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O que é farmacologia?
Considerações gerais
Este capítulo introdutório explica como a farmacologia se tornou e evoluiu como
disciplina científica, descrevendo a estrutura atual do tema e suas associações com
outras ciências biomédicas. Sua configuração forma a base da organização do restante
deste livro. Os leitores ansiosos para se atualizarem com a farmacologia podem, sem
receio, saltar este capítulo.
O que é um fármaco?
Para os propósitos deste livro, um fármaco pode ser definido como uma substância
química de estrutura conhecida, que não seja um nutriente ou um ingrediente 1 essencial da dieta,
o qual, quando administrado a um organismo vivo, produz um efeito biológico.
Alguns pontos merecem ser observados. Fármacos podem ser substâncias químicas
sintéticas, substâncias químicas obtidas a partir de plantas ou animais ou produtos de
engenharia genética. Um medicamento é uma preparação química que, em geral – mas não
necessariamente –, contém um ou mais fármacos, administrado com a intenção de
produzir determinado efeito terapêutico. Os medicamentos, em geral, contêm outras
substâncias (excipientes, conservantes, solventes etc.) ao lado do fármaco ativo, a fim de
tornar seu uso mais conveniente. Para que a substância seja considerada um fármaco, ela
substância deve ser administrada como tal, em vez de ser liberada por mecanismos
fisiológicos. Várias substâncias, como insulina ou tiroxina, são hormônios endógenos,
mas são também fármacos quando intencionalmente administradas. Muitos fármacos
não são usados em medicamentos, mas se revelam úteis ferramentas de pesquisa. No
jargão atual, a palavra droga é frequentemente associada a substâncias que causam
dependência, narcóticas ou que alteram a consciência – uma infeliz conotação negativa
que leva a uma opinião preconceituosa contra qualquer forma de terapia química. Neste
livro, focalizaremos principalmente os fármacos usados com finalidade terapêutica, mas
também descreveremos importantes exemplos de substâncias empregadas como
ferramentas experimentais. Embora os venenos se encaixem perfeitamente na definição
de fármacos, não são considerados neste livro.
Origens e antecedentes
A farmacologia pode ser definida como o estudo dos efeitos dos fármacos no
funcionamento de sistemas vivos. Como ciência, nasceu em meados do século XIX, uma
das muitas novas ciências biomédicas baseadas nos princípios da experimentação, e não
nas crenças vigentes naquele período extraordinário. Muito antes disso – na verdade,
desde os primórdios da civilização –, remédios à base de ervas foram amplamente
utilizados, farmacopeias foram escritas e o mercado dos boticários floresceu. No entanto,
nada que se assemelhasse a princípios científicos foi aplicado à terapêutica, àquela altura
denominada de matéria médica.2 Até mesmo Robert Boyle, que lançou os fundamentos
científicos da química em meados do século XVII, quando lidava com a terapêutica (A
Collection of Choice Remedies, 1692), foi capaz de recomendar misturas de larvas, estrume,
urina e fungos do crânio de um homem morto. O impulso da farmacologia veio da
necessidade de melhorar os resultados das intervenções terapêuticas pelos médicos, que,
naquele tempo, eram hábeis em observação clínica e diagnóstico, mas, em geral,
ineficazes quanto ao tratamento.3 Até o fim do século XIX, o conhecimento do
funcionamento normal e anormal do organismo era muito rudimentar para permitir,
mesmo em bases grosseiras, a compreensão dos efeitos dos fármacos; ao mesmo tempo,
as doenças e a morte eram consideradas assuntos semissagrados, tratados
particularmente por doutrinas mais autoritárias do que científicas. A prática clínica
frequentemente mostrou obediência a essa autoridade e ignorava o que pareciam ser
fatos facilmente verificáveis. Por exemplo, a casca da cinchona foi reconhecida como um
tratamento específico e eficiente para a malária, e um correto protocolo para seu uso foi
estabelecido por Lind em 1765. Em 1804, entretanto, Johnson a declarou insegura até que
a febre tivesse baixado e recomendou, em seu lugar, o uso de altas doses de calomelano
(cloreto mercuroso) nos primeiros estágios – um conselho fatal, que foi servilmente
seguido pelos quarenta anos seguintes.
A motivação para compreender o que os fármacos podem e não podem fazer vem da
prática clínica, mas a ciência somente poderia ser estruturada a partir de fundamentos
seguros de fisiologia, patologia e química. Foi somente em 1858 que Virchow propôs a
teoria celular. O primeiro uso de uma fórmula estrutural para descrever um composto
químico foi em 1868. A bactéria como causa de doença foi descoberta por Pasteur em
1878. Antes disso, a farmacologia dificilmente encontraria alguma sustentação, e
podemos admirar a visão corajosa de Rudolf Buchheim, que criou o primeiro instituto de
farmacologia (em sua própria casa), na Estônia, em 1847.
Em seus primórdios, antes da invenção da química orgânica sintética, a farmacologia
se relacionava exclusivamente com a compreensão dos efeitos de substâncias naturais,
principalmente extratos botânicos – e algumas substâncias químicas (principalmente
tóxicas) como mercúrio e arsênico. Um aperfeiçoamento inicial em química foi a
purificação de compostos ativos de plantas. Friedrich Sertürner, um jovem boticário
alemão, purificou a morfina a partir do ópio em 1805. Outras substâncias rapidamente se
seguiram e, mesmo que suas estruturas fossem desconhecidas, esses compostos
mostraram que os produtos químicos, e não a magia ou as forças vitais, é que eram os
responsáveis pelos efeitos que os extratos de plantas produziam nos organismos vivos.
Os primeiros farmacologistas concentraram mais a atenção nesses fármacos derivados
das plantas, como quinina, digital, atropina, efedrina, estricnina e outros (muitos dos
quais são utilizados até hoje e serão bem familiares quando você tiver terminado de ler
este livro).4
Advento da biotecnologia
Desde os anos 1980, a biotecnologia surgiu como importante fonte de novos agentes
terapêuticos na forma de anticorpos, enzimas e várias proteínas reguladoras, incluindo
hormônios, fatores de crescimento e citocinas (Buckel, 1996; Walsh, 2003). Embora esses
produtos (conhecidos como biofármacos) sejam, em geral, produzidos por engenharia
genética, e não quimicamente sintetizados, os princípios farmacológicos são
essencialmente os mesmos dos fármacos convencionais. Olhando um pouco mais à
frente, as terapias baseadas na célula e no gene (Cap. 59), embora ainda em sua infância,
colocarão a terapêutica em um novo patamar. Os princípios que governam o esboço, a
distribuição e o controle de genes funcionais artificiais introduzidos nas células, ou de
células fabricadas e introduzidas no organismo, são muito diferentes daqueles das
terapias baseadas em fármacos e necessitarão de uma estrutura conceitual diferente,
razão pela qual livros como este vão precisar descrevê-los cada vez mais se quiserem
estar atualizados com o moderno tratamento médico.
A farmacologia atual
Assim como outras disciplinas biomédicas, as fronteiras da farmacologia não estão
claramente definidas nem são constantes. Seus expoentes – tal como convém aos
pragmáticos – estão sempre prontos para invadir os territórios e as técnicas de outras
disciplinas. Se ela já teve um núcleo conceitual e técnico que podia realmente chamar de
seu, este já definhou quase ao ponto de extinção, e a especialidade agora é definida mais
por seu objetivo – entender o que os fármacos fazem aos organismos vivos e, mais
particularmente, como seus efeitos podem ser aplicados à terapêutica – do que por sua
coerência científica.
A Figura 1.2 mostra a estrutura da farmacologia tal como se apresenta hoje. No assunto
principal, inserem-se vários compartimentos (neurofarmacologia, imunofarmacologia,
farmacocinética etc.) que são subdivisões convenientes, se não estanques. Esses tópicos
compõem o material principal deste livro. Em torno de seus limites, estão muitas
disciplinas de interface, não abordadas neste livro, que formam importantes pontes de
mão dupla entre a farmacologia e outros campos da biomedicina, o que tende a acontecer
aqui com mais frequência do que em outras disciplinas. Outras subdivisões apareceram
trazidas pelos novos avanços, tais como farmacogenômica, farmacoepidemiologia e
farmacoeconomia.
Biotecnologia
Originalmente, biotecnologia era a produção de fármacos ou outros produtos úteis por
meios biológicos (p. ex., produção de antibióticos a partir de microrganismos ou
produção de anticorpos monoclonais). Atualmente, na esfera biomédica, a biotecnologia
se refere principalmente ao uso da tecnologia do DNA recombinante para uma grande
variedade de objetivos, incluindo produção de proteínas terapêuticas, diagnóstico,
genotipagem, criação de animais transgênicos etc. As numerosas aplicações não médicas
incluem agricultura, uso forense, ciências ambientais, entre outras.
Farmacogenética
É o estudo das influências genéticas sobre as respostas aos fármacos, apresentado no
Capítulo 11. Originalmente, a farmacogenética focalizava as reações familiares
idiossincrásicas aos fármacos, em que os indivíduos afetados mostravam uma resposta
anormal – em geral, adversa – a uma classe de medicamentos (Nebert e Weber, 1990).
Atualmente, estuda variações mais amplas de resposta aos fármacos, cujo embasamento
genético é mais complexo.
Farmacogenômica
Esse termo recente se sobrepõe à farmacogenética, descrevendo o uso da informação
genética para nortear a escolha de uma terapia medicamentosa em bases individuais. O
princípio que a fundamenta é que as diferenças entre indivíduos na resposta a agentes
terapêuticos podem ser previstas a partir de sua constituição genética. Os exemplos que
confirmam esse argumento estão se avolumando decisivamente (Cap. 11). Até agora,
envolvem principalmente o polimorfismo genético dos receptores ou das enzimas que
metabolizam os fármacos. Em consequência, associar as variações gênicas específicas às
variações na terapêutica ou nos efeitos indesejáveis de um fármaco em particular
possibilitaria a individualização da escolha terapêutica com base no genótipo do
paciente. Os melhoramentos contínuos nos custos e na exequibilidade da determinação
de genótipos irão aumentar sua aplicabilidade e, potencialmente, haverá consequências
abrangentes para a terapêutica (Cap. 11).
Farmacoepidemiologia
É o estudo dos efeitos dos fármacos em nível populacional (Strom, 2005). Ocupa-se da
variabilidade dos efeitos dos fármacos entre indivíduos de uma população e entre
populações. Trata-se de um tópico cada vez mais importante aos olhos das autoridades
reguladoras que decidem se um novo fármaco pode ou não ser aprovado para uso
terapêutico. A variabilidade entre indivíduos ou populações diminui a utilidade de um
fármaco, mesmo que seu nível de efeito global seja satisfatório. Estudos
farmacoepidemiológicos também levam em conta a adesão do paciente ao tratamento e
outros fatores que se aplicam quando o medicamento é usado em condições reais.
Farmacoeconomia
Esse ramo da economia da saúde visa quantificar, em termos econômicos, os custos e os
benefícios dos fármacos terapeuticamente utilizados. Surgiu do interesse de muitos
governos em fornecer cuidados de saúde financiados por receitas públicas, levantando a
questão sobre quais procedimentos terapêuticos representam o melhor em termos
financeiros. Isso, naturalmente, gerou acirrada controvérsia, porque essa questão, em
última análise, significa atribuir valor monetário à saúde e à longevidade. Como ocorre
com a farmacoepidemiologia, as autoridades regulamentadoras se tornaram cada vez
mais necessitadas de análises econômicas, assim como da demonstração dos benefícios
para o indivíduo, na hora das decisões sobre o licenciamento de fármacos. Para mais
informações sobre esse complexo assunto, veja Drummond et al. (1997) e Rascati (2009).
Drummond, M. F., O’Brien, B., Stoddart, G. I., Torrance, G. W. Methods for the Economic Evaluation of Healthcare
Programmes. Oxford: Oxford University Press; 1997. (Apresentação dos princípios gerais da avaliação dos custos econômicos e benefícios da
assistência médica, inclusive da terapêutica baseada em fármacos)
Nebert, D. W., Weber, W. W. Pharmacogenetics. In Pratt W.B., Taylor P., eds.: Principles of Drug Action, third ed., New
York: Churchill-Livingstone, 1990. (Registro detalhado dos fatores genéticos que afetam as respostas aos fármacos, com muitos exemplos obtidos da
literatura que antecede o surgimento da genômica)
Porter, R. The Greatest Benefit to Mankind. London: Harper-Collins; 1997. (Excelente e agradável descrição da história da medicina, com um
bom relato do desenvolvimento inicial da farmacologia e da indústria farmacêutica)
Strom B.L., ed. Pharmacoepidemiology, fourth ed., Chichester: Wiley, 2005. (Livro escrito por vários autores que abrange todos os
aspectos de uma disciplina nova e inclui os aspectos de farmacoeconomia)
Walsh, G. Biopharmaceuticals: Biochemistry and Biotechnology. Chichester: Wiley; 2003. (Um bom texto introdutório que abrange
muitos aspectos da terapêutica baseada na biotecnologia)
1
Como a maioria das definições, essa também tem suas limitações. Por exemplo, há uma quantidade de complementos
alimentares fundamentais, como ferro e diversas vitaminas, que são usados como medicamentos. Além disso, alguns
produtos biológicos (p. ex., epoietin) apresentaram uma variação entre lotes de sua constituição química que influencia,
de forma significativa, suas propriedades.
2
Atualmente, esse nome persiste em algumas universidades antigas, estando relacionado com disciplinas a que
poderíamos chamar de farmacologia clínica.
3
O eminente médico Oliver Wendell Holmes escreveu em 1860: “... acredito firmemente que, se todas as substâncias
medicinais usadas atualmente fossem depositadas no fundo do mar, seria a melhor coisa para a humanidade e a pior para
os peixes” (Porter, 1997).
4
Algumas substâncias sintéticas conquistaram grande importância farmacológica muito antes do início da era da química
sintética. O éter dietílico, inicialmente preparado como “óleo doce de vitríolo” no século XVI, e o óxido nitroso, preparado
por Humphrey Davy em 1799, foram usados para animar festas antes de serem introduzidos como agentes anestésicos
em meados do século XIX (Cap. 41). O nitrito de amila (Cap. 21) foi obtido em 1859 e pode reivindicar o posto de
primeira substância terapêutica “racional”; seu efeito terapêutico na angina foi previsto com base em seus efeitos
fisiológicos – uma verdadeira “droga de farmacologista” e um precursor malcheiroso dos nitrovasodilatadores, que são
amplamente utilizados hoje em dia. A aspirina (Cap. 26), a droga terapêutica mais amplamente empregada na história, foi
sintetizada inicialmente em 1853, sem finalidade terapêutica em mente. Foi redescoberta em 1897, nos laboratórios da
companhia alemã Bayer, que estava buscando um derivado menos tóxico do ácido salicílico. A Bayer comercializou a
aspirina em 1899 e fez fortuna.
5
Alguns de nossos mais distintos pioneiros na área da farmacologia fizeram carreira na indústria: por exemplo, Henry
Dale, que lançou os fundamentos de nossos conhecimentos sobre transmissão química e sistema nervoso autônomo
(Cap. 12); George Hitchings e Gertrude Elion, que descreveram o princípio dos antimetabólitos e produziram os
primeiros fármacos antineoplásicos eficazes (Cap. 56); e James Black, que introduziu os primeiros antagonistas dos β-
adrenoceptores e dos receptores H2 da histamina (Caps. 13 e 17). Não é por acaso que neste livro, no qual focalizamos os
princípios científicos da farmacologia, a maioria de nossos exemplos sejam produtos da indústria, e não da natureza.
6
A UK Medicines and Healthcare Regulatory Agency (MHRA, a agência reguladora dos produtos de saúde e
medicamentos no Reino Unido) exige evidências detalhadas da eficácia terapêutica com base em ensaios clínicos
controlados antes de um novo fármaco ser registrado, mas não existem dados de ensaios clínicos de produtos
homeopáticos ou de medicamentos à base de plantas à venda antes do “Ato Médico” de 1968 (Medicines Act).