Amor e Psicanálise

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AMOR E PSICANÁLISE – o discurso amoroso

O discurso da psicanálise é o que destaca a impossibilidade, fazendo com


que a falta inerente à estrutura discursiva permita uma circulação entre
diferentes modos de se lidar com o real.
A psicanálise é considerada a cura pelo amor. Na obra freudiana, o amor é, a
princípio, situado do lado da pulsão sexual, enraizando-se no narcisismo
primário. Ou seja, amor e sexo compartilham, em sua constituição, o prazer
parcial ligado, de início, à boca. Amar como sinônimo de devorar seria, então, a
primeira configuração do amor.
“Amar, dizia Lacan, é dar o que não se tem”. O que quer dizer: amar é
reconhecer sua falta e doá-la ao outro, colocá-la no outro. Não é dar o que se
possui, os bens, os presentes: é dar algo que não se possui, que vai além de si
mesmo. Pois antes de tudo, apesar da técnica, a psicanálise é o acolhimento
do sujeito que está em sofrimento psíquico. Acolher o outro com empatia é
amorosidade. É ajudar na transformação e no crescimento do sujeito analisado,
dividido entre dúvidas e angústias.
O tema amor é tão relevante para a Psicanálise que chega a refletir não
apenas sua própria complexidade, mas também a da teoria e da clínica que
pretende elucidá-lo. Deste feito, o tema abarca as tramas subjetivas,
epistemológicas e conceituais que estão envolvidas em toda a construção
teórica empreendida tanto por Freud quanto por Lacan, para dar conta do que
vem a ser o sujeito e o modo como a psicanálise oferece o amor transferencial
como motor do processo analítico.
Freud muito se preocupou com o desenvolvimento da sexualidade, uma vez
que "muito antes da puberdade já está completamente desenvolvida na criança
a capacidade de amar" (FREUD, 1907/1996, p. 125). Tal passagem aponta
para a questão de que o autor não pensava o fenômeno amoroso como restrito
à vida adulta, mas sim, sua implicação na constituição da sexualidade. Já
Lacan o evidencia a seu modo, ao defender que "todo mundo demanda amor"
(LACAN, 1957-1958/1999, p. 376).

Também vemos o objeto de amor diretamente ligado ao conceito de


repetição tal como exposto na citação a seguir:

A psicanálise revelou-nos que quando um objeto original de


um impulso desejoso se perde em consequência da repressão, ele se
representa, frequentemente, por uma sucessão infindável de objetos
substitutos, nenhum dos quais, no entanto, proporciona satisfação completa.
Isto pode explicar a inconstância na escolha de objetos, o 'anseio pela
estimulação' que tão amiúde caracterizam o amor nos adultos (FREUD,
1912/1996, p. 194, grifos nossos).

A experiência do discurso analítico, enquanto método clínico, possibilitou a


Freud sua construção teórica, tomando os casos clínicos como dados passíveis
de interpretação, uma vez que toda clínica produz teoria e toda teoria visa

1
produzir dispositivos clínicos. De forma semelhante, poderíamos pensar que o
amor move, inclusive, a teoria e clínica psicanalítica, as quais não são
dissociadas da sociedade e da cultura.

O amor de transferência

A experiência clínica psicanalítica está diretamente implicada na questão do


amor, uma vez que aponta para o início da teoria freudiana, a partir do amor de
transferência, com o qual a psicanálise recoloca o fenômeno amoroso no seio
da experiência terapêutica. A prática psicanalítica é diretamente fundamentada
no amor e, por isso, aparece como condição para surgimento do tratamento
psicanalítico. A relevância da transferência é destacada por Freud, quando diz
que ela "[...] torna-se o agente da influência do médico e nem mais nem menos
do que a mola mestra do trabalho conjunto de análise" (1924/1996, p. 47).
Numa abordagem geral do conceito de transferência, entendemos que o autor
sustenta uma importância dada ao amor transferencial não apenas em seus
textos iniciais, mas sim ao longo de sua obra. No excerto abaixo, podemos
destacar que Freud coloca as relações de amor, em seu sentido mais amplo,
como o principal tema da psicanálise, uma vez que implicam em uma
transferência de amor outrora vivenciada entre o indivíduo e seus entes
queridos. Vejamos:

As relações de um indivíduo com os pais, com os irmãos e irmãs, com o objeto


de seu amor e com seu médico, na realidade, todas as relações que até o
presente constituíram o principal tema da pesquisa psicanalítica, podem
reivindicar serem consideradas como fenômenos sociais (1921/1996, p. 81).

A partir da leitura freudiana, uma das possibilidades de conceituar a


transferência seria como o amor injustificado, ao menos pela racionalidade da
consciência. Entretanto, a proposta freudiana acaba por posicionar justamente
a abordagem pelo seu avesso, ou seja, a transferência enquanto verdade do
inconsciente uma vez que se ancora no sentimento, no afeto, no amor, em
Eros e na sexualidade. Portanto, a história da psicanálise se apoia na
transferência e coloca o campo do amor em primeiro plano, o que por sua vez,
reconstituiria inclusive o campo da verdade. A transferência propicia um
aparente equívoco que por sua vez representa a verdade do inconsciente,
assim, Freud passou a escutar lapsos, equívocos, articulações não explícitas,
as quais surgem em uma fala aparentemente divergente.

O fenômeno da transferência participa do surgimento da experiência


psicanalítica como ultrapassagem dos critérios de racionalidade consciente, a
qual ocorre a partir dos estudos sobre a histeria e, ao mesmo tempo, colocou
em questão qual a lógica da relação da psicanálise com a verdade. Freud
discorre sobre a relação do amor e da verdade no fenômeno transferencial da
seguinte forma: "a transferência cria, assim, uma região intermediária entre a
doença e a vida real [...]. A nova condição assumiu todas as características da
doença, mas representa uma doença artificial, que é, em todos os pontos,
acessível a nossa intervenção" (1914b/1996, p. 170). É nessa região
intermediária que se cria um campo próprio de investigação psicanalítica em
2
que há uma crítica dos pressupostos de verdade e de realidade, os quais
abrem uma nova perspectiva para o entendimento do fenômeno amoroso.
Nesse sentido, foi justamente pela psicanálise ter assentado no amor e na
sexualidade as possibilidades de constituição de lógicas individuais de
produção discursiva e subjetiva, em detrimento de concepções naturalizantes
ou realistas, que a teoria do inconsciente aponta para o caráter ficcional
implicado em sua concepção de verdade – "as fantasias que cingem o amor
quebram o limite entre a verdade e a mentira, conduzindo o homem a esbarrar
em alguma coisa da ordem do intransponível" (FERREIRA, 2004, p. 8). Deste
modo, tanto o amor quanto a verdade apontam para a máxima freudiana de
que não somos donos de nossa própria morada, a partir da invenção do
inconsciente.

Nas palavras de Lacan "a análise veio nos anunciar que há um saber que não
se sabe" (LACAN, 1972- 1973/2008, p. 102). Uma análise teria a finalidade de
possibilitar que advenha a verdade do sujeito bem como "o que a fala comporta
de amor" (LACAN, 1972-1973/2008, p. 102). Deste modo, o saber de uma
análise estaria ligado ao discurso amoroso.

O primeiro exemplo de um amor de transferência relatado na história da


Psicanálise, se remota ao atendimento de Anna O. por Breuer (in FREUD,
1893/1996). Tal paciente nomeia seu tratamento com Breuer de talking cure,
uma vez que o que se fazia era uma chimney sweeping. Teria sido a histérica
quem propiciou a criação da psicanálise, à medida em que Freud,
ineditamente, pode escutá-la. Segundo Lacan, em sua releitura da obra
freudiana, "Anna O., é a seu propósito que se descobriu a transferência [...].
Quanto mais Anna dava significantes e tagarelava, melhor a coisa ia"
(1964/2008, p. 155). Os sintomas da paciente estavam ligados à iminência da
morte durante a doença de seu pai e sua representação, quais sejam,
distúrbios da visão, da linguagem e da motricidade e ainda ficou incapacitada
momentaneamente de compreender e se expressar na língua materna. Em
relação a este caso, Lacan ressalta justamente o caráter apavorante da
transferência ao descrever que, após uma pseudociese de Anna, sentindo-se
ameaçado e assustado, Breuer é levado a desistir do caso. Segundo Lacan,
seria praticamente evidente que "Breuer amou sua paciente" (LACAN, 1960-
1961/1992, p. 17).

Retomando o caso de Anna O., podemos pensar que por mais que uma
transferência de amor como essa seja difícil de se conduzir à medida em que
pode atrapalhar o tratamento, o analista não deve recuar frente à mesma. A
dificuldade do tratamento analítico, conforme o ocorrido com Breuer, estaria na
proximidade entre os conceitos de transferência e resistência:

Primeiro e antes de tudo, mantém-se na mente a suspeita de que tudo que


interfere com a continuação do tratamento pode constituir expressão da
resistência. Não pode haver dúvida de que a irrupção de uma apaixonada
exigência de amor é, em grande parte, trabalho da resistência (FREUD,
1915a/1996, p. 180).

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Fora justamente a partir da dificuldade encontrada por Breuer no caso Anna O.
que Freud propõe as regras técnicas da neutralidade e da abstinência: "já
deixei claro que a técnica analítica exige do médico que ele negue à paciente
que anseia por amor a satisfação que ela exige. O tratamento deve ser levado
a cabo na abstinência" (FREUD, 1915a/1996, p. 182). Isso também implica que
o analista não responda a todas as demandas dos pacientes. A ideia freudiana
da abstinência e da neutralidade implicaria a não responder nem sim e nem
não, mas deixar que o paciente associe frente ao silêncio do analista.

Ressalta-se que o amor transferencial tem peculiaridades que o distinguem do


"amor normal", objetal, no sentido de encontrar a genuinidade do amor.
Posteriormente, escreve que os "[...] afastamentos da norma constituem
precisamente aquilo que é essencial a respeito de estar enamorado." (FREUD,
1915a/1996, p. 186). Esta afirmativa tem o intuito de nos lembrar o quanto o
amor afasta-se de uma pedagogia do afeto, bem como das regras e normas
preestabelecidas. Lacan foi um autor que deu sobremaneira importância ao
amor transferencial da teoria freudiana, tanto que realiza o seminário 8 a fim de
trabalhar sobre o tema. Neste texto, o autor descarta a análise enquanto
pedagogia amorosa:

Não estou ali, afinal de contas, para seu bem, mas para que ele ame. Isso quer
dizer que devo ensiná-lo a amar? Certamente, parece difícil elidir essa
necessidade – quanto ao que vem a ser amar e o que vem a ser o amor, há
que dizer que as duas coisas não se confundem (LACAN, 1960-1961/1992, p.
23).

O amor transferencial é artificial. E Lacan questiona Platão e posteriormente


Freud quando se referem às duas metades que passam uma vida em busca
uma da outra. Lacan critica tal conceito – Eros – como excesso de imaginário
idealizado, a partir de sua impactante frase: "não há relação sexual".

No livro Dicionário de Psicanálise, seus autores definem a transferência


enquanto "feita do mesmo estofo que o amor comum, mas é um artifício, uma
vez que se refere inconscientemente a um objeto que reflete o outro"
(ROUDINESCO; PLON, 1944/1998, p. 769). Assim, para os autores, a
transferência é feita do mesmo estofo que amor comum e o que se transfere
seria justamente o afeto, posto que no campo freudiano a economia psíquica
refere-se à quantidade e intensidade. Uma ilustração da intensidade do sujeito
do inconsciente que a teoria freudiana afirma, no caráter desejante, como
essência e estruturação inerente às formações dos sonhos, encontram-se
em A tempestade de Shakespeare, peça em que o poeta afirma: "Somos feitos
da matéria dos sonhos; nossa vida pequenina é cercada pelo sono"
(1623/2000, p. 94).

Amor e pulsão em Freud

O autor chamava a teoria das pulsões de sua mitologia, isto é, de um discurso


que tenta fazer uma ficção do que não pode ser apreendido pela escritura
científica, mas que aponta para algo que está presente e "afeta" o sujeito, sem

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que haja possibilidade de esclarecer aquele algo. Posteriormente, no texto, o
autor conceitua o termo:

Chegamos assim à natureza essencial das pulsões, considerando em primeiro


lugar suas principais características – sua origem em fontes de estimulação
dentro do organismo e seu aparecimento como uma força constante – e disso
deduzimos uma de suas outras características, a saber, que nenhuma ação de
fuga prevalece contra eles (1915b/1996, p.125).

Poderíamos destacar duas caraterísticas em comum: que do amor não


podemos fugir – o senso comum também sabe bem disso – e que ambos
mantêm relações íntimas com fontes de estimulação. Entretanto, seria sua
característica de força constante também uma semelhança, se considerarmos
a repetição como uma característica fundamental do amor, conforme
apontamos anteriormente.

Uma aproximação destacada por nós entre amor e pulsão é quanto ao


elemento da intensidade, o qual em sua metapsicologia freudiana é entendido
como pressão ou força de uma pulsão. Freud define que "por pressão [Drang]
de uma pulsão compreendemos seu fator motor, a quantidade de força ou a
medida da exigência de trabalho que ela representa" (FREUD, 1915b/1996, p.
127). Um ponto que poderíamos tomar para discutir a questão seria buscar no
texto freudiano Sobre a transitoriedade (1916/1996) elementos para aproximar
os conceitos de pulsão e de amor, a partir de uma releitura da pressão
implicada em ambos os termos. Neste texto, o autor, após passear com um
amigo e com um poeta, questionou-se sobre as pessoas que não conseguem
amar e nem tampouco admirar devido à transitoriedade das coisas e o luto que
isso implica. Freud diz que não compreende tal fato, pois "o valor da
transitoriedade é o valor da escassez do tempo. A despeito da intensidade e
temporalidade da pulsão, o autor defende:

Talvez, contudo, seja admissível encarar o assunto e representá-lo ainda de


outra forma. Podemos dividir a vida de cada pulsão numa série de ondas
sucessivas isoladas, cada uma delas homogênea durante o período de tempo
que possa vir a durar, qualquer que seja ele, e cuja relação de umas com as
outras é comparável à de sucessivas erupções de lava (FREUD, 1915b/1996,
p. 136).

Para o autor, a pulsão é errante, sem objeto natural, de impossível satisfação e


completude: "por mais estranho que pareça, creio que devemos levar em
consideração a possibilidade de que algo semelhante na natureza da própria
pulsão sexual é desfavorável à realização da satisfação completa" (FREUD,
1912/1996, p. 194). Nesse sentido, Quinet aponta para uma saída pelo amor
frente ao desamparo presente desde início e até fim da vida:

Assim o amor é a afirmação de ser e da vida. Nas situações mais extremas de


ameaça ao ser, ou seja, de risco absoluto de deixar de ser, de existir, de not to
be, o que se tem? A declaração do amor. A maioria das mensagens de
celulares das pessoas nas torres gêmeas do 11 de setembro antes de se atirar

5
pela janela era: I love you! Primeira e última palavra do ser falante (QUINET,
2011, p. 31, itálicos no original).

No entanto, o Freud nos lembra que, apesar da satisfação ser sempre parcial,
a finalidade da pulsão é sempre a satisfação sendo que a única possibilidade
de variação seria de serem "inibidas em sua finalidade" (FREUD, 1915b/1996,
p. 128).

Nesse sentido, se o amor é aquilo que repete, e que ao mesmo tempo deve
ficar na abstinência para não se esvair, como vemos em exemplos de amor
platônico, amor cortês e amor transferencial, modelos estes de amores
impossíveis, surge então uma questão: tendo proximidade entre o campo
amoroso e a pulsão, como abordar sob o enfoque do conceito de amor, as
questões ligadas ao corpo? Deste modo, "dizer que não há o objeto de desejo
não significa que não haja uma infinidade de objetos que causam desejo"
(FERREIRA, 2004, p. 8). Deste feito, o sujeito buscará sempre uma satisfação
a qual nunca será completa.

Nas palavras de Freud: "[o amor] é originalmente narcisista, passando então


para objetos, que foram incorporados ao ego ampliado, e expressando os
esforços motores do ego em direção a esses objetos como fontes de prazer"
(FREUD, 1915/1996, p. 143).

O amor narcísico

Para abordagem desse tema, tomaremos o texto Sobre o narcisismo: uma


introdução (1914a/1996) como fio condutor de nossa discussão, a fim de
apresentar como Freud se posicionou frente ao amor narcísico. Nesse texto, o
autor associa o amor objetal aos homens, no qual ocorreria um
empobrecimento do ego em relação à libido em favor do objeto amoroso. Ao
mesmo tempo, o amor narcisista relacionar-se-ia às mulheres que amam ser
amadas. Deste modo, Freud aborda que a origem do ego é uma projeção do
amor próprio, do investimento do eu: "um indivíduo que ama priva-se, por
assim dizer, de uma parte do seu narcisismo, que só pode ser substituída pelo
amor de outra pessoa por ele" (FREUD, 1914a/1996, p. 105). Diferentemente,
no excerto a seguir, Freud relaciona o "amor feliz" a uma condição primitiva do
homem, no mesmo sentido que o autor discorrerá sobre o amor universal.
Ainda na citação abaixo, a posição freudiana a respeito do tema é de que o
amor estaria ligado à nostalgia de um objeto perdido, o qual não passaria de
uma cena fantasiada, mas que o sujeito buscaria repetir no decorrer de sua
história.

A volta da libido objetal ao ego e sua transformação no narcisismo, representa,


por assim dizer, um novo amor feliz; e, por outro lado, também é verdade que
um verdadeiro amor feliz corresponde à condição primeira na qual libido objetal
e a libido do ego não podem ser distinguidas (FREUD, 1914a/1996, p. 106).

No mesmo texto, o autor defende que o amor, mesmo objetal, é sempre


descendente de um amor próprio, narcísico, um amor inicialmente egoico. E

6
quando se volta para um objeto, esse amor será idealizado e dependerá do
infantil de cada sujeito. Vejamos:

O estar apaixonado consiste num fluir da libido do ego em direção ao objeto.


Tem o poder de remover as repressões e de reinstalar as perversões. Exalta o
objeto sexual transformando-o num ideal sexual. Visto que, com o tipo objetal
(ou tipo de ligação), o estar apaixonado ocorre em virtude da realização das
condições infantis para amar, podemos dizer que qualquer coisa que satisfaça
essa condição é idealizada (FREUD, 1914a/1996, p. 107).

Na citação abaixo, momento em Freud discute a formação da sociedade e a


estruturação do eu a partir de fenômenos amorosos, o autor questiona-se,
novamente, sobre o amor real, verdadeiro e genuíno, e que ao mesmo tempo
indicaria a polissemia do amor.

Mesmo em seus caprichos, o uso da linguagem permanece fiel a uma certa


espécie de realidade. Assim, ela dá o nome de 'amor' a numerosos tipos de
relações emocionais que agrupamos, também, teoricamente como amor, por
outro lado, porém, sente, a seguir, dúvidas se esse amor é real, verdadeiro,
genuíno, e assim insinua toda uma gama de possibilidades no âmbito dos
fenômenos do amor (1921/1996, p. 122).

O autor complementa que os impulsos sexuais do amor sensual, o qual tende a


se extinguir quando se satisfaz, têm de estar mesclados com componentes
puramente afetuosos, para que o amor possa durar e haja "laços permanentes
entre as pessoas" (FREUD, 1921/1996, p. 125). Freud apresentaria, também,
duas formas diferentes de aparição do amor: a primeira, a saber, o amor
apareceria tanto em sua forma original, diretamente ligado a satisfação sexual.
Na segunda forma, o amor fundaria a família e operaria na civilização em sua
forma modificada, como afeto inibido em sua finalidade (FREUD, 1930/1996).
Deste feito, de um lado haveria "as tempestuosas agitações do amor genital"
ligadas à satisfação sexual. Por outro lado, um amor com sua finalidade inibida
pode ser lido conforme o trecho a seguir: "[...] disposição para o amor universal
e pela humanidade e pelo mundo representa o ponto mais alto que o homem
pode alcançar" (FREUD, 1930/1996, p. 107).

Amor e Castração

Em sua primeira articulação – a relação entre amor e castração –, podemos


situar o “problema do amor”. A esperança de completude, facilmente
reconhecível quando se trata deste sentimento, tem como fundamento uma
perda original, colocada por Freud em termos de objeto perdido de uma
satisfação primeira e origem de um profundo e permanente anseio por seu
retorno, o qual recebe o nome de ‘desejo’. Freud situa a busca amorosa (ou
escolha de objeto) em uma perspectiva distinta, mas não independente da
sexualidade, uma vez que apoiada nos laços com os primeiros objetos.
Tomando o conceito de objeto pulsional em sua radicalidade, Lacan define-o
como faltoso. Ou seja, a falta de objeto seria uma condição primordial, marca
da entrada do sujeito no mundo simbólico, da linguagem.

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O amor seria, então, uma tentativa de fazer desaparecer a falta original do
desejo. A situação paradoxal do amor, no entanto, também é reconhecida por
Freud e por Lacan: se o encontro amoroso proporciona, por um lado, um certo
apaziguamento ao alimentar a ilusão da completude perdida, por outro lado,
implica sempre um efeito de logro, pois basta amar para que o sujeito se
reencontre com essa hiância estrutural, como diz Lacan, na medida em que o
que falta ao sujeito (amante), o objeto (amado) também não tem.

Amor e Gozo

A relação entre amor e gozo, o segundo apontando, para Lacan, a ordem do


excesso, para além do prazer. Aqui, o sofrimento, embora relativamente
comum no campo do amor, particularmente em sua vertente de paixão, revela
uma possibilidade de enlace com o gozo e, portanto, de manifestar sua face
mortífera, pois o prazer não mais o limita.

Conclusão

Para Freud, o amor está ligado mais à idealização, enquanto para Lacan, à
sublimação. Na obra freudiana, o amor é, a princípio, situado do lado da pulsão
sexual, enraizando-se no narcisismo primário. Ou seja, amor e sexo
compartilham, em sua constituição, o prazer parcial ligado, de início, à boca.
Amar como sinônimo de devorar seria, então, a primeira configuração do amor.
Além disso, o amor seria independente do ódio (forma mais primitiva de relação
com o objeto), opondo-se a este apenas sob a regência do princípio de prazer.
Mais tarde, com a introdução do conceito de narcisismo, implicando em que o
eu é também objeto da pulsão sexual, Freud distingue duas formas de amar,
mas não se descuida de discutir os destinos pulsionais. A escolha amorosa
seria marcada, então, pela divisão da libido entre o eu e o objeto, implicando
uma supervalorização do eu ou do objeto e sendo denominada,
respectivamente, narcisista e anaclítica (mais tarde, ligada à identificação e à
idealização). O amor, modelado pelas primeiras experiências, e as pulsões
sexuais, com seus pontos de fixação, são considerados dois campos distintos,
ambos funcionando como se o tempo houvesse parado. É, especialmente, em
sua vertente de idealização, na qual o objeto é tomado como fonte de todo
bem, que Freud destaca a tendência a uma relação de submissão neurótica a
este. Há uma preciosa indicação da autora sobre a aproximação, realizada por
Freud, entre o amor e os destinos da pulsão sexual, que devemos destacar.
Não obstante a distinção estrutural, os dois campos mantêm pontos de
conexão, que podem ser entrevistos na ampliação da oposição amor e ódio
(que passa a incluir a indiferença e o ser amado). Finalmente, com a
formulação da pulsão de morte, Freud volta a reunir amor e sexo sob a
denominação de Eros, agora tomado em seu poder de oposição frente à morte.

As contribuições de Lacan sobre o tema do amor atravessam seu ensino,


avançando em caminhos abertos por Freud. Também ele se deixa instigar por
Eros, usando a expressão “teoria do amor” para afirmar seu interesse na
formulação de sua estrutura. Ressaltando a dificuldade de se dizer, sobre o
amor, algo que se sustente, Lacan circunscreve uma primeira distinção
fundamental: o amor como paixão imaginária e o amor em sua face simbólica.

8
O amor-paixão se dirige ao outro como objeto, buscando complementaridade e
revelando sua raiz narcísica, já indicada por Freud. Ou seja, o sujeito ama para
ser amado. Acrescenta que a paixão (além do amor, o ódio e a ignorância) é,
justamente, a alienação do desejo no objeto. Em sua face simbólica,
diferentemente, o eixo do amor é situado, não no objeto, mas naquilo que o
objeto não tem. Como dom ativo, o amor visa o ser, para além da captura
imaginária, sustentando-se e equivocando-se na trama significante. O que
Lacan sublinha é, sobretudo, a falta de harmonia fundamental entre sujeito e
objeto. Como a linguagem, o amor, em sua vertente simbólica, revela um
esforço, sempre precário, de fazer frente ao real da falta.
Lacan destacará, também, do amor como recusa do dom, articulando-o com a
pulsão de morte e com a sublimação, pois, em seu centro, habita o vazio e não
o objeto. O amor cortês é um entre os exemplos trabalhados pela autora para
explicitar os meandros desta modalidade de amor, que se apóia na renúncia ao
objeto. A elaboração teórica encaminhada por Lacan tem como um de seus
pontos fundamentais as diferentes posições subjetivas diante do objeto
amoroso e dupla possibilidade do amor de manter ou apagar a falta viva do
desejo.
A relação entre amor e saber, na transferência, constitui um importante
desdobramento realizado por Lacan: o amor de transferência, em sua essência
amor-paixão, seria acompanhado da ignorância, paixão sustentada,
simultaneamente, por um “não-querer-saber” e pela suposição de um saber no
analista. Se, na entrada em análise, o analisando ama para ser amado, em seu
desfecho entraria em jogo a “metáfora do amor”: uma transformação do amado
em amante como sujeito da falta, sujeito desejante. Efeito da estruturação do
desejo, invenção humana paradoxal, o amor é, também, um tema caro à
delimitação ética do campo da psicanálise, realizada por Lacan, mas
germinada por Freud.

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