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2016

Cidades de Sísifo:
1,2
urbanismo colonial e contingência
Rodrigo Castro Orellana
Universidade Complutense de Madrid, Espanha

TRADUÇÃO:
Gilmei Francisco Fleck
Universidade Estadual do Oeste do Paraná, Brasil

Hugo Eliecer Dorado Mendez


Universidade Estadual do Oeste do Paraná, Brasil
Cidades de Sísifo: urbanismo
colonial e contingência
Este artigo estuda o tipo de racionalidade que estaria em jogo no
processo de fundação das cidades coloniais na América. Pretende-
se estabelecer que a conquista-urbana do século XVI não seria
a materialização de uma suposta razão clássico-cartesiana, nem
mesmo a condição de possibilidade do sonho de ordenamento total
do real. Pelo contrário, a dinâmica de urbanização obedeceria a
Resumo critérios práticos e necessidades conjunturais que buscavam dar
resposta às condições de vulnerabilidade que os conquistadores
enfrentaram. Essa hipótese é demonstrada ao se descrever o fenômeno
do nomadismo dos complexos urbanos hispano-americanos, estudado
por Alain Musset. Essa pesquisa evidencia que a cidade colonial
foi o resultado de uma série de fatos imprevistos e que o poder
colonizador sempre esteve condicionado pelas realidades contingentes
e pelas práticas específicas de castelhanos e indígenas.

Palavras-chave: Cidade colonial, Colonização,


Utopia, Contingência, Natureza.

Ciudades de Sísifo: urbanismo


colonial y contingencia
El artículo estudia el tipo de racionalidad que estaría en juego en
el proceso de fundación de las ciudades coloniales en América. Se
pretende establecer que la conquista-urbana del siglo XVI no sería la
materialización de una supuesta razón clásico-cartesiana, ni tampoco
la condición de posibilidad del sueño moderno de ordenamiento total
de lo real. Por el contrario, la dinámica urbanizadora obedecería más
Resumen bien a criterios prácticos y necesidades coyunturales que intentaban
responder a las condiciones de vulnerabilidad que enfrentaron los
conquistadores. Dicha hipótesis se demuestra describiendo el fenómeno
del nomadismo de los complejos urbanos hispanoamericanos, estudiado
por Alain Musset. Esta investigación evidencia que la ciudad colonial
fue el resultado de una serie de hechos sobrevenidos y que el poder
colonizador siempre estuvo condicionado por realidades contingentes
y por las prácticas específicas de castellanos e indígenas.

Palabras clave: Ciudad colonial, Colonización,


Utopía, Contingencia, Naturaleza.
Cities of Sisyphus: colonial
urbanism and contingency
The article studies the kind of rationality that would be at stake in
the process of founding of colonial cities in America. It is intended
to establish that the conquest-urban during sixteenth Century would
be the realization of a supposed classic-Cartesian reason, nor the
condition of possibility of modern dream of total order of reality.
Abtract By contrast, the urbanizing dynamic obey to practical criteria and
situational needs that tried to respond to the vulnerability faced by
the conquerors. This hypothesis is shown by describing the phenomenon
of nomadism of Hispanic urban complexes studied by Alain Musset. This
research shows that the colonial city was the result of a series of
supervening facts and that the colonizing power was always conditioned by
contingent realities and specific practices of Spaniards and Indians.

Keywords: Colonial city, Colonization, Utopia, Contingency, Nature.


O
processo de urbanização produzido na Améri-
ca, a partir de 1492, representa um fato único
na história da humanidade, devido a sua com-
plexidade, sua velocidade e seu alcance. Em
menos de cem anos, entre finais do século XV
e a primeira metade do século XVI, fundaram-se mais
de trezentos e sessenta cidades, apenas no México e no
Peru (CALVO, 1995; TERÁN, 1989). Essa rede urbana se
estendeu de um extremo a outro do continente, desde
a América do Norte até o sul do Chile, atravessando di-
versas localizações geográficas e enfrentando diferentes
culturas indígenas. Nesse sentido, o poder colonial his-
pânico e sua vontade de construir cidades parecem estar
intimamente ligados.

Efetivamente, sempre foi o primeiro gesto de posse


dos novos territórios, nas Índias, a fundação de uma ci-
dade, um rito marcado por um enorme simbolismo e que
obedecia à antiga tradição greco-latina que fez do fato
urbano o aspecto constitutivo do processo civilizatório.
Em tal rito de tomada de posse, um espaço supostamente
“sem dono” (res nullius) transformava-se, como conse-
quência de um procedimento jurídico, em um território
próprio, obtido com justo título (LUCENA GIRALDO, 2006,
p. 35). Para ser legítimo, esse ato exigia que o descobridor
pegasse um punhado de terra, bebesse água ou, inclusi-
ve, desse uns gritos na nova comarca. O escrivão, então,
registrava tudo isso em ata e o pregoeiro dava um teste-
munho público do ocorrido. Finalmente, celebravam-se as
missas correspondentes, empreendia-se o traçado físico
3
v.3 n.1
das ruas e dos lotes e nomeava-se o primeiro cabildo.
p. 262-283 No entanto, a cidade não operou, exclusivamente,
2024 como uma ferramenta local de apropriação do espaço.
Ela definiu também uma estratégia global de colonização
ISSN: 2965-4904 em todo o Novo Mundo. Em um primeiro momento, “foi
DOI: 10.9771/lj.v3i0.60553 um lugar de abastecimento, descanso, centro de decisão”,
porém mais tarde “transformou-se no núcleo de estabilização e irradiação da colo-
nização espanhola” (LUCENA GIRALDO, 2006, p. 30). A rede urbana funcionou como
uma plataforma de produção de novas iniciativas de conquista e de consolidação das
empresas já iniciadas. Seria possível afirmar que a cidade colonial se desenvolveu
como um instrumento fundamental da conquista, uma circunstância que, além do
mais, os indígenas perceberam perfeitamente, como atesta uma história atribuída ao
cacique Lautaro. Conta-se que quando o chefe araucano avançava sobre a cidade de
Santiago do Chile, em 1556, com o propósito de destruí-la, disse a seus companheiros:
“Irmãos, saibam que o que vamos buscar é cortar pela raiz o lugar de onde nascem
esses cristãos, para que não nasçam mais” (RAMÓN, 2000, p. 33).

A cidade foi uma peça-chave da colonização e esteve ligada a uma materialidade


facilmente discernível que consistia na assimilação do estranho a partir da administra-
ção urbana do território (gestão de lugares desconhecidos, controle de novas condi-
ções ambientais, governo de uma população indígena enigmática e hostil etc.). Nessa
dinâmica, não se deve excluir o papel cumprido pela dimensão simbólica, especial-
mente se levarmos em consideração a precariedade da maioria dos núcleos urbanos
fundados na época colonial e a decorrente necessidade de reforçar e assegurar os
vínculos de uma comunidade incipiente que percebia infinitas ameaças a seu redor.

Ángel Rama acerta, então, ao afirmar que “as cidades americanas foram remetidas,
desde as suas origens, a uma vida dupla” (RAMA, 2009, p. 44). Assim, por um lado,
teríamos a ordem física da construção material, com sua específica contingência,
seus vaivéns, circunstâncias e incertezas; e, por outro lado, encontraríamos a ordem
dos signos, mais apegada à certeza e à estabilidade, e decisiva no momento de qual-
quer realização (ibid., p. 45). Entretanto, nos parece que tanto a prioridade que Rama
outorga ao plano simbólico, na fundação das cidades hispano-americanas, quanto o
conteúdo que ele atribui às estruturas ideais que teriam interferido e condicionado o
urbanismo do século XVI devem ser reexaminados.

A cidade ordenada e
a proto-história do cogito
Na sua obra de 1984, A cidade das letras, Rama dedica o primeiro capítulo, intitulado
“A cidade ordenada”, ao estudo da cidade latino-americana como a manifestação de p. 267
um sonho específico da inteligência conquistadora. Seu argumento principal consiste
em sustentar que o impulso europeu de modificar a urbe de acordo com um conjunto
de ideais abstratos teria encontrado uma “oportunidade única” no Novo Mundo para
se materializar em um lugar que se entendeu como desprovido de valores próprios,
isto é, uma espécie de tabula rasa na qual seria possível iniciar uma nova história da
cidade e do homem (RAMA, 1984, p. 32-33). A América teria representado, a partir de
um ponto de vista urbanístico, a possibilidade efetiva de levar a cabo uma espécie de
singular creatio ex nihilo; teria sido entendida como o ponto de partida para dar início a
uma nova época. A tese formulada neste ponto é decisiva: o ato conquistador-urbano
não reproduziria nem replicaria os modelos existentes nas metrópoles europeias,
mas sim deslocaria o ideal ou o horizonte de futuro, que se ocultava como potência
adormecida no Velho Mundo, para sua efetiva realização num novo cosmos que co-
meçava a escrever a sua história. A estrutura utópica da fundação da cidade colonial
seria, dessa forma, posta em evidência. O Novo Mundo teria sido uma força que inflou
a imaginação e a fantasia dos castelhanos, conduzindo-os à construção de núcleos
urbanos completamente submetidos à autoridade de um ideal de cidade.

Segundo Rama, o conteúdo desse ideal obedeceria ao princípio geral do que ele
denomina como uma “razão ordenadora” (RAMA, 1984, p. 36). A palavra “ordem” teria
sido fundamental, então, para as aspirações culturais que foram trasladadas ao novo
continente. Os desejos de simetria, a ânsia pela hierarquização e os sonhos de clas-
sificação cruzariam o Atlântico. Nesse contexto, Rama nos lembra das instruções que
o Rei transmitiu a Pedrarias Dávila, em 1513, para a fundação das cidades:

Vistas as coisas que para os assentamentos dos luga-


res são necessárias, e escolhido o sítio mais pro-
veitoso e em que abundem as coisas que para o povo
são necessárias, tereis de repartir os lotes do lugar
para fazer as casas, e deverão ser repartidos con-
forme as qualidades das pessoas e serão inicialmente
dados por ordem: de maneira que feitos os lotes, o
povo pareça ordenado, tanto no lugar que se deixe na
praça, como o lugar que tenha a igreja, como na ordem
que tiveram as ruas; porque os lugares que, de novo
se fazem, dando a ordem no começo sem nenhum trabalho
nem custo, ficam ordenados e os outros jamais se orde-
nam (RAMA, 1984, p. 37).

O futuro de “ordem” a que se refere este texto corresponderia, de acordo com


p. 268 a proposta de A cidade das letras, ao sonho de uma razão geométrica que, poste-
riormente, encontrará o seu desenvolvimento filosófico com Descartes. Aqui Rama
estabelece um paralelo singular entre a concepção ideal de uma razão que ordena
e mede de acordo com o princípio de uma mathesis universal e o desenho “a cordel
y regla”, isto é, em linhas retas, da planta urbana na maioria das cidades hispano-a-
mericanas (RAMA, 1984, p. 39). A ordem implantada na quadrícula da cidade colonial
seria a manifestação de um fantasioso pensamento que se impõe com anterioridade
a qualquer realização (RAMA, 1984, p. 40). Isso permitiria perceber, também, a cosmo-
visão que está subjacente ao ato colonizador, porque do mesmo modo que a cidade
seria o produto de uma razão ordenada e matemática em sua apropriação de uma
terra desconhecida, a colonização, no seu conjunto, poderia ser compreendida como
uma empresa orientada à negação de qualquer alteridade.

Certamente, do ponto de vista da história intelectual, o paralelismo que Rama su-


gere entre o desenho das cidades coloniais e o que Foucault denominou de episteme
clássica é muito pouco verossímil. Vale a pena questionar como os conquistadores
castelhanos poderiam ter pensado em termos cartesianos um século antes da publi-
4
cação de Discurso do Método, pelo pensador francês. Nesse sentido, é interessante
o argumento de Enrique Dussel sobre a relação entre a conquista da América e o
pensamento cartesiano, dado que corrige esse disparate histórico, preservando ao
mesmo tempo a essência do argumento de Rama.

Segundo Dussel, deve-se introduzir uma distinção entre uma primeira moderni-
dade, que se identifica com o ethos cristão, humanista e renascentista, cuja potência
hegemônica foi a Espanha; e uma segunda modernidade, que parte do século XVII,
com a decadência do poder hispânico e o auge das novas potências como a Holanda,
a Inglaterra ou a França (CASTRO-GÓMEZ, 2005, p. 49). A primeira modernidade pro-
duziria um tipo de subjetividade que pode ser caracterizada como o “eu-conquistador”
que se relaciona com a alteridade (o índio) a partir de uma lógica de exclusão e domí-
nio. Esse ego conquiro seria “a proto-história da constituição do ego cogito” (DUSSEL,
1994, p. 47), ou seja, o significado do cogito cartesiano deveria ser compreendido em
relação a um ideal não questionado de subjetividade que o antecede: o ser coloni-
zador/conquistador ou o ser imperial (GROSFOGUEL, 2007, p. 64). Entre o momento
conquistador e o momento cartesiano, para Dussel, haveria uma perfeita continuidade
que mantém correspondência com o desenvolvimento de um dispositivo fundamental
da modernidade: a “colonização do mundo da vida (lebenswelt)” (DUSSEL, 1994, p. 48).

A partir dessa perspectiva, a conquista-urbana do século XVI não seria a materiali-


p. 269
zação de uma suposta razão clássico-cartesiana, mas a condição de possibilidade do
sonho moderno de ordenamento total do real. No ato conquistador, seria produzida a
incorporação negadora do outro à totalidade dominadora (DUSSEL, 1994, p. 41), que
prefigura as pretensões de uma ratio que deseja subjugar a natureza, eliminando
toda descontinuidade e contingência. A instauração da cidade colonial poderia ser
considerada, então, como a afirmação prática da estrutura ideal do ego conquiro e,
portanto, como o primeiro marco de um processo de racionalização unilateral orien-
tado à consolidação de um poder imperial sem contrapesos.

É relevante sublinhar a importância e os alcances da proposta de Dussel. Seu


pensamento, e em particular a interpretação que oferece da história da conquista e
da colonização da América, teve grande influência sobre o projeto de uma filosofia da
libertação latino-americana e sobre as teorias decoloniais. A tese fundamental consiste
em estabelecer uma identidade entre a modernidade ocidental europeia, como um
sistema total, uniforme e homogêneo, e a colonização da vida. Isso se traduziria em
um poder imperial que desenha espaços e subjetividades com eficácia, subsumindo
qualquer alteridade ou diferença, um poder que teria cumprido um papel decisivo na
prática urbana do período colonial.

Nosso propósito, a seguir, é explorar algumas contribuições recentes dos estudos


históricos sobre a cidade colonial hispânica, no entendimento de que tal exercício
evidencia a necessidade de reconsiderar a análise específica que Rama oferece sobre
a configuração da cidade e a descrição geral que formula Dussel do poder imperial
hispânico como um sistema hegemônico.

Velhas teorias e novas


práticas na cidade colonial
A cidade colonial não é o resultado do “livre voo de uma imaginação” (RAMA,
2009, p. 32) que sonha com um espaço ordenado taxonomicamente. Ela representa,
na verdade, o produto de uma série de decisões urbanísticas que se fundamentam
em diversos princípios que, à sua época, foram assumidos como científicos. As con-
siderações relativas, por exemplo, à localização e à orientação espacial da cidade,
aos efeitos do clima e às condições de salubridade do entorno procediam em grande
medida da obra De Architectura [Da Arquitetura], de Vitrúvio, que tinha alcançado uma
difusão significativa na Espanha, por conta de comentários de Diego Sagredo em sua
p. 270 obra Medidas del Romano [Medidas do Romano], publicada em 1526, em Toledo.
O texto De regimine Principium [Do Governo dos Príncipes ao Rei de Cipro], de Tomás
de Aquino, também teve influência relevante, estabelecendo que um bom Príncipe
deveria assegurar a sua glória construindo cidades que perdurassem no tempo, algo
que não seria possível conseguir se não se seguisse uma série de critérios de localiza-
ção principalmente centrados no problema da salubridade do meio ambiente. Nesse
sentido, o Aquinate, do mesmo modo que as obras de Vitrúvio, segue, literalmente,
o cânone hipocrático do tratado Ares, Águas e Lugares, que estabelece uma relação
essencial entre o clima insalubre e a diminuição da moralidade e o relaxamento dos
costumes do povo (MUSSET, 2011, p. 107). Segundo Hipócrates, “quando se chega a uma
cidade desconhecida, é preciso preocupar-se com a sua posição: como está situada
em relação aos ventos e ao nascer do sol” (HIPÓCRATES, 1997, p. 40). Do mesmo modo,
no momento em que se enfrentaram, pela primeira vez, com um espaço urbanizável,
os conquistadores deram prioridade à preocupação com a salubridade e as condições
do meio, antes de qualquer eventual administração geométrica do novo território.

Contudo, é evidente que a cidade hispano-americana se caracteriza, de forma


geral, por um plano ordenado com base no modelo da quadrícula. A questão seria se
devemos atribuir esse desenho a uma suposta prefiguração da racionalidade cartesia-
na, como sugerem Rama e Dussel, ou se teríamos na verdade que explicar essa dis-
posição geométrica da cidade colonial a partir de uma série de velhas teorias e como
resultado de um conjunto de fatos inesperados que forçaram a prática urbanística.

Segundo Alain Musset, o plano quadricular remete a tradições medievais como as


que podem ser observadas nas cidades muradas do sudoeste francês, os “bastides”.
O desenho do “bastide”, da “bastida”, da “nova bastida” ou da “nova populatio” trans-
formava a praça em um elemento a partir do qual se dividiam os terrenos em lotes,
todos eles delimitados pela quadrícula ortogonal das ruas (ou carreyras). Essa morfo-
logia das ruas, em ângulo reto, com quarteirões retangulares, é tão antiga que pode
se remontar, inclusive, aos planos urbanísticos de Hipodamos de Mileto, no século
V a.C. Na Espanha, o traçado ortogonal aparece em cidades que sofrem a ocupação
romana como León, Zaragoza ou Zamora e, desde o século XI, é posta em prática com
a fundação de novos centros urbanos ligados à reconquista (MUSSET, 2011, p. 44-45).
Por exemplo: um dos paradigmas desse desenho foi o acampamento de Santa Fé,
fundado, em 1491, pelos Reis Católicos, no contexto do ataque a Granada, inspirado
nas ideias de Vitrúvio e nos castros romanos (LUCENA GIRALDO, 2006, p. 68).
p. 271
Certamente, os grandes teóricos do Renascimento Italiano, como Alberti, Filarete
ou Martini, também foram inspirações decisivas para os arquitetos e urbanistas his-
pânicos, mas sua ascendência no caso americano pode-se considerar mais tardia e
não relacionada ao plano urbanístico fundacional da cidade colonial. Não devemos
esquecer que Alberti propôs, na sua obra De Re Aedificatoria [Da Arte Edificatória], um
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plano urbanístico radial; que Sforzinda — a cidade ideal sonhada por Filarete — era
uma cidade em forma de estrela de oito pontas e completamente murada; ou que a
cidade utópica de Martini reproduzia a organização espacial do corpo humano.

Em qualquer caso, a função que todas essas tradições teóricas cumpriram no de-
senho da cidade colonial pode ter sido muito mais limitada do que poderíamos supor
em princípio. A quadrícula, nesse sentido, teria sido imposta, principalmente, por uma
realidade que exigia uma distribuição ordenada e hierárquica de lotes e edificações. Tal
organização espacial da cidade oferecia orientação, referências, estabilidade e segu-
rança para uma comunidade incipiente e frágil que apenas começava a se desenvolver.

Nesse contexto, a questão decisiva residiria nas representações culturais de que


os primeiros colonizadores castelhanos dispunham, o que nos leva a compreender
o desenho urbano como a expressão de um mecanismo compensatório, orientado a
transplantar a ordem própria e original da Espanha para uma realidade nova e desco-
nhecida. Isso poderia explicar o costume dos conquistadores de nomear as cidades
do Novo Mundo de forma idêntica às cidades espanholas. Na América, podemos
encontrar cidades com o nome de Trujillo, Valladolid, Salamanca, Córdoba, Guada-
lajara, Cuenca, Mérida, León etc. De fato, nessa busca por semelhanças, Sevilha foi a
referência urbana por excelência. Todas as cidades do Novo Mundo pretendiam ser
ajustadas na maior medida possível à estrutura política e jurídica da capital andaluza
(MUSSET, 2011, p. 317). No caso de Lima, a capital do Vice-reinado do Peru, isso se
traduziu, inclusive, em projetos urbanísticos que tentavam copiar, com exatidão mili-
métrica, os jardins e as casas sevilhanas (ibid., p. 318).

A necessidade psicológica que evidencia a mimese permite estabelecer um vínculo


entre o ato de fundação da cidade hispano-americana e as condições concretas de
vulnerabilidade que enfrentaram os primeiros conquistadores. Esse nexo seria muito
mais significativo do que a função que teriam cumprido as tradições teóricas do ur-
6
banismo greco-latino e medieval.

Musset aporta um argumento a favor desse papel fundamental que desempenha-


ram as circunstâncias que enfrentaram os primeiros colonizadores no momento de
p. 272 determinar a organização espacial das cidades. Trata-se da dinâmica que caracteri-
zou a luta contra as populações indígenas durante a primeira metade do século XVI.
Efetivamente, a forma de combate que foi usada contra os nativos poderia explicar o
porquê de as cidades hispano-americanas não terem sido fundadas como recintos
murados. Diante de adversários armados com arcos, tacapes e lanças, um desenho
da cidade aberto para o exterior e com ruas retilíneas facilitava o avanço da cavalaria
e a ação das armas de fogo de longo alcance (ibid., p. 48). Posteriormente, quando
as ameaças bélicas passaram a provir da Europa, fez-se necessária a construção de
7
muralhas e torres que facilitaram a batalha contra canhões e fuzis.

Em suma, os fundadores das cidades coloniais tiveram de tomar decisões ur-


banísticas, a partir das suas formas específicas de representação do mundo, muito
mais apegados a critérios práticos e necessidades conjunturais do que a critérios
estritamente teóricos e, menos ainda, a disposições derivadas de um modelo racional
previamente imposto. Uma última prova disso pode ser o fato de que a primeira nor-
mativa que pretende regular a situação urbanística na América data de 1573. Trata-se
das Ordenanzas de descubrimiento y población [Ordenanças de descobrimento e povoa-
ção], decretadas sob o reinado de Felipe II, em um momento em que se completava
a etapa inicial da expansão colonial. Tais decretos moldaram, no papel, uma série de
práticas que já tinham se mostrado na realidade (ibid., p. 55) e que a Coroa conhecia
muito bem, em consequência de uma longa tradição de cartas, crônicas, relações etc.
Não existiu um dispositivo de conquista urbana sólido, consistente e a priori, mas uma
modalidade de construção e gestão da cidade ligada, diretamente, à contingência.

Cidades viajantes
A conexão entre o momento fundacional das cidades coloniais e o problema da
contingência pode ser endossado se nos detivermos a analisar o fenômeno do no-
madismo dos complexos urbanos hispano-americanos, amplamente pesquisado por
Musset na sua obra Ciudades nómadas del Nuevo Mundo [Cidades nômades do Novo
Mundo]. Certamente, os conquistadores fundaram cidades com o propósito de domi-
nar e povoar um novo território, seguindo a aspiração descrita por Tomás de Aquino
de que uma urbe deveria durar e permanecer ao longo do tempo. Contudo, as várias
transferências de cidades de um sítio a outro, durante a época colonial, evidenciam as
dificuldades enfrentadas para o cumprimento de tais objetivos e permitem observar
a enorme vulnerabilidade que caracterizou o processo de colonização.
p. 273
O fenômeno das transferências das cidades não foi um fato extraordinário ou isola-
do, mas uma realidade de grande magnitude que atravessou o continente americano
(cerca de 200 cidades foram transferidas, algumas delas em duas ou três ocasiões).
A transferência destas cidades não deve ser confundida com outros acontecimentos,
como o abandono do núcleo urbano ou os reagrupamentos das populações indíge-
nas levados a cabo pelas ordens religiosas durante o século XVI. Uma transferência,
segundo Musset, envolvia “tanto a migração dos habitantes como a reedificação do
conjunto de estruturas, edifícios e serviços da cidade original” (MUSSET, 2011, p. 28).

Na maioria dos casos, a transferência era feita dentro de um raio de dez ou vinte
quilômetros (embora existam algumas exceções, como a de San Lorenzo El Real, no
Novo México, que foi reerguida a cinquenta quilômetros da sua localização original;
ou Esteco, na Argentina, que foi deslocada em oitenta quilômetros), afetando, em
maior medida, algumas regiões como a América Central e o norte da América do Sul
(Colômbia e Venezuela). Em um momento inicial da vida da cidade, a transferência
podia ser decidida e resolvida sem maiores conflitos, mas passados de dez a cinquenta
anos a partir da sua primeira localização, a situação da transferência agravava todo
tipo de tensões políticas no interior da comunidade.

Com relação às razões que explicam essa modificação dos centros urbanos, há
vários fatores que podem ser mencionados. Em primeiro lugar, a complexa relação
que a cidade colonial estabeleceu com a natureza, manifestada em importantes difi-
culdades de compreensão das particularidades do território e de administração das
suas inclemências (ibid., p. 212). A natureza do Novo Mundo mostrava-se aos conquis-
tadores como uma soma de paisagens enganosas, diante das quais não se dispunha
de conhecimentos adequados ou precisos. Assim, por exemplo, os lugares cobertos
por uma vegetação exuberante eram vistos, de uma forma quase contraintuitiva, como
completamente desfavoráveis para a agricultura ou o cultivo de produtos europeus
imprescindíveis, como o trigo.

Por outro lado, os frequentes desastres naturais (inundações, erupções vulcânicas,


terremotos) que ocorriam na América intensificavam o sentimento de precariedade
que assolava as cidades coloniais. O problema da atividade sísmica, por exemplo, é
especialmente ilustrativo dos limites da razão conquistadora nesse contexto urbano.
As teorias da época valorizavam os terrenos arenosos como os menos propensos a
sofrer os efeitos dos terremotos (ibid., p. 77), de acordo com a suposição de que um
p. 274
sismo seria a consequência da alta pressão do ar que circulava por baixo da crosta
terrestre, que buscaria um espaço de saída para a superfície. Isso explica o fato de
que muitas cidades (Guatemala é um caso emblemático) foram destruídas, transfe-
ridas e reconstruídas reiteradamente, como consequência de movimentos sísmicos.

Isso posto, é importante sublinhar que essa experiência de uma natureza incom-
preensível e temida se inseria em uma percepção do que era salubre e o que era insa-
lubre; que, como já apontamos, era prioritária na representação que os colonizadores
tinham dos lugares idôneos para fundar as suas cidades e assentar as suas populações.
Tanto era assim que um dos principais argumentos no momento da transferência de
uma cidade consistia na busca por um clima mais favorável, isto é, mais parecido com
o da Espanha (ibid., p. 109); e na tentativa de se instalar em lugares sem a ameaça de
sismos, um objetivo inviável dado que, como bem sabemos, esse tipo de fenômenos
obedece a falhas que afetam zonas geográficas muitíssimo amplas (ibid., p. 86). Essas
transferências, portanto, costumavam se mostrar bastante inúteis, do ponto de vista
dos problemas que buscavam ser solucionados e, logicamente, isso incrementava
o ceticismo a respeito dos supostos saberes especializados, intensificava o recurso
à astrologia e à superstição, e reforçava o diagnóstico das catástrofes em termos de
castigo divino diante de uma moralidade duvidosa dos habitantes da cidade.

Em outras oportunidades, a transferência de uma cidade se deveu ao efeito dos


incessantes conflitos com os nativos indígenas de uma localidade concreta (ibid., p.
179). Nesse contexto, com a expressão “época colonial”, às vezes corre-se o risco de
supor que os processos de conquista se consolidam e se completam durante o século
XVI, e isso não é necessariamente assim. Até fins do século XVIII, as vilas colonizadoras
da fronteira norte da Nova Espanha foram atacadas em reiteradas oportunidades por
populações indígenas hostis (ibid., p. 188). Também foi o caso do chamado “Flandres
Indiano”, isto é, da guerra contra os araucanos no sul do Chile, que realmente foi con-
cluída já bem avançado o século XIX. Além disso, os conflitos com os indígenas explo-
diam, habitualmente, em diferentes regiões da América, em algumas oportunidades,
justamente, como consequência do confisco de terras que envolvia a transferência
de uma cidade (ibid., p. 389).

Ao longo dos séculos XVI e XVII, cidades como São Luís, na Nova Espanha, Coma-
yagua, em Honduras, La Concepción del Bermejo, na Argentina, Santa Cruz, na Bolívia,
ou La Imperial, no Chile, foram abandonadas como resultado da ameaça indígena
(ibid., p. 179-191). Vale assinalar que ao perigo de um possível ataque dos nativos se
somou, a partir da segunda metade do século XVI, o problema dos saques piratas,
p. 275
uma circunstância que explica o número importante de transferências de cidades das
zonas litorâneas para o interior, principalmente no sul do México e na América Central.
No entanto, embora houvesse essa série de fatos objetivos que poderiam justificar
as transferências urbanas, mesmo assim as sociedades coloniais hispano-americanas
enfrentaram, de maneira especialmente traumática, a decisão por cada mudança,
sobretudo quando era o caso de já terem passado vários anos desde a fundação da
cidade. Nos debates sobre a transferência, produziam-se enormes tensões dentro da
comunidade, que denunciavam a precariedade da ordem jurídica e política que regia
a cidade, estando presente a ameaça da possibilidade quase certa de as discussões
se converterem em conflito aberto e explícito (ibid., p. 255).

Segundo Musset, habitualmente duas lógicas se enfrentavam: a dos vivos e a dos


mortos. A lógica dos vivos era aquela dos partidários à transferência, que desejavam
garantir uma continuidade e a permanência da cidade a partir do seu desenvolvimento
sobre novas bases. A lógica dos mortos, por outro lado, era aquela dos adversários da
transferência, para os quais o trabalho e a vida dos seus ancestrais, a memória dos
seus atos e a presença física ou espiritual das suas sepulturas transformavam o chão
da cidade em algo sagrado (ibid., p. 266). Nesse contexto, a ausência de uma frente
comum por parte da Igreja aumentava as tensões em jogo, dado que cada setor se
considerava a expressão mais adequada da ortodoxia católica (ibid., p. 269).

Por certo, os debates e os argumentos que se empregavam a favor ou contra a


transferência podiam ocultar outros interesses e especulações de cunho econômico,
comprometidos com a permanência da cidade ou sua eventual transferência. Porém
tais discussões manifestavam, principalmente, que, para seus habitantes, a cidade era
algo mais do que uma simples acumulação de estruturas e bens materiais. De fato,
o que a fragilidade das construções vinha demonstrar era o caráter fictício da própria
unidade da comunidade. As sociedades coloniais eram tão vulneráveis quanto eram
precárias e voláteis as suas edificações urbanas.

Por esse motivo, os projetos de transferência foram situações-limite que puseram


em descoberto a realidade das cidades, mostrando uma sociedade dividida e seg-
8
mentada por interesses dificilmente harmonizáveis: indígenas e espanhóis, criollos
e peninsulares, ricos e pobres, citadinos e campesinos, clérigos e laicos etc. (ibid., p.
246) — ainda que acima de todas essas divisões também houvesse a decisiva contra-
posição entre a Coroa ou seus representantes e as populações criollas. Algumas vezes,
era necessário convencer o próprio Rei da necessidade de transferência das cidades
e em outros casos da sua inconveniência, utilizando argumentos que, perfeitamente,
p. 276
poderiam ser considerados prenúncios importantes de uma consciência criolla que
começava a reivindicar uma identidade local (ibid., p. 283). Um bom exemplo disso é
a obstinada resistência de alguns criollos mexicanos à tentativa de transferência da
Cidade do México, por parte da Coroa, como consequência da grande inundação de
1629 (ibid., p. 284-297). O que, para a Coroa, analisado à distância, era a resposta a um
problema técnico e financeiro, para um número importante de habitantes do México
era a expressão de um fracasso coletivo altamente simbólico para os seus projetos
e modos de vida.

Fragilidade e utopia
Em suma, a ideia da tabula rasa como forma de caracterizar a instância fundacional
da cidade hispano-americana não nos parece satisfatória para descrever a complexi-
dade do processo de desenho e construção da rede urbana colonial no Novo Mundo.
Os conquistadores enfrentaram, no momento da sua chegada à América, uma acu-
mulação de circunstâncias excepcionais e, radicalmente, novas — para as quais não
dispunham de marcos conceituais nem de ferramentas técnicas que fossem capazes
de oferecer respostas eficientes. Nunca foi possível intervir no espaço como se este
não impusesse as suas próprias determinações; não foi possível fazê-lo a partir de uma
suposta racionalidade ideal desprovida de crenças e costumes ancestrais, temores e
necessidades emocionais.

Nesse sentido, pode-se afirmar, também, que a cidade colonial não obedece à
materialização de um urbanismo utópico. Em primeiro lugar, a partir do ponto de vista
do desenho original dos principais núcleos urbanos americanos. Como já apontamos,
o utopismo renascentista propunha uma cidade ideal fechada dentro de um perímetro
murado, um recinto que se assemelhava a uma fortaleza. Esse isolamento do exterior
pode ser observado no modelo urbanístico da Sforzinda de Filarete ou, expresso em
termos literários, nas obras posteriores de More e Campanella.

A Cidade do Sol de Campanella, por exemplo, se encontra dividida em sete círculos


com quatro portas direcionadas aos pontos cardinais em cada um deles. Se alguém
quisesse entrar na cidade, teria que ser capaz de atravessar cada um dos círculos com
seus correspondentes fossos, em uma espécie de sistema de dificuldade crescente
(CAMPANELLA, 1980, p. 143-144). Evidentemente, a impossibilidade de acesso à Cidade
do Sol expressa a distância abismal que existiria entre a urbe ideal e o mundo real, mas ao
mesmo tempo indica que o espaço utópico deve voltar-se para dentro de si mesmo, na p. 277
medida em que encarna a consumação de todas as aspirações e os projetos humanos.
Não é possível entrar na Cidade do Sol, assim como também não faz sentido sair dela.
Pelo contrário, as cidades coloniais da primeira metade do século XVI não foram
construídas como núcleos fortificados, ao invés disso, permaneceram completamente
abertas para o exterior. Anteriormente, refletimos a respeito da importância que teria
o tipo de enfrentamento com os indígenas para a escolha desse modelo, mas talvez
também devêssemos considerar que essa abertura coloca em evidência uma relação
diferente com a natureza. Nas cidades utópicas, justamente por elas resultarem de
9
um “livre voo da imaginação”, toda expressão da natureza é depurada. Os desejos
e os interesses individuais estão subsumidos no imperativo do bem comum, o devir
e a contingência desaparecem como resultado de um ordenamento administrativo
perfeito e a incerteza dá lugar ao governo infalível do conhecimento. Diante de tudo
isso, a cidade colonial, ao contrário, parece ser um artefato constantemente exposto
a uma natureza desconhecida e ingovernável, um aparato que não conseguiu fazer
da natureza uma potência exterior ou um elemento sujeito à sua dominação.

Indubitavelmente, há vários aspectos que a cidade colonial compartilha com o


relato das cidades ideais como, por exemplo, o traçado das ruas longas e retilíneas
ou uma certa universalização do plano urbanístico. Não devemos esquecer que na
ilha de Utopia bastava conhecer uma das suas cidades (Amaurota) para conhecer
todas elas, pois em tamanha medida eram semelhantes entre si. Como analisamos,
algo similar acontece com a rede urbana colonial do Novo Mundo, onde o traçado
quadriculado é reproduzido insistentemente. No entanto, nesse ponto, pode-se per-
ceber uma influência da realidade das cidades hispano-americanas sobre o utópico,
10
e não o contrário. Devemos lembrar que Rafael Hitlodeu, personagem central do
relato utópico de More, supostamente era um explorador que se separou de Vespúcio
durante a sua viagem às Índias, chegando à ilha de Utopia.

De qualquer forma, na nossa opinião, um dos principais argumentos que desmen-


tem a existência de uma relação essencial entre as cidades coloniais e o utopismo
é oferecido pela proposição de Musset a respeito das cidades nômades. Como é
lógico, a destruição de uma cidade e sua eventual transferência representavam uma
oportunidade extraordinária para que os arquitetos e os urbanistas modificassem seus
esquemas e modelos, se liberassem das restrições impostas por ideias inadequadas,
formulassem novas alternativas e tivessem, por fim, a oportunidade para “traçar ex
nihilo as grandes linhas de uma cidade ideal” (MUSSET, 2011, p. 407). No entanto, esse
utopismo nunca teve espaço no contexto das transferências das cidades hispano-ame-
p. 278 ricanas. Os urbanistas e os arquitetos viram-se compelidos a respeitar e a reproduzir as
11
realidades urbanas e sociais que já haviam se estabelecido no território americano.
Efetivamente, há uma grande inércia dos planos urbanos e um conservadorismo
dos desenhos que não podem ser atribuídos ao empenho da Coroa, nem ao seu
suposto controle ferrenho do espaço ibero-americano, mas sim à resistência dos
habitantes das cidades que enfrentavam o infortúnio da transferência (ibid., p. 430).
A transferência da cidade representava uma ameaça à estabilidade da comunidade,
que via a sua percepção de insegurança e precariedade ser incrementada. Portanto,
qualquer mudança somada a essa situação, por exemplo a transformação substantiva
do plano urbanístico, somente poderia ser acolhida como o germe de novas inquie-
tações. Isso explica por que as elites locais rejeitavam as modificações radicais da
cidade original, com o propósito de preservar e garantir os frágeis equilíbrios internos
da sociedade colonial (ibid., p. 434).

Musset apresenta um interessante caso que ilustra como, até finais do século XVIII,
os princípios básicos estabelecidos pela cidade colonial, e explicitados nas orde-
nanças de 1573, continuavam determinando, significativamente, a paisagem urbana.
Trata-se da transferência da cidade de San Pedro de Riobamba, no Equador, como
consequência do terremoto que a destruiu em 1797. Enfrentados à possibilidade de
planejar o desenho de uma nova urbe a partir do zero, a Audiência de Quito escolheu o
espanhol Bernardo Darquea para traçar o plano da futura cidade. Na Espanha, por volta
de 1770, Darquea tinha sido colaborador de Pablo de Olavide no estabelecimento das
novas populações da Sierra Morena — um verdadeiro projeto biopolítico que aspirava
à construção de uma sociedade-modelo que obedeceria aos princípios reformistas
iluministas de produção mecanizada, rendimento eficiente e aproveitamento útil dos
indivíduos (VÁZQUEZ GARCÍA, 2009, p. 43-53).

O projeto da nova cidade de Riobamba que Darquea submeteu à consideração das


autoridades era um plano radioconcêntrico, em um perímetro quadrado que prescin-
dia quase por completo de ângulos retos (MUSSET, 2011, p. 434), um modelo que se
afastava radicalmente do esquema de quadrícula da cidade original. Não se encon-
trava na proposta nenhum tipo de equivalências entre a antiga distribuição, com a sua
segmentação social e suas hierarquias expressas no espaço urbano, e a futura cidade,
organizada como urbe ideal. O projeto de Darquea, como era de se esperar, foi rejei-
tado com o argumento de que punha em risco a estabilidade social, política e moral
da cidade (ibid., p. 436). Em 1799, começaram os trabalhos de construção da nova San
Pedro de Riobamba, de acordo com o modelo de tabuleiro clássico da época colonial.
p. 279
Epílogo
As várias transferências de cidades hispano-americanas evidenciam a fragilidade
do processo urbanístico no Novo Mundo, mas, também, a persistência dos coloniza-
dores em seguirem aferrados ao modelo da cidade como único meio para enfrentar
a contingência. Contudo, tal fenômeno corresponde a um contexto muito mais amplo
e complexo: a existência de uma sociedade vulnerável que pretendia se consolidar
em um território saturado de condicionantes prévios e de traços desconcertantes
que interpelavam, radicalmente, as formas de saber e as representações de que
12
dispunham os colonizadores.

Tudo isto, como pode-se compreender, problematiza o valor de alguns relatos


sobre a cidade colonial que o pensamento latino-americano utilizou, como a imagem
de uma urbe planificada racional e geometricamente, ou a figura de uma cidade ideal
que se edificaria a partir da violência que implica definir o território colonizado como
um espaço imaculado. Todas essas expressões simbólicas têm servido para sustentar
uma interpretação da história que denuncia o poder colonial da modernidade europeia,
uma leitura do nosso passado que atravessa e fundamenta algumas apostas teóricas
decisivas como o programa da libertação ou o giro decolonial.

De fato, os projetos da filosofia da libertação ou da descolonização latino-ameri-


cana foram formulados em termos que os fazem totalmente dependentes de uma
ideia de história que estabelece a existência de um poder hegemônico, totalizante e
excludente, e sua continuidade desde o passado colonial hispânico até o nosso pre-
sente. Nesse sentido, descobrir a profunda contingência que define um dos aspectos
chave da colonização hispânica, isto é, o urbanismo, sugere a necessidade de explo-
rar outras aproximações no estudo das relações culturais e históricas entre Europa e
13
América. A cidade colonial foi o resultado de uma série de fatos inesperados que
demonstram, reiteradamente, que o poder colonizador estava completamente con-
dicionado às realidades concretas que o lugar impunha e pelas práticas específicas
tanto dos castelhanos quanto dos indígenas. Em certo sentido, a cidade colonial esteve
sempre se construindo e se desfazendo, como se cumprisse o ciclo condenatório
do Sísifo. Talvez aí, nessa precariedade que desmente a natureza fundacional de um
poder onímodo, unilateral e perene, esteja o rastro a ser seguido para alcançar uma
maior inteligibilidade das atuais paisagens urbanas latino-americanas, submetidas a
p. 280 novas formas de instabilidade e fragmentação.
Notas

1 Nota dos Editores — Este trabalho foi ori-


ginalmente publicado, em língua espanhola, na
6 Ambos os elementos, as condições de vul-
nerabilidade e os conceitos urbanísticos da
Revista Estudios Avanzados, n. 26, p.114-129, época, nos oferecem o contexto histórico apro-
2016 (ISSN 0718-5014). Agradecemos à gentileza priado para explicar e compreender o fenômeno
do autor e dos responsáveis pelo periódico de da cidade colonial durante o século XVI. So-
nos autorizar a tradução à língua portuguesa. mos conscientes de que, nesse ponto, pode-se
Como os demais textos deste volume da Laje abrir uma discussão epistemológica a respeito
originalmente em espanhol, este artigo recebeu dos limites de toda contextualização histo-
uma última revisão técnico-acadêmica feita pelo riográfica, da qual este artigo representa um
editor-chefe Leo Name, bem como uma revisão exemplo significativo. Estabelecer tal debate
final da tradução por Bruna Otani Ribeiro e nos obrigaria a confrontar a nossa ideia sobre
Larissa Fostinone Locoselli, com equipe do como se escreve a história com o modelo que
Laboratório de Tradução da Universidade Federal acreditamos que está operando nas propostas
da Integração Latino-Americana (UNILA). de Rama, Dussel ou da teoria decolonial. Isso
excede os limites deste trabalho, embora ofe-

2 Este trabalho foi realizado no marco do


projeto Biblioteca Saavedra Fajardo de Pen-
reçamos alguma indicação a esse respeito na
seção final do texto. Para uma aproximação ao
problema da história e da contextualização,
samiento Político Hispánico (IV): Ideas que
destacamos o trabalho de Martin Jay (2011).
cruzan el Atlántico. La formación del espacio
intelectual iberoamericano [Nº Referência:
FFI2012-32611 do Ministério de Educação da
Espanha].
7 Desse modo, a cidade colonial murada
aparece em um segundo momento do processo
de colonização. Como relata o historiador

3 Nota de Tradução (N.T.) — O cabildo,


durante o período colonial na América Es-
da arquitetura Cesare de Seta, a primeira
fortaleza e o primeiro recinto murado de
Cuba, por exemplo, foi construído em 1540,
panhola, era o órgão que funcionava como
como consequência das incursões dos piratas
instância de representação da cidade junto à
e de uma invasão da marinha inglesa. Outros
metrópole espanhola, servindo ainda a outros
exemplos seriam: Cartagena das Índias, que é
propósitos, como inclusive o de prisão.
representada nos planos como uma cidade mu-

4 A obra Discours de la méthode [Discurso


do método] foi publicada no ano de 1637.
rada a partir de 1593, ou San Juan de Puerto
Rico, que não se fortifica até finais do século
XVI (SETA, 2002, p. 119).

5 De Re Aedificatoria, de Leon Battista


Alberti, publicado em 1845, constitui o mais
8 N.T. — O termo designa a geração descen-
dente de espanhóis nascida já nas colônias
importante tratado sobre a construção de ci- e, posteriormente, amplia-se à concepção do
dades do Renascimento. Nesse sentido, é inte- que é fruto da colonização espanhola, das
ressante observar o quanto Alberti rejeita a relações sociais e das práticas culturais
ideia de construir uma cidade ideal e defende que têm raiz na sociedade forjada por esta
um modelo urbanístico centrado unicamente
na concreção histórica e em valorizações de
colonização. p. 281
cunho prático (SETA, 2002, p. 40).
hipótese aqui exposta: a natureza contingente
9 Não pretendemos, com isso, afirmar que a
estrutura da utopia urbana se limita a uma
e falida do poder imperial hispânico.

simples expressão da imaginação ou da fan-


tasia. Uma coisa é a utopia ser escrita com
13 Como já apontamos, contrapõem-se aqui
dois modelos de trabalho historiográfico. A
o poder da imaginação e, portanto, que ela
filosofia da libertação e a aposta decolonial
tenha a capacidade de subjugar, alterar ou
dependem de um conceito totalizante da histó-
reinventar o elemento natural; e outra, muito
ria que estabelece a existência de uma única
diferente, é a força do relato utópico para
lógica colonial (violência simbólica do co-
penetrar na realidade e, inclusive, orientar
lonizador, ratio eurocêntrica, colonialidade
algum tipo de práxis.
do poder etc.), que emerge no século XVI e
chega até o presente, atravessando diversos
10 Erwin Walter Palm oferece um interes-
sante exemplo em relação a essa sobredeter-
estratos da realidade social: a subjetivi-
dade, a construção do conhecimento, as re-
minação das cidades utópicas por parte das lações sociais, as práticas institucionais
cidades americanas. Trata-se do esquema da e as dinâmicas geopolíticas. A nosso ver,
cidade ideal formulado por Albrecht Dürer, seguindo as ferramentas da arqueogenealogia
em 1527, no seu Tratado de fortificação. Se- foucaultiana, apostamos por um estudo das
gundo Palm (1951), esse projeto de cidade práticas nos seus contextos específicos, que
ideal teria sido decisivamente influenciado permita decifrar lógicas estritamente de-
pela publicação, em 1524, em Nuremberg, das limitadas, que podem pertencer tanto a um
cartas segunda e terceira de Cortés junto nível micro, meso ou macropolítico, sem que
ao plano da cidade de Tenochtitlan. A nossa isso envolva a existência de uma raciona-
tese, então, pode ser resumida na ideia de lidade global e unívoca que as conecte. A
que a cidade utópica é uma consequência da partir da perspectiva dos supostos da con-
conquista e da urbanização americana, e não textualização historiográfica, e dando aten-
um fator decisivo do seu contexto. ção ao caso específico da cidade colonial, o
primeiro modelo minimiza todos os aspectos

11 Nesse sentido, o processo urbanístico


colonial tem muito mais de repetição que de
que configuram um contexto (racionalidades,
crenças, experiências) e tenta sublinhar o
caráter radicalmente inovador do aconteci-
novidade radical. A vulnerabilidade e a preca-
mento. Desse modo, na gênese do urbanismo
riedade da experiência colonizadora reforçam
colonial, estaria introduzindo-se um sentido
os mecanismos de reprodução dos discursos e
original que não pode ser explicado por nada
das práticas já conhecidos pelos espanhóis
prévio nem por nenhum contexto. Tratar-se-ia
(ideias sobre a construção de cidades, noções
da produção do ego conquiro e da instauração
jurídicas, princípios religiosos etc.), assim
do poder totalitário da razão moderna, algo
como o desejo de pertencimento a uma iden-
que seria visível no desenho utópico e geo-
tidade comum que a Coroa aporta à distância.
métrico da cidade americana do século XVI.
Pelo contrário, para nós, a cidade colonial
12 Nesse sentido, este estudo sobre a
cidade colonial americana deveria ser só um
é um dispositivo particular que obedece a
uma série de racionalidades conjunturais que
primeiro episódio de um trabalho mais amplo nele se combinam e que tentam responder aos
que venha a analisar outros dispositivos da desafios impostos por uma realidade complexa.
colonização espanhola, como por exemplo: a Interessa-nos conhecer o que fez possível o
p. 282 evangelização, o discurso da limpeza do san- surgimento da cidade colonial e a sua parti-
gue, a construção simbólica do indígena etc. cular precariedade, no entendimento de que,
Em todos esses contextos, caberia avaliar a somente dessa forma, podemos esclarecer o
horizonte necessariamente limitado que tal LUCENA GIRALDO, M. A los cuatro vientos. Las
acontecimento supunha para o futuro (por ciudades de la América Hispánica. Madrid:
exemplo: a abertura ao utopismo). Como afirma Marcial Pons, 2006.
Jay, no seu artigo “Historical explanation MUSSET, A. Ciudades nómadas del Nuevo Mundo.
and the event: reflections on the limits of México: Fondo de Cultura Económica, 2011.
contextualization” [“Explicação histórica e
o acontecimento: reflexões sobre os limites PALM, E. W. Tenochtitlán y la ciudad ideal
de Dürer. Journal de la Société des Améri-
da contextualização”] (2011), os eventos que
canistes, n. 40, p. 59-66, 1951.
podem ser classificados como acontecimentos
são na verdade raros e difíceis de identifi- RAMA, Á. La ciudad letrada. Madrid: Fineo,
car. Certamente, um enfoque contextual teria 2009.
que dar atenção à irrupção do que seria a RAMÓN, A. Santiago de Chile (1541-1991).
pura possibilidade na história, mas também Historia de una sociedad urbana. Santiago:
operar com precaução diante da invenção do Editorial Sudamericana, 2000.
acontecimento que oculta o ato de transcen-
SETA, C. La ciudad europea del siglo XV al
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