O Dever
O Dever
Já evoquei em outra crônica minhas idas à redação de O Progresso pela mão de meu pai. O
cheiro da tinta, os tipógrafos de avental e olhar concentrado, compondo tipo a tipo textos de toda
a natureza e qualidade. Linhas lentamente montadas por hábeis mãos no componidor, trechos
amarrados, provas extraídas e posterior montagem na impressora, a velha Marinoni, inicialmente
movida por força humana, mais tarde motorizada.
Sei que já mencionei Seu Gentil e Seu Lindolfo a trabalhar na oficina do jornal. São figuras
inolvidáveis para o menino que hoje tem cabelos poucos e grisalhos. Que sorte a de ter
convivido com pessoas daquela qualidade. Com eles não desapareceu apenas uma geração,
mas um estilo de ver a vida e de vivê-la. As páginas eram impressas lentamente e na sexta-feira
a edição estava pronta para distribuição, quase como um milagre semanal.
Era comum o intercâmbio entre jornais, quase todos do Rio Grande do Sul. Analisá-los era uma
forma de acompanhar o desenvolvimento gráfico, da diagramação ao conteúdo. Um dos
periódicos era português. Acho que passamos a recebê-lo por obra de um montenegrino que
residia em Portugal por conta de seu trabalho em nossa Embaixada naquele país.
Quinzenal, O Dever chegava com regularidade britânica. Sua linha editorial privilegiava
colunistas e notícias locais, festividades e um pouco da vida comunitária. Sua linha era católica e
seu editor, nos últimos anos, era Padre Veríssimo.
Rendo graças à vida por ter visitado a cidade de O Dever: Figueira da Foz, um balneário muito
bonito, com faixa de areia excepcionalmente larga e trilhas de madeira, caprichadas, a permitir o
fácil acesso até as águas do Atlântico.
Tão logo nos instalamos no hotel, procurei a redação de O Dever. O endereço estava certo, mas
ninguém atendeu. Fui à Igreja vizinha e indaguei do jornal na secretaria. Não mais existe. Padre
Veríssimo, seu editor, temia pelo fim de tão antigo veículo de comunicação. Temia que findasse
sob sua administração. Deus o poupou desta lástima. Mas assim que faleceu o jornal cerrou
suas páginas. A tal pandemia acelerara sua morte e sua sobrevivência já onerava os modestos
fundos da paróquia.
Encaro estes pequenos jornais como sementeiras, para cuja manutenção são conclamados os
homens de boa vontade. Quando estes escasseiam, a sentença de morte é proclamada, ainda
que seu cumprimento demore anos, ou mesmo décadas, até que a guilhotina da laicidade caia,
legando ao esquecimento a obra de verdadeiras estufas de valores.
Antes de deixarmos Figueira da Foz visitamos seu Museu do Mar. O tema me atrai e nesta casa
de cultura em particular tive a oportunidade de aprender um pouco sobre a pesca do bacalhau
pelos heróicos portugueses. Sugiro que assistam o vídeo denominado “Os solitários homens dos
doris” (https://www.youtube.com/watch?v=R4ivTjzhM5Q). As campanhas de pesca do bacalhau
tomavam em média seis meses, entre abril e outubro. As embarcações pesqueiras dirigiam-se à
região entre a canadense Terra Nova e a Groenlândia. Uma aventura duríssima, da qual os que
se lançavam não tinham a certeza de que voltariam.
Assim que o navio fundeava, os doris - pequenas embarcações ocupadas por um só homem,-
eram lançados ao mar. Cada pescador seguia uma direção, estendendo sua linha com algo em
torno de mil anzóis. Observar seu esforço e suas jornadas diárias de quase vinte horas, por
meses a fio, sob intempéries, mar agitado e extremo frio, tem o dom de nos fazer reconhecer a
bravura desta gente. Serve como remédio para a doença dos brasileiros que menosprezam suas
origens.
Tanta coragem, tanto sofrimento e tanta fé mereceram versos de Fernando Pessoa: “Ó mar
salgado, quanto do teu sal / São lágrimas de Portugal! Por te cruzarmos, quantas mães
choraram, / Quantos filhos em vão rezaram! / Quantas noivas ficaram por casar / Para que
fosses nosso, ó mar!”.