Laje v3n1 3 Ar-10 Orellana
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Cidades de Sísifo:
1,2
urbanismo colonial e contingência
Rodrigo Castro Orellana
Universidade Complutense de Madrid, Espanha
TRADUÇÃO:
Gilmei Francisco Fleck
Universidade Estadual do Oeste do Paraná, Brasil
Ángel Rama acerta, então, ao afirmar que “as cidades americanas foram remetidas,
desde as suas origens, a uma vida dupla” (RAMA, 2009, p. 44). Assim, por um lado,
teríamos a ordem física da construção material, com sua específica contingência,
seus vaivéns, circunstâncias e incertezas; e, por outro lado, encontraríamos a ordem
dos signos, mais apegada à certeza e à estabilidade, e decisiva no momento de qual-
quer realização (ibid., p. 45). Entretanto, nos parece que tanto a prioridade que Rama
outorga ao plano simbólico, na fundação das cidades hispano-americanas, quanto o
conteúdo que ele atribui às estruturas ideais que teriam interferido e condicionado o
urbanismo do século XVI devem ser reexaminados.
A cidade ordenada e
a proto-história do cogito
Na sua obra de 1984, A cidade das letras, Rama dedica o primeiro capítulo, intitulado
“A cidade ordenada”, ao estudo da cidade latino-americana como a manifestação de p. 267
um sonho específico da inteligência conquistadora. Seu argumento principal consiste
em sustentar que o impulso europeu de modificar a urbe de acordo com um conjunto
de ideais abstratos teria encontrado uma “oportunidade única” no Novo Mundo para
se materializar em um lugar que se entendeu como desprovido de valores próprios,
isto é, uma espécie de tabula rasa na qual seria possível iniciar uma nova história da
cidade e do homem (RAMA, 1984, p. 32-33). A América teria representado, a partir de
um ponto de vista urbanístico, a possibilidade efetiva de levar a cabo uma espécie de
singular creatio ex nihilo; teria sido entendida como o ponto de partida para dar início a
uma nova época. A tese formulada neste ponto é decisiva: o ato conquistador-urbano
não reproduziria nem replicaria os modelos existentes nas metrópoles europeias,
mas sim deslocaria o ideal ou o horizonte de futuro, que se ocultava como potência
adormecida no Velho Mundo, para sua efetiva realização num novo cosmos que co-
meçava a escrever a sua história. A estrutura utópica da fundação da cidade colonial
seria, dessa forma, posta em evidência. O Novo Mundo teria sido uma força que inflou
a imaginação e a fantasia dos castelhanos, conduzindo-os à construção de núcleos
urbanos completamente submetidos à autoridade de um ideal de cidade.
Segundo Rama, o conteúdo desse ideal obedeceria ao princípio geral do que ele
denomina como uma “razão ordenadora” (RAMA, 1984, p. 36). A palavra “ordem” teria
sido fundamental, então, para as aspirações culturais que foram trasladadas ao novo
continente. Os desejos de simetria, a ânsia pela hierarquização e os sonhos de clas-
sificação cruzariam o Atlântico. Nesse contexto, Rama nos lembra das instruções que
o Rei transmitiu a Pedrarias Dávila, em 1513, para a fundação das cidades:
Segundo Dussel, deve-se introduzir uma distinção entre uma primeira moderni-
dade, que se identifica com o ethos cristão, humanista e renascentista, cuja potência
hegemônica foi a Espanha; e uma segunda modernidade, que parte do século XVII,
com a decadência do poder hispânico e o auge das novas potências como a Holanda,
a Inglaterra ou a França (CASTRO-GÓMEZ, 2005, p. 49). A primeira modernidade pro-
duziria um tipo de subjetividade que pode ser caracterizada como o “eu-conquistador”
que se relaciona com a alteridade (o índio) a partir de uma lógica de exclusão e domí-
nio. Esse ego conquiro seria “a proto-história da constituição do ego cogito” (DUSSEL,
1994, p. 47), ou seja, o significado do cogito cartesiano deveria ser compreendido em
relação a um ideal não questionado de subjetividade que o antecede: o ser coloni-
zador/conquistador ou o ser imperial (GROSFOGUEL, 2007, p. 64). Entre o momento
conquistador e o momento cartesiano, para Dussel, haveria uma perfeita continuidade
que mantém correspondência com o desenvolvimento de um dispositivo fundamental
da modernidade: a “colonização do mundo da vida (lebenswelt)” (DUSSEL, 1994, p. 48).
Em qualquer caso, a função que todas essas tradições teóricas cumpriram no de-
senho da cidade colonial pode ter sido muito mais limitada do que poderíamos supor
em princípio. A quadrícula, nesse sentido, teria sido imposta, principalmente, por uma
realidade que exigia uma distribuição ordenada e hierárquica de lotes e edificações. Tal
organização espacial da cidade oferecia orientação, referências, estabilidade e segu-
rança para uma comunidade incipiente e frágil que apenas começava a se desenvolver.
Cidades viajantes
A conexão entre o momento fundacional das cidades coloniais e o problema da
contingência pode ser endossado se nos detivermos a analisar o fenômeno do no-
madismo dos complexos urbanos hispano-americanos, amplamente pesquisado por
Musset na sua obra Ciudades nómadas del Nuevo Mundo [Cidades nômades do Novo
Mundo]. Certamente, os conquistadores fundaram cidades com o propósito de domi-
nar e povoar um novo território, seguindo a aspiração descrita por Tomás de Aquino
de que uma urbe deveria durar e permanecer ao longo do tempo. Contudo, as várias
transferências de cidades de um sítio a outro, durante a época colonial, evidenciam as
dificuldades enfrentadas para o cumprimento de tais objetivos e permitem observar
a enorme vulnerabilidade que caracterizou o processo de colonização.
p. 273
O fenômeno das transferências das cidades não foi um fato extraordinário ou isola-
do, mas uma realidade de grande magnitude que atravessou o continente americano
(cerca de 200 cidades foram transferidas, algumas delas em duas ou três ocasiões).
A transferência destas cidades não deve ser confundida com outros acontecimentos,
como o abandono do núcleo urbano ou os reagrupamentos das populações indíge-
nas levados a cabo pelas ordens religiosas durante o século XVI. Uma transferência,
segundo Musset, envolvia “tanto a migração dos habitantes como a reedificação do
conjunto de estruturas, edifícios e serviços da cidade original” (MUSSET, 2011, p. 28).
Na maioria dos casos, a transferência era feita dentro de um raio de dez ou vinte
quilômetros (embora existam algumas exceções, como a de San Lorenzo El Real, no
Novo México, que foi reerguida a cinquenta quilômetros da sua localização original;
ou Esteco, na Argentina, que foi deslocada em oitenta quilômetros), afetando, em
maior medida, algumas regiões como a América Central e o norte da América do Sul
(Colômbia e Venezuela). Em um momento inicial da vida da cidade, a transferência
podia ser decidida e resolvida sem maiores conflitos, mas passados de dez a cinquenta
anos a partir da sua primeira localização, a situação da transferência agravava todo
tipo de tensões políticas no interior da comunidade.
Com relação às razões que explicam essa modificação dos centros urbanos, há
vários fatores que podem ser mencionados. Em primeiro lugar, a complexa relação
que a cidade colonial estabeleceu com a natureza, manifestada em importantes difi-
culdades de compreensão das particularidades do território e de administração das
suas inclemências (ibid., p. 212). A natureza do Novo Mundo mostrava-se aos conquis-
tadores como uma soma de paisagens enganosas, diante das quais não se dispunha
de conhecimentos adequados ou precisos. Assim, por exemplo, os lugares cobertos
por uma vegetação exuberante eram vistos, de uma forma quase contraintuitiva, como
completamente desfavoráveis para a agricultura ou o cultivo de produtos europeus
imprescindíveis, como o trigo.
Isso posto, é importante sublinhar que essa experiência de uma natureza incom-
preensível e temida se inseria em uma percepção do que era salubre e o que era insa-
lubre; que, como já apontamos, era prioritária na representação que os colonizadores
tinham dos lugares idôneos para fundar as suas cidades e assentar as suas populações.
Tanto era assim que um dos principais argumentos no momento da transferência de
uma cidade consistia na busca por um clima mais favorável, isto é, mais parecido com
o da Espanha (ibid., p. 109); e na tentativa de se instalar em lugares sem a ameaça de
sismos, um objetivo inviável dado que, como bem sabemos, esse tipo de fenômenos
obedece a falhas que afetam zonas geográficas muitíssimo amplas (ibid., p. 86). Essas
transferências, portanto, costumavam se mostrar bastante inúteis, do ponto de vista
dos problemas que buscavam ser solucionados e, logicamente, isso incrementava
o ceticismo a respeito dos supostos saberes especializados, intensificava o recurso
à astrologia e à superstição, e reforçava o diagnóstico das catástrofes em termos de
castigo divino diante de uma moralidade duvidosa dos habitantes da cidade.
Ao longo dos séculos XVI e XVII, cidades como São Luís, na Nova Espanha, Coma-
yagua, em Honduras, La Concepción del Bermejo, na Argentina, Santa Cruz, na Bolívia,
ou La Imperial, no Chile, foram abandonadas como resultado da ameaça indígena
(ibid., p. 179-191). Vale assinalar que ao perigo de um possível ataque dos nativos se
somou, a partir da segunda metade do século XVI, o problema dos saques piratas,
p. 275
uma circunstância que explica o número importante de transferências de cidades das
zonas litorâneas para o interior, principalmente no sul do México e na América Central.
No entanto, embora houvesse essa série de fatos objetivos que poderiam justificar
as transferências urbanas, mesmo assim as sociedades coloniais hispano-americanas
enfrentaram, de maneira especialmente traumática, a decisão por cada mudança,
sobretudo quando era o caso de já terem passado vários anos desde a fundação da
cidade. Nos debates sobre a transferência, produziam-se enormes tensões dentro da
comunidade, que denunciavam a precariedade da ordem jurídica e política que regia
a cidade, estando presente a ameaça da possibilidade quase certa de as discussões
se converterem em conflito aberto e explícito (ibid., p. 255).
Fragilidade e utopia
Em suma, a ideia da tabula rasa como forma de caracterizar a instância fundacional
da cidade hispano-americana não nos parece satisfatória para descrever a complexi-
dade do processo de desenho e construção da rede urbana colonial no Novo Mundo.
Os conquistadores enfrentaram, no momento da sua chegada à América, uma acu-
mulação de circunstâncias excepcionais e, radicalmente, novas — para as quais não
dispunham de marcos conceituais nem de ferramentas técnicas que fossem capazes
de oferecer respostas eficientes. Nunca foi possível intervir no espaço como se este
não impusesse as suas próprias determinações; não foi possível fazê-lo a partir de uma
suposta racionalidade ideal desprovida de crenças e costumes ancestrais, temores e
necessidades emocionais.
Nesse sentido, pode-se afirmar, também, que a cidade colonial não obedece à
materialização de um urbanismo utópico. Em primeiro lugar, a partir do ponto de vista
do desenho original dos principais núcleos urbanos americanos. Como já apontamos,
o utopismo renascentista propunha uma cidade ideal fechada dentro de um perímetro
murado, um recinto que se assemelhava a uma fortaleza. Esse isolamento do exterior
pode ser observado no modelo urbanístico da Sforzinda de Filarete ou, expresso em
termos literários, nas obras posteriores de More e Campanella.
Musset apresenta um interessante caso que ilustra como, até finais do século XVIII,
os princípios básicos estabelecidos pela cidade colonial, e explicitados nas orde-
nanças de 1573, continuavam determinando, significativamente, a paisagem urbana.
Trata-se da transferência da cidade de San Pedro de Riobamba, no Equador, como
consequência do terremoto que a destruiu em 1797. Enfrentados à possibilidade de
planejar o desenho de uma nova urbe a partir do zero, a Audiência de Quito escolheu o
espanhol Bernardo Darquea para traçar o plano da futura cidade. Na Espanha, por volta
de 1770, Darquea tinha sido colaborador de Pablo de Olavide no estabelecimento das
novas populações da Sierra Morena — um verdadeiro projeto biopolítico que aspirava
à construção de uma sociedade-modelo que obedeceria aos princípios reformistas
iluministas de produção mecanizada, rendimento eficiente e aproveitamento útil dos
indivíduos (VÁZQUEZ GARCÍA, 2009, p. 43-53).