Os Dentes Falsos de George Washington - R. Darnton PDF
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i. O processo do Iluminismo:
os dentes falsos
de George Washington
vs. medieval; burgus vs. aristocrtico; liberal V5. tradicional; capitalista vs. feudal, mas, tomados em conjunto, os termos contrastantes apontam para uma linha divisria que tem existido h
muito tempo na conscincia coletiva. Como a maioria das fronteiras, ela provocou conflitos. Alguns pretenderam mud-la de lugar;
outros, elimin-la. gora, porm, ela pode simplesmente desaparecer sem luta porque uma nova linha foi traada: em 1989, a
demarcao de duas eras antes e depois da Guerra Fria. Chegamos ao fim de um sculo curto, que se estendeu de 1914 a 1989,
mas no sabemos em que sculo estamos entrando.
A era do ps-modernismo? O termo significa coisas diferentes para pessoas diferentes, mas, por mais insatisfatrio que possa
ser, comunica um senso de ruptura com uma poca em que os termos eram claros ou pelo menos desencadeavam claramente uma
srie de idias antagnicas. Era-se a favor ou contra o liberalismo,
o conservadorismo, o capitalismo, o socialismo, o individualismo,
o coletivismo e assim por diante. Agora falamos, ou, antes, discursamos, sobre representao, memria, inveno, negociao,
construo, interpretao, construo e desconstruo. Tendo
tomado o caminho da lingstica, sentimo-nos livres para reeditar
a realidade e declarar morto o Iluminismo. Mas a realidade se
recusa a comportar-se como um texto e o Iluminismo parece
ainda ter vida dentro de si, porque ainda um menino aoitado,*
e no se aoitam cadveres. Os ataques mudaram, porm. No lugar
das antigas acusaespositivismo rasteiro, otimismo ingnuo,
ideologia burguesa , os ps-modernistas tm denunciado o Iluminismo a partir de um novo conjunto de alegaes. A acusao
assume a seguinte forma:
*No original, whipping boy> garoto educado junto a. um prncipe e ocasionalmente castigado no lugar deste. A expresso tem o sentido figurado de bode
expiatrio. (N.T.)
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1. A pretenso do Iluminismo universalidade serviu na verdade como uma mscara para a hegemonia ocidental. Os direitos
do homem deram legitimao destruio de outras culturas.
Exemplo: capito Cook.
No vou minimizar os danos ocasionados por ocidentais quando entraram em contato com outras partes do mundo, nem tampouco questionar a reputao de Cook como homem prototlpico
do Iluminismo, Mas Cook mostrou muito respeito pelos costumes
nativos, muito mais do que os conquistadores do sculo xvi e os
imperialistas do xix. No se podia evitar a tragdia nos encontros
OesteLeste e NorteSul, mas ela era trazida pelo comrcio, pela
doena e pela tecnologia, e no pela filosofia. A incompreenso
mtua certamente contribua para o estrago. Sua dimenso cultural era crucial; mas Iluminismo c cultura ocidental no eram a
mesma coisa, e os philosophes fizeram esforos louvveis no apenas para compreender outros povos, mas tambm para melhorar
seu destino: veja-se a Histoirephilosophique des tablissements etdu
commerce des Europens dans les deux Jndes, um tratado radical e
amplamente difundido do abade Raynal, que contribuiu muito
para a abolio da escravido.
Uma acusao afim segue uma linha um pouco diferente:
2 . 0 Iluminismo era imperialismo cultural sob o disfarce de
uma forma mais elevada de racionalidade. Ele proporcionou aos
europeus uma "misso civilizadora" e um meio de construir "nativos" que levou ao silncio e submisso destes ltimos. Exemplo:
o orientalismo.
Este argumento bebe em Foucault, na teoria literria e na
antropologia para enfatizar os ingredientes epistemolgicos e culturais da hegemonia ocidentai Ningum que tenha empreendido
a leitura dessas fontes ir negar que os indivduos esto sempre
construindo os outros. Em encontros intercultura/j, "alterizao"
(para usar o jargo) pode ser fatal. Ela leva ao "essencialismo"
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(outro termo pejorativo em vigor) isto , projeo de qualidades nos outros de uma maneira que os reifica aos olhos do observador e vezes tambm aos deles prprios. A esse respeito o pensamento iluminista pode parecer "limitado pela cultura" e
"no-dialgico" (mais dois tabus na cincia social ps-moderna).
Mas toda cultura tem fronteiras. As noes ocidentais de individualismo podem de fato ser incompatveis com as noes de eu
desenvolvidas na China e na ndia. Mas o Iluminismo abriu o caminho para uma compreenso antropolgica dos outros. Ele foi
profundamente dialgico e forneceu um antdoto a sua prpria
tendncia a dogmatizar: testemunhos disso so o Suplemento
viagem de Bougainville de Diderot e todos os dilogos do autor.
O orientalismo certamente abasteceu os esteretipos que eles
imputavam ao Oriente, e os philosophes contriburam com sua
quota para essa tendncia. Montesquieu e Voltaire podem ter colocado seus simpticos persas e chineses filosficos sob uma luz
positiva com o intuito de projetar de volta uma viso crtica sobre
a Frana; mas estereotipar positivamente , de todo modo, estereotipar, e pode bloquear a receptividade a uma genuna relao de
troca com outras culturas. Mas outras pocas, em contraste com o
sculo XVIII, significavam quase s tomar tudo sem dar nada em
troca. O imperialismo essencialmente um fenmeno do sculo
XDT, e encontrou muito mais inspirao nos romnticos que nos
philosophes. Byron e Kipling, Declacroix e Ingres, Verdi e Puccini
superaram de longe os artistas do sculo xvni na criao de orientais exticos. Alm disso, a "exotizao" comeou muito antes do
Iluminismo, e tomou freqentemente a forma de demonizao.
Sarracenos cruis, dspotas orientais e ttes de Turcs proliferaram
na imaginao ocidental desde as primeiras guerras contra o
Imprio Otomano. Preconceitos mais antigos datam das Cruza-das. Desenvolveram-se ao longo dos sculos, acompanhados,
bom que se diga, dos preconceitos dos orientais contra o Ocidente.
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cTAlembert nos cantos mais sombrios da crueldade. Max Horkheimer e Theodor Adorno alinhavam Sade com Kant e Nietzsche
numa "dialtica da iluminao" que se estendia de Homero a
Hitler. Confrontados com os desastres do totalitarismo e da guerra
mundial, eles questionavam a presumida sabedoria da esquerda,
que associava o Iluminismo revoluo. Em vez disso, sustentavam que o Iluminismo levou, por lima dialtica negativa, quilo
que poderia parecer o seu oposto, o fascismo.
D para entender o ponto de vista deles: uma desmistificao
racional como a do sculo xvil poderia ser compreendida como
algo que produz sua anttese dialtica, uma mitologia moderna da
cincia e da tecnologia, que desemboca num deserto moral. Mas
isso pode ser tomado seriamente como tentativa de dar conta do
Iluminismo? Horkheimer e Adorno no discutem a obra de um
philosophe francs sequer. Em lugar de considerar o Iluminismo
concretamente, como um fenmeno situado no tempo e no
espao, eles o perdem de vista enquanto especulam sobre todo o
curso da civilizao ocidental.
O ponto cego nas especulaes deles tem srias conseqncias, porque o Iluminismo fornecia a principal defesa contra a barbrie que eles deploravam. A tentativa de Montesquieu de escorar
a liberdade contra as agresses do despotismo, as campanhas de
Voltaire contra as perverses da justia, o apelo de Rousseau pelos
direitos dos desvalidos, o questionamento, por Diderot, de toda
autoridade, incluindo a da prpria razo: tais foram as armas legadas pelos intelectuais do sculo xvin a seus sucessores de duzentos
anos depois. Horkheimer e Adorno recusaram-se a fazer uso delas.
Em vez disso, beberam em outra tradio filosfica, aquela
que vai de Hegel a Heidegger. No que eles subscrevessem o hitlerismo de Heidegger. Mas, ao observar Hitler da perspectiva da dialtica alem, foram incapazes de compreender o supremo mal que
subjugou a Alemanha, Esse mal condenado pelos padres de di30
incitar a aceitar a necessidade de assumir posies numa paisagem despojada de balizas significativas. Como Horkheimer e
Adorno, Grayno se d o trabalho de examinar o que os philosophes franceses de fato escreveram. Em vez disso, oferece uma descrio vaga e sem substncia de algo que chama de projeto iluminista e passa a conden-lo por sua incapacidade de estar altura
dos padres da filosofia ps-moderna. parte seu anacronismo,
a tese parece supor que a cultura poltica deriva da teoria poltica,
como se um movimento em falso ou uma mudana de rumo na
lgica de um filsofo pudesse determinar a maneira como os
mortais comuns orientam-se no mundo. Gray os coloca nos
eixos. Armado com argumentos de Nietzsche, Horkheimer e
Adorno, ele fustiga o que toma pela viso de mundo do Iluminismo, deixando-a em farrapos, e desafia seus leitores a aceitar seu
"destino histrico" isto , o mundo segundo Gray, um mundo
sem iluminismo, "a condio ps-moderna de perspectivas fraturadas eprticas sem fundamento"'
Os filsofos do Iluminismo provavelmente seriam reprovados nesse teste se Gray o ministrasse depois de examinar a obra
deles. Condorcet desviado, sem dvida, de uma compreenso
do destino histrico por seus esforos em libertar escravos, emancipar mulheres e deter Robespierre provavelmente tiraria nota
zero, pois o que poderia ser mais sem fundamento, quando visto
do lado de c do hitlerismo e do stalinismo, que a sua teoria do progresso: a razo abolindo a falsidade com a ajuda da imprensa? Mas
pode no ser absurdo conceber o progresso com p minsculo,
como veremos mais adiante. Por enquanto, o que fazer da combinao de razo e Terror, que levou Condorcet ao suicdio?
5. O Iluminismo est nas origens do totalitarismo. Ele forneceu as bases tericas para o Terror na Revoluo Francesa, que por
sua vez mostrou o caminho para os horrores de Hitler e Stalin. O
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No h necessidade de recitar a lista inteira. Todos a conhecemos bastante bem. O que no conseguimos absorver a paixo que
leva homens a matar por tais causas. Para ns, a pequena minoria
de bem nutridos e bem-educados ocidentais, Robert Graves disse
tudo no final da Primeira Guerra Mundial: "Adeus a tudo aquilo"
Nossos pais lutaram na Segunda Guerra Mundial para extinguir o
nacionalismo, no para desencade-lo. Contudo, a cada dia ele
explode diante dos nossos olhos nas telas de nossos televisores.
Como podemos ver sentido no impulso de dar a vida por fantasias
como a Mae ndia?
Eis Ajit Singh, um nacionalista apaixonado, discursando para
uma multido em Rawalpindi em 1907, de acordo com um agente
policial que secretamente anotou suas palavras: "Morram pelo seu
pas. Somos trinta crores* [trezentos milhes]. Eles so um lakh e
meio [150 mil]. Um sopro de vento os jogaria longe. Canhes no
tm nenhuma valia. Um dedo pode facilmente ser quebrado. Quando cinco dedos se juntam para fazer um punho, ningum p ode quebr-los. (Isso foi dito com muit nfase, e flores.foram atiradas)".
Podemos entender o sentido. Mas ser que podemos "entender" a~ chuva de flores, a batida dos ps descalos, as canes brotando dos peitos, os meninos correndo para fazer juramentos selados com cangue, os velhos com lgrimas nos olhos, os ns nas
gargantas?
As palavras permanecem, a msica se foipelo menos para
aqueles que acolhem a frase de Graves e acrescentam: "Adeus, e j
vai tarde! Que o nacionalismo morra mil vezes e nunca mais ressuscite" Entretanto a est ele, vivo e rugindo nossa volta, praticamente audvel em Londres, Amsterd, Paris e Roma. Ser que
*Crore: na ndia, o equivalente a 10 milhes, ou cem lakhs. O lakh a soma de 100
mil. Ambos os termos so usados geralmente para dinheiro (rpias), mas aplicamse eventualmente a outros objetos.e, como no caso presente, a pessoas. (N. T.)
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