Tese Joo Batista Da Silva Porto Junior-Compactado

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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

ESCOLA DE ARQUITETURA E URBANISMO


PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

JOÃO BATISTA DA SILVA PORTO JUNIOR

O CASTELO DE GUÉDELON E O MEDIEVALISMO CONTEMPORÂNEO

NITERÓI
2021
II

JOÃO BATISTA DA SILVA PORTO JUNIOR

O CASTELO DE GUÉDELON E O MEDIEVALISMO CONTEMPORÂNEO

Tese apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Arquitetura e Urbanismo da
Universidade Federal Fluminense, como
requisito parcial para obtenção do título de
Doutor em Arquitetura e Urbanismo. Área
de Concentração: Produção e Gestão do
Ambiente Urbano.
Linha de pesquisa: Cultura e História da
Arquitetura, da Cidade e do Urbanismo.

Orientadora: Prof.ª Dr.ª DINAH TEREZA PAPI DE GUIMARAENS


Coorientadora: Prof.ª Dr.ª ANA MARIA SEABRA DE ALMEIDA RODRIGUES

NITERÓI
2021
30

destaca como um dos seus maiores críticos –, a Ego-História já amplificou a sua


importância e surge como alternativa estratégica para se escrever História. Eric
Hobsbawm (1917-2012) reitera a importância dessa prática de autorreflexão ao
declarar: “a autobiografia de um historiador é também, em outro sentido, parte
importante da construção de seu trabalho” (HOBSBAWM, 2002, p. 12).

Essa pesquisa possui muito de Ego-História à medida que tento aproximar


minhas próprias lembranças de vida às experiências sociais compartilhadas com
outros grupos. Todos esses “fatores/elementos”, desde a literatura aos filmes,
passando pelo videogame, o RPG e até mesmo a música, apesar de não
constituírem por si só o objeto dessa pesquisa, também precisam ser abordados,
pois possuem o seu quinhão de importância e contribuem para o entendimento do
tema. Afinal, essa tese não versa sobre a Idade Média, mas, principalmente, como
ela continua presente no imaginário contemporâneo, nas suas formas simbólicas ou
fabulações e ainda em [re]criações ou [re]construções que perseguem um medievo
mais historicamente correto e arqueologicamente autêntico.

1.2. Teoria & Delimitação do Tema

Essa Idade Média que se faz presente já foi estudada e analisada de


diversas maneiras. Ainda na década de 1970, o professor da Universidade de
Londres Leslie J. Workman (1927–2001) reivindicou e ficou conhecido por
estabelecer o “medievalismo” como uma disciplina acadêmica para abranger todos
os tipos de interação com a Idade Média e a recepção da cultura medieval em
períodos pós-medievais, compreendendo o “medievalismo como o processo
contínuo de criação da Idade Média”4 (WORKMAN, 1997, p. 29). Antes dele, no
entanto, o escritor e poeta vitoriano John Ruskin (1819-1900) utilizou pela primeira
vez o termo “Mediævalismo” em 1853, para se referir ao entusiasmo e admiração da
sua geração em relação às coisas medievais, expressos na sua famosa Escola de
Artes & Ofícios, na produção arquitetônica neogótica e na Irmandade pré-rafaelita.
Boa parte da carreira de Ruskin foi associada à Universidade de Oxford. O teórico
propunha uma reconciliação entre arte e vida, trabalho e prazer, sendo um grande

4
“Medievalism as the continuing process of creating Middle Age”
31

apologista do estilo gótico medieval e defensor do revivalismo gótico, mais


especificamente o neogótico veneziano.

No texto crítico e poético, publicado somente em 1854, em defensa da arte


pré-rafaelita, e reunido no compêndio Lectures on Architecture and Painting (1854),
John Ruskin resume a história cultural europeia em uma “Trindade de Eras”5,
segundo ele:

Quero aprofundar e esclarecer para vocês essa consciência de que o


mundo teve essencialmente uma Trindade de eras – a Idade Clássica, a
Idade Média, a Idade Moderna; cada uma delas envolvendo raças e
indivíduos aparentemente separados em uma enorme diferença de tipos,
mas unidos no espírito de sua época, – a Idade Clássica tendo seus
egípcios e ninivitas, gregos e romanos, – a Idade Média tendo seus godos e
francos, lombardos e italianos, – a era moderna, com franceses e ingleses,
espanhóis e alemães; mas todas essas distinções sendo, em cada caso,
subordinadas à distinção mais poderosa e mais ampla entre Classicismo,
Mediævalismo e Modernismo6. (RUSKIN, 1854, p.193)

Foi precisamente nesse parágrafo que John Ruskin utilizou pela primeira vez
o termo “Mediævalismo”, genericamente descrito como o conjunto das
interpretações tardias da Idade Média. Ao longo de todo o seu texto, o período
medieval é reiteradamente exaltado, em contraposição ao modernismo, considerado
como uma verdadeira era das trevas e de negação a Cristo.

Eu digo que o classicismo começou, onde quer que a civilização


começasse, com a fé pagã. O Mediævalismo começou e continuou, onde
quer que a civilização começasse e continuasse a confessar a fé cristã. E,

5“Trinity of ages”
6 “I want to deepen and make clear to you this consciousness that the world has had essentially a
Trinity of ages—the Classical Age, the Middle Age, the Modern Age; each of these embracing races
and individuals of apparently enormous separation in kind, but united in the spirit of their age,—the
Classical Age having its Egyptians and Ninevites, Greeks and Romans,—the Middle Age having its
Goths and Franks, Lombards and Italians,—the Modern Age having its French and English, Spaniards
and Germans; but all these distinctions being in each case subordinate to the mightier and broader
distinction, between Classicalism, Mediævalism, and Modernism”.
32

finalmente, o modernismo começou e continua, onde quer que a civilização


tenha começado e continuado a negar a Cristo7.

Para o crítico de arte inglês, Classicismo, “Mediævalismo” e Modernismo


não são apenas períodos ou estilos artísticos, mas estão inextricavelmente
associados a determinados valores, modos de vida e demais expressões culturais e
religiosas. O “Mediævalismo” para John Ruskin era um potencial modelo para a
nascente sociedade industrial que tanto criticava. O revival gótico, por exemplo, era
uma reação aos efeitos degradantes do predomínio da máquina e o medievalismo
romântico vitoriano foi um dos mais abrangentes e historicamente expressivos,
conforme sugere Cristina Meneguello (2008, p.116, 117)

Uma das artes da memória histórica é, ao lançar seu olhar para o passado,
inventá-lo. Seja com intenções cívicas, de glorificação, ou como justificativa
para os tempos contemporâneos, o passado vem em socorro do presente,
portando características tão imediatas e reconhecíveis quanto esse
presente. Responde às perguntas do agora com a autoridade da origem e
estabelece uma reconfortante continuidade.

O conceito de medievalismo permite ampliar sobremaneira a definição do


gótico estético ou arquitetural. Ocorrido na Inglaterra a partir da década de
1820, o medievalismo constituiu um dos momentos mais marcantes em que
se recriou um passado, estético e político, em meio a um presente que
parecia volátil e caótico. Nutriu-se em relação ao passado uma postura
ambivalente: pela ciência e engenharia e indústria cabia superá-lo e
esquecê-lo; como o valor moral e estético cabia recuperá-lo e idolatrá-lo. As
transformações vividas na Inglaterra na época vitoriana já foram objeto de
diversos estudos, muitos dos quais grandes clássicos, seja em termos das
relações de produção e trabalho, da urbanização ou da modernidade vivida
como experiência de descentramento. A conjunção das riquezas da
potência naval aplicadas internamente, fundamentadas pelo calvinismo
como estímulo ao lucro, a intensificação dos processos de cercamento e a
transformação urbana sem precedentes do país constituem a descrição já
célebre da Revolução Industrial e de seus efeitos [...]. Coube em grande
parte às artes expressar, condenar ou reverter esse movimento, como

7“I say that Classicalism began, wherever civilization began, with Pagan Faith. Mediævalism began,
and continued, wherever civilization began and continued to confess Christ. And, lastly, Modernism
began and continues, wherever civilization began and continues to deny Christ”.
33

recuperação de um passado específico. Entretanto, o neogótico inglês foi


dotado de uma dimensão muito mais ampla em termos culturais e estéticos
do que parte da historiografia tradicional admite quando o classifica de
artisticamente inferior, pois para além de sua dimensão na arquitetura
esteve presente na literatura e nas artes plásticas fundamentado pela
religião e pela ciência histórica. E, como toda tendência cultural, a ideia de
‘influência’ aqui não se restringe a um universo unívoco e sim determina a
estética, a crença, as questões morais e culturais de seu período.

Na interpretação ruskiniana, o medievalismo romântico se afigurava como a


verdadeira manifestação, não apenas da arte e da arquitetura, mas dos valores mais
nobres e genuínos, cristãos e incorruptos. Após John Ruskin, outros pensadores
ainda se apropriaram do termo medievalismo. No entanto, o interesse nessa área
desenvolveu-se mais rapidamente a partir dos estudos científicos de Leslie
Workman, que em 1979 fundou a revista acadêmica interdisciplinar Studies in
Medievalism (SiM), totalmente dedicada a estudar as diferentes percepções da
Idade Média. Ele também concebeu a revista The Year's Work in Medievalism
(YWiM) como amplo foro de discussão para divulgação de bibliografias abrangentes,
resenhas e anúncios de eventos, mas acabou se tornando uma publicação dos
anais das conferências da International Society for the Study of Medievalism,
também criada por ele. Como qualquer disciplina nova, o medievalismo enfrentou
muita resistência para se estabelecer e, até hoje em dia, os acadêmicos mais
tradicionalistas refutam e criticam essa temática.

Segundo Workman, o medievalismo contribui para o entendimento das


diferentes formas que a Idade Média foi e continua sendo [re]apropriada,
[re]inventada, [re]construída, [re]produzida, [re]lida, [re]escrita, [re]interpretada,
inclusive pelas ciências, pelos meios de comunicação de massa e pelos não
acadêmicos ou leigos.

Em uma entrevista para o medievalista Richard Utz, publicada no artigo


“Speaking of Medievalism: An Interview with Leslie J. Workman” e, posteriormente,
compilado no livro Medievalism in The Modern Word: Essays in Honour of Leslie J.
Workman (1998), o fundador da SiM tenta reconstruir um “breve” relato em claro tom
34

ego-histórico do “processo mais emocional do que intelectual”8 que o encaminhou


para o medievalismo (apud UTZ & SHIPPEY, 1998, p. 481). Nascido na pequena
comunidade de Hanwell – recentemente absorvida pela grande Londres –, desde
pequeno costumava explorar a região com o seu pai, visitava igrejas medievais,
restauradas por Sir Giles Gilbert Scott e outras ruínas góticas. Relatou também os
efeitos da interpretação de Pilgrim's Progress, e as prematuras leituras de
Shakespeare, William WordsWorth, entre outros autores. Expressou o seu desgosto
pela música de Wagner e afirmou a importância de C.S. Lewis e Ralph Vaughan
Williams tanto para história, quanto para literatura inglesa. Surpreendeu ao declarar
o seu amor por O Hobbit, mas não apreciar tanto O Senhor dos Anéis (ibidem, p.
482-484).

Ao ser questionado se por acaso recordava o momento em que pensou no


medievalismo como disciplina acadêmica, respondeu:

Bem, é nessa pergunta que estamos trabalhando, e acho que o que venho
dizendo é que não houve um momento: houve fatores poderosos, mas
majoritariamente inconscientes. Meu treinamento na Columbia me mostrou
como a história é construída pelos historiadores, e minha experiência como
professor me levou a perceber as implicações disso. Agora, desde o início
dos anos 60, eu havia ensinado em faculdades de artes liberais e, embora
as bibliotecas das universidades adjacentes estivessem sempre disponíveis,
eu nem sempre podia usá-las, e não conseguia desenvolver meu ensino em
torno delas. Por essas e outras razões semelhantes, eu costumava confiar
mais nos recursos da biblioteca da faculdade ou da minha própria biblioteca.
Esse foi outro pequeno fator, porém significativo, que me levou ao estudo
não da Idade Média, mas dos estudiosos, artistas e escritores que
construíram a ideia da Idade Média que herdamos. Esses livros eram mais
acessíveis. Percebi também quão diversas eram essas ideias. Essa
abordagem da Idade Média me deu uma racionalização, se você preferir,
para o estudo dos pré-rafaelitas e de outros artistas e escritores do século
XIX, e eu estava interessado em William Morris e nos pré-rafaelitas desde o
ensino médio. De qualquer forma, comecei a perceber conscientemente
como a Idade Média como um campo de estudo era algo diferente do
conceito pós-medieval. Descobri o notável livro de Wallace Fergunson, The
Renaissance in Historical Thouht (1948), que mostrava como o

8
“emotional rather than an intellectual process”.
35

Renascimento havia criado a Idade Média como um vilão, o Doppelgäner da


história. Se isso fosse invertido, você teria o que chamamos agora de
‘medievalismo’. Outro fator mais importante foi ensinar metodologia e
filosofia, de fato, a história dos estudos históricos. Foi quando percebi que o
estudo moderno da história havia começado no século XV com o estudo da
Idade Média.9 (ibidem, p. 487).

Ou seja, o medievalismo não nasceu em um ambiente estritamente


acadêmico, mas de uma observação criteriosa acerca das diferentes apropriações e
interpretações do medievo, inclusive pela cultura popular. Por fim, Leslie J. Workman
assume ser e não ser, ao mesmo tempo, o fundador do medievalismo. Explica:

No sentido escolar, Alice Chandier é a fundadora do medievalismo moderno


e, merecidamente, a influência de seu livro continuou a crescer. No sentido
acadêmico ou institucional, no entanto, sim, eu sou o fundador do
medievalismo, já que organizei sessões nas conferências, depois toda uma
conferência anual, estabelecendo os estudos sobre medievalismo e outras
publicações, além do boletim informativo e dei ao mundo o seu significado e
a sua presença institucional10. (ibidem, p. 488)

9 Well, That´s the question we have been working up to, and i think what i have been saying is that
there was no moment: there was a powerful but larget unconscius tide. My training at Columbia had
show me how history is constructed by historians, and my teachhing experience led me realized the
implications of this. Now since the begining of the 60s i had taught in liberal arts colleges, and
although the libraries of adjacente universities were always available i could not always make use of
them, and i could not build my teaching around them. For these and similar reasons i tended to rely
more on resources of the college library or my own library. This was another small but significant
factor pushing me toward thhe study not of the middle ages themselves but of the scholars, artists,
and writers who constructed the idea of the middle ages that we inherited: the book were more
accessible. I realized too how diverse these ideas were. This approach to the middle ages gave me a
rationalization, if you like, for the study of the Pre-Raphaelites and other nineteenth-century artists and
writers, and i had been interested in William Morris and Pre-Raphaelites since I was in high school.
Anyway, I began to realize how the consciousness of the Middle Ages as a field of study, as
something different from the postmedieval word, came into being i discovered Wallace Fergunson’s
remarkable book the Renaissance in Historical Thouht (1948), which showed how the Renaissance
had created the Middle Age as the villain, The Doppelgäner of the story. If this was inverted, you had
what we now call “medievalism”. Another most importante factor was teaching method and philosophy,
in fact the history of the historical study, myself. When I realized that the modern study of history had
begun in the fifteenth century with the study of the middle ages.
10 In the scholary sense, therefore, Alice Chandier is the founder of modern medievalism, and the

influence of her book has deservedly continued to grow. In academic or institutional sense, however,
yes, I am the founder of medievalismo, since I first organized conference sessions, later a whole
annual conference, estabished Studies in Medievalism and other publications, and Newsletter, and
gave the world an institutional meaning and presence.
36

Em 2015, o professor de Estudos Medievais da Universidade de


Manchester, David Matthews, produziu uma bem-vinda atualização sobre o tema do
medievalismo na publicação Medievalism: A Critical History (2015). O livro analisa
algumas das questões acerca da relação mal resolvida entre a contemporaneidade e
a Idade Média. “O fantasma da Idade Média está inquieto”11 (ibidem, p.01), anuncia
logo na introdução, enquanto lista as mais recentes referências midiáticas ao
medievo em pleno século XXI. Citando a ampla conceituação de Thomas Alan
Shippey, reitera o medievalismo como “O estudo das respostas à Idade Média em
todos os períodos, desde quando a ideia do medieval começou a se desenvolver”12
(ibidem, p.01), embora admita a dificuldade de estudar uma área tão vasta e
diversificada:

O medievalismo estuda tanto uma série de artefatos culturais quanto os


seus objetos de estudo: das catedrais neogóticas aos jogos medievais de
computador; das atividades desenvolvidas pelas sociedades de re-
enactment aos filmes e romances, até mesmo locais turísticos medievais,
sem contar as narrativas dos tabloides, pinturas do século XIX e muito mais.
Embora seja relativamente fácil realizar estudos de caso individuais em
qualquer um desses campos, é extremamente difícil tentar sintetizá-los13
(ibidem, p. 16).

Existe uma miríade de produções culturais relevantes para o medievalismo


(ibidem, p.19). No livro, David Matthews explora também os “paradoxos do
medievalismo: aqueles do tempo e espaço medievais na era moderna”14 (ibidem, p.
41) e ressalta alguns problemas metodológicos associados à natureza
transdisciplinar do medievalismo, que não pode ser confundido como sinônimo de
romantismo, tampouco como um mero “revivalismo medieval”15 (ibidem, p. 120).
Pois, conforme afirmou Leslie Wokman, o “medievalismo é endemicamente

11
“The Ghost of The Middle Ages are unquiet”.
12 “The study of responses to the Middle Ages at all periods since a sense of the mediaeval began to
develop”
13 ”Medievalism studies as laid to a very wide range of cultural artefacts as its objetcts of study: from

neo-gothic cathedrals to medievalist computer games; from the activities of re-enactment societies to
films and novels to medieval tourist sites, not mention tabloid narratives, nineteenth-century painting,
and many more. While it is relatively easy to carry out individual case studies within any of these
fields, it is enormously difficult to try to synthesise them”.
14 “Paradoxes of medievalism: those of medieval time and space in modern era”.
15 “Medieval revival”
37

diversificado”16 (ibidem, p. 120). Nas suas conclusões, o autor também comenta as


relações entre o medievalismo e os progenitores já estabelecidos, ou seja, os
tradicionais estudos medievais, esclarecendo que não são áreas tão distintas e
afastadas:

Nas definições dadas pelos defensores do medievalismo, a distinção se


baseia na diferença entre a análise da própria Idade Média e o estudo do
impacto da Idade Média após a Idade Média. Leslie Workman
incansavelmente promoveu a ideia de que o ‘medievalismo’ descreve o
‘processo de criação da Idade Média’ ou, como ele colocou em outro
contexto, ‘o estudo não da Idade Média, mas de como estudiosos, artistas e
escritores … construíram a ideia de Idade Média que herdamos’. A clareza
dessa distinção está no ponto aparentemente direto e objetivo de que o
medievalismo se preocupa com o processo de criação da Idade Média,
enquanto os estudos medievais se preocupam com o próprio período
medieval.

A distinção se desfaz, no entanto, por causa de um problema marcante.


Embora os estudos medievais possam estar preocupados com o período
medieval, todo esse estudo da Idade Média (por definição) ocorreu depois
da Idade Média. Portanto, os estudos medievais fazem parte do ‘processo
de criação da Idade Média’ e estão envolvidos na ‘percepção (e na
existência continuada, do impacto) da Idade Média em todos os períodos
subsequentes’. Isso significaria que os estudos medievais são
indistinguíveis do medievalismo17 (ibidem, p. 172).

Se o medievalismo possui uma relação direta com os usos da Idade Média,


não há nenhuma forma de estudo medieval que não seja também um medievalismo.

16 “Medievalism is endemically diverse”.


17 “In definitions given by advocates of medievalism, the distinction relies on the difference between
examination of the Middle Ages themselves, and the study of the impact of the Middle Ages after the
Middle Ages. Leslie Workman tirelessly promoted the idea that “medievalism” describes the “process
of creating the Middle Ages” or, as he put it in another context, “the study not of the Middle Ages
themselves but of the scholars, artists, and writers who … constructed the idea of the Middle Ages that
we inherited.”19 The clarity of this distinction lies in the apparently straightforward point that
medievalism concerns itself with the process of creating the Middle Ages, while medieval studies is
concerned with the medieval period itself.
The distinction breaks down, however, because of one striking problem. While medieval studies might
be concerned with the medieval period, all such study of the Middle Ages (by definition) has gone on
after the Middle Ages. So medieval studies is part of the “process of creating the Middle Ages” and is
involved in “the perception (and the continued existence, the impact) of the Middle Ages in all
succeeding periods.” This would mean that medieval studies is indistinguishable from medievalismo”.
38

Nestes termos, o medievalismo, no seu sentido mais amplo, deixou de ser apenas a
manipulação do medievo em uma outra temporalidade e tornou-se um veículo para
acessar a Idade Média.

O medievalista Norman F. Cantor (1929-2004) – apesar de não compartilhar


a mesma vertente de pensamento do David Matthews –, na sua obra Inventing the
Middle Age: The lives, work, and ideas of the great medievalist of the twentieth
century (1991), também sustenta a ideia dos estudos medievais como formas de
interpretação do medievo. Sua obra tornou-se fundamental e assinalou o paradigma
do medievalismo. Para ele, os esforços e sacrifícios que inúmeros estudiosos
empreenderam para tentar recuperar a Idade Média real apenas resultaram em
muitas outras invenções subjetivas do Medium Ævum. “Todo mundo carrega uma
visão altamente pessoal da Idade Média”18 (CANTOR, 1991, p.43).

O que mais me interessa é como as experiências de vida e os meios


culturais desses medievalistas se integram às suas reflexões conscientes
sobre o mundo medieval. Ao escrever e ler a história, estamos visivelmente
criando uma psicanálise na qual nossas próprias ansiedades, esperanças,
medos e decepções se tornam interativas com as descobertas aprendidas e
com as bases de dados que proliferam da pesquisa acadêmica.

Qualquer um pode cantar a ária de uma ópera, alguns com uma boa voz
natural e um pouco de treinamento podem fazer um bom trabalho. Mas
ninguém vai considerar esse canto para satisfação privada como
construções ou leituras autorizadas de Mozart, Wagner ou Verdi. Pagamos
um bom dinheiro para ir a uma grande casa de ópera e ouvir os principais
cantores. As suas interpretações de árias particulares ou obras operísticas
inteiras sempre diferem marginalmente e às vezes radicalmente. O mesmo
acontece com os estudiosos das humanidades quando eles tentam construir
para nós uma imagem do passado. Eles também fazem um trabalho
altamente profissional. As ideias da Idade Média articuladas pelos mestres
medievalistas variam substancialmente uma da outra. O libretto ou a fonte
em que estão trabalhando – os dados sobre os acontecimentos históricos –

18 “Everyone carries around a highly personal view of the Middle Ages”.


39

são os mesmos. A verdade, portanto, não está nos detalhes do texto, mas
nas interpretações19 (ibidem, p.45).

Norman F. Cantor destaca o subjetivismo das interpretações sobre a Idade


Média ao longo dos períodos históricos como consequência das pesquisas pessoais,
mas principalmente de interesses, experiências e contextos socioculturais
específicos. A história inventa o passado como uma reconstrução narrativa e todos
os medievalistas recriaram e reescreveram o passado medieval à sua maneira, ou
seja, produziram “medievalismo”20 (ibidem, p.52). Ele também argumenta que a
história medieval é particularmente atraente para inventores e suscetível a
invenções.

Ainda mais recentemente, em 2017, o já citado Richard Utz, atual presidente


da International Society for the Study of Medievalism (ISSM), publicou Medievalism:
A Manifesto (2017). O termo “manifesto” no título se justifica, pois o livro possui um
claro objetivo político, exposto pelo autor logo nas primeiras páginas:

Quero ajudar a reformar a maneira como pensamos e praticamos nosso


envolvimento acadêmico com a cultura medieval, e usarei minhas
observações como medievalista e medievalismo-ista nos últimos vinte e
cinco anos para oferecer algumas maneiras por meio das quais talvez
possamos nos reconectar com o público em geral, que permitiu nos

19 “What interest me most of all is how the life experiences and cultural milieus of these medievalists
become integrated into their conscious refletions on the medieval world. In writing and reading history,
we are visibly creating a psychoanalysis in which our own anxieties, hopes, fears, and
disappointments become interactive with the learned discoveries and data bases that academic
research proliferates”.
“Anyone can sing na operatic aria, and some with good natural voices and a little training can do a
pretty good job it. But nobody is going to regard such singing for private satisfaction as authoritative
constructions or readings of Mozart, Wagner, or Verdi. We pay good money to go to a major opera
house and listen to the master singers. Their interpretations of particular arias or whole operatic roles
always marginally and sometimes radically differ. So it is with humanistic scholars when they try to
construct for us an image of the past. They, too, do a highly professional job. The ideias of the Middle
Ages articulated by the master medievalists vary substantially one from another. The libretto and score
they are working from – the data of historical fact – are the same. The truth, therefore, is ultimately not
in the textual details but the interpretations”.
20 “Medievalism””.
40

tornarmos, desde o final do século XIX, um clã de especialistas bastante


exclusivo, que se comunica principalmente entre si21. (UTZ, 2017, p. 11)

O livro soa paralelamente como um protesto e um grito de guerra


cuidadosamente construído, convocando os medievalistas a descerem das suas
“torres protetoras de marfim”22 (ibidem, p. 86) e abrirem os seus portões fortificados
à sociedade. Para sobreviver, os estudos medievais não podem continuar como uma
disciplina elitista, afirma o historiador, que também utiliza o medievalismo como um
dos múltiplos exemplos para demonstrar como os estudos medievais já estão
apoiados em novas formas de comunicação. Apropriando-se de novos paradigmas e
de tendências mais recentes da historiografia, Richard Utz reitera a importância de
uma urgente atualização da academia em relação ao tema do medievalismo.

O “medievalismo” pode ser considerado como um vasto campo de estudos


empenhado em contemplar todas as referências à Idade Média nas épocas
históricas posteriores, buscando compreender melhor as rememorações do
medievo. No entanto, a partir do já consolidado termo/conceito “medievalismo”, foi
criado também o “neomedievalismo”. Esse neologismo também foi utilizado por
diversos autores. Primeiramente, pelo cientista político Hedley Bull (1932-1985), no
seu livro A Sociedade Anárquica: Um Estudo da Ordem Política Mundial (2002),
originalmente escrito em 1977, quando aplicou o termo como metáfora para analisar
a história política e econômica. Mas o préstimo mais famoso e reconhecido ficou a
cargo do também já citado milanês Umberto Eco, no ensaio Travel in Hyper Reality
(1986), em seu segundo capítulo “The Return of The Middle Ages”, o escritor de O
Nome da Rosa (1980) e Baudolino (2000) afirma:

Assim, estamos agora testemunhando, tanto na Europa quanto na América,


um período de renovado interesse pela Idade Média, com uma curiosa

21“Iwant to help reform the way we think about and practice our academic engagement with medieval
culture, and I will use my observations as a medievalist and a medievalism-ist over the last twenty-five
years to offer ways in which we might reconnect with the general public that has allowed us to
become, since the late nineteenth-century, a rather exclusive clan of specialists communicating mostly
with each other”.
22 “Protective ivory tower walls”
41

oscilação entre um fantástico neomedievalismo e uma responsável análise


filológica23 (ECO, 1986, p.64).

O autor utiliza o termo para descrever fenômenos semióticos, enquanto traça


um curioso paralelo entre a Idade Média e a contemporaneidade, contrapondo
fenômenos medievais aos acontecimentos do cotidiano cosmopolita. Por fim,
entende que, sob sua aparência imobilista e dogmática, a Idade Média foi um
momento de revolução cultural, uma readaptação contínua, uma transição
permanente (ibidem, p.84).

Apesar de Umberto Eco ter ajudado a popularizar o neomedievalismo, as


explicações mais compreensivas para o uso desse novo conceito derivaram dos
escritos das pesquisadoras estadunidenses Carol L. Robinson e Pamela Clements,
primeiramente no ensaio Living with Neomedievalism (2009), publicado na revista
SiM e, posteriormente, na antologia Neomedievalism in the Media: Essays on Film,
Television, and Electronic Games. (2012).

O neomedivalismo nos filmes, na televisão e nos jogos eletrônicos torna-se,


em grande parte, um fenômeno existente sob uma luz favorável. Não mais
uma ordinária ‘wash-and-wear sorcery’ ou uma ideologia maligna do Eixo do
Terror – o neomedievalismo, sob essa luz, torna-se muito mais uma
experiência estética efervescente, alegre e prazerosa: em alguns casos, a
política utópica de [Hedley] Bull em uma realidade virtual. Mas a fluidez
efervescente desse neomedievalismo digitalizado é mais transparente que
sólida – dificultando sua análise à medida que dança na luz, mudando
constantemente as cores, mudando constantemente de formas – mudando
constantemente para uma direção constante24. (ROBISON & CLEMENTS,
2012, p .05)

23
“Thus we are at present witnessing, both in Europe and America, a period of renewed interest in the
Middle Ages with a curious oscillation between fantastic neomedievalism and responsible philological
examination”.
24 “Neomedievalism in film, television, and eletronic games becomes, for the most part, a phenomenon

existing in a favorable light. No longer thhe cheap “wash-and-wear sorcery” and no loner te evil
ideology of the Axis of Terror – neomedievalism, in the light, becomes more of a bubbling, light-
hearted, pleasurable aesthetic experience: in some cases, Bull’s political utopia in a virtual reality. But
the bubbling fluidity of this digitized neomedievalism is more transparente than solid – making it
42

Nas suas páginas introdutórias, o livro apresenta os aspectos positivos e


otimistas desse neomedievalismo mais livre e criativo. O restante da obra elenca
uma vasta diversidade de temas associados ao conceito e alerta como a ilusão
romântica fornecida pelo neomedievalismo contribui para uma crescente
comoditização – ou comodificação – da Idade Média. As autoras sugerem que esses
mundos medievais fantásticos refletem – de alguma forma – o nosso próprio mundo
e endossam os argumentos de Richard Utz.

Os textos neomedievais não precisam mais se empenhar pela busca da


autenticidade dos manuscritos, castelos ou catedrais originais, mas criam
mundos pseudo-medievais que divertidamente obliteram a história e a
precisão histórica e substituem narrativas baseadas em história por
simulacros do medieval, empregando imagens que não são originais, nem a
cópia fiel de um original, mas totalmente ‘neo’25 (apud ROBISON &
CLEMENTS, p. 07 ,2012).

Robison & Clements (2009) afirmam que muito do que às vezes é


categorizado como “medievalismo”, na verdade, faz parte de um novo campo
relacionado ao “medievalismo”, mas caracterizado por uma “complexidade de
ideologias” muito mais autônomas e mais desapegadas da Idade Média. Com efeito,
de acordo com as autoras, o “neomedievalismo é mais independente, mais
individual, e, assim, conscientemente, propositalmente, e talvez até mesmo
risivelmente, remodela-se em um universo alternativo de medievalismos, uma
fantasia dos medievalismos, um metamedievalismo”26 (ROBISON & CLEMENTS,
2009, p. 56). O conceito de neomedievalismo abarca todas as formas fantasiosas de
representações e releituras da Idade Média, ele não precisa de rigor histórico e
tampouco pretende disputar com a realidade. Seu aspecto lúdico deve ser entendido
como um componente intrínseco. É um recurso muito utilizado na literatura, cinema,

difficult to see as it dances in the light, constantly shifting colors, constantly shifting shapes –
constantly shifting toward a constant direction”.
25 “Neomedieval texts no longer need to strive for the authenticity of original manuscripts, castles, or

cathedrals, but create pseudo-medieval worlds that playfully obliterate history and historical accuracy
and replace history-based narratives with simulacra of the medieval, employing images that are
neither an original nor the copy of an original, but altogether ‘neo’”.
26 “Neomedievalism is further independent, further detached, and thus consciously, purposefully, and

perhaps even laughingly reshaping itself into an alternate universe of medievalisms, a fantasy of
medievalisms, a metamedievalism”.
43

televisão e no videogame, os quais apelam constantemente para o mítico e o


quimérico medieval. A Idade Média pode ser considerada como um dos períodos
históricos mais revisitados pelo gênero fantasia.

Imagem 05: Exemplo de neomedievalismo na Imagem 06: Exemplo de neomedievalismo no


literatura e posteriormente adaptada para o videogame. Jogo The Elder Scrolls V: Skyrim,
cinema, As Crônicas de Nárnia (The Chronicles of lançado em 11 de novembro de 2011, sobre a
Narnia), baseado nos livros do irlandês Clive história do último Dovahkiin. Vencedor de
Staples Lewis ou C. S. Lewis (1898–1963). diversos prêmios, incluindo melhor jogo do ano
de 2011.
Fonte: http://ce.amc.com/films/the-chronicles-of-
narnia-the-lion-the-witch-and-the-wardrobe. Fonte:https://elderscrolls.bethesda.net/en/skyrim.
Acessado em 3 de fevereiro de 2019. Acessado em 05 de abril de 2014

As autoras também argumentam que o neomedievalismo é uma versão pós-


moderna do medievalismo, o produto de imprecisões intencionais que reimaginam a
Idade Média. No entanto, “a falta de preocupação com a exatidão histórica [...] não é
a mesma sustentada em obras de fantasia mais tradicionais: a diferença é um grau
de autoconsciência e autorreflexividade. Nem é o mesmo que concebemos ser
medievalismo”27 (ROBISON & CLEMENTS, 2009, p. 62). Ao contrário de muitos
exemplos de medievalismo, o neomedievalismo está ciente de sua própria
separação da Idade Média.

A comprovação do interesse pelo neomedievalismo veio mais recentemente


com as oito temporadas da série A Guerra dos Tronos (Game of Thrones), baseada
nos best-sellers As Crônicas de Gelo e Fogo (A Song of Ice and Fire), do romancista
e roteirista norte-americano George R. R. Martin. A série televisiva criada e dirigida

27 “The lack of concern for historical accuracy [. . .] is not the same as that held in more traditional
fantasy works: the difference is a degree of self-awareness and self-reflexivity. Nor is it the same as
what we conceive to be medievalism”.
44

por David Benioff e Daniel Brett Weiss e produzida pela HBO foi exibida entre 2011 e
2019 em mais de cento e cinquenta países, galgando a posição de destaque como a
série mais assistida da história, além de ter o recorde de série dramática com maior
transmissão simultânea. Repleta de magia, dragões, castelos e cavaleiros, foi um
grande sucesso e gerou um surpreendente fenômeno mundial. Até estojos e
materiais para maquiagem inspirados nas séries foram lançados, com pinceis de
olho imitando espadas. A saga pelo domínio dos sete reinos e a posse do Trono de
Ferro comprovou a arrebatadora sedução exercida pelo neomedievalismo e como a
fantasia medieval continua fascinando o público mundo afora.

O conceito de Neomedievalismo, segundo o próprio Umberto Eco, como


uma contínua e “permanente redescoberta da Idade Média”28 (ECO, 1986, p.67)
algumas vezes repleta de fantasia, também pode ajudar a compreender o sucesso
dos Live action role-playing (LARP), ou simplesmente live action, cuja tradução para
português pode ser “jogo de interpretação ao vivo”, ou simplesmente “ação ao vivo”
– termos dificilmente utilizados pelos seus praticantes. O LARP é um estilo de RPG
mais próximo de um teatro de verdade, em que os participantes representam seus
personagens exatamente como um ator representaria um papel. Os jogadores
costumam se vestir com os figurinos dos seus personagens, neste caso, incluindo
magos, guerreiros, elfos, orcs, goblins, faunos e tudo mais que a imaginação possa
permitir. Apesar de parecer um teatro de improviso, sem roteiro fechado, como todo
jogo, o LARP também possui regras especificas e durante os eventos todos os
participantes devem agir com decoro, ou seja, se manter fiel ao seu personagem e
todas as suas atitudes devem refletir as características desses seres fictícios.

No mundo todo, eventos de LARP reúnem anualmente milhares de pessoas,


entre os mais famosos estão: Avatar Stronghold (Bélgica), Lorien Trust – The
Gathering (Reino Unido), Drachenfest (Alemanha), Conquest of Mythodea
(Alemanha) e Duché de Bicolline (Canadá), onde uma vila com características
medievais foi construída especificamente para o evento. Mais recentemente,
inspirada nos livros da série The Witcher do polonês Andrzej Sapkowski e suas bem-
sucedidas adaptações para o videogame – desenvolvidos pela CD Projekt RED –, foi
criada na Polônia a The Witcher School. Uma verdadeira escola de LARP no Castelo
de Moszna, onde os participantes atuam fisicamente, como se fossem personagens

28 “Permanent rediscovery of the Middle Ages”.


45

da série, aprendendo a lutar com espadas, a usar arco e flecha e até mesmo
alquimia. O curso de formação pelo preço de aproximadamente quatrocentos euros
inclui ainda caçada a monstros pela madrugada afora e outros perigos enfrentados
pelos participantes, além de emitir um certificado de formação de Witcher.

Imagem 07: Magos, guerreiros, elfos e orcs se Imagem 08: The Witcher School no Castelo de
enfrentam na DrachenFest, um dos maiores Moszna, Polônia. Escola de LARP, dedicada a
eventos de LARP do mundo. formação de Witchers, onde os participantes
encarnam os personagens da série.
Fonte: http://magnuslegio.blogspot.com/2012/03/
drachenfest-um-dos-maiores-eventos-de.html. Fonte: https://witcherschool.com/. Acessado em
Acessado em 10 de outubro de 2019. 15 de julho de 2019.

Em 2019, a fantasia neomedievalista The Witcher também sofreu uma


adaptação audiovisual para plataforma Netflix, dirigida por Lauren Schmidt Hissrich.
A série televisiva buscou preencher o vazio deixado pelo controverso final de Game
of Thrones. Repleto de elementos neomedievais, como magos, elfos, dragões e
outros monstros – muitos monstros –, a nova série segue a mesma receita para o
sucesso, abusando do erotismo e da violência, enquanto narra as aventuras do
bruxo Geralt de Rívia, “O Lobo Branco” ou “Carniceiro de Blaviken”, representado na
tela pelo ator Henry Cavill.

Toswell (2009, p. 68) argumenta que esse “novo medievalismo” – como


também é chamado o neomedievalismo – “parece significar novas abordagens ao
estudo do período medieval (e particularmente abordagens que se apropriam de
46

novos paradigmas teóricos)”29. Segundo Fugelso (2010, p. 11), o (neo)medievalismo


tem inspirado uma crescente paixão, pois segundo ele:

Um crescente número de sessões do Congresso Anual Internacional de


Estudos Medievais em Kalamazoo, Michigan, girou em torno dele
[(neo)medievalismo], assim como os painéis de maio passado nas
“Comunidades Neomedievalistas” e “Jogando Neomedievalidade”. Em 2007
foi o foco oficial de toda a 22ª Conferência Anual Internacional em
Medievalismo30.

O neomedievalismo, como conceito associado a essas apropriações


fantasiosas da Idade Média e algumas práticas que podem ser consideradas como
a-históricas, costuma ser muito utilizado pela Medieval Electronic Multimedia
Organization (MEMO), que também definiu os conceitos de “medievalismo
modernista”31, “medievalismo pós-modernista”32 para descrever as diferentes
abordagens sobre a Idade Média em fins do século XX e início do século XXI. No
entanto, o já citado David Matthews, apesar de admitir o uso desse novo conceito,
averte:

Tem havido muita discussão sobre o neomedievalismo em um curto espaço


de tempo, com alguns estudiosos reagindo cautelosamente à potencial
fragmentação dos estudos em medievalismo no exato momento em que ele
parecia estar se estabelecendo. O neomedievalismo representa o ponto
decisivo no qual os estudos em medievalismo alçam voos livres de qualquer
conexão necessária com a Idade Média e com os estudiosos medievalistas.
É, em certo sentido, o destino lógico do medievalismo moderno33
(MATTHEWS, 2015, p. 49).

29 “New medievalism(s) […] appears to mean new approaches to the study of the medieval period
(and particularly approaches using new theoretical paradigms)”.
30
“An increasing number of sessions at the Annual International Congress on Medieval Studies in
Kalamazoo, Michigan, have revolved around it, as in the panels last May on “Neomedievalist
Communities” and “Gaming Neomedievally”. In 2007 it was the official focus of the entire 22nd Annual
International Conference on Medievalism.”
31 “Modernist medievalism”.
32 “Postmodernist medievalism".
33
“There has been much discussion of neomedievalism in a short space of time, with some scholars
reacting cautiously to the potencial fragmentation of medievalism studies in the very moment in which
47

No seu “modelo de trabalho”34 (ibidem, p. 37), essas ficções não são


tratadas como neomedievalismo, mas apenas um outro tipo de medievalismo
embasado em uma Idade Média “como jamais existiu”35 (ibidem, p. 38). Nela “é
retratada uma Idade quase-, pré-, paralela ou não medieval, usando motivos que
criam uma aparência medieval”36 (ibidem, p. 38). Tudo pode, visivelmente, se
encontrar em um estágio de desenvolvimento feudal, mas pertencem a uma
narrativa totalmente fictícia. Para ele, esse medievalismo off-World sequer precisa
de explicações (ibidem, p.38).

1.2.1. Os usos político-ideológicos do passado medieval

Como campo de estudos e categorias de análise, atualmente, as temáticas


mais caras e proeminentes, tanto do medievalismo, quanto do neomedievalismo –
além de outras abordagens –, diante da ascensão de extrema-direita e do
neofascismo no mundo inteiro, são as relações entre a Idade Média e determinadas
ideologias ou os usos políticos do passado medieval.

Conforme já insinuado, a Idade Média por suas persistentes lacunas, por ser
povoada de “Heróis e Maravilhas” (LE GOFF, 2011), por estar constantemente
envolta em brumas místicas, fantasiosas e enigmáticas, permitiu que, ao longo dos
séculos, ideologias políticas usassem e abusassem dessas fabulações a seu favor.
Fastidiosamente, em suas origens, o medievalismo possui uma forte relação com as
nocivas ideologias colonialistas, imperialistas e, principalmente, nacionalistas.

Os românticos dos séculos XVIII e XIX começaram a estudar a Idade Média,


em grande parte, para perscrutar as origens das nações europeias, na tentativa de
alicerçar o período medieval como formador das suas identidades nacionais. No
entanto, um ramo autocrítico da historiografia dos estudos medievais se dedicou a
elucidar essas falsas vinculações. Patrick Geary, por exemplo, apesar de passar
longe dos conceitos de medievalismo ou neomedievalismo, no seu famoso livro O

it seemed to be establishing itself. Neomedievalism represents the decisive point at which


medievalism studies floats free of any necessary connection to the Middle Ages and medievalist
scholars It is in one sense te loggical destination of modern medievalism”.
34
“Working Model”.
35 “The Middle Ages ‘as it never was”.
36 “A quasi-, pre-, parallel or non-Middle Ages is depicted, using motifs which create a medieval

appearence”.
48

Mito das Nações: A Invenção do Nacionalismo (2005), ajudou a desconstruir essa


associação entre o nascimento das nações europeias e a Idade Média, denunciando
a manipulação política nos documentos históricos. O autor demonstra a fragilidade
reducionista que cerca o conceito de nacionalismo e apresenta o simplismo utilizado
nas definições identitárias, estabelecidas por fatores pré-determinados.

O objetivo do medievalista estadunidense e professor emérito de História na


Universidade da Califórnia é muito claro: destruir os mitos nacionalistas associados a
uma dita Idade Média e contribuir para a prevenção do seu reaparecimento e/ou
fortalecimento. Porque, segundo ele, “a interpretação do período que compreende o
declínio do Império Romano e as Invasões Bárbaras se tornou sustentáculo do
discurso político na maior parte da Europa” (ibidem, p. 17). No entanto, não apenas
líderes políticos nacionalistas utilizam a história como base do seu discurso.
Acadêmicos renomados – às vezes involuntariamente – “também se envolvem em
usos polêmicos do passado” (ibidem, p.18).

Poucos habituados a estar no centro da disputa política, os historiadores


dedicados à Alta Idade Média se dão conta de que o período histórico que
estudam é o pivô de uma disputa política pelo passado, e que suas
afirmações estão sendo usadas como base para reinvindicações para o
presente e o futuro (ibidem, p. 19).

Patrick Geary alerta a todo momento sobre as fraudes e invenções. No caso


franco, por exemplo, “identidades [jurídicas] eram forjadas, projetadas em um
passado mítico e longínquo para que lhes fosse conferida uma legitimidade
impregnada da aura do antigo” (ibidem, p.179), enquanto, de fato, ocultavam as
verdadeiras datas dos documentos. O autor conclui sua obra sem aliviar a culpa dos
historiadores:

A história dos povos da Europa é parte do problema da etnicidade europeia.


Nós, historiadores, somos sem dúvida culpados pela criação desses mitos
duradouros, persistentes e perigosos. Construindo uma história linear e
contínua dos povos europeus, validamos as tentativas de legitimação da
incorporação das antigas tradições dos povos pelos comandantes militares
e líderes políticos. Reconhecendo como históricos os mitos criados pelos
49

autores da Antiguidade e da Idade Média, propagamos e perpetuamos essa


legitimação.

Guy Hermet, no livro História das Nações e do Nacionalismo na Europa


(1996), já afirmava a impossibilidade de qualquer sentimento nacional ou patriota
nascer na Idade Média e, citando o sociólogo alemão de família judaica Norbert
Elias, (1897-1990) afirma:

Embora o uso do termo nação, na sua acepção medieval, tenha sido


frequente até o século XVII, não designou durante muito tempo senão a
origem de um grupo estrangeiro amalgamado pela população em que se
inseria. Tratava-se de comerciantes da nação alemã em Antuérpia, de
estudantes da nação inglesa em Sorbonne, de nação mulçumana, europeia,
bizantina, arménia ou judia até no Império Otomano, bem pouco ou nada de
nação francesa em França e ainda menos de nação italiana em Itália.

A designação de si mesmo não veio completar a noção de simples


alteridade senão mais tarde, quando as sociedades reunidas ou não sob a
mesma coroa e mesmo sujeitas a uma autoridade estrangeira tomaram
confusamente consciência do seu destino partilhado. No entanto, inclusive
nesse caso, essa consciência pouco tinha a ver com a ideia moderna de
nação e menos ainda com o nacionalismo. Inicialmente, as nações
medievais designavam comunidades expatriadas. Depois, identificaram
mais largamente, mas sobretudo intelectualmente, grupos humanos
particulares no seio da Europa, cada vez mais frequentemente ligados a
uma determinada coroa e possuindo uma certa capacidade – reduzida – de
imaginar raízes comuns em relação a um passado mitificado. Só mais tarde
ainda e por uma série de acidentes, os ressentimentos recíprocos ou a
frustração dos povos começaram a alimentar verdadeiramente o engodo de
um sentimento nacional. (HERMET, 1996, p.52)

Em seguida, fazendo referência ao filosofo e antropólogo Ernest André


Gellner (1925-1995), complementa:

Para Gellner, a história do mundo é, no essencial, a de sociedades agrárias


em que se sobrepõem, sem qualquer contacto, elites compósitas e massas
camponesas ignorantes e fraccionadas até o infinito. Para ele, o imenso
50

contraste cultural entre esses dois estratos consolida nessas sociedades o


domínio das elites sobre grupos bastando-se a si próprios e imóveis,
incapazes de conceberem a solidariedade que lhes permitisse sacudir o
jugo que sobre eles pesava. Nessas sociedades, é a distância social
intransponível da desigualdade absoluta e não a busca de um
consentimento alargado que constitui a base do poder. Além disso, Gellner
deduz daí que esse sistema de domínio criava obstáculo a qualquer
desenvolvimento de uma consciência comum no seio de um mesmo
conjunto político. A observação é evidente a respeito da barreira cultural e
estatutária irremediável, que impede o simples povo de se identificar com os
senhores, com os letrados ou com os membros do alto clero, e
reciprocamente (ibidem, p. 54).

Em suma, para o autor, essas sociedades medievais “ignoram o


nacionalismo” (ibidem, p. 55), não existe possibilidade de qualquer sentimento de
pertença coletiva de estilo minimamente nacional. Por fim, citando Denis de
Rougemont, afirma em tom jocoso: “o nacionalista é um homem que sofre do receio
mórbido de perder um poder mágico que não existiu” (ibidem, p. 243).

Antes dos autores citados, entrementes, o historiador francês Raoul Girardet


(1917-2013), em Mitos e Mitologias Políticas (1987), conseguiu descrever o
processo inventivo de uma verdadeira “constelação” de “mitologias políticas”
(GIRARDET, 1987, p.12), recuando novamente até a Idade Média.

O mito político é fabulação, deformação ou interpretação objetivamente


recusável do real. Mas, narrativa legendária, é verdade que ele exerce
também uma função explicativa, fornecendo certo número de chaves para a
compreensão do presente, constituindo uma criptografia através da qual
pode parecer ordenar-se o caos desconcertante dos fatos e dos
acontecimentos. É verdade ainda que esse papel de explicação se
desdobra em um papel de mobilização: por tudo o que veicula de
dinamismo profético, o mito ocupa um lugar muito importante nas origens
das cruzadas e também nas revoluções. De fato, é em cada um desses
planos que se desenvolve toda mitologia política. (ibidem, p. 13)

Estruturas míticas são constantemente encontradas nos sistemas


ideológicos mais politicamente diversos e, segundo Girardet, esses mitos políticos
51

possuem objetivos claros e bem definidos, apesar de serem poliformos: “O mito é


igualmente ambivalente” (ibidem, p.15) passivo de sofrer inversões. O autor tenta
trazer à luz os mecanismos da memória, responsáveis por fazer emergir
coletivamente ideologias mais pautadas na imaginação social do que na veracidade
histórica, apesar de nenhum mito político se desenvolver exclusivamente no plano
da fábula, “em um universo de pura gratuidade, de transparente abstração, livre de
todo contato com a presença das realidades da história” (ibidem, p .51).

O que não pode deixar de surpreender é a amplitude do hiato existente


entre a constatação desses fatos [históricos], tal como podem ser
objetivamente estabelecidos, e a visão que deles é dada pela narrativa
mitológica. Com efeito, não se trata, em relação à realidade, de um simples
fenômeno de amplificação, de distorção sob efeito de um aumento
polêmico. Trata-se de uma verdadeira mutação qualitativa: o contexto
cronológico é abolido; a relatividade das situações e dos acontecimentos,
esquecida; do substrato histórico não restam mais que alguns fragmentos
de lembranças vividas, diluídas e transcendidas pelo sonho. (ibidem, p. 53)

Durante muito tempo, as associações com uma utópica Idade Média foram
utilizadas de maneira ideológica. O exemplo mais importante e nefasto do uso
propagandístico do passado medieval heroico e lendário remete à ascensão do
nazismo na Alemanha, a partir da segunda década do século XX. O medievalista e
germanista Álvaro Alfredo Bragança Júnior (2017, p. 333), ao analisar as
reapropriações do medievo pela Alemanha nazista, critica:

A história, vivida e feita por homens, por muitas vezes lança mão de uma
base fabular para consolidar determinado modelo ideológico. As evidências
históricas aliam-se às crenças, tradições e costumes, que têm na literatura
talvez seu repositório mais amplo. Nesse momento, é possível um mau uso,
em geral proposital, dessas fontes na criação e instauração de sistemas de
ordem totalizante e totalitária.

Ao longo da segunda guerra, heróis Volsungos, guerreiros mitológicos,


cruzados teutônicos, cavaleiros com armaduras e até mesmo os Vikings foram, nas
52

palavras do autor, “[des]apropriados” e “deformados” (ibidem, p.346) pela máquina


propagandística de Joseph Goebbels e incorporados ao viés racialista, antissemita e
antibolchevista da filosofia nazista.

Desvirtua-se a História em prol de uma Pseudo-História. A propaganda e


reapropriação política em voga na Alemanha nazista deixa-nos sempre o
alerta para o perigo de anacronismos, que podem trazer à
contemporaneidade modos de ver o mundo que desapropriam o passado e
instauram um presente sem futuro algum. (ibidem, p.346)

Eric Hobsbawn (1917-2012) & Terence Ranger (1929-2015), no livro A


Invenção das Tradições (2017), também alertaram para os perigos dessas
associações com o passado.

Por ‘tradição inventada’ entende-se um conjunto de práticas, normalmente


reguladas por regras tácita ou abertamente aceitas. Tais práticas, de
natureza ritual ou simbólica, visam inculcar certos valores e normas de
comportamento por meio da repetição, o que implica, automaticamente,
uma continuidade em relação ao passado. Aliás, sempre que possível tenta-
se estabelecer continuidade com um passado histórico apropriado.
HOBSBAWN & RANGE, 2017, p. 08)

Os marxistas britânicos afirmam que as novas tradições inventadas podem


não apenas se apropriar dos elementos históricos, como também “podem ser
forçadas a inventar novos acessórios ou linguagens, ou ampliar o velho vocabulário
simbólico” (ibidem, p. 14). Ademais, demonstram como que no caso dos movimentos
nacionalistas não bastava se apropriar de modo equivocado dos símbolos
medievais, mas também deturparam os elementos da Antiguidade.

Naturalmente muitas instituições políticas, movimentos ideológicos e grupos


– inclusive o nacionalismo – sem antecessores tornaram necessária a
invenção de uma continuidade histórica, por exemplo, através da criação de
um passado antigo que extrapole a continuidade histórica real, seja pela
lenda (Boadiceia, Vercingetórix, Armínio, o Querusco) ou pela invenção
53

(Ossian, manuscritos medievais tchecos). Também é óbvio que símbolos e


acessórios inteiramente novos foram criados (ibidem, p .14).

Hobsbawn retoma algumas dessas reflexões em Nações e Nacionalismo


desde 1780 (1990) e outros autores, como o historiador Benedict Anderson (1936-
2015), insistem que tais ideologias criaram sua própria Idade Média – na forma de
um passado idealizado – para servir exclusivamente aos seus interesses. Para Jan
Nederveen Piterse (2009, p. 21), as nações, para legitimarem suas próprias agendas
e identidades nacionais, criam sobre, e para si próprias, um “corpo metafórico”, uma
expressão daquilo que desejam mostrar de si mesmas.

Esse estereótipo – ou para os autores anteriores, o “mito” – da gênese das


nações associada à Idade Média também foi motivador da atração idealizada do
pensamento colonialista por esse período. Não obstante, atualmente, o
medievalismo e o neomedievalismo, alinhados à perspectiva conceitual do Pós-
Colonialismo37 – Anti-Colonialismo ou estudos Decoloniais – entre outras vertentes
historiográficas, tem servido para revisar a ideia de como a dita Idade Média foi
construída com finalidades ideológicas nas diferentes partes do mundo. O
medievalismo pós-colonial ajuda a compreender que a Idade Média, tal como foi
transmitida pela história eurocêntrica, é passível de ser “descolonizada”, conforme
descrito pela professora de literatura comparada Michelle R. Warren, no seu livro
Creole Medievalism: Colonial France and Joseph Bedier's Middle Ages (2011).

Sua pesquisa revelou como a aplicação das ideias pós-coloniais podem


contribuir para uma revisão crítica de um medievalismo subserviente a determinadas
ideologias. Para ela: “Se a Idade Média pode fazer referência à glória ou à barbárie,
o colonialismo pode implicar na ‘terra prometida’ ou no ‘inferno na terra’38”
(WARREN, 2011, p. XII).

A partir dos estudos sobre o escritor Joseph Bédier (1864-1938), que morou
parte da sua vida em Réunion – um pequeno arquipélago próximo a Madagascar e

37 O Pós-Colonialismo remonta a década de 1970, mas adquire maior substância conceptual a partir
dos anos 1980. Epistemologicamente pode ser resumido como uma perspectiva conceitual destinada
a analisar como determinados lugares e sociedades são tratadas como subalternas em relação a
outros considerados como superiores e desenvolvidos. Uma abordagem que tenta romper com as
relações históricas de dependência, na busca de uma nova identidade. Uma crítica ao eurocentrismo,
mas também a hegemonia estadunidense ou qualquer tipo de exclusão das minorias.
38 If the Middle Ages can reference either glory or barbarism, colonialism can imply “promised land” or

“hell on earth.”
54

ainda hoje colônia francesa ou departamento e região do exterior como,


eufemisticamente, preferem tratar –, a autora nos guia através da política literária e
racial associada à elite branca de Réunion, os “creoles” de seu título. Para essa elite
branca, “creoles” não era apenas um termo de autodefinição, mas se opunha
explicitamente à ideia de uma mistura cultural e racial. A ideologia das elites
“creoles”, incluindo o escritor Joseph Bédier, estava enraizada em uma defesa
cultural fundamentada na brancura e no privilégio/superioridade dos brancos. Ela
detalha como essa mesma elite racista e colonialista se relacionava com o
medievalismo daquela época, que equivocadamente – conforme alertou os recém
citados Patrick Geary, Guy Hermet e Raoul Girardet – buscava pelas origens da
identidade nacional europeia moderna nas fendas dinásticas da Idade Média,
interpretada como uma época de ouro (ibidem, p.11-12).

A Idade Média e os elementos da cultura medieval, como o famoso


personagem Roland39, eram vistos como “um instrumento de uma missão
civilizatória”40 (ibidem, p. 16). Ela aborda como o escritor Joseph Bédier se
orgulhava de preservar valores e virtudes de uma mítica França medieval. Segundo
a autora, ele mesmo gabava-se: “Eu não sou um homem do presente, mas da Idade
Média”41 (ibidem, p. XI), enquanto exaltava constantemente o falso prestígio da
França da era das cruzadas e, tal como os seus predecessores, articulava a história
francesa a um medievo “épico” (ibidem, p 11).

Colonialismo e medievalismo juntos formam o terreno de onde emergiu o


medievalismo creole e o terreno fértil em que se enraizou. O medievalismo,
inflado pela memória colonial, poderia abordar os próprios fundamentos do
imaginário nacional. Mergulhado em visões idealizadas da tradição
aristocrática, um creole de Réunion poderia abordar a Idade Média como
um patrimônio nativo. Do ponto de vista de Réunion, onde as elites se
identificaram como ecos fiéis da cultura francesa primordial e campeões da

39 Roland ou Rolando é um famoso personagem descrito em muitas obras medievais, sendo a mais
célebre a canção de gesta escrita no início do século XI, intitulada “La Chanson de Roland”, traduzida
como “A Canção de Rolando”. A canção narra a lenda do herói Rolando, sobrinho de Carlos Magno e
principal cavaleiro de seu exército.
40 Roland as an instrument of the mission civilisatrice
41 I am not a man of the present, but of the Middle Ages.
55

expansão colonial, os contornos da nação imperial parecem particularmente


amplos e profundos42 (ibidem, p.25).

Como bem afirmou Renan Birro (2020, p.44), “a fusão entre o pensamento
republicano, o nacionalismo, o medievalismo e o imperialismo não pareciam
paradoxal na ótica francesa entre o final do século XIX e o início do século XX”.
Tudo era lícito na busca ideológica por uma identidade nacional, que levou a essas
associações farsantes com personagens históricos e outras lendas. Assim, o
“medievalismo creole”, a partir das interpretações pós-coloniais de Michelle R.
Warren, amplifica o uso do medievalismo para além da apropriação exclusiva da
Idade Média e também denuncia a associação ilegítima com o passado gaulês na
França, entre outras práticas pré-modernas, ajudando a desmistificar o colonialismo
cultural europeu, embasado em uma pseudo-ancestralidade, seja ela pré, pós ou
medieval propriamente dita.

As relações entre a Idade Média e ideologias políticas já foram analisadas


por diversos teóricos – nem sempre associados ao campo de estudos do
medievalismo ou neomedievalismo. Entrementes, apesar de já terem sido
desmistificadas, todas essas deturpações e as indevidas apropriações políticas do
medievo deixaram cicatrizes profundas. Ainda hoje símbolos medievais são
recorrentemente evocados por movimentos nacionalistas, supremacistas
conservadores e reacionários da pior estirpe. A Idade Média emerge nesse contexto
como sinônimo de todo tipo de obscurantismo, tradicionalismo, racismo, xenofobia e
outros preconceitos, enquanto líderes populistas e demagogos ainda se voltam para
o passado medieval em busca desses ideais. Outras incongruências, completamente
anti-históricas, ficam a cargo das atuais relações pervertidas entre o medievalismo e
algumas religiões ou seitas fundamentalistas, as quais equivocadamente buscam –
direta ou indiretamente – na Idade Média as suas referências e justificativas.

42Colonialism and medievalism together form the ground from which creole medievalism emerged and
the fertile terrain in which it took root. Medievalism, inflected with colonial memory, could address the
very foundations of the national imaginary. Steeped in idealized visions of aristocratic tradition, a
Reunionnais creole could approach the Middle Ages as an indigenous patrimony. From the
perspective of Reunion, where elites identified themselves as faithful echoes of primordial French
culture and champions of colonial expansion, the contours of the imperial nation look particularly broad
and deep.
56

As incessantes disputas pelo poder continuam instrumentalizando,


consciente ou inconscientemente, a memória de um passado medieval a seu favor.
Ou seja, o apelo das articulações entre medievalismo, nacionalismo, supremacismo
e o fanatismo fundamentalista parece não ter diminuído ao longo século XXI. Das
intituladas cruzadas de George W. Bush contra o terrorismo árabe, passando por
Marine Le Pen – líder política da extrema-direita francesa – posando diante da
estátua de Joana d'Arc, aos apoiadores dos movimentos fascistas brasileiros em
mal-ajambrados trajes medievais reivindicando o retorno da ditadura, ou, até
mesmo, grupos neonazistas e neo-templários, novamente, apropriando-se dos
adereços vikings ou cruzados para promover o seu discurso de ódio.

Recentemente, Amy S. Kaufman & Paul B. Sturtevante lançaram The Devil’s


Historians: How Modern Extremists Abuse the Medieval Past (2020), para examinar
as diversas formas de como o passado medieval continua sendo manipulado para
promover discriminação, opressão e assassinatos.

Esse livro mostrará as muitas maneiras de como a história tem sido utilizada
para oprimir outras pessoas, espalhar o ódio, o medo e até mesmo levar
pessoas a guerra. E a assiduidade daqueles que usam a história para incitar
a violência e a discriminação, deturpando o passado, ou às vezes mentindo
abertamente sobre ele, a fim de influenciar a opinião pública. 43 (KAUFMAN
& STURTEVANTE, 2020, s.n.).

Existe uma longa e resistente tradição de associar a Idade Média a essas


ideologias, com claros objetivos geopolíticos. Enquanto, atualmente, parece que no
mundo inteiro o grito “Deus vult”44 voltou a ser proferido, persistindo a usurpação,
adulteração, banalização e ressignificação da Idade Média por interesses políticos e
ideológicos.

43 This book will show you many of the ways history has been used to oppress others, spread hatred
and fear, and even lead people into war. And oftentimes, those who use history to incite violence and
discrimination misrepresent the past, or sometimes outright lie about it, in order to sway public opinion.
44 “Deus Vult” é uma expressão do latim que pode ser vulgarmente traduzida em português como

“Deus quer”. Um verdadeiro grito de guerra repetido por toda a Europa associado às Cruzadas
medievais. Atualmente, segundo o historiador Paulo Pachá (2019), vem estampando camisetas,
textos, tatuagens e tweets da extrema direita mundial, tornando-se palavra-chave para fascistas e
fundamentalistas.
57

Imagem 09: Marion Anne Perrine Le Pen, mais Imagem 10: No Brasil, um tosco e
conhecida como Marine Le Pen – líder política idiossincrático “cavaleiro medieval”, associado à
da extrema direita francesa – discursa em frente “Lux Brasil” – movimento de extrema direita –
à estátua de Joana d'Arc, cercada pelas com uma espada no alforje e brandindo a
bandeiras tricolores do país. bandeira nacional, conclama “patriotas”,
utilizando termos em latim, para manifestações
Fonte: https://www.publicmedievalist.com/vile-
fascistas, a favor do fechamento do Congresso
love-affair/?fbclid=IwAR1sZJuzQJxWJTjP3V
Nacional e do Supremo Tribunal Federal (STF).
_UmwR810m6-DiPNPDL8k1reTg22k3i-
iiNqgsGL8M. Fonte:http://blogs.jornaldaparaiba.com.br/silvioo
sias/ 2020/03/09/ ultradireita-esta-pirada-video-
Acesso em 05 de março de 2020
que-viralizou-e-coisa-de-fanatico/
- Acesso em 20 de maio de 2020.

Ainda sobre os estudos em “Medievalismo” e “Neomedievalismo”, cabe


afirmar que eles são – dentre muitos outros – campos amplos e ainda abertos,
constantemente redefinidos e ressignificados, disciplinas atribuladas pelas muitas
divergências e disputas acadêmicas que buscam monopolizar as recentes
[re]traduções do medievo. Existem diferentes vertentes, muitas vezes conflitantes
acerca dos seus usos, e não seria errado afirmar que existem “medievalismos” e
“neomedievalismos”, assim mesmo, no plural. Enquanto parte da anglosfera
concorre por esses conceitos, os germanófonos associam tais estudos ao conceito
de “Mittelalter-Rezeption” ou “Mittelalterrezeption” – que pode ser vulgarmente
traduzido como a recepção da Idade Média ou recepção do medievo – utilizado pela
primeira vez por Ulrich Müller na conferência proferida em Salzburg em 1979, no
mesmo ano da fundação da SiM por Leslie Workman. Na França, o uso dos termos
“Réception du Moyen Âge”, “Modernités Médiévales” ou “Modernité du Moyen Âge” –
título de um conjunto de publicações organizadas pelo Centre Beaubourg em 1979 –
se popularizam ainda antes do termo “médiévalisme”, que de acordo com Vincent
Ferré (2010, p. 15), começou a ser utilizado pelos historiadores franceses somente a
58

partir de 2009. Atualmente, novos conceitos como “Nova Idade Média” e


“Neofeudalismo” também concorrem pelos usos desse passado medieval.

Não cabe ao escopo dessa tese se aprofundar ainda mais nessas questões,
afinal, como qualquer controvérsia acadêmica, seria impossível esgotá-la em poucas
laudas. Vale apenas ressaltar que tais pesquisas ainda são pouco divulgadas no
Brasil, que, apesar de não ter vivido a Idade Média em seu tempo histórico, muitos
dos seus símbolos permeiam nosso cotidiano por intermédio dos veículos de
comunicação de massa e também, segundo alguns teóricos, na forma de
controversos resíduos e sobrevivências do passado que teriam chegado até
contemporaneidade.

1.2.2. Existem resíduos ou sobrevivências de uma longa Idade Média?

As sobrevivências e os resíduos medievais já foram abordados de diversas


formas. A melhor definição conceitual para “cultura residual” provém do pensador
marxista Raymond Williams (1921- 1988) ao longo de suas pesquisas sobre o
“materialismo cultural”. Para ele, o “resíduo” é um elemento do passado que se
mantém plenamente ativo no presente, atuando no processo cultural.

Por ‘residual’ quero dizer alguma coisa diferente do ‘arcaico’, embora na


prática seja difícil distingui-los. Qualquer cultura inclui elementos disponíveis
do seu passado, mas seu lugar no processo cultural contemporâneo é
profundamente variável. Eu chamaria de ‘arcaico’ aquilo que é totalmente
reconhecido como um elemento do passado, a ser observado, examinado,
ou mesmo, a ser ‘revivido’ de maneira consciente, de uma forma
deliberadamente especializante. O que entendo pelo ‘residual’ é muito
diferente. O residual, por definição, foi efetivamente formado no passado,
mas ainda está vivo no processo cultural, não só como um elemento do
passado, mas como um elemento ativo do presente. Assim, certas
experiências, significados e valores que não se podem expressar, ou
verificar substancialmente, em termos da cultura dominante, ainda são
vividos e praticados à base do resíduo – cultural, bem como social – de uma
instituição ou formação social e cultural anterior. (WILLIANS, 1979: p. 125)
59

O resíduo para o autor se refere aos elementos pretéritos, mas que


permanecem continuamente vivos nas práticas humanas e “vem de alguma área
importante do passado” (ibidem, p. 126). Influenciado pelo conceito da “cultura
residual” desenvolvida por Raymond Williams, o pesquisador, poeta, crítico,
ensaísta, tradutor e professor Roberto Pontes criou a “Teoria da Residualidade”.
Utilizada por alguns teóricos para analisar os “resíduos” ou “resquícios” medievais no
mundo atual. No texto “O Medievo está Aqui” (PONTES, 2017), além indicar alguns
remanescentes medievais na cultura brasileira, em especial da nordestina, ele faz
uma listagem de termos associados à residualidade.

O verbo remanescer, o substantivo remanescência e o adjetivo


remanescente fazem parte da terminologia residual, são empregados
fartamente pelos pesquisadores residualistas e têm contiguidade
significativa com resíduo. Aliás, consta da definição básica: resíduo é o que
remanesce de cultura pretérita numa posterior. (ibidem, p.204)

Roberto Pontes repete inúmeras vezes o discurso de Raymond Williams de


que “a residualidade se caracteriza por aquilo que resta, que remanesce de um
tempo em outro, podendo significar a presença de atitudes mentais arraigadas no
passado próximo ou distante” (ibidem, p.204). Para ele, “na cultura e na literatura
nada é original; tudo é remanescente; logo, tudo é residual”.

Segundo esses teóricos, no Brasil, a literatura popular de cordel está


impregnada de resíduos medievais. Elementos da poética medieval permanecem na
poesia de Manuel Bandeira (1886-1968) e a dramaturgia do paraibano Ariano
Suassuna (1927-2014) está repleta de aspectos medievalizantes, principalmente, no
famoso Romance d'A Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta de
1971. Na música, elementos medievais e árabes estavam misturadas aos antigos
ritmos do nordeste, para além dos diversos folguedos e danças populares que fazem
referências às tradições da Idade Média, como as “Folias do Divino”, o “Reisado”, as
“Cavalhadas” e o “Alardo de São Sebastião” no Espírito Santo.

Acerca das origens dessas permanências na literatura de cordel, Ivan


Cavalcanti Proença tenta explica da seguinte forma:
60

Os primórdios da literatura de cordel encontrada no Brasil estariam


relacionados à sua semelhante portuguesa, trazida para o Brasil pelos
colonizadores já nos séculos XVI e XVII. A literatura de cordel portuguesa
tem sua origem nos romances tradicionais daquele país, que eram
impressos, rudimentarmente, em folhas soltas ou volantes, e vendidos,
presos em um barbante ou cordel, em feiras e romarias. Esses impressos
traziam registros de fatos históricos, narrativas tradicionais (como as da
Imperatriz Porcina, Princesa Magalona e o Imperador Carlos Magno, e
também poesia erudita (como as de Gil Vicente). A circulação das histórias
tradicionais, de origem portuguesa e, de modo mais amplo, europeia, e que
serviram de base à elaboração de vários folhetos [de cordel] que parece ter
sido ampla em Pernambuco desde o século XVIII (PROENÇA, 1986, p. 58).

Imagem 11: De acordo com residualistas, Imagem 12: Segundo residualistas, esses seriam
esses seriam “Resíduos Medievais” na “Resíduos Medievais” nos folguedos populares.
Literatura de Cordel. Mouros versus Cristãos encerrando as festividades
do Alardo de São Sebastião.
Fonte:https://noticias.universia.com.br/cultura/
noticia /2017/06/06/1153123/obra-classica - Fonte:https://jornalalerta.com.br/mouros-x-cristaos-
sobre-literatura-cordel-ganha-nova- encerram-as-festividades-de-sao-sebastiao-em-
edicao.html. Acessado em 3 de fevereiro de caravelas. Acessado em 3 de fevereiro de 2019.
2019.

Esses “resíduos” da Idade Média também podem ser sutilmente constatados


no artigo que se tornou célebre, com o sugestivo título de “Somos todos da Idade
Média”, no qual o medievalista brasileiro Hilário Franco Júnior afirma: “nossas raízes
são medievais, percebamos ou não este fato” (FRANCO JÚNIOR, 2008, p. 58) e
reitera que nosso cotidiano está impregnado de hábitos, costumes e objetos desse
período histórico.
61

Pensemos num dia comum de uma pessoa comum. Tudo começa com
algumas invenções medievais: ela põe sua roupa de baixo (que os romanos
conheciam, mas não usavam), veste calças compridas (antes, gregos e
romanos usavam túnica, peça inteiriça, longa, que cobria todo o corpo),
passa um cinto fechado com fivela (antes ele era amarrado). A seguir, põe
uma camisa e faz um gesto simples, automático, tocando pequenos objetos
que também relembram a Idade Média, quando foram inventados, por volta
de 1204: os botões. Então ela põe os óculos (criados em torno de 1285,
provavelmente na Itália) e vai verificar sua aparência num espelho de vidro
(concepção do século XIII). (ibidem, p. 58).

O medievalista, crítico literário, historiador, poeta, romancista e linguista


suíço Paul Zumthor (1915-1995) também fala sobre “algumas sobrevivências
marginalizadas em nossos costumes” (ZUMTHOR, 2009 p.42). Para esses teóricos
da residualidade, ou das sobrevivências medievais, existem muitos resquícios,
reminiscências e permanências, inclusive do lado de cá do Atlântico. Ora eles são
clarividentes, ora são fragmentos quase imperceptíveis.

Não obstante, para os estudiosos do medievalismo pós-colonial, como a


professora da Universidade de Glasgow, Nadia R. Altschul, não existe nenhuma
forma de comprovar essas heranças residuais, recuando-as cronologicamente até a
Idade Média. Não há possibilidade de evidenciar ou legitimar cientificamente que
determinados elementos culturais vieram diretamente de uma dita Europa medieval
e sobreviveram – de uma forma ou de outra – até hoje em dia nos territórios mais
remotos. Ou seja, na interpretação contemporânea do medievalismo, não existem
heranças, resíduos ou sobrevivências, pois a Idade Média chegou ao fim e ficou no
passado. Para Nadia R. Altschul, a Idade Média é uma ideia, um conceito que pode
ser [re]apropriado, [re]traduzido, [re]interpretado e [re]ssignificado, a posteriori, a
partir de determinados interesses, ou seja, pode ser qualquer “re”, menos um
resíduo.

No artigo “Medievalism and the Contemporaneity of the Medieval in


Postcolonial Brazil” (2015), Nadia R. Altschul, questiona a “persistência”45
(ALTSCHUL, 2015, p. 139) do medieval no Brasil, criticando algumas das ideias por
trás das intituladas “Raízes Medievais do Brasil” defendidas pelo já citado Hilário

45
“persistence”.
62

Franco Júnior e embasadas na abordagem crítica do livro Raízes do Brasil (1936),


de Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982).

Esse caso mais preocupante de continuidade medieval, que explicou como


a Idade Média sobreviveu em outros lugares, estipula que os países ibero-
americanos não ficaram sem a Idade Média, porque certas populações e
partes geográficas do continente continuam a ter uma mentalidade e estilo
de vida medievais até hoje46 (ibidem, p. 142).

A autora censura essa possível continuidade de um sistema de valores e/ou


elementos da Idade Média que justifiquem as “raízes medievais”, fundamentada na
também questionável ideia de que a Península Ibérica não teve uma transição clara
entre a Idade Média e a Modernidade antes de conquistar o Brasil. Um discurso
muito utilizado pela segunda onda colonizadora, quando Portugal e Espanha
começaram a perder sua hegemonia colonial e outros países começaram a exercer
esse protagonismo. Os novos colonizadores passaram a referenciar os ibéricos
como medievais e islamizados, em uma espécie de confrontação interimperial. O
fato é que essa concepção equivocada de um medievo ibérico transportado para a
América foi recorrente entre alguns medievalistas brasileiros e retomada no ensaio
“Estudos Medievais no Brasil” (FRANCO JUNIOR, VIEIRA & MONGELLI, 2008), no
qual, de acordo com Nadia R. Altschul, na segunda seção – intitulada: “Estudos
Medievais no Brasil ou do Brasil?” –, de maneira incorreta, os pesquisadores
brasileiros sugerem que em determinadas áreas e aspectos, o país ainda é
medieval.

Em termos profissionais, essa medievalidade brasileira viva é considerada


uma oportunidade fantástica para os medievalistas internacionais. Os
profissionais podem usar essa parte da América como um observatório, um
tipo de trabalho de campo medieval. Na Europa, a Idade Média é uma
realidade histórica perdida, porque o continente já deixou para trás seus
elementos medievais, mas, como a Idade Média está ativa em lugares como

46
“This more troubling case of medieval continuity, explained as a Middle Ages lived elsewhere, is to
stipulate that Ibero-American countries were not without a Middle Ages because certain populations
and geographical parts of the continente continue to have a medieval mentality and lifestyle to this
day.
63

o Brasil, essas características medievais perdidas podem ser 'analisadas ao


vivo em um novo estágio'47 (ALTSCHUL, 2015, p. 144).

Além de ser preconceituosa, essas “raízes”, “resíduos”, “permanências”,


“sobrevivências” ou “heranças” também reverberaram notas colonialistas, pois,
nesse sentido, o “viver na Idade Média” remete à clara noção de atraso de
determinadas regiões do país, aprisionadas a um passado já vivido e ultrapassado
pela Europa. Para Nadia R. Altschul, a noção de enclaves medievais vivos na
modernidade é bastante “perturbadora”48 (ibidem, p 145). No entanto, não é nada
inovadora, pois a ideia de uma continuidade medieval na América remete a alguns
estudos iniciados ainda no século XIX e reiterada sucessivas vezes por diversos
teóricos – alguns de clara orientação eurocêntrica. A autora retomou essas críticas
em diversos trabalhos posteriores.

A partir dessa presentificação de um medievo vivo em nossos dias,


historiadores de São Paulo citam com aprovação, como os estudiosos
brasileiros falam de uma ‘justaposição de épocas’ históricas que ‘se
misturam’ e de diferentes Brasis separados por ‘diferentes períodos’. Franco
Jr. seguiu esses estudiosos e propôs em 2008 que, como a Idade Média
não está ‘morta’ em lugares como o Brasil, eles podem ser ‘analisados ao
vivo’ mesmo em período pós-colonial.49 (ALTSCHUL, 2017, p. 03).

Algumas dessas reflexões ressurgem também no seu último livro Politics of


Temporalization: Medievalism and Orientalism in Nineteenth-Century South America
(2020). O título principal, que pode ser livremente traduzido como “Políticas de
Temporalização”, expressa perfeitamente uma das ideias-chave do pensamento de

47 “In professional terms, this living Brazilian medievality is considered a fantastic opportunity for
medievalists internationally: practitioners can use this part of America as na observatory, a type of
medieval field trip. In Europe the Middle Ages is a lost historical reality because the continente has
already left behind its medieval elements, but since the Middle Ages are active in places like Brazil,
these lost medieval characteristics can be ‘analyzed live in a new stage’”.
48 “unsettling”
49 “In professional terms, this living Brazilian medievality is considered a fantastic opportunity for

medievalists internationally: practitioners can use this part of America as na observatory, a type of
medieval field trip. In Europe the Middle Ages is a lost historical reality because the continente has
already left behind its medieval elements, but since the Middle Ages are active in places like Brazil,
these lost medieval characteristics can be ‘analyzed live in a new stage’”.
64

Nadia R. Altschul, conquanto, essas temporalizações ou, no caso, medievalizações


ou orientalizações, possuem claros interesses políticos.

Em contraposição às ideias do historiador Dipesh Chakrabarty, que propôs a


“noção de coexistência de temporalidades”50 (ALTSCHUL, 2020, p.03), a autora se
apropria do pensamento crítico do antropólogo Johannes Fabian e do conceito de
“coetaneidade”51 (ibidem, p. 03), ou seja, a contemporalidade radical do presente.
Não existem múltiplas temporalidades, tampouco a coexistência do passado no
presente. Existe apenas um único presente para todos e temporalizar – ou
medievalizar – determinadas regiões ou aspectos do presente significa negar a sua
coetaneidade. “Temporalização é um instrumento político de seleção, e a
medievalização é uma ferramenta importante em seu arsenal”52 (ibidem, p. 08). O
medievalismo, nesses termos, ajuda novamente a compreender os usos do passado
como uma medievalização intencional para finalidades políticas e ideológicas.

Insistamos aqui novamente que ‘medievalismo’ não diz respeito ao período


histórico conhecido como Idade Média, assim como o classicismo não se
refere ao período histórico conhecido como Antiguidade. O estudo do
classicismo (ou neoclassicismo) já se estabeleceu no conhecimento
contemporâneo e, ainda assim, o apelo ao medieval, que também foi uma
força historicamente significativa, apenas recentemente começou a ser
estudado com vigor teórico. Devo também insistir, então, que trabalhei a
partir de uma compreensão do medievalismo não como um engajamento
cronológico pós-medieval, mas como um apelo ao medieval,
independentemente do que fosse considerado medieval em um
determinado tempo ou lugar. Isso implica que, tanto quanto os estudos
medievais são sempre uma forma de medievalismo, o medievalismo é
sempre uma forma de medievalização – isto é, os apelos ao medieval não
existem simplesmente porque existem coisas e características medievais
em diferentes lugares e épocas do mundo. O medievalismo como um apelo
ao medieval existe porque alguns tópicos e elementos são considerados ou
imaginados como medievais – são temporalizados como medievais – por
um agente particular e em circunstâncias particulares. Em outras palavras,

50 “The notion of coexisting temporalities”.


51 “coevalness”.
52 “Temporalization is a selective political device, and medievalization is a significant in its arsenal”.
65

coisas e modos de vida foram primeiro chamados de medievais antes de o


serem de fato53. (ibidem, p. 176)

Conforme também indicou John M. Ganim (2008), tratar o presente estado


das antigas colônias como medieval – em evidente acepção de retrocesso – faz
parte de um discurso dominador colonialista. A noção de uma América Ibérica
medieval pressupõe a necessidade de uma entidade civilizadora capaz de resgatar o
serôdio território do período de trevas em que se encontra.

Não seria justo, no entanto, depositar a culpa desses equívocos,


exclusivamente, nas costas do Hilário Franco Júnior e outros historiadores
brasileiros, sem considerar as suas referências e inspirações. O medievalista
paulista, por exemplo, realizou o seu pós-doutorado com Jacques Le Goff na École
des Hautes Études en Sciences Sociales em 1993 e foi influenciado pelas teorias do
afamado mestre francês, particularmente pelo seu problemático conceito de uma
“Uma Longa Idade Média” (LE GOFF, 2012, p. 51). Segundo Le Goff:

As mudanças não se dão jamais de golpe, simultaneamente em todos os


setores e em todos os lugares. Eis porque falei de uma longa Idade Média,
uma Idade Média que – em certos aspectos de nossa civilização – perdura
ainda, e às vezes desabrocha bem depois das datas oficiais. (ibidem, p. 66)

Para o autor, “não existe um fim da Idade Média” (ibidem, p. 76), pois muitas
características desse período continuam até hoje. Segundo ele “não basta falar de
uma cronologia (do século VI ao século XV) para falar de Idade Média” (ibidem, p.

53 “Let us insist here again that “medievalism” is not about the historical period know as the Middle
Ages any more than classicism is about the historical period know as antiquity. The study of classicism
(or neoclassicism) has been better established in contemporary scholarship, and yet the appeal to the
medieval has also been a historically significant force, even thought it is one that has onty recently
begun to be studied with t heoretical vigor. I must also insist, then, that I have worked from a
understading of medievalism not as a chronologically postmedieval engagement but as na appeal to
the medieval, regardless of what was considered medieval at a particular time and place. That implies
that as much as medieval studies is always a form of medievalism, so is medievalism always a form of
medievalization – that is, appeals to the medieval do not exist simply because there are medieval
things and traits at different places and times in the world. Medievalism as an appeal to the medieval
exists because topics and elements are deemed or invented as being medieval – are temporalized as
medieval – by a particular agents and in particular circumstances. In other words, things and way of
living have first to be named medieval before they can be approached as such”.
66

79), haja vista que o medievo ocidental não foi programado, mas fruto de uma
aculturação.

Em um dos seus últimos trabalhos, A História deve ser dividida em pedaços?


(2015), o mesmo continua a postular a favor da ideia de uma longa Idade Média e
destaca o problema da periodização da história, baseado, principalmente, nesta fatia
de tempo. Para ele, esse período histórico foi muito mais longo e profícuo do que
preconiza a historiografia tradicional, englobando os anos aclamados como
Renascimento e se estendendo até meados do século XVIII ou mais além. Ou seja,
a Idade Média não acabou com a tomada de Constantinopla, ou com a Renascença,
mas, em diversos assuntos e regiões, houve um prolongamento do período medieval
para além do arco cronológico tradicionalmente aceito.

A ideia de uma longa duração medieval influenciou muitos medievalistas,


como Jérôme Baschet. No seu livro A Civilização Feudal: Do ano mil à colonização
da América (2006), afirma que o essencial do feudalismo medieval volta a ser
encontrado do outro lado do Atlântico, durante o período da América colonial.
Inspirado pelas fabulações de uma continuidade medieval no presente – reforçadas
e intensificadas pelas teorias do Jacques Le Goff –, Jérôme Baschet estudou a
conquista e colonização do novo mundo na perspectiva explicitamente eurocêntrica
da longa Idade Média. A expansão da Europa para fora do continente teria
materializado o medievo na América.

Por outro lado, medievalistas brasileiros como Clínio de Oliveira Amaral e


Maria Eugenia Bertarelli (2020), partidários do medievalismo pós-colonial e
descrentes dessas teorias francófonas, criticam todas as interpretações desses
“herdeiros da longa Idade Média de Jacques Le Goff”54 (AMARAL & BERTARELLI,
2020, p. 103) e a noção de continuidade histórica que nos liga ao “berço da
civilização ocidental”, tal como propalada pela teoria francesa:

Observamos que os estudos produzidos com base na noção de longa Idade


Média podem acentuar uma percepção de que as sociedades na América
são inevitavelmente herdeiras do continente europeu. Com efeito, ao
analisar as permanências e reminiscências da sociedade feudal na

54
“Jacques Le Goff’s long Middle Ages and his heirs”
67

perspectiva da longa Idade Média, considera-se no centro da questão a


realidade europeia e suas sobrevivências ao longo do tempo.

A Idade Média surge aqui como uma referência que tende a enfatizar o
caráter de dependência em relação à experiência europeia, posto que toma
a sociedade medieval como o modelo que estava sendo transplantado para
colônia. A referência à Idade Média com base nessa perspectiva
historiográfica pode contribuir para sublinhar uma leitura colonialista da
história dos territórios do novo mundo, bem como uma perspectiva
eurocêntrica, uma vez que o referencial para se pensar a história do novo
mundo, teve, no passado, uma vinculação com a Idade Média e, no
presente e no futuro, mantem esse grilhão, devido à sua reminiscência
medieval, assim cria-se uma teleologia da história ocidental cujo centro é a
historiografia europeia.

Ora, se a Europa é o centro, torna-se tentador vincular a descoberta da


América à Idade Média. Entretanto, essa forma de ver a conquista
desconsidera a ruptura histórica causada pela própria conquista, bem como
o subjacente processo de colonização55. (2020, p. 110)

Sobre o caso brasileiro, recomendam urgentemente uma mudança de


paradigma, deixando de lado os ideais franceses de teor – talvez involuntariamente
– eurocêntrico e prepotente, para assumir uma postura associada ao medievalismo
pós-colonial, passível de criar uma nova relação com o medievo.

Apesar de estudarmos a Idade Média que se faz presente, o medievalismo


centra a abordagem em um período que terminou e, a partir de então, pode
ser evocado ou reconstruído partindo dos interesses contemporâneos ao
contexto analisado, em suma, à luz de nossa brasilidade. Mas, para

55 “Studies carried out based on the notion of long Middle Ages accentuate a perception that societies
in America are inevitably heirs to the European continent. In fact, by analyzing the presence and
reminiscences of the feudal society, taking into account the notion of long Middle Ages, a core issue is
the European reality and how it has endured over time.
The Middle Ages appears here as a reference, emphasizing the dependent aspect on the European
experience, since the medieval society served as a model to be transplanted to the colonies. From this
historiographical view, the reference to the Middle Ages leads us to a colonialist interpretation of the
history of territories in the New World centered on a Eurocentric perspective. Considering that the
reference to understand the New World’s history lies in the Middle Ages and this connection is still
noticeable in the present and future, by medieval reminiscences, a teleology of western history is
created, whose core is the European historiography.
Now, if Europe is the core, it is tempting to link America’s discovery to the Middle Ages. However, this
particular interpretation of the conquest disregards the historical rupture caused by the conquest itself,
as well as the underlying process of colonization”.
68

fazermos isso, é preciso que repensemos uma série de postulados da


historiografia contemporânea, ainda vinculada ao cientificismo e às suas
reelaborações no século XX, a escola dos Annales, nova história entre
outros

Ao longo deste artigo, buscamos expor a teoria francesa da longa Idade


Média, suas repercussões e efeitos no estudo do período colonial nas
Américas. Observamos como uma historiografia eurocêntrica buscou não
apenas compreender a Idade Média na Europa ocidental, mas também
expandi-la para além da Europa, no continente americano.

A Idade Média que ultrapassa seus limites cronológicos e geográficos


influenciou e, muitas vezes, até justificou os estudos medievais no Brasil e
em toda a América. Nessa perspectiva, é perceptível que as sociedades
americanas figuram inevitavelmente como herdeiras do continente europeu.
A Sociedade medieval é entendida como o modelo que foi transplantado
para a colônia essa é uma percepção colonizada e eurocêntrica da história,
já que o ponto de referência para a compreensão da história do Novo
Mundo foram as instituições e modelos feudais56. (ibidem, p.120)

No mesmo sentido, Marcelo Berriel, no artigo “Pour un autre moyen age au


Brésil: a perspectiva decolonial na busca de uma episteme para a compreensão dos
medievalismos brasileiros” (2020), também critica a constante filiação dos brasileiros
à historiografia francesa.

No Brasil, existe ainda um agravante: os estudos sobre as apropriações da


Idade Média nos períodos pós-medievais ainda não estão organizados ao
ponto de constituir um campo ou, ao menos, ao ponto de promoverem
reflexões consistentes sobre conceitos e metodologias. As pesquisas

56 “Despite studying the Middle Ages of the present, the core of Medievalism is to approach a period
that ended and from that it can be evoked or recreated based on contemporary interests of the context
in question, i.e., in the light of our “Brazilianness”. To do so, we must question some postulates of
contemporary historiography that are still linked to scientism and its 20th-century constructs, the
Annales school, the new history (Nouvelle histoire) among others.
Throughout this paper, we sought to expose the French theory of the long Middle Ages, its
repercussions and effects on the study of the colonial period in the Americas. We observed how a
Eurocentric historiography aimed not only at understanding the Middle Ages within western Europe,
but also at expanding it beyond Europe, in the American continent.
The Middle Ages that goes beyond its chronological and geographical limits has influenced and, many
times, even justified medieval studies in Brazil and all over America. From this perspective, it is
noticeable that American societies inevitably figure as heirs to the European continent. The medieval
Society is taken as the model that was transplanted to the colony – this is a colonized and Eurocentric
perception of history, since the reference point to comprehend the history of the New World was the
feudal institutions and models”.
69

existem há algum tempo, mas, ao contrário da tradição anglófona, muitas,


ao invés de assumir como objeto a apropriação ou ressignificação de uma
representação de Idade Média, debruçaram-se sobre as continuidades ou
heranças da Idade Média na contemporaneidade, assumindo – implícita ou
explicitamente – uma filiação com a historiografia francesa (lembremos da
‘Longa Idade Média’, de Le Goff, que, mesmo criticada, insiste em
permanecer nos debates brasileiros sobre a ‘recepção’ da Idade Média).
(BERRIEL, 2020, p.74)

Reiterando a pluralidade dos estudos de medievalismo, o autor acredita que


esse campo de estudos pode ajudar e inspirar os medievalistas brasileiros em sua
busca pelo seu próprio medievalismo.

Em suma, o medievalism pode inspirar os medievalistas brasileiros em sua


busca pelo seu próprio medievalismo. Ele nos demonstra que há inúmeras
maneiras de relativizar o conhecimento sobre o período medieval e,
principalmente, que a presença contemporânea de elementos associados à
Idade Média é um indício para compreender as sociedades
contemporâneas e não os vestígios de sobrevivência de uma Idade Média
cuja definição carrega uma boa carga ideológica (ibidem, p.75).

Os pesquisadores Clínio de Oliveira Amaral e Marcelo Berriel, juntamente


com a professora Ana Carolina Lima Almeida, já tinham questionado e
desmistificado essas teorias de uma longa Idade Média e sua improvável chegada
às Américas em Le Moyen Âge est-il arrivé aux Amériques? Un débat sur le long
moyen âge aux Amérique (2014). O livro escrito para francês ler, possui duras
críticas à obra de Jérôme Baschet e outros francófonos, ressaltando, desde as
diferenças entre a Idade Média franco-germânica e o mundo ibérico, até as
peculiaridades do processo de colonização e, principalmente, a escravidão e “o
tráfico de escravos que foi o elemento estruturante da colonização portuguesa no
Atlântico Sul”57 (AMARAL; BERRIEL; ALMEIDA, 2014, p. 50).

Enfim, conforme já citado, essa medievalização de determinados elementos


sempre foram intencionalmente utilizadas pelos discursos ideológicos. Assim, as

57“le trafic des esclaves a été l’élement structurant de la colonisation portugaise dans l’Atlantique
sud”.
70

intituladas raízes medievais na contemporaneidade podem ter graves implicações


sociopolíticas. Podem servir – novamente, direta ou indiretamente – como premissas
ou justificativas para o oportunismo de teor colonialista, imperialista e/ou
nacionalista, ávidos por associações com qualquer “herança”, “vestígio”, “resíduo” ou
“sobrevivência” de um medievo que, muitas vezes, sequer existiu. A
instrumentalização do medievo busca evocar uma, tão gloriosa quanto falsa,
continuidade histórica. Independentemente, essa crítica à “residualidade” e às
“raízes medievais” também não serão objeto principal dessa pesquisa, mas em
nome do axioma de Gaston Bachelard (1884-1962), do “primado teórico do erro”
(BACHELARD, 1968), cabe dedicar algumas linhas para distinguir o medievalismo
das teorias incubadas no ventre da francofonia, dissentindo-as quando se revelam
antiquadas.

Ainda no Brasil, Dalma Braune Portugal do Nascimento fala de algo para


além dos “resíduos”, mas das “ressurgências atuais” da Idade Média e
“revivescências medievais”. Para ela:

Nos dois últimos séculos, apesar do crescente materialismo e do


avassalador domínio da técnica, amplia-se o interesse pela arte medieval,
justamente pela necessidade de o homem moderno sonhar utopias, e
também pelas frequentes reverberações da Idade Média em vários âmbitos
de nosso presente. Cada vez mais, signos, emblemas, mitos e fábulas
daquele longo período histórico, de dez séculos de duração, vêm
magnetizando o imaginário coletivo pelos sortilégios e maravilhamentos de
seu lendário, no qual transitam reis, rainhas, cavaleiros da Távola Redonda
à demanda do Graal salvador em meio a filtros mágicos, florestas
encantadas, histórias de amor, ogros, feiticeiros, anões, fadas e bruxas.
(NASCIMENTO, 2015, p.23)

Para Nascimento (ibidem, p.26): “na contemporaneidade, o universo


medieval não está tão distante assim”. Essa rememoração da Idade média também
foi interpretada no país por José Rivair Macedo & Lênia Márcia Mongelli (2009, p.14)
a partir de dois conceitos arrevesados: “Reminiscências Medievais” e
“Medievalidade”. Segundo eles:
71

Por ‘Reminiscências Medievais’ devem-se entender as formas de


apropriação dos vestígios do que um dia pertenceu ao Medievo, alterados
e/ou transformados com o passar do tempo. Nesta categoria encontram-se,
por exemplo, as festas, os costumes populares, as tradições orais de cunho
folclórico que remontam aos séculos anteriores ao XV e que preservam algo
ainda do momento em que foram criados, mesmo tendo sofrido acréscimos,
adaptações ou alterações no decurso dos séculos. Também constituem
reminiscências os monumentos arquitetônicos originados na Idade Média,
embora ninguém duvide que os castelos, pontes, mosteiros ou Igrejas
atualmente exibidos como ‘medievais’ tenham sido modificados
progressivamente, restando às vezes muito pouco da construção original.
(ibidem, p.15-16)

Festas como a de Corpus Christi, as Folias de Reis e a Festa do Divino


Espírito Santo, o Natal e mesmo o Carnaval foram um dia “medievais”, e ainda
persistem, contudo, não da mesma forma, nem com as mesmas características ou
estruturas, tampouco desempenhando os mesmos papéis na Europa ou em outras
partes do mundo para onde foram levadas. Quanto às construções, tanto as
catedrais góticas, quanto os próprios castelos, ninguém duvida que sejam
efetivamente “medievais”, mas é difícil determinar em que proporção. Isso quer dizer
que, depois da Idade Média, eles receberam novos arranjos, às vezes novas
funções. Muitos receberam elementos tipológicos e/ou ornamentos de estilos
arquitetônicos posteriores. A essa altura já fica fácil perceber que aqui novamente
reverbera a falácia da residualidade medieval e da medievalização.

Não obstante, essas “reminiscências” são substancialmente diferentes


daquilo que os autores denominaram de “medievalidade”. Na dita “medievalidade”, a
“Idade Média aparece apenas como uma referência, e por vezes uma referência
fugidia e estereotipada” (ibidem, p. 16), algo próximo dos famosos clichês aplicados
ao medievo, produzidos pela cultura de massa e repleta de traços fantasiosos, os
quais, muitas vezes, em nada representam a realidade histórica da Idade Média.

Aos já habituais temas de uma mitologia contemporânea do medievo (os


Templários, a Távola Redonda e o Graal, as Cruzadas etc.), somam-se os
dragões e os monstros de uma Idade Média que deve muito mais ao
universo criado por J. R. Tolkien em O Senhor dos Anéis. Tudo isso leva a
72

pensar que essa Idade Média ‘sonhada’, para usar a expressão de Umberto
Eco, tenha alguma relação com o vazio deixado pela sociedade de
consumo, em que o indivíduo é pulverizado e valores tradicionais são
reiteradamente banalizados. (ibidem, p. 18)

Rivair Macedo (2011, p.15) destaca os filões da “medievalidade” explorada


na indústria musical e pela indústria cultural, que se pode identificar claramente nos
jogos eletrônicos e nos RPGs. Os medievalistas brasileiros admitem que existem
outras “Idades Médias” vistas em retrospectiva pela posteridade e justificam a
necessidade de criação do termo “medievalidade” pela “ausência de uma melhor
conceituação” (MACEDO & MONGELLI, 2009, p. 15). No entanto, existe uma melhor
conceituação, pois a dita “medievalidade” por eles abordada guarda uma relação
direta com os conceitos de “medievalismo” e “neomedievalismo” abordados pela
escola anglo-americana, ou pela “Mittelalterrezeption” germânica. De fato, a estéril
“medievalidade” não acrescenta muita novidade aos conceitos preexistentes e as
ditas “reminiscências medievais” nada mais são do que sinônimos dos
desacreditados e problemáticos “resíduos”, “sobrevivências”, ou “raízes” da Idade
Média.

Apesar de não ser nada inovadora, no âmbito dessa “medievalidade” –


conceito utilizado aqui pela última vez –, os autores assumem que “certos índices de
historicidade estarão presentes em manifestações lúdicas, obras artísticas ou
técnica de recriação histórica” (ibidem p. 16). Finalmente, hora de recuperar o folego
e retomar o mergulho mais profundo na temática da tese.

1.2.3. Historical Reenactment & Living History

Recriação Histórica, ou Reconstituição Histórica, ou Reconstrução Histórica,


ou ainda, Reencenação Histórica, do inglês “Historical Reenactment”, ou “Historical
Re-enactment”, em italiano, “Rievocazione Storica”, em francês, “Reconstitution
Historique”, e, em espanhol, “Recreación Histórica” constitui uma prática educativa
lúdica, que tem por objetivo recriar peças/elementos artísticos e/ou alguns aspectos
socioculturais de um determinado período ou evento, formulando um conceito
dinâmico de pesquisa histórica, ao invés de apenas apresentar fragmentos de uma
73

época. O processo recria ou reconstrói rigorosamente os diversos aspetos de um


período bem definido, representando esse recorte temporal com a maior fidelidade
possível. Como uma prática sociocultural e também didático-pedagógica, consegue
concentrar diversos tipos de experiências e/ou simulações de representações
históricas, como uma forma empírica de ensino-aprendizado.

No entanto, a tradução para língua portuguesa gerou muitos problemas e


ainda provoca discordâncias, pois apesar do termo “recriacionismo” ser o mais
usual, esse neologismo léxico foi indevidamente apropriado por outras práticas,
desviando-se completamente das suas referências originais. O conceito de
“Recriação histórica” rapidamente corrompeu-se e passou a ser utilizado como mera
propaganda para qualquer festa ou evento em que as referências históricas passam
longe, quando passam. Em Portugal, onde o termo começou a se vulgarizar, as
inúmeras feiras e mercados medievais rapidamente se apropriaram do título de
“recriação histórica”, apesar da carência de rigor histórico na maioria delas.

O lusitano José Luís Pinto Fernandes, em artigo publicado no jornal on line


“Vila Nova”, criticou severamente os eventos medievais portugueses. Segundo ele:
“Em primeiro lugar, passemos em revista o problema mais premente: pura e
simplesmente, estes eventos são, na sua esmagadora maioria, destinados a fazer
negócio, não para recriar o período supostamente alegado”. Prossegue destacando
alguns erros e os problemas:

Para além de erros factuais, especialmente quando as organizações e


recriadores não têm profissionalismo e experiência ou estão literalmente a
ignorar os factos, temos ainda outro perene problema: a recriação histórica
em Portugal não sabe reconstruir espaços e cotidianos em devidas
condições, quando recriá-los poderia ser a componente mais importante de
educação do público ou até uma fonte importante de arqueologia
experimental. As vivências cotidianas (altamente dependentes do contexto
do dia a dia e regional) são constantemente postas em segundo plano,
preteridas por grandes acontecimentos e personagens ou destacadas de
forma descontextualizada, utilizando certas personagens como prostitutas,
‘bruxas’ (o que quer que isso seja) ou outros quejandos de forma
anacrônica. Julgo que isso possa estar relacionado com o modo como as
companhias de teatro contratadas ou voluntárias funcionam, com uma
pesquisa superficial e dando destaque em tudo o que possa ser cômico
74

(atenção que esse último aspecto pode não ser sempre negativo). Também
poderia falar do vestuário historicamente incorreto ou confeccionado com
materiais inapropriados, embora essa falha também possa vir parcialmente
de um certo atraso da historiografia portuguesa quanto ao vestuário
medieval58.

Ou seja, a maioria das chamadas “recriações” em Portugal perderam muito


do caráter histórico/arqueológico, fundamental à sua significância original. O termo
em língua portuguesa está envolto em contradições e os usos indevidos
contaminaram a ideia de uma recriação histórica ao associá-la a qualquer
divertimento fantasioso sem nenhum critério. Ademais, existem outros problemas
semânticos associados ao “recriacionismo”, diante da impossibilidade de se “recriar”
todos os aspectos de um determinado período. Em virtude de todas essas
contradições, para evitar comparações inconvenientes e más interpretações, dar-se-
á, então, preferência pelo uso do termo consolidado em inglês “historical
reenactment” para a prática com fundamento histórico e “reenactor” para o praticante
cuidadoso, ainda que os termos recriação, reconstituição, reconstrução e
reencenação possam continuar acompanhando o conceito.

Antes do historical reenactment se vulgarizar, o filósofo Robin George


Collingwood (1889–1943) – também citado como historiador e arqueólogo – afirma
que todo historiador deveria reencenar o passado na sua mente. No seu livro The
Idea of History (1946) ele questiona:

O historiador não conhece o passado simplesmente acreditando em uma


testemunha ocular dos eventos em questão e que deixou suas evidências
registradas. Esse tipo de mediação resultaria no máximo em uma crença,
mas não no conhecimento, e uma crença muito mal fundamentada e
improvável. E o historiador, mais uma vez, sabe muito bem que não é assim
que se procede; está ciente do que faz com suas chamadas autoridades,
não deve acreditar nelas, mas sim criticá-las. Se, então, o historiador não
tem conhecimento direto ou empírico de seus fatos e nenhum conhecimento

58
FERNANDES, José Luís Pinto. Recriações Históricas | As feiras medievais e os problemas da
recriação histórica em Portugal: uma perspectiva crítica. Vila Nova, Famalicão. 02 de novembro de
2018. Disponível em: < https://vilanovaonline.pt/2018/11/02/jlpf-recriacoes-historicas-as-feiras-
medievais-e-os-problemas-da-recriacao-historica-em-portugal-uma-perspectiva-critica/>. Acesso em:
02 de fevereiro de 2019.
75

transmitido ou testemunhal sobre eles, que tipo de conhecimento ele possui,


em outras palavras, o que o historiador deve fazer para que possa conhecê-
los?59 (ibidem, p. 282)

Em seguida sugere:

Minha revisão histórica da ideia de história resultou no surgimento de uma


resposta para essa pergunta: a saber, o historiador deve reencenar o
passado em sua própria mente. O que devemos fazer agora é olhar mais de
perto essa ideia e ver o que ela significa em si mesma e quais
consequências adicionais ela implica60. (ibidem, p 282)

O filosofo britânico admite que muitos historiadores já faziam isso


intuitivamente, sem precisar de nenhum método específico. Contudo, para ele,
reencenar mentalmente o passado permitiria o historiador ir além dos documentos e
das relíquias na aproximação com o passado. Evidentemente, esse reencenar ou
repensar o passado seria “um ato de pensamento semelhante ao original”61, pois é
sabido que “nenhuma experiência pode ser literalmente idêntica à outra”62 e se –
supostamente – fosse possível, a experiência identicamente repetida “seria
simplesmente incorporado ao sujeito (neste caso, o presente, o próprio pensamento
do historiador); em vez de responder à pergunta de como o passado é conhecido”.
(ibidem, p. 284)

No entanto, paralelamente, para esse mesmo autor, nem todo fato, relato ou
pensamento é completamente incognoscível. “Todo ato de pensamento, como
realmente acontece, se dá em um contexto no qual surge e no qual vive, como

59 The historian does not know the past by simply believing a witness who saw the events in question
and has left his evidence on record. That kind of mediation would give at most not knowledge but
belief, and very ill-founded and improbable belief. And the historian, once more, knows very well that
this is not the way in which he proceeds; he is aware that what he does to his so-called authorities is
not to believe them but to criticize them. If then the historian has no direct or empirical knowledge of
his facts, and no transmitted or testimoniary knowledge of them, what kind of knowledge has he: in
other words, what must the historian do in order that he may know them?
60 “My historical review of the idea of history has resulted in the emergence of an answer to this

question: namely, that the historian must re-enact the past in his own mind. What we must now do is
to look more closely at this idea, and see what it means in itself and what further consequences it
implies”.
61 “An act of thought resembling the first”.
62 “No one experience can be literally identical with another”
76

qualquer outra experiência, como uma parte orgânica da vida do pensador”63


(ibidem, p.300). Então esse mesmo ato de pensamento, além de realmente
acontecer, também é capaz de se sustentar e ser revivido ou repetido sem perda de
sua identidade. Mas para isso não basta apenas possuir as obras e os relatos que
nos permitam entender esse pensamento, “para podermos fazê-lo, precisamos
chegar à leitura deles, preparados com uma experiência suficientemente semelhante
a dele para tornarmos orgânicos esses pensamentos”64 (ibidem, p.300). Citando o
exemplo da filosofia platônica, Collingwood tenta esclarecer o seu método.

Se agora repenso um pensamento de Platão, meu ato de pensar é idêntico


ao de Platão ou é diferente do dele? A menos que seja idêntico, meu
alegado conhecimento da filosofia de Platão é puro erro. Mas, a menos que
seja diferente, meu conhecimento da filosofia de Platão implica em meu
próprio esquecimento. O que seria necessário, caso eu quisesse conhecer a
filosofia de Platão? Repensá-la em minha mente e também pensar outras
coisas à luz das quais posso julgá-la. Alguns filósofos tentaram resolver
esse quebra-cabeça recorrendo vagamente ao ‘princípio da identidade na
diferença’, argumentando que há um desenvolvimento do pensamento de
Platão em mim e que qualquer coisa que se desenvolva permanece idêntica
a ela, embora seja diferente. Outros responderam com justiça que a
questão é exatamente como as duas coisas são iguais e exatamente como
elas diferem. A resposta é que, em seu imediatismo, como experiências
reais organicamente unidas a um corpo de experiências nas quais elas
surgem, o pensamento de Platão e o meu são diferentes. Mas na mediação
eles são os mesmos.65

[...]

63 “Every act of thought, as it actually happens, happens in a context out of which it arises and in which
it lives, like any other experience, as an organic part of the thinker's life”
64
“In order that we may be able to do so, we must come to the reading of them prepared with an
experience sufficiently like his own to make those thoughts organic to it”.
65 If I now re-think a thought of Plato's, is my act of thought identical with Plato's or different from it?

Unless it is identical, my alleged knowledge of Plato's philosophy is sheer error. But unless it is
different, my knowledge of Plato's philosophy implies oblivion of my own. What is required, if I am to
know Plato's philosophy, is both to re-think it in my own mind and also to think other things in the light
of which I can judge it. Some philosophers have attempted to solve this puzzle by a vague appeal to
the 'principle of identity in difference', arguing that there is a development of thought from Plato to
myself and that anything which develops remains identical with itself although it becomes different.
Others have replied with justice that the question is how exactly the two things are the same, and how
exactly they differ. The answer is that, in their immediacy, as actual experiences organically united
with the body of experience out of which they arise, Plato's thought and mine are different. But in their
mediation they are the same.
77

Se eu não apenas ler seu argumento, mas entendê-lo, segui-lo pela minha
mente, redarguindo comigo e para mim mesmo, o processo de
argumentação pelo qual eu passo não é um processo semelhante ao de
Platão, na verdade, é de Platão, pelo menos como eu o compreendo. O
argumento simplesmente como ele mesmo, partindo das suas premissas e
conduzindo esse processo até a conclusão; o argumento tal como pode ser
desenvolvido na mente de Platão, ou na minha, ou na mente de qualquer
outra pessoa é o que chamo do pensamento em sua mediação. Na mente
de Platão, isso existia em um certo contexto de discussão e teoria; na minha
mente, porque não conheço esse contexto, ele existe em um contexto
diferente, a saber, o das discussões decorrentes do sensacionalismo
moderno. Por ser um pensamento e não um mero sentimento ou sensação,
ele pode existir em ambos os contextos sem perder sua identidade.66
(ibidem, p. 301-302)

O “reenactment” nesse caso seria uma atividade exclusivamente intelectual.


No entanto, essa complexa e controversa ideia de aproximação de um fato ou de
uma forma de pensar e agir do passado, a partir de uma reencenação mental,
proposta pelo filósofo Robin George Collingwood, ajuda a compreender também a
concepção do “historical reenactment”. Conquanto, na prática, ambos buscam
reencenar um fato histórico para compreendê-lo melhor, [re]experimentá-lo,
recriando detalhadamente todo o processo, etapa por etapa. O “historical
reenactment” permite aos seus praticantes a experiência lúdica de vagarem pela
história de um modo diferenciado, revivendo e experimentando fisicamente alguns
aspectos do período reencenado.

Um dos principais trabalhos acadêmicos sobre o tema abrolhou do outro


lado do mundo, em uma pesquisa organizada pelos historiadores australianos Iain
McCalman & Paul A. Pickering, com a estreita colaboração de Vanessa Agnew e
Jonathan Lamb. O resultado foi uma generosa conjunção de artigos científicos
intitulada Historical Reenactment: From Realism to the Affective Turn (2010). O

66 if I not only read his argument but understand it, follow it in my own mind by re-arguing it with and
for myself, the process of argument which I go through is not a process resembling Plato's, it actually
is Plato's, so far as I understand him rightly. The argument simply as itself, starting from these
premisses and leading through this process to this conclusion; the argument as it can be developed
either in Plato's mind or mine or anyone else's, is what I call the thought in its mediation. In Plato's
mind, this existed in a certain context of discussion and theory; in my mind, because I do not know that
context, it exists in a different one, namely that of the discussions arising out of modern
sensationalism. Because it is a thought and not a mere feeling or sensation, it can exist in both these
contexts without losing its identity.
78

Título do livro parece brincar com os estudos da “teoria dos afetos” desenvolvida por
Spinoza (1632-1677) e posteriormente elaborada pelos filósofos Gilles Deleuze
(1925-1995) & Félix Guattari (1930-1992), sobre a potência afetiva e a conspiração
dos afetos, estimulando o movimento que no início do novo milênio ficou
propagandisticamente conhecido como: “Affective Turn”67.

O título se justifica, pois segundo a teoria de Spinoza (2009), desenvolvida


principalmente no seu tratado sobre Ética (2009), o poder – ou a potência – da
mente para pensar deveria ser idêntico ao poder – ou a potência – do corpo para
agir e o “historical reenactment” se expressa principalmente pela ação. Ainda para
esse filosofo, quanto maior o nosso afeto, maior o nosso poder de agir, e os afetos
também podem ser ações – determinados por causas internas – ou paixões. Afinal,
também o próprio conceito de emoção remete a uma construção plural, composta
não apenas do pensamento e do sentimento, mas também da reação do corpo.
Novamente para Espinoza, a noção de afeto abrange a dualidade mente e corpo,
enquanto a sua teoria ou perspectiva dos afetos conjectura o esforço constante de
transformar paixões em ações. Contudo, não cabe ao escopo dessa pesquisa se
aprofundar nessa teoria ou perspectiva, preconizada pelo movimento teórico
hodierno denominado de virada afetiva, cabe apenas ressaltar que Iain McCalman &
Paul A. Pickering entre outros autores, perceberam a crescente relação de
afetividade dos praticantes de “historical reenactment”, pois a maioria deles atua
pelo afeto, engajados pelas paixões e sentimentos.

Para os autores australianos, os “reenactors” também ouviram e adimpliram


ao apelo do historiador marxista britânico Raphael Samuel (1934–1996): “objetos
devem ser vistos, sentidos e tocados se não quiserem que permaneçam inanimados
[...]. Os eventos devem ser recriados de forma a transmitir uma experiência vivida do

67 A década de sessenta e setenta do século passado presenciou uma virada linguística (lingustic
turn) a partir da centralidade da linguagem, do discurso e do texto, explorada pelo estruturalismo, pelo
pensamento da diferença, assim como pela semiologia e pela semiótica. Já os anos oitenta e noventa
teriam sido marcados pela virada cultural (cultural turn), que buscava repolitizar textos e práticas sob
a égide dos estudos culturais, pós-coloniais, étnicos e de gênero. Para alguns, o início do novo
milênio foi marcado por uma virada afetiva (affective turn). Assim como as outras “viradas” ocorridas
nos diversos campos acadêmicos, a virada afetiva busca consolidar e estender – na atualidade –
alguns dos caminhos mais promissores alcançados por pesquisa anteriores, pois os seus estudos
emergiram como resposta aos problemas e às debilidades dos paradigmas antecessores, para além
das críticas ao manuseio racionalista/positivista dos fenômenos afetivos. A virada afetiva não é a
proposição de uma (nova) visão de mundo capaz de finalmente perceber a dimensão afetiva da
realidade; contudo, trata-se do reconhecimento de que a realidade é afetiva e intensiva na sua
dimensão mais básica e elementar.
79

passado”68 (apud MACCALMAN & PICKERING, 2010, p. 03). Em resumo, é


exatamente isto: a partir de profundos estudos historiográficos e arqueológicos,
buscando um novo entendimento do passado, o “reenactment” rompe com as
abordagens tradicionais, recriando – como o próprio nome sugere – objetos e
revivendo eventos com maior autenticidade e fidelidade aos padrões da época
escolhida.

O livro aborda o “reenactment” por diversos aspectos, não apenas os


eventos socioculturais, mas seu uso em algumas obras cinematográficas, nos
programas e documentários televisivos – no estilo Historical reality television series
ou Historical Reality TV shows –, inclusive o emprego de novas tecnologias como as
Computer-Generated Imagery (CGI), capazes de produzir reencenações e
simulações hiper-realistas. Contudo, quase sempre repletos de distorções históricas,
com o intuito de aumentar audiência e obter maior lucro.

Eles também mencionam a popularização do “reenactment” dos eventos


históricos, como uma fuga da monotonia cotidiana e apresentam uma crítica
contundente acerca da relação de afetividade com o passado: “Sítios de turismo
histórico – público e comercial – estão intrinsecamente preocupados em criar uma
relação afetiva com o passado, devido ao fato desse passado ser objetificado para
os visitantes”69 (ibidem, p. 08). Os autores denunciam o crescente processo de
fetichização70 do passado e a “relação desconfortável entre realismo, autenticidade e

68 “Objects must be seen and felt and touched if they are not to remain inanimate […] events should
be re-enacted in such a way as to convey the lived experience of the past”.
69 “Sites of historical tourism – public and commercial – are intrinsically concerned with creating an

affective relationship with the past because of the very fact that this past is objectified for the visitors”.
70 A fetichização ou “Fetichismo da mercadoria” foi originalmente trabalhado por Karl Marx (1818-

1883) no primeiro capítulo da sua obra seminal O Capital. Está diretamente relacionado com a
percepção das relações sociais envolvidas na produção, não como relações entre as pessoas, mas
como as relações econômicas entre coisas. Um fenômeno social e psicológico capaz de transformar
os aspectos subjetivos em objetivos.

A forma-mercadoria e a relação de valor dos produtos do trabalho em que


ela se representa não tem, ao contrário, absolutamente nada a ver com sua
natureza física e com as relações materiais [dinglichen] que dela resultam. É
apenas uma relação social determinada entre os próprios homens que aqui
assume, para eles, a forma fantasmagórica de uma relação entre coisas.
Desse modo, para encontrarmos uma analogia, temos de nos refugiar na
região nebulosa do mundo religioso. Aqui, os produtos do cérebro humano
parecem dotados de vida própria, como figuras independentes que travam
relação umas com as outras e com os homens. Assim se apresentam, no
mundo das mercadorias, os produtos da mão humana. A isso eu chamo de
fetichismo, que se cola aos produtos do trabalho tão logo eles são
80

afetividade”71 (ibidem, p.09), quando o “reenactment” acaba se tornando um mero


espetáculo de improvisação que “talvez possua mais relação com o entretenimento
do que com a pedagogia”72 (ibidem, p.09).

O livro reúne doze ensaios, alguns abordam a “forte conexão emocional dos
participantes com a história representada”73 (ibidem, p. 59), outros, as polêmicas
políticas e ideológicas de algumas reencenações históricas. No começo do ensaio
assinado pelo historiador John Brewer, intitulado Reenactment and Neo-Realism, em
evidente tom satírico, o autor critica a enorme diversidade de eventos de “historical
reenactment” existentes atualmente, “reenactment, assim como as doenças
sexualmente transmissíveis, existem muito mais hoje em dia”74. (apud MACCALMAN
& PICKERING, 2010, p.79). Segundo ele, o “reenactment” já existe há cerca de
duzentos anos, mas somente agora começou a atrair a atenção dos pesquisadores,
provavelmente devido a sua pluralidade e a rápida proliferação de eventos.

De fato, a recente preocupação acadêmica com o reenactment é muito mais


específica. Parece-me fazer parte de uma ansiedade sobre o crescente
interesse no passado, do qual seus guardiões naturais – historiadores
profissionais – foram amplamente excluídos75 (ibidem, p 79).

A professora da Universidade de Michigan e colaboradora da obra


supracitada, Vanessa Agnew, concorda com John Brewer e reitera: “Embora o
reenactment tenha sido considerado um fenômeno cultural marginal e ignorado
pelos historiadores acadêmicos, os últimos cinco anos reverteram essa tendência”76
(AGNEW, 2007, p.299). Ela também concorda com a aproximação contemporânea
entre o “reenactment” e a abordagem adjetiva do afeto: “Em outras palavras, nós

produzidos como mercadorias e que, por isso, é inseparável da produção de


mercadorias (MARX,2015, p.206,207).

71 “The uneasy relationship between realism, authenticity and affect”.


72 “has perhaps got more to do with entertainment than pedagogy”.
73 “Strong emotional connections to the histories represented”.
74 “Reenactment, as of sexually transmitted disease, that there is a lot more of it about nowadays”.
75 “In fact recent academic concern with reenactment is rather more specific. It seems to me to be part

of an anxiety about the proliferating interest in the past, from which its natural custodians –
professional historians – have largely been excluded”.
76“While reenactment was long considered a marginal cultural phenomenon and ignored by academic

historians, the past five years have reversed this trend”.


81

podemos ver o reenactment como um dos indicadores da recente virada afetiva na


história”77 (ibidem, p.300). Em um dos seus textos mais famosos What Is
Reenactment? (2004), a historiadora destaca não apenas a quantidade, mas
também a rápida disseminação do movimento pelo mundo.

Embora o reenactment pareça endêmico nos Estados Unidos, assim como


na Grã-Bretanha e em outros países da comunidade – um fenômeno
cultural cujo vínculo com as tradições individualistas e protestantes desses
países teria um escrutínio mais próximo – não é reservado, exclusivamente,
ao mundo anglófono. Reenactments do passado colonial alemão na
Namíbia e o legado dos Afrikaner na África do Sul, índios americanos
fictícios na Alemanha e cruzados medievais na Austrália apontam para o
fato do reenactment ser um fenômeno global não necessariamente
confinado a eventos históricos autóctones, nem mesmo aos fatos de fato78.
(AGNEW, 2004, p. 328)

Faltou citar – sem teor crítico ou preconceituoso – os cavaleiros nipônicos


com armaduras europeias do século XIV a vagar pelas ruas de Tóquio e os
guerreiros vikings caboclos no Brasil. “Talvez como sintoma de um interesse público
mais amplo pela história, o reenactment ganhou premência no Ocidente na última
década”79 (ibidem, p. 328), mas a autora também concorda que está longe de ser
uma novidade. Seu texto afirma, de forma preocupante, que com seus espetáculos
excitantes e narrativas simples e diretas, o “reenactment parece ter cumprido a
promessa fracassada da história acadêmica”80 (ibidem, p. 330), mas concluiu com
algumas recomendações importantes:

77 “We can, in other words, see reenactment as one of the indicators of history’s recent affective turn”.
78“While reenactment seems endemic in the United States as well as Britain and other Commonwealth
countries—a cultural phenomenon whose link to the individualist, Protestant traditions of these
countries bears closer scrutiny—it is not the exclusive preserve of the Anglophone world.
Reenactments of the German colonial past in Namibia and the Afrikaner legacy in South Africa,
fictional American Indians in Germany, and medieval crusaders in Australia point to the fact that
reenactment is a global phenomenon not necessarily confined to autochthonous historical events nor
even to factual ones”.
79“Perhaps symptomatic of a broader public interest in history, reenactment has gained urgency in the

West during the past decade”.


80 “Reenactment apparently fulfills the failed promise of academic history”
82

Como veículo para uma investigação histórica, as amplas questões


interpretativas que o reenactment deve apresentar são as mesmas,
problematizar as questões éticas e políticas da representação histórica. Em
vez de eclipsar o passado com sua própria teatralidade, a encenação deve
tornar visíveis as maneiras pelas quais os eventos foram imbuídos de
significados e investigar quais interesses foram atendidos por esses
significados. A afirmação epistemológica central do reenactment de que a
experiência promove a compreensão histórica é claramente problemática: o
testemunho baseado no corpo nos diz mais sobre o eu presente do que
sobre o passado coletivo. No entanto, a encenação é um fenômeno cultural
que não pode ser ignorado. Seu amplo apelo, sua carga implícita na
democratização do conhecimento histórico e sua capacidade de encontrar
modos novos e inventivos de representação histórica sugerem que ele
também tem uma contribuição a dar para historiografia acadêmica81.
(ibidem, p 335).

Em outro livro assinado por Vanessa Agnew, dessa vez organizado com os
professores Jonathan Lamb & Daniel Spoth da Universidade de Vanderbilt, intitulado
Settle and Creole Reenactment (2009), diversos pesquisadores, a partir das teorias
pós-colonialistas, analisam importantes exemplos de “reenactments”, nos quais
questões políticas – colonialistas, imperialistas e nacionalistas – geram receio e
preocupação. Na introdução do compêndio, Jonathan Lamb alerta:

O historical reenactment começa com a suposição de que a história pode


ser gerenciada: pode ser enquadrada, reproduzida, aproximada e pode
novamente ser parte de nossa experiência humana, de uma maneira
encorajadora. No processo, a história tornar-se-á não apenas mais vívida,
mas também mais inteligível e mais bem modelada. O passado se tornará
então uma parte mais íntima do presente e, por estar tão próximo,
conheceríamos então a história como ela realmente é. A ênfase no realismo
do reenactment – com o tecido certo para as roupas, a comida certa para a

81 “As a vehicle for historical inquiry, broad interpretative questions are the very ones that reenactment
must pose by inquiring into the ethics and politics of historical representation. Rather than eclipsing the
past with its own theatricality, reenactment ought to make visible the ways in which events were
imbued with meanings and investigate whose interests were served by those meanings.
Reenactment’s central epistemological claim that experience furthers historical understanding is
clearly problematic: body-based testimony tells us more about the present self than the collective past.
Yet, reenactment is a cultural phenomenon that cannot be overlooked. Its broad appeal, its implicit
charge to democratize historical knowledge, and its capacity to find new and inventive modes of
historical representation suggest that it also has a contribution to make to academic historiography”.
83

cozinha e a gatilho certo na arma – oferece um desafio que, se atendido


com sucesso, permite que o reenactor, simultaneamente, represente e
experimente o que aconteceu na história e viva sua autenticidade aos olhos
do mundo como uma forma especial de mimese. No caminho para essa
conquista, pode até haver lágrimas, gritos e inconvenientes, mas essas
dificuldades são as garantias incidentais da verdade da performance e o
prazer que a acompanha: nada de bom vem fácil. No entanto, nas emoções,
provações e conflitos da reconstituição, muitas vezes é possível observar o
germe de algo que não é bem definido ou alinhado, algo que pode distorcer
todo o desempenho e deixá-lo com a aparência que não esperávamos.
Podemos chamar isso de contingência, acaso ou acidente; mas como quer
que chamemos, ela cresceu a partir de uma História, uma força
surpreendentemente dolorosa com movimentos e significados próprios, e
talvez muito ferozmente obscura para ser realmente conhecida. Quando a
História acontece conosco dessa maneira imprevisível, as paixões da
reencenação tornam-se muito poderosas e, em vez de possuirmos o
passado, somos possuídos por ele82 (AGNEW, LAMB, SPOTH, 2009, p 01).

A partir do momento que somos consumidos por essa paixão pelo passado,
qualquer possiblidade de alteridade83 ou relação crítica com a história é

82 “Historical reenactment begins with the assumption that history can be maneged: it can be framed,
reproduced, brought closer, and it can bem ade parto f our human experience again, in a reassuring
way. In the process it will become not only more vivid, but also more intellliggible and shapely. The
past shall bem made more intimately part of the present, and because it comes so close we shall get
to know history as it really is. The emphasis on realism in reenactment – having just the right fabric for
the clothes, just the right food for the kitchen, and just the right lock on the gun – offers a challenge
which, if sucessfully met, allows the reenactor simultaneously to represent and to experience what
happened in history, and to live out its authenticity in the eye of the world as a special form of mimesis.
There might be tears, shouting, and sulks on the way to this achievement, but such disturbances are
the incidental guarantees of the truth of the performance and the pleasure that goes with it: nothing
good comes easy. However, in the excitements, trials, and conflicts of the reenactment it is often
possible to observe the germ of something that is not quite shapely or symmetrical, something that
can skew the whole performance and leave it looking not all as we had expected. We can call it
contigency, chance or accident; but whatever we call it, if it grows from a History, a painful surprising
force with its own drift and meaning, and perhaps too fiercely obscure to be really known at all. When
History happens to us in this unpredictable way the passions of reenactment become very powerful
indeed, and instead of possessing the past we are possessed by it”.
83 A “Alteridade” ou essa relação com o “Outro” pode ser considerada como uma das preocupações

centrais no pensamento do medievalista Paul Zumthor. Apesar do mesmo admitir que a “alteridade
medieval é mais relativa” do que “absoluta” ou “radical” (ZUMTHOR, 2009 p.41), afinal, para ele:

Nossa Idade Média engloba um passado próximo e distante ao mesmo


tempo; estrangeiro, mas vizinho: não está aí uma definição tradicional de
‘próximo’, aquele que, de vez em quando, exploramos e amamos? Donde
uma tendência a idealizar esta Idade Média bem mais forte e eficaz porque
melhor enraizada numa sensibilidade coletiva difusa, diferente da que tem o
84

completamente anulada, esses são os riscos dos “reenactments” movidos apenas


pela afetividade. Em alguns casos o “reenactment” como espetáculo pode [re]criar
uma história impregnada de interesses. Nesse livro são revisitados, pela abordagem
crítica pós-colonial, eventos de “reenactment” na Europa, América, Australásia e na
África, incluindo, nesse último, alguns relacionados ao regime Apartheid. Em
determinados exemplos, o simbolismo político-ideológico das representações são
notórios, em outros casos, transbordam de fervor patriótico, desse modo, “o
reenactment prova ser uma caixa de Pandora, liberando forças que não podem ser
controladas pela performance, por mais elegante que ela seja”84 (ibidem, p. 07). Por
outro lado, o “reenactment” também pode ajudar a fazer aparecer, ou lembrar,
aqueles que desapareceram, ou foram esquecidos na história, apesar da
impossibilidade de regenerar ou recriar aquilo e/ou aqueles que se foram para
sempre (ibidem, p. 17).

O “historical reenactment” continua sendo um fenômeno popular de difícil


definição, pois abarca uma grande quantidade e variedade de atividades. Algumas
vezes, o “historical reenactment” medieval ambiciona preencher lacunas que os
livros de história por si só não conseguem e, quando bem executado, desempenha
um papel importante nas pesquisas empíricas acerca das técnicas produtivas
antigas, assim como de algumas práticas socioculturais, cultivando um número cada
vez maior de admiradores e adeptos.

Outro trabalho importante para o entendimento do tema foi escrito pela


professora de História do teatro, performances e teorias de intermídia do Department
of Theatre Arts and Performance Studies da Universidade Brown nos E.U.A.
Rebbeca Schneider. Performing Remains: Art and War in Times of Theatrical
Reenactment (2011) apresenta uma importante análise do reenactment como arte
performática quase sempre repleta de engajamento afetivo e algumas vezes
praticada por entusiastas ingênuos. Enquanto a autora demonstra interesse e

egiptólogo para idealizar o império de Amenofis ou o etnólogo a sociedade


dos Trobians. A Idade Média pertence à nossa história: ela nos pertence de
um modo muito especial porque biológica e culturalmente descendemos
dela em linha direta (Ibidem, p.41).

84 “reenactment proves to be a Pandora’s box, releasing forces that cannot be controlled by


performance, no matter how elegant".
85

preocupação pela possibilidade de “tocar o tempo por meio de vestígios gestuais ou


da temporalidade cruzada da pose”85. (ibidem, p. 02).

Reenactment é um termo que entrou em vigor nos círculos da arte, do teatro


e da performance no final do século XX e início do século XXI. A prática de
reproduzir ou recriar um evento, obra de arte ou ato precedente explodiu na
base da arte performática com a ascensão do historical reenactment e do
‘living history’ em vários museus de história, parques temáticos e
sociedades de preservação. De muitas maneiras, o reenactment tornou-se a
ala popular baseada na prática do que tem sido chamado de ‘indústria da
memória’ acadêmica do século XX.86 (ibidem, p 02).

Ao abordar o reenactment como arte performática, o trabalho de Rebbeca


Schneider acaba resvalando no estudo da “Antropologia da Performance”87
(TURNER, 1987), originalmente, desenvolvido na última pesquisa do antropólogo
britânico Victor Turner (1920-1983). Resultado da convergência entre as suas
investigações etnográficas sobre os rituais – considerados capazes de suspender o
fluxo da vida cotidiana e de desestabilizar relações predeterminadas pela estrutura
social – e o seu interesse pelo teatro e as representações artísticas como fonte de
conceitos e metáforas para compreensão da vida social. Essa “Antropologia da
Performance” representa uma metamorfose e uma reconfiguração dos conceitos
criados pelo antropólogo e, continua sendo muito utilizada, para análises das obras
artísticas tornadas vivas através do corpo e da própria vida como representação do
drama social.

A “Antropologia da Performance” representa mais uma alternativa entre as


diversas formas de abordar o “reenactment”. No entanto, a própria Rebbeca
Schneider admite a dificuldade de analisá-lo como arte performática, pois pode
associar o “reenactment” a uma atividade exclusivamente artística-teatral, com

85 “I am interested in the attempt to literally touch time through the residue of the gesture or the cross-
temporality of the pose”.
86 “Reenactment is a term that as entered into increased in late twentieth-and early twenty-first-century

art, theatre, and performance circles. The practice of re-playing or re-doing a precedente event,
artwork, or act has exploded in performance-base art along the burgeoning of the historical
reenactment and “living history” in various history museums, theme parks, and preservation societies.
In many ways, reenactment has become the popular and practice-based wing of what has been called
the twentieth-century academic “memory industry”.
87 “The Anthropology of Perfomance”.
86

ênfase na criatividade e interpretação, enquanto a maioria dos praticantes estão


muito mais preocupados com a ideia de precisão histórica. Ademais, a autora
problematiza o próprio termo “reenactment”, que no âmbito das artes cênicas pode
ser utilizado com diferentes acepções, tonando-se fluido e diversificado.

Na verdade, a arte performática e o reenactment teatral em um contexto de


arte podem às vezes ter uma relação incômoda, especialmente no que diz
respeito aos riscos da autenticidade. Quer deva ou não, o quadro da ‘arte’
desculpa erros e omissões – até mesmo os espera – de maneiras não tão
facilmente perdoadas pela ‘história’. A maioria dos eventos de ‘living history’
e reenactments de batalha não são nem enquadrados (ou reenquadrados)
como arte, nem fingem ser algo artístico – preferindo o ‘autêntico’ e o ‘real’.
Em vez disso, eventos de ‘living history’ e reenactments de batalha ocorrem
como ‘passatempo popular’ ou ‘atividade relacionada à herança patrimonial’
em algum lugar inferior entre teatro, museu de história, ritual religioso,
esporte, hobby, feira de artesanato, escavação arqueológica, viagem de
campo educacional, trabalho de campo antropológico, religião e... sim,
instalação de arte.88 (ibidem, p 13).

A autora admite que o seu trabalho não trata a experiência do “reenactment”,


porque ela não participou das atividades como “reenactor”. Nesse sentido, o livro
aborda uma investigação teórica sobre o “reenactment”, como uma atividade que
envolve a todos, desde os praticantes aos espectadores. Segundo ela: “é sobre o
emaranhado temporal, sobre o vazamento temporal e sobre as muitas perguntas
que acompanham esse retorno no tempo”89 (ibidem, p. 10). Esses estudos ajudam a
compreender o esforço de brincar com uma determinada temporalidade em um outro

88 “Indeed, performance art and theatre reenactment in na art context can sometimes sit in an uneasey
relationship, especially regarding the stakes of authenticity. Whether it should or not, the frame of ‘art’
excuses errors and omissions – even expects them – in ways not excused as easily for ‘history’. Most
living history events and battle reenactments are neither framed (or re-framed) as art nor they pretend
to anything artistic – preferring instead the ‘authentic’ and the ‘real’. Rather, living history events and
battle reenactments occur as ‘popular pastime’ or ‘heritage activity’ in some nether-space between
theatre, history museum, religius ritual, sport, hobby, craft fair, archaeological dig, educational field
trip, anthropological fieldwork, religion, and... yes, art installation”.
89 “It is about the temporal tangle, about the temporal leak, and about the many questions that attend

time’s returns”.
87

período histórico. “O sentido do passado, mesmo que disponível para ‘refazer’, ou


até mesmo para voltar, é fundamental”90 (ibidem, p.14).

Imagem 13: The Battle of Hastings reenactment, um dos maiores exemplos de medieval historical
reenactment realizado de cinco em cinco anos desde 1984. Recria com fidelidade histórica os
principais acontecimentos da famosa Batalha de Hasting de 1066. Organizado e patrocinado pela
agência patrimonial inglesa English Heritage (oficialmente: the English Heritage Trust). Antes do
evento, todos os participantes são vistoriados para averiguar se os detalhes do traje estão histórica e
arqueologicamente corretos. Na imagem o evento realizado em 2012.
Fonte: https://www.deviantart.com/hammer-digital/art/2012-Battle-of-Hastings-332248485.
Acessado em 15 de setembro de 2019.

O livro de Rebbeca Schneide apresenta outra confusão muito frequente


entre os termos “historical reenactment” e “living history”, mas antes de tratar desse
assunto é preciso abordar os problemas de tradução para língua portuguesa do
segundo termo também. Normalmente traduzido como “História ao Vivo” ou “História
viva”, faz-se imperativo problematizar essas versões simplórias para linguagem
lusófona. Pois basta analisar a prática do “living history” para compreender que está
muito mais relacionada com uma ideia de “viver a história”, ou “vivenciar a história”,
ou ainda “história vivida” ou a “história vivenciada”, quiçá um “vivencialismo
histórico”, apesar desse último neologismo não ser muito adequado, haja vista que o

90 “The sense of the past, even though avaiable to “re-do”, or even as available to return to, is key”.
88

termo “vivencialismo” costuma aparecer associado aos movimentos de


“sobrevivencialismo”. Talvez as traduções convencionais tenham acompanhado a
dos primeiros “open air museums” ou “livings museuns”, traduzidos como “Museus a
Céu Aberto” ou “Museu ao Ar Livre” e “Museus Vivos”. Contudo, apesar do “living
history” ter nascido exatamente dessa associação, rapidamente a prática se
desgarrou do contexto exclusivamente museológico. Não bastasse a dificuldade de
tradução do termo per se, os praticantes do “living history” são chamados “living
historians”, termo sem nenhuma tradução minimamente aceitável e/ou inteligível
para língua portuguesa. Ou seja, também aqui a preferência pelo estrangeirismo
talvez ajude a evitar maiores problemas.

O primeiro a estudar academicamente o “living history” foi o historiador norte


americano Jay Anderson, considerado o “pai” do “living history”. O seu livro Time
machines: The world of Living History (1984) foi o primeiro a investigar o movimento
que resumiu como uma “simulação da vida em outra época”91, situando-se,
geralmente, essa outra época no passado. Essencialmente é uma intrusão do
passado no presente e o seu valor depende do aprofundamento dos estudos e da
atenção dispensada às evidências históricas e arqueológicas.

Segundo Jay Anderson, os “living historians” buscam três objetivos


principais: primeiramente, interpretar como as pessoas viviam, em segundo lugar,
utilizar o “living history” como uma ferramenta de pesquisa para testar teorias e
explorar a cultura material e, por fim, criar personagens para sua própria realização,
baseado em pessoas do passado ou em uma mistura de pessoas históricas
(ANDERSON, 1984).

No entanto, esses objetivos indicam como o “living history” pode servir mais
aos “living historians” do que aos estudantes ou ao público em geral. Debra A. Reid,
no prefácio do livro The Living History Anthology (apud KATZ-HYMAN; JONES et
alii, 2019, n.p.), contesta e afirma:

Qualquer um pode buscar uma pesquisa imersiva para o seu bel-prazer e


testar teorias, mas o verdadeiro living history ocorre quando o aprendizado
se move para além do interesse pessoal, e da investigação profissional em
direção ao engajamento público. Os melhores ‘living historians’

91
“the simulation of life in another time”
89

transcendem os três objetivos e adicionam um quarto, envolver o aprendiz


no processo, para alcançar um padrão de excelência92.

Apesar de não ser obrigatória a presença de público espectador em


atividades de “living history”, para a historiadora, a sua melhor prática pode fortalecer
o apoio para a educação em história, pois pode aplicar metodologias educacionais
diferenciadas, interpretativas e de programação pública, para entregar interpretações
mais instigantes e engajadas para o público. Ou seja, a prática do “living history”
também pode servir como um método didático para a divulgação e aprendizagem da
História, da cultura, da memória de determinada época num dado contexto, com
recurso à expressão dramática, sem, no entanto, tratar-se de teatro, porque não se
definem falas ou encenações – “reenactment” – rigorosas.

Retornando a Jay Anderson, ele também afirma que, apesar de parecer


estranho, o que parece atrair o público do “living history” não são as grandes
experiências dramáticas, épicas e ameaçadoras, mas sim o cotidiano do passado, a
vida tradicional, a busca pelo mundo das pessoas comuns. Anderson afirma ainda
que no século XX os estudos da vida tradicional foram estimulados pela
compreensão dos trabalhos da Escola dos Annales, principalmente de Fernand
Braudel (1902–1985), Marc Bloch (1886–1944) e a história social francesa.
(ANDERSON, 1992, p.457). Desse modo, o surgimento dos primeiros museus
abertos ou museus vivos e a própria prática do “living history” estão associados ao
desenvolvimento das pesquisas sobre o cotidiano. Segundo Anderson, quando
esses primeiros museus abertos foram criados nos Estados Unidos e no Canadá,
enfatizavam de forma democrática “o mundo das pessoas comuns”93. Eles se
tornaram museus vivos da história do homem qualquer, construídos com a premissa
que a vida tradicional da região é historicamente significativa e a cultura material
deve ser coletada, preservada, estudada e, especialmente, interpretada (ibidem,
p.459).

A ação do “living history” consiste na reprodução de costumes e práticas


antigas. Procura-se recriar as vestimentas, o comportamento, os hábitos, a
92
“Anyone can pursue immersive research for their own enjoyment and to test theories, but true living
historyoccurs when the learning moves beyond personal interest and professional inquiry to public
engagement. The best living historians transcend these three goals and add a fourth, engagging the
learner in the processm, to reach the gold standard”.
93
“the world of ordinary pelople”
90

materialidade e o contexto social do período em questão, contudo, não existe


encenação, apenas vivência. Ademais, em alguns casos, o “living history” também
vem desenvolvendo um novo modus vivendi de imersão no passado, conseguindo
reproduzir experiências relativamente realistas.

Imagem 14: Atividade de “Living History” do grupo Historia Vivens 1300 no Bachritterburg em
Kanzach, Alemanha, no dia 27 de abril de 2019. Sem encenação, os participantes apenas [re]criam
diferentes ofícios e/ou tarefas utilizando as mesmas técnicas da Idade Média.
Fonte: Foto do acervo pessoal do autor

Tanto o “historical reenactment” quanto o “living history” estão diretamente


associados às pesquisas históricas e arqueológicas – algumas vezes amalgamados
à vertente da arqueologia experimental. São amparados também pelo
desenvolvimento dos estudos mais recentes de Iconografia Medieval e da designada
Antropologia da imagem ou Antropologia visual, para, por fim, propor uma retomada
do passado, buscando evitar anacronismos e mantendo deferência ao recorte
temporal escolhido.
91

Roberto Reis (2013, p.300) deixa clara a diferença entre o conceito


deteriorado da “recriação” em língua portuguesa e a aproximação mais cientificista
do “reenactment” e do “living history” ao afirmar:

Grupos de recriação histórica enquadrados no ‘reenactment’ ou no ‘living


history’, aqui já estamos a um nível de uma recriação mais científica, muitas
das vezes assessorada por arqueólogos e professores universitários,
integram os chamados ‘reennactors’, ou ‘recriadores’. Dedicam-se à
‘reconstrução histórica’, quer na forma de vestir, viver e reproduzir fielmente
a partir de vestígios arqueológicos ou de outro tipo de fontes.

A popularização generalizada tanto do “historical reenactment” quanto do


“living history” são a comprovação fenomênica do interesse do presente pelo
passado, conquanto essas práticas demandam muito estudo, investigação,
experimentação e a aprendizagem das antigas técnicas. Não obstante, apesar de
semelhantes em diversos aspectos, elas não são idênticas. A “reenactor”, “living
historian”, integrante do grupo musical Songleikr, fundadora e diretora do grupo
Trondheim Vikinglag e do projeto Hands on History, Ingrid Galadriel Aune Nilsen
(2005), tentou separar essas práticas, indicando algumas peculiaridades.

Segundo ela, o “historical reenactment” é uma atividade performática e


teatral, em que um evento específico é recriado em detalhes para recontar uma
história. A atividade sempre envolve participantes – ou “reenactors” – os quais
podem retratar um personagem específico do passado ou não, executando
atividades adequadas para reencenação. É exigido que os “reenactors”
permaneçam nos seus personagens e que atuem de acordo durante toda a
reencenação. A atividade sempre possui uma audiência – espectadores, afinal a
história está sendo reencenada para alguém. Sempre possui um período específico
e requer trajes e adereços/ornamentos apropriados, que devem ser baseados em
fontes históricas e achados arqueológicos. O “historical reenactment” é sempre
roteirizado – planejado –, ensaiado e dirigido, sendo os roteiros também baseados
em acontecimentos históricos. Possui uma espacialidade – recorte espacial – e uma
temporalidade – recorte temporal – bem definidos. Com uma clara definição do
período que começa e termina.
92

Normalmente os “reenactments” são realizados nos locais onde os eventos


históricos originalmente aconteceram ou uma localização similar à original. Como
qualquer história recontada, os “reenactments” são subjetivos e devem ser
considerados como uma interpretação dos fatos. Por isso, todo “reenactment” tem
de ser observado/analisado em relação ao contexto moderno. A chave para
autenticidade no “historical reenactment” está, primeiramente e acima de tudo, na
exatidão do roteiro e no desencadeamento das ações.

Quanto ao “living history”, Ingrid Galadriel Aune Nilsen (2015 p. 06) indica
também se tratar de uma atividade performática, mas de nenhum evento histórico
específico. Reitera a definição de Jay Anderson, de que seriam atividades ordinárias
do cotidiano executadas de forma detalhada. Sempre envolve participantes – ou
living historians –, mas esses não representam nenhum personagem histórico
específico. Não precisa de uma audiência ou espectadores, mas sempre possui um
período predeterminado e requer trajes e adereços/ornamentos apropriados. Assim
como no “reenactment”, todos os trajes também devem ser baseados nos registros
históricos e arqueológicos. As atividades não são roteirizadas, mas improvisadas,
produzidas por conhecimentos e habilidades incorporadas. Esses conhecimentos e
habilidades são embasados em experiências profissionais e pessoais, e,
principalmente, nas pesquisas acerca dos fatos históricos e na arqueologia.

O “living-history” é uma atividade em constante construção, definida no


tempo e no espaço por um quadro de acontecimentos/fatores externos, como, por
exemplo, chuva, vento, neve e outros fenômenos atmosféricos. A prática pode
acontecer em qualquer lugar, no entanto, atividades de “living history” que visam
estimular um sentido de viagem temporal por meio da imersão, devem ser realizadas
em ambientes adequados. Elementos modernos, regras e regulamentos restritivos
inibem a experiência, diminuindo o potencial de autenticidade, imersividade, didático
e até mesmo de pesquisa científica. Todas as atividades de “living history” também
são subjetivas e devem ser considerados como uma interpretação dos fatos. Por
isso, todo “living history” deve ser observado/analisado em relação ao contexto
moderno. A chave para a autenticidade da atividade está na exatidão e
verossimilhança dos materiais utilizados (NILSEN, 2015, p. 07-08).

Diante de tantas “tipologias” de rememorações da Idade Média na


contemporaneidade ou medievalismos e neomedievalismos, o desenvolvimento
93

dessa tese reúne seus esforços nas análises do “historical reenactment” e “living
history” associados às pesquisas históricas e arqueológicas, particularmente, à
vertente da arqueologia experimental na [re]criação e [re]construção arquitetônica do
passado medieval.

1.3. Problemáticas & Questões

A associação entre “historical reenactment”, “living history” e arqueologia


experimental na produção, ou melhor, na [re]crição ou [re]construção do passado a
partir do campo de estudos do medievalismo, evoca importantes questões,
principalmente, relativas aos modos de como a dita Idade Média está sendo
perscrutada no presente. Entre as muitas problemáticas evocadas, seis podem ser
elencadas como fundamentais para o desenvolvimento dessa pesquisa:

1. O que paradoxalmente motiva grupos sociais no alvorecer do século XXI –


em pleno incremento da terceira Revolução Tecnológica, também chamada de
Revolução Digital – a construírem obras arquitetônicas monumentais com métodos e
técnicas pré-industriais do medievo?

2. Qual a influência/fascínio que a Idade Média ainda exerce sobre a


contemporaneidade?

3. Qual a representação, ressignificação e a recepção da Idade Média no


século XXI?

4. O que motiva o interesse, ou ainda, mais do que isso, a demanda


contemporânea pela Idade Média?

5. Existem relações político-ideológicas entre o historical reenactment, living


history, e os movimentos nacionalistas, supremacistas e fundamentalistas?

6. Uma vez que a arquitetura pode ser entendida em sua ampla e


extremamente complexa definição como uma edificação que incorpora determinados
valores, ideologias e características de uma época histórica e os transmite pelos
séculos afora, que tipo de mensagem projetos como Guédelon, Mittelalterhaus
Nienover, Campus Galli - Karolingische Klosterstadt e Bachritterburg Kanzach,
veiculam sobre a contemporaneidade?

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