utilizada para denominar a aproximação de leis entre Estados-membros.
Contudo, é preservada uma parcela de autonomia de cada parte para adaptar
as disposições acordadas ao direito doméstico em conformidade às particulari-
dades de seu ordenamento jurídico interno.
Na União Europeia, a harmonização é um instrumento usual que tem
como um de seus principais objetivos a eliminação ou a redução de diver-
gências legislativas entre diferentes Estados-membros. Na medida em que
a harmonização seja necessária para facilitar o reconhecimento mútuo das
sentenças e decisões judiciais e, também, a cooperação policial e judiciária
nas matérias penais, com dimensão transfronteiriça, o Parlamento Europeu e
o Conselho, por meio de diretivas adotadas de acordo com o processo legis-
lativo ordinário, podem estabelecer regras mínimas.
Essas regras mínimas têm em conta as diferenças entre as tradições e
os sistemas jurídicos dos Estados-Membros, conforme consta do artigo 82º
n. 1 do TFUE – Tratado de Funcionamento da União Europeia. A internacio-
nalização e o aumento da sofisticação do crime exigem que as autoridades
policiais, os investigadores judiciais e outros profissionais recorram a uma
gama crescente de ferramentas.
Para o efeito, as autoridades da União Europeia têm procurado fortalecer
o Estado de direito como forma de garantir o respeito pela democracia e pelos
direitos fundamentais. Não pode haver democracia, nem respeito pelos direi-
tos fundamentais sem o respeito pelo Estado de direito e vice-versa. Os direitos
fundamentais só são eficazes se puderem ser invocados perante os tribunais. A
proteção da democracia é assegurada se o sistema judicial, nomeadamente os
tribunais constitucionais, puder desempenhar o seu papel essencial de garantir
os direitos fundamentais.

24 Neste sentido Karnoouh, (1998, p. 119).

149
DIREITOS HUMANOS E VULNERABILIDADES

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tps://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004-2006/2004/Decreto/D5017.htm Acesso em: 15.10.2020.
UNODC. Declaração Universal dos Direitos Humanos. Disponível em https://www.oas.org/dil/
port/1948%20Declara%C3%A7%C3%A3o%20Universal%20dos%20Direitos%20Humanos.pdf
Acesso em: 10.10.2020.

150
NEOLIBERALISMO E A SITUAÇÃO DOS REFUGIADOS:
O PROBLEMA DA INEFETIVIDADE DOS DIREITOS
HUMANOS
Luana Renostro Heinen
Marcel Mangili Laurindo

Sumário: 1. Introdução; 2. Neoliberalismo, financeirização, Estado e liber-


dade de circulação; 3. O refugiado é um conceito-limite; 4. Os paradoxos
da Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão francesa de 1789; 5. Um
novo desafio: os Direitos Humanos nas vestes da política; 6. Considerações
finais; 7. Referências.

1. INTRODUÇÃO
O literato austríaco, Stefan Zweig estava em solo inglês quando, em 1939, a
Inglaterra declarou guerra à Alemanha – que, por sua vez, havia anexado a Áus-
tria em 1938. Aos olhos dos ingleses, o escritor austríaco era, assim, um alemão:
Da noite para o dia, eu caíra um degrau, mais uma vez. Na véspera ainda
um hóspede estrangeiro e, de certo modo, um gentleman que ali gastava
o seu salário internacional e pagava impostos, eu me tornara emigrante,
um refugee. Caía para uma categoria inferior [...]. Além disso, precisava
fazer um requerimento especial para cada visto estrangeiro naquela folha
branca de papel, pois todos os países tinham desconfiança contra a “espé-
cie” de gente à qual eu pertencia agora, contra o indivíduo sem direitos,
apátrida, que não podia ser deportado e devolvido à sua pátria como os
outros caso se tornasse incômodo e ficasse muito tempo no país. E eu sem-
pre precisava me lembrar das palavras que, anos antes, me dissera um
russo exilado: “Antigamente, a pessoa só tinha um corpo e uma alma. Hoje
ainda precisa ter um passaporte também, caso contrário não será tratada
como gente” (ZWEIG, 2014, p. 362).
Zweig narra sua experiência em um contexto de guerra entre os países,
em que os próprios indivíduos passam a encarar o ódio que alimentava essa
batalha, assim, sua vinculação à Áustria o tornava um refugiado, um apátrida,
um problema para a Inglaterra. As condições políticas mudaram enormemen-
te, no entanto, seu relato chama a atenção para algo se ampliou desde então – a
multiplicação das barreiras entre os países, o crescimento do sentimento de
ódio ao estrangeiro, o controle biopolítico que, dali em diante, tornar-se-ia uma
arma cada vez mais utilizada pelos Estados e, de quebra, desnuda o fantasma-
górico estatuto do refugiado.
Visionário, Stefan Zweig antecipou, com sua escrita melíflua, um debate

151
DIREITOS HUMANOS E VULNERABILIDADES

denso a respeito das contradições que estruturam as práticas e mesmo o dis-


curso dos Direitos Humanos: sob o signo da Modernidade, um homem nada é
se não for, antes de tudo, um cidadão.
Iniciamos o texto explorando as mudanças ocorridas mundialmente a
partir dos anos de 1970 que caracterizam que o neoliberalismo e conduziram a
um capitalismo cada vez mais financeirizado e desregulado globalmente, com
trânsito livre de capitais, em oposição às barreiras impostas à livre circulação
de pessoas. No contexto de globalização econômica, a regulamentação jurídica
estatal perde espaço para regras que emergem dos próprios atores econômicos
e cuja validade é avaliada a partir de sua efetividade.
Os Direitos Humanos como universais já nascem na fronteira da afirma-
ção do Estado nação, pois se reivindicam para além da nacionalidade, mas a
efetividade desses direitos, ainda que de forma limitada somente se encontra
nas fronteiras do Estado. No âmbito internacional, assim, o alcance desses di-
reitos tende a diminuir na mesma proporção em que as barreiras para a circu-
lação econômica vão se desfazendo. Apresentamos como o refugiado pode ser
entendido como um conceito-limite, como explica Giorgio Agamben, sem a
proteção do Direito Nacional e também do Universal. Voltamos às origens des-
ses direitos universais, na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de
1789 para explorar as contradições iniciais do surgimento desses direitos com
a cisão entre o cidadão e o homem, sendo a afirmação do estrangeiro base da
constituição da ideia de nação. Diante de sua ausência de efetividade, explo-
ramos com Jacques Rancière e Costa Douzinas, o caráter político dos Direitos
Humanos que sob a afirmação do princípio da igualdade possibilitam questio-
nar a ordem policial e as fronteiras definidas da sociedade.

2. NEOLIBERALISMO, FINANCEIRIZAÇÃO, ESTADO E LIBERDADE


DE CIRCULAÇÃO
O neoliberalismo pode ser tido como modelo político e econômico de
nosso tempo. O que é o neoliberalismo, porém, não é algo simples de se res-
ponder. O amplo uso do termo fez com que ele se adquirisse múltiplos signi-
ficados, entre monetarismo, neoconservadorismo, Consenso de Washington e
reforma de mercado (cf. BOAS, GANS-MORSE, 2009). Ainda que hoje o termo
tenha adquirido conotações negativas no espaço político, ele foi cunhado ainda
nos anos 1938 pelos participantes do Colóquio Walter Lippmann, em Paris. O
evento terminou com a intenção de construir um Centro Internacional de Es-
tudos, que se deu em 1947, com a criação da Sociedade de Mont-Pèlerin com a
missão de disseminar o pensamento anti-coletivista na sociedade.
Essa visão de mundo se manifestou de formas diferentes:
Ordoliberais de Freiburg, Escola Austríaca, Escola de Chicago e represen-

152
LUANA RENOSTRO HEINEN – MARCEL MANGILI LAURINDO

tantes da London School of Economics e da Manchester School compar-


tilhavam a mesma utopia de livre mercado e a mesma posição contrária
ao intervencionismo econômico e ao planejamento estatal centralizado
(keynesiano, socialista ou desenvolvimentista), mas não tinham opinião
comum sobre o papel legítimo do Estado, sobre as diretrizes de política
econômica ou sobre a experiência fracassada do laissez-faire do século XIX
(ANDRADE, 2019, p. 2012).
Nesse texto, entendemos como neoliberalismo, uma nova dinâmica da
economia mundial que começa a se implementar principalmente a partir dos
anos de 1970, mas com diferenças em cada país conforme seus aspectos con-
junturais e posições nas relações econômicas internacionais. Segundo David
Harvey (2012), adoção de políticas econômicas neoliberais foi uma resposta à
crise da década de 1970, um modo de restaurar as condições da acumulação do
capital e o poder das elites econômicas.
Harvey (2012, p. 25) apresenta inúmeros dados para atestar a queda do
controle da riqueza pelo 1% mais rico da população norte-americana em 1970
com o colapso dos ativos de ações, imóveis e poupança. Além disso, afirma que
as políticas neoliberais foram bem sucedidas em recobrar o poder de riqueza
da parcela mais rica da população e em aumentar a desigualdade1.
Harvey (2012) identifica, ainda, que houve um grande aumento da finan-
ceirização de tudo e o mundo das finanças aprofundou seu domínio sobre ou-
tros setores da economia e sobre o Estado2. Esse aumento da financeirização
como característica da economia globalizada neoliberal é o elemento que parti-
cularmente nos interessa, tendo em vista seus efeitos sobre o Estado e os direi-
tos humanos. Segundo António José Avelãs Nunes (2003, p. 83) cria-se um mer-
cado único de capitais que tem como uma de suas principais características3 a
desregulamentação iniciada nos anos 1970 e completada nos anos de 1990.
Esse fenômeno está diretamente ligado a outro, de ordem cultural, ideo-
lógica e filosófica, a globalização. Largamente estudado por geógrafos, econo-
mistas e historiadores é multifacetada e requer análise aprofundada para me-
lhor compreensão, mas que pode ser identificada como o “ápice do processo de

1 “Depois da implementação de políticas neoliberais no final dos anos 1970, a parcela da renda nacional
do 1% mais rico dos Estados Unidos disparou, chegando a 15% (bem perto do seu valor pré-Segunda
Guerra Mundial) perto do final do século. O 0,1% mais rico dos Estados Unidos aumentou sua parcela
da renda nacional de 2% em 1978 para mais de 6% por volta de 1999, enquanto a proporção entre a
compensação mediana dos trabalhadores e o salário dos CEOs (Chief Executive Officer) passou de
apenas 30 para 1 em 1970 a quase 500 para 1 por volta de 2000.” (HARVEY, 2012, p. 25).
2 “Assim, um dos núcleos substanciais da ascensão do poder de classe sob o neoliberalismo reside nos
CEOs, os principais operadores do conselho de administração, e nos líderes dos aparatos financeiros,
legais e técnicos que cercam a quintessência da atividade capitalista. Mas o poder dos verdadeiros
proprietários do capital, os acionistas, foi um tanto diminuído” (HARVEY, 2012, p. 42).
3 Nunes aponta também como outras características: a desintermediação, pois os grandes investidos
institucionais passam a ter acesso direto aos mercados financeiros de todo o mundo, sem custos de in-
termedição e a descompartimentação, que é a perda de autonomia de vários mercados que antes eram
separados e passam a ser um só (nacional e mundialmente) (NUNES, 2003, p. 83).

153
DIREITOS HUMANOS E VULNERABILIDADES

internacionalização do mundo capitalista” (SANTOS, 2001, p. 23). No terreno


da economia podemos encontrar a chave de sua compreensão e estratégia de
projeção (NUNES, 2003, p. 81).
Segundo Hespanha (2009, p. 427-447), a globalização e as diásporas ge-
ram mutações constantes que surtem efeitos também no Estado e no Direito: o
Direito tipicamente legislativo abre espaço, se retira em nome de uma regula-
ção feita pelos próprios agentes do mercado4. O Estado perde protagonismo,
principalmente pelas características do seu direito avesso a prática e ossifica-
do. O ordenamento se assemelha mais a uma rede cujas normas provém de
diferentes centros normativos do que uma pirâmide como é sua acepção tra-
dicional. Um problema dessas novas normas é não dispõem de publicidade e
transparência, o que impede qualquer questionamento quanto a sua “constitu-
cionalidade”. A sua constitucionalidade se resumiria a sua efetividade, ou seja,
por funcionarem independente da fonte da qual provenham.
Enquanto há circulação livre de capitais e uma normatividade diferen-
ciada, produzida pelas próprias empresas (como explicado por HESPANHA,
2009), de outro lado diversas barreiras se colocam à livre circulação de pessoas:
“Mas essa liberdade já não se aplica aos trabalhadores. Quanto a estes, os gran-
des centros imperiais procuram barricar-se nas suas fortalezas armadas para
evitar uma nova invasão dos ‘bárbaros’.” (NUNES, 2003, p. 81).
A contradição é evidente: o capital tem cada vez mais liberdade de cir-
culação, enquanto as pessoas não podem se deslocar livremente. Mesmo com
esses impedimentos, no entanto, cada vez mais há deslocamento de pessoas
de um país para outro, fugindo de guerras, conflitos e na busca de melhores
condições econômicas de vida em um mundo cada vez mais desigual5. Segun-

4 Hespanha (2009, p.428-432) explora as novas características do direito, nesse mundo globalizado.
Segundo ele: organizações internacionais institucionalizadas como Organização Mundial do Comér-
cio tem função reguladora; empresas e organizações informais também assumem função reguladora
(dados sobre a totalidade da economia que essas empresas representam demonstram sua importância
– entre um quinto e um quarto de toda produção mundial está nas mãos de empresas transnacionais);
o mundo se configura como um lugar de unidades econômicas que são também centros de poder; o di-
reito proveniente dos tratados não consegue acompanhar as rápidas mutações das relações comerciais:
defende-se muitas vezes uma maleabilidade de princípios face ao direito “rígido”.
5 Duas pesquisas atuais são muito importantes na caracterização do aumento da desigualdade: de um
lado a obra do economista francês Thomas Piketty que demonstrou que a economia de mercado não
tende à igualdade, mas que os rendimentos de quem já tem riqueza tendem a ser maiores do que o
crescimento da economia: aqueles que vivem de renda vão ganhar muito mais do que aqueles que
vivem do trabalho. Assim, sem intervenção governamental para realizar redistribuição, a tendência
é o aumento cada vez maior da desigualdade. De outro lado, a obra do economista sérvio Branko
Milanovic mostra as desigualdades entre os países que, no contexto de globalização tem seus ganhos
e perdas diretamente relacionados com o que acontece de forma mais ampla na economia mundial.
Como explica Marcelo Medeiros: até a Revolução Industrial o mundo era mais ou menos homogêneo,
houve grande crescimento das diferenças entre países ricos e pobres entre 1820 e 1970, considerado o
pico da desigualdade. A partir de então houve significativo crescimento dos países asiáticos: “As mu-
danças nas últimas décadas na desigualdade entre os países acabaram afetando a desigualdade dentro
dos países. A Ásia absorveu, nesse período, boa parte da produção industrial do mundo. A América
do Norte e a Europa ficaram com o controle dos sistemas financeiros. Países da América Latina, que
chegaram a ter mais de um terço de seu Produto Interno Bruto advindo da indústria, regrediram e hoje

154
LUANA RENOSTRO HEINEN – MARCEL MANGILI LAURINDO

do dados do ACNUR (Agência da ONU para Refugiados), 1% da humanida-


de está em situação de deslocamento forçado, o que correspondia, no final de
2019, a 79,5 milhões de pessoas, dessas pessoas, entre 30 a 34 milhões são crian-
ças e adolescentes, menores de 18 anos. Ao menos 85% dessas pessoas estão em
países em desenvolvimento6 (UNHCR, 2020).
Nesse contexto, duas normativas internacionais são muito importantes
a Convenção Relativa ao Estatuto do Refugiado de 1951 e a Convenção para a
Redução dos Casos de Apatridia de 1961, normas que pretendem dar suporte e as-
segurar aos indivíduos que se deslocam, Direitos Humanos. Apesar delas, no entanto,
muitos desses refugiados perecem em campos de refúgio, morrem em travessias peri-
gosas, crianças e adolescente são expostas ao risco de exploração e abuso sexual (prin-
cipalmente quando desacompanhadas das famílias) e vivem em situação de restrições
nutricionais. A seguir, analisamos sob uma perspectiva teórica as contradições e limites
dos Direitos Humanos universais, especialmente a situação dos refugiados.

3. O REFUGIADO É UM CONCEITO-LIMITE
Giorgio Agamben retoma, por meio de um autor chamado Festo, o con-
ceito de uma misteriosa figura que o direito romano arcaico chamou de Homo
Sacer – um homem que o povo condenou por um delito, mas que não pode
ser sacrificado em razão de tal veredicto. Apesar disso, é possível que alguém
venha a assassiná-lo sem que seja condenado por homicídio. A contradição é
evidente (AGAMBEN, 2014, p. 74)7.
De qualquer forma – polêmicas à parte – , a especificidade do Homo Sacer
reside na “impunidade da sua morte e no veto de seu sacrifício” (AGAMBEN,
2014, p. 76). A vida do Homo Sacer se situa no cruzamento entre uma “matabili-
dade e uma insacrificabilidade, fora tanto do direito humano quanto do direito

são fornecedores de matérias-primas e alimentos para o resto do planeta. Com isso, acabou se forman-
do na Ásia uma classe de trabalhadores de baixa renda que antes estavam na pobreza; na América do
Norte, na Europa e na Oceania, as classes médias industriais perderam posição, mas emergiram os
super-ricos, em particular os grandes executivos e homens de finanças; enquanto isso, na América La-
tina, assistimos a uma transição do trabalho industrial para serviços de baixa produtividade. A África,
de modo geral, continuou arcaica e pobre.” (MEDEIROS, 2016)
6 Segundo dados do ACNUR, as principais crises que levaram ao deslocamento forçado no mundo, em
2019, são: “the outbreak of the Syrian conflict early in the decade, which continues today; South Sudan’s
displacement crisis, which followed its independence; the conflict in Ukraine; the arrival of refugees and
migrants in Europe by sea; the massive flow of stateless refugees from Myanmar to Bangladesh; the ou-
tflow of Venezuelans across Latin America and the Caribbean; the crisis in Africa’s Sahel region, where
conflict and climate change are endangering many communities; renewed conflict and security concerns
in Afghanistan, Iraq, Libya and Somalia; conflict in the Central African Republic; internal displacement
in Ethiopia; renewed outbreaks of fighting and violence in the Democratic Republic of the Congo; the
large humanitarian and displacement crisis in Yemen.” (UNHCR, 2020, p. 6)
7 Em termos literais: “Homem sacro é, portanto, aquele que o povo julgou por um delito; e não é lícito
sacrificá-lo, mas quem o mata não será condenado por homicídio; na verdade, na primeira lei tribuní-
cia se adverte que ‘se alguém matar aquele que por plebiscito é sacro, não será considerado homicida’.
Disso advém que um homem malvado ou impuro costuma ser chamado sacro” (AGAMBEN, 2014,
p. 74). A definição, reproduzida pelo filósofo italiano, é de Festo, que a expõe em seu Tratado sobre o
significado das Palavras.

155
DIREITOS HUMANOS E VULNERABILIDADES

divino” (AGAMBEN, 2014, p. 76).


Um tal homem está, portanto, fora da jurisdição humana e, ainda, fora
da esfera divina (AGAMBEN, 2014, p. 83). Ele não pertence a nenhuma delas.
Segundo Giorgio Agamben, o refugiado seria um Homo Sacer: ele não con-
ta com a proteção do Direito Nacional – a lei do Estado-nação de onde fugiu – e
nem tem a proteção do Direito Universal – não dispõe da proteção efetiva dos
Direitos Humanos.
Daí ser tarefa das mais difíceis defini-lo politicamente. Se, assevera o au-
tor de Estado de Exceção, há algum homem puro ou universal – um homem sem
ligação com nenhum Estado-nação e que deveria ser amparado pelos Direitos
Humanos – , esse homem é certamente o refugiado. O refugiado é, verdadei-
ramente, “‘o homem dos direitos’, a sua primeira e única aparição real fora da
máscara do cidadão que constantemente o cobre. Justamente por isto, a sua
figura é tão difícil de definir politicamente” (AGAMBEN, 2014, p. 128).
Para chegar a tal conclusão, o filósofo italiano se vale de tese desenvolvi-
da por Hannah Arendt, que chama a atenção para a “crise radical” do conceito
de refugiado e, ainda, para o conceito de Direitos Humanos, que dele não pode
ser dissociado.
De fato, para a pensadora alemã, toda a construção dos Direitos do Ho-
mem tem por base a existência de um homem abstrato – pura e simplesmente,
um ser humano. Mas, contraditoriamente, assim que determinado ser humano
perde sua cidadania, ele se vê absolutamente desamparado: quando um homem
deixa para trás o Estado em que era tido por cidadão e se torna um refugiado, ele
está perdido (AGAMBEN, 2014, p. 121)8.
Os refugiados, afirma Hannah Arendt, não são senão “o refugo da terra”:
“uma vez fora do país de origem, permaneciam sem lar; quando deixavam
seu Estado, tornavam-se apátridas; quando perdiam seus direitos humanos,
perdiam todos os direitos: eram o refugo da Terra”9 (ARENDT, 1989, p. 300).

8 Segundo Giorgio Agamben, o paradoxo do qual Hannah Arendt aqui parte é que a figura – o refugia-
do – que deveria encarnar por excelência o homem dos direitos assinala, em vez disso, a crise radical
deste conceito: “A concepção dos direitos do homem’ – ela escreve -, ‘baseada na suposta existência
de um ser humano como tal, caiu em ruínas tão logo aqueles que a professavam encontraram-se pela
primeira vez diante dos homens que haviam perdido toda e qualquer qualidade e relação específica –
exceto o puro fato de serem humanos’ (Arendt, 1994, p. 229). No sistema do Estado-nação, os ditos
direitos sagrados e inalienáveis do homem mostram-se desprovidos de qualquer tutela e de qualquer
realidade no mesmo instante em que não seja possível configurá-los como direitos dos cidadãos de um
Estado” (AGAMBEN, 2014, p. 121).
9 Para Slavoj Žižek, “Esta direção, por certo, conduz diretamente à noção de homo sacer de Agamben
enquanto um ser humano reduzido à ‘vida nua’. Em uma dialética propriamente hegeliana do univer-
sal e do particular, o ser humano – em um único movimento – deixa de ser reconhecido ou tratado
como humano precisamente quando fica desprovido de uma identidade particular sócio-política que
responde por esta cidadania determinada. Paradoxalmente, fico privado dos direitos humanos no mo-
mento preciso em que sou reduzido a um ser humano ‘em geral’, e venho a ser, portanto, o portador
ideal daqueles ‘direitos humanos universais’, os quais pertencem a mim independentemente de minha
profissão, sexo, cidadania, religião, identidade étnica etc” (ŽIŽEK, 2014, p. 24).

156
LUANA RENOSTRO HEINEN – MARCEL MANGILI LAURINDO

Cálculos bem feitos, seria mais interessante a um refugiado ser um cidadão


do que um ser humano. A se referir aos sobreviventes dos campos de extermí-
nio, aos internados nos campos de concentração e aos apátridas que marcaram
a história da Segunda Guerra Mundial, Hannah Arendt afirma que a exibição
da nudez de sua humanidade faria com que fossem tratados como verdadeiros
animais (ARENDT, 1989, p. 333). Ser um homem era por demais arriscado.
Os refugiados não contam com a proteção da lei. A rigor, vivem eles sob o
signo da polícia. Para Hannah Arendt, é ela quem, já nas primeiras décadas do
século XX, acaba por governá-los, uma vez que, diante das contradições que
sustentam o discurso dos Direitos Humanos, o Estado-nação lhe confere uma
força inaudita. A autoridade policial se torna, com o aumento da imigração,
cada vez mais “independente”: “Quanto maior era o número de apátridas e de
apátridas em potencial – e na França antes da Segunda Guerra Mundial esse
grupo atingiu 10% da população total – , maior era o perigo da gradual trans-
formação do Estado da lei em Estado policial” (ARENDT, 1989, p. 320).
Sob o ponto de vista de Giorgio Agamben, o refugiado é um conceito-li-
mite que põe na berlinda as categorias que estruturam o próprio Estado-nação.
Mas, justamente por expor os paradoxos da díade homem-cidadão e nascimen-
to-nação, ele possibilita a abertura de uma renovação de categorias que já não
pode ser adiada (AGAMBEN, 2014, p. 130).

4. OS PARADOXOS DA DECLARAÇÃO DE DIREITOS DO HOMEM


E DO CIDADÃO FRANCESA DE 1789
Eis a redação dos três primeiros artigos da Declaração de Direitos do Homem
e do Cidadão francesa de 1789:
Art.1º. Os homens nascem e são livres e iguais em direitos. As distinções
sociais só podem fundamentar-se na utilidade comum.
Art. 2º. A finalidade de toda associação política é a conservação dos di-
reitos naturais e imprescritíveis do homem. Esses direitos são a liberda-
de, a propriedade a segurança e a resistência à opressão.
Art. 3º. O princípio de toda a soberania reside, essencialmente, na nação.
Nenhuma operação, nenhum indivíduo pode exercer autoridade que
dela não emane expressamente (ASSEMBLEIA NACIONAL FRANCE-
SA, 1789. Grifou-se).
Não custa lembrar, antes de mais nada, que nação deriva, etimologica-
mente, de nascere.
Atente-se, agora, para a importância conferida, no texto da Declaração
francesa, ao nascimento. No fundamento do Estado moderno nos séculos
XIX e XX, não está o homem como sujeito político livre e consciente, mas,
antes de tudo, a sua vida nua, o seu puro e simples nascimento (AGAM-

157
DIREITOS HUMANOS E VULNERABILIDADES

BEN, 2014, p. 125)1011.


Segundo Costas Douzinas, tem-se, na redação desses artigos, um parado-
xo. Se os direitos nele estampados são declarados em nome de um homem que
seria universal12, “[...] o ato de enunciação estabelece o poder de um tipo parti-
cular de associação política, a nação e seu Estado, para tornar-se o soberano
legislador e, depois, de um ‘homem’ em particular, o cidadão nacional, para
tornar-se o beneficiário dos direitos” (2009, p. 114). Primeiro, portanto, acima
de tudo, um homem universal. Depois, sob a lei de um Estado particular, um
cidadão nacional. A legislação nacional acaba, assim, por se sobrepor àquela que
haveria de valer para todo e qualquer ser humano.
A tese não é das mais novas. Karl Marx a desenvolveu em seu Sobre a
Questão Judaica13. Para o alemão, o e situado, no título da Declaração, entre os
termos homem e cidadão separa as figuras. Não se trata de uma união do homem
e do cidadão, mas de sua separação: “os assim chamados direitos humanos, os
droits de l’homme, diferentemente dos droits du citoyen, nada mais são do que os
direitos do membro da sociedade burguesa, isto é, do homem egoísta, do homem
separado do homem e da comunidade” (2010, p. 48)14.
Os paradoxos pululam a olhos vistos:
A elevação da lei nacional à única mantenedora de direitos e o decorrente
tratamento de estrangeiros como seres humanos inferiores indicam que
a separação entre homem e cidadão é uma característica importante do
Direito Moderno. O Estado-nação passa a existir com a exclusão de outras
pessoas e nações. O cidadão possui direitos e deveres na medida em que
pertence à vontade comum e ao Estado. O estrangeiro não é um cidadão.

10 Enuncia-se, no primeiro desses artigos, a vocação biopolítica do Estado Moderno.


11 Na verdade, explica Giorgio Agamben, tal fórmula política remonta ao Direito Romano – que, por
meio de duas expressões que chegaram à Modernidade, tem, desde então, a função de identificar a
cidadania: o ius soli e o ius sanguinis (2014, p. 126). Aparentemente inofensivo, o sintagma solo e
sangue foi ostensivamente utilizado pelo nacional-socialismo, que o colocava no centro de sua ide-
ologia. Giorgio Agamben cita textualmente Rosenberg, um dos principais teóricos do nazismo para
corroborar sua assertiva: “a visão do mundo nacional-socialista [...] parte da convicção de que solo e
sangue constituem o essencial do Germânico, e que é, portanto, em referência a estes dois datismos
que uma política cultural e estadual deve ser orientada” (Apud AGAMBEN, 2014, p. 126).
12 Aliás, muitos foram os pensadores que criticaram o caráter abstrato de tal Declaração: “A acusação de
abstratividade foi repetida infinitas vezes: de resto, a abstratívidade do pensamento iluminista é um
dos motivos clássicos de todas as correntes antiiluministas. Não preciso repetir a célebre afirmação
de De Maistre, que dizia ver ingleses, alemães, franceses e, graças a Montesquieu, saber também que
existiam os persas, mas o homem, o homem em geral, esse ele nunca vira e, se é que existia, ele o
ignorava” (BOBBIO, 2004, p. 45).
13 Karl Marx não tem, bem se vê, uma visão muito positiva dos Direitos Humanos – ao menos dos Direi-
tos Humanos enunciados pelos liberais. Para o autor de O Dezoito Brumário de Luís Bonaparte, além
de não serem eternos ou naturais – eles são construções sociais e legais – , os Direitos Humanos não
são o resultado da razão pública da sociedade, mas da razão do capital.
14 Os homens vivem, sob a óptica dos idealizadores da Declaração francesa de 1789, uma verdadeira
vida dupla: ao longo da semana de trabalho, em meio a uma competição ensandecida, eles criam,
atomizados, uma vida social de discórdia e de conflito privado. Mas, aos fins de semana, em uma
espécie de maviosa ágora moderna, tudo isso dá lugar a uma vida que, coletiva, é devotada, na busca
do bem comum, à atividade política. Aos sábados e aos domingos, os interesses privados são tidos por
mesquinhos e ordinários: eles são, então, supostamente deixados de lado (MARX, 2010).

158
LUANA RENOSTRO HEINEN – MARCEL MANGILI LAURINDO

Ele não tem direitos porque não faz parte do Estado e é um ser humano
inferior porque não é um cidadão. Alguém é um homem em maior ou
menor grau porque é um cidadão em maior ou menor grau. O estrangeiro
é a lacuna entre homem e cidadão. Os indivíduos só têm direitos humanos
na comunidade. Os sem-Estado, os refugiados, as minorias de vários tipos
não têm quaisquer direitos humanos (DOUZINAS, 2009, p. 118-119).
Exigir que a lei proteja o refugiado ou o estrangeiro constitui, assim, sob
essa ordem discursiva, um outro paradoxo, já que é justamente ela que separa
o interior do exterior. Para Costas Douzinas, “o estrangeiro é a pré-condição
política do Estado-nação [...]” (2009, p. 363).
Não é à toa, por certo, que, em seu Conceito do Político, Carl Schmitt afirma
que o inimigo político é o outro ou o estrangeiro. Segundo o autor de O Conceito
do Político, a alteridade do estrangeiro não constitui senão a negação da forma
de existência da comunidade ameaçada, “[...] devendo [o estrangeiro], portanto,
ser repelido e combatido, para a preservação da própria forma de vida, segun-
do sua modalidade de ser” (1992, p. 52).
Para Carl Schmitt, a existência política mesma de um povo depende, ne-
cessariamente, da afirmação de um inimigo: “se ele não tem mais a capacidade
ou a vontade para esta diferenciação, ele cessa de existir politicamente” (1992,
p. 76). Tal definição apresenta contornos existenciais. Amigo e inimigo não são,
para o autor tedesco, metáforas ou símbolos, mas entes concretos. Tanto que seus
conceitos guardam relação, inclusive em democracias, “[...] com a possibilida-
de real de aniquilamento físico” (SCHMITT, 1992, p. 59).
Nas verdadeiras democracias, assevera Carl Schmitt, o igual é tratado
igualmente, mas o não igual é, em consequência, inevitavelmente tratado de
modo diferente (1996, p. 10). Daí que “(...) a democracia deve, em primeiro
lugar, ter homogeneidade e, em segundo lugar – se for preciso – , eliminar ou
aniquilar o heterogêneo”: “a força política de uma democracia se evidencia
quando mantém à distância ou afasta tudo o que é estranho e diferente, o que
ameaça a homogeneidade”15 (SCHMITT, 1996, p. 10).
O discurso de Carl Schmitt pode parecer radical, mas, no fundo, enaltece
a soberania de uma associação política a que se usou designar nação – conceitos
expressamente mencionados no artigo 3º da Declaração francesa de 1789.

5. UM NOVO DESAFIO: OS DIREITOS HUMANOS NAS VESTES DA


POLÍTICA
Na teoria, as Revoluções Americana e Francesa proclamaram, em alto e
bom som, os Direitos Humanos como o novo fundamento para a civilização.
15 Se não existe homogeneidade – o que pressupõe a existência de um inimigo – , não há democracia. A
existência de grupos diversos em uma suposta democracia levaria, inevitavelmente, segundo o pensa-
dor tedesco, a uma guerra civil.

159
DIREITOS HUMANOS E VULNERABILIDADES

Mas não na prática.


O raciocínio é, uma vez mais, de Hannah Arendt.
Para ela, os Direitos Humanos foram marginalizados: “nenhum partido
liberal do século XX houve por bem incluí-los em seu programa, mesmo quan-
do havia urgência de fazer valer esses direitos” (ARENDT, 1989, p. 326).
Jacques Rancière, quer-se crer, concordaria com a filósofa alemã.
Nos últimos tempos, assevera o autor de O Desentendimento, os Direitos
Humanos não vêm sendo de fato usados. Como eles não têm, portanto, ser-
ventia alguma, o que é feito deles? A resposta do intelectual francês é incisiva:
[…] Quando eles não são úteis, se faz o mesmo que pessoas caridosas fa-
zem com suas roupas velhas. Elas são dadas aos pobres. Aqueles direitos
que parecem inúteis em seu lugar são mandados para o exterior, junto a
remédios e roupas, a pessoas desprovidas de remédios, roupas e direitos.
Isso é, nesse sentido, o resultado desse processo, em que os Direitos do
Homem se tornam os direitos daqueles que não tem direitos, os direitos
de seres humanos nus sujeitos a repressão desumana e a condições de-
sumanas de existência. Eles tornam-se direitos humanitários, os direitos
daqueles que não podem os direitos daqueles que não podem decretá-los,
as vítimas da negação absoluta do direito.16 (RANCIÈRE, 2010, p. 307, tra-
dução livre).
Por vezes, contudo, os direitos doados não são utilizados pelos pobres.
Então, essas roupas velhas são “devolvidas aos remetentes” – que podem, en-
tão, valer-se de seu “direito à interferência humanitária” em “benefício” das
populações vitimizadas (RANCIÈRE, 2010, p. 307).
Nesse sentido, de acordo com Slavoj Žižek, os Direitos Humanos nada
significam senão o direito das potências ocidentais de levar a cabo intervenções
de ordem política, econômica, cultural ou mesmo militar em países daquilo
que já se chamou de Terceiro Mundo (2010, p. 25).
Pode parecer estranho, mas é possível ver, nessa crise, uma oportunida-
de. Faz-se necessário, diante de um tal quadro, encarar os Direitos Humanos
não sob a óptica da polícia, mas sob o prisma da política17.

16 “You do the same as charitable persons do with their old clothes. You give them to the poor. Those rights
that appear to be useless in their place are sent abroad, along with medicine and clothes, to people depri-
ved of medicine, clothes, and rights. It is in this way, as the result of this process, that the Rights of Man
become the rights of those who have no rights, the rights of bare human beings subjected to inhuman
repression and inhuman conditions of existence. They become humanitarian rights, the rights of those
who cannot enact them, the victims of the absolute denial of right.” (RANCIÈRE, 2010, p. 307).
17 Em suas Dez teses sobre a política, o filósofo francês aponta o que a política não é: “Tese 1: A política
não é o exercício do poder. A política deve ser definida em seus próprios termos, como um modo de
agir posto em prática por um tipo específico de sujeito e decorrente de uma forma particular de razão.
É a relação política que permite pensar a possibilidade de um sujeito(subjetividade) político [le sujet
politique], e não o contrário. Identificar a política com o exercício do poder, e luta para o possuir, é
abolir a política”; “Thesis 1: Politics is not the exercise of power. Politics ought to be defined on its
own terms, as a mode of acting put into practice by a specific kind of subject and deriving from a
particular form of reason. It is the political relationship that allows one to think the possibility of a po-

160
LUANA RENOSTRO HEINEN – MARCEL MANGILI LAURINDO

Segundo Jacques Rancière, a polícia nada mais é do que o “conjunto dos


processos pelos quais se operam a agregação e o consentimento das coletivi-
dades, a organização dos poderes, a distribuição dos lugares e os sistemas de
legitimação dessa distribuição” (1996a, p. 41). A ordem policial define previa-
mente os lugares na sociedade (RANCIÈRE, 1996a, p. 42).
Diversamente, a política rompe, por meio de uma série de atos que re-
configuram o espaço onde as partes, as parcelas e as ausências de parcelas se
definiam18, a configuração policial do sensível. Tal rompimento se dá a partir
de um pressuposto que não se inscreveria na ordem policial – aquele de “uma
parcela dos sem-parcela”.
Num retorno aos clássicos, diz Rancière que a política se inicia “quando
a ordem natural da dominação é interrompida pela instituição de uma parce-
la dos sem-parcela” (RANCIÈRE, 1996a, p. 26). “Sem-parcela” nada mais são
do que aqueles sem título algum, o povo, o demos que se atribui a igualdade
como título. Entretanto, justamente porque a igualdade pertence a todos, essa
própria atribuição dá ensanchas ao litígio. A reivindicação dessa igualdade é a
exposição do dano de que fala Jacques Rancière.
A polícia e a política possuem lógicas heterogêneas. Mas ambas estão sem-
pre amarradas, pois não há questões ou objetos propriamente políticos19. “Para
que uma coisa seja política, é preciso que suscite o encontro entre a lógica poli-
cial e a lógica igualitária, a qual nunca está preconstituída” (RANCIÈRE, 1996a,
p. 44). O único princípio da política é a igualdade. Na realidade, a política acaba
por conferir atualidade ao princípio da igualdade: ela possibilita inscrever, sob
a forma de litígio, a averiguação da igualdade no seio da ordem policial.
Costas Douzinas não se refere a Jacques Rancière, mas aquilo que ele
toma por prática institucional dos Direitos Humanos poderia ser lido como uma
sua prática policial:
Como prática institucional, os direitos humanos geralmente expressam a
imaginação da sociedade mundial única e homogênea, na qual a extensão

litical subject(ivity) [le sujet politique], not the other way around. To identify politics with the exercise
of, and struggle to possess, power is to do away with politics” (RANCIÈRE, 2001, tradução livre). A
política não é, portanto, polícia. Ao exercício do poder ou a luta por ele, comumente designados de
política, Jacques Rancière chama polícia.
18 “A atividade política é a que desloca um corpo do lugar que lhe era designado ou muda a destinação de
um lugar; ela faz ver o que não cabia ser visto, faz ouvir um discurso ali onde só tinha lugar o barulho,
faz ouvir como discurso o que só era ouvido como barulho” (RANCIÈRE, 1996a, p. 42).
19 Nenhuma coisa, nenhum tema é por si político. Entretanto, qualquer coisa pode vir a sê-lo se houver
o encontro das duas lógicas (policial e política), assim como algo como uma greve pode dar ensejo
à política ou não. “Uma greve não é política quando exige reformas em vez de melhorias ou quando
ataca as relações de autoridade em vez da insuficiência dos salários. Ela o é quando reconfigura as re-
lações que determinam o local de trabalho em sua relação com a comunidade. O lar pôde se tornar um
lugar político, não pelo simples fato de que se exercem relações de poder mas porque se viu arguído no
interior de um litígio sobre a capacidade das mulheres à comunidade. Um mesmo conceito – a opinião
ou o direito, por exemplo – pode designar uma estrutura do agir político ou uma estrutura da ordem
policial. (…) essas palavras podem também designar, e designam na maioria das vezes, o próprio
entrelaçamento das lógicas” (RANCIÈRE, 1996a, p. 45).

161
DIREITOS HUMANOS E VULNERABILIDADES

de igualdade formal e liberdade negativa e a globalização do capitalismo


ocidental e do consumismo irão equalizar a sociedade com sua imagem
“ideal” esboçada por governos e especialistas em Direito Internacional. Os
direitos humanos institucionais são mobilizados em nome de uma cultura
global, cujos valores e princípios constituem uma tentativa de enclausurar
sociedades e impor a elas uma lógica única (2009, p. 379).
Tal modo de arrostar os Direitos Humanos há de ser substituído. Um
olhar e uma prática de jaez político devem ser colocados em seu lugar. Um
“princípio de política popular” terá o condão de fazer valer a abertura da so-
ciedade (DOUZINAS, 2009, p. 379).
Ainda de acordo com Costas Douzinas, a indeterminação dos Direitos
Humanos “[...] significa que as fronteiras da sociedade são sempre contestadas
e jamais coincidem totalmente com quaisquer cristalizações que o poder e as
prerrogativas legais impõem” (2009, p. 379).
Urge, portanto, utilizar o nome e o lugar político dos Direitos Humanos em
favor daqueles que deles realmente necessitam – os sub-humanos, os não-humanos.

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em 2018, às voltas com a chegada de uma embarcação repleta de imigran-
tes e refugiados oriundos da África, o Ministro do Interior da Itália, Matteo
Salvini, referiu-se àqueles que estavam a bordo como carne humana:
Itália abandona no mar outro barco com 224 imigrantes
Matteo Salvini, ministro do Interior italiano, chamou as pessoas resgata-
das de
“carne humana”
[...]
O ministro do Interior italiano, Matteo Salvini, negou a entrada em seu
país de um barco com bandeira holandesa da ONG alemã Lifeline com 224
imigrantes resgatados em frente à costa da Líbia.
[...]
Ao falar dos países aos que pertencem os barcos, indicou: “Levem toda
essa carga de seres humanos à Holanda, ou a Gibraltar, ao Reino Unido, à
Espanha, à França ou onde queiram. A Itália não pode assumir o fardo dos
custos econômicos e sociais de uma imigração fora de controle”20 (ITÁLIA

20 No campo de concentração nazista de Auschwitz, os prisioneiros que sofriam com a mais absoluta
desnutrição eram conhecidos por muçulmanos. Giorgio Agamben reproduz, em seu O que resta de
Auschwitz, o testemunho de um sobrevivente a respeito: “Quando [os prisioneiros] ainda eram capazes
de se mexer, isso se dava em câmera lenta, sem que dobrassem os joelhos. Dado que sua temperatura
baixava normalmente até abaixo dos 36 graus, tremiam de frio. Observando de longe um grupo de
enfermos, tinha-se a impressão de que fossem árabes em oração. Dessa imagem derivou a definição
usada normalmente em Auschwitz para indicar os que estavam morrendo de desnutrição: muçulma-
nos” (2008, p. 51). O muçulmano de tal campo, defende o filósofo italiano, só mantem a aparência
de ser humano: lá, ele é um não-homem (AGAMBEN, 2008, p. 62). Matteo Salvini parece crer que

162
LUANA RENOSTRO HEINEN – MARCEL MANGILI LAURINDO

ABANDONA NO MAR OUTRO BARCO COM 224 IMIGRANTES, 2018).


A humanidade é, na prática, dividida entre o “super-humano” ocidental
e o “não-humano” – dentre os quais, os refugiados em fuga e os prisioneiros
dos campos de concentração (DOUZINAS, 2009, p. 376). Se para alguns o direi-
to é distribuído em abundância, outros vivem de suas migalhas. Mas o homem
não pode ser considerado um naco de carne tentando pular os muros que, hoje,
dividem os países.
Norberto Bobbio afirma, em A Era dos Direitos, que “o problema grave de
nosso tempo, com relação aos direitos do homem, não era mais o de fundamen-
tá-los, e sim o de protegê-los” (2004, p. 17). É preciso, então, por meio da política,
colocar em prática os Direitos Humanos. Eles não constituem, afinal, como já afir-
mou um representante norte-americano em uma Assembleia Geral das Nações
Unidas, uma simples “carta ao Papai Noel” (DOUZINAS, 2009, p. 135).

7. REFERÊNCIAS
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______. Homo Sacer – o poder soberano e a vida nua I. Belo Horizonte: UFMG, 2014.
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lete-salva-vidas-falso-e-fechada.html. Acesso em: 15 jul. 2018.
ANDRADE, Daniel Pereira. O que é o neoliberalismo? A renovação do debate nas ciências so-
ciais. Sociedade e estado. Brasília, v. 34, n. 1, p. 211-239, jan. 2019. Disponível em: http://www.
scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-69922019000100211&lng=pt&nrm=iso Acesso
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ARENDT, Hannah. Origens do Totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
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1789. Disponível em: http://www.direitoshumanos.usp.br/index.php/Documentos-anteriores-
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BOAS, Taylor C.; GANS-MORSE, Jordan. Neoliberalism: From New Liberal Philosophy to An-
ti-Liberal Slogan. Studies in Comparative International Development, v. 44, i. 2, p 137 – 161,

toda essa carne humana já não pertence mais a verdadeiros seres humanos. Muitas vezes, essa carne
humana é entulhada em navios fantasmas para singrar os mares: “‘Navios-fantasma’ são a nova arma
dos traficantes para lucrar com imigração no Mediterrâneo. Em três dias, Itália resgatou, em carguei-
ros à deriva no Mediterrâneo, mais de 1200 pessoas, a maioria sírios. [...] os imigrantes e candidatos
a asilo são colocados em cargueiros prestes a serem abatidos, mas capazes de levar mais gente e de
navegar até às costas europeias em pleno inverno. Ainda em águas internacionais, os navios são colo-
cados em piloto automático, dirigidos ao destino, e a tripulação abandona os comandos” (PEREIRA,
2015). Ademais, muitos desses não-homens acabam morrendo por terem adquirido, sem o saberem,
coletes salva-vidas falsos: “Dezenas de imigrantes morreram na terça, pois usavam coletes falsos.
Alguns salva-vidas absorviam a água e puxavam a pessoa para o fundo. O jornal ‘Sabah’ revelou nesta
quinta-feira (7) que muitos dos refugiados que morreram afogados na terça-feira quando tentavam ir
da Turquia à Grécia usavam coletes salva-vidas falsos da fábrica que a polícia turca fechou na cidade
de Esmirna. A operação policial aconteceu na própria terça, após a tragédia que tirou a vida de 31 imi-
grantes que tiveram os corpos encontrados em praias turcas. Os agentes fecharam a fábrica clandestina
e apreenderam 1.263 coletes, muitos com símbolos de marcas conhecidas para fingir maior qualidade.
Dentro, os equipamentos de segurança tinham restos de embalagem, material de isolamento e plásticos
não flutuantes” (AGENCIA EFE, 2016).

163
DIREITOS HUMANOS E VULNERABILIDADES

jun. 2009.
BOBBIO, Norberto. Sobre os Fundamentos dos Direitos dos Homens. In: A Era dos Direitos. Rio
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LAVAL, Christian; DARDOT, Pierre. A nova razão do mundo: ensaios sobre a sociedade neoli-
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DOUZINAS, Costas. O Fim dos Direitos Humanos. São Leopoldo: Unisinos, 2009.
HESPANHA, António Manuel. O caleidoscópio do direito: direito e justiça nos dias e no mundo
de hoje. 2. ed. Coimbra, Portugal: Almedina, 2009.
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MEDEIROS, Marcelo. O mundo é o lugar mais desigual do mundo. Revista Piauí, São Paulo, ed.
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ZWEIG, Stefan. Autobiografia: o mundo de ontem. Rio de Janeiro: Zahar, 2014.

164
A DIGNIDADE HUMANA COMO FUNDAMENTO DA
POLÍTICA PÚBLICA DE ACESSO À JUSTIÇA
Silzia Alves Carvalho
Dimas Pereira Duarte Júnior

Sumário: 1. Introdução; 2. A afirmação histórica dos direitos humanos e o


acesso à justiça; 3. A dignidade humana no contexto do direito; 4. O Brasil
e a garantia do acesso à justiça; 5. O paradoxo do mínimo existencial e as
necessidades humanas básicas; 6. Considerações finais; 7. Referências.

1. INTRODUÇÃO
O contexto presente nos desafia a refletir a condição Humana nesses tem-
pos que correm. Esta Senhora, denomina Declaração Universal dos Direitos Hu-
manos, na altura dos seus 72 anos de sua promulgação pela Organização das Na-
ções Unidas-ONU, tem sido objeto de intensas divergências, sobretudo no que
tange ao seu caráter universal. Entende-se que o ponto focal dos questionamen-
tos a respeito dos Direitos Humanos está no aparente paradoxo entre o direito à
igualdade e o direito à diferença, e, em que medida isso reflete na humanidade
do Humano, bem definida na universalidade da garantia de sua dignidade.
As distopias que caracterizam o século XXI foram evidenciadas com a
pandemia provocada pela SARS-CoV-2, o que tornou as questões a respeito
dos direitos humanos um aspecto central com relação à proteção da dignidade,
diante dos efeitos da crise humanitária cujas proporções têm sido consideradas
incalculáveis no presente, e, no futuro.
Abordar os possíveis meios para assegurar a efetividade dos direitos hu-
manos é uma exigência atual, tendo em vista os problemas referidos, dentre
outros. Assim, a Declaração Universal dos Direito Humanos quanto aos direi-
tos fundamentais revela-se imprescindível a fim de reafirmá-la como paradig-
ma para os sistemas jurídicos.
O objeto desta pesquisa é o tratamento das questões relacionadas ao artigo
VII e X da Declaração Universal dos Direitos Humanos, também constantes na
Constituição brasileira de 1988, no artigo 5º, XXXV, LIII e LIV, portanto, incor-
porados ao direito pátrio como cláusulas pétreas. Por sua vez, o artigo 1º, III
da CF/88 determina que são princípios fundamentais do Estado a dignidade da
pessoa humana a partir de um embate entre a ideia de mínimo existencial e ne-
cessidades humanas, duas vertentes que vêm sendo amplamente utilizadas para
discutir a abrangência e a eficácia dos direitos humanos na contemporaneidade.

165
DIREITOS HUMANOS E VULNERABILIDADES

As questões que se pretende enfrentar são: qual a influência das teorias


do mínimo existencial e das necessidades humanas na construção do modelo
brasileiro de afirmação e garantia do direito de acesso à justiça.
A premissa da qual se parte é que assegurar a efetividade do acesso à
justiça deve ser compreendido para além da garantia constitucional do direito
de ação, ou do acesso aos órgãos jurisdicionais, concepções atreladas à tradi-
cional ideia de mínimo existencial. O acesso à justiça efetiva-se com a decisão
de mérito e sua concretização em tempo razoável, ou, ainda, por meios consi-
derados adequados, segundo a política pública judiciária definida pelo Conse-
lho Nacional de Justiça, na Resolução nº 125/2010, alterada pela Resolução nº
326/2020, o que, neste trabalho, considera-se uma prática atrelada à concepção
de necessidade humana básica.
Para tanto, será utilizado o método de abordagem dedutivo e crítico, e o
método de procedimento bibliográfico e histórico. O tratamento teórico-meto-
dológico será realizado a partir das concepções de Robert Alexy, Celso Antônio
Bandeira de Mello, Mauro Cappelletti e no que se refere à discussão sobre mí-
nimo existencial e necessidades humanas básicas é utilizado como referencial
os estudos de Len Doyal e Ian Gough (1991) e Potyara Pereira (2000).
Desse modo, propõe-se a empreender uma discussão sobre o acesso à
justiça, com vista ao paradoxo entre direito à igualdade e o direito à diferença,
levando em conta as formas como o Poder Judiciário tem interpretado essa
questão. Primeiramente busca-se compreender o processo histórico de afirma-
ção do direito de acesso à justiça, em âmbito internacional e doméstico. Em
seguida, aborda as concepções de mínimo existencial e necessidades humanas
como fundamentadoras dos direitos humanos e da dignidade humana. Ao fi-
nal, analisa o tratamento que o sistema brasileiro de justiça oferece frente aos
paradoxos existentes entre o direito à igualdade e direito à diferença.

2. A AFIRMAÇÃO HISTÓRICA DOS DIREITOS HUMANOS E O


ACESSO À JUSTIÇA
De acordo com o que afirma Robert e Séguin (2000, p. 74), o direito de aces-
so à Justiça não pode e nem tampouco deve ser entendido apenas como uma má-
xima de efeito que enseja alguma sensação de tratamento igualitário dentro de
uma sociedade marcada pela diversidade, pela complexidade e pela diferença.
Trata-se de uma expressão que envolve mais que o simples acesso aos Tribunais,
mas também o acesso ao Direito. E esse acesso ao direito engloba, de forma indi-
visível, inter-relacionada e interdependente o direito à informação e a consultas
jurídicas, assim o acesso ao direito tem ligação importante com os órgãos públi-
cos e entidades civis que possibilitem ao cidadão o acesso à justiça.
Considerado uma herança do direito medieval, o acesso à justiça, deriva do

166
SILZIA ALVES CARVALHO – DIMAS PEREIRA DUARTE JÚNIOR

princípio do due process of law, consagrado na Magna Carta de 1215, um impor-


tante antecedente histórico no processo de afirmação dos direitos humanos. Esse
documento histórico, que pode ser definido como uma Concórdia entre o rei
João e os Barões para a outorga das liberdades da igreja e do reino inglês, em que
pese seu caráter seletivo, além se ser considerado um marco para as liberdades
inglesas, merece ser lembrado também por, em seu texto, já apontar para a futu-
ra separação institucional entre Igreja e Estado, afirmar o respeito à propriedade
privada e desvincular da pessoa do monarca tanto a lei quanto a jurisdição.
Conforme se vislumbra do texto da Magna Carta (1215), em especial do
que prevê as cláusulas 38 e 39, ninguém poderia ser levado, a partir daquele
momento, a julgamento, com base apenas na sua palavra, sem testemunhas
dignas de crédito para apoiá-lo. Tampouco, nenhum homem livre poderia ser
capturado ou aprisionado, ou desapropriado dos seus bens, ou declarado fora
da lei, ou exilado, ou de algum modo lesado, a não ser por meio de um julga-
mento legítimo dos seus pares ou pela lei do país.
Mas se os artigos 38 e 39 da Magna Carta fazem alusão ao due process of
law, caberá ao artigo 40 afirmar, originariamente, o direito de acesso à justiça,
pois é dele que se extrai a afirmação de que “A ninguém venderemos, a nin-
guém negaremos ou retardaremos direito ou justiça” (COMPARATO, 2019).
Mas, de sua primeira aparição até sua afirmação formal como um direi-
to individual, o acesso à justiça haveria de percorrer um longo caminho que
acompanha o processo de ruptura com o antigo regime e construção do Estado
de Direito, que tem nos direitos do homem um instrumento de limitação do
poder do Estado, embora com fortes contornos de privilégios.
Passando pela Lei do habeas corpus (1679) que estabelece regras proces-
suais para a garantia do “habeas corpus” como um mandado judicial em caso
de prisão arbitrária; pela Bill of Rights (1689), que, promulgada num contexto
histórico de grande intolerância religiosa, tendo em vista que impõe a todos os
súditos do rei da Inglaterra, uma religião oficial, põe fim ao regime de monar-
quia absoluta na Inglaterra, no qual todo poder emana do rei e em seu nome
é exercido, enuncia a separação dos poderes e reafirma os direitos individuais
dos cidadãos como o direito de petição e a proibição de penas inusitadas ou
cruéis, é somente com as revoluções liberais burguesas do Século XVIII que o
acesso à justiça é reconhecido como um direito fundamental.
É com a Declaração de Independência do Estados Unidos da América
(1776), considerado o ato inaugural da democracia moderna, e com a Declara-
ção dos Direitos do Homem e do Cidadão da Revolução Francesa (1789) que
emergirão as primeiras constituições escritas e os primeiros modelos de Estado
de Direito pautados nos ideais republicano e federativo. É desse modelo que
derivam os dois princípios básicos do Estado de Direito que são a garantia dos

167
DIREITOS HUMANOS E VULNERABILIDADES

direitos individuais e a separação dos poderes.


Na Declaração de Independência dos Estados Unidos (1776) e nos docu-
mentos dela decorrentes, quais sejam, a Constituição dos Estados Unidos da
América (1787) e a Declaração de Direitos (1791), o acesso à justiça vêm expres-
sos na forma do direito de petição e na afirmação do devido processo legal como
pilar de sustentação da emergente democracia, o que também se verifica no con-
texto da Revolução Francesa (1789), de onde emergem a Declaração dos Direi-
tos do Homem e do Cidadão da Revolução Francesa (1789) e as Constituições
Francesas de 1791, 1793, 1795 e 1848. Em que pesem seus caráteres seletivos,
esses dois acontecimentos podem ser considerados como o marco do processo
de afirmação, no âmbito constitucional, dos direitos do homem enquanto instru-
mentos de limitação do poder do Estado e, portanto, conforme afirma Norberto
Bobbio (1992), da mudança da lente ex parte principis para lente ex parte populis.
No plano internacional, há que se ressaltar que:
Inegavelmente, a Declaração Universal de 1948 representa a culminância
de um processo ético que, iniciado com a Declaração de Independência
dos Estados Unidos e a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão,
da Revolução Francesa, levou ao reconhecimento da igualdade essencial
de todo ser humano em sua dignidade de pessoa, isto é, como fonte de
todos os valores, independentemente das diferenças de raça, cor, sexo,
língua, religião, opinião, origem nacional ou social, riqueza, nascimento,
ou qualquer outra condição, como se diz em seu artigo II. E esse reco-
nhecimento universal da igualdade humana só foi possível quando, ao
término da mais desumanizadora guerra de toda a História, percebeu-se
que a ideia de superioridade de uma raça, de uma classe social, de uma
cultura ou de uma religião, sobre todas as demais, põe em risco a própria
sobrevivência da humanidade. (COMPARATO, 2019, p.233)
Adotada no contexto do pós Segunda Guerra Mundial, quando foi criada a
Organização das Nações, a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948),
objetiva delinear uma ordem pública mundial fundada no respeito à dignida-
de humana capaz de garantir o exercício de uma cidadania plena, partindo do
pressuposto de não se poder pensar em cidadania, nem em dignidade humana,
enquanto a descartabilidade, a seletividade e a liberalidade ainda orientarem
não só as práticas estatais, mas também a formação da consciência coletiva.
Nesse contexto afirma que, para além da igualdade formal, toda pessoa
tem direito aos meios efetivos para acessar a tutela jurisdicional competente,
com a finalidade de se proteger contra os atos que violem os direitos funda-
mentais reconhecidos pela Constituição ou pela lei, e, também que toda pessoa
tem direito, em plena igualdade, a que a sua causa seja equitativa e publica-
mente julgada por um tribunal independente e imparcial que decida sobre seus
direitos e obrigações ou das razões de qualquer acusação em matéria penal que
contra ela seja deduzida.

168
SILZIA ALVES CARVALHO – DIMAS PEREIRA DUARTE JÚNIOR

Logo, o que se denota da análise do texto da Declaração Universal de


1948 é que o acesso à justiça, além de garantir o direito de petição e pugnar
pelo respeito ao devido processo legal, é entendido também sob a perspectiva
da equidade, da publicidade, da independência e da imparcialidade. Isso vale
dizer que, com a concepção de direitos humanos inaugurada pela Declaração
Universal a efetiva garantia do acesso à justiça perpassa não só pelo dever dos
Estados de observância às regras do jogo, ditado pelos princípios da legalidade
e do devido processo legal, mas também pelos valores de justiça e equidade.
Em que pese o fato de representar um importante momento na história
dos direitos humanos, a Declaração Universal, apesar de inovar analiticamen-
te, ao inverter a ordem do locus de irradiação dos direitos, não foi capaz de,
imediatamente, ultrapassar os limites da mera exortação moral e expressar sua
força jurídica vinculante, sobretudo, em face de seu silêncio sobre órgãos com-
petentes para exercer o monitoramento internacional, sobre os mecanismos
para o exercício desse monitoramento, e, também sobre as possíveis sanções
em caso de descumprimento pelos Estados, dos direito nela expressos.
A tarefa de preencher essas lacunas ficou a cargo do Pacto Internacio-
nal de Direitos Civis e Políticos e também do Pacto Internacional de Direitos
Econômicos, Sociais e Culturais, adotados pela Assembleia Geral da ONU
em 1966. Neles, além de preenchidas as lacunas acerca do tema do monitora-
mento, da juridicização dos direitos humanos e ratificado a força jurídica vin-
culante da Declaração Universal, também se tratou de especificar e detalhar
os direitos, tanto no âmbito civil e político, tidos como direitos de primeira
dimensão, quanto os direitos econômicos, sociais e culturais, tidos como di-
reitos de segunda dimensão.
De acordo com o previsto nos Pactos Internacionais de 1966, o acesso à
justiça está expresso numa fórmula que conjuga o direito a obter um julgamen-
to em prazo razoável com o livre acesso aos órgãos do judiciário.
Em âmbito regional, vale ressaltar as previsões dos sistemas europeu e in-
teramericano de direitos humanos. No Sistema Europeu, o direito de acesso à
justiça é reafirmado no artigo 6º, inciso 1º e demais da Convenção Europeia de
Direitos Humanos e Liberdades Fundamentais, adotada em 1950. E no âmbito
do sistema interamericano de proteção dos direitos humanos encontra-se no ar-
tigo XVIII da Declaração Americana de Direitos Humanos e Deveres adotada em
1948 pela Organização dos Estados Americanos e no artigo 8º, inciso 1º e demais
da Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San José de 1969).
Mas, conforme afirma Guilherme Almeida, “todos os artigos anterior-
mente citados definem o acesso à justiça enquanto direito de acesso a tribunais,
apenas e tão somente. A ampliação do significado do direito de acesso à justiça
só ocorreu, na segunda metade do século XX, graças à publicação do relatório

169
DIREITOS HUMANOS E VULNERABILIDADES

Acesso à justiça, de Bryan Garth e Mauro Cappelletti1” (ALMEIDA, 2012, p.87).

3. A DIGNIDADE HUMANA NO CONTEXTO DO DIREITO


A teoria dos Direitos Humanos foi desenvolvida a partir da compreensão
sobre a necessidade de reconhecer e proteger determinadas condições existen-
ciais relacionadas com a ideia da dignidade humana. Nos períodos que ante-
cederam a modernidade oitocentista os direitos humanos foram concebidos
como direitos naturais, ou seja, como algo inerente à própria condição huma-
na. Especificamente a partir do século XX, com a afirmação das teorias basea-
das no positivismo empirista, os direitos humanos foram considerados como
direitos fundamentais definidos com relação ao sistema de direito.
Como tratado anteriormente, são reconhecidas diferentes fases quanto ao
processo de afirmação histórica dos direitos humanos e o que sobressalta da
análise de todas essas fases é o problema da igualdade entre os seres humanos.
Na compreensão dos direitos humanos sob a perspectiva crítica é importante
ter clareza da necessidade de reconhecimento de que não há uma igualdade
natural entre todos as pessoas. Se há algo de natural na natureza humana por
certo não é a igualdade, mas sim a diversidade, a diferença e a complexidade.
Provavelmente, este seja um aspecto definidor da complexidade dessa questão.
Os Seres Humanos são caracteristicamente diferentes, considerando sua condi-
ção existencial Humana.
O Estado Moderno ao estabelecer seus fundamentos na “Igualdade, Li-
berdade e Fraternidade”, criou um paradigma para as relações entre os indiví-
duos e o Estado2. As alterações características desse período, as quais resulta-
ram na estruturação do Estado de Direito Constitucional consolidado, sobre-
tudo, a partir dos anos de 1950, foram determinantes para a incorporação dos
direitos humanos, enunciados na Declaração Universal dos Direitos Humanos,
ao sistema Constitucional nos países ocidentais. Desse modo, atualmente, tais
direitos estão positivados como direitos fundamentais constitucionais em dife-
rentes ordenamentos jurídicos, dentre os quais o Brasil.
Os direitos humanos atualmente integram o sistema jurídico, tornando
sua aplicação obrigatória pelo Estado. Desse modo, conquanto, a teoria do di-
reito natural e do jusnaturalismo, trate tal questão sob perspectivas diversas,

1 Nesse relatório Cappelletti e Garth consideram o acesso à justiça como o mais básico dos direitos
humanos, devendo ser entendido como um requisito fundamental para a construção de um sistema
jurídico justo, moderno e igualitário. Voltado a garantir e não apenas proclamar o direito de todos,
esse sistema deve não só afirmar formalmente o direito de acesso à justiça, mas também enfatizar ele é
diferente dos demais direitos humanos, pois é um direito-garantia, o qual deve servir para a realização
de outros direitos. Desse modo pode-se afirmar que é o direito imprescindível para o exercício pleno
da contemporânea concepção de cidadania. (ALMEIDA, 2012, p. 88)
2 O desenvolvimento sócio, econômico e cultural ocorrido nos últimos 200 anos, levou ao reconheci-
mento dos direitos coletivos, individuais homogêneos e difusos.

170
SILZIA ALVES CARVALHO – DIMAS PEREIRA DUARTE JÚNIOR

prevalece o modelo Constitucional de proteção dos direitos fundamentais.


A expansão dos direitos ocorrida após a segunda metade do século XX, teve
como uma de suas consequências a ampliação a respeito da noção sobre os direi-
tos fundamentais constitucionais. Observe-se que no preâmbulo da Constituição
de 1988, a igualdade é apresentada como um dos valores supremos da sociedade
brasileira. Neste sentido, o caput do artigo 5º da CF/88, expressamente estabelece
que: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garan-
tindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do
direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade [...]”
As concepções a respeito da igualdade formal e objetiva se revelaram
incompatíveis com a perspectiva do Estado Democrático e Social de Direito
desenvolvida, principalmente, a partir da promulgação da Constituição mexi-
cana de 1917, e, da Constituição de Weimar de 1919 na Alemanha.
Assim, o princípio da igualdade passou a ser compreendido como um fun-
damento legal contra a perpetuação de privilégios, desenvolvendo-se a ideia da
isonomia como sendo mais abrangente e adequada às expectativas existentes no
início do século XX. É o princípio da isonomia que, nos dizeres de Celso Antônio
Bandeira de Mello, “preceitua que sejam tratadas igualmente as situações iguais
e desigualmente as desiguais. Donde não há como desequiparar pessoas e situa-
ções quando nelas não se encontram fatores desiguais” (MELLO, 2011, p. 35).
A definição de determinados critérios pode oferecer os característicos dis-
tintivos entre a garantia da isonomia, como direito ao tratamento legalmente
diferente, e, a configuração de privilégios, os quais afrontam o atual estágio de
desenvolvimentos das pesquisas jurídicas e da aplicação do direito.
Os privilégios são tratados no campo do direito a partir da inobservân-
cia da isonomia, ou seja, a diferenciação nesses casos, segundo Celso Antônio
Bandeira de Mello (2011) não encontra correlação entre o traço desigualador
e o critério discriminatório. Conquanto, a experiência jurídica tenha demons-
trado a inviabilidade quanto à busca da objetividade, entende-se que há con-
dições para a distinção entre a garantia ao acesso isonômico aos direitos, e, o
repúdio aos privilégios.
Ressalta-se que, a configuração da dignidade humana pressupõe a efe-
tividade jurídica da isonomia, enquanto acesso à garantia do reconhecimento
da existência de fatos desigualadores entre os indivíduos e as coletividades.
Assim, trata-se de um direito humano fundamental em sentido material, ou
seja, sua fundamentalidade independe de positivação.
A previsão de direitos fundamentais implícitos leva necessariamente à
ideia de que há direitos que, por sua essência, seriam fundamentais, já
que sua fundamentalidade independe de positivação numa Declaração,
Constituição, Tratado ou Lei. Tais direitos, assim, são constituídos pela

171
DIREITOS HUMANOS E VULNERABILIDADES

“matéria” (essência) fundamental. São, por isso, chamados, de direitos ma-


terialmente fundamentais. (FERREIRA FILHO, 2011, p. 123)
Há aspectos divergentes quanto a determinação do conceito a respeito da
dignidade humana, o que pode ser superado a partir da compreensão alexyana
a respeito dos direitos fundamentais, ao abordar esta questão.
[...] foi demonstrado que ao art. 1º, § 1º da Constituição alemã pode ser tam-
bém atribuída pelo menos uma norma que tenha o caráter de princípio: o
princípio da dignidade humana. Esse princípio é tão indeterminado quanto
o conceito de dignidade humana. [...] o conceito de dignidade humana pode
ser expresso por meio de um feixe de condições concretas, que devem estar
(ou não podem estar) presentes para que a dignidade da pessoa humana
seja garantida. Sobre algumas dessas condições é possível haver consenso.
Assim, a dignidade humana não é garantida se o indivíduo é humilhado,
estigmatizado, perseguido ou proscrito. (ALEXY, 2006, p. 355)
Observa-se a inseparável conexão entre a dignidade humana e a isonomia
como princípios basilares dos direitos fundamentais orientadores do sistema
de direito ocidental, e brasileiro. A verticalização desses princípios, em sentido
positivo se dirige ao intérprete e aplicador do direito, a fim de garantir sua
observância concreta; e, em sentido negativo se dirige ao legislador para as-
segurar que não sejam editadas leis que de qualquer forma possam reduzir o
direito fundamental à isonomia e à dignidade humana.
Em atenção ao pensamento aristotélico quanto à igualdade em sentido
substancial, ou, como isonomia, é importante o reconhecimento das distin-
ções exigidas para a adequação do direito em face da diferença e da dignidade
humana. Essa é uma temática que envolve uma complexidade jurídica, pois,
a criação de privilégios ou de leis com conteúdo implícito ou explicitamente
discriminatório constitui um desrespeito à dignidade humana, e, portanto, a
direito fundamental em sentido material.

4. O BRASIL E A GARANTIA DO DIREITO DE ACESSO À JUSTIÇA


No Brasil, o acesso à justiça, enquanto um direito fundamental, é reco-
nhecido pela Constituição de 1946, que trazia em seu texto a previsão de que
a lei não poderia excluir da apreciação do Poder Judiciário qualquer lesão de
direito individual.
O debate a respeito do “acesso à justiça” foi impulsionado pelo processo
de redemocratização do país deflagrado formalmente a partir da Lei 6.683 san-
cionada em 1979 e também pelo estudo de Cappelletti e Garth (1988)3.
A promulgação da Constituição Federal de 1988, símbolo desse processo

3 Apesar de o Brasil não ter participado do Projeto Florença, que deu origem ao estudo de Cappelletti e
Garth.

172
SILZIA ALVES CARVALHO – DIMAS PEREIRA DUARTE JÚNIOR

de redemocratização, pois além de afirmar que o Brasil é um Estado Demo-


crático de Direito, também institucionaliza os direitos humanos no país e o
reinsere no cenário das relações internacionais, tendo em vista que estabelece
em seu artigo 8º, dentre as condicionantes constitucionais para as relações in-
ternacionais, o dever de pugnar pela prevalência dos direitos humanos.
No que tange ao direito de acesso à justiça, ganha destaque no Artigo 5º,
que trata dos os direitos e deveres individuais e coletivos, em especial em seus
incisos XXXV e LXXIV. O inciso XXXV, ao preservar a redação da Constituição
de 1946, estabelece que: “(...) a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciá-
rio lesão ou ameaça a direito”. E o inciso LXXIV trata de estabelecer o dever do
Estado de prestar assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem
a insuficiência de recursos.
No que concerne ao que pugnam os tratados e convenções internacionais
de direitos humanos, é também somente com a promulgação da Constituição
Federal de 1988 que a discussão em torno do acesso à justiça é impulsionada.
Em que pese o fato de o Brasil ter sido signatário originário da Declaração
Universal de Direitos Humanos de 1948, a ratificação tanto dos Pactos sobre
Direitos Civis4 e sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais5 de 1966 e da
Convenção Americana de Direitos Humanos de 1969, conhecida como Pacto de
San José da Costa Rica6, somente se concretizam após 1988.
Desses documentos o que se extrai é que o país, reconhece tanto em nível
constitucional quanto em nível internacional que toda pessoa tem o direito de
ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável, por um
juiz ou tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido anterior-
mente por lei, na apuração de qualquer acusação penal contra ela, ou para que
se determinem seus direitos ou obrigações de natureza civil, trabalhista, fiscal
ou de qualquer natureza.
Nesse cenário, a ordem constitucional recente reconhece, por meio do §2º
do Artigo 5º, que são direitos fundamentais não só o que está expresso em
seu texto, mas também tudo o que decorre de princípios por ela adotados e
também de tratados e convenções internacionais dos quais seja signatário. A
Constituição Federal de 1998, em compasso com o que preceituam, portanto,
os princípios do direito internacional dos direitos humanos, garante diversos
tipos de acesso à justiça gratuitamente, dentre elas, a criação da Defensoria
Pública, a instituição da Ordem dos Advogados do Brasil, a Substituição Pro-
4 Adotado pela XXI Assembleia Geral da ONU em 16/12/1966, A sua ratificação é concluída em 1992
(Congresso Nacional – Decreto Legislativo 226, de 12/12/1991 – Depósito em 24/01/1992 – Entrada
em vigor 24/04/1992 – Decreto Presidencial: 06/07/1992P
5 Adotado pela Resolução n.2.200-A (XXI) da Assembleia Geral das Nações Unidas, em 16 de dezem-
bro de 1966 e ratificado pelo Brasil em 24 de janeiro de 1992.
6 Assinada na Conferência Especializada Interamericana sobre Direitos Humanos, San José, Costa Rica,
em 22 de novembro de 1969 e ratificado pelo Brasil por meio do Decreto nº 978, de 06.11.1992.

173
DIREITOS HUMANOS E VULNERABILIDADES

cessual Sindicalista, além de garantir ao hipossuficiente que o acesso à justiça


pode ser realizado de forma gratuita.
Todos esses mecanismos são criados visando reduzir os obstáculos do
acesso à Justiça e a Constituição de 1988 reafirma o dever do estado na presta-
ção de Assistência Jurídica integral e gratuita a todos que preencham os requi-
sitos legais para garantir este direito.
Todavia, há que se ressaltar que esse aparato formal, tanto que assegura
direitos como também o direito de acesso à justiça como instrumento para a
efetivação desses direitos nas esferas civil, política, econômica, social e cultu-
ral, evidentemente que não são suficientes para sua satisfação em nível não só
guiado pelo parâmetro do “mínimo existencial”, mas também pelo parâmetro
da otimização, razão pela qual deve-se buscar meios, cada vez mais aperfeiçoa-
dos, para alcançar o exercício pleno da cidadania.
No que tange à esfera socioeconômica, as limitações ao exercício de di-
reitos e, em especial do direito de acesso à justiça, possuem aspectos culturais,
psicológicos e procedimentais que cada vez mais se apresentam como obstacu-
lizadores do direito a ter direitos, dentre os quais se ressalta a) o elevado valor
econômico dos procedimentos judiciais necessários para a garantia do acesso à
justiça em face de um cenário de extrema desigualdade social e precária distri-
buição de renda; b) as barreiras estruturais, como racismo e sexismo que pro-
movem o silenciamento de negros e mulheres periféricos no país; c) o elevando
apreço do Poder Judiciário pelo direito processual em detrimento do direito
material, fruto da estrutura do ensino jurídico estabelecida no país.
Merece destaque, ainda nesse cenário, o fato de que no Brasil a prestação
jurisdicional ainda é a mais comum e recorrente e, embora outras formas de
solução de conflitos sejam admitidas, isso não equivale dizer que elas sejam
acessíveis a todos.
Sobre a gratuidade da justiça, garantida na Lei 1.060/50, ela se apresenta
mais como uma espécie da assistência judiciária com caráter de excepcionali-
dade do que propriamente como um instrumento de universalização do direi-
to de acesso à justiça, o que acaba por se evidenciar a sua incompatibilidade,
tanto com a ordem Constitucional quanto com as obrigações decorrentes dos
tratados e convenções internacionais anteriormente mencionados.7
O que se depreende é que o Brasil, guiado pela tradição liberal do “mí-
nimo existencial” e pela herança de um passado autoritário recente, tem se
distanciado cada vez mais da concepção otimizadora dos direitos humanos
e da própria medida da dignidade humana enaltecida pela Declaração Uni-
7 Nesse sentido, vale ressaltar a decisão do Superior Tribunal de Justiça em Recurso Especial nº 174.538/
SP, no qual firmou entendimento de que a simples afirmação do estado de miserabilidade já concede
ao requerente a justiça gratuita. (Grifo dos autores)

174
SILZIA ALVES CARVALHO – DIMAS PEREIRA DUARTE JÚNIOR

versal de 1948. O que parece corroborar a tese de que o direito de acesso à


Justiça, muito antes de alcançar a universalização ainda necessita atravessar
o fosso das desigualdades econômicas, sociais, culturais e estruturais históri-
cas, legados de uma colonialidade obstrutiva e de um autoritarismo elitista e
silenciador das vozes das minorias.

5. O PARADOXO DO MÍNIMO EXISTENCIAL E DAS NECESSIDADES


HUMANAS BÁSICAS
O dilema que tem acompanhado o processo de afirmação dos direitos
do homem, recorrentemente é lembrado como fruto do desenvolvimento do
sistema de produção capitalista, no entanto, sua gênese pode ser observada,
assim como os primeiros instrumentos que marcam esse processo, ainda de
forma embrionária, em todos os momentos da história remota e recente dos
direitos do homem.
Pereira (2000), nesse sentido, afirma que a ideia de mínimos sociais ou
existenciais “é uma medida antiga, que transcende as fronteiras nacionais e
excede os limites das sociedades tipicamente mercantis” (pág. 15) e, ainda, que:
Fruto secular das sociedades divididas em classes – sejam elas escra-
vistas, feudais ou capitalistas – , a provisão de mínimos sociais, como
mínimos de subsistência, sempre fez parte da pauta de regulações desses
diferentes modos de produção, assumindo preponderantemente a forma
de uma resposta isolada e emergencial aos efeitos da pobreza extrema.
(PEREIRA, 2000, pág. 15).
É essa a roupagem de mínimo de subsistência, primeiramente na forma
de busca por um lugar no cenário político e posteriormente na busca de meios
de sobrevivência, que os direitos humanos assumem, mais precisamente na
modernidade, quando o constitucionalismo de direitos passa a tratar a questão
social como um problema político.
O dilema, assim apresentado, pode parecer de ordem meramente semân-
tica, mas na verdade ele adentra em questões conceituais, políticas e estratégi-
cas trazendo imbricações para o próprio conceito de dignidade humana.
Se o mínimo, conforme afirma Pereira (2000, pág. 26), apresenta a cono-
tação de “menor, de menos, em sua acepção mais íntima, identificada com
patamares de satisfação de necessidades que beiram a desproteção social”, o
básico não. O básico, nesse contexto, expressa algo fundamental, principal,
primordial, que serve de base para a sustentação indispensável e fecunda ao
que a ela se acrescenta, ou seja, enquanto o mínimo nega, o básico prepara o
terreno para impulsionar a satisfação básica de necessidades rumo ao ótimo,
por conseguinte, rumo à construção de uma concepção de direitos mais pró-
xima do conceito dignidade humana.

175
DIREITOS HUMANOS E VULNERABILIDADES

O enfrentamento das concepções de mínimo existencial e necessidades


básicas, sob a óptica universalista dos direitos humanos deixa evidente que
uma visão, no mínimo oblíqua, se estabelece quando os direitos do homem são
postos sob o confronto entre necessidades humanas e necessidades biológicas.
No que tange ao direito de acesso à justiça essa métrica não produziria
cenário diferente, senão, até mesmo mais clara quando se vislumbra, de for-
ma aberta, que a noção de mínimo existencial nitidamente acaba por preva-
lecer sobre a ideia de necessidades básicas como pressuposto para o alcance
de padrões ótimos não só de sobrevivência, mas também, de reconhecimento
do homem como verdadeiro sujeito de direito tanto no plano interno quanto
no plano internacional.
O que se vislumbra, portanto, da normativa tanto constitucional quanto
internacional de proteção do direito de acesso à justiça, construída tanto nos
períodos que antecederam a Segunda Guerra quanto nos momentos que a su-
cederam, é que os instrumentos enunciadores do referido direito se furtaram a
enfrentá-los sob a óptica do caráter da otimização da satisfação de necessidades
humanas básicas, restringindo a enunciar direitos capazes de prover as neces-
sidades biológicas de um ser vivente e não as de um ser humano considerado
na sua totalidade, restando evidenciado a primazia da dimensão natural sobre
a dimensão social e humana na especificação de direitos, comprometendo, por
conseguinte, a própria definição objetiva e universal dos direitos humanos,
mais especificamente aqueles destinados às parcelas menos favorecidas e mais
vulneráveis dentro de uma sociedade estruturada em classes.
Do que se depreende que, para uma concepção verdadeiramente univer-
sal, interdependente, inter-relacionada e indivisível de direitos humanos, tal
como a preceituada pela Declaração e Plano de Ação de Viena de 1993, neces-
sário se faz trazer à tona, no plano das relações internacionais, o debate sobre a
real fundamentação dos direitos humanos.
Enquanto vinculado à ideia de mínimo existencial, o direito de acesso
à justiça, não passará de uma armadilha da pobreza e não como máxima a
orientar sua formulação e materialização atrelado à ideia de necessidade bá-
sica e apto a promover o alcance de padrões ótimos de modo a corroborar a
realização da tão almejada dignidade humana por meio do reconhecimento,
por completo, do homem como sujeito de direito, protegendo direitos civis e
políticos e também direitos econômicos, sociais e culturais, aqui considerados
não como benesses ou como favores concebidos e concedidos por práticas po-
líticas relativistas e seletivas, mas como verdadeiros direitos capazes de lançar
o homem como detentor do direito de participar e usufruir de toda a herança
civilizacional deixada de herança história social dos direitos humanos.
À luz desses dois dilemas que passamos a buscar uma reconstrução históri-

176
SILZIA ALVES CARVALHO – DIMAS PEREIRA DUARTE JÚNIOR

ca-social do ideário fundamentador dos direitos humanos, tanto no plano consti-


tucional como no plano internacional para, então, compreendê-los como ponto de
partida e não de chegada da sociedade contemporânea rumo a sua consagração,
ao menos do ponto de vista formal-regulatório, como verdadeiros direitos capa-
zes de orientar práticas políticas ótimas e não mínimas no que concerne ao modo
como o ser humano vem a ser tratado pela instituição estatal no século XXI.
Enquanto pautadas na ideia de mínimos existenciais, as práticas políticas
destinadas a promover a universalização do acesso à justiça não conseguiram
atingir outro objetivo senão o de negar, segregar, excluir e contribuir cada vez
mais para a produção e reprodução da pobreza, da miséria e da vulnerabilida-
de que assola parcelas crescentes da sociedade contemporânea.
Longe de ser meramente mais uma fórmula de externar preferências par-
ticulares disseminadas na sociedade capitalista graças ao avanço da inovação
industrial, do progresso técnico e da comunicação de massa, cuja satisfação só
poderá ser provida pelo mercado, a ideia das necessidades humanas básicas en-
quanto parâmetro orientador da formulação e implementação de políticas pú-
blicas desborda os limites estreitos da noção de sobrevivência. (PEREIRA, 2013)
Para Doyal e Gough (1991), os precursores na difusão desse debate, a ideia
de vida ou de direito à vida só poderá ser tomada por um significado amplo
que envolva, para além da preservação e garantia de sua continuidade material,
fatores relativos ao seu pertencimento no espaço social; ou seja: em tudo aquilo
que confira à vida um sentido de participação e de preenchimento adequado de
requerimentos segundo os quais todos possam agir no sentido de transformar a
realidade de modo a aproximá-la escrupulosamente de uma existência exitosa.
Corroborando esse entendimento, Pereira (2013) afirma que:
A assunção dessa compreensão pressupõe o reconhecimento de que exis-
tem necessidades humanas que, além de objetivas, são universais. Objeti-
vas, porque a sua especificação teórica e empírica não se baseia em prefe-
rências individuais e subjetivas; e universais, porque, a concepção de sérios
prejuízos decorrentes de sua não-satisfação, ou satisfação inadequada, é a
mesma para todos em qualquer cultura. [...] O entendimento aqui prevale-
cente sobre o que sejam necessidades humanas básicas é o de que as mes-
mas são pré-condições universais para a participação social ou a libertação
de homens e mulheres das necessidades. Estas precondições são identifica-
das como saúde física e autonomia. A saúde física é essencial para alguém
viver, ser capaz de agir e de participar socialmente (PEREIRA, 2013, p. 54).
Essa medida ou entendimento é que irá conferir ao direito de acesso à jus-
tiça o status de instrumento de emancipação social e de exercício da autonomia
crítica e autodeterminação sempre passíveis de expansão para toda a sociedade,
pois, uma vez guiado por parâmetros ótimos e não mínimos, como amplamente
difundidos e defendidos pela vertente neoliberal, sobretudo em momentos de

177
DIREITOS HUMANOS E VULNERABILIDADES

“crise econômica”, é que poderão exercer influência determinante no pleno de-


senvolvimento dos cidadãos, rompendo com a máxima de que políticas sociais
são caridade, benevolência ou meras promessas constitucionais focalizadas na
pobreza, na subjetividade do direito, na condicionalidade do sujeito, admitindo
prerrogativas e contrapartidas, na subsidiariedade e complementaridade e na
sujeição do interessado a testes para comprovação de pobreza.
Nesse sentido, o que se vislumbra da análise do cenário brasileiro, é que
a fórmula de otimização preceituada por Cappelletti e Garth (1998) e corro-
borada por Sadek (2014), que preceitua a conjugação da garantia de acesso à
justiça aos pobres com a representação dos direitos difusos e a informaliza-
ção de procedimentos de resolução de conflitos, tem encontrado obstáculos
que podem ser traduzidos na mitigação de direitos, sobretudo de populações
vulneráveis. Isso porque, além da justiça ser cara, o que afeta o reconheci-
mento e o exercício de direitos e, em consequência, a identificação de quando
são ameaçados e/ou desrespeitados, há ainda os obstáculos culturais e rela-
cionados à formação e à mentalidade dos operadores do direito que, sobre-
postas, obstruem constituem-se no grande obstáculo para a universalização e
maximização do acesso à justiça (SADEK, 2014, p.58).
Vale lembrar que não é incomum interpretações no mesmo sentido daque-
la manifestada pela 9ª Câmara de Direito Criminal do Tribunal de Justiça de
São Paulo, proferida nos autos do Habeas Corpus n° 0018022- 92.2012.8.26.0000,
que ao abordar a questão da razoável duração do processo, à luz da Convenção
Americana sobre Direitos Humanos, afirma que “não há prazo estabelecido na
lei para conclusão do processo, de réu preso ou não”.
Em seu voto, o Relator, Desembargador Francisco Bruno, assim se pro-
nuncia:
[...] De tal sorte, e felizmente, hoje se pode afirmar: não há data prede-
terminada para encerramento do processo criminal de réu preso. Mesmo
porque, embora não mais tenhamos os saudosos Códigos de Processo es-
taduais, ainda estamos, bem ou mal, numa federação; não faria sentido
que o mesmo prazo vigorasse no Rio Grande do Sul, em São Paulo, no
Piauí e no Amazonas. [...]. Mais, se cada Estado é um Estado, também cada
cidade é uma cidade, cada crime um crime e cada processo um processo
um processo. Assim, a alegação de excesso de prazo deve ser analisada
isoladamente, para verificar se, em concreto, a demora de que reclama o
paciente carece de razoabilidade (TJSP, 2012).
Útil comparar essa decisão com a jurisprudência da Corte Interameri-
cana de Direitos Humanos, que passou a entender, a partir dos casos Escué
Zapata vs. Colômbia (Sentença de 5 de maio de 2008. Série C No. 178); Hilio-
doro Portugal vs. Panamá (Sentença de 12 de agosto de 2008); Bulácio vs. Ar-
gentina (Sentença de 18 de setembro de 2003); Barreto Leiva vs. Venezuela (

178
SILZIA ALVES CARVALHO – DIMAS PEREIRA DUARTE JÚNIOR

Sentença de 17 de novembro de 2009); e caso Bayarri vs. Argentina (Sentença


de 30 de outubro de 2008), que a mensuração da razoável duração do proces-
so não fica adstrita apenas à especificidade ou complexidade da causa, mas
também, a atividade processual do interessado, a conduta das autoridades
judiciais, e, ainda o tempo de duração de medidas cautelares. De sorte que,
a excessiva demora, quer seja decorrente de quaisquer um desses elementos,
por si, já configura obstáculo ao acesso à justiça.
Por certo que a Emenda Constitucional nº 45/2004, ao introduzir o inciso
LXXVIII, no artigo 5º da CF/88, o qual estabelece a observância do princípio
da razoável duração do processo, faz um aceno para entrar em compasso com
o Pacto de San José da Costa Rica. Mas, sob a alegação de óbices estruturais,
somados aos obstáculos do custo, do reconhecimento e da simplificação dos
processos de solução de conflitos, o que se denota é uma continua reprodução
da máxima da otimização do acesso à justiça, ao contrário.
Assim, mesmo com o advento da Emenda 45/2004, e com a orientação da
jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos, a morosidade
sistêmica e a morosidade ativa são um dos principais gargalos para a efetiva-
ção do direito de acesso à justiça no Brasil.8

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os direitos humanos, enquanto herança das revoluções liberais burguesas
do Séc. XVIII, sempre se viram atrelados aos ideais de liberdade, igualdade e
fraternidade. No entanto, entre o momento em que se afirmaram como preceitos
éticos e ideológicos a reger a moderna concepção de Estado Democrático de Di-
reito, até o momento em que são formalmente reconhecidos pelas Declarações de
Direitos e pelas primeiras Constituições escritas, e passaram a ser materialmente
realizados, sobretudo, por meio de políticas públicas, há um longo percurso.
Da crença na liberdade e na igualdade emergem os direitos voltados a
reconhecer as liberdades públicas, a ampliar os mecanismos de participação
do cidadão no processo decisório e a afirmar que todos são iguais perante a lei.
Com a ampliação da concepção de igualdade advinda com os movimen-
tos revolucionários socialistas, do século XIX, que respondem às desigualda-
des decorrentes da Revolução Industrial deflagrada, esse direito passa a per-
mear não só a esfera do direito de participar do processo de construção do
espaço público, mas também no direito de ter lugar da distribuição dos bens e
riquezas advindas da maximização dos meios de produção.

8 No sentido de negar eficácia plena ao princípio da razoável duração do processo, vide as seguintes
decisões. TJSP. Habeas Corpus. Processo 2204900-13.2020.8.26.0000. Disponível em: https://esaj.
tjsp.jus.br/cjsg/resultadoCompleta.do, acesso em 13/10/2020
STJ. Habeas Corpus. REsp 1690216 / RS. RECURSO ESPECIAL 2017/0193448-6. Disponível em:
https://scon.stj.jus.br/SCON/pesquisar.jsp, acesso em 13/10/2020.

179
DIREITOS HUMANOS E VULNERABILIDADES

No entanto, ao focar na questão socioeconômica, o princípio da igualdade


se desvencilha de algumas das mais caras e importantes características da hu-
manidade que são a complexidade, a diversidade e o direito à diferença.
Por certo que, a fórmula tradicional que serviu para enunciar o princípio
da igualdade já não é mais suficiente para dar conta das novas demandas, das
novas assimetrias, das novas desigualdades e também das novas formas de
silenciá-las e mitigá-las, sobretudo, pelo fato de que a régua utilizada para a
satisfação desses direitos, também herdada do modelo liberal de Estado mo-
derno, sempre foi a régua do mínimo existencial.
A emergência, no século. XX, dos direitos difusos, voltados ao reconhe-
cimento de grupos e populações em situação de vulnerabilidade amplificada
para além da questão socioeconômica, é determinante para dar início a refle-
xões alternativas ao parâmetro do mínimo existencial. Um desses parâmetros é
o que foi originalmente apresentado no estudo de Doyal e Gough (1991), para
quem a satisfação e realização dos direitos devem ser guiados por parâmetros
de otimização e não de satisfação de necessidades biológicas vitais.
Nesse sentido, a concretização dos direitos por meio de políticas públicas,
guiadas por parâmetros ótimos e não mínimos deve se coadunar com a efetivi-
dade do acesso à justiça, pois esse passa a ser um instrumento voltado a garan-
tir também a prestação jurisdicional em caso de violação de direitos de ordem
econômica, social e cultural, pautado nos princípios da isonomia e da dignida-
de humana. Princípios que foram afirmados pelo Estado brasileiro, interna e
internacionalmente, sobretudo com o advento da Constituição Federal de 1988.
Neste sentido, o que se constata é que podem ser delineados os critérios
para a garantia do acesso à justiça por meio de políticas públicas que reconhe-
çam o direito à diferença em face do princípio da isonomia e da fundamentali-
dade da garantia à dignidade Humana.
Ressalta-se, ainda, que quaisquer critérios distintivos devem ser ampara-
dos constitucionalmente, resguardando a conotação positiva e includente pres-
tigiada pelo sistema de direitos. Desse modo, situações que potencialmente
causem desvantagens a indivíduos ou coletividades são vedadas por estabe-
lecerem distinções excludentes e incompatíveis com os direitos fundamentais.
A tutela dos direitos fundamentais por meio de políticas promovidas pela
administração pública, inclusive quanto à garantia de efetividade do acesso à
justiça de modo célere, eficiente e eficaz é uma condição para a afirmação do
Estado Constitucional de Direito. Assim, a plena concretização do princípio da
dignidade humana depende do reconhecimento das desigualdades que vul-
nerabiliza social, econômica e culturalmente muitos brasileiros. Estes não têm
sido atendidos por políticas públicas afirmativas que de modo eficiente modi-
fique sua realidade de exclusão.

180
SILZIA ALVES CARVALHO – DIMAS PEREIRA DUARTE JÚNIOR

As pesquisas a respeito dos problemas que envolve o acesso à justiça


como uma política pública que assegura a dignidade humana, assim como, a
existência de Tratados internacionais e o direito interno evidenciam a relevân-
cia da abordagem deste tema.
Este estudo foi realizado a partir da revisão bibliográfica e histórica a res-
peito da configuração dos direitos fundamentais, sobretudo, quanto às ques-
tões que envolve o acesso à justiça como uma necessidade básica, com vista a
garantir a efetividade das tutelas diante de vulnerabilidade, aqui tratadas a
partir do princípio constitucional da isonomia.
Foi possível observar que, conquanto, o Brasil seja signatário de diversos
Tratados internacionais, dentre os quais se destaca a Convenção Americana
sobre Direitos Humanos, ratificada em 1992, sendo reconhecida como o Pacto
de San Jose da Costa Rica, depois de 28 anos a jurisprudência se mantém refra-
tária a assegurar a efetividade plena ao acesso à justiça por meio da razoável
duração do processo.
Por sua vez, o reconhecimento do princípio da isonomia está delineado
na doutrina, contudo, as políticas públicas asseguradoras da concretização do
direito à diferença e da tutela aos vulneráveis não são consideradas eficientes e
eficazes. Também neste sentido, o acesso à justiça foi considerado uma necessi-
dade básica, asseguradora da dignidade humana.
O direito de acesso à justiça está no mesmo percurso do direito à iso-
nomia, à liberdade e à dignidade humana. Reconhecido, originariamente, na
forma do direito de petição, antes mesmo das Declarações de Direitos do Séc.
XVIII, ele é considerado como um direito de primeira dimensão, uma garantia
que permite a efetivação dos demais direitos.

7. REFERÊNCIAS
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temporânea – Revista de Sociologia da UFSCar. São Carlos, v. 2, n. 1, jan-jun 2012, pp. 83-102.
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1992. Site: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/D0592.htm> Acesso em 12 de
outubro de 2020.

181
DIREITOS HUMANOS E VULNERABILIDADES

BRASIL. Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. Decreto no 591,
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CAPPELLETTI, M.; GARTH, B. Acesso à justiça. Tradução de Ellen Gracie Northfleet. Porto Ale-
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teidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_186_esp.pdf Acesso em: 13/10/2020.
CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso Bulácio vs. Argentina. Sentença
proferida em 18 de setembro de 2003. Série C. No. 100. Disponível em https://www.corteidh.
or.cr/docs/casos/articulos/seriec_100_ing.pdf Acesso em: 13/10/2020.
CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso Barreto Leiva vs. Venezuela.
Sentença proferida em 17 de novembro de 2009. Série C. No. 206. Disponível em https://www.
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beas corpus criminal. HC. 0018022-92.2012.8.26.0000. Relator Desembargador Francisco Bruno.
Disponível em: https://esaj.tjsp.jus.br/cjsg/getArquivo.do?cdAcordao=5779105&cdForo=0. Acesso
em: 13/10/2020.

182
TRABALHADOR INFORMAL E-PANDEMIA DO NOVO
CORONAVÍRUS (COVID-19): O ESCANCARAMENTO DA
VULNERABILIDADE DO TRABALHADOR BRASILEIRO E
DA DISTÂNCIA DO PLENO EMPREGO NO PAÍS
Marco Antônio César Villatore
Martinho Martins Botelho
Thierry Gihachi Izuta

Sumário: 1.Introdução; 2. Pandemia da covid-19 e o combate ao vírus pelo


estado brasileiro; 3. A vulnerabilidade do trabalhador informal na pande-
mia; 4. A manutenção da atividade econômica em tempos de pandemia na
garantia do pleno emprego; 5. Considerações finais; 6. Referências.

1. INTRODUÇÃO
Neste ensaio foram analisados importantes temas ligados à pandemia do
novo coronavírus (COVID-19), sobre a quarentena e se há certa responsabilidade
do Estado em interromper a atividade econômica das empresas diante da inefi-
ciência em proteger e em garantir direitos fundamentais sobre a saúde e a vida.
O tema central da presente pesquisa está relacionado com os impactos
causados pela pandemia da COVID-19 nas relações de trabalho e a vulnerabili-
dade dos trabalhadores informais em um contexto de busca do pleno emprego.
Com base nesse assunto central, a pesquisa foi dividida em três sessões, além
desta introdução e da conclusão.
Na primeira sessão, tratou-se sobre a questão da pandemia da COVID-19
e as políticas públicas brasileiras.
Na segunda sessão, analisou-se a vulnerabilidade do trabalhador infor-
mal no contexto da pandemia.
A terceira sessão ocupou-se da manutenção da atividade econômica bra-
sileira em função da garantia do pleno emprego mesmo em contextos específi-
cos, tal como o do isolamento social em contexto pandêmico.

2. PANDEMIA DA COVID-19 E O COMBATE AO VÍRUS PELO


ESTADO BRASILEIRO
O Coronavírus é o tema em evidencia durante o ano de 2020, principal-
mente sobre as suas consequências econômicas e sociais causadas no planeta.
Conforme amplamente divulgado na mídia, o primeiro caso de COVID-19 foi

183
DIREITOS HUMANOS E VULNERABILIDADES

registrado na China, no final do ano de 2019, no município de Wuhan, uma


província de Hubei.
Diante da onda crescente do número de casos da COVID-19, somente em 11
de março a OMS declarou que o Coronavírus é uma pandemia, obrigando países
a tomarem medidas preventivas mais rígidas para conter a propagação do vírus.1
A COVID-19 impôs desafios à comunidade cientifica para combater essa
nova doença, para Werneck e Carvalho os desafios são ainda maiores para o
Brasil em decorrência de diversos fatores econômicos e sociais:
O insuficiente conhecimento científico sobre o novo coronavírus, sua alta
velocidade de disseminação e capacidade de provocar mortes em popula-
ções vulneráveis, geram incertezas sobre quais seriam as melhores estra-
tégias a serem utilizadas para o enfrentamento da epidemia em diferentes
partes do mundo. No Brasil, os desafios são ainda maiores, pois pouco se
sabe sobre as características de transmissão da COVID-19 num contexto
de grande desigualdade social, com populações vivendo em condições
precárias de habitação e saneamento, sem acesso sistemático à água e em
situação de aglomeração.2
Não obstante, o Governo Federal brasileiro, desde o dia 3 de fevereiro
de 2020, publicou uma Portaria (Portaria nº. 188/2020) decretando Estado de
Emergência em Saúde Pública de importância Nacional (ESPIN) por causa
do novo coronavírus (2019-nCoV), com base no Decreto nº. 7.616, de 17 de
novembro de 2011.
O intuito do Decreto foi de empregar de forma urgente medidas de pre-
venção, controle e contenção de riscos, danos e agravos à saúde pública. Após
essa medida, ocorreram outras políticas públicas por parte do Governo Federal
com intuito de evitar o aumento dos casos, por exemplo, facilitar a compra de
equipamentos hospitalares com a redução temporária de impostos federais.3
Sendo que o primeiro caso registrado de Coronavírus no país, foi de um
homem de 61 anos, ocorreu no Estado de São Paulo, no dia 26 de fevereiro de
2020. Na mesma data, houve 20 casos suspeitos e em sete Estados (PB, PE, ES,
MG, RJ, SP e SC), desses casos suspeitos, 12 pessoas vieram da Itália, 2 pessoas
vieram da Alemanha e 2 pessoas vieram da Tailândia, conforme informou se-
cretário de vigilância em Saúde.4
Os casos “importados” do coronavírus evidenciam que no primeiro mo-
mento da contaminação, a alta velocidade de propagação do vírus entre os
1 Disponível em: https://www.unasus.gov.br/noticia/organizacao-mundial-de-saude-declara-pandemia-
-de-coronavirus. Acesso em 20 mai. 2020.
2 WERNECK, Guilherme Loureiro; CARVALHO, Marilia Sá. A pandemia de COVID-19 no Brasil:
crônica de uma crise sanitária anunciada. CADERNOS DE SAÚDE PÚBLICA. V. 36, 2020, p. 1.
3 Disponível em: http://www4.planalto.gov.br/legislacao/portal-legis/legislacao-covid-19. Acesso em
20 mai. 2020.
4 Disponível em: https://www.saude.gov.br/noticias/agencia-saude/46435-brasil-confirma-primeiro-ca-
so-de-novo-coronavirus. Acesso em 20 mai. 2020.

184
MARCO ANTÔNIO CÉSAR VILLATORE – MARTINHO MARTINS BOTELHO – THIERRY GIHACHI IZUTA

países foi em decorrência do mundo globalizado em que vivemos na atuali-


dade, onde os aeroportos (aviões) permitiram um deslocamento e encontro de
pessoas de diversos países em um determinado local.
Atualmente, segundo os dados5 do governo brasileiro, o Brasil possui
mais de 5,5 milhões de casos confirmados, com mais de 5 milhões de recu-
perados do vírus e com mais de 160 mil mortes. Lembrando que a população
brasileira, segundo o IBGE6 é de pouco mais de 210 milhões de habitantes.
A globalização até da contaminação do vírus, fez com que seja necessária
a cooperação internacional entre os agentes públicos de saúde e de governo no
combate a contaminação do vírus, conforme pontifica Senhoras:
Conclui-se com base nestas discussões que epidemias fazem parte da rea-
lidade de um mundo cada vez mais globalizado, gerando uma série de
sensibilidades e vulnerabilidades biológicas aos Estados Nacionais que
eventualmente podem muito rapidamente se tornar em pandemias inter-
nacionais, razão pela qual a conformação de agendas de cooperação inter-
nacional, transparência comunicacional e de respostas compartilhadas se
tornam pilastras essenciais para o sucesso do sistema de governança da
saúde pública global, minimizando assim riscos epidemiológicos e conse-
quências socioeconômicas.7
Esse insuficiente conhecimento cientifico da Organização Mundial da Saúde
– OMS e dos governantes para evitar o contágio e sua alta transmissibilidade do
vírus, acabou gerando um descontrole da doença e impactando os países em de-
senvolvimento, pois são esses países que não possuem estruturas físicas e técnicas
para evitar a contaminação que são os mais vulneráveis ao aumento de casos e do
colapso do sistema de saúde, principalmente o Brasil, que possui um território de
proporções continentais e grandes desigualdades sociais em seu território.
Neste sentido sobre as medidas questionáveis da Organização Mundial
da Saúde – OMS, Macedo Junior destaca que:
[...] No entanto, é possível já se perceber alguns contornos sobre a temática
do COVID-19, a sua taxa de propagação muito rápida; a sua alta capaci-
dade de reprodução e adaptação a praticamente todos os continentes do
planeta, assim como também alguns procedimentos básicos tanto para o
seu tratamento, com algumas ações medicamentosas, pois algumas subs-
tâncias já foram apontadas como obtendo bons efeitos para o combate à
doença, embora ainda existam algumas dúvidas sobre a questão do isola-
mento, ainda que a OMS a defenda como medida benéfica. [...]8

5 Disponível em: <https://covid.saude.gov.br/>. Acesso em: 07 nov. 2020.


6 Disponível em: <https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-sala-de-imprensa/2013-agencia-de-
-noticias/releases/28668-ibge-divulga-estimativa-da-populacao-dos-municipios-para-2020#:~:text=-
O%20IBGE%20divulga%20hoje%20as,77%25%20em%20rela%C3%A7%C3%A3o%20a%20
2019>. Acesso em: 07 nov. 2020.
7 SENHORAS, Elói Martins. Coronavírus e o papel das pandemias na história humana. Boletim de
Conjuntura (BOCA). V. 1, 2020, p. 33.
8 MACEDO JÚNIOR, Adriano Menino de. Covid-19: calamidade pública. Medicus. V. 2, 2020, p. 6.

185
DIREITOS HUMANOS E VULNERABILIDADES

Muito embora o Governo Federal brasileiro tenha decretado estado de


emergência e o primeiro caso da doença tenha sido registrado no dia 26 de fe-
vereiro, os agentes públicos estaduais só tomaram medidas após a confirmação
de COVID-19 em seus Estados ou quando o número de internações nos leitos
de unidades de terapia intensiva (UTI) já estavam em um nível considerável,
ao invés de preparar o sistema público de saúde para o impacto da COVID-19,
uma vez que é público e notório que o Sistema Único de Saúde (SUS) no país
possui grandes deficiências no atendimento de toda a população e é vítima
de casos de corrupção, sendo que o coronavírus realça esta precariedade e as
condutas inadequadas e ilegais dos agentes públicos.
Ademais, em decorrência de uma decisão do Supremo Tribunal Fede-
ral (STF) foi garantido aos Estados e municípios adotarem medidas contra a
COVID-19 na pandemia de forma independente do chefe do Poder Executivo,
conforme Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 672.
Isso possibilitou que os Estados e os Municípios tomassem medidas para
tentar conter o avanço da contaminação, mas gerou consequências que afetam
a livre iniciativa, bem como o direito do trabalhador em garantir a sua subsis-
tência e do direito ao trabalho. Esta decisão, fez com que os governadores e
prefeitos tomassem medidas de políticas públicas questionáveis, incoerentes,
populistas, demagógicas ou até totalitárias para se combater o vírus, por exem-
plo o cerceamento do direito à liberdade, direito a livre iniciativa, entre outros
direitos foram desrespeitados em nome da ciência ou da “tecnocracia”.
Tendo o principal argumento para encerrar o debate sobre os atos ques-
tionáveis dos governantes brasileiros que foram veiculados na grande mídia
eram: “Fique em casa, economia se recupera, vidas não...”, “Estamos falando
em nome da ciência...”.
Ocorre que diante dessa narrativa, faz com que os especialistas estejam
na supremacia das políticas públicas, deixando de se observar que o Estado
depende da economia para gerar tributos, consequentemente possibilitaria o
Estado fazer arrecadação e ter recursos financeiros para combater o vírus. É
equivocado ter o entendimento de que vida é mais importante do que a econo-
mia ou vice-versa, um depende do outro, ambos têm o mesmo grau de impor-
tância. Neste sentido Lemos, Almeida-Filho e Firmo destacam que:
O problema é que os conselhos que esses especialistas estão dando repre-
sentam uma ameaça imediata à economia. Isso importa. O próprio declí-
nio econômico tem um efeito adverso na saúde. A redução da atividade
econômica reduz a circulação de dinheiro e, com ela, as receitas tributá-
rias. Isso reduz as finanças disponíveis para as contramedidas da saúde
pública necessárias para controlar a pandemia. Também atinge indivíduos
e famílias, que podem ver sua renda despencar catastroficamente. Uma
vez esgotadas suas reservas financeiras, as empresas fecham, com conse-

186
MARCO ANTÔNIO CÉSAR VILLATORE – MARTINHO MARTINS BOTELHO – THIERRY GIHACHI IZUTA

quências para seus proprietários, funcionários e fornecedores.9


A pandemia do novo coronavírus acabou evidenciando os problemas e as
desigualdade sociais que assolam a sociedade brasileira, ainda mais a situação
de vulnerabilidade e precariedade dos trabalhadores informais, ficando reféns
de governadores e prefeitos, sem contrapartida para se proteger do vírus ou pos-
suir recursos financeiros para garantir a sua subsistência durante a pandemia.
Neste sentido, Ramos entende que:
A pandemia, seja no centro, seja na periferia do capitalismo, em múlti-
plas escalas, do bairro em que muros de condomínios exclusivos ladeiam
extensas favelas; às metrópoles com sua pobreza visível e invisível mate-
rializada entre outras formas na população em situação de rua e no traba-
lho hiperprecário, expõe nossas assimetrias históricas e o surto vai expor
nossas entranhas.10
Atento a esta situação de vulnerabilidade e dos impactos econômicos e so-
ciais decorrentes da pandemia do coronavírus, foi aprovado no Congresso Na-
cional no dia 22 de abril e sancionado pelo Governo Federal no dia 15 de maio de
2020, a Lei nº. 13.982/2020 que institui o Auxilio Emergencial para os trabalhadores
informais, microempreendedores individuais (MEI), autônomos e desemprega-
dos, ou pessoas que vivem em situação de vulnerabilidade social durante o perío-
do de enfrentamento causada pela pandemia do novo coronavírus – COVID 19.
Este auxílio emergencial, popularmente conhecido como “Corona Vou-
cher”, ficou fixado pelo Governo Federal no valor de R$ 600,00 (seiscentos
reais) ou para as famílias onde a mulher seja a única responsável pelas despe-
sas familiar, o valor pago mensalmente será de R$ 1.200,00 (hum mil e duzen-
tos) no período de 3 meses. Este auxílio foi ampliado para mais dois meses de
R$ 600,00 (seiscentos reais) e, atualmente, em decorrência da Medida Provisó-
ria nº. 1.000, de 2 de setembro de 2020, teve mais uma prorrogação do auxílio
governamental no valor de R$ 300 ou R$ 600 para mães provedoras de família.
Tema que será abordado com maior profundidade no próximo tópico.

3. A VULNERABILIDADE DO TRABALHADOR INFORMAL NA


PANDEMIA
Conforme informado no tópico anterior, a pandemia trouxe inúmeros im-
pactos econômicos e sociais, um dos maiores impactos foram nas relações de
trabalho com os Decretos estaduais que determinaram a quarentena, o lockdo-
9 LEMOS, P., ALMEIDA-FILHO, N., FIRMO, J. COVID-19, desastre do sistema de saúde no presente
e tragédia da economia em um futuro bem próximo. In: Brazilian Journal of Implantology and
Health Sciences. 2 (4), 2020, p. 42. https://doi.org/10.36557/2674-8169.2020v2n4p39-50.
10 RAMOS, Tatiana Tramontani. Pandemia é pandemia em qualquer lugar – vivendo a crise da Covid-19
de fora dos grandes centros. In: Espaço e Economia [Online], número 18. Acesso em 20 maio 2020.
Disponível em: http://journals.openedition.org/espacoeconomia/11406; DOI: https://doi.org/10.4000/
espacoeconomia.11406. p. 07.

187
DIREITOS HUMANOS E VULNERABILIDADES

wn e a restrição de certas atividades econômicas.


Essas medidas têm o intuito de reduzir em algum grau o contato social
das pessoas para evitar o contágio ou reduzir a propagação do vírus, conforme
descrevem Werneck e Carvalho:
Essas medidas, denominadas de “isolamento vertical”, são em geral
acompanhadas de algum grau de redução do contato social. Em geral co-
meça com o cancelamento de grandes eventos, seguido paulatinamente
por ações como a suspensão das atividades escolares, proibição de even-
tos menores, fechamento de teatros, cinemas e shoppings, recomendações
para a redução da circulação de pessoas. É o que se convencionou chamar
de “achatar a curva” da epidemia.11
Em consonância aos principais objetivos dos decretos estaduais como ins-
trumento de redução de casos e proteção ao sistema de saúde, Farias destaca que:
O objetivo desses decretos é interromper a transmissão do vírus para que o
sistema de saúde não seja sobrecarregado. Muitos serão infectados, infeliz-
mente, mas se a procura pelo sistema de saúde for mais espaçada no tempo,
haverá mais e melhores condições de atendimento. Descumprir o isolamen-
to aumenta a transmissão de maneira muito rápida e, por consequência,
aumenta e muito a procura por socorro, podendo faltar leitos e respiradores
para os doentes, caracterizando o colapso do sistema de saúde.12
Contudo, a manutenção da quarentena por tempo indeterminado por
parte dos governantes, acaba afetando a manutenção da atividade econômica,
acarretando em demissões dos trabalhadores, bem como acaba afetando a sub-
sistência dos trabalhadores informais que dependem da atividade econômica
de outros setores para sobreviver. Corroborado neste sentido socioeconômico,
Ramos entende que a pandemia trouxe grandes impactos negativos para as
relações de trabalho:
Invariavelmente e em diferentes escalas, o mundo do trabalho será pro-
fundamente impactado pela pandemia, assim como as diferenças na in-
fraestrutura urbana e seus níveis de segregação, desigualdade e desen-
volvimento sócio-espacial farão toda diferença nas consequências desse
momento histórico no futuro das cidades. O processo ainda está em curso.
A periferia do sistema capitalista adentra agora ao estado de urgência/
calamidade. As consequências ainda são incertas e especulativas, mas os
prognósticos, assustadores, como vêm sinalizando alguns documentos e
estudos técnicos ao redor do mundo.13

11 WERNECK, Guilherme Loureiro; CARVALHO, Marilia Sá. A pandemia de COVID-19 no Brasil:


crônica de uma crise sanitária anunciada. CADERNOS DE SAÚDE PÚBLICA. V. 36, 2020, p. 1 e 2.
12 FARIAS, Heitor Soares de Farias. O avanço da Covid-19 e o isolamento social como estratégia
para redução da vulnerabilidade. Espaço e Economia [Online], 17 | 2020, URL: http://journals.
openedition.org/espacoeconomia/11357; DOI: https://doi.org/10.4000/espacoeconomia.11357, p. 04.
13 RAMOS, Tatiana Tramontani. Pandemia é pandemia em qualquer lugar – vivendo a crise da Covid-19
de fora dos grandes centros. In: Espaço e Economia [Online], número 18. Acesso em 20 maio 2020.
Disponível em: http://journals.openedition.org/espacoeconomia/11406; DOI: https://doi.org/10.4000/
espacoeconomia.11406. p. 02.

188
MARCO ANTÔNIO CÉSAR VILLATORE – MARTINHO MARTINS BOTELHO – THIERRY GIHACHI IZUTA

Neste caso, entende-se que há uma certa responsabilidade do Estado por


interromper a atividade econômica das empresas e consequentemente, afetan-
do os trabalhadores informais de trabalharem, em decorrência da ineficiên-
cia estatal de proteger e garantir direitos fundamentais das pessoas, como por
exemplo, direito a saúde, direito a vida.
Essa ineficiência estatal é decorrente dos Estados serem incapazes de pos-
suir leitos de unidades de terapia intensiva (UTI) suficientes para atender toda
a população que for contaminada pelo COVID-19, isto é, o Estado terceiriza
a sua responsabilidade constitucional por ser ineficiente em garantir direitos
fundamentais previstos na CRFB/1988 para a população, fazendo uso de medi-
das restritivas de circulação, da atividade econômica ou do trabalho, em prol
da ciência ou de acordo com os “especialistas”.
O próprio Estado brasileiro desrespeita os preceitos do preâmbulo da
Constituição de 1988, onde a Carta Magna destaca a importância da liberdade
nos valores relevantes deste Estado Democrático de Direito:
[...] destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais,
a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e
a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e
sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem
interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias [...] (des-
taque nosso)
As medidas restritivas dos governantes acabam desrespeitando preceitos
internacionais como o art. 23 da Declaração Universal de Direitos Humanos:
Artigo 23
1. Todo ser humano tem direito ao trabalho, à livre escolha de emprego,
a condições justas e favoráveis de trabalho e à proteção contra o desem-
prego.
2. Todo ser humano, sem qualquer distinção, tem direito a igual remune-
ração por igual trabalho.
3. Todo ser humano que trabalha tem direito a uma remuneração justa
e satisfatória que lhe assegure, assim como à sua família, uma existência
compatível com a dignidade humana e a que se acrescentarão, se necessá-
rio, outros meios de proteção social.
4. Todo ser humano tem direito a organizar sindicatos e a neles ingressar
para proteção de seus interesses. (Destaque nosso)
Portanto, tais medidas como da quarentena ou do lockdown, impede o fun-
cionamento das empresas, afetando a livre iniciativa e de trabalhadores infor-
mais que dependem do trabalho para garantir a sua subsistência e de sua família.
Muito embora, os principais argumentos a favor da quarentena são da
supremacia do interesse público sobre o privado, da proteção do direito à vida,

189
DIREITOS HUMANOS E VULNERABILIDADES

da proteção e o direito à saúde. Conforme a decisão da ADPF 672, são medidas


para “achatar a curva” de crescimento do contagio da doença.
Corroborado com este entendimento, Werneck e Carvalho entendem que
a medida de quarentena, lockdown tem o intuito apenas de impedir o colapso da
saúde e retardar ao máximo o aumento de casos até a chegada de alguma vacina:
Uma fase de supressão pode ser necessária quando as medidas anteriores
não conseguem ser efetivas, seja porque sua implementação não pode ser
concretizada de forma adequada e imediata (p. ex.: insuficiência de testes
diagnósticos necessários para identificar indivíduos infectantes logo no
início da epidemia) ou porque a redução alcançada na transmissão é insu-
ficiente para impedir o colapso na atenção à saúde. Na fase de supressão
são implantadas medidas mais radicais de distanciamento social, de toda
a população. Aqui o objetivo é adiar ao máximo a explosão do número de
casos, por tempo suficiente até que a situação se estabilize no campo da
assistência à saúde, procedimentos de testagem possam ser ampliados e,
eventualmente, alguma nova ferramenta terapêutica ou preventiva eficaz
(p. ex.: vacina) esteja disponível.14
Ocorre que tais medidas não podem ser permanentes ou únicas para conter
o contagio do vírus, deveriam ser apenas paliativas até o sistema de saúde estar
preparado. Tendo em vista que estas medidas acabam afetando as empresas e
consequentemente o trabalhador, conforme entendem Rita e Ferreira Junior:
Assim, o fato inteiramente inédito nessa crise é que, na ausência de políti-
cas públicas típicas de tempos de guerra, as empresas deixarão de produ-
zir e as pessoas perderão seus empregos simplesmente para não ter suas
vidas ceifadas pela Covid-19.15
Esses impactos já sentidos pelo trabalhador, pois atualmente no Brasil
temos mais de 13,8 milhões de desempregados, conforme os dados do IBGE.16
Infelizmente os dados não englobam as pessoas que trabalham na informalida-
de para garantir sua sobrevivência. Os desempregados já se encontravam em
situação de vulnerabilidade econômica em decorrência da crise econômica que
o país se encontrava antes da pandemia.
Estes dados imprecisos, deixam de mostrar a verdadeira realidade econô-
mica brasileira, tendo em vista que uma grande quantidade de trabalhadores,
trabalham na informalidade ou em trabalhos precários e que ficaram sem ren-
da por causa da pandemia e principalmente, após os decretos estaduais que
determinavam a quarentena da população.
Conforme já informado durante esta pesquisa, o Governo Federal imple-

14 WERNECK, Guilherme Loureiro; CARVALHO, Marilia Sá. A pandemia de COVID-19 no Brasil:


crônica de uma crise sanitária anunciada. CADERNOS DE SAÚDE PÚBLICA. V. 36, 2020, p. 2.
15 RITA, Luciana Peixoto Santa; FERREIRA JUNIOR, Reynaldo Ruben. Impactos da Covid-19 na Econo-
mia: limites, desafios e políticas. In: CADERNOS DE PROSPECÇÃO. V. 13, p. 459-476, 2020, p. 465.
16 Disponível em: <https://g1.globo.com/economia/noticia/2020/10/30/desemprego-no-brasil-sobe-pa-
ra-144percent-em-agosto-diz-ibge.ghtml>. Acesso em 07 nov. 2020.

190
MARCO ANTÔNIO CÉSAR VILLATORE – MARTINHO MARTINS BOTELHO – THIERRY GIHACHI IZUTA

mentou o Auxilio Emergencial para atenuar o impacto da pandemia. Ocorre


que o número de solicitações ao Auxílio Emergencial foi muito superior a esti-
mativa do governo, sendo muito superior ao número de desempregados.
Evidenciando a verdadeira realidade econômica no país, dos 210 milhões
de habitantes, uma boa parte dos brasileiros trabalham de forma autônoma ou
informal e que foram impactados pela pandemia, segundo os números divul-
gados pelo DATAPREV17, foram cerca de 118.733.399 de pessoas beneficiadas e
que cumpriram os requisitos estabelecidos pelo Governo Federal18 para a con-
cessão do Auxílio Emergencial ou “Corona Voucher”, isso representa mais da
metade da população brasileira.
Isto posto, entende-se que o fechamento/impedimento da atividade eco-
nômica faz com que o trabalhador informal fique ainda mais vulnerável por
não conseguir desenvolver a sua atividade econômica ou seu trabalho em um
determinado local e obter a sua remuneração.
Para Lemos, Almeida-Filho e Firmo a grande parte da população des-
cumpre as medidas de distanciamento social ou se expõe ao risco de contami-
nação do vírus por necessidade de sobrevivência econômica, principalmente
para não morrer de fome:
É importante observar que é provável que um surto que exija distancia-
mento social e quarentena para controle se desenvolva de maneira muito
diferente em um ambiente em que há uma força de trabalho com acesso
a cuidados de saúde gratuitos e proteção à renda do que naqueles em
que muitos empregos são ocasionais e pessoas deve optar por ir trabalhar
quando estiver doente ou morrer de fome.19
Para evitar a perpetuação da situação de vulnerabilidade do trabalhador
informal, cabe ao Estado adotar medidas para a retomada da economia, bem
como a implementação da política pública e a efetivação do pleno emprego,
tema que será abordado no próximo tópico.

4. A MANUTENÇÃO DA ATIVIDADE ECONÔMICA EM TEMPOS DE


PANDEMIA NA GARANTIA DO PLENO EMPREGO
A busca do pleno emprego assume, atualmente, o grau de princípio nor-
teador das relações socioeconômicas no Brasil, representando um vetor regula-

17 Órgão responsável pela análise dos dados do Auxílio Emergencial.


18 Disponível em: <https://portal2.dataprev.gov.br/auxilio-emergencial-confira-os-ultimos-nu-
meros-da-dataprev#:~:text=%E2%96%BA%20PESSOAS%20BENEFICIADAS%3A%20
118.733.399&text=*%20Requerentes%20do%20Aux%C3%Adlio%20Emergencial%20que%20re-
ceberam%2Freceber%C3%A3o%20os%20recursos.>. Acesso em 07 nov. 2020.
19 Disponível em: <https://portal2.dataprev.gov.br/auxilio-emergencial-confira-os-ultimos-nu-
meros-da-dataprev#:~:text=%E2%96%BA%20PESSOAS%20BENEFICIADAS%3A%20
118.733.399&text=*%20Requerentes%20do%20Aux%C3%Adlio%20Emergencial%20que%20re-
ceberam%2Freceber%C3%A3o%20os%20recursos.>. Acesso em 07 nov. 2020.

191
DIREITOS HUMANOS E VULNERABILIDADES

dor das atividades econômicas, das políticas públicas e dos alicerces gerais do
sistema capitalista de produção, razão pela qual está considerado pelo ordena-
mento jurídico infraconstitucional, por meio de incentivos à iniciativa privada,
para a criação e a manutenção do nível geral de empregos.20
A arquitetura jurídica do direito econômico brasileiro, sendo composto
por outros microssistemas internos, encontra embasamento na constituição
econômica de 1988, tendo como finalidade a perseguição do princípio da pre-
servação da atividade empresária.21
Este último princípio pode ser considerado como um reflexo da busca
do pleno emprego, contribuindo para o combate ao desemprego, considerado
como relevante variável da condução da política econômica a partir da queda
da Bolsa de Valores de 1929 e da retomada da ideia do desenvolvimento eco-
nômico do final do século XX e início do século XXI.22
O regime jurídico do Direito Econômico do Trabalho, também previsto
por princípios do artigo 7º. da Constituição da República Federativa do Brasil
de 1988 (CRFB/1998), busca preservar o nível de emprego. Isso se justifica na
medida em que a mão de obra representa importante fator produtivo e dis-
tribuidor dos direitos fundamentais, diferenciando-se de outros elementos
de produção em razão da sua importância na estruturação de um sistema
socioeconômico justo.23
No âmbito sociológico, a valorização do trabalho implica na possibilida-
de da manutenção dos postos de trabalho, na arrecadação de tributos a partir
da empregabilidade, no fortalecimento na produção de bens e de serviços para
a satisfação das necessidades humanas e na continuidade da execução dos con-
tratos celebrados com outros agentes econômicos.
Em conjunção com a valorização do trabalho, o princípio da busca do ple-
no emprego pode ser considerado um reflexo da justiça social, tendo também
relação com a questão da solidariedade social.24
O desemprego representaria uma grande perda de riqueza, de produção
de bens e de serviços, e a “desutilização” do fator de produção trabalho, cau-
sando graves consequências por ser um fator irrecuperável. Aliás, além disso, a
teoria do pleno emprego keynesiana representaria um esforço dos fundamen-

20 BOTELHO, Martinho Martins; WINTER, Luís Alexandre Carta. O princípio constitucional do pleno
emprego: alguns apontamentos em Direito Econômico brasileiro. In: Thesis juris. V. 3, n. 1, jan./jun.
2014, p. 56.
21 BASTOS, Celso Ribeiro; MARTINS, Ives Gandra da Silva. Comentários à Constituição do Brasil:
promulgada em 5 de outubro de 1988. 3. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 19.
22 ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales. Madrid: Centro de Estudos Constituciona-
les, 1997, p. 81.
23 MARTINS, Sergio Pinto. Manual do Trabalho Doméstico. São Paulo: Editora Atlas, 2006, p. 76.
24 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 3. ed. Coim-
bra: Livraria Almedina, 1999, p. 31.

192
MARCO ANTÔNIO CÉSAR VILLATORE – MARTINHO MARTINS BOTELHO – THIERRY GIHACHI IZUTA

tos daquelas escolas econômicas sociológicas e sociais que entendiam que o


desemprego teria custos sociais mais altos. 25/26
Com isso, é possível se dar exemplo de fatos sociais causados pelo desem-
prego: ampliação das migrações internacionais para a consecução de trabalho em
países ricos; o aumento dos crimines e das enfermidades físicas e psicológicas.
O pleno emprego tem a ideia de garantir segurança econômica indivi-
dual, fazendo com que a sociedade em seu conjunto esteja voltada para outras
preocupações, tais como: saúde, educação, cultura, capacitação para o traba-
lho, lazer, entre outros.27
Oscar Ermida Uriarte28 explica que a flexibilização é característica de eli-
minação, diminuição, afrouxamento, ou adaptação da proteção trabalhista
clássica, com a finalidade – real ou pretensa – de aumentar o investimento, o
emprego ou a competividade de uma empresa diante de concorrências inter-
nacionais e nacionais.
Antigamente, nosso problema era a mera aceitação da ideia de que não
existiria volumoso exército de reserva, esperando para ocupar algum posto de
trabalho, aceitando qualquer salário ou condição laboral; implicaria na possi-
bilidade de que qualquer assalariado pudesse mudar de um trabalho de me-
nor produtividade para outro de maior produtividade, incrementando a sua
eficiência socioeconômica.
Atualmente, o problema é a diminuição de número de empresas que pos-
sam proporcionar chances de novos empregos, sendo facilmente notado o nú-
mero de locais com placas de aluguel ou de venda, sendo que alguns até estão
abandonados pelos seus proprietários, já imaginando a dificuldade que terão
para tal fim.
Novidades boas são as trazidas para facilitar a vida do cidadão brasileiro,
como no caso do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) que instituiu a
denominada “prova de vida” de maneira digital:
Num primeiro momento, o mecanismo será feito por meio de reconhe-
cimento facial, com o uso da câmera do celular, para quem já tem carteira de
motorista ou título de eleitor digital. “A pessoa vai poder fazer a prova de vida
em casa”, afirma Rolim. No futuro, o INSS também vai incorporar o uso da

25 BOTELHO, Martinho Martins; WINTER, Luís Alexandre Carta. O princípio constitucional do pleno
emprego: alguns apontamentos em Direito Econômico brasileiro. In: Thesis juris. V. 3, n. 1, jan./jun.
2014, p. 60.
26 KEYNES, John Maynard. Teoria Geral do emprego, do juro e da moeda. São Paulo: Abril cultural,
1982, p. 64.
27 VILLATORE, Marco Antônio César; SAMPAIO, Rômulo Silveira da Rocha. Livre circulação de tra-
balhadores na União Europeia e no Mercosul. In: MENEZES, Wagner (org.). O Direito Internacio-
nal e o Direito brasileiro. Ijuí: Unijuí, 2004, p. 451.
28 ERMIDA URIARTE, Oscar. A flexibilidade. Tradução de Edilson Akimin. São Paulo: LTr, 2002, p. 09.

193
DIREITOS HUMANOS E VULNERABILIDADES

biometria por meio da chamada “digital viva”.29


Após a Segunda Guerra Mundial, especialmente nos Estados Unidos e
na Europa, o Estado de bem-estar social passou a ter uma clara inspiração key-
nesiana, propondo uma espécie de interrelação entre o Estado, o mercado e a
democracia, pregando, assim, o crescimento econômico, o pleno emprego e a
redistribuição da renda gerada no sistema socioeconômico.30
O pleno emprego e a prestação de serviços públicos eram considerados
partes essenciais das razões existenciais e axiológicas dos Estados nos chama-
dos países centrais do sistema econômico internacional.
Os países periféricos, naquele momento, seguiam uma política econômi-
ca caracterizada por forte intervenção estatal com objetivos específicos voltados
para a conformação e a integração dos seus mercados internos, industrialização,
investimento estatal em nova infraestrutura, modernização da produção agrí-
cola com tecnologia no campo e implementação de políticas sociais no campo.
No entanto, nada sobre o pleno emprego fora considerado nessa última
categoria de países, e tampouco sobre algum assunto político sobre a proteção
contra o desemprego.31
Contrariamente, decidiu-se avançar nas políticas legislativas voltadas
para os direitos trabalhistas, fortalecendo as organizações sindicais e as leis
protetivas aos trabalhadores.32
Com isso, a proposta de um vetor político de pleno emprego exigiria uma
participação economicamente mais ativa do Estado, inclusive brasileiro, pas-
sando-se a aceitar o que seria único para se dar um direcionamento mais con-
creto para desenvolvimento socioeconômico dos países periféricos.
A renúncia de tal direcionamento econômico de intervenção do Estado
no domínio econômico representaria a perpetuação das políticas econômicas
liberais, aceitando-se o princípio do laissez faire, laissez passer, laissez aller.33
Por outro lado, caso os governos admitissem que o emprego bem remu-
nerado era uma categoria de direitos humanos, implicar-se-ia em aceitar o
compromisso do pleno emprego nas relações sociotrabalhistas.

29 TOMAZELLI, Idiana. INSS começa prova de vida digital em teste com 550 mil beneficiários.
Disponível em: https://economia.uol.com.br/noticias/estadao-conteudo/2020/07/13/inss-comeca-pro-
va-de-vida-digital-em-teste-com-550-mil-beneficiarios.htm. Acesso em 14 de julho de 2020.
30 HUGON, Paul. História das doutrinas econômicas. 6. ed. São Paulo: Atlas, 1996, p. 74.
31 SOLOW, Robert Merton. On the theories of full employment. In: The American Economic Review.
March 1993, p. 21-67, p. 25.
32 VILLATORE, Marco Antônio César. Aspectos sociais e econômicos da livre circulação de trabalhado-
res e o dumping social. In: AZEVEDO, André Jobim de (Coord.). ANAIS- Congresso Internacional
de Direito do Trabalho e Processual do Trabalho, Curitiba: Ed. Juruá, 2008, p. 151-164, p. 159.
33 “Laissez faire, laissez-passer, le monde vá de lui même” é uma famosa expressão de Vincent de Gour-
nay (1712-1759), um dos economistas do Iluminismo do século XVIII, sendo um dos críticos do
sistema econômico mercantilista.

194
MARCO ANTÔNIO CÉSAR VILLATORE – MARTINHO MARTINS BOTELHO – THIERRY GIHACHI IZUTA

A garantia do pleno emprego, existencialmente, passa a ser interligada


com a consciência de que os governos se comprometem a manter uma deman-
da agregada elevada, sendo um impulso para a produtividade, o que ensejaria
a responsabilidade de se alcançar o pleno emprego desenvolvendo-se o merca-
do nacional ou doméstico.
O desemprego representaria uma grande perda de riqueza, de produção
de bens e de serviços, e a “desutilização” do fator de produção trabalho, cau-
sando graves consequências por ser um fator irrecuperável. Aliás, além disso, a
teoria do pleno emprego keynesiana representaria um esforço dos fundamen-
tos daquelas escolas econômicas sociológicas e sociais que entendiam que o
desemprego teria custos sociais mais altos.
Assim, pode-se dar o exemplo de fatos sociais causados pelo desempre-
go: ampliação das migrações internacionais para a consecução de trabalho em
países ricos; o aumento dos crimines e das enfermidades físicas e psicológicas.
Na sua essência, o pleno emprego tem a ideia de garantir segurança eco-
nômica individual, fazendo com que a sociedade em seu conjunto esteja volta-
da para outras preocupações, tais como: saúde, educação, cultura, capacitação
para o trabalho, lazer, entre outros.34
A mera aceitação da ideia de que não existiria volumoso exército de reser-
va, esperando para ocupar algum posto de trabalho, aceitando qualquer salário
ou condição laboral; implicaria na possibilidade de que qualquer assalariado
pudesse mudar de um trabalho de menor produtividade para outro de maior
produtividade, incrementando a sua eficiência socioeconômica.
Além disso, o pleno emprego mitiga a discriminação racial e de gênero,
uma vez que os empresários deverão estar menos preocupados com tais con-
siderações quanto menos trabalhadores desempregados (ou disponíveis para
a demanda de mão de obra) existam e, portanto, também impactando nas di-
ferenças salariais.
Em 1941 e, depois, em 1951, Abba Ptachya Lerner35 desenvolveu o conceito de
finanças funcionais que consistiam, basicamente, no elemento que determinava o
gasto público, tais como: a cobrança de tributos, a emissão de dinheiro, de bônus
da dívida ou a esterilização monetária por parte do governo, devendo ter como
único objetivo um bom resultado econômico e não tentar aplicar de maneira mecâ-
nica uma teoria estabelecida que não alcance benefícios econômicos reais.
Com isso, “o governo deve ajustar os seus níveis de gastos públicos e

34 VILLATORE, Marco Antônio César; SAMPAIO, Rômulo Silveira da Rocha. Livre circulação de tra-
balhadores na União Europeia e no Mercosul. In: MENEZES, Wagner (org.). O Direito Internacio-
nal e o Direito brasileiro. Ijuí: Unijuí, 2004, p. 451.
35 LERNER, Abba Ptachya. Functional Finance and the Federal Debt. Social Research: an international
quarterly, n. 10, vol. 1, [s.l.], 1943, p. 38 – 51, p. 39.

195
DIREITOS HUMANOS E VULNERABILIDADES

tributação de tal maneira que o gasto total na economia não seja nem mais e
nem menos do que seja suficiente para alcançar o nível de emprego total da
produção a preços correntes. Caso isso signifique que exista um déficit, ou um
maior endividamento, ou “imprimir dinheiro”, então tais coisas em si mesmas
não são nem boas e nem más, são simplesmente o meio para os fins desejados
do pleno emprego e da estabilidade de preços”.36
As ideias de equilíbrio fiscal e estabilidade econômica são aceitáveis sempre
e quando se cumpram outros grandes objetivos, tal como o de pleno emprego.
O equilíbrio orçamentário e a estabilidade de preços, como um fim em si
mesmo, não têm sentido já que somente podem ser considerados como meca-
nismos para alcançar as finanças funcionais que proporcionem o combate ao
desemprego, a inflação, a deflação ou outro aspecto macroeconômico indeseja-
do, na visão de Abba Lerner.37
Com isso, nas ideias lernerianas, ficariam bem definidos dois aspectos
importantes para melhorar o nível de vida das pessoas: o pleno emprego e o
alcance de um valor estável da moeda, sendo ambos os aspectos necessários
nas suas razões existências e na manutenção por parte do Estado.
Temos de passar esta fase com o pensamento positivo, imaginando o que
poderemos fazer para que a pandemia do novo coronavírus gere menos pro-
blemas individualmente e, também, de forma geral, pois isso afeta a todos nós,
inclusive em relação à segurança.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Neste ensaio, foram analisados importantes temas ligados a pandemia da
COVID-19, sobre a quarentena e se há uma certa responsabilidade do Estado
por interromper a atividade econômica das empresas diante da ineficiência em
proteger e garantir direitos fundamentais sobre a saúde e a vida.
O tema central da presente pesquisa, está relacionada aos impactos cau-
sados pela quarentena nas relações de trabalho e a possibilidade de se utilizar
o fato do príncipe, para justificar as dispensas sem justa causa nas empresas,
em tempos de pandemia.
Ocorre que, o Brasil é notadamente um país de proporções continentais
e desigual. É público e notório sobre a situação do sistema público de saúde, o
Sistema Único de Saúde (SUS), é um sistema que possui deficiências e que não
atende integralmente as necessidades da população brasileira, no caso da pan-
demia da COVID-19, esta ineficiência do Estado em prover saúde ficou ainda
mais evidente. Sendo que há inúmeros relatos de corrupção no país, inclusive
36 Ibidem, p. 39.
37 Ibidem, p. 39.

196
MARCO ANTÔNIO CÉSAR VILLATORE – MARTINHO MARTINS BOTELHO – THIERRY GIHACHI IZUTA

durante a pandemia, que impede que a verba pública chegue a população.


Necessitando que os governantes tomem medidas restritivas de circulação e de
atividade econômica, para tentar impedir o aumento de casos de coronavírus,
como a utilização da quarentena.
Todavia, o uso exagerado e prolongado da quarentena, afetou a economia
do país, bem como, o funcionamento das empresas, acarretando em desempregos
dos trabalhadores sob argumento de proteger vidas. Só que durante a presente
pesquisa, denota-se que este argumento é parcialmente válido, pois o verdadeiro
uso da quarentena é para evitar que o sistema de saúde entre em colapso.
Apesar de entender que existe uma certa responsabilidade do Estado pela
quarentena em decorrência de sua ineficiência por não possuir leitos de unidade
de terapia intensiva (UTI) suficientes para toda a população, ou seja, o Estado
toma uma medida drástica que afeta o particular diante do reconhecimento de
que não possui condições em garantir o que está previsto na CRFB/1988, acarre-
tando em desempregos dos trabalhadores e até a manutenção da máquina esta-
tal, pois sem atividade econômica, não há geração de tributos e sem arrecadação
de tributos, não há dinheiro para políticas públicas de combate à COVID-19.

6. REFERÊNCIAS
ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales. Madrid: Centro de Estudos Constitucio-
nales, 1997.
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198
VULNERABILIDADES E POLÍTICAS DE AÇÕES
AFIRMATIVAS NO ACESSO AO ENSINO SUPERIOR: O
SISTEMA DE RESERVA DE VAGAS NA UNIVERSIDADE
ESTADUAL DE MONTES CLAROS – UNIMONTES – MG
(2015-2020)
Ilva Ruas de Abreu
Helena Amália Papa
Andrea Jakubaszko

Sumário: 1. Introdução; 2. Conceito e práticas de ações afirmativas; 3.


Legislação e políticas de ação afirmativa no acesso ao ensino superior
do estado de Minas Gerais: o sistema de reserva de vagas; 4. O alcance
do sistema de reserva de vagas da Universidade Estadual de Montes
Claros – Unimontes a partir da adesão ao SISU; 5. Considerações finais;
6. Referências.

1. INTRODUÇÃO
Compreender a educação como um dos direitos básicos e universais, ine-
rente e necessário aos seres humanos, já é uma questão estabelecida, ao menos
no aspecto discursivo. Almeja-se, então, que tal proposta rompa as barreiras
discursivas e que se torne parte indissociável da percepção de cidadania dos
atores de nossa sociedade.
Dentro dessa problemática, a educação formal, foco deste estudo, se com-
porta como uma estrutura estruturante, pois ao mesmo tempo que a falta de
acesso a ela denota situações de vulnerabilidades sociais, é também por meio
dela que se espera romper e reverter cenários e contextos que escancaram o
quanto a desigualdade no Brasil é fato historicamente construído e projetado
de forma consciente e inconsciente para permitir sua permanência.
Este artigo se propõe a analisar uma política de ação afirmativa específi-
ca, a de acesso ao Ensino Superior, enquanto instrumento de reversão de situa-
ções de vulnerabilidades e desigualdades. Por meio de um estudo de caso, cujo
recorte temporal do levantamento dos dados é de 2015 a 2020, procuraremos
demonstrar como a legislação auxiliou e impulsionou a democratização do
acesso aos cursos de graduação da Universidade Estadual de Montes Claros
– Unimontes, Minas Gerais, cumprindo um de seus papéis sociais, enquanto
universidade pública, o da universalização e compartilhamento da educação,
em toda a sua pluralidade de produção, circulação e recepção de saberes.

199
DIREITOS HUMANOS E VULNERABILIDADES

2. CONCEITO E PRÁTICAS DE AÇÕES AFIRMATIVAS


O Grupo de Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa – GEMAA,
núcleo de pesquisa ligado à Universidade Estadual do Rio de Janeiro – UERJ,
nos informa que o primeiro registro do termo “ação afirmativa”, que temos co-
nhecimento, diz respeito a uma legislação trabalhista estadunidense, datada de
1935, que amparava trabalhadores sindicalizados. O conceito foi ampliado che-
gando até 1961, quando uma promulgação do então presidente daquele país,
John F. Kennedy, redirecionou o conceito no sentido que o compreendemos hoje:
o de “reparação a uma vítima de tratamento discriminatório para medidas de
prevenção à discriminação.” (Página eletrônica GEMAA, disponível em: http://
gemaa.iesp.uerj.br/estados-unidos/ Acesso em 02/10/2020). Tal utilização do con-
ceito passou a ser perceptível em várias partes do mundo, em sua maioria asso-
ciada, principalmente, a proteção reparadora de grupos étnicos e trabalhadores.
No Brasil, foi nos anos 1960, por meio da Lei de n° 5465/1968, que ocorreu
a associação do conceito ao acesso ao Ensino. O artigo primeiro, da chamada
Lei do Boi, já preconizava em favor dos agricultores e de seus filhos para acesso
ao Ensino Médio Agrícola e às escolas superiores de agricultura e veterinária
mantidas pela união.
Percebe-se que os mecanismos geradores de desigualdades e vulnerabili-
dades estão presentes em todas as partes do mundo e, desde a primeira metade
do século XX, nota-se diferentes ações visando a proteção e, posteriormente, a
inclusão de determinados grupos, que colaboraram no processo histórico que
culminou no conceito de ações afirmativas. Essas práticas foram condizentes
ao seu espaço-tempo, ou seja, atenderam demandas específicas de determi-
nado contexto temporal em certa localização geográfica. Englobamos nessa
perspectiva várias ações voltadas para escravizados, trabalhadores, imigran-
tes, grupos étnicos e outras situações de minoria e/ou marginalizações de uma
pluralidade de grupos.
Sendo assim, concordamos com a abordagem que compreende que as ações
afirmativas remetem a sua compensação pelas condições históricas da subordi-
nação ancestral dos membros de um grupo, objetivando-os torná-los sujeitos de
direitos, antes negados em relação aos demais indivíduos de uma determinada
sociedade. Logo, “ações afirmativas seriam uma denominação generalizada de
qualquer iniciativa tendente à promoção de integração, do desenvolvimento e
do bem-estar das minorias discriminadas [...]” (CRUZ, 2005, p. 143).
Pelo exposto, concordamos com a definição de Santos:
Ações afirmativas são medidas especiais e temporárias, tomadas ou de-
terminadas pelo Estado, espontânea ou compulsoriamente, com o obje-
tivo de eliminar desigualdades historicamente acumuladas garantindo a
igualdade de oportunidades e tratamento, bem como de compensar per-

200
ILVA RUAS ABREU – HELENA AMÁLIA PAPA – ANDREA JAKUBASZKO

das provocadas pelas discriminações e marginalização, decorrentes de


motivos raciais, étnicos, religiosos, de gênero e outros. Portanto, as ações
afirmativas visam combater os efeitos acumulados em virtude das discri-
minações ocorridas no passado (SANTOS, 1999, p. 156).
A partir do trecho acima, corroboramos que há uma diversidade de po-
líticas de ação afirmativa, ou seja, conforme Santos, medidas tomadas por di-
ferentes agentes visando romper com uma sequência de marginalizações his-
tóricas, direcionadas a determinados grupos. Este estudo se aterá sobre uma
dessas possibilidades de ação afirmativa: as políticas de promoção do acesso
amplo e universal ao Ensino Superior.

3. LEGISLAÇÃO E POLÍTICAS DE AÇÃO AFIRMATIVA NO ACESSO


AO ENSINO SUPERIOR DO ESTADO DE MINAS GERAIS: O SISTEMA
DE RESERVA DE VAGAS
O ingresso ao Ensino Superior no país ocorreu, historicamente, de forma
restrita a uma elite, sendo as vagas ofertadas nas universidades preenchidas
por grupos privilegiados em que os estudantes se dedicam única e exclusiva-
mente aos estudos, comumente oriundos de escolas particulares. A ideia de
universalidade de acesso ao ensino superior ainda está em construção no Brasil
e várias ações têm sido vislumbradas na direção de alargar o sistema educa-
cional, na intenção de reverter essa elitização que estava crescente e presente
na grande maioria dos países, principalmente naqueles em desenvolvimento.
Moreira et al. problematiza e relaciona a grande expansão no ensino no
Brasil, ocorrida nas últimas duas décadas, com o fato do país apresentar um
dos maiores índices de desigualdade na educação. No Brasil, “quanto maior
a faixa de renda, maior é o acesso ao ensino superior”, ao mesmo tempo em
que o país “foi um dos 53 estados que esteve longe de conseguir cumprir os
[...] objetivos de Educação para Todos até 2015” (MOREIRA ET AL., 2017, s/p).
Nessa perspectiva, é que têm sido propostas várias formas de ações
afirmativas voltadas à democratização do acesso ao Ensino Superior no país,
tais como a Reestruturação e Expansão das Universidades Federais – REUNI
(2007), Programa Universidade para Todos – PROUNI (2004) e o próprio Sis-
tema de Seleção Unificada (2010) – SISU, diretamente associadas, também, a
todo um conjunto de políticas sociais educacionais e econômicas no Brasil,
vinculadas à obrigatoriedade do cartão de vacinação e da matrícula escolar
de crianças e adolescentes, os futuros cidadãos, universitários em potencial.
Neste ínterim é que foi proposto que os processos seletivos que dão acesso aos
cursos de graduação no país reservassem vagas para que os estudantes con-
corressem entre aqueles que obtiveram acesso à Educação Básica de forma se-
melhante. A concorrência nas chamadas Vagas Reservadas proporciona, então,

201
DIREITOS HUMANOS E VULNERABILIDADES

uma possibilidade real de concorrência entre pares, e atua como uma forma de
ação afirmativa para democratizar o acesso às universidades almejando rever-
ter essa elitização histórica, dentre várias outras possíveis e necessárias como,
por exemplo, a necessidade de proporcionar assistência à permanência desse
estudante na universidade, assunto que não será aprofundado nesse estudo.
Em uma perspectiva nacional, a lei nº 12.711 de 29 de agosto de 2012,
sancionada pela então presidente Dilma Roussef, regulamentada pelo Decreto
nº 7.824/2012, e que dispõe sobre o ingresso nas universidades federais e nas
instituições federais de ensino técnico de nível médio e dá outras providências,
criou uma única política de ação afirmativa para as instituições federais. A tra-
mitação desse projeto de lei, entre Congresso Nacional e Senado, percorreu
quatro anos e ficou conhecida como a “Lei de Cotas”. Tal fato não quer dizer
que as universidades, federais e estaduais, não utilizassem ações afirmativas
dessa natureza para ocupação de suas vagas ofertadas. Ao contrário, muitas
iniciativas em curso, naquele momento, colaboraram para a discussão, tramita-
ção e implementação da própria lei. Entretanto, trata-se da primeira legislação
que proporcionou uma diretriz unificada para garantia de acesso de determi-
nados grupos da população ao ensino superior. No que diz respeito às ações
afirmativas, as universidades e institutos federais seguem essa legislação, que,
desde 2012, estabelece uma reserva de 50% das vagas ofertadas nos processos
seletivos para alunos que cursaram todo o ensino médio na escola pública.
Já nos cenários estaduais, ou seja, instituições de ensino superior estatais,
a legislação fica determinada por leis específicas daquele estado da república.
O Estado de Minas Gerais, onde se encontra a Unimontes, foco do estudo de
caso deste artigo, encontra-se atualmente regido pela segunda legislação sobre
o tema, a Lei nº 22.570, de 05 de julho de 2017, que dispõe sobre as políticas de
democratização do acesso e de promoção de condições de permanência dos
estudantes nas instituições de ensino superior mantidas pelo Estado, que, em
seu artigo 13 revogou a legislação antes que versava sobre o assunto no âmbito
do estado, a Lei nº 15.259, de 27 de julho de 2004, instituía o sistema de reserva
de vagas nas universidades estaduais.
A pioneira (já revogada e substituída), determinava a obrigatoriedade
para as duas universidades mantidas pelo estado, a saber: Universidade do
Estado de Minas Gerais – UEMG e Universidade Estadual de Montes Claros
– Unimontes, de instituir um Sistema de Reserva de Vagas para 45% de suas
vagas ofertadas, destinando-as para grupos de candidatos mencionados por
categorias e conforme porcentuais descritos. Três categorias foram estabele-
cidas: 1) afrodescendentes, desde que carentes, com a proporção de reserva
de vagas de 20%; 2) egressos da escola pública, desde que carentes, na mesma
proporção que a anterior, 20%; e 3) portadores de deficiência e indígenas, com

202
ILVA RUAS ABREU – HELENA AMÁLIA PAPA – ANDREA JAKUBASZKO

5% de vagas reservadas. Além disso, a lei também já demarcava os requisitos


e critérios para sua aplicabilidade. Seria considerado como carente, o candi-
dato assim definido pelas instituições, conforme critérios baseados em indica-
dores socioeconômicos oficiais; os candidatos afrodescendentes ou indígenas
deveriam, também, se autodeclarar como tais, observadas outras condições
estabelecidas pela instituição de ensino; egressos de escola pública eram con-
siderados os candidatos que tivessem cursado integralmente o ensino médio
em escola pública; e, por último, o portador de deficiência, candidato assim
definido nos termos da Lei nº 13.465, de 12 de janeiro de 2000.
Em contrapartida, a legislação vigente, que revogou integralmente sua
antecessora, conforme supracitado, adiciona outro dispositivo para garantia
do acesso ao ensino superior. Sobre o assunto, citamos seu artigo primeiro:
Art. 1º – As instituições de ensino superior mantidas pelo Estado implemen-
tarão políticas voltadas para a democratização do acesso e para a promoção
de condições de permanência dos estudantes nos cursos técnicos de nível
médio, de graduação e pós-graduação por elas mantidos (Grifos nossos).
Nota-se um amadurecimento sobre a temática, uma vez que a questão
do acesso ao ensino superior aparece atrelada à promoção de condições de
permanência dos estudantes, bem como incorpora alunos da pós-graduação ao
grupo que outrora era prioritário dentro das ações afirmativas. Ora, trata-se de
um complemento direto e necessário, pois, uma vez desprovido de condições
materiais favoráveis, há de haver meios possíveis para que o estudante possa
permanecer e concretizar realmente a finalidade de uma política de ação afir-
mativa dessa natureza, voltada à garantia de acesso de determinados grupos
ao ensino superior, ou seja, com condições para se dedicar aos estudos. Essa
associação nos mostra que a questão do auxílio estudantil é primordial para
que a finalidade desse acesso seja realmente garantido. Entretanto, por questão
de recorte, a temática da permanência estudantil, presente na Lei de 2017, não
será alvo de análise neste estudo.
Outro, considerado por nós, incremento a ser ressaltado, na comparação
entre as duas legislações, trata-se da porcentagem das vagas reservadas aos
cursos de graduação e técnico de nível médio, que passou a ser de 50% (cin-
quenta por centro), na seguinte proporção: 45% (quarenta e cinco por cento)
das vagas para candidatos de baixa renda que sejam egressos de escola públi-
ca, sendo parte dessas vagas reservadas para negros e indígenas e 5% (cinco
por cento) das vagas para pessoas com deficiência.
Além de uma política de permanência e do aumento percentual de 45%
para 50% em sintonia com a legislação federal de 2012, a lei estadual de 2017
também se atualiza conceitualmente em relação aos 13 (treze) anos que a dis-
tância de sua primeira versão: trata-se da própria separação das categorias pes-

203
DIREITOS HUMANOS E VULNERABILIDADES

soa com deficiência e indígenas que estavam anteriormente reunidas, a própria


substituição da noção subjetiva de carente para a concepção de baixa renda,
a partir de critérios socioeconômicos objetivos e, a incorporação da categoria
negro em substituição ao termo afrodescendente.
Detecta-se que tanto para os candidatos negros quanto para os candi-
datos indígenas apresenta-se a exigência de comprovação de renda para se-
rem incluídos na política de vagas reservadas. Entretanto, trata-se de tema
contraditório e que deve ser refletido, uma vez que a afirmação se faz ne-
cessária no campo étnico por si e não no âmbito socioeconômico como fator
determinante do direito à vaga, posto que a mesma está antes, definida como
categoria étnico/racial a ser contemplada e historicamente reconhecida e re-
compensada.
Além disso, se pensarmos sobre o contexto indígena, as classificações
utilizadas nos instrumentos socioeconômicos são de extrema complexidade
para serem aplicadas e transpostas, por exemplo, para as classificações paren-
tais exigidas nos questionários. Deste modo, entendemos que para o candida-
to indígena, mediante autodeclaração, declaração expressa de pertencimento
étnico por parte da sua comunidade, declaração escolar que demonstre his-
tórico de ensino médio cursado integralmente em escola pública e identida-
de emitida pela FUNAI, estaria suficientemente comprovado seu direito de
concorrência na modalidade do sistema de reserva de vagas reservados para
estes povos. Não deveria ser necessário realizar etapas de comprovações de
renda alheias ao seu cotidiano de aldeia, assim como no caso da pessoa com
deficiência essa etapa não é exigida, pois a afirmação está fundamentada em
outro princípio, assim como o caso da identidade indígena.
Dessa forma, diante dessas transformações históricas, políticas e legais,
a Unimontes, considerando a relevância deste processo para o desenvolvi-
mento institucional, em consonância com os objetivos vinculados ao desen-
volvimento regional e do Ensino Superior no Estado de Minas Gerais e o im-
prescindível atendimento à legislação vigente sobre reserva de vagas, e, em
última instância, cumprindo aspecto relevante de sua missão institucional,
fazendo valer as leis de acesso às vagas ofertadas pela Universidade Pública,
inseriu, em seus processos seletivos, políticas de ação afirmativa, desde a pri-
meira legislação mineira.
O processo seletivo tradicional, hoje extinto, juntamente com o Progra-
ma de Avaliação Seriada para Acesso ao Ensino Superior – PAES, que ainda
permanece ativo, inauguraram o Sistema de Vagas Reservadas da instituição
em 2005. A partir de 2016, o vestibular próprio foi substituído pelo SISU, cuja
adesão ao programa já incluía a observância da política de acesso ao ensino
superior, por meio do sistema de vagas reservadas.

204
ILVA RUAS ABREU – HELENA AMÁLIA PAPA – ANDREA JAKUBASZKO

4. O ALCANCE DO SISTEMA DE RESERVA DE VAGAS DA


UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MONTES CLAROS – UNIMONTES A
PARTIR DA ADESÃO AO SISU
A Universidade Estadual de Montes Claros – Unimontes atua, priorita-
riamente, numa região que abrange área superior a 196.000 km², correspon-
dente a mais de 30% da área total do Estado de Minas Gerais, incluindo as
regiões Norte e Noroeste de Minas e os Vales do Jequitinhonha e do Mucuri.
Em atendimento ao seu objetivo institucional, a Universidade oferta, em cará-
ter semestral e/ou anual, o total de 63 cursos de graduação regulares (somando
bacharelados, licenciaturas e tecnólogos em diferentes turnos) em 12 Campi:
Montes Claros (Campus-sede) e nos municípios de Almenara, Bocaiúva, Bra-
sília de Minas, Espinosa, Janaúba, Januária, Paracatu, Unaí, Pirapora, Salinas,
São Francisco e dois Núcleos nos municípios de Pompéu e Joaíma.
No Plano de Desenvolvimento Institucional (PDI) – 2017-2021 apresenta-
-se os seguintes objetivos:
I. Promover no âmbito de sua competência, mecanismos voltados para a
redução das desigualdades regionais e próprios para a consolidação da
identidade do território e do Estado, notadamente por meio da pesquisa
e da extensão;
II. Preparar e habilitar os acadêmicos para o exercício crítico e ético de
suas atividades profissionais;
III. Difundir e concentrar, com mecanismos específicos, a cultura, o saber
e o conhecimento científico;
IV. Atender à demanda da sociedade por serviços de sua competência, em
especial os da saúde, educação e desenvolvimento social e econômico,
vinculando-os às atividades de ensino, pesquisa e extensão (Grifo nosso).
Para cumprir este papel e atender as demandas da sociedade, a Unimon-
tes precisou se fortalecer institucionalmente através da consolidação de sua
autonomia e do aprimoramento de suas instâncias de gestão por meio de ações
de planejamento, monitoramento e processos avaliativos, bem como do aper-
feiçoamento de seus processos seletivos para ingresso na Universidade.
O ingresso como estudante regular nos cursos de graduação da Unimontes
é aberto aos candidatos que tenham concluído o Ensino Médio e, por meio de
Edital de Ocupação de Vagas Remanescentes (transferências internas; externas e
obtenção de novo título), a pessoas que já ingressaram no Ensino Superior.
Importa observar que dentre as vagas ofertadas pela Unimontes, 30% são
destinadas ao processo PAES, enquanto 70% correspondem às vagas disponi-
bilizadas via SISU. Deste total, metade corresponde à ampla concorrência e a
outra metade atende as prerrogativas legais referentes à reserva de vagas (Lei
Estadual n.º 22.570, de 05/07/2017) nas categorias: a) Candidato negro, de baixa

205
DIREITOS HUMANOS E VULNERABILIDADES

renda, egresso de escola pública (Código: NEEP, 21% das vagas); b) Candidato
egresso de escola pública, de baixa renda (Código: EEP, 21% das vagas); c)
Candidato indígena, de baixa renda, egresso de escola pública (Código IEEP,
3% das vagas); d) Pessoa com deficiência (Código: PD, 5% das vagas).
O acesso à educação superior se apresenta como mecanismo necessário à
ampliação, qualificação e diversificação produtiva das pessoas aptas a atuarem
nos meios de produção e serviços da sociedade, bem como na inovação tecno-
lógica e no avanço científico. A ciência e a técnica, num processo de evolução
contínua, possibilitam a superação das desigualdades sociais e regionais, espe-
cialmente numa região ainda marcada por baixas taxas de escolaridade, como
é o caso do Norte de Minas.
Segundo dados do IBGE, no Estado de Minas Gerais, em 2010, apenas
10,57% da população concluíram ensino superior (IBGE, 2010). Assim, as gran-
des diferenças do IDH entre os territórios de planejamento Minas Gerais, bem
como a necessidade de democratização do ensino superior, frente ao desen-
volvimento econômico e social são vetores cardeais que sempre justificaram
a manutenção e execução permanente dos Processos Seletivos na Unimontes,
bem como da atenção especializada para os procedimentos necessários aos
processos de análise que validam e efetivam o ingresso dos candidatos que
têm direito às vagas reservadas.
Vejamos então, a partir do contexto da Unimontes, em uma breve retros-
pectiva histórica, que apresenta dados do antes e depois da adesão ao SISU,
aliada ao desenvolvimento da política de categorias afirmativas na instituição,
de acordo com os marcos legais de 2004 e 2017 no estado de Minas Gerais, os
impactos gerados num recorte temporal de 2016 a 2020, tendo por referência o
ano de 2015 e destaque nas médias relativas ao último triênio 2018-2020.
Antes da adesão ao SISU, fato ocorrido em 2016, como já mencionado, a
Unimontes realizava um vestibular em que já reservava 45% de suas vagas para
categorias afirmativas, em consonância com a legislação estadual de 2004, que
definia 20% das vagas reservadas para afrodescendentes de baixa renda, 20%
para candidatos carentes que cursaram todo o ensino médio na Rede Pública
e 5% para deficientes e indígenas. No último vestibular de 2015 foram oferta-
das 719 vagas para os Campus de Montes Claros, Espinosa, Janaúba, Januária,
Joaíma, Pirapora e Unaí. Outras 700 vagas, seguindo a mesma proporção de
vagas reservadas, era também anualmente ofertada via PAES, totalizando uma
média 1.500 vagas ofertadas a cada ano.
Em 2016, com a adesão ao SISU, mantém-se a proporção e nomenclatura
utilizada para as vagas reservadas e, contudo, nota-se um incremento na oferta
de vagas que passa de uma média de 1.500 para mais de 1.700 vagas anuais
ofertadas em processos semestrais. Com o fim do vestibular e a primeira Edi-

206
ILVA RUAS ABREU – HELENA AMÁLIA PAPA – ANDREA JAKUBASZKO

ção SISU/Unimontes, a Universidade Estadual de Montes Claros viu saltar de


9.594 candidatos inscritos em 2015, para 33.565 inscritos para o 1° semestre de
2016, quando ofertou 1.178 vagas em 49 cursos. Destes, 18.800 candidatos esta-
vam inscritos pelo sistema de vagas reservadas.
Fica claro, nessa passagem, que apenas o número de inscritos em catego-
rias afirmativas alcança quase que o dobro do total de inscritos no vestibular de
2015. Se tomarmos em série na comparação com os dois últimos vestibulares
tradicionais (somados), a procura registra um aumento de 104,2%.
Ao mesmo tempo, interessante destacar que, de acordo com os registros
e relatórios institucionais da época (Secretaria Geral Unimontes), com adesão
ao Sistema Unificado e Nacional, mesmo que a Unimontes tenha recebido
inscrições de candidatos de todos os estados do país (com exceção de Rorai-
ma), no 1° semestre de 2016, 90% dos candidatos eram oriundos do estado de
Minas Gerais (30.251 de 33.565 inscritos). Na sequência estão os estados de
São Paulo (1685 inscritos) e Bahia (449 inscritos). Se aproximarmos o olhar, te-
mos 25.165 estudantes inscritos oriundos do Norte de Minas, sendo 1.148 do
noroeste do estado e 960 dos Vales do Mucuri e do Jequitinhonha, totalizando
81,25% de participantes concentrados nas regiões que já eram e continuam
sendo de abrangência da Unimontes.
Este dado revela pelo menos duas situações: a primeira que a abertura da
Unimontes para o SISU favoreceu a participação e o acesso ao ensino superior
da própria região onde já situava seu raio de atuação e, segunda, que o aumen-
to expressivo das inscrições em vagas reservadas é reflexo dessa possibilidade
de participação e acesso desta população que caracteriza, em larga maioria, o
perfil de estudantes dessas regiões e que antes ficava restrita aos seus municí-
pios sem conseguir deslocar-se e, ainda, arcar com as despesas de realização
dos vestibulares tradicionais. Diferente do que muitos pensavam, o SISU forta-
leceu o âmbito regional e não o contrário, reafirmando e consolidando o lugar
e vocação institucional e regional da Unimontes.
Tendo tomado por base os primeiros semestres de 2015 e 2016, se conside-
rarmos o mesmo semestre nos anos seguintes em relação ao SISU, temos: 1.151
vagas ofertadas em 2017, 1.127 em 2018, 1.169 em 2019 e 1.067 em 2020. Nos
primeiros semestres de cada ano, essas ofertas ocorrem para 48 dos 63 cursos
de graduação (no/s segundo/s semestre/s geralmente, em média, as vagas são
ofertadas em 28 cursos – por esta razão optamos por comparativos relativos
aos dados dos primeiros semestres).
Em relação à sequência do número de inscritos, temos, em 2017, uma alta
de 3,5% em relação ao ano de 2016, com 34.756 inscritos, sendo destes 21.200 ins-
critos no sistema de reserva de vagas, ou seja, novo aumento de 12,6% em relação
a alta já verificada de 2016. Nas categorias de vagas reservadas, os classificados

207
DIREITOS HUMANOS E VULNERABILIDADES

em sua maioria optaram pelos cursos de Enfermagem (90), Direito Noturno (81),
Odontologia (71), Educação Física Licenciatura (63) e Administração (61).
Em 2018, mantém-se a taxa dos 34 mil inscritos, contudo passa a vigorar
a nova Lei Estadual de 2017 e ocorre um aumento de 45% para 50% das vagas
reservadas, conforme supracitado, sendo renomeadas as categorias afirma-
tivas e a Unimontes passa a adotar a seguinte proporção, já anteriormente
mencionada de 21% das vagas para a categoria NEEP; a mesma para EEP, 3%
para IEEP e 5% para PD. Em 2018, das 1098 matrículas realizadas, 452 foram
em vagas reservadas.
Em 2019 ocorre uma queda no número de inscrições, tendo sido de 25.326
mil candidatos e destes, 12.389 estavam inscritos pelo sistema de reserva de va-
gas, ainda assim, importante ressaltar que na quarta edição do SISU/Unimontes
o perfil do acesso permanecia o mesmo da primeira edição, ou seja, candidatos
inscritos majoritariamente do estado de Minas Gerais, seguido por São Paulo e
Bahia; dos 1.138 classificados, 995 eram do estado de Minas Gerais. Ou seja, a
baixa do quantitativo de inscrições não prejudicou, nem alterou essa tendência.
No primeiro semestre de 2020, o número de inscritos ainda é abaixo de
2018, mas volta a subir em relação a 2019, registrando 28.194 inscritos, destes
10.411 correspondem às inscrições em vagas reservadas.
Desta forma, numa série de inscritos 2018 a 2020 (1°s semestres), temos a
seguintes médias

Tabela 01: Média de inscrições SISU/Unimontes – 1ºs semestres


Série 2018 a 2020
N° Inscritos
CATEGORIAS (Média série histórica
2018/19/20)
Candidatos Ampla Concorrência / AP 18.000
Candidatos Pessoa com Deficiência / PCD 330
Candidatos Egressos da Escola Pública baixa renda / EEP 7.000
Candidatos Indígenas, Egressos da Escola Pública baixa 200
renda / IEEP
Candidatos Negros, Egressos da Escola Pública baixa 3.200
renda / NEEP
Total Geral de Candidatos Inscritos Aprox. 29.000
Fonte: Dados internos da Secretaria Geral da Unimontes.

Assim, a cada edição são ofertadas em torno de 1.000 vagas em 48 cur-


sos, nos primeiros semestres, sendo 50% reservadas às categorias afirmativas,
a partir de 2018, tendo entre 1.050 a 1.150 classificados e do total de inscritos,
aproximadamente 40% dessas inscrições são para vagas reservadas.

208
ILVA RUAS ABREU – HELENA AMÁLIA PAPA – ANDREA JAKUBASZKO

Ressaltamos que, no 1° semestre de 2020, todas as vagas NEEP e EEP fo-


ram preenchidas, com poucas restando nas categorias IEEP e PCD, assim, das
541 vagas reservadas ofertadas no 1°semestre de 2020, 514 foram devidamente
ocupadas pelas categorias afirmativas.
Se pensarmos que, em 2014, foram 1.055 aprovados no vestibular para
ingressar no 1° semestre de 2015, tínhamos 757 inscritos pelo sistema de ampla
concorrência e 298 no sistema de reserva de vagas, ou seja já havia essa propor-
ção de 40%, contudo, foram na época 128 afrodescendentes, 160 egressos de es-
cola pública, 8 portadores de deficiência e apenas 2 indígenas, a tabela apresen-
tada acima, demonstra o avanço monumental ocorrido em apenas cinco anos.
Por fim, esse salto gigantesco no quantitativo de inscritos em categorias
afirmativas é extremamente significativo e está direta e intimamente associado
à adesão ao SISU, pois não se verifica esse quadro, por exemplo, em relação ao
PAES ou mesmo aos vestibulares anteriormente realizados na Unimontes. Desta
forma, concluímos que a inclusão por categorias afirmativas em reserva de vagas
obtém efetividade se estiver alicerçada em um sistema amplo de universalização
e acesso ao ensino superior (e desde as bases). As duas políticas precisam cami-
nhar juntas para garantir uma série histórica que possa, com o tempo, impactar
nos resultados desejados de diminuição das desigualdades no país.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A partir do que se intentou demonstrar, além da obrigatoriedade por lei,
a política de ação afirmativa direcionada ao acesso no ensino superior é parte
intrínseca da universidade pública no país e deve encontrar também suporte
em políticas paralelas e convergentes que levem à democratização e universa-
lização da educação no Brasil. Assim, ao implementar mecanismos que favore-
çam o quanto possível a igualdade de oportunidades e tratamento em suas for-
mas de ingresso, a universidade consegue contribuir significativamente para
a redução das disparidades regionais, possibilitando a melhoria da qualidade
de vida das pessoas e a sustentabilidade econômica e social da região, como
verificado no caso concreto da Universidade Estadual de Montes Claros.
O ensino superior, vinculado às atividades de ensino, pesquisa e exten-
são, tem a responsabilidade de fomentar as diretrizes, metas e estratégias para
impulsionar o desenvolvimento integrado do estado de Minas Gerais e os da-
dos aqui analisados denotam que estas ações afirmativas representam sim, a
oportunidade de acesso de centenas de pessoas da região do Norte de Minas
Gerais à Unimontes, além de manter as portas abertas para candidatos de todo
o território nacional reafirmando o direito constitucional à educação e a um
lugar na universidade pública.

209
DIREITOS HUMANOS E VULNERABILIDADES

6. REFERÊNCIAS
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mativas em uma Instituição de Ensino Superior (IES) pública brasileira: a percepção da
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inclusão social de mulheres, negros, homossexuais e portadores de deficiência. Belo Horizonte:
Arraes, 2005.
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210
VULNERABILIDADE E SELETIVIDADE: UMA REVISITA
ÀS DECISÕES SOBRE PRIVAÇÃO DE LIBERDADE DE
ADOLESCENTES NO STJ (2010-2020)
Marília de Nardin Budó
Aline Taiane Kirch

Sumário: 1. Introdução; 2. Panorama da privação e liberdade de adoles-


centes: uma revisita; 3. O menorismo enrustido nos acórdãos do STJ: sobre
o conceito de vulnerabilidade; 3.1 A vulnerabilidade enseja a adoção de
medida mais gravosa; 3.2 O reconhecimento da vulnerabilidade não deve
ensejar medida mais gravosa; 4. Pela superação dos eufemismos: vulnera-
bilidade em relação a ...? 5. Considerações finais; 6. Referências.

1. INTRODUÇÃO
Cada vez mais os estudos criminológicos críticos têm se voltado ao dis-
curso judicial como objeto inafastável de pesquisa para compreender pelo me-
nos dois fenômenos: o aumento exponencial da privação da liberdade de ho-
mens, mulheres e adolescentes no Brasil; e as representações sociais que justifi-
cam e legitimam, não apenas esse recrudescimento quantitativo, mas também
o qualitativo – no aprofundamento das desigualdades de raça, classe, gênero,
sexualidade e etc. A máxima “polícia prende, Judiciário solta” tem se mostrado
absolutamente falsa, quando compreendemos o papel dos juízes nas decisões
sobre prender pessoas sem julgamento e manter presas pessoas que teriam
o direito de estarem em liberdade; bem como, no âmbito socioeducativo, de
manter viva a lógica menorista e tutelar, somada a um inquisitorialismo no
âmbito processual e um punitivismo disfarçado de proteção.
No âmbito do discurso público a respeito do ato infracional, o conceito de
vulnerabilidade tem sido repetido nos últimos vinte anos, dando conta de uma
pluralidade de sentidos, conforme o marco teórico e, claro, os usos ideológicos
que dele o autor do discurso deseje fazer. Alguns desses usos têm representado,
de forma prática, a manutenção de uma determinada concepção sobre crian-
ças e adolescentes que remonta à doutrina da situação irregular (BUDÓ, 2018;
CAPPI, 2017; BUDÓ; CAPPI, 2018). A vulnerabilidade social aparece como uma
condição da pessoa, entendida como objeto e não como sujeito; seu uso reificado
implica na negação da responsabilidade de quem vulnera (BUDÓ, 2013).
A partir dos marcos teóricos da criminologia crítica, e da doutrina da pro-
teção integral, uma pesquisa publicada no ano de 2013 revelou que o conceito
de vulnerabilidade também tem sido um dos recursos utilizados para justificar

211
DIREITOS HUMANOS E VULNERABILIDADES

e legitimar a privação de liberdade de adolescentes nos discursos de ministros


do Superior Tribunal de Justiça, em 26 acórdãos (BUDÓ, 2013). A coleta dos da-
dos foi realizada através das expressões “ato infracional” e “vulnerabilidade”,
no período de 21 de outubro de 2010 a 16 de outubro de 2012. As decisões se
referiam a concessões ou denegações de ordem de Habeas Corpus, em situações
nas quais a internação provisória havia sido decretada pelo juízo de primeiro e
segundo graus, ou quando o paciente havia sido condenado ao cumprimento de
medidas socioeducativas de semiliberdade ou de internação e a decisão havia
sido mantida no Tribunal de Justiça do estado de origem. As decisões foram
catalogadas conforme seu pertencimento a uma das duas categorias, ligadas ao
uso que se faz da vulnerabilidade, entendida como condição social do adolescen-
te que indica: a) a necessidade de intervenção do Estado na forma de medidas de
privação da liberdade para a sua correção e ressocialização; b) a necessidade de
aplicação de medida protetiva e não socioeducativa. A partir dessas macrocate-
gorias, outras foram construídas, demonstrando que o termo é preenchido por
sentidos ligados às condições pessoais do adolescente e resultando em um uso
prevalentemente desfavorável ao/à paciente: a legitimação discursiva da aplica-
ção de medida mais severa no tocante à privação da sua liberdade.
O presente capítulo revisita aquele trabalho, testando a hipótese cons-
truída, através da ampliação do corpus de análise. Aos 26 acórdãos originais,
foram adicionados outros 43, com decisões entre 2013 e 2020, buscados com as
mesmas palavras-chave. A técnica de análise de conteúdo é mantida, e a me-
todologia se volta dedutivamente aos dados, pensando como ponto de partida
a hipótese induzida em 2013, e indutivamente porque se abre ao encontro de
novas categorias emergentes dos dados no corpus adicionado à pesquisa.
Em 2012 surgiu a Lei 12.594, instituindo o Sistema Nacional de Atendi-
mento Socioeducativo, o qual trouxe o aprofundamento normativo da matriz
acusatória do processo infracional, como as garantias processuais, mantendo,
porém, a sua natureza abolicionista do ponto de vista da natureza jurídica das
medidas socioeducativas.(BUDÓ, 2018; KIRCH, 2015) Nesse sentido, pensar os
desenvolvimentos do conceito de vulnerabilidade no discurso judicial pós-SI-
NASE é interessante tanto como contribuição ao campo do direito da criança e
do adolescente quanto da criminologia crítica.
Os resultados dessa revisita são apresentados em três etapas: na primeira
seção, apresentamos o panorama da privação de liberdade de adolescentes no
Brasil, na segunda apresentamos os dados da pesquisa empírica, expondo as
categorias descritas no artigo de 2013 e aquelas novas, induzidas do novo cor-
pus; e na terceira discutimos os resultados a partir do marco teórico1.

1 Alguns trechos do texto original foram mantidos, quando os dados se repetiram, ou mesmo quando a
análise era semelhante e não haveria motivo para a modificarmos. Optamos por não manter a constru-

212
MARÍLIA DE NARDIN BUDÓ – ALINE TAIANE KIRCH

2. PANORAMA DA PRIVAÇÃO E LIBERDADE DE ADOLESCENTES:


UMA REVISITA
O momento atual é de expansão do sistema penal na maior parte dos
países, de maneira que diferentes emergências vêm se sobrepondo às questões
sociais na ótica dos governos. Na esteira de outros países, o Brasil vem inflan-
do seu lado repressor, tendo multiplicado por três o número de adolescentes
internados nos últimos quinze anos2, e apresentando um aumento de 63% no
número de adultos encarcerados nos últimos dez anos3. Apesar de ocorrer uma
estabilização na quantidade de internações de adolescentes entre os anos de
2015 e 2017, estes números possuem níveis muito superiores aos do início do
século XXI4. A utilização do braço repressor do Estado vem simbolizada na
quantidade de privações de liberdade de adolescentes, bem como nas estatís-
ticas de assassinatos de que foram vítimas. No ano de 2019, 4.928 crianças e
adolescentes, de 0 a 19 anos, perderam suas vidas de forma violenta no Brasil,
sendo que 89.89% tinham idades entre os 15 e 19 anos e 4.71% estavam na faixa
etária dos 10 a 14 anos. A morte por intervenção policial é o segundo tipo de
crime mais recorrente a levar crianças e adolescentes a óbito violento no país
(14.81%), antecedido do homicídio (83.71%). Pessoas do sexo masculino são
as que mais morrem de forma violenta na fase da adolescência, e em todas as
faixas etárias da infância e juventude, a população negra é a mais vitimada
(FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA, 2020).
Compreender, através do método dialético, os mecanismos discursivos
que movem a adoção de posturas punitivistas baseadas em preconceitos sociais
que alimentam a seletividade do sistema penal parece ser um importante cami-
nho na sua desconstrução. Parte-se, assim, da hipótese de que, por mais avan-
çada que seja a legislação em matéria de direito da criança e do adolescente, os
resquícios menoristas vêm se sobrepondo com um viés inquisitorial e tutelar.
Historicamente, a criança e o adolescente passaram a ser objeto de preo-
cupação do Estado a partir de uma leitura que pode ser traduzida no binômio
abandono-infração. De fato, é o menor como problema de ordem pública o objeto
das políticas elaboradas a partir de fins do século XIX no Brasil. Durante o
século XX legislações foram criadas com o intuito de controlar seletivamente
crianças e adolescentes através de um processo de institucionalização dos fi-

ção histórica e teórica mais genérica sobre o ato infracional, em relação a qual indicamos a leitura do
artigo original (BUDÓ, 2013), bem como da obra resultante da tese de doutorado desenvolvida nesse
marco (BUDÓ, 2018).
2 Com base nos últimos 15 anos computados pelo Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2020, com-
preendendo os anos de 2002 a 2017.
3 Considerando os números totais de presos no Sistema Penitenciário e sob custódia das polícias, entre
os anos de 2009 a 2019, apresentados pelo Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2020.
4 De acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2020, em 2017, o número de adolescentes
cumprindo medida socioeducativa em meio fechado era de 26.109 e em 2015 era de 26.868. Já no ano
de 2002, esse número era de 9.555 adolescentes.

213
DIREITOS HUMANOS E VULNERABILIDADES

lhos da classe operária e dos excluídos de modo geral. O discurso legitimador


dessas práticas era preponderantemente o moralizador, e o olhar estatal ao
adolescente claramente o via como um objeto de tutela e não como um sujeito
de direitos. Não por acaso, uma das maiores críticas às legislações menoristas
foi um determinismo de base na concepção positivista do “menor abandona-
do” que se converte em “menor infrator ou delinquente”.
A defesa social, como toda a construção positivista deste contexto, é o
objetivo dessas políticas institucionalizadoras, em que crianças e adolescentes
são tratados na base da compreensão do “perigo” e do “risco” que causam à
sociedade de bem. Periculosidade é uma palavra cara ao menorismo, aquela
ideia ultrapassada de que seria possível prever comportamentos futuros deter-
ministicamente, através de exames interdisciplinares.
Todo esse conjunto de saberes estaria ultrapassado pela Constituição
Federal Brasileira de 1988, com sua base democrática e revolução paradig-
mática da doutrina da situação irregular à doutrina da proteção integral. O
reconhecimento das crianças como sujeitos de direitos traz consigo a proi-
bição de que, sob o pretexto de proteger, venha-se a vulnerar ou restrin-
gir direitos, prática muito usual na perspectiva tutelar menorista (CORTÉS
MORALES, 2007, p. 154). Isso significa que toda a proteção destinada às
crianças não resulta de atos benevolentes concedidos pelo poder público ou
pelos indivíduos e instituições privadas: trata-se de direitos fundamentais,
enquanto seres humanos em desenvolvimento. Estão protegidos, segundo
esta doutrina, todas as crianças e adolescentes, regulamentados os seus di-
reitos e deveres e consagrada a responsabilização ao invés da tutela (VERO-
NESE, 2005, p. 114).
Quanto ao ato infracional, as medidas socioeducativas foram elaboradas
no intuito de manter a separação entre adultos e adolescentes no sistema pri-
sional e, ao mesmo tempo, tornar excepcional a privação de liberdade. As me-
didas são condicionadas a uma condenação judicial, através de um processo
onde imperam todas as garantias processuais, sobretudo o direito de defesa.
Tudo o que implicar em redução de direitos não pode ser encarado como um
bem para a criança e o adolescente. Sendo assim, não mais se admite a privação
da liberdade para a proteção do adolescente. Para proteger foram criadas as
medidas protetivas, que não contemplam a privação da liberdade.
Contudo, não é de hoje que autoras e autores vêm demonstrando a per-
manência das práticas menoristas no âmbito do sistema de Justiça. A ideia de
que o Estatuto da Criança e do Adolescente haveria reconhecido essas pes-
soas em desenvolvimento como sujeitos de direitos tem sido diuturnamente
desafiada pela prática. Diferentes estudos vêm mostrando que, se na esfera
criminal adulta ainda persiste a mentalidade inquisitorial, na esfera da infân-

214
MARÍLIA DE NARDIN BUDÓ – ALINE TAIANE KIRCH

cia e da juventude ela chega a ser caricatural, como bem representado no do-
cumentário de Maria Augusta Ramos, “Juízo”. No âmbito da academia, um
exemplo é o estudo etnográfico da antropóloga Paula Miraglia, realizado nas
audiências da Vara de Infância e Juventude do Brás, em São Paulo, onde de-
monstra que acusado e defensor são totais coadjuvantes, figurando à sombra
do protagonista, que fala, interpreta, aconselha e julga – legal e moralmente:
o juiz da infância e juventude (MIRAGLIA, 2005).
As posições existentes, seja na representação da criança e do adoles-
cente, seja na questão das políticas públicas relacionadas a essas pessoas,
podem ser resumidamente três: repressivos – não ultrapassaram a situação
irregular; protetivos e democráticos, que defendem a responsabilização dos
adolescentes e primam pelas políticas de universalização das políticas so-
ciais, mais a que programas assistencialistas pontuais, sempre atravessada
pela participação política da sociedade mas também dos próprios membros
desse grupo social; e uma posição, que assume teoricamente os postula-
dos da proteção integral, mas não arca com todas as suas consequências,
especialmente a de abrir mão do conceito de vulnerabilidade e assumir
a responsabilidade penal que obrigue as autoridades a abrir mão da dis-
cricionariedade para lidar com a infância (GARCÍA MÉNDEZ, 2007). Isso
implica na redução da busca pelo diagnóstico discricionário a respeito da
existência e características da disfunção individual do adolescente autor de
ato infracional, ou social. García Méndez (2007) denomina essa posição de
“paradigma da ambiguidade”.
Tal paradigma parece ser predominante tanto na esfera judicial quanto na
executiva e mesmo na legislativa. A atuação orientada seletivamente ao contro-
le de adolescentes vulneráveis mostra a permanente diferenciação entre meno-
res e crianças. Queremos, então, entender um ponto: o que define adolescentes
como vulneráveis, e qual é a consequência dessa identificação?

3. O MENORISMO ENRUSTIDO NOS ACÓRDÃOS DO STJ: SOBRE


O CONCEITO DE VULNERABILIDADE
O termo “vulnerabilidade”, ou “vulnerabilidade social” tem aparecido de
forma recente no linguajar judicial no tratamento do ato infracional no Brasil.
Na verdade, o termo passou a ser utilizado de forma mais frequente no âmbito
social através de seu amplo emprego na Política Nacional de Assistência Social
(PNAS), ainda que não a defina diretamente (BRASIL, 2004). Neste documen-
to, o público usuário da PNAS é descrito como “cidadãos e grupos que se en-
contram em situações de vulnerabilidade e riscos”, e, a seguir, apresenta que
situações seriam essas:
[...] famílias e indivíduos com perda ou fragilidade de vínculos de afetivi-

215
DIREITOS HUMANOS E VULNERABILIDADES

dade, pertencimento e sociabilidade; ciclos de vida; identidades estigmati-


zadas em termos étnico, cultural e sexual; desvantagem pessoal resultante
de deficiências; exclusão pela pobreza e, ou, no acesso às demais políticas
públicas; uso de substâncias psicoativas; diferentes formas de violência
advinda do núcleo familiar, grupos e indivíduos; inserção precária ou não
inserção no mercado de trabalho formal e informal; estratégias e alternati-
vas diferenciadas de sobrevivência que podem representar risco pessoal e
social (BRASIL, 2004, p. 33).
Como se vê, a descrição traz situações bastante variadas, e, no conjunto,
ignora a diferenciação entre vulnerabilidade e risco. Tampouco indica o que
torna alguém vulnerável, ou mesmo a que, ou a quem essa vulnerabilidade
estaria dirigida. A expressão é bastante naturalizada ao longo da PNAS.
Em uma definição acadêmica, Abramovay et al. (2002, p. 13) atrelam a
vulnerabilidade à violência sofrida e praticada por jovens na América Latina:
A vulnerabilidade social é tratada aqui como o resultado negativo da re-
lação entre a disponibilidade dos recursos materiais ou simbólicos dos
atores, sejam eles indivíduos ou grupos, e o acesso à estrutura de oportu-
nidades sociais, econômicas, culturais que provêm do Estado, do mercado
e da sociedade.
Tal como apresentado pelas autoras, a vulnerabilidade social nada tem a
ver com propensão à prática de violência, mas a privação de oportunidades,
e, junto com isso, a suscetibilidade às diversas formas de violência estrutural,
institucional, individual ou de grupo que podem decorrer dessa situação. A
definição é mais próxima, portanto, da compreensão da vulnerabilidade não
como algo intrínseco, nem sequer como um indicativo do comportamento in-
dividual, mas como um processo de vulnerabilização atravessado pelas estru-
turas de raça, classe, etnia, gênero, capacidade, sexualidade etc.
Problematizando o uso da vulnerabilidade na Justiça da Infância e Juven-
tude, Uriarte (2006) nota que a vulnerabilidade não existe senão em relação
a algo. Neste tópico do artigo, busca-se estabelecer uma análise crítica desse
conceito, a partir da criminologia crítica, buscando compreender sua utilização
quando relacionada ao tema do ato infracional nas decisões do Superior Tribu-
nal de Justiça (STJ).
Como exposto na introdução, este é um trabalho que revisita uma pes-
quisa publicada no ano de 2013, composta por 26 acórdãos do STJ. Para re-
ferências sobre esses acórdãos, recomendamos a busca do artigo original
(BUDÓ, 2013). No novo corpus da pesquisa, foram analisados outros 43 acór-
dãos, proferidos entre os anos de 2013 e 2020. No total, os 69 acórdãos dos
dois corpus impugnaram decisões de tribunais de justiça de dez estados, con-
forme a Tabela 1 abaixo:

216
MARÍLIA DE NARDIN BUDÓ – ALINE TAIANE KIRCH

Tabela 1 – Estados cujos tribunais de justiça tiveram decisões impugnadas no


corpus de análise
Ano/
2010 2011 2012 2013 2014 2015 2016 2017 2018 2019 2020 T
Estado
DF 2 6 4 3 1 16
MG 0 5 1 1 1 8
PE 2 1 3
RS 1 1 1 2 5
SP 1 1 2 11 2 4 3 24
RJ 1 2 3
SC 1 3 4
SE 1 1
BA 1 1 2
MS 1 1
Fonte: Dados organizados pelas autoras através de busca no website do STJ.

Nas decisões do segundo corpus (2013-2020), os atos infracionais e as


medidas socioeducativas correspondentes foram aplicadas da seguinte for-
ma, no STJ5:

Tabela 2 – Atos infracionais verificados nos acórdãos e medidas socioeducativas


aplicadas

Revoga-
Medida
ção da Me-
socioe- Ab-
Atos infracionais/ Inter- Semili- inter- dida
ducativa sol-
medidas adotadas nação berdade nação prote-
em meio vição
provi- tiva
aberto
sória
Crimes da lei
11.343/2006 (Tráfico,
associação para o 15 7 0 0 0 0
tráfico, porte de dro-
gas para consumo)
Roubo (simples ou
qualificado pelo
concurso de agentes 9 4 1 1 0 0
e/ou emprego de
armas)
Lesão corporal
(simples ou no
2 0 0 0 1 0
âmbito doméstico e
familiar)
Porte de arma de
fogo (de uso permi- 0 2 0 0 0 0
tido e uso restrito)

5 Algumas condutas foram cometidas em concurso de atos infracionais, como por exemplo: ameaça e
lesão corporal; tráfico e associação para o tráfico.

217
DIREITOS HUMANOS E VULNERABILIDADES

Furto qualificado 0 1 0 0 0 1
Estupro de vulne-
2 0 0 0 0 0
rável
Ameaça 1 0 0 0 0 0
Fonte: Dados organizados pelas autoras através de busca no website do STJ.
A pesquisa demonstrou que os desvios de maior ocorrência entre os
acórdãos analisados foram os de tráfico de drogas entre outros atos também
tipificados da Lei 11.343/2006 (22), seguido pelo roubo (15), sendo que os de-
mais atos infracionais indicados no Tabela 2 apresentaram uma incidência bem
menor. Outro ponto que também chama atenção é que apenas cinco acórdãos
identificavam a paciente como sendo do sexo feminino.
Nos casos em que o/a adolescente já tinha passagem pelo sistema infra-
cional, os atos infracionais, apesar de eventualmente diversos daquele do acór-
dão em apreço, também coincidem, na sua maioria, com os já apontados na
Tabela 2. Não há crimes contra a vida representados nos acórdãos analisados, e
claramente atos infracionais sem violência ou grave ameaça à pessoa têm efeti-
vamente ocasionado a internação e a medida de semiliberdade.

3.1. A VULNERABILIDADE ENSEJA A ADOÇÃO DE MEDIDA MAIS GRAVOSA


Na pesquisa relatada no artigo revisitado (BUDÓ, 2013), foi qualificada
como “intrigante” a linguagem utilizada pelos ministros do STJ, quando, nas
mais diversas situações, designavam o Estatuto da Criança e do Adolescen-
te como “Estatuto Menorista”; o Juízo da infância e juventude como “Juízo
menorista”; o/a juiz/juíza da vara da infância e juventude, como “magistrado
ou juiz menorista”; e a decisão judicial como “sentença menorista”. A análise
atual demonstrou que ainda é possível encontrar algumas decisões que empre-
gam os mesmos termos, o que, por si sós, permitem um primeiro diagnóstico
da maneira como os adolescentes são ainda compreendidos pelo tribunal. O
termo “menor” para designar a/o adolescente que está sendo julgado apareceu
em todas as decisões, tendo sido repetido 225 vezes, apenas nas 43 decisões
analisadas neste segundo período. A expressão “menor infrator” apareceu 22
vezes, em 12 decisões. Por isso, é possível repetir a conclusão da época:
A revolução na linguagem de que falam autoras e autores ligados ao di-
reito da criança e do adolescente ainda não se operou completamente em
uma das mais altas cortes do país, deixando de compreender o arcabouço
de significados que está por detrás dos termos “menor” e seus derivados
(BUDÓ, 2013, p. 219)6.
O termo “menor”, como substantivo, data do início do século XX, nasci-
6 A expressão é usada por Baratta (1999, p. 73), que a compreende como “[...] um relevante sinal de
transformação no plano normativo: fala-se e escreve-se sempre menos sobre ‘menores’, e sempre mais
de ‘infância’, de crianças, de adolescentes e seus direitos”.

218
MARÍLIA DE NARDIN BUDÓ – ALINE TAIANE KIRCH

do para designar aquela criança ou adolescente considerado marginalizado,


seja pela situação de abandono, seja pela infração. A expressão sempre esteve
ligada a uma imagem, conforme Londoño (1991, p. 135): aquela que o carac-
teriza como “criança pobre, totalmente desprotegida moral e materialmente
pelos seus pais, seus tutores, o Estado e a sociedade”. O uso reiterado desse
termo implica, portanto, em uma evidente seletividade: o sistema infracional
parece linguisticamente dirigido ao menor, definido como “[...] crianças e jo-
vens tomados, na prática e não nas intenções, como problemas. Não problemas
quaisquer, mas aqueles derivados da pobreza ou de aspectos étnico-raciais de-
vidamente estigmatizados por intermédio de processos e dinâmicas criminali-
zadoras” (MORAES; PESCAROLO, 2012, s.p.). A manutenção desse termo nas
decisões do STJ é, portanto, significativa, e demonstra a adoção da postura do
juiz de menores, aquele detentor de numerosos poderes e que, sobretudo, sabe
o que é para o “bem” dos adolescentes, especialmente os acusados de serem
autores de atos infracionais. Ou seja, ela se relaciona diretamente ao conceito
de vulnerabilidade, tal como demonstraremos na análise de conteúdo.
A palavra vulnerabilidade, como constatado anteriormente (BUDÓ, 2013),
foi empregada sempre em conjunto com a análise das condições pessoais e so-
ciais do adolescente para determinar a medida socioeducativa ou protetiva mais
adequada, tendo se repetido as seguintes situações: 1) condição econômica des-
favorável; 2) família desestruturada; 3) perda do pai ou da mãe; 4) prática de ou-
tros atos infracionais; 5) uso de entorpecentes; 6) dificuldade de cumprir normas
e regras; 7) identidade com a vida nas ruas; 8) abandono da escola; 9) más com-
panhias. Três categorias presentes anteriormente não reapareceram no atual cor-
pus: influência negativa de outros membros da família; gravidez; pai e/ou mãe
presos. Além dessas, a pesquisa no novo corpus (2013-2020) também permitiu a
indução de novas categorias, não presentes no corpus anterior (2010-2012), sen-
do elas: 10) dificuldade da família em controlar e impor limites ao adolescente;
11) problemas de ordem psíquica ou psicossocial do adolescente; 12) exploração
sexual; 13) gravidade da conduta no cometimento do ato infracional; 14) abalo
da paz da família ocasionado pelo adolescente. As situações costumam ser apre-
sentadas em conjunto, dependendo do caso do adolescente em questão e do que
se está buscando fundamentar ao utilizar o termo vulnerabilidade.
De qualquer maneira, a vulnerabilidade é apresentada como um dado
pertencente ao indivíduo que está sendo julgado, sem grandes explicações ou
contextualizações: trata-se de uma perspectiva que entende que ontologica-
mente, as pessoas marginalizadas são vulneráveis. Mas em relação a que essas
pessoas são vulneráveis, é uma questão não respondida diretamente.
O caso que demonstra de forma mais explícita essa visão sendo emprega-
da pelo STJ nas decisões analisadas é o do HC 581.089/RJ, julgado em 2020. A

219
DIREITOS HUMANOS E VULNERABILIDADES

denegação da ordem de habeas corpus e a consequente manutenção da medida


socioeducativa em meio fechado foi fundamentada apenas na gravidade da
conduta (equiparada a roubo com emprego de arma de fogo) e na situação de
vulnerabilidade do adolescente: não foram citadas passagens anteriores pelo
sistema infracional; sobre a gravidade da conduta há apenas uma referência
genérica, sem detalhes sobre como foi a ação; e a vulnerabilidade, apesar de
mencionada três vezes, não vem acompanhada por qualquer explicação ou jus-
tificação, como se autoexplicável fosse (BRASIL, 2020 a).
Em alguns acórdãos, lê-se que o adolescente está em risco por conta dessa
vulnerabilidade. Risco, por exemplo, de ser vítima de alguma agressão. Em
outras situações, especialmente quando ligada ao uso de drogas, à prática de
outros atos infracionais e às más companhias, a vulnerabilidade parece ser
entendida como propensão ao crime. Trata-se de uma estreita relação com o
conceito de periculosidade: ao analisar a vida pregressa do indivíduo, faz-se
uma projeção do que será o seu futuro. Confirma-se aí a passagem linearmente
compreendida do menor em perigo, em decorrência de suas condições sociais,
ao menor perigoso (RIZZINI, 2008): de vítima da sociedade desigual e de pais
irresponsáveis, a algoz dessa mesma sociedade. Em todos os casos, o uso da
vulnerabilidade está profundamente relacionado com a categoria da situação
irregular, típica do menorismo. Entende-se que o Estado deve agir sempre que
um “menor” está em situação irregular, especialmente em situação de perigo
moral, com desvio de conduta ou autor de infração penal.
A ideia de vulnerabilidade ao mundo do crime em decorrência da margi-
nalização, que se denota da maior parte dos entendimentos, implica sempre em
uma relação determinista entre pobreza e criminalidade. O racismo aqui perma-
nece velado, já que não tratado com todas as letras, mas reconhecido a partir do
dado de que 75% das pessoas pobres no Brasil são negras (INSTITUTO BRASI-
LEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA, 2020). Por outro lado, os Ministros
do STJ são majoritariamente brancos. A clientela do sistema infracional, assim
como ocorre no sistema penal, é oriunda dos extratos pobres da sociedade, e des-
proporcionalmente atinge meninos e meninas negras, de forma que os desvios
cometidos pelos adolescentes pertencentes aos grupos sociais economicamen-
te mais elevados permanecem de fora do controle social formal, ou ainda, são
tratados como meros atos característicos dessa específica fase da vida (SILVA;
GUERESI, 2003). O patrocínio pela Defensoria Pública em 41 dos 43 novos casos
pode indicar a situação econômica desfavorecida desses adolescentes, somados
a outras descrições nos acórdãos que dão conta deste aspecto econômico.
Ao se partir das condições pessoais e sociais do adolescente para definir que
medida deve ser aplicada, julga-se através do direito infracional de autor, e não
do direito infracional do fato. Como observa Uriarte (2006, p. 25, tradução livre),

220
MARÍLIA DE NARDIN BUDÓ – ALINE TAIANE KIRCH

“qualquer uso do termo proteção da infância, por fora de seus direitos é eufemís-
tico. Proteger a criança vulnerando seus direitos é uma contradição nos termos”.
Quanto às situações para as quais o termo vulnerabilidade foi instrumen-
talizado, dois grupos de resultados foram identificados no primeiro período
de análise (2010-2012). No primeiro grupo – de 24 acórdãos – encontrava-se
o entendimento de que a situação de vulnerabilidade indica a necessidade de maior
intervenção do Estado para corrigir o adolescente, sendo as medidas mais graves – a
semiliberdade e a internação – consideradas as mais adequadas para a sua “proteção”.
No segundo grupo, no qual constavam dois acórdãos, entendia-se a vulnerabi-
lidade como situação que enseja a adoção de medidas protetivas e não socioeducativas.
No novo corpus, dos 43 acórdãos analisados, 39 se enquadraram na primeira
macrocategoria; apenas 4 foram enquadradas na segunda. Porém, desta vez,
além das decisões que entenderam a vulnerabilidade como ensejadora de me-
didas protetivas ou medidas socioeducativas em meio aberto, acrescentamos
duas outras situações: um caso no qual o adolescente era apontado como vul-
nerável por ser usuário de drogas, e o ministro relator utiliza essa definição
para fundamentar a decisão concessiva do habeas corpus, pois ele estava em
tratamento (BRASIL, 2014 b); e um segundo caso onde o ministro relator enten-
deu que a vulnerabilidade e demais elementos da vida dos adolescentes não
são suficientes para afastar a insignificância do ato cometido, tendo ao final,
porém, o seu voto vencido (BRASIL, 2014 c)
Na primeira macrocategoria, manteve-se a descrição de que “apesar de
todos os entendimentos se voltarem à vulnerabilidade como ensejadora de me-
didas de privação da liberdade, os conceitos e fundamentos se diferenciam”
(BUDÓ, 2013, p. 220). Um primeiro entendimento nesta macrocategoria é o de
que a vulnerabilidade implica na necessidade de medida de semiliberdade ou
de internação, com o objetivo declarado de reinserir o adolescente no convívio
social. Como no primeiro corpus (2010-2012), o segundo (2013-2020) trouxe
construções bastante evidentes desta relação. É o que se observa, por exemplo,
no HC nº 195.777 – RS, em que o adolescente foi apreendido em flagrante em
posse de vinte pedras de crack, com peso aproximado de 5,0 gramas, o que foi
considerado como tráfico de drogas:
Não há a ilegalidade arguida pela zelosa Defensoria Pública, porquanto o
art. 100, c.c. art. 113, ambos do ECA, dispõe que na aplicação das medidas
socieducativas levar-se-ão em conta primeiramente as necessidades pedagó-
gicas do adolescente, o que permite a aplicação da medida mais gravosa de
internação, no caso dela se mostrar a única eficiente e suficiente para a resso-
cialização do menor infrator, como no caso.
Ademais, embora a reiteração de atos infracionais não esteja configurada, eis que
o Paciente foi beneficiado com diversas remissões (fls. 53/60), há notícia,
nos autos, de descumprimento injustificado de medida socioeducativa,

221
DIREITOS HUMANOS E VULNERABILIDADES

aliada à inequívoca situação de vulnerabilidade do adolescente, que não estuda e


não trabalha, o que autoriza a aplicação da medida de internação (BRASIL,
2013, p. 04, grifos nossos).
Neste caso, verifica-se o foco da decisão pela internação em dois princi-
pais aspectos: a reiteração, que é afastada, mas acaba reaparecendo na forma
do descumprimento; e a situação de vulnerabilidade do adolescente, que é a
conclusão extraída da frase “que não estuda e não trabalha”. A não prestação
de direitos sociais pelo próprio Estado neste caso contribui na definição de
vulnerabilidade, porém, não para garantir o acesso a esses direitos, mas para
agravar a resposta estatal ao ato infracional de tráfico de drogas, através da
privação do direito de liberdade.
O uso de drogas e a falta de estrutura familiar são bem representados na
decisão a seguir, no HC Nº 386.058 – SP, julgado em 2017:
Outrossim, o Tribunal a quo fundamentou a necessidade e adequação da
medida de internação na situação de risco em que se encontra a adoles-
cente, descrita em seu relatório polidimensional, em que constou que a
apelada abandonou os estudos precocemente; desde seus doze anos de
idade faz uso de toda a sorte de entorpecentes; não conta com respaldo
familiar, haja vista que o pai entregou-se ao domínio do álcool, a mãe
constituiu nova família, e atualmente reside com irmão, que não consegue
exercer qualquer autoridade familiar sobre ela, visto que usa múltiplas
substâncias entorpecentes, não estuda e envolveu-se com prática de ato
infracional gravíssimo.
Dessa forma, não há qualquer ilegalidade na medida socioeducativa de
internação aplicada à paciente (BRASIL, 2017 a, p. 5).
Este trecho sintetiza a vulnerabilidade como situação de marginalização
social e família desestruturada, chegando à conclusão de que há a necessidade
de se interferir na formação do adolescente para que se reverta essa situação. A
resposta, porém, novamente vem na forma de privação da liberdade, a fim de
supostamente implantar valores na adolescente. Neste caso, a defensoria pú-
blica havia se apoiado em laudo técnico apontando a conveniência de medida
em meio aberto, o qual foi afastado pelo Ministro julgador do caso, por conta
do ato infracional análogo ao de roubo majorado, e da situação acima descrita
de vulnerabilidade pela ausência de autoridade familiar e uso de drogas.
Um segundo entendimento nesta macrocategoria é o de que nessas situa-
ções de vulnerabilidade revela-se a necessidade de um acompanhamento por parte do
Estado, para controlar o adolescente e também garantir que ele não volte para o mesmo
grupo social e de amizades que o tornavam propenso ao ato infracional. É o caso, por
exemplo, do Agravo Regimental no Agravo em Recurso Especial nº 983.235 –
MG, em que o adolescente representado por posse de droga para uso pessoal
e furto qualificado sofreu a imposição de medida de internação, pois além do
prejuízo sofrido pela vítima – que apesar de ter os bens devolvidos, sofreu da-

222
MARÍLIA DE NARDIN BUDÓ – ALINE TAIANE KIRCH

nos materiais causados pelo rompimento de obstáculos – também teve como


um dos elementos para o desfecho da sentença o fato de estar inserido em um
ambiente de más companhias e a não obediência ao seu guardião:
Ademais, o estudo social não é positivo para o adolescente, fls. 28/31, pois
embora ele possua vínculos afetivos muito fortes, S. não respeita e não
cumpre as ordens de seu tio, seu guardião permanente. Demais disso, o
tio do apelado demonstrou preocupação com o futuro de seu sobrinho,
pois, segundo ele, as “más amizades” influenciaram o apelado negativa-
mente, tanto que o guardião de S. manifestou o desejo de se mudar para a
cidade de Janaúba, no intuito de afastá-lo do ambiente nocivo em que se
inseriu, mas até o momento isso não aconteceu de fato. [...] Dessa forma,
a intervenção do Estado será mais eficaz na tentativa de afastar o menor da
criminalidade, pois lhe proporcionará a segurança e o desenvolvimento necessá-
rios (BRASIL, 2017 b, p. 6-7, grifo nosso).
Um dado interessante neste caso é o uso do estudo social. Enquanto no
caso anteriormente apresentado o laudo favorável à adolescente foi afastado,
aqui, o estudo desfavorável foi considerado. Como no âmbito da execução tan-
to de penas quanto de medidas socioeducativas, aos magistrados é conferida a
possibilidade de ignorar solenemente os laudos que não corroboram com sua
perspectiva sobre os fatos, deles prescindindo para motivar sua decisão gra-
vosa aos direitos do/a adulto/a e do/a adolescente (BUDÓ; DALLASTA, 2017;
BUDÓ, 2015). Em processos estudados na comarca de São Borja, no estado do
Rio Grande do Sul, Cantini e Vitorio (2018, p. 631) observaram que:
O Magistrado não está adstrito à opinião dos técnicos, mas deve funda-
mentar a sua decisão. Assim, forçoso concluir que, nestes processos, as
sentenças basearam-se unicamente no ato infracional, sem nenhuma alu-
são às circunstâncias, nem à capacidade de cumprimento da medida.
De fato, impõe-se as medidas sem uma justificação que atente aos princí-
pios da proteção integral. Ao serem descumpridas, sequer há uma investigação
sobre o que conduziu a tal resultado. Na prática, o uso oportunista que se faz
dos laudos psicológicos e estudos sociais parece ser uma forma de desrespon-
sabilização do próprio Judiciário, pela absoluta negligência do Estado para
com esses adolescentes.
Ainda em relação ao trecho acima, apresenta-se a perspectiva tutelar: a
restrição de direitos vem mascarada por um discurso protetivo do ministro.
Tem-se aí uma verdadeira e comum contradição: como pode uma medida
que retira direitos ser considerada um bem ao adolescente? Isso só pode ser
entendido segundo a ótica da situação irregular, que torna indiferenciados o
abandonado e o delinquente, dado que a origem do segundo é o primeiro e o
destino do primeiro é o segundo. Como observa Baratta (2003, p. 18), a droga,
os crimes contra o patrimônio, ou mesmo a mera situação de abandono são as
situações que criam a ocasião para que o sistema recrute o jovem, de maneira

223
DIREITOS HUMANOS E VULNERABILIDADES

que mesmo com todas as mudanças ele permaneça substancialmente o mesmo:


“a criminalização das crianças e adolescentes pobres pela única razão de serem
pobres e de se encontrarem em ‘situação irregular’”.

3.2. O RECONHECIMENTO DA VULNERABILIDADE NÃO DEVE ENSEJAR


MEDIDA MAIS GRAVOSA
Os quatro acórdãos que integram a segunda macrocategoria, onde a
identificação da vulnerabilidade do adolescente enseja decisões não voltadas
à privação ou restrição da liberdade, trouxeram elementos interessantes para
a compreensão do conceito em questão. Em um desses casos, uma adolescente
foi representada pelo ato infracional de lesão corporal simples, no entanto, ve-
rificou-se que ela havia agido em legítima defesa, desferindo uma facada em
seu companheiro. Embora tanto a Defensoria Pública, como o Ministério Públi-
co tenham requerido a aplicação de medida protetiva prevista no inciso IV do
art. 101 do ECA, o juízo de primeira instância decretou a internação provisória
da adolescente sob o argumento da vulnerabilidade social pelo uso de drogas
e violência. O Tribunal de Justiça de São Paulo manteve a decisão do juízo a
quo, de forma que a Defensoria Pública daquele estado impetrou Habeas Cor-
pus no STJ. Nesta corte, foi reconhecida a ilegalidade da internação provisória,
definindo sua conversão em uma das medidas protetivas elencadas no art. 101
do ECA, a ser definida pelo juízo de primeiro grau, sendo o único caso de subs-
tituição de medida socioeducativa por medida de proteção (BRASIL, 2014 d).
Apesar de seu desfecho condizente com a verdadeira aplicação das pre-
missas do Direito da Criança e do Adolescente, este caso é um grande exemplo
do uso desenfreado do argumento da “vulnerabilidade social” para a insti-
tucionalização de adolescentes, pois, embora tal interpretação não tenha sido
aplicada pelo STJ – corte que é alvo desta pesquisa – o caso demonstra como
a doutrina da situação irregular se mantém operante no judiciário brasileiro,
ainda se utilizando da ideia de que a restrição da liberdade é um “bem” feito
pelo Estado para o adolescente. Mais do que isso, tratou-se de um caso onde
todos reconheceram a excludente da ilicitude, demonstrando que esse direito
infracional pouco ou nada se importa com os fatos, buscando apenas o controle
de seu autor ou autora. Não por acaso, a matriz positivista do menorismo cos-
tuma ser identificada nessas decisões, vertente segundo a qual, não é o dano
causado, mas sim o sintoma de periculosidade que interessa na prática de uma
conduta entendida como desviante ou agressiva, ainda que não ilícita, e ainda
que praticada por uma inimputável (BUDÓ, 2018).
No outro caso em que se afastou a restrição de liberdade, a adolescente
havia participado de um roubo, sendo-lhe aplicada a medida de semiliberdade,
que deveria ser cumprida em outra comarca, visto inexistir em sua localidade
instituição apropriada. No entanto, da ocorrência dos fatos até o julgamento do

224
MARÍLIA DE NARDIN BUDÓ – ALINE TAIANE KIRCH

Habeas Corpus pelo STJ passaram-se quatro anos, de forma que durante toda
a tramitação do processo a jovem esteve em liberdade, não se tendo notícias
do cometimento de outro ato infracional durante este período. O STJ entendeu
que manter a medida imposta era algo totalmente desarrazoado, diante dos
princípios da proporcionalidade e atualidade, aplicáveis no sistema infracio-
nal, visto que, além do largo lapso temporal, a aplicação da medida implicaria em
colocação da adolescente em risco, pois teria que cumpri-la na capital de São Paulo
e muito provavelmente não teria condições econômicas de retornar à sua cida-
de nos finais de semana (BRASIL, 2018). Esse foi o único caso, dos 43 acórdãos
analisados no novo corpus da pesquisa, em que uma medida em meio fechado
foi substituída por uma em meio aberto, e reconhecida como um fator que co-
locaria a adolescente em situação de vulnerabilidade, e não o contrário.
O terceiro caso tratava do furto de um condicionador de cabelos e de
um aparelho de barbear, realizado em concurso de agentes em um mercado,
que somados totalizavam o valor de R$23,00 (vinte e três reais). Em primeira
instância, a um dos adolescentes foi aplicada a medida de internação, sem pos-
sibilidade de atividades externas, e a outro a prestação de serviços à comuni-
dade, pelo prazo de 3 meses, decisão que foi confirmada pelo TJ-RS. Impetrado
Habeas Corpus ao STJ, esta corte concedeu a ordem, julgando improcedente a
representação pela ocorrência de ato infracional de bagatela (BRASIL, 2014 c).
No entanto, salienta-se que a decisão não foi unânime, sendo o relator vencido,
o qual entendeu que o cometimento de atos infracionais antes e após o fato, o
descumprimento de medidas anteriormente impostas e o uso de drogas enseja-
riam a aplicação da medida mais severa prevista no Estatuto, ainda que o caso
tenha sido julgado pelo STJ três anos após o cometimento da conduta.
O voto do relator foi o único, entre todos os acórdãos analisados pela pes-
quisa, a apresentar fundamentação com base em um vasto acervo bibliográfico.
Contudo, a finalidade do emprego das obras nesse caso foi a de demonstrar
uma interpretação que culmina em uma eufemística “proteção” ao adolescen-
te, para corroborar sua opção em não acolher a aplicação da tese do Princípio
da Insignificância. Sabendo que a insignificância do dano exclui a tipicidade
material da conduta, novamente se admite a aplicação menorista e positivista
da vulnerabilidade como periculosidade.
Em todos os demais votos, de todos os 43 acórdãos analisados – dentre es-
ses, outros do mesmo relator – os únicos elementos utilizados pelos ministros
na fundamentação jurídica de suas decisões são a lei, os julgados e as súmulas
da própria Corte, e ocasionalmente, julgados do STF. Ou seja, aparentemente,
o STJ não faz uso dos estudos de pesquisadoras e pesquisadores da área da
Criança e do Adolescente como fonte do direito para suas decisões. Isso leva a
sugerir que tal modus operandi torna-se um dos elementos que explicam o fato

225
DIREITOS HUMANOS E VULNERABILIDADES

de muitos dos resultados da primeira pesquisa, que teve como marco de análi-
se os acórdãos proferidos entre os meses de outubro de 2010 a outubro de 2012,
ainda se manterem no presente estudo, que compreende os meses de janeiro
de 2013 a setembro de 2020, demonstrando a manutenção do paradigma da
ambiguidade (referido por García Méndez) após dez anos.
Por fim, o quarto caso trata da situação de um adolescente primário, que
cometeu o ato infracional análogo a roubo qualificado pelo concurso de agentes,
tendo sua internação provisória negada em sede de primeiro grau, mas conce-
dida pelo TJ-SP. A decisão de segundo grau foi prolatada nove meses após a
ocorrência dos fatos, quando o adolescente já se encontrava em uma clínica de
tratamento para dependentes químicos. Diante disso, o STJ compreendeu que
a manutenção da decisão da segunda instância era inadequada, referindo que:
Na verdade, o Tribunal Impetrado considerou, no caso, a condição de vul-
nerabilidade do Paciente, pelo uso descontrolado de drogas, que o expõe
a situações de risco, comuns a qualquer usuário-dependente de substân-
cias entorpecentes. Contudo, esse fundamento, sob o ponto de vista le-
gal, não serve para justificar a internação provisória, sobretudo, porque
o Adolescente já se encontra internado em clínica de reabilitação para
dependentes de drogas. E conforme bem ressaltou o Juízo da Infância e
da Juventude, “não se presta a internação para alcançar resultados outros que
não aqueles previstos no Estatuto Juvenil, não se aceitando a utilização deturpada
da internação cautelar para solução de problemas relacionados ao intenso uso de
drogas pelo adolescente” (fl. 16). Ademais, a gravidade abstrata da infração,
assim como a mera probabilidade de reiteração infracional, sem fun-
damento concreto, não servem para embasar a decretação da interna-
ção provisória, medida de natureza excepcional que só deve ser adotada,
quando presentes os requisitos legais previstos nos arts. 108 e 122 do Esta-
tuto da Criança e do Adolescente, não configurados na espécie (BRASIL,
2014 b, p. 8, grifos no original).
Além dos quatro casos citados dessa segunda macrocategoria, destaca-se
o posicionamento de uma das ministras da Corte em dois acórdãos proferidos
em 05 de agosto de 2014. Embora sejam votos vencidos e os acórdãos tenham
sido catalogados na primeira macrocategoria, a ministra Maria Thereza de As-
sis Moura referiu que:
Por fim, penso que não é razoável restringir o direito de liberdade, amparando-se
na condição de vulnerabilidade do adolescente, eis que tal situação fática não
autoriza a medida de internação, que só poderá ser infligida inexistindo
outra mais adequada e, ainda, quando cumpridas as condições elencadas
no art. 122 do ECA. Tal quadro conduz, antes, à aplicação de medidas pro-
tetivas (art. 101 do ECA) (BRASIL, 2014 a, p. 24, grifo nosso).
A mesma ministra já havia se expressado nesse sentido no corpus anterior
(2010-2012), sendo que no trabalho publicado também havíamos destacado o
posicionamento, dado que se trata de uma interpretação completamente oposta

226
MARÍLIA DE NARDIN BUDÓ – ALINE TAIANE KIRCH

à hegemônica, e muito mais adequada do ponto de vista da doutrina da proteção


integral (BUDÓ, 2013). Ela diferencia, de um lado, a restrição da liberdade da
proteção; e, de outro lado, a vulnerabilidade da periculosidade. Depreende-se da
decisão que a vulnerabilidade, nesse caso, demonstraria ser o adolescente vítima
de um contexto social, cabendo ao Estado proteger e não punir.
Em resumo, a primeira macrocategoria foi massivamente preponderante
em relação à segunda, somando 24 julgados no primeiro corpus (2010-2012) e
39 julgados no segundo (2013-2020), contra 02 e 04, respectivamente. Isso de-
monstra que os ministros do STJ optam pela definição de vulnerabilidade como
uma situação pessoal e social ligada ao indivíduo, que independe da conduta
e que desconsidera a responsabilidade do Estado. Além disso, desconhece a
que efetivamente o adolescente é vulnerável, já que a categoria é reificada. Por
isso, adota-se a aplicação das medidas socioeducativas de semiliberdade e de
internação em um sentido mesmo de contenção, para evitar que os adolescen-
tes retornem às suas famílias desestruturadas ou que não conseguem lhe impor
limites, bem como às drogas e às más companhias. Porém, não podendo fazer
uso dos termos punição, neutralização ou periculosidade, justificam-se, com o
uso das ideias de prevenção especial positiva, seja renomeando “punição” com
a palavra, facilmente digerível, “proteção”; seja renomeando a estigmatização
e toda a sorte de violências decorrentes da privação de liberdade como “opor-
tunidade de estudo e profissionalização” do adolescente. Outra vez, a pericu-
losidade, tão fundamental à matriz positivista do menorismo se sobrepõe, e,
junto dela, a prioridade da defesa social em detrimento do reconhecimento
do/a adolescente como sujeito de direitos e da proteção integral baseada na
condição de pessoa em desenvolvimento.

4. PELA SUPERAÇÃO DOS EUFEMISMOS: VULNERABILIDADE EM


RELAÇÃO A ...?
O eufemismo é uma figura retórica muito comum na linguagem adotada
nos discursos político e judicial sobre o ato infracional (BUDÓ, 2018). Como
visto no contexto das decisões do STJ sobre o ato infracional, a palavra proteção
aparece como um eufemismo anacrônico, tanto na passagem do Código de
Menores ao Estatuto – pois agora não se pode mais confundir abandono e in-
fração –, quanto na própria estrutura interna do Estatuto, dado que as medidas
socioeducativas têm em seu âmago a responsabilização, e não a proteção do
adolescente (BRASIL, 2012). Esse inclusive é um dos méritos da Lei do Sinase,
que deixou tal finalidade clara justamente com o objetivo de superar a lógica
menorista (BUDÓ, 2018; KIRCH, 2015)7.

7 Responsabilidade é a palavra que, para Beloff (2001, p. 15, tradução livre), resume a Convenção
Internacional de Direitos da Criança: “em primeiro lugar dos adultos, representados pelo Estado, pela

227
DIREITOS HUMANOS E VULNERABILIDADES

Essa semântica retrógrada oculta as consequências e sofrimentos reais li-


gados às medidas de internação e semiliberdade, de modo a evidenciar um se-
cond code (CICOUREL, 1995): se a justificativa apresenta um primeiro código de
proteção e a sua realização não deixa margem a essa interpretação, o segundo
código é punitivo e vem carregado de sofrimento (BUDÓ, 2018).
Essa máscara protetiva que esconde a face punitiva e tutelar é também
destacada nas análises do movimento dos “child savers”, surgido nos Estados
Unidos em prol das cortes juvenis no final do século XIX, e composto por filan-
tropos de classes altas movidos por um discurso essencialmente tutelar, basea-
do na incapacidade dos pobres e na bondade perante as crianças abandonadas
(PLATT, 2009). Em 1968, Cicourel isolou os fatores que influenciavam as decisões
dos juízes norte-americanos perante os jovens, e notou que as caraterísticas dos
adolescentes que parecem explicar o seu comportamento desviante no discurso
judicial (família desestruturada, uso de drogas etc.) não são exatamente as suas
causas, mas os critérios usados pelos atores do sistema de justiça juvenil para
selecioná-los. Por outro lado, aqueles jovens não pertencentes aos estereótipos,
mesmo tendo praticado delitos, passavam por filtros de maneira a não chegar
ao sistema. Trata-se do que o autor veio a denominar “second code” na ação dos
agentes de controle penal (CICOUREL, 1995). Essa ideia ajuda a trazer ao centro
do foco a relação entre os usos que se tem feito do conceito de vulnerabilidade
no STJ atualmente e esse mesmo second code menorista: quem vem antes, afinal,
o infrator ou o processo de infracionalização? (SANTOS, 2000)
Neste trabalho, fica bastante claro que vulnerabilidade é um desses ter-
mos utilizados de maneira corriqueira que, no entanto, não passaram pelo
crivo do questionamento sobre o que é e para que serve no âmbito do ato in-
fracional. Como observa Uriarte (2006), o termo periculosidade foi proscrito
pela doutrina da proteção integral, dando margem ao uso excessivo dos ter-
mos “vulnerabilidade” e “contenção” para lidar com os adolescentes através
de suas condições pessoais e sociais. O foco do sistema penal nos pobres é uma
consequência da relação determinista entre pobreza e criminalidade, resultado
de preconceitos sociais que moveram os estudos do positivismo criminológico
no século XIX. Isso pode ser visualizado nos crimes cometidos por aqueles que
são controlados pelo sistema penal, seja ele voltado aos adultos, seja ele vol-
tado aos adolescentes. Quando verificados tanto os dados de encarceramento
quanto os dados de adolescentes internados, nota-se que na sua maior parte
os indivíduos foram privados de sua liberdade em razão de crimes contra o
patrimônio e tráfico de drogas. O sistema penal, em interação com as agências
de controle social informal, a partir dos processos de criminalização primária e
secundária, determina quem serão as pessoas consideradas desviantes em uma
comunidade e pela família; e em segundo lugar, das crianças”. É justamente a compreensão de crian-
ças e adolescentes como sujeitos de direitos que leva à sua responsabilidade.

228
MARÍLIA DE NARDIN BUDÓ – ALINE TAIANE KIRCH

determinada sociedade.
Diferentemente do que se quer fazer crer cotidianamente com a criminali-
zação de adolescentes, assim como na esfera adulta, a prática de atos infracionais
por membros daquele grupo é a regra, e não a exceção (SANTOS 2000). O fato
de apenas alguns adolescentes caírem nas malhas do sistema penal redunda em
uma seletividade característica de todos os sistemas penais. A parcela mais sig-
nificativa dos atos infracionais praticados pela juventude em geral é tolerada,
resolvida através de medidas alternativas adotadas pela família e pelo grupo so-
cial do qual o jovem faz parte, configurando a cifra oculta dos atos infracionais.
Apoiamo-nos em Santos (2000) para demonstrar que as expressões “ado-
lescente infrator” ou mesmo “adolescente autor de ato infracional” não são exa-
tas: se na prática todos ou quase todos os adolescentes praticam atos contrários
à legislação penal, o que os distingue exatamente é o fato de uns terem sido
rotulados como tais pelo próprio sistema de justiça juvenil e outros não, por con-
sequência de terem sido ou não recrutados pelo sistema penal (SANTOS, 2000).
De fato, o número de crianças e jovens de classe baixa e não brancos que chegam
ao sistema de justiça é muito maior do que os de classe média e média alta (SIL-
VA; GUERESI, 2003). A título de exemplo, no último Levantamento Anual do
SINASE, o qual apresenta dados de 2017, aponta-se que 40% dos adolescentes
inseridos do Sistema Socioeducativo naquele ano eram pretos ou pardos, predo-
minando em relação as demais etnias. Já em relação aos adolescentes que cum-
priam medidas de restrição ou privação de liberdade em específico, o Levanta-
mento indicou que entre 2014 e 2016 o número de adolescentes pretos e pardos
era de 56%, o que corrobora a afirmação acima realizada (BRASIL, 2019).
Daí que o entendimento sobre o termo vulnerabilidade deva ser radical-
mente invertido em relação à forma como utilizada nos julgados analisados.
Se todos os adolescentes praticam atos infracionais e o sistema penal não
está estruturado para se voltar contra todos eles; se o sistema penal seleciona
alguns atos infracionais e alguns adolescentes com um determinado estereó-
tipo para perseguir; se essa escolha nada tem a ver com a gravidade do ato
infracional, mas sim com uma definição estabelecida pelo racismo estrutural
e institucional, bem como ao controle dos pobres pelas agências de contro-
le penal, então os adolescentes que praticam o tipo de ato infracional mais
perseguido e pertencem ao estereótipo mais visado são efetivamente mais
vulneráveis: ao sistema penal8 (ZAFFARONI et al., 2003). Essa vulnerabilidade

8 Resulta de ingenuidade ou de hipocrisia não assumir o fato de que os adolescentes estão sujeitos à atu-
ação do sistema penal, ainda que vigente o Estatuto da Criança e do Adolescente. É a polícia o primeiro
filtro do sistema penal, e é ela responsável pela apreensão em flagrante na maior parte dos casos, tendo
em vista a preponderância de crimes de rua, como o tráfico de drogas e os crimes contra o patrimônio
individual. Daí que todas as críticas trazidas à seletividade e à violência institucional característica da
agência policial do sistema penal, sobretudo no país cuja polícia mais mata no mundo, deve ser levada
em consideração no contexto dos processos de infracionalização. Tal é o motivo pelo qual falar em

229
DIREITOS HUMANOS E VULNERABILIDADES

é dada pela situação pessoal do indivíduo, mais do que pelos seus atos, mas
também por eles, o que implica nas maiores chances que tem de ser recrutado
pelo sistema. A privação da liberdade, ao contrário de produzir o efeito de
redução da vulnerabilidade, conforme parece ser o entendimento dos minis-
tros autores das decisões analisadas, a reproduz, pois “estreita o espaço de
opções do indivíduo e aumenta sua exposição ao sistema penal” (URIARTE,
2006, p. 104).
Zaffaroni et. al. (2003, p. 49) explicam que a vulnerabilidade perante o
sistema penal pode ser entendida de duas maneiras: um estado de vulnerabili-
dade ao poder punitivo, “que depende de sua correspondência com um estereó-
tipo criminal”; e uma situação de vulnerabilidade, “que é a posição concreta de
risco criminalizante em que a pessoa se coloca”. Para se colocar em situação
de vulnerabilidade, ou seja, de risco criminalizante, aqueles que correspon-
dem a um estereótipo e, portanto, estão em estado de vulnerabilidade signi-
ficativo não precisam se esforçar muito. Ao contrário, quem não se enquadra
em um estereótipo precisa esforçar-se muito para se posicionar em situação
de risco criminalizante, pois é baixo seu estado de vulnerabilidade (ZAFFA-
RONI et al., 2003). Nesses casos, relacionados à criminalidade comum pra-
ticada por não pertencentes aos estereótipos do criminoso, Zaffaroni et al.
(2003, p. 49) os denominam criminalização por comportamento grotesco ou trági-
co. Já nos casos em que o próprio tipo de crime é daqueles não compreendi-
dos como tais pela sociedade, em especial os crimes de colarinho branco, a
criminalização ocorre por falta de cobertura e “servem também para encobrir
ideologicamente a seletividade do sistema, que através de tais casos pode
apresentar-se como igualitário”.
A vulnerabilidade relatada pelos ministros em suas decisões para jus-
tificar a aplicação de medidas socioeducativas mais duras depende mais das
chances de esses adolescentes serem perseguidos pelo sistema penal e efeti-
vamente chegar ao Judiciário, do que a uma condição que os leva a pratica-
rem mais atos infracionais do que outros. Não se nega com essa abordagem
que efetivamente os adolescentes estejam passando por situações de repres-
são de suas necessidades humanas fundamentais. De fato, aqueles que so-
frem a violência estrutural (GALTUNG, 1969) costumam ser os primeiros a
padecerem de todas as outras formas de violência, dentre as quais aparece a
violência institucional (BARATTA, 2004). O que se não admite, porém, é que
essa situação de vulnerabilidade seja pessoalmente atribuo, sem questionar
o quanto as próprias agências de controle protagonizam a sua construção
social.

“vulnerabilidade em relação ao sistema penal” adota uma terminologia descritivamente correta, ainda
que não desejável do ponto de vista normativo.

230
MARÍLIA DE NARDIN BUDÓ – ALINE TAIANE KIRCH

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este trabalho buscou revisitar uma pesquisa realizada em 2012 e publica-
da no ano de 2013 sobre o conteúdo da expressão “vulnerabilidade” quando
citada em decisões do Superior Tribunal de Justiça para tratar sobre o ato infra-
cional e a aplicação de medidas socioeducativas em grau recursal, ou em deci-
sões de habeas corpus. Adicionando 43 acórdãos aos 26 anteriormente analisa-
dos, a pesquisa reafirma as conclusões a que chegamos anteriormente, notando
que nestes dez anos, o Superior Tribunal de Justiça tem feito uso do conceito de
vulnerabilidade a partir de uma perspectiva que, ao reconhecer a violação de
direitos fundamentais e as dificuldades de acesso aos direitos sociais, apontam
para a necessidade de privação de sua liberdade, em nome da proteção.
A vulnerabilidade como estratégia discursiva para legitimar a intervenção
de um sistema que se presta apenas à punição e à reprodução das desigualdades
sociais se mostra arbitrário e incompatível com o paradigma da proteção inte-
gral. Aparece aqui claramente o paradigma da ambiguidade, de que fala García
Méndez (2007): se, por um lado, os juízes aceitam a mudança de paradigma em
teoria para proclamar que os adolescentes têm direitos, por outro lado, não a
aceitam em suas últimas consequências. Mantém-se, assim, a perspectiva meno-
rista, com todo o seu conteúdo lombrosiano e principalmente com a admissibi-
lidade de um enorme poder discricionário, dentro de um sistema inquisitório,
que se já não mais admite no sistema penal adulto. A vulnerabilidade, da forma
como utilizada no tema do ato infracional, especialmente no Judiciário, é uma
construção social que legitima a adoção de posturas que, a pretexto de serem
protetivas, são discricionárias e repressivas, como nos exemplos em que a exclu-
dente da ilicitude da legítima defesa e a causa de exclusão da tipicidade pela fal-
ta de lesividade ao bem jurídico foram ignorados com base na vulnerabilidade.
Essa compreensão também conduz ao abandono da própria ideia de resso-
cialização como fundamento da medida socioeducativa, através do afastamento
desse “direito infracional do autor”, e do reconhecimento da ilegitimidade do
Estado para impor ao adolescente um determinado modo de vida como o único
correto, atrelado a uma atitude conformista e submissa. A expressão “educação”
contida em todo arcabouço jurídico relacionado à criança e ao adolescente não
é uma função da medida, mas sim um direito social de todas as crianças e ado-
lescentes, inclusive daquelas que praticaram atos infracionais (COUSO, 2007).
Já a medida socioeducativa é uma resposta negativa dada pelo Estado àquele
que transgrediu a norma, e seu caráter “educativo” se resume à responsabiliza-
ção pelos próprios atos, inclusive com a reparação dos danos à vítima, quando
existente. Eis o caráter abolicionista do Estatuto. A ideia de ressocialização ape-
nas pode surgir como limite à internação e não como justificação (BUDÓ, 2018).
O princípio educativo não seria positivo, no sentido de impor ao/à adolescente

231
DIREITOS HUMANOS E VULNERABILIDADES

uma transformação de sua forma de vida para além de sua autonomia e desejo,
mas sim, um princípio negativo, no sentido de proporcionar o maior número
possível de situações nas quais ele possa usufruir de liberdade e de contato com
a família e a comunidade (COUSO, 2007).
A partir dessa constatação, evidencia-se a necessidade de superação do
paradigma etiológico em criminologia quando se trata do direito da criança e
do adolescente para chegar a uma perspectiva crítica que leve em consideração
a necessidade de se mitigar a vulnerabilidade do adolescente perante o sistema
penal, bem como sua seletividade. Dado que essa seletividade é estrutural e
não meramente conjuntural, nada resta senão minimizar esse sistema punitivo
deslegitimado, junto com todas as fantasias que utiliza para mascarar-se: de
proteção, de educação, de ressocialização. Se há algo de produtivo em todos os
sistemas disciplinares, em especial no sistema penal – seja ele adulto ou juvenil
– seu produto é aquilo que ele persegue: o delinquente.

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234
PRÁTICAS ADEQUADAS DE EXTENSÃO JURÍDICA E
VULNERABILIDADES SOCIAIS NO NORTE DE MINAS
GERAIS
Ionete de Magalhães Souza
Eduardo Vinícius Pereira Barbosa

Sumário: 1. Introdução; 2. Práticas extensionistas jurídicas na educação


superior; 2.1. Extensão jurídica universitária e o conhecimento interdis-
ciplinar; 3. O programa serviço de assistência jurídica gratuita itineran-
te (S.A.J itinerante); 3.1 Ações de acesso à justiça e direitos humanos; 4.
Extensão e vulnerabilidades sociais; 4.1. Práticas adequadas de extensão
jurídica universitária e vulnerabilidades sociais no norte de Minas Gerais;
5. Considerações finais; 6. Referências.

1. INTRODUÇÃO
As diversificadas vulnerabilidades do povo brasileiro, e, em análise, o
norte do estado de Minas Gerais, levam a reflexões que exigem saídas urgen-
tes, frente ao grande desconhecimento de direitos básicos, salientados pela
fome física, de uma parcela considerável de pessoas.
A presente pesquisa tem por objetivo promover uma análise sobre as prá-
ticas extensionistas jurídicas na educação superior no enfrentamento de vulne-
rabilidades sociais e sua motivação parte, de maneira especial, da experiência
qualificada dos autores no Programa Serviço de Assistência Jurídica Gratuita
Itinerante (S.A.J. Itinerante), criado em 2002, no âmbito do curso de Direito da
Universidade Estadual de Montes Claros (Unimontes).
Trata-se de um exemplo de prática adequada de extensão jurídica, com
muitas atividades prestadas com a proposta central de levar informação ci-
dadã e jurídica a todos os locais possíveis, em vasta área de abrangência, que
parte do município de Montes Claros, no norte de Minas Gerais, através de
profissionais especializados – Professores do Curso de Direito – e acadêmicos
voluntários.
Por intermédio dos registros da prática interdisciplinar mencionada, pre-
tende-se debater, em sede de objetivos específicos, acerca da importância da
implementação de atividades extensionistas, que proporcionem uma partici-
pação mais ativa e engajada dos estudantes e viabilizem o seu contato com
diferentes realidades sociais, econômicas e culturais.
Busca-se, ainda, discutir as concepções de extensão universitária jurí-

235
DIREITOS HUMANOS E VULNERABILIDADES

dica e suas práticas pedagógicas no âmbito do ensino superior, o que é feito


na primeira parte deste trabalho. Na segunda parte, procura-se apresentar as
propostas teóricas e procedimentais, que fundamentam as atividades desen-
volvidas pelo Programa S.A.J. Itinerante, na Unimontes, principalmente sob o
prisma das vulnerabilidades sociais.
No que tange aos procedimentos metodológicos, inicialmente, necessário
se fez um levantamento bibliográfico a respeito dos conceitos essenciais ao de-
bate. Com a finalidade também de elucidar dados, a pesquisa em plataformas
oficiais, como Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio
Teixeira (Inep), Ministério da Educação e Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística (IBGE), contribui para a robustez deste trabalho.

2. PRÁTICAS EXTENSIONISTAS JURÍDICAS NA EDUCAÇÃO


SUPERIOR
De início, o estudo de práticas extensionistas requer a compreensão de
conceitos fundamentais e de uma análise acurada de métodos, sob a perspecti-
va da história e do contexto em que se situa.
Historicamente, o ensino superior no Brasil, especialmente no ramo jurí-
dico, baseia-se no modelo tradicional, com maior foco no ensino, tendo se limi-
tado o curso de graduação à sala de aula e à realização de estágio profissional
supervisionado, ainda com pouco incentivo à pesquisa e à extensão universitá-
ria, que hoje já são reconhecidas como formas de aprendizagem e formação tão
relevantes quanto o ensino.
Conforme demonstra Ernesto Seidl: “[...] o diploma de bacharel em Di-
reito compõe o principal título superior entre os membros das elites políticas e
burocráticas no país” (SEIDL, 2013, p.190). Talvez um dos principais aspectos
pelos quais as universidades, em geral, focaram os cursos de bacharelado em
Direito nos métodos tradicionais de ensino ao longo das décadas, com menor
enfoque na pesquisa e na extensão, seja exatamente a urgência de formar pro-
fissionais para conquistar o mercado de trabalho e os conhecimentos técnicos
necessários, em detrimento, ainda, da compreensão das lutas, necessidades e
vulnerabilidades sociais, além dos direitos humanos.
Destaca-se que, este quadro pode ser ainda mais discutido quando se con-
cebe o curso de Direito como sendo formador de um estudante que, no exer-
cício da vida profissional, em qualquer cargo ou função que venha a ocupar,
terá constante contato com os tensionamentos e conflitos sociais. Cabendo ao
operador do Direito interpretar a realidade da qual faz parte, mostrando-se in-
suficiente, para a solução de um caso concreto, apenas saber o conteúdo técnico
aprendido durante os anos de faculdade em códigos e doutrinas especializadas.

236
IONETE DE MAGALHÃES SOUZA – EDUARDO VINÍCIUS PEREIRA BARBOSA

Thais Luzia Colaço explica que, inicialmente, o ensino do Direito no Bra-


sil teve um caráter mais conservador, com traços herdados da Universidade
de Coimbra, em Portugal, com a presença de aulas-conferência, que buscavam
principalmente um serviço de manutenção da ordem estabelecida, oportuni-
zando aos profissionais formados um prestígio local. Desse modo, propiciava
a ascensão social, fato que levou muitos de egressos do curso de Direito na
história nacional a se tornarem políticos de renome. (COLAÇO, 2006)
A título de exemplo, tomando-se por base o ocupante de um cargo eletivo
de Deputado Federal, representante eleito pelo e para o povo, na Câmara dos
Deputados, a quem incumbe atribuições legislativas, que refletem em todos
os brasileiros, Ernesto Seidl (2013) aponta que, em 2003, cerca de um terço dos
Deputados Federais portava diploma de bacharel em Direito.
Embora tenha havido um processo de diversificação dos títulos supe-
riores do pessoal da política, em 2011, segundo levantamento da Agência
Câmara de Notícias1, dos 513 Deputados Federais, 78 tinham formação em
Direito. Eles se identificam como Advogados (67), bacharéis em Direito (5) e
Procuradores (3), além de um Defensor Público, um Juiz e um Serventuário
da Justiça. (SEIDL, 2013)
Dados interessantes e que demonstram a importância do curso de Di-
reito na formação de profissionais que, posteriormente, ocupam posições e
profissões que têm o condão de, diretamente, formular políticas públicas, que
possam beneficiar um número vasto de pessoas. Além de se deparar com a
necessidade de atuar em realidades socioeconômicas múltiplas, que exigem
tomada de decisões precisas e que muitas vezes superam a técnica, carecendo
de sentimentos como humanidade, sensibilidade e solidariedade.
Por tal razão, é salutar evitar a lógica tradicional do ensino jurídico, para
considerar o contexto social, econômico e cultural, que circunda os estudantes,
de modo que concluam a graduação, cada vez mais, com responsabilidade e
engajamento social, assim como capacidade de lidar com as fragilidades e as
vulnerabilidades humanas. Para além da preparação para o mercado de traba-
lho, o curso de Direito deve sempre primar por qualificar o estudante para a
vida e o exercício da cidadania.
Outro ponto muito relevante dos cursos de Direito nos dias de hoje e
que impactam muito no êxito das atividades extensionistas é a diversificação
dos discentes. Rosendo Freitas de Amorim, Júlia d’Alge Mont’Alverne Barre-
to e Isabelly Cysne Augusto Maia (2017) pontuam que, atualmente, o acesso
aos cursos de Direito encontra-se mais democratizado, e que isto se deve,

1 Disponível em: https://www.camara.leg.br/noticias/209381-profissionais-de-direito-e-saude-sao-os-


-maiores-grupos-entre-deputados/. Acesso em 04 de outubro de 2020, às 16h50.

237
DIREITOS HUMANOS E VULNERABILIDADES

especialmente, à implantação do sistema de cotas raciais e econômicas nas


Universidades Públicas e Institutos Federais, com regulamentação pela Lei
nº 12.711/2012. Asseveram:
De qualquer modo, o Direito ainda é um curso que possui certo status
perante os demais, tanto que os integrantes do Poder Judiciário são trata-
dos pela comunidade como autoridades. Por essa razão, cada vez mais se
questiona a necessidade da extensão universitária na formação do bacha-
rel em Direito e a cobrança de que as universidades incentivem a prática
da extensão, seja mediante a oferta de bolsas, seja mediante a elaboração
de projetos de extensão, não só para que o estudante tenha esta experiên-
cia durante sua graduação, mas também para que saia da universidade
mais consciente de seu papel de possível transformador da realidade so-
cial (AMORIM; BARRETO; MAIA; 2017, p. 337).
Thais Luzia Colaço pondera que o curso de Direito, dada a vinculação di-
reta com a Justiça, deve apresentar um ensino emancipatório e libertário, e não
excludente e autoritário. A autora rechaça a concepção de formas de ensino jurí-
dico apenas como incentivo a uma ascensão socioeconômica. (COLAÇO, 2006)
Isto reafirma a necessidade de se conceber a Pesquisa, o Ensino e a Extensão
como indissociáveis, e que o conhecimento produzido e aprendido na Univer-
sidade deve ser socializado. O Direito, enquanto Ciência Social Aplicada, deve
exigir de seus profissionais e estudantes sempre um compromisso social, para
que atuem como agentes transformadores da realidade cotidiana de populações
carentes, auxiliando-os no resgate da cidadania e da autoestima, conhecimento e
manutenção de seus direitos, constantemente ameaçados no Brasil.

2.1. EXTENSÃO JURÍDICA UNIVERSITÁRIA E O CONHECIMENTO


INTERDISCIPLINAR
Outro aspecto importante a ser levado em consideração quando das tra-
tativas sobre a Extensão Universitária é o diálogo que se deve primar dessas
práticas com outros saberes, através da interdisciplinaridade.
A respeito do tema, Ivani Fazenda (2008) pondera que as tratativas sobre
interdisciplinaridade requerem a delimitação de qual interdisciplinaridade se
discute, isto é, se escolar ou científica, bem como uma profunda imersão nos
conceitos de escola, currículo ou didática.
No presente trabalho, aborda-se a interdisciplinaridade pela perspectiva
escolar ou educacional, em que “saberes escolares procedem de uma estrutura-
ção diferente dos pertencentes aos saberes constitutivos das ciências” (Chervel,
1988; Sachot, 2001 apud FAZENDA, 2008, p. 21).
Segundo Ivani Fazenda: “[...] na interdisciplinaridade escolar, as no-
ções, finalidades, habilidades e técnicas visam favorecer sobretudo o proces-
so de aprendizagem, respeitando os saberes dos alunos e sua integração.”

238
IONETE DE MAGALHÃES SOUZA – EDUARDO VINÍCIUS PEREIRA BARBOSA

(FAZENDA, 2008, p. 21). Ainda conforme a autora, a interdisciplinaridade na


formação profissional necessita que o professor tenha competências relativas
às formas de intervenção a serem aplicadas e às condições que concorrerem
para o seu melhor exercício.
Neste prisma, Nali Rosa Silva Ferreira explicita que, o desenvolvimento
de uma prática interdisciplinar, no cotidiano da prática profissional, pode faci-
litar a aprendizagem do processo de transformação das vivências em experiên-
cias formadoras. Destaca, ainda, que a formação de Professores pelo viés da
interdisciplinaridade, indicadora de práticas na intervenção educativa, liga-se
ao desenvolvimento de competências, para que o profissional consiga “cons-
truir pontes”. (FERREIRA, 2010)
Em discussão teórica sobre o tema, Francisco Nilton Gomes de Oliveira
(2013) sintetiza que a interdisciplinaridade consiste na expulsão de uma ciência
dura, que propicia mudanças nas matrizes curriculares das escolas no ensino
fundamental, básico e superior, de modo que o estudante passa a ser o me-
diador do seu conhecimento, buscando um domínio das suas investigações,
experiências e parcerias em diferentes disciplinas.
No que tange especialmente ao ensino superior, conforme Francisco Nil-
ton Gomes de Oliveira (2013), cabe às Instituições de Ensino Superior (IES)
atentar as novas contextualizações vindouras das necessidades humanas e do
avanço tecnológico, o que requer um modelo de gestão aberta, participativa e
transversal de conhecimento e saberes transdisciplinares, com atores que aten-
dam às múltiplas exigências dos novos cenários econômicos, regulatórios do
Ministério da Educação (MEC) e com uma capacidade de maximizar e expe-
rimentar novos enfrentamentos de um mercado absolutamente competitivo.
Uma visão interdisciplinar tem como indicador de sua atividade a práti-
ca, o que se baseia na experiência e se serve dela como material a ser, posterior-
mente, trabalhado na linha teórica. As práticas interdisciplinares na educação
superior requerem da IES a inclusão no currículo dos cursos de temas transver-
sais, que são ferramentas necessárias para uma política institucional e legitima,
de prática inovadora e que estimula o aluno a pensar, refletir, compreender,
agir de forma consciente e preventiva, frente aos desafios que hoje são apre-
sentados, (OLIVEIRA, 2013).
Isso permite uma compreensão da complexidade que envolve, hoje, a do-
cência do ensino superior, e indica que, por meio da Extensão Universitária, é
possível se utilizar da interdisciplinaridade e se fazer uma renovação metodo-
lógica na educação jurídica, de modo a oferecer aos estudantes mais condições
de humanização e entendimento dos problemas do “outro”.
Por exemplo, a união de estudantes dos cursos de Direito, Serviço Social

239
DIREITOS HUMANOS E VULNERABILIDADES

e Psicologia, durante atividade extensionista, para intervenção e proposta de


orientações especializadas em casos reais de Direito de Família ou de vio-
lação a Direitos Humanos, em comunidades e povos tradicionais, pode ser
uma experiência extremamente agregadora à formação dos estudantes. Por
intermédio dessa interdisciplinaridade entre cursos, ou mesmo entre disci-
plinas do mesmo curso, o estudante passa a ter contato com outros saberes e
maneiras de atuação profissional.
Para o Professor que supervisiona práticas interdisciplinares, sobretudo
extensionistas, é também sempre um desafio e aprendizado essa condução.
Silvia Maria de Aguiar Isaia (2006) destaca que a docência é um processo com-
plexo, que se constrói ao longo da trajetória docente e que envolve, por linhas
de relações, dimensões profissionais, pessoais e institucionais, a constituição
do ser Professor ou Professora.
Este processo, acompanhado da implementação das práticas interdisci-
plinares, requerem um olhar do professor para o estudante de modo a observar
suas capacidades, potencialidades, características e também sua bagagem de
vida. Estes aspectos, que são elos afetivos entre professor e aluno, são capazes
de proporcionar o interesse do estudante para uma participação ainda mais
ativa em sua experiência de graduação. Nesse contexto, Paulo Freire argumen-
ta sobre a afetividade no processo de aprendizagem:
Como professor, não me acho tomado por este outro saber, preciso estar
aberto ao gosto de querer bem aos educandos e à prática educativa de
que participo. Esta abertura ao querer bem não significa, na verdade, que,
porque professor, me obrigo a querer bem a todos os alunos de maneira
igual. Significa, de fato, que a afetividade não me assusta que tenho de
autenticamente selar o meu compromisso com os educandos, numa prá-
tica específica do ser humano. Na verdade, preciso descartar como falsa a
separação radical entre “seriedade docente” e “afetividade”. Não é certo,
sobretudo do ponto de vista democrático, que serei tão melhor professor
quanto mais severo, mais frio, mais distante e “cinzento” me ponha nas
minhas relações com os alunos, no trato dos objetos cognoscíveis que devo
ensinar. (FREIRE, 1996, p. 159).
O Professor, no exercício da docência, ao estar à frente de atividades
de extensão universitária, precisa relacionar seu comportamento profissio-
nal com emoções positivas, para obter o sucesso pretendido no processo de
ensino-aprendizagem, qual seja, formar profissionais melhores, com capaci-
dade de fazer leituras críticas e sensíveis das vulnerabilidades diversas que
existem no Brasil e no mundo. Para concluir, Paulo Freire escreve, ainda, que
“a prática educativa é tudo isso: afetividade, alegria, capacidade científica,
domínio técnico a serviço da mudança ou, lamentavelmente, da permanência
do hoje”. (FREIRE, 1996, p. 53)

240
IONETE DE MAGALHÃES SOUZA – EDUARDO VINÍCIUS PEREIRA BARBOSA

3. O PROGRAMA SERVIÇO DE ASSISTÊNCIA JURÍDICA GRATUITA


ITINERANTE (S.A.J ITINERANTE)
Para esta pesquisa, traz-se à análise o Programa de Extensão Universi-
tária “Serviço de Assistência Jurídica Gratuita Itinerante” (S.A.J. Itinerante),
oriundo do Curso de Direito da Unimontes, e vinculado à Pró-Reitoria de Ex-
tensão, que apresentou-se institucionalmente no ano de 2002.
A Unimontes está localizada em Montes Claros, cidade do norte de Minas
Gerais, que centraliza na região diversos setores sociais, econômicos, tendo o
setor educacional como uma força, que absorve a demanda do norte, nordeste
e noroeste de Minas, sul da Bahia e sudeste de Goiás.
Numa breve caracterização sociogeográfica, cabe salientar que Montes Cla-
ros é o mais importante município do norte de Minas Gerais, o que traz para si as
benesses, responsabilidades e problemas de uma grande região, que se destaca,
também, pelos baixos indicadores socioeconômicos, em nível nacional (PEREI-
RA, 2007). Em 2020, conforme o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
(IBGE), a população estimada é de 413.487 (quatrocentos e treze mil, quatrocen-
tos e oitenta e sete) pessoas e, a densidade demográfica, 101,41 habitante/km²2,
ocupando a posição de sexta maior cidade em população de Minas Gerais.
Figura 1 – Localização geográfica do município de Montes Claros-MG.

(Fonte: BARBOSA; BEIRÃO; LEITE, 2019).

2 Disponível em: https://cidades.ibge.gov.br/brasil/mg/montes-claros/panorama. Acesso em 20 de janei-


ro de 2020.

241
DIREITOS HUMANOS E VULNERABILIDADES

A Unimontes constitui um polo educacional, produtor de conhecimento


acadêmico em diversas áreas científicas, inclusive, com Programas de Douto-
rado, Mestrados Acadêmicos e Mestrados Profissionais.
A atuação da Unimontes abrange mais de 40% (quarenta por cento) do es-
tado de Minas Gerais. Para facilitar a visualização, a figura 2 indica a dimensão
geográfica de abrangência da Universidade:

Figura 2 – Área da abrangência da Universidade Estadual de Montes Claros no


Estado de Minas Gerais.

(Fonte: UNIMONTES, 2020).

Inicialmente, a proposta do Programa S.A.J. Itinerante era levar infor-


mação jurídica e cidadã em todos os locais possíveis do município de Montes
Claros, portanto, áreas urbana e rural, em um domingo por mês, através de
profissionais especializados, quais sejam, os Professores do Curso de Direito
da Unimontes e acadêmicos.
Contudo, no decorrer dos anos, as vertentes de trabalho se alargaram para
além do atendimento jurídico gratuito, ocorrendo, também, palestras educati-
vas em diversos educandários e outros espaços, bem como numerosos seminá-
rios e congressos acadêmicos para capacitação e alcance maior de interessados.
O serviço é oferecido à população e, importante, atende pedido dos

242
IONETE DE MAGALHÃES SOUZA – EDUARDO VINÍCIUS PEREIRA BARBOSA

próprios moradores, entidades comunitárias, filantrópicas e de classe. Para


acontecer com eficiência, existem, ainda, muitos parceiros do Programa S.A.J.
Itinerante.
Além da Unimontes, o apoio da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB),
da Polícia Militar (com as Ações Cívico-Sociais – Aciso’s, por exemplo); da Fe-
deração da Indústria e Comércio de Minas Gerais (Fiemg), com o Dia V; dos
Centros de Referência de Assistência Social (CRAS); dos Programas de Saúde
da Família (PSF) e das Instituições de Ensino Fundamental e Médio (estaduais,
municipais e privadas), exercem um papel relevante na execução das propos-
tas extensionistas – usando um termo acadêmico; mas, que para a população
em geral, é a Universidade do lado do povo, mesmo.
Entre os anos de 2002 a 2017, que estão registrados em dados oficiais do
S.A.J. Itinerante (arquivos documentais na secretaria do Programa e na Pró-
-Reitoria e Extensão), foram mais de 50.000 (cinquenta mil) pessoas beneficia-
das diretamente, e cerca de 200.000 (duzentas mil), indiretamente, levando-se
em consideração somente pequenos grupos familiares ou comunitários.
Dentre as principais justificativas para atuação do Programa Extensio-
nista S.A.J. Itinerante, dar sustentação informativa às pessoas, notadamente as
desprovidas de melhores condições sociais e econômicas, é a que mais se desta-
ca, principalmente quando se pensa pelo prisma das vulnerabilidades sociais.

3.1. AÇÕES DE ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS


A discrepância de valores básicos entre pessoas é fator relevante e de gran-
de incômodo, não obstante a existência de fundamentação constitucional, qual
seja, a igualdade de direitos constante, por exemplo, no artigo 5º, inciso LXXIV
da Constituição da República Federativa do Brasil, de 1988 (CRFB/1988), que
afirma: “[...] o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que
comprovarem insuficiência de recursos; [...]”.
Assim, o acesso à justiça deve ser facilitado o quanto possível pelos apli-
cadores e estudiosos do direito. Uma ação da Universidade fora do Campus é
capaz de promover a inclusão social com eficiência, buscando alcançar a todos
indistintamente.
O Programa S.A.J. Itinerante funciona como um desses facilitadores,
contribuindo para a melhoria de vida da comunidade, num efetivo exercício
da cidadania, além de viabilizar a prática jurídica pelos acadêmicos envolvi-
dos. Com as análises acadêmicas de deficiências e vulnerabilidades sociais,
surge o desejo de estar mais próximo da comunidade desprovida de recursos
financeiros, que se mostra totalmente ignorante quanto aos seus mais primá-
rios direitos, inaugurando-se uma forma de ensino jurídico para além dos

243
DIREITOS HUMANOS E VULNERABILIDADES

bancos da sala de aula.


Constata-se que o envolvimento de Professores e acadêmicos/voluntá-
rios do Curso de Direito da Unimontes em práticas extensionistas enobrecem
o almejar de uma sociedade mais justa e, os jovens/voluntários, adquirem,
além de mais conhecimento da prática jurídica, uma vivência ímpar de real
formação da cidadania. É prática de promoção da cidadania, fundamentada
no art. 1º, II, da CRFB/1988, exercendo o essencial papel de elevar a qualidade
da formação universitária e do atendimento à comunidade.
Na Lei n. 9.394 de 1996, que trata de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional (LDBEN/1996), em seu art. 43, VII, é determinado que deve a educa-
ção superior: “[...] promover a extensão, aberta à participação da população,
visando à difusão das conquistas e benefícios resultantes da criação cultural
e da pesquisa científica e tecnológica geradas na instituição”.
Muito há de desinformação quanto às várias formas de aprendizado
real, que deveria começar pelo interesse de ser um bom ser humano, que
pode usar de posicionamentos empáticos, para que o seu conhecimento for-
mal e titulações acadêmicas alcance, de maneira satisfatória, toda a amplitu-
de de valores cidadãos e jurídicos.

4. EXTENSÃO E VULNERABILIDADES SOCIAIS


Sabe-se que a expressão “vulnerabilidade social” não tem significado
unânime dentro da literatura, sofrendo variações em seu conceito conforme o
campo disciplinar que se debruça sobre a questão. Há definições que partem
da conceituação feita pelo Banco Mundial, sobretudo a partir do indicador po-
breza; outras englobam diferentes perspectivas, libertando-se do uso de indi-
cadores de renda ou carências para explicar as bases deste fenômeno.
A palavra “vulnerabilidade”, que deriva do latim “vulnerabilis”, signi-
fica “algo que causa lesão”. Nesta ótica, é a suscetibilidade para ser ferido
ou machucado. Na Filosofia, a vulnerabilidade consiste justamente numa
condição humana inerente à sua existência em sua finitude e fragilidade, de
tal maneira que não pode ser superada ou eliminada. Quando as pessoas se
reconhecem como vulneráveis, entendem a vulnerabilidade de outrem, tal
como a importância do cuidado, solidariedade e da responsabilidade (MON-
TEIRO; MORAIS, 2017)
No campo social, a vulnerabilidade social pode ser entendida como resul-
tado negativo da relação havida entre a disponibilidade de recursos materiais
ou simbólicos, por parte de alguns indivíduos ou grupos, e o acesso à estrutura
de oportunidades sociais, econômicas e culturais, providas pelo Estado e pela
sociedade em geral (ABRAMOVAY, 2002).

244
IONETE DE MAGALHÃES SOUZA – EDUARDO VINÍCIUS PEREIRA BARBOSA

Marco Aurélio Costa et al (2018) diz que a expressão “vulnerabilidade


social”, assim como os conceitos de “necessidades básicas insatisfeitas”, ga-
nham popularidade à medida que cresce o reconhecimento de que, a categoria
“pobreza”, sem estar devidamente qualificada, é ainda muito limitada para ex-
pressar as complexas situações de mal-estar social, a que estão sujeitas diversas
populações – mundo afora.
Destarte, dissociado do conceito “pobreza” em sua forma pura e sim-
ples, o debate aqui estabelecido sobre a extensão universitária, como forma de
enfrentamento da vulnerabilidade social, parte da definição que este último
fenômeno envolve o bem-estar e a qualidade de vida das pessoas. Os seus de-
terminantes vão muito além da renda monetária, por compreender a disponi-
bilidade e o acesso a bens e serviços públicos, o acesso à justiça, informação e
direitos, a qualidade do meio ambiente em que vivem, e também os graus de
liberdade individual e política, que a sociedade oferece a essas pessoas.

4.1. PRÁTICAS ADEQUADAS DE EXTENSÃO JURÍDICA E


VULNERABILIDADES SOCIAIS NO NORTE DE MINAS GERAIS
O Brasil é um país dito subdesenvolvido e com muitas desigualdades,
em termos sociais e econômicos, tendo indicadores socioeconômicos bastante
variados, por suas diferentes regiões e, ainda, discrepantes entre estados da
mesma região brasileira.
E, se não bastasse, pelas dimensões do estado de Minas Gerais, com 853
(oitocentos e cinquenta e três) municípios, ocorre consideráveis diferenças em
suas 12 (doze) mesorregiões (IBGE/2019), haja vista a sua grande extensão ter-
ritorial e os tipos de solo e investimentos. Assim, apesar do estado de Minas
Gerais apresentar um papel importante na economia e política brasileira, ca-
racterizando-se como um dos mais dinâmicos do país, com muitas riquezas
e vasto território, este apresenta ainda uma economia repleta de dualidades
(BARBOSA; BEIRÃO; LEITE, 2019).
No norte de Minas, maior mesorregião do Estado de Minas Gerais, que
representa 21,90% do território mineiro, conforme anteriormente menciona-
do, desde a cidade polo, que é Montes Claros, com seus 413.487 habitantes
(IBGE/2020), considerada muito boa para se viver, contendo todos os serviços
de um grande centro, até a cidade de Espinosa, por exemplo, já na divisa com
a Bahia, com 31.610 habitantes, a 270 km de Montes Claros, os moradores estão
sujeitos às mais diversas vulnerabilidades sociais, em graus diferentes, mas
com características que indicam soluções próximas.
Ao analisar indicadores de vulnerabilidade social nos municípios brasi-
leiros, Marco Aurélio Costa et al (2018), mostra que, em 2011, houve uma per-
manência de um quadro de disparidades regionais, com a concentração de mu-

245
DIREITOS HUMANOS E VULNERABILIDADES

nicípios, numa faixa alta de vulnerabilidade social na região Norte do Brasil.


Nas regiões Sul, Sudeste e Centro-Oeste, havia uma concentração de municí-
pios, sem qualquer ocorrência de alta vulnerabilidade social, com exceção da
região norte de Minas Gerais, que traz em seu quadro municípios com indica-
dores objetivos e subjetivos, que atestam vulnerabilidade. (COSTA, 2018)
A reflexão, portanto, consiste em compreender como as atividades de ex-
tensão universitária podem promover ações e soluções que, nestes municípios
de alta vulnerabilidade social, possibilitem a proteção e a defesa de direitos
dessas populações. Leva-se em conta, ainda, a possibilidade de se unir diferen-
tes atividades extensionistas e que podem dar um caráter mais adequado no
trato das vulnerabilidades sociais existentes.
Aqui, é possível pensar, pela perspectiva da interdisciplinaridade, na
atuação de diferentes áreas do saber, num mesmo espaço, para propiciar ações
múltiplas à comunidade vulneráveis, a exemplo: a) o Direito, com a orienta-
ção jurídica; b) a Enfermagem, com aferição de pressão arterial e medição de
glicose etc; c) a Educação Física, com atividades recreativas e saudáveis; d) a
Odontologia, com orientações de higienização dental e/ou realizações de pro-
cedimentos menos complexos; e) a Psicologia, com orientação psicológica, den-
tre outros cursos e atribuições.
É viável pensar ainda na interdisciplinaridade dentro do mesmo curso,
pelas diferentes disciplinas que compõem sua grade curricular. Por exemplo –
e sem se esgotar as atribuições de cada área: a) o Direito Civil, com orientações
no campo contratual ou de obrigações cíveis; b) o Direito de Família, que traz
soluções para demandas sempre presentes em populações vulneráveis, como a
necessidade de prestação de alimentos; c) o Direito Penal, com a compreensão
das formas de se denunciar ou cessar situações de infração penal. A união da
necessidade de se trabalhar temáticas destas disciplinas numa mesma ativida-
de é possível pelo viés interdisciplinar.
A assistência jurídica do Programa S.A.J. Itinerante dá-se em três esferas
de atuação: a) atendimento jurídico propriamente dito, que geralmente ocorre
aos finais de semana, mensalmente; b) proferimento de palestras educativas
acerca de temas afeitos ao Direito pelos estudantes em escolas, associações e
instituições diversas; e c) organização e execução de eventos científicos, como
seminários e congressos acadêmicos.
No caso do atendimento jurídico, diversas dúvidas são esclarecidas pe-
los acadêmicos, com orientação dos Professores, às pessoas que se aproximam
dos locais onde são montadas as cabines de atendimento, nas praças, escolas
e ruas, em que o S.A.J. Itinerante, justamente por seu caráter itinerante, se ins-
tala. Questionamentos que perpassam, muitas vezes num só atendimento, a

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IONETE DE MAGALHÃES SOUZA – EDUARDO VINÍCIUS PEREIRA BARBOSA

linha cível, criminal, previdenciária, trabalhista, administrativa, dentre outras.


Por sua vez, as palestras ocorrem por requisição ou por sugestão de as-
suntos pelos próprios acadêmicos, que vão desde “violência contra mulher”
até “defesa e manutenção do patrimônio público em escolas”. Também ao fi-
nal das palestras, são esclarecidas dúvidas porventura existentes da população
presente. Trata-se de uma ferramenta muito interessante que o Programa S.A.J.
Itinerante se vale, para dialogar com a comunidade e informar os cidadãos
sobre assuntos que, embora sejam cotidianos, em grande parte, são desconhe-
cidos de muitos, não obstante a suma importância e relevância.
Neste cenário, já prestou assistência em diversos municípios do norte de
Minas Gerais, inclusive, em algumas ocasiões associadas a outros Projetos/Pro-
gramas extensionistas, a saber:
Citam-se os municípios Mineiros de:1) Bocaiuva, 2) Bonito de Minas, 3)
Botumirim, 4) Brasília de Minas, 5) Capitão Enéas, 6) Coração de Jesus (e
o Distrito de Povoado do Brejinho), 7) Cristália, 8) Engenheiro Navarro, 9)
Francisco Sá (e o Distrito de Comunidade São Geraldo do Renascer), 10)
Gameleiras, 11) Grão Mogol (e o Distrito Vale das Cancelas), 12) Itacam-
bira, 13) Jequitaí, 14) Minas Novas, 15) Mirabela, 16) Montalvânia (e seus
Distritos Itarana e Porções), 17) Montes Claros (e os Distritos: Claraval, Er-
midinha, Mandacaru, Miralta e Nova Esperança), 18) Pai Pedro, 19) Patis,
20) Pirapora, 21) Salinas (e seu Distrito Nova Matrona), 22) São Francisco,
23) São João da Ponte (e seus Distritos: Comunidade de Santo Antônio
da Boa-Vista e Comunidade Quilombola, denominada “Agreste”), 24) São
João do Pacuí, 25) Várzea da Palma (e seu Distrito Barra do Guaicuí) e 26)
Varzelândia. (SOUZA, 2020, p. 19-20).
Cumpre salientar que, além do Programa S.A.J. Itinerante, na Unimon-
tes, existem cerca de 160 Projetos e Programas extensionistas, conforme cons-
ta em seu sítio eletrônico, na presente data, entre seus cursos de graduação,
com atuação nas áreas de extensão comunitária, cultural e de apoio aos estu-
dantes. (UNIMONTES, 2020)
Cabe citar, como exemplo, dentre os programas, projetos, cursos e even-
tos desenvolvidos pela Universidade, o Projeto “Unimontes Solidária”, que
promove ações solidárias e interdisciplinares, articuladas em municípios do
Norte de Minas Gerais e dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri. Isso, através
de diversos cursos da Universidade, dando a contribuição de auxiliar na re-
dução dos problemas e exclusão social, além de disparidades regionais, co-
locando a serviço da sociedade, sobretudo destas regiões, os saberes que são
produzidos na Universidade
Enfim, compreender as vulnerabilidades sociais é fundamental para en-
tender e concretizar o objetivo das ações extensionistas universitárias, prin-
cipalmente no curso de Direito, além de pensá-las, e também aperfeiçoá-las,

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DIREITOS HUMANOS E VULNERABILIDADES

como importantes meios na garantia de direitos, promoção de acesso à justiça


e outros serviços essenciais. No caso específico do Programa S.A.J. Itinerante,
a missão maior é demonstrar à população vulnerável que ela pode contar, gra-
tuitamente, com assistência jurídica de excelência prestada no âmbito de uma
universidade pública e gratuita, como é a Unimontes.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Numerosas são as possibilidades satisfatórias de concretização do que se
ensina, aprende e pratica. Assim, a boa vontade do agir se apresenta de forma
saliente nas ações extensionistas, de grande parte das Universidades, mas, por
vezes, mal interpretadas até por outros setores da própria IES, que, de maneira
preconceituosa, por alguns de seus pares, em quaisquer área do conhecimento,
não lança o seu crédito nas pessoas a serem beneficiadas, e, sim, em algum
resultado meramente intelectual.
O norte de Minas Gerais é rico em sua gente, de capacidade cognitiva e
de força do trabalho. Entretanto, a vulnerabilidade social da região é pautada,
em muito, por ser desprovida de chuvas suficientes, para que o solo segure
constantemente o seu povo, em produção, durante todos os dias de cada ano.
Falta, ainda, a devida força política, ensejadora de manutenção e multiplica-
ção das riquezas existentes, respeitando todos os sujeitos de direito, de forma
igualitária ou equitativa, conforme preceitos constitucionais. E, nesse quesito,
os investimentos em educação deveriam ser os primeiros numa ordem de prio-
ridade. É uma busca constante de maior e melhor investimento na educação,
que não se apresenta de forma mais natural. E, assim, aumenta o número dos
que não tem acesso ao estudo regular.
Entretanto, em síntese, quanto ao Programa S.A.J. Itinerante, os resultados
indicam que as orientações jurídicas fornecidas pelos estudantes do Direito/Uni-
montes (não contando as outras importantes atividades), supervisionados por
Professores, são capazes de despertar outras iniciativas pela proteção de direitos
violados pela própria comunidade, haja vista a chegada de esclarecimentos, que
injetam mais coragem e disposição em muitos daqueles esquecidos.
A Unimontes é celeiro de grandes ações extensionistas no Norte de Minas
Gerais, além do seu ensino e da pesquisa, no combate às desigualdades e vul-
nerabilidades sociais. O que se aguarda sempre é a chegada de tantos possíveis
benefícios públicos, em prol de uma culta, boa e brava gente.

6. REFERÊNCIAS
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IONETE DE MAGALHÃES SOUZA – EDUARDO VINÍCIUS PEREIRA BARBOSA

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DIREITOS HUMANOS E VULNERABILIDADES

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250
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9 786586 381740 >

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