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Artigos

Persp. Teol. 36 (2004) 173-196

O CRISTIANISMO NA AMÉRICA LATINA


DISCERNIR O PRESENTE PARA PREPARAR O FUTURO*

Carlos Palácio SJ

RESUMO: As duas grandes transformações que caracterizam o momento presente


da sociedade ocidental – a mutação cultural e a mutação religiosa – repercutem
profundamente no cristianismo. Sua análise permite tomar consciência dos verda-
deiros desafios que o cristianismo terá que enfrentar do futuro. O cerne da crise
atual é, pois, o fim de uma figura histórica de cristianismo. Para construir uma
nova figura é preciso voltar ao que constitui a originalidade do fato cristão. O
futuro do cristianismo na América Latina, como parte integrante dessa história, só
poderá ser pensado na sua especificidade, levando-se em consideração essa pro-
blemática.
PALAVRAS-CHAVE: cultura ocidental, religiosidade moderna, cristianismo histó-
rico, identidade cristã, perspectiva latino-americana.

ABSTRACT: The two great transformations that characterize the present moment
of western society – the cultural mutation and the religious mutation – are
profoundly repercussive in Christianity. The analysis of both permits
acknowledging the true challenges that the Christianity of the future must
face. The core of the actual crisis is, therefore, the end of an historical
figure of Christianity. To construct a new figure, it is necessary to return

* Este texto retoma – completando-a, mas sem modificar-lhe o estilo – a conferência feita
no Congresso sobre "O Cristianismo na América Latina e no Caribe", em julho de 2003
em São Paulo.

173
to what constitutes the originality of Christian fact. The future of
Christianity in Latin America, as an integral part of that history, could only be
thought upon in its specificity by taking that issue into consideration.

KEY WORDS: western culture, modern religiosity, historical Christianity, Christian


identity, Latin-American perspective.

C omo abordar o problema do futuro do cristianismo quando se é cons-


ciente da complexidade do atual momento histórico? É possível falar
desse futuro sem ser visionário? Ou trata-se apenas de um exercício de
imaginação? Da minha parte devo confessar que não sou visionário nem
filho de visionário. E que a minha imaginação não é das mais fecundas para
criar cenários de futuro. Apesar de tudo, pensar o futuro do cristianismo é um
ato de responsabilidade teológica. Para todo cristão. E de modo especial para
esse cristão reflexivo que é o teólogo. Mas como pensá-lo?

Seria impossível abordar a questão do futuro do cristianismo na América


Latina sem passar por uma análise da situação atual do cristianismo como
um todo. Afinal, querendo ou não, são muitas as formas em que essa situ-
ação nos condiciona, como nos condicionou a herança do cristianismo
colonial que aqui foi implantado. Eis, pois, quais serão os passos desta
apresentação: a) uma rápida análise da situação atual do cristianismo, em
primeiro lugar, para recolher as interpelações que nos vêm da realidade; b)
a seguir, uma reflexão sobre o cerne da crise atual: o ocaso de uma figura
histórica do cristianismo e a necessidade de uma nova re-configuração;
para terminar c) com algumas rápidas considerações sobre o futuro do
cristianismo na América Latina.

I - O cristianismo e a situação cultural e religiosa do


mundo atual

Há muito tempo que o pensamento contemporâneo, mesmo não cristão,


preocupa-se com a situação atual do cristianismo. Pouco importa saber se
a crise atual é mais ou menos grave do que outras pelas quais já passou o
cristianismo ao longo da história. Nem se trata de tomarmos posição aqui
diante das diversas interpretações possíveis dessa situação1. Para o nosso
intuito é suficiente tratar de compreender com a maior lucidez possível o

1
A título de amostra, eis algumas indicações bibliográficas que são também exemplo
dessa diversidade de interpretações: M. de CERTEAU / J. M. DOMENACH, Le
christianisme éclaté. Paris: Seuil, 1974; J. DELUMEAU, Le christianisme va-t-il mourir?

174
que nela está em jogo para a fé cristã e para o futuro do cristianismo2. De
maneira muito breve e sintética, poderíamos resumir a situação atual a
partir de duas grandes transformações que caracterizam o momento pre-
sente da sociedade ocidental e repercutem profundamente no cristianismo:
uma mutação cultural de dimensões mundiais e uma mutação religiosa de
proporções nunca dantes conhecidas.

1 - A mutação cultural em primeiro lugar. Ela não diz respeito só às trans-


formações internas pelas quais passou a cultura ocidental ao longo dos
séculos, sobretudo a partir do início da modernidade3; nem ao que, de
maneira um tanto eufemística, se deu em chamar a ‘mundialização da
cultura’ (ocidental!). O que se revela na atual crise da cultura ocidental é
uma mudança radical na sua ‘cosmovisão’ (i.é. na sua autocompreensão
da existência, na sua concepção da vida e da história humanas) que está
inseparavelmente relacionada com uma maneira nova de relacionar-se
com a transcendência, como veremos mais adiante a propósito da ‘muta-
ção religiosa’. Duas transformações profundas cujas repercussões fizeram-
se sentir aos poucos em todos os âmbitos da existência, tanto pessoal como
social. A rapidez vertiginosa com a qual em pouco mais de três décadas
modificaram-se instituições, hábitos, costumes, valores, etc. na socie-
dade ocidental são o indício mais claro de que essas transformações
atingem não só os fenótipos da ‘visão cultural do mundo’ mas modifi-
cam os seus genótipos e colocam-nos, portanto, diante de uma verda-
deira mutação da cultura.

Algumas características dessa situação cultural nos permitem vislumbrar o


alcance dessas transformações, sem que seja possível ainda caracterizar de
forma nítida o perfil da nova cultura em gestação. A mais evidente, talvez,
seja a crise generalizada de valores com o vazio de sentido por ela gerado,

Paris: Hachette, 1977; D. HERVIEU-LEGER, Vers un nouveau christianisme? Introduction


à la sociologie du christianisme occidental, Paris: Cerf, 1986; J. M. MARDONES, El
desafío de la postmodernidad al cristianismo, Santander: Sal Terrae, 1988; J. M.
VELASCO, El malestar religioso de nuestra cultura, Madrid: Paulinas, 1993; P.
VALADIER, Catolicismo e sociedade moderna, São Paulo: Loyola, 1991; A. TORRES
QUEIRUGA, Fim do cristianismo pré-moderno, São Paulo: Paulus, 2003; S. MARTELLI,
A religião na sociedade pós-moderna, São Paulo: Paulinas, 1995. E numa perspectiva
não só pós-moderna, mas pós-cristã: M. GAUCHET, Le désenchantement du monde:
Une histoire politique de la religion, Paris: Gallimard, 1985 e L. FERRY, L’homme-Dieu
ou le sens de la vie, Paris: Grasset, 1996.
2
Uma boa introdução – clara, lúcida e sintética – aos diversos aspectos que estão em
jogo nas relações do cristianismo com a moderna cultura ocidental pode ser encontrada
em J. B. LIBANIO, Olhando para o futuro: Prospectivas teológicas e pastorais do Cris-
tianismo na América Latina, São Paulo: Loyola, 2003 (espec. pp. 5-20 como diagnóstico
e pp. 45-51 para algumas das interpretações possíveis).
3
Cronologicamente costuma-se indicar o séc. XVII como o começo da Modernidade,
embora as suas raízes remontem muito antes no tempo. Ver o ensaio póstumo de H. C.
de LIMA VAZ, Raízes da modernidade, São Paulo: Loyola, 2002 (espec. pp. 11-30).

175
que afeta não só os indivíduos mas a sociedade como um todo. Não é por
acaso que as questões mais fundamentais do ser humano (o por que e o
para que da existência, o destino do ser humano, o valor da pessoa etc.)
voltam a ser colocadas com toda a sua força. E são discutidos com renova-
do interesse velhos problemas filosóficos como a questão da verdade, a
ética, a transcendência etc. Indício evidente de que o que está em jogo é a
visão do mundo como um todo, o modo de entender a vida humana, a
história, a sociedade, o cosmo.

É o que vem à tona num outro traço característico da nossa época que
começou com a tomada de consciência ecológica e a necessidade de prote-
ger o meio ambiente, mas foi se dilatando até a preocupação do ‘cuidado
com a terra’ como espaço comum da humanidade: é necessário e urgente
estabelecer uma ‘nova aliança’ dos seres humanos com a natureza se qui-
sermos preservar o futuro da vida e a sua qualidade humana. Esta consci-
ência impõe-se cada vez com mais força nas diversas sociedades e culturas,
apesar das grandes resistências que encontra na cegueira dos diversos gru-
pos interessados em explorar economicamente a natureza, como se ela fosse
uma fonte inesgotável de ‘recursos’.

Por trás dessa tomada de consciência há uma reação contra a concepção


puramente funcional, utilitarista e instrumental da natureza em nome das
possibilidades ilimitadas da ciência e da técnica, e uma rejeição aberta do
tratamento predatório imposto à natureza pela fome devoradora da
tecnologia moderna. Em definitivo, a raiz última dessa crítica é a crise da
própria razão moderna e o ocaso das ideologias por ela segregadas: o fra-
casso do que se poderia denominar ‘projeto da modernidade’ (com as suas
promessas de uma sociedade do bem-estar e de riqueza sem limites), o
desencanto com as suas ‘conquistas’ e a conseqüente crítica dos seus pres-
supostos. Essa é a significação do que costuma ser designado como ‘pós-
modernidade’. A ciência e a técnica – versões dominantes da ‘razão moder-
na’ – são incapazes de oferecer ao indivíduo razões para viver, de decifrar-
lhe o sentido da vida e a unidade da sua existência. Ora, sem unidade e
sentido o ser humano não pode viver. Essas contradições explodiram de
maneira patente com a globalização da economia.

Técnica e conhecimentos estão cada vez mais associados à riqueza econô-


mica e ao capital. A ‘globalização da economia’ é, na verdade, a globalização
do capital financeiro – com os desequilíbrios econômicos e sociais que ele
produz – e a prova mais cabal da nova divisão da terra em ‘dois mundos’:
o mundo dos ricos e o dos pobres. Em certo sentido, a crise da cultura
ocidental se tornou ‘mundial’, mas por outro lado, tornou possível – atra-
vés da ciência e da tecnologia – a aproximação entre povos e culturas
muito diferentes.

Essa aproximação de culturas é, sem dúvida, um dos aspectos mais deci-


sivos da situação cultural contemporânea. A mobilidade que permitem

176
hoje os modernos meios de transporte e a divulgação imediata de todo e
qualquer acontecimento através da transmissão instantânea pelos meios de
comunicação operam uma espécie de ‘redução’ do espaço e do tempo in-
finitos a dimensões que podem ser administradas por qualquer pessoa. O
mundo, como previra McLuhan, torno-se uma pequena ‘aldeia global’ ao
alcance da mão. Não é exagerado afirmar que hoje con-vivemos – em
tempo real e, sem dúvida, virtualmente – com pessoas e acontecimentos
que chegam a nós de países e culturas que até há pouco nos resultavam tão
distantes quanto misteriosos.

Esta experiência, unida ao fenômeno crescente das migrações em massa,


dá-nos a medida da riqueza potencial dessa presença e interação mútua
entre as culturas e, ao mesmo tempo, do choque cultural que tal situação
representa. A descoberta do ‘outro’, a pura e simples constatação da sua
‘diferença’ – é por aí que começa a diversidade que representam as cultu-
ras – antes de ser um encontro que enriquece é um confronto perturbador,
um fator que nos des-centra do nosso próprio ponto de vista e da nossa
perspectiva cultural.

É o que aconteceu com a cultura ocidental. E é um dos fatores que expli-


cam a crise que ela atravessa. O contato com outras culturas a obrigou a
des-absolutizar o seu ponto de vista, a reconhecer-se como uma cultura
entre outras muitas, a relativizar a sua pretensão de ser uma cultura ‘su-
perior’, a cultura tout court, ‘universal’ por excelência. E a aceitar que ela
é simplesmente diferente, mas tão ‘particular’ como as outras, e por isso
capaz de entrar em diálogo, de ser enriquecida e de enriquecer. Isso se
tornou patente no que diz respeito à dimensão religiosa da cultura. Como
explicar senão o fascínio exercido sobre o Ocidente cristão pelas religiões
orientais a partir, sobretudo, da segunda metade do século XX?

2 - A mutação religiosa é o segundo aspecto da transformação cultural do


Ocidente. Ela se tornou manifesta, num primeiro momento, na seculariza-
ção progressiva da sociedade e da cultura, a partir dos anos 60 do século
passado. E, duas ou três décadas depois, contra todas as previsões dos
sociólogos da morte de Deus, veio à tona, de maneira inesperada, no fenô-
meno que os próprios sociólogos denominaram ‘retorno do religioso’ ou
‘revanche do sagrado’. Mas essas oscilações eram só a ponta do iceberg, a
manifestação visível de uma transformação muito mais profunda: a tenta-
tiva da cultura moderna de auto-compreender-se, organizar-se em socieda-
de e construir o sentido da história dentro dos estritos limites da imanência
mundana, banindo assim do seu horizonte qualquer referência à
transcendência.

Não vem ao caso discutir agora se essa evolução estava inscrita nos pres-
supostos filosóficos da modernidade ou se foi fruto de condicionamentos
históricos contingentes. Em qualquer hipótese, a ‘situação espiritual’ da

177
sociedade moderna, em si mesma, dá a pensar. Essa busca do sagrado, que
assume de fato as formas mais contraditórias, é inseparável da crise de
sentido na qual mergulhou a sociedade ocidental. O que poderia significar,
por um lado, que a in-transcendência da vida, esse confinamento do indi-
víduo no horizonte estreito da imanência, acaba sufocando a pessoa e se
torna insuportável. E, por outro, poderia ser a prova de que não é tão fácil
para o ser humano abafar por completo a transcendência que o habita, sem
que isso signifique que a questão de Deus tenha sido resolvida. Pelo con-
trário, é no âmago dessa crise que devem ser buscadas as causas dessa
formidável transformação cultural do religioso que caracteriza a sociedade
ocidental.

Três fatores parecem estar configurando essa ‘situação espiritual’ na qual


pode ser detectada a metamorfose do religioso na sociedade ocidental: o
fator cultural da ‘virada antropocêntrica’ da modernidade, o surpreendente
retorno do religioso reprimido, e o fenômeno do pluralismo religioso como
um dos resultados do encontro entre culturas diferentes. A crise atual é o
resultado da interação desses três fatores.

O primeiro estava implícito no que acima foi dito sobre a mutação cultural:
a virada antropocêntrica levava consigo uma transformação das relações
do sujeito moderno com a transcendência, o que se tornou manifesto no
deslocamento social da religião. Ela não tem mais na sociedade moderna
uma função de justificação. A sociedade organiza-se, em todas as suas di-
mensões (sociais, políticas, econômicas e culturais), segundo os critérios
por ela mesma estabelecidos, o que em si mesmo representa uma conquis-
ta: a necessária distinção e separação entre as esferas social e religiosa, e
a justa afirmação da autonomia da sociedade com relação à Igreja.

Mas essa emancipação prolongou-se até à transcendência. A virada


antropocêntrica colocou o ser humano como centro absoluto de toda a
realidade, ‘princípio e fundamento’ do que é bom, do que tem valor, do que
pode ser admitido e do que deve ser rejeitado. Em outras palavras, o ser
humano não só se entende a partir de si mesmo mas se funda em si mesmo.
E, por isso, pode dispor plenamente de si, do mundo e da história. Esta
inflexão de todo o dinamismo humano para dentro da história não podia
deixar de ter conseqüências na construção do sentido da vida. O vazio de
sentido que aflige a sociedade moderna parece estar mostrando que o ser
humano não se contenta facilmente com as ‘pequenas transcendências’ que
pretendem substituir a verdadeira ‘transcendência maior’. Seja como for,
aqui está o primeiro aspecto de uma profunda transformação do religioso
pelo cultural.

O segundo fator da ‘situação espiritual’ da sociedade atual é o retorno do


religioso de maneira anárquica e sob as formas mais heterogêneas, fenô-
meno nada plausível depois da secularização progressiva da sociedade mo-

178
derna a partir dos anos 60 do século passado. É difícil explicar as causas
desta inesperada efervescência religiosa4. Mas não se pode negar que ela
tenha alguma relação com a crise de sentido que afeta não só os indivíduos,
mas a sociedade como um todo. É como se, sufocado pela in-transcendência
da vida e cansado já dos seus projetos de auto-salvação, o homem moderno
vislumbrasse nessa redescoberta do religioso uma porta para sair de si, para
transcender-se, na busca de respostas para as suas necessidades subjetivas: as
questões fundamentais da vida, da morte, do sentido e do amor.

Mas não devemos iludir-nos. Retorno do religioso não equivale necessari-


amente a reencontro com Deus. É aí que radica a novidade e a ambigüidade
desse fenômeno. A rigor não se trata de um ‘retorno’ porque não há uma
volta às formas religiosas tradicionais. Pelo contrário, as religiões tradici-
onais não respondem mais a essa busca de ‘transcendência’ e de
‘espiritualidade’. O sagrado é reconstruído, de maneira muito subjetiva,
numa simbiose contraditória de horizontes e perspectivas na qual é possí-
vel encontrar ciência, filosofia, gnose, religiões orientais, esoterismo, ocul-
tismo e até as formas religiosas mais arcaicas. É essa diversidade toda que
costuma ser agrupada sob a cômoda denominação de ‘novos movimentos
religiosos’. Mas aí desponta o segundo aspecto da transformação cultural
do religioso: para dar cabida a tal heterogeneidade é preciso dilatar de tal
forma o conceito de ‘religioso’ que ele perde o seu sentido original. Daí a
ambigüidade do fenômeno e a lucidez indispensável para discernir esse
surpreendente ‘surto religioso’.

O terceiro fator, enfim, é o fato de vivermos numa época de pluralismo


religioso em que o encontro entre as religiões tornou-se uma realidade.
Pluralismo ‘de fato’. Religiões que há algum tempo nos resultavam estra-
nhas e até exóticas fazem parte hoje do nosso convívio cotidiano. E
pluralismo ‘de direito’, porque aos olhos do direito, dentro do qual se
constitui o Estado moderno, todas as religiões são iguais e sujeitas aos
mesmos direitos e deveres. É cedo ainda para prevermos todas as conse-
qüências dessa nova situação. Se, por um lado, é uma realidade carregada
de promessas, por outro, já provou que possui em si mesma um enorme
potencial explosivo, pela inextricável relação que existe entre religioso,
cultural e étnico. A atualidade viva – em todos os continentes – é a prova
cabal de como é difícil, mesmo dentro de um mesmo país, a convivência
entre os diversos grupos religiosos. E, mais ainda, quando um terceiro país
recebe essa diversidade vinda de países diferentes.

Esse é, sem dúvida, um terceiro aspecto da nossa ‘situação espiritual’ que


contribui para a transformação cultural do religioso. Porque no encontro

4
Para uma compreensão do fato e das suas possíveis interpretações, ver J. B. LIBANIO,
A religião no início do milênio, São Paulo: Loyola, 2002.

179
entre as grandes religiões da humanidade, a aparente univocidade da lingua-
gem (divino, transcendência, Deus, realidade última, experiência mística
etc.) esconde experiências diferentes de Deus, da relação do sujeito com
Deus e com o mundo, da salvação etc. que não são intercambiáveis. Pode
o moderno sujeito ocidental, marcado pela tradição cristã de Deus, conten-
tar-se com uma transcendência que não seja pessoal? Pode ele renunciar à
sua condição de ‘pessoa’ diante de Deus e à sua responsabilidade pela
história? É suficiente (para esse ser humano concreto que é o sujeito mo-
derno ocidental) perder-se no Todo ou mergulhar na Plenitude cósmica
para realizar a busca de transcendência?

Ao contemplar simultaneamente esses três aspectos, tomamos consciência


do alcance da transformação cultural do religioso na sociedade ocidental.
Por um lado, a dilatação sem limites do conceito de ‘religioso’ torna cada
vez mais impreciso o seu contorno e ambígua a experiência que dele resul-
ta5. Muitas das experiências ‘espirituais’ hoje são experiências de auto-
centramento, mergulhos na própria interioridade. Em tais experiências,
‘deus’ é apenas um pretexto para o encontro da pessoa consigo mesma. E
esse é um segundo traço da transformação do religioso operada pela
modernidade: o deslocamento do horizonte de sentido com uma profunda
metamorfose do sagrado. Muitas das atuais formas e expressões religiosas
inscrevem-se não no horizonte de uma transcendência real, anterior e ex-
terior ao sujeito, mas no horizonte da imanência. O ‘sagrado’ é o humano,
as causas, os valores, as experiências éticas nas quais as pessoas, de algu-
ma forma, saem de si mesmas e se ‘transcendem’. Mas estamos ainda
diante de um sagrado transcendente ou se trata de um sucedâneo do ver-
dadeiro Absoluto?6 Esse deslocamento explicaria ainda um último traço da
atual transformação do religioso: o nivelamento das experiências de busca
e o ressurgimento de formas arcaicas do religioso. É como se tudo fosse
igualmente válido e as mediações da busca fossem intercambiáveis. Mas
pode o sujeito moderno regredir ao passado e voltar atrás do salto quali-
tativo que representou para a consciência humana a conquista acontecida
quando surgiram as grandes religiões mundiais no primeiro milênio antes
de Cristo?

É o que levou alguns estudiosos a designarem a situação atual como ‘se-


gundo tempo-eixo’, utilizando a expressão que K. Jaspers cunhara precisa-

5
É o que aparece claramente na maleabilidade a que é submetida a linguagem religiosa
tradicional. Como acontece, por exemplo, com o termo "mística", utilizado para designar
as experiências mais disparatadas. Mas a mesma observação caberia a propósito de
termos como experiência religiosa, espiritualidade, transcendência e mesmo sobre a
palavra Deus.
6
Como exemplo dessa reapropriação das categorias cristãs, interpretadas dentro do
horizonte da imanência, ver L. FERRY, L’homme-Dieu, ou le Sens de la Vie, Paris:
Bernard Grasset, 1996. Para um interpretação desse fenômeno, ver J.MARTIN VELASCO,
Metamorfosis de lo Sagrado y futuro del cristianismo, Santander: Sal Terrae, 1998.

180
mente para caracterizar a ruptura introduzida na consciência religiosa da
humanidade pelo surgimento das grandes religiões, aproximadamente en-
tre 800 e 200 a.C. Numa mesma área geográfico-cultural (China, Índia, o
atual Irã; Grécia e Israel no Mediterrâneo), e simultaneamente, teve lugar
uma radical transformação da visão do mundo que estava ligada à depu-
ração da idéia do divino e mudou a maneira humana de relacionar-se com
a transcendência7. Os efeitos dessa mutação marcaram o curso da história
e da civilização até hoje, no âmbito sociocultural e no âmbito religioso. As
profundas transformações pelas quais passa hoje o Ocidente, tanto do pon-
to de vista cultural como religioso, tornam tentadora essa aproximação.
Tanto mais que, uma das características do nosso tempo, é a aproximação
entre as mesmas culturas e religiões que fazem parte daquela mesma área
na qual teve lugar aquela primeira mutação. Não estaríamos vivendo hoje,
pelo menos no Ocidente, uma mudança semelhante?

3 - Balanço provisório
Não é necessário um grande esforço para perceber que essas transforma-
ções – cultural e religiosa – da modernidade afetam profundamente o cris-
tianismo e o obrigam a repensar-se na sua totalidade. A título de primeira
conclusão é suficiente acenar para as duas principais repercussões que essa
transformação acarreta para o cristianismo: o seu deslocamento social e a
questão da sua identificação com a cultura ocidental.

Em primeiro lugar, o deslocamento social. Por razões históricas o cristia-


nismo foi, de fato, a religião que reinou de maneira única e quase exclusiva
no Ocidente8. Não era fácil, por isso, a separação entre cristianismo e cul-
tura, sobretudo desde a cristandade medieval, na qual ser cidadão e ser
cristão eram sinônimos. Lenta mas implacavelmente, o processo da
modernidade pôs um fim a essa situação. Ao se constituir na sua autono-
mia a partir dos pressupostos que ela mesma se dá, a sociedade moderna
deslocou a religião – no caso o cristianismo – para a periferia da sociedade.
Aos poucos, todos os âmbitos que constituem o tecido da vida social foram
sendo arrancados da tutela da Igreja. A religião ficou confinada ao âmbito
pessoal e particular dos indivíduos; ela não desempenha mais uma função
social.

7
É o que poderíamos chamar a emergência da consciência individual que levava consigo
a afirmação da pessoa diante da coletividade e dos seus condicionamentos,e, do ponto de
vista religioso, uma maneira nova de relacionar-se com a transcendência: a tomada de
consciência do destino pessoal e a busca da salvação.
8
A rigor, depois da reforma protestante no séc. XVI, haveria que falar de "igrejas
cristãs" e não de cristianismo como realidade única no ocidente. É verdade, porém, que
a posição numericamente dominante da Igreja católica acabou por tornar quase sinôni-
mos catolicismo e cristianismo, de modo que até hoje, no âmbito católico pelo menos,
tendem a ser identificados como uma coisa só.

181
Até hoje, é difícil para o cristianismo – pelo menos para a Igreja católica –
assimilar todas as conseqüências desse deslocamento, o que, por um lado,
é compreensível, mas, por outro, lamentável. Compreensível, porque ele
significa a perda do lugar privilegiado que a Igreja ocupou durante tantos
séculos na sociedade ocidental, com todas as vantagens que dele decorri-
am: visibilidade, poder, influência na configuração da vida social entre
outros. Mas lamentável, porque essa resistência gera animosidade e anti-
patia contra a Igreja e em nada contribui para que ela se situe nessa nova
realidade social e encare, em bases novas, a evangelização da nova situa-
ção cultural. Mas a aceitação desse deslocamento significaria reconhecer e
aceitar o fim de um cristianismo sociológico e de uma visão prioritariamente
institucional e hierárquica da Igreja.

A segunda conseqüência dessa transformação é o que poderíamos chamar


a ruptura entre cristianismo e cultura ocidental, aspecto relacionado com
o anterior e não menos problemático. Foi nessa espécie de simbiose históri-
ca entre fé cristã e cultura ocidental que o cristianismo chegou até nós. A
crise da modernidade põe a nu essa identificação e a desfaz teórica e
praticamente, o que se revela na crise de valores, no individualismo exa-
cerbado e no fechamento do horizonte de transcendência. A cultura da
modernidade deixou de ser cristã, embora restem nela vestígios indeléveis
da sua convivência secular com o cristianismo. Mas ela não se inspira mais
no cristianismo. E, nesse sentido, poderia ser designada como ‘pós-cristã’.

Essa situação, paradoxalmente, liberta o cristianismo da tentação de iden-


tificar-se com uma cultura, a ocidental, e cria as condições para que ele
possa ser, de fato, universal. A fé tem que ser dita em todas as culturas. O
cristianismo só pode existir encarnando-se por dentro da cada cultura, mas
ele não se identifica com nenhuma porque não se esgota nelas. É o desafio
que levanta a inculturação, tão almejada quanto delicada, com todo seu
alcance e as conseqüências que começamos apenas a vislumbrar. Mas não
foi esse o risco corrido pelo cristianismo primitivo ao adentrar-se na cul-
tura helenística, abandonando o seu solo natal que era o judaísmo?

É compreensível que essa ruptura nos assuste. Ela representa, de fato, o


fim da figura histórica do cristianismo que nós conhecemos, a forma na
qual ele se encarnou e lhe deu consistência e visibilidade durante tantos
séculos. A crise da cultura moderna não poderia deixar imune a fé cristã
e suas ‘traduções’ culturais, não só a linguagem utilizada, mas também o
horizonte teórico de compreensão, as formas institucionais e as expressões
religiosas. Tudo isso nos dá a medida do que está em jogo para a fé cristã
neste momento histórico. Não se trata de reformas (por mais urgentes que
sejam)9, nem de simples adaptações ao novo contexto, mas de repensar a

9
Quer as que não foram feitas ou abortaram depois do Concílio Vaticano II, quer
problemas pendentes e nunca resolvidos como o direito da pessoa, a liberdade e o diálogo

182
totalidade do cristianismo a partir de novos pressupostos. Tarefa ingente,
para a qual a maioria dos cristãos, a julgar pelo que acontece, não estamos
ainda preparados. Sem termos realizado ainda a transposição do cristianis-
mo tradicional para o horizonte da modernidade, somos solicitados já a
repensar e traduzir a fé no contexto da pós-modernidade.

Há muitos indícios de não termos acordado ainda – inclusive nas diversas


esferas de exercício da autoridade pastoral na Igreja – para a gravidade da
situação atual. Teríamos que nos perguntar se as nossas opções pastorais
têm em vista o futuro que nos pro-voca ou um passado a ser protegido a
todo custo. O pragmatismo imediatista de certas propostas de evangelização
faz suspeitar que estamos habitados ainda pelo fantasma da cristandade
ou da neo-cristandade: primazia do quantitativo sobre a qualidade cristã
da vida. Estaremos preparando dessa forma o terreno para uma verdadei-
ra re-composição da experiência cristã na sua totalidade, para que possa
ad-vir a nós um futuro novo da fé?

II - Para uma re-configuração do cristianismo

A descrição da situação atual poderia parecer excessivamente dramática e


sombria se ela não encontrasse eco, cada dia, na nossa experiência existen-
cial. Não só como cristãos mas como homens e mulheres submetidos às
mesmas perplexidades e angústias dos nossos contemporâneos. A situação
atual nos desconcerta. Ninguém escapa hoje à angústia do não saber, de ter
que abrir caminhos – pessoais, familiares, profissionais etc. – num mundo
sem referências claras e definidas. Não poderia ser de outra forma para a
fé de cada cristão e para o cristianismo como totalidade.

Mas não podemos esquecer que a fé cristã já deu mais de um passo nessa
busca de novos caminhos. Por outro lado, não é a primeira vez na sua
história que o cristianismo encontra-se diante de uma situação crítica, de
crise, crucial e, portanto, de encruzilhada. Em tais situações nunca faltaram
prognósticos sobre ‘o fim do cristianismo’. Mas não parece que eles se
tenham realizado, o que não pode servir como consolo fácil nem diminui
em nada a responsabilidade que nos cabe neste momento histórico. Mas
nos alivia de um peso que resultaria insuportável se o futuro dependesse
só de nós. O cristão não é otimista por fechar os olhos à dureza da reali-
dade. Essa seria uma cegueira irresponsável. O cristão é otimista por exces-

dentro da Igreja, a questão do poder e da autoridade, o clericalismo que renasce, a


questão da mulher na Igreja, as formas de governo e participação etc. Mas essas e outras
reformas, por mais importantes que sejam, são apenas sintomas de um desequilíbrio
mais profundo: a presença do cristianismo na nova situação da sociedade moderna.

183
so, não por defeito. A sua esperança está fundada na experiência de uma
promessa que já deu provas da sua fidelidade maior. É ela que nos permite
ir até as raízes da crise atual e encarar sem medo as respostas que ela está
a exigir10.

1 - Caráter inédito deste momento histórico

O horizonte da nossa experiência é sempre muito curto e não vai além do


que alcançam os nossos olhos ou do que é a nossa história vivida. Por isso
podemos, com toda facilidade, cair na armadilha de reduzir o cristianismo
ao que foi a nossa experiência, sem percebermos que essa ‘figura’, através
da qual tivemos acesso à experiência cristã, não esgota as possibilidades de
expressar a fé nem constitui a ‘essência’ do cristianismo. Basta um mínimo
de conhecimento histórico para descobrir que muitas das expressões atuais
do cristianismo estão condicionadas por uma tradição ‘pequena’, que, em
alguns casos, remonta a um ou dois séculos no máximo, e que, de qualquer
forma, não pode ser confundida com a ‘grande’ tradição. A fé cristã é mais.
Tomar consciência dessa distância, dilatar o horizonte da nossa compreen-
são, é a primeira condição para podermos responder, de maneira positiva
e criadora, ao que está a exigir da fé cristã este momento histórico.

Em certo sentido, a situação atual do cristianismo só encontra paralelos no


que foi a sua passagem do contexto cultural e religioso do judaísmo para
a cultura helenística. Era a totalidade da experiência a que tinha que ser
recriada para que o anúncio cristão pudesse ressoar e ser compreendido
dentro de outro universo cultural. Isso exigiu muito tempo, paciência e não
pouco discernimento. E só foi conseguido com sérias tensões. As disputas
e mesmo as heresias dos primeiros séculos estão aí para prová-lo.

Depois daquela primeira – única, na verdade – inculturação, o cristianismo


viveu durante quase 20 séculos dentro do mesmo horizonte cultural. E
assim foi dando ‘forma’ a uma maneira inédita de viver a fé e construindo
a ‘figura’ de cristianismo que conhecemos até hoje e cuja solidez nos im-
pressiona: pela ousadia da sua transposição teórica dentro do horizonte de
compreensão da cultura helenística, pela sua capacidade de assumir os
valores existentes nessa cultura recriando-os por dentro, pela sua liberdade
de criar ‘traduções’ – litúrgicas, espirituais, religiosas, institucionais etc. –
capazes de expressar de maneira significativa a sua experiência, de ofere-
cer-lhe um apoio, de alimentá-la e sustentá-la. Sem correr esse risco, o

10
O historiador francês J. Delumeau já se perguntava há mais de 25 anos se haveria
futuro para o cristianismo na sociedade atual: Le christianisme va-t-il mourir?, Paris:
Hachette, 1977. Profundo conhecedor da história cristã, a honestidade e a lucidez das
suas análises não lhe impediram encontrar a verdadeira razão da sua esperança: os ricos
veios evangélicos que percorrem a história cristã. O cristianismo revive cada vez que
renuncia ao poder e à riqueza para voltar à transparência do evangelho. Não deveria ser
esse também hoje o critério de todas as nossas buscas?

184
cristianismo não teria ultrapassado os limites do judaísmo nem teria che-
gado até nós. Mas essa ousadia significou romper muitas das amarras que
o prendiam ao passado e aceitar um ‘começo novo’.

Hoje, pela primeira vez depois de tantos séculos, o cristianismo é desafi-


ado de novo a enfrentar uma transposição de proporções semelhantes às
que conheceu o cristianismo dos primeiros séculos. Como naquele momen-
to, trata-se de uma transposição que envolve a totalidade da experiência
cristã: a sua tradução teórica dentro de um horizonte diferente de compre-
ensão, as expressões de todo tipo – pessoais e comunitárias – nas quais é
vivida e se transmite a fé, e uma nova configuração institucional que lhe dê
não só visibilidade social, mas coerência evangélica. Ingente tarefa que
requer renúncias dolorosas a muitos aspectos de uma ‘figura’ que parecia
definitiva e indevidamente identificada com a ‘essência’ do que é cristão. E,
por isso, aos olhos de muitos, aparece como uma ameaça para a fé, esque-
cendo que esta nunca termina nem se esgota em nenhuma das suas expres-
sões. Sem tais renúncias, porém, não haverá lugar para um ‘começo novo’.
Eis por que hoje não pode ser eludida a questão da identidade cristã.

2 - O que é ‘cristão’?

Não se trata de teorizar sobre essa questão, mas de perguntar-se – não só


em função dos outros, mas para nós mesmos como cristãos – onde reside
a ‘novidade’ cristã. A pergunta não é ociosa, nem a resposta deve ser dada
de antemão como conhecida. E, menos ainda, como evidente. São justa-
mente essas falsas ‘evidências’ que nos impedem sentir o choque que pro-
duzia no início o anúncio cristão, o que há nele de verdadeiramente inau-
dito e desconcertante. É nesse sentido que a questão da identidade não
pode ser posta de lado. Não como algo que impediria o diálogo, porque
nos separaria e distanciaria dos outros, mas como aquilo que nos permite
ir ao encontro dos outros de maneira desarmada, precisamente por não
possuirmos outra ‘diferença’ a não ser a ‘boa notícia’ que é a vida de Jesus
Cristo, morto e ressuscitado. Pois em Jesus de Nazaré, tudo está dito e
tudo está por dizer. Por isso a identidade cristã é dinâmica e deve estar
constantemente recriando-se entre a sua origem fundante e o presente
histórico no qual é vivida. Hoje, mais do que nunca, é preciso voltar a essa
‘simplicidade’, por dentro da complexidade e através da complexidade
que foi revestindo ao longo da história11.

11
Não se trata de estabelecer aqui uma discussão teórica sobre a identidade cristã.
Baste, para o nosso objetivo, chamar a atenção sobre os estereótipos com que ela pode
estar carregada num momento em que se trata precisamente de repensar a totalidade
da fé cristã. Uma síntese breve e clara da questão pode ser encontrada em J. B. LIBANIO,
Olhando para o futuro, op. cit., pp. 30-43. Ver também, C. PALÁCIO, "A identidade
problemática", Perspectiva Teológica 21 (1989) 171-176 e idem, A originalidade singular
do cristianismo, Perspectiva Teológica 26 (1994) 311-339, espec. 321 ss.

185
Um rápido percurso pelas transformações semânticas do conceito ‘cristia-
nismo’ permite compreender os deslocamentos de sentido que sofreu ao
longo da história e as marcas que nele ficaram dessas transformações. O
simples recurso à etimologia nos revela que a palavra ‘cristianismo’
(christianismós) é derivada de ‘cristão’ (christianós). ‘Cristão’, como é sa-
bido, era o nome cunhado em ambi nte pagão e helenístico (At 11, 26) para
designar os seguidores de Jesus, por eles denominado ‘Cristo’. Mas eram
os pagãos os que utilizavam o termo para referir-se ao movimento sus-
citado por Jesus. ‘Movimento’, ou, na bela expressão dos Atos dos Após-
tolos, “adeptos do caminho” (9, 2), i.é.; um modo de ser, um estilo de
vida, um ethos enfim, que encontrava a sua razão de ser numa existência
concreta: a pessoa e a vida de Jesus de Nazaré com tudo o que ela im-
plicava.

Nas suas origens, portanto, o cristianismo não era visto, em primeiro lugar,
como um culto, uma doutrina ou uma nova religião; não se identificava
com uma raça nem podia ser delimitado a um espaço cultural ou socioló-
gico. A ‘diferença’ cristã, como alternativa ao que eram os judeus ou os
pagãos, transparecia e se afirmava com a vida.

O cristianismo, herdeiro da ‘antigüidade tardia’, tornou-se, por motivos de


ordem sócio-histórica, a matriz fecunda do que viria a ser a chamada cul-
tura ocidental. É nessa seqüência que a Idade Média conheceu uma pro-
funda inflexão do sentido primitivo da palavra cristianismo: a ‘cristanda-
de’, como espaço geográfico e como âmbito social dentro do qual viviam
os povos cristãos. É o aspecto sociológico, quantitativo e mensurável do
cristianismo em oposição à sua diferença qualitativa. Para referir-se à
interioridade da vida cristã – o conteúdo da fé – os medievais utilizavam
palavras como fides ou religio.

A reforma protestante recuperou a palavra ‘cristianismo’ numa atitude de


oposição crítica à ‘cristandade’, concretizada na Igreja institucional e nas
suas práticas. Ao reabilitar o termo ‘cristianismo’ para criticar a Igreja, a
Reforma queria afirmar qual era a ‘verdadeira fé’ e onde se encontrava:
não no ‘eclesial’ mas no ‘cristão’. ‘Cristianismo’ passou a ser, então, a re-
ferência primeira e fundamental da vida cristã. Esta conotação crítica do
termo, que parte da distância evidente entre o que deveria ser uma vida
evangélica e o que dela transparece na face humana da Igreja, tem a sua
origem no desejo de mudança e conversão que suscitou sempre a volta ao
evangelho. Eis por que essa acepção esteve sempre presente, pelo menos
implicitamente, em todos os movimentos de renovação, quer nas seitas
religiosas, quer nas críticas dos humanistas, e depois da Reforma até à
Ilustração.

A ruptura da unidade eclesial pela Reforma e a multiplicação das ‘confis-


sões’ entre os próprios reformadores contribuíram para que o termo ‘cris-

186
tianismo’ fosse utilizado aos poucos para reunir num denominador co-
mum as diversas ‘confissões cristãs’. Depois, nos sécs. XVII e XVIII, em
face aos livre-pensadores, por um lado, e ao crescente interesse teórico por
outras religiões que não a cristã, a palavra ‘cristianismo’ acabou sendo um
simples sinônimo de ‘religião cristã’. Acepção esta, aliás, que conserva até
hoje. Na sua abstração – destino de todos os vocábulos construídos com
‘ismos’ – ele não deixa mais transparecer a realidade concreta que lhe deu
origem: a vida de Jesus de Nazaré, na sua totalidade. E além disso encobre
realidades extremamente heterogêneas nas quais se refratou a figura his-
tórica do cristianismo ocidental12.

Foi necessário esperar o séc. XX para que o termo ‘cristianismo’ voltasse a


ter um lugar de destaque dentro do próprio catolicismo. Não porque ele
tivesse sido banido, mas pelas conotações críticas que tinha adquirido a
partir da Reforma. O termo ‘católico’, em oposição a ‘cristão’, acabou sen-
do o símbolo não só da resistência à Reforma – e cada vez mais ou mundo
moderno – mas da continuidade com a tradição eclesial. A transformação
do horizonte da teologia católica e o clima propiciado pelo Vaticano II
explicam que, a partir do Concílio, os teólogos católicos tenham dado a
preferência ao termo ‘cristianismo’ em vez de ‘catolicismo’, mesmo para
referir-se à Igreja católica. Mudança significativa, embora possa parecer
sutil, porque é um indício significativo do que o Concílio desejava com a
‘volta às fontes’ e expressão de um novo clima ecumênico e inter-religioso.

3 - As lições da história

Este rápido desvio pela semântica das palavras manifesta com clareza que
a questão da identidade não pode ser colocada só de maneira teórica. O
cristianismo – e com ele a identidade cristã – só existe na sua condição
concreta, histórica, encarnada. Da mesma forma que não existe um cris-
tianismo puramente ‘sociológico’, tampouco existe um cristianismo qui-
micamente puro, espiritual, ideal. É através da encarnação da experiência
cristã – encarnada e, por isso, limitada – que temos acesso ao que é
‘cristão’. A teologia poderá elaborar teoricamente a ‘identidade cristã’,
mas esta, na sua condição histórica, nunca poderá ser totalmente
transparente.

Esta observação é importante se quisermos discernir quais as conversões


que o atual momento histórico exige do cristianismo. O que está em jogo
não é a sua identidade teórica mas a sua identidade histórica. O cristianis-

12
Para a maioria das pessoas, o termo ‘cristianismo’ é uma nebulosa que envolve cato-
licismo, protestantismo e, para alguns mais letrados talvez, as igrejas ortodoxas orien-
tais. Ou, na definição do Aurélio, ‘o conjunto das religiões cristãs’. Só que nesse conjunto
estão não só o catolicismo e as igrejas do protestantismo histórico, mas também as
igrejas evangélicas e a infinidade de denominações pentecostais. Que significa, então, a
palavra ‘cristianismo’? É possível reduzir essa heterogeneidade a uma unidade coerente?

187
mo tem que aprender a discernir em si mesmo o que é e o que não é
cristão. Na ‘identidade histórica acumulada’ do cristianismo nem tudo é
transparência do evangelho. O percurso semântico feito acima manifesta
muitas aderências nada ‘cristãs’, incrustadas ao longo da história, não só
no termo mas na vida da Igreja. E que deixaram marcas profundas que nos
condicionam até hoje. Basta lembrar, a título de exemplo, a presença obses-
siva no imaginário cristão do mito da cristandade como ideal do cristianis-
mo. Além de ter sido muito mais um sonho do que uma realidade, essa
concepção do cristianismo deixou seqüelas indeléveis (como a primazia do
quantitativo e mensurável sobre o qualitativo e a predileção pelo
institucional como forma de visibilidade do ‘cristão’) que até hoje o tempo
não apagou. Ou ainda, a progressiva ‘eclesialização’ do cristianismo du-
rante toda a época moderna (com o predomínio do hierárquico, e por
conseguinte, da autoridade e do poder, em detrimento da comunhão entre
iguais) e a inevitável, embora indevida, identificação do ‘eclesial’ com o
‘eclesiástico’.

Mas há dois aspectos nos quais é inegável a redução histórica da identida-


de cristã: a sua ‘transposição doutrinal’ e a sua ‘transposição religiosa’. Não
se trata de negar o valor e a importância desses dois aspectos para a exis-
tência cristã. Ambos, aliás, visíveis desde os primeiros séculos cristãos, e
explicáveis pelas circunstâncias históricas da inculturação do cristianismo
no ambiente helenístico. O que importa agora, em termos de discernimento,
é perceber até que ponto a sua perpetuação introduziu um desequilíbrio
profundo na vivência da fé cristã. Coisa que parece evidente em ambos os
casos.

A ‘transposição doutrinal’, em primeiro lugar. Há uma distância muito


grande entre a necessidade intrínseca de racionalidade, por parte da fé, e
a transformação da mesma num sistema racional. O primeiro aspecto é
evidente. Sem um logos intrínseco, a fé cristã seria um grito desarticulado.
A inteligibilidade lhe é necessária tanto para compreender a própria expe-
riência como para comunicá-la aos outros, para explicá-la, para defendê-
la13. Quem se atreveria a minimizar a monumental obra teológica do cris-
tianismo desde o seu início até hoje? Mas a fé cristã, antes de ser uma
questão de razão é uma questão de experiência. Pela simples razão de ter
o seu ponto de partida num acontecimento histórico: a existência concreta
de Jesus de Nazaré. Não se trata, evidentemente, de uma alternativa. Mas
o modo de articular experiência e reflexão pode ter conseqüências decisi-
vas. Como negar, do ponto de vista histórico, um desequilíbrio entre os
dois aspectos que pendeu sempre para o lado do doutrinal? O cristianismo
se tornou um ‘sistema de verdades’, uma doutrina que era necessário saber

13
Para um desenvolvimento desta problemática ver C. PALÁCIO, "Filosofia e cristianis-
mo", Síntese v. 18, n. 55 (1991) 505-526

188
e aceitar mas sem impacto na vida14. Não por acaso a iniciação cristã perdeu
o seu lado ‘mistagógico’, de iniciação à experiência, para reduzir-se ao ensino
da doutrina cristã: a catequese. Desequilíbrio histórico, não teórico, da ‘iden-
tidade cristã’ cujo eco ressoa até hoje na preocupação com a ‘verdade’ e na
obsessão com a ‘ortodoxia’. Como se a única e plena ortodoxia não exigisse
também uma ortopráxis, uma vida coerente com aquilo que se confessa.

O segundo caso é o da ‘transposição religiosa’. O problema persegue o


cristianismo desde as suas origens. E estava na raiz da fé cristã, cuja
especificidade fazia dela algo inclassificável, tanto para o judaísmo quanto
aos olhos dos pagãos. Não é por acaso que os cristãos eram chamados de
‘ateus’ e o cristianismo desprezado como inreligiosa prudentia, porque
punha em perigo a religião tradicional.

Não se trata de discutir aqui se o cristianismo é ou não uma ‘religião’. A


questão é saber se desequilibrou a experiência cristã a ponto de pôr na
surdina – esquecer sem negar – aspectos fundamentais da sua identidade,
quer no modo de encarar Deus, quer na maneira de relacionar-se com o
mundo e com a realidade humana.

Por isso não vem ao caso reeditar neste momento a distinção barthiana –
cômoda, mas ineficaz para um discernimento – entre ‘fé’ e ‘religião’. Dizer
que o cristianismo é ‘fé’ e não ‘religião’ é uma resposta formal que não dá
conta de explicar por que foi identificado como uma religião. A resposta a
essa pergunta não pode ser dada a priori, porque ela surge na história, nos
momentos em que a identidade cristã deixa de ser clara e evidente. Como
é o nosso caso hoje. Não só porque o cristianismo deixou de ser a ‘religião’
única – e mais de uma vez ‘oficial’ – do Ocidente, mas pela armadilha que
representa para a identidade cristã a efervescência religiosa e espiritual da
sociedade contemporânea. Pode o cristianismo ser equiparado a essas ex-
periências ‘religiosas’? Tudo indica que os ‘deuses’ – as experiências ‘reli-
giosas’ – social e culturalmente corretos hoje pouco ou nada têm a ver com
o Deus de Jesus Cristo, que, em definitivo, constitui o cerne da ‘diferença’
cristã.

Esses dois exemplos são suficientes para mostrar concretamente a distân-


cia que há – e que haverá sempre – entre o ‘essencial’ da fé cristã (a ‘iden-
tidade’) e as suas realizações históricas. Essa é a razão pela qual o cristia-
nismo sempre pode dar ‘mais’ de si. E pela qual ele ‘tem futuro’. Mas um
futuro que surpreende e desconcerta porque nele sempre ad-vém algo novo
e inédito da sua riqueza inesgotável. Reconhecer em tempo essa distância
é a condição para discernir o que é ou não evangélico nas realizações his-
tóricas, e ter a coragem de des-absolutizá-las.

14
A teologia tradicional é um bom exemplo dessa obsessão sistemática. Ver C. PALÁ-
CIO, Deslocamentos da teologia, mutações do cristianismo, São Paulo: Loyola, 2001, pp.
15-23.

189
III - Discernir as situações para recompor a experiência

Antes de concluir é preciso tecer algumas considerações a respeito do que


pode significar esta reflexão para a nossa situação no Brasil e na América
Latina. É inevitável, dada a minha experiência limitada, que me refira mais
ao Brasil. À primeira vista, este tipo de reflexão poderia parecer muito
distante da nossa realidade. Na prática, contudo, por razões históricas e
sociais, seria impossível levar a sério a nossa especificidade sem termos
presente que, o nosso cristianismo teve desde o início um cunho ocidental.
Com a Colônia, herdamos problemas que vinham do cristianismo medie-
val e, querendo ou não, cultural e eclesialmente, sempre fomos tratados
como ocidentais. Por outro lado, num mundo cultural e religiosamente
plural, é cada vez mais importante afirmar a nossa identidade. Também do
ponto de vista eclesial. É indispensável, pois, discernirmos a nossa situa-
ção, com toda a sua complexidade, para podermos contribuir na recompo-
sição comum da experiência cristã.

1 - É necessário, em primeiro lugar, proteger e preservar o que há de


específico na ótica latino-americana. Algo que pareceria óbvio num mundo
que, apesar de todo tipo de dificuldades, tende a constituir-se como
pluricultural, pluri-racial e pluricêntrico. Também do ponto de vista reli-
gioso, mas que ainda encontra resistências, ao que tudo indica, no nível
eclesial. Os ventos que sopram neste momento não favorecem esse des-
centramento, e tornam mais difícil a tarefa. É, contudo, um objetivo a ser
perseguido com perseverança.

Por duas razões principalmente. A primeira é a crise do cristianismo ‘oci-


dental’. Mais visível na Europa e no Canadá, é perceptível também, de
forma diferente, nos Estados Unidos. A crise cultural acarretou uma crise
sem precedentes da fé cristã, e a secularização da sociedade como um todo.
Mas ela trouxe consigo uma distinção muito benéfica para o cristianismo
como tal: a consciência de que a fé cristã não pode ser identificada com a
cultura ocidental. O que abriu um caminho inédito para outras possíveis
inculturações.

Além do mais, essa crise teve como resultado um deslocamento geo-


gráfico-cultural: o peso do cristianismo – até mesmo numericamente
– e a sua vitalidade, se encontram cada vez mais nos países pobres do
terceiro mundo, na América Latina, na Ásia e na África. Eis por que
não é utópico esperar que, no futuro, o cristianismo terá um rosto
bem diferente e muito mais diversificado do que aquele que nós co-
nhecemos. Proteger essa diferença é trabalhar pelo futuro do cristia-
nismo.

Mas há uma segunda razão: a experiência vivida pela Igreja da América


Latina depois do Concílio e o seu potencial inspirador para outras Igrejas.

190
Não como ‘modelo’ a ser exportado, mas como ‘espelho’ no qual se po-
dem contemplar outras Igrejas particulares. Foi, de fato, a Igreja da
América Latina a primeira a abrir uma brecha para tornar possível, den-
tro da rígida uniformidade eclesial, uma maneira diferente de ser Igreja
e de pensar a fé a partir da sua particularidade. Talvez sem pretendê-lo
conscientemente, mas movida pela sua missão. De fato, a Igreja latino-
americana teve que submeter à crítica o que tinha sido a evangelização
tradicional, aceitar que a fé podia estar contaminada por ideologias que
a condicionavam, e repensar o anúncio como verdadeira ‘missão’, não só
a ‘pagãos’ mas a ‘cristãos acostumados’ (senão acomodados). Foi o cho-
que salutar produzido pela tomada de consciência que significava a ‘op-
ção pelos pobres’.

O dinamismo eclesial que caracterizou a implantação do Concílio na Igreja


da América Latina, a corajosa liderança episcopal e a elaboração paula-
tina de uma teologia, particular também, são alguns dos traços que pro-
jetaram essa experiência na Igreja universal. Hoje, o reconhecimento de
outras Igrejas particulares e de outras teologias – por exemplo, as da Ásia
e da África – é cada vez mais um fato que se impõe à consciência da
Igreja como algo necessário e, em certo sentido (porque não faltam difi-
culdades), pacífico.

Todas essas conquistas foram difíceis e dolorosas mas carregadas de um


potencial profético para toda a Igreja. Em graus diferentes foram permeando
a consciência eclesial: a Igreja só pode ser universal encarnando-se no
particular; a fé tem que ser anunciada e vivida em contextos concretos e,
por isso, pode e deve ser traduzida em categorias novas e adequadas a
cada cultu rendendo é que essas três dimensões – social, cultural e religi-
osa – são inseparáveis da tradução e da vivência da fé em qualquer uni-
verso cultural. E parece ser confirmado pela constituição de um mundo
pluricêntrico, pluri-racial e pluricultural. Por isso é tão importante prote-
ger e preservar cada uma das óticas particulares.

2 - A segunda exigência é discernir com lucidez onde e como se manifes-


tam ainda os condicionamentos do passado e a inércia do tradicional. Nesse
sentido é indispensável também para a Igreja latino-americana tomar cons-
ciência da crise da cultura ocidental e do ocaso da figura tradicional do
cristianismo. Querendo ou não, fazemos parte dessa história e somos con-
dicionados por ela de muitas formas. Aqui serão lembrados apenas alguns
condicionamentos que parecem ainda profundamente enraizadas, não só
no povo cristão mas naqueles que têm em mãos a configuração concreta da
evangelização. Refiro-me mais ao caso do Brasil.

É surpreendente a força com que se manifesta ainda, em certos grupos e


setores da Igreja, a presença de um catolicismo pré-conciliar. A questão é
preocupante porque freia, de maneira paralisante, opções pastorais verda-

191
deiramente novas e capazes de responder aos atuais desafios. E ainda
porque parece estar sendo alimentada com certas iniciativas que se servem
dos meios de comunicação.

Relacionada com esse problema, mas sem confundir-se com ele, está a
questão nunca respondida do ‘catolicismo popular’, que não se limita às
classes populares. Não vem ao caso discutir o problema sob esse prisma.
É certo, contudo, que, em termos de futuro, a iniciação cristã e a experiên-
cia vivida da fé terão que enfrentar-se, mais cedo ou mais tarde, com a
questão do ‘núcleo duro da fé’, ou seja, com o que é verdadeiramente
essencial e constitutivo de uma autêntica experiência cristã de fé: o encon-
tro com Jesus Cristo e a novidade que ele introduz em termos de relação
com Deus e de presença no mundo. A fragilidade de uma vida cristã
construída ao redor de elementos periféricos não resiste às críticas e às
suspeitas da modernidade e expõe cada vez mais a fé aos assaltos de
outras propostas religiosas. Não seria essa a resposta radical e verdadei-
ramente eficaz ao problema da diminuição numérica dos cristãos católi-
cos?

Igualmente preocupante é a convivência de ‘vários catolicismos’ dentro do


tecido eclesial, como se todos eles tivessem o mesmo valor. O discernimento
é delicado mas não pode ser escamoteado. Nem tudo é possível em nome
do evangelho. Esse é o critério com o qual deve ser medida toda e qualquer
experiência – particular ou de grupos – e as pastorais que as alimentam:
saber se tocam o cerne do evangelho e são capazes de manter a unidade
e o equilíbrio da experiência.

A necessidade de abandonar uma perspectiva eclesiocêntrica e abrir-se


para o que poderíamos chamar um cristianismo evangélico, i.é, voltado
para o mundo como missão, é um grave problema que está relacionado
com a necessidade de encontrar, como Igreja, um ‘novo lugar’ na socieda-
de, que não será mais o tradicional, nem mesmo o que ocupou nas décadas
passadas. Mas essa mudança torna-se difícil na medida em que se perde
de vista, ou é relegada ao olvido, a virada eclesiológica operada pelo
Concílio Vaticano II, como parece mostrar um novo surto de clericalismo
entre as novas gerações. Sem esse des-centramento, contudo, sem essa saída
do eclesial para o humano, para o mundo como missão, será muito difícil
para a Igreja superar as duas tentações que a acossam neste momento: dar
por virada a página do seu compromisso com os pobres (com tudo o que
representaram esses anos) e sucumbir à miragem do religioso e do numé-
rico.

3 - Em termos de uma evangelização voltada para o futuro, uma das gran-


des tarefas da Igreja do Brasil – o que em grande parte vale para toda
América Latina – é a necessária recomposição da sua matriz religiosa. Um
problema que foi camuflado pela evangelização tradicional e que emerge

192
hoje com força, numa sociedade cada vez mais consciente da sua diversi-
dade cultural e religiosa. Como inculturar de verdade o anúncio do evan-
gelho?

As raízes culturais e religiosas do Brasil são plurais: indígena, negra, e a


que chegou com o cristianismo ocidental. Mas sociologicamente, tanto do
ponto de vista cultural como religioso, a predominante foi a matriz ociden-
tal. Desde a Colônia, contudo, as três tradições conviveram numa simbiose
original que deixou as suas marcas no próprio cristianismo e atravessa as
diferentes camadas sociais.

A rigor, essa realidade nunca foi enfrentada com a seriedade que mere-
ceria. Talvez porque não era possível até este momento. Mas ela não
pode mais ser eludida. A cômoda distinção entre ‘catolicismo oficial’ e
‘catolicismo popular’ era uma forma de ocultar o problema ou de tran-
qüilizar a consciência das autoridades religiosas. O cristianismo vivido
era outro. E, aparentemente, sem problema para as pessoas que realizam
as suas combinações, transitando à vontade pelas diferentes matrizes e
fazendo as próprias ‘sínteses’. O catolicismo puro nunca existiu, a não
ser, talvez, na cabeça de alguns teólogos ou pastores. O catolicismo bra-
sileiro foi sempre sincrético. De diversas formas. Nem mais nem menos
sincrético do que foi sincrético o cristianismo a partir das conversões em
massa dos povos bárbaros ou do que era o cristianismo medieval que
chegou até nós.

Em certo sentido o sincretismo aumentou, na medida em que nele interagem


novos elementos, vindos dessa heterogênea efervescência religiosa, típica
do momento presente. Mas essa situação parece estar mudando. Não por
obra de alguma misteriosa purificação à qual teria sido submetido o cris-
tianismo, mas pela transformação da consciência da própria sociedade. E
pela força com a qual se afirmam dentro do tecido social os diferentes
grupos étnicos, culturais e religiosos. Eis o que torna possível, hoje, encarar
de forma diferente essa pluralidade cultural e religiosa.

A recomposição dessa matriz plural do cristianismo brasileiro representa-


ria uma autêntica ‘inculturação’ da fé, com todas as exigências e dificulda-
des que leva consigo um verdadeiro processo de inculturação. Mas isso
significaria, em primeiro lugar, aprender a dialogar com a realidade negra
e indígena como realidades culturais e religiosas que têm riqueza e valores
próprios, como vamos aprendendo hoje na perspectiva do diálogo inter-
religioso. Suporia, em segundo lugar, que essas realidades possam ser con-
frontadas com o que constitui a ‘diferença’ cristã, se, de fato, se trata de
uma inculturação da fé cristã e não simplesmente de convivência pacífica
entre realidades culturais e religiosas diferentes. Mas essa é também uma
aprendizagem nova e exigente. Como foi a do cristianismo primitivo no
seu encontro com a cultura helenística. E, finalmente – last but not least –

193
compreender de uma maneira dinâmica a própria identidade cristã, não
como algo definido a priori e para sempre, mas como um processo de
sínteses próprias e originais.

O futuro do cristianismo só pode ser preparado discernindo-se arduamen-


te o presente. Mas há duas maneiras de fugir dessa responsabilidade. A
primeira é pensar o futuro a partir do que nos oferece o presente. É a forma
típica do ‘sujeito moderno’. O conhecimento que tem da realidade e o
domínio sobre a natureza que a ciência e a técnica tornam possível, lhe dão
a sensação de ter a história – e o seu futuro – nas mãos. Mas esse futuro
nada mais é do que uma ‘projeção’ do presente, corrigido e melhorado
talvez, mas um futuro domesticado, feito sob medida, a partir de cálculos
precisos e dos próprios recursos humanos.

A segunda forma de fugir é encarar o futuro como os sonhadores utópicos


que perderam o contato com a realidade. Pouco importa se ela se inspira
nos surtos messiânicos de todo tipo ou se se alimenta das utopias de plan-
tão que se sucedem na história. O resultado acaba sendo o mesmo: o aban-
dono do presente, insuportável nas suas contradições, para refugiar-se num
futuro imaginário, hipotético, irreal, porque sem raízes na história. O so-
nho e a utopia são indispensáveis ao ser humano. Mas com uma condição:
que não abandonem a história à sua sorte, capitulando diante da opacida-
de do real.

Não se pode descartar, a priori, que estas duas concepções possam estar
presentes entre os cristãos na hora de pensar o futuro. Mesmo porque
somos inevitavelmente filhos da nossa época. A primeira é a tentação dos
grupos conservadores e a dos movimentos neo-conservadores, que são a
sua versão ‘moderna’. A incapacidade de compreender o que está em jogo
no atual momento histórico leva-os a exaltar de maneira cega o passado.
Erro de diagnóstico ou insegurança, pouco importa, eles só conseguem
oferecer respostas antigas para problemas inéditos. Mas, se a única forma
de responder às interpelações do presente é a restauração do passado, que
novidade poderia esperar-se ainda do futuro? Para essa forma de pensar,
o futuro só pode ser entendido como uma repetição monótona do passado
que se prolongaria indefinidamente no presente.

A segunda forma de conceber o futuro foi sempre a tentação de não pou-


cos cristãos diante dessa mistura paradoxal do cristianismo que, ao encarnar-
se, torna-se limitado e deixa-se afetar – poderia ser de outra forma? – pela
fragilidade do humano. É a tentação de todos aqueles que, ontem como
hoje, são incapazes de suportar o lado sombrio da história do cristianismo
que se reflete no rosto da Igreja; essa Igreja santa e pecadora, que os Santos
Padres não hesitavam em denominar, sem embaraço, casta meretrix. Mas
para os cátaros de todas as épocas, a opacidade da vida da Igreja é insu-
portável. Por isso, em nome de um cristianismo ‘ideal’, refugiam-se num

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futuro imaginário que os exime de carregar o presente nos seus ombros,
para encarregar-se dele e assim transformá-lo.

Nenhuma dessas duas formas, porém, é capaz de pensar teologicamente o


futuro do cristianismo. Porque, em termos cristãos, o futuro é uma questão
de esperança, que não se confunde com as nossas expectativas. Só a espe-
rança, como virtude teologal, permite-nos avançar sem medo até as raízes
desse momento crucial no qual se encontra o cristianismo. Momento que
só pode ser comparado com o que foi aquele momento decisivo no qual a
fé cristã teve que ‘passar’ – êxodo e páscoa verdadeiros – do judaísmo para
o helenismo. Porque não se trata de retoques nem de reformas. O que está
em jogo é uma verdadeira re-criação do figura histórica do cristianismo. E
a oportunidade única de recriar a experiência cristã a partir da sua novi-
dade original.

O futuro do cristianismo não pode ser pensado sem levar-se em conta o


excesso que o constitui: a referência à pessoa de Jesus Cristo como critério
permanente do que é cristão e do que é dado aos cristãos viver em cada
momento. Esse ‘excesso’, essa ‘reserva de ser’, introduzem no cristianismo
uma tensão criadora que nos liberta da tirania do passado (com a sua
tendência a absolutizar certas traduções históricas do cristianismo), torna
possível instaurar uma crítica corajosa do cristianismo atual, e permite-nos
pensar o seu futuro não apenas como projeção do presente que aí está (ou
como a sua prolongação corrigida) mas como verdadeira invenção criado-
ra de algo novo e inédito.

A esperança que se apóia na palavra fiel de Deus, nessa promessa verificada


na história, é a que nos permite ‘resistir’ e ‘permanecer’ no meio das muitas
contradições que tendem a sufocá-la. ‘Esperar contra toda esperança’, dizia
Paulo (Rm 4, 18), falando precisamente de Abraão, aquele que “creu em
Deus que vivifica os mortos e chama à existência o que antes não existia”
(v. 17). Pois “se esperamos o que não vemos, é porque o aguardamos com
perseverança” (Rm 8, 25).

A fé cristã, na verdade muito mais do que ‘crer o que não vemos’, é a


teimosia de ‘não crer o que vemos’, ou seja, que a realidade desfigurada
seja a última palavra. Precisamente porque esperamos, porque acredita-
mos no ‘excesso’ do real. A esperança cristã, assim entendida, nos faz levar
tão a sério o presente que nem os condicionamentos do passado, nem as
incoerências do presente, podem nos demover da certeza de um futuro
novo. Porque o presente é mais, pode dar mais de si, do que ousam
afirmar as nossas análises. Para o cristão, a história, e, portanto, o futuro,
está entregue à responsabilidade do homem, sim, mas não tem nele o seu
fundamento. Porque a história de Deus com o homem começa com uma
promessa que abre o presente para uma realização e uma plenitude ines-
peradas.

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Por isso, qualquer realidade – mesmo a mais desfigurada – está grávida de
uma ‘reserva de sentido’; é mais do que a vida deixa transparecer. Uma
das grandezas do fato cristão é ter libertado a história do fatalismo e da
necessidade, precisamente porque nela há sempre lugar para o imprevisível
de Deus. O futuro, em termos cristãos, não pode ser ‘projetado’ porque não
o dominamos; é advento, algo que nos chega como dom, como graça que
nos surpreende, algo que ad-vém a nós, que está por-vir. Eis por que só
pode ser inédito: verdadeira criação, fruto da abertura responsável da li-
berdade humana à promessa e ao dom de Deus.

Carlos Palácio SJ é doutor em teologia pela Pontifícia Universidade Gregoriana de


Roma (1975). Atualmente é professor de teologia sistemática no ISI-CES (Instituto Santo
Inácio-Centro de Estudos Superiores da Companhia de Jesus), em Belo Horizonte. Al-
gumas publicações: Jesus Cristo: história e interpretação, São Paulo: Loyola, 1979;
Reinterpretar a Vida Religiosa, São Paulo: Paulinas, 1991; Deslocamentos da teologia,
mutações do cristianismo, São Paulo: Loyola, 2001.
Endereço: Av. Dr. Cristiano Guimarães, 2127
31720-300 Belo Horizonte — MG
e-mail: cpalaciosj@cesjesuit.br

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