Admin,+2908 10463 1 CE
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Carlos Palácio SJ
ABSTRACT: The two great transformations that characterize the present moment
of western society – the cultural mutation and the religious mutation – are
profoundly repercussive in Christianity. The analysis of both permits
acknowledging the true challenges that the Christianity of the future must
face. The core of the actual crisis is, therefore, the end of an historical
figure of Christianity. To construct a new figure, it is necessary to return
* Este texto retoma – completando-a, mas sem modificar-lhe o estilo – a conferência feita
no Congresso sobre "O Cristianismo na América Latina e no Caribe", em julho de 2003
em São Paulo.
173
to what constitutes the originality of Christian fact. The future of
Christianity in Latin America, as an integral part of that history, could only be
thought upon in its specificity by taking that issue into consideration.
1
A título de amostra, eis algumas indicações bibliográficas que são também exemplo
dessa diversidade de interpretações: M. de CERTEAU / J. M. DOMENACH, Le
christianisme éclaté. Paris: Seuil, 1974; J. DELUMEAU, Le christianisme va-t-il mourir?
174
que nela está em jogo para a fé cristã e para o futuro do cristianismo2. De
maneira muito breve e sintética, poderíamos resumir a situação atual a
partir de duas grandes transformações que caracterizam o momento pre-
sente da sociedade ocidental e repercutem profundamente no cristianismo:
uma mutação cultural de dimensões mundiais e uma mutação religiosa de
proporções nunca dantes conhecidas.
175
que afeta não só os indivíduos mas a sociedade como um todo. Não é por
acaso que as questões mais fundamentais do ser humano (o por que e o
para que da existência, o destino do ser humano, o valor da pessoa etc.)
voltam a ser colocadas com toda a sua força. E são discutidos com renova-
do interesse velhos problemas filosóficos como a questão da verdade, a
ética, a transcendência etc. Indício evidente de que o que está em jogo é a
visão do mundo como um todo, o modo de entender a vida humana, a
história, a sociedade, o cosmo.
É o que vem à tona num outro traço característico da nossa época que
começou com a tomada de consciência ecológica e a necessidade de prote-
ger o meio ambiente, mas foi se dilatando até a preocupação do ‘cuidado
com a terra’ como espaço comum da humanidade: é necessário e urgente
estabelecer uma ‘nova aliança’ dos seres humanos com a natureza se qui-
sermos preservar o futuro da vida e a sua qualidade humana. Esta consci-
ência impõe-se cada vez com mais força nas diversas sociedades e culturas,
apesar das grandes resistências que encontra na cegueira dos diversos gru-
pos interessados em explorar economicamente a natureza, como se ela fosse
uma fonte inesgotável de ‘recursos’.
176
hoje os modernos meios de transporte e a divulgação imediata de todo e
qualquer acontecimento através da transmissão instantânea pelos meios de
comunicação operam uma espécie de ‘redução’ do espaço e do tempo in-
finitos a dimensões que podem ser administradas por qualquer pessoa. O
mundo, como previra McLuhan, torno-se uma pequena ‘aldeia global’ ao
alcance da mão. Não é exagerado afirmar que hoje con-vivemos – em
tempo real e, sem dúvida, virtualmente – com pessoas e acontecimentos
que chegam a nós de países e culturas que até há pouco nos resultavam tão
distantes quanto misteriosos.
Não vem ao caso discutir agora se essa evolução estava inscrita nos pres-
supostos filosóficos da modernidade ou se foi fruto de condicionamentos
históricos contingentes. Em qualquer hipótese, a ‘situação espiritual’ da
177
sociedade moderna, em si mesma, dá a pensar. Essa busca do sagrado, que
assume de fato as formas mais contraditórias, é inseparável da crise de
sentido na qual mergulhou a sociedade ocidental. O que poderia significar,
por um lado, que a in-transcendência da vida, esse confinamento do indi-
víduo no horizonte estreito da imanência, acaba sufocando a pessoa e se
torna insuportável. E, por outro, poderia ser a prova de que não é tão fácil
para o ser humano abafar por completo a transcendência que o habita, sem
que isso signifique que a questão de Deus tenha sido resolvida. Pelo con-
trário, é no âmago dessa crise que devem ser buscadas as causas dessa
formidável transformação cultural do religioso que caracteriza a sociedade
ocidental.
O primeiro estava implícito no que acima foi dito sobre a mutação cultural:
a virada antropocêntrica levava consigo uma transformação das relações
do sujeito moderno com a transcendência, o que se tornou manifesto no
deslocamento social da religião. Ela não tem mais na sociedade moderna
uma função de justificação. A sociedade organiza-se, em todas as suas di-
mensões (sociais, políticas, econômicas e culturais), segundo os critérios
por ela mesma estabelecidos, o que em si mesmo representa uma conquis-
ta: a necessária distinção e separação entre as esferas social e religiosa, e
a justa afirmação da autonomia da sociedade com relação à Igreja.
178
derna a partir dos anos 60 do século passado. É difícil explicar as causas
desta inesperada efervescência religiosa4. Mas não se pode negar que ela
tenha alguma relação com a crise de sentido que afeta não só os indivíduos,
mas a sociedade como um todo. É como se, sufocado pela in-transcendência
da vida e cansado já dos seus projetos de auto-salvação, o homem moderno
vislumbrasse nessa redescoberta do religioso uma porta para sair de si, para
transcender-se, na busca de respostas para as suas necessidades subjetivas: as
questões fundamentais da vida, da morte, do sentido e do amor.
4
Para uma compreensão do fato e das suas possíveis interpretações, ver J. B. LIBANIO,
A religião no início do milênio, São Paulo: Loyola, 2002.
179
entre as grandes religiões da humanidade, a aparente univocidade da lingua-
gem (divino, transcendência, Deus, realidade última, experiência mística
etc.) esconde experiências diferentes de Deus, da relação do sujeito com
Deus e com o mundo, da salvação etc. que não são intercambiáveis. Pode
o moderno sujeito ocidental, marcado pela tradição cristã de Deus, conten-
tar-se com uma transcendência que não seja pessoal? Pode ele renunciar à
sua condição de ‘pessoa’ diante de Deus e à sua responsabilidade pela
história? É suficiente (para esse ser humano concreto que é o sujeito mo-
derno ocidental) perder-se no Todo ou mergulhar na Plenitude cósmica
para realizar a busca de transcendência?
5
É o que aparece claramente na maleabilidade a que é submetida a linguagem religiosa
tradicional. Como acontece, por exemplo, com o termo "mística", utilizado para designar
as experiências mais disparatadas. Mas a mesma observação caberia a propósito de
termos como experiência religiosa, espiritualidade, transcendência e mesmo sobre a
palavra Deus.
6
Como exemplo dessa reapropriação das categorias cristãs, interpretadas dentro do
horizonte da imanência, ver L. FERRY, L’homme-Dieu, ou le Sens de la Vie, Paris:
Bernard Grasset, 1996. Para um interpretação desse fenômeno, ver J.MARTIN VELASCO,
Metamorfosis de lo Sagrado y futuro del cristianismo, Santander: Sal Terrae, 1998.
180
mente para caracterizar a ruptura introduzida na consciência religiosa da
humanidade pelo surgimento das grandes religiões, aproximadamente en-
tre 800 e 200 a.C. Numa mesma área geográfico-cultural (China, Índia, o
atual Irã; Grécia e Israel no Mediterrâneo), e simultaneamente, teve lugar
uma radical transformação da visão do mundo que estava ligada à depu-
ração da idéia do divino e mudou a maneira humana de relacionar-se com
a transcendência7. Os efeitos dessa mutação marcaram o curso da história
e da civilização até hoje, no âmbito sociocultural e no âmbito religioso. As
profundas transformações pelas quais passa hoje o Ocidente, tanto do pon-
to de vista cultural como religioso, tornam tentadora essa aproximação.
Tanto mais que, uma das características do nosso tempo, é a aproximação
entre as mesmas culturas e religiões que fazem parte daquela mesma área
na qual teve lugar aquela primeira mutação. Não estaríamos vivendo hoje,
pelo menos no Ocidente, uma mudança semelhante?
3 - Balanço provisório
Não é necessário um grande esforço para perceber que essas transforma-
ções – cultural e religiosa – da modernidade afetam profundamente o cris-
tianismo e o obrigam a repensar-se na sua totalidade. A título de primeira
conclusão é suficiente acenar para as duas principais repercussões que essa
transformação acarreta para o cristianismo: o seu deslocamento social e a
questão da sua identificação com a cultura ocidental.
7
É o que poderíamos chamar a emergência da consciência individual que levava consigo
a afirmação da pessoa diante da coletividade e dos seus condicionamentos,e, do ponto de
vista religioso, uma maneira nova de relacionar-se com a transcendência: a tomada de
consciência do destino pessoal e a busca da salvação.
8
A rigor, depois da reforma protestante no séc. XVI, haveria que falar de "igrejas
cristãs" e não de cristianismo como realidade única no ocidente. É verdade, porém, que
a posição numericamente dominante da Igreja católica acabou por tornar quase sinôni-
mos catolicismo e cristianismo, de modo que até hoje, no âmbito católico pelo menos,
tendem a ser identificados como uma coisa só.
181
Até hoje, é difícil para o cristianismo – pelo menos para a Igreja católica –
assimilar todas as conseqüências desse deslocamento, o que, por um lado,
é compreensível, mas, por outro, lamentável. Compreensível, porque ele
significa a perda do lugar privilegiado que a Igreja ocupou durante tantos
séculos na sociedade ocidental, com todas as vantagens que dele decorri-
am: visibilidade, poder, influência na configuração da vida social entre
outros. Mas lamentável, porque essa resistência gera animosidade e anti-
patia contra a Igreja e em nada contribui para que ela se situe nessa nova
realidade social e encare, em bases novas, a evangelização da nova situa-
ção cultural. Mas a aceitação desse deslocamento significaria reconhecer e
aceitar o fim de um cristianismo sociológico e de uma visão prioritariamente
institucional e hierárquica da Igreja.
9
Quer as que não foram feitas ou abortaram depois do Concílio Vaticano II, quer
problemas pendentes e nunca resolvidos como o direito da pessoa, a liberdade e o diálogo
182
totalidade do cristianismo a partir de novos pressupostos. Tarefa ingente,
para a qual a maioria dos cristãos, a julgar pelo que acontece, não estamos
ainda preparados. Sem termos realizado ainda a transposição do cristianis-
mo tradicional para o horizonte da modernidade, somos solicitados já a
repensar e traduzir a fé no contexto da pós-modernidade.
Mas não podemos esquecer que a fé cristã já deu mais de um passo nessa
busca de novos caminhos. Por outro lado, não é a primeira vez na sua
história que o cristianismo encontra-se diante de uma situação crítica, de
crise, crucial e, portanto, de encruzilhada. Em tais situações nunca faltaram
prognósticos sobre ‘o fim do cristianismo’. Mas não parece que eles se
tenham realizado, o que não pode servir como consolo fácil nem diminui
em nada a responsabilidade que nos cabe neste momento histórico. Mas
nos alivia de um peso que resultaria insuportável se o futuro dependesse
só de nós. O cristão não é otimista por fechar os olhos à dureza da reali-
dade. Essa seria uma cegueira irresponsável. O cristão é otimista por exces-
183
so, não por defeito. A sua esperança está fundada na experiência de uma
promessa que já deu provas da sua fidelidade maior. É ela que nos permite
ir até as raízes da crise atual e encarar sem medo as respostas que ela está
a exigir10.
10
O historiador francês J. Delumeau já se perguntava há mais de 25 anos se haveria
futuro para o cristianismo na sociedade atual: Le christianisme va-t-il mourir?, Paris:
Hachette, 1977. Profundo conhecedor da história cristã, a honestidade e a lucidez das
suas análises não lhe impediram encontrar a verdadeira razão da sua esperança: os ricos
veios evangélicos que percorrem a história cristã. O cristianismo revive cada vez que
renuncia ao poder e à riqueza para voltar à transparência do evangelho. Não deveria ser
esse também hoje o critério de todas as nossas buscas?
184
cristianismo não teria ultrapassado os limites do judaísmo nem teria che-
gado até nós. Mas essa ousadia significou romper muitas das amarras que
o prendiam ao passado e aceitar um ‘começo novo’.
2 - O que é ‘cristão’?
11
Não se trata de estabelecer aqui uma discussão teórica sobre a identidade cristã.
Baste, para o nosso objetivo, chamar a atenção sobre os estereótipos com que ela pode
estar carregada num momento em que se trata precisamente de repensar a totalidade
da fé cristã. Uma síntese breve e clara da questão pode ser encontrada em J. B. LIBANIO,
Olhando para o futuro, op. cit., pp. 30-43. Ver também, C. PALÁCIO, "A identidade
problemática", Perspectiva Teológica 21 (1989) 171-176 e idem, A originalidade singular
do cristianismo, Perspectiva Teológica 26 (1994) 311-339, espec. 321 ss.
185
Um rápido percurso pelas transformações semânticas do conceito ‘cristia-
nismo’ permite compreender os deslocamentos de sentido que sofreu ao
longo da história e as marcas que nele ficaram dessas transformações. O
simples recurso à etimologia nos revela que a palavra ‘cristianismo’
(christianismós) é derivada de ‘cristão’ (christianós). ‘Cristão’, como é sa-
bido, era o nome cunhado em ambi nte pagão e helenístico (At 11, 26) para
designar os seguidores de Jesus, por eles denominado ‘Cristo’. Mas eram
os pagãos os que utilizavam o termo para referir-se ao movimento sus-
citado por Jesus. ‘Movimento’, ou, na bela expressão dos Atos dos Após-
tolos, “adeptos do caminho” (9, 2), i.é.; um modo de ser, um estilo de
vida, um ethos enfim, que encontrava a sua razão de ser numa existência
concreta: a pessoa e a vida de Jesus de Nazaré com tudo o que ela im-
plicava.
Nas suas origens, portanto, o cristianismo não era visto, em primeiro lugar,
como um culto, uma doutrina ou uma nova religião; não se identificava
com uma raça nem podia ser delimitado a um espaço cultural ou socioló-
gico. A ‘diferença’ cristã, como alternativa ao que eram os judeus ou os
pagãos, transparecia e se afirmava com a vida.
186
tianismo’ fosse utilizado aos poucos para reunir num denominador co-
mum as diversas ‘confissões cristãs’. Depois, nos sécs. XVII e XVIII, em
face aos livre-pensadores, por um lado, e ao crescente interesse teórico por
outras religiões que não a cristã, a palavra ‘cristianismo’ acabou sendo um
simples sinônimo de ‘religião cristã’. Acepção esta, aliás, que conserva até
hoje. Na sua abstração – destino de todos os vocábulos construídos com
‘ismos’ – ele não deixa mais transparecer a realidade concreta que lhe deu
origem: a vida de Jesus de Nazaré, na sua totalidade. E além disso encobre
realidades extremamente heterogêneas nas quais se refratou a figura his-
tórica do cristianismo ocidental12.
3 - As lições da história
Este rápido desvio pela semântica das palavras manifesta com clareza que
a questão da identidade não pode ser colocada só de maneira teórica. O
cristianismo – e com ele a identidade cristã – só existe na sua condição
concreta, histórica, encarnada. Da mesma forma que não existe um cris-
tianismo puramente ‘sociológico’, tampouco existe um cristianismo qui-
micamente puro, espiritual, ideal. É através da encarnação da experiência
cristã – encarnada e, por isso, limitada – que temos acesso ao que é
‘cristão’. A teologia poderá elaborar teoricamente a ‘identidade cristã’,
mas esta, na sua condição histórica, nunca poderá ser totalmente
transparente.
12
Para a maioria das pessoas, o termo ‘cristianismo’ é uma nebulosa que envolve cato-
licismo, protestantismo e, para alguns mais letrados talvez, as igrejas ortodoxas orien-
tais. Ou, na definição do Aurélio, ‘o conjunto das religiões cristãs’. Só que nesse conjunto
estão não só o catolicismo e as igrejas do protestantismo histórico, mas também as
igrejas evangélicas e a infinidade de denominações pentecostais. Que significa, então, a
palavra ‘cristianismo’? É possível reduzir essa heterogeneidade a uma unidade coerente?
187
mo tem que aprender a discernir em si mesmo o que é e o que não é
cristão. Na ‘identidade histórica acumulada’ do cristianismo nem tudo é
transparência do evangelho. O percurso semântico feito acima manifesta
muitas aderências nada ‘cristãs’, incrustadas ao longo da história, não só
no termo mas na vida da Igreja. E que deixaram marcas profundas que nos
condicionam até hoje. Basta lembrar, a título de exemplo, a presença obses-
siva no imaginário cristão do mito da cristandade como ideal do cristianis-
mo. Além de ter sido muito mais um sonho do que uma realidade, essa
concepção do cristianismo deixou seqüelas indeléveis (como a primazia do
quantitativo e mensurável sobre o qualitativo e a predileção pelo
institucional como forma de visibilidade do ‘cristão’) que até hoje o tempo
não apagou. Ou ainda, a progressiva ‘eclesialização’ do cristianismo du-
rante toda a época moderna (com o predomínio do hierárquico, e por
conseguinte, da autoridade e do poder, em detrimento da comunhão entre
iguais) e a inevitável, embora indevida, identificação do ‘eclesial’ com o
‘eclesiástico’.
13
Para um desenvolvimento desta problemática ver C. PALÁCIO, "Filosofia e cristianis-
mo", Síntese v. 18, n. 55 (1991) 505-526
188
e aceitar mas sem impacto na vida14. Não por acaso a iniciação cristã perdeu
o seu lado ‘mistagógico’, de iniciação à experiência, para reduzir-se ao ensino
da doutrina cristã: a catequese. Desequilíbrio histórico, não teórico, da ‘iden-
tidade cristã’ cujo eco ressoa até hoje na preocupação com a ‘verdade’ e na
obsessão com a ‘ortodoxia’. Como se a única e plena ortodoxia não exigisse
também uma ortopráxis, uma vida coerente com aquilo que se confessa.
Por isso não vem ao caso reeditar neste momento a distinção barthiana –
cômoda, mas ineficaz para um discernimento – entre ‘fé’ e ‘religião’. Dizer
que o cristianismo é ‘fé’ e não ‘religião’ é uma resposta formal que não dá
conta de explicar por que foi identificado como uma religião. A resposta a
essa pergunta não pode ser dada a priori, porque ela surge na história, nos
momentos em que a identidade cristã deixa de ser clara e evidente. Como
é o nosso caso hoje. Não só porque o cristianismo deixou de ser a ‘religião’
única – e mais de uma vez ‘oficial’ – do Ocidente, mas pela armadilha que
representa para a identidade cristã a efervescência religiosa e espiritual da
sociedade contemporânea. Pode o cristianismo ser equiparado a essas ex-
periências ‘religiosas’? Tudo indica que os ‘deuses’ – as experiências ‘reli-
giosas’ – social e culturalmente corretos hoje pouco ou nada têm a ver com
o Deus de Jesus Cristo, que, em definitivo, constitui o cerne da ‘diferença’
cristã.
14
A teologia tradicional é um bom exemplo dessa obsessão sistemática. Ver C. PALÁ-
CIO, Deslocamentos da teologia, mutações do cristianismo, São Paulo: Loyola, 2001, pp.
15-23.
189
III - Discernir as situações para recompor a experiência
190
Não como ‘modelo’ a ser exportado, mas como ‘espelho’ no qual se po-
dem contemplar outras Igrejas particulares. Foi, de fato, a Igreja da
América Latina a primeira a abrir uma brecha para tornar possível, den-
tro da rígida uniformidade eclesial, uma maneira diferente de ser Igreja
e de pensar a fé a partir da sua particularidade. Talvez sem pretendê-lo
conscientemente, mas movida pela sua missão. De fato, a Igreja latino-
americana teve que submeter à crítica o que tinha sido a evangelização
tradicional, aceitar que a fé podia estar contaminada por ideologias que
a condicionavam, e repensar o anúncio como verdadeira ‘missão’, não só
a ‘pagãos’ mas a ‘cristãos acostumados’ (senão acomodados). Foi o cho-
que salutar produzido pela tomada de consciência que significava a ‘op-
ção pelos pobres’.
191
deiramente novas e capazes de responder aos atuais desafios. E ainda
porque parece estar sendo alimentada com certas iniciativas que se servem
dos meios de comunicação.
Relacionada com esse problema, mas sem confundir-se com ele, está a
questão nunca respondida do ‘catolicismo popular’, que não se limita às
classes populares. Não vem ao caso discutir o problema sob esse prisma.
É certo, contudo, que, em termos de futuro, a iniciação cristã e a experiên-
cia vivida da fé terão que enfrentar-se, mais cedo ou mais tarde, com a
questão do ‘núcleo duro da fé’, ou seja, com o que é verdadeiramente
essencial e constitutivo de uma autêntica experiência cristã de fé: o encon-
tro com Jesus Cristo e a novidade que ele introduz em termos de relação
com Deus e de presença no mundo. A fragilidade de uma vida cristã
construída ao redor de elementos periféricos não resiste às críticas e às
suspeitas da modernidade e expõe cada vez mais a fé aos assaltos de
outras propostas religiosas. Não seria essa a resposta radical e verdadei-
ramente eficaz ao problema da diminuição numérica dos cristãos católi-
cos?
192
hoje com força, numa sociedade cada vez mais consciente da sua diversi-
dade cultural e religiosa. Como inculturar de verdade o anúncio do evan-
gelho?
A rigor, essa realidade nunca foi enfrentada com a seriedade que mere-
ceria. Talvez porque não era possível até este momento. Mas ela não
pode mais ser eludida. A cômoda distinção entre ‘catolicismo oficial’ e
‘catolicismo popular’ era uma forma de ocultar o problema ou de tran-
qüilizar a consciência das autoridades religiosas. O cristianismo vivido
era outro. E, aparentemente, sem problema para as pessoas que realizam
as suas combinações, transitando à vontade pelas diferentes matrizes e
fazendo as próprias ‘sínteses’. O catolicismo puro nunca existiu, a não
ser, talvez, na cabeça de alguns teólogos ou pastores. O catolicismo bra-
sileiro foi sempre sincrético. De diversas formas. Nem mais nem menos
sincrético do que foi sincrético o cristianismo a partir das conversões em
massa dos povos bárbaros ou do que era o cristianismo medieval que
chegou até nós.
193
compreender de uma maneira dinâmica a própria identidade cristã, não
como algo definido a priori e para sempre, mas como um processo de
sínteses próprias e originais.
Não se pode descartar, a priori, que estas duas concepções possam estar
presentes entre os cristãos na hora de pensar o futuro. Mesmo porque
somos inevitavelmente filhos da nossa época. A primeira é a tentação dos
grupos conservadores e a dos movimentos neo-conservadores, que são a
sua versão ‘moderna’. A incapacidade de compreender o que está em jogo
no atual momento histórico leva-os a exaltar de maneira cega o passado.
Erro de diagnóstico ou insegurança, pouco importa, eles só conseguem
oferecer respostas antigas para problemas inéditos. Mas, se a única forma
de responder às interpelações do presente é a restauração do passado, que
novidade poderia esperar-se ainda do futuro? Para essa forma de pensar,
o futuro só pode ser entendido como uma repetição monótona do passado
que se prolongaria indefinidamente no presente.
194
futuro imaginário que os exime de carregar o presente nos seus ombros,
para encarregar-se dele e assim transformá-lo.
195
Por isso, qualquer realidade – mesmo a mais desfigurada – está grávida de
uma ‘reserva de sentido’; é mais do que a vida deixa transparecer. Uma
das grandezas do fato cristão é ter libertado a história do fatalismo e da
necessidade, precisamente porque nela há sempre lugar para o imprevisível
de Deus. O futuro, em termos cristãos, não pode ser ‘projetado’ porque não
o dominamos; é advento, algo que nos chega como dom, como graça que
nos surpreende, algo que ad-vém a nós, que está por-vir. Eis por que só
pode ser inédito: verdadeira criação, fruto da abertura responsável da li-
berdade humana à promessa e ao dom de Deus.
196