Ac. TC 72 2021 - Rel. Teles Pereira - Lenocínio
Ac. TC 72 2021 - Rel. Teles Pereira - Lenocínio
Ac. TC 72 2021 - Rel. Teles Pereira - Lenocínio
º 72/2021
I – A Causa
1. O Ex.mo Procurador-Geral Adjunto, representante do Ministério Público junto dest
(doravante referido como o recorrente), interpôs a fls. 2046/2047 o presente recur
Plenário, nos termos do artigo 79.º-D, n.º 1, da Lei do Tribunal Constitucional (LTC), na
da prolação pela 3.ª Secção do Acórdão n.º 134/2020 (fls. 2007/2041). Este aresto, c
divergindo de múltiplos pronunciamentos decisórios anteriores do Tribunal [designadam
Acórdãos n.os 641/2016, 421/2017, 694/2017, 90/2018 e 178/2018 (referimos aqui os
pelo recorrente no requerimento de interposição)] “[julgou] inconstitucional a norma in
constante do artigo 169.º, n.º 1, do Código Penal [lenocínio], por violação dos artigos 18.º, n.º 2, e 27
Constituição, conjugadamente […]”.
1.1. Admitido o recurso a fls. 2048, foi este motivado pelo recorrente a fls. 2
remetendo para o teor das contra-alegações que havia apresentado, neste mesmo process
que antecedeu a prolação do Acórdão n.º 134/2020 (tratou-se, nesse enquadramento proc
recurso interposto nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, decorrent
decisão de não acolhimento da questão de inconstitucionalidade suscitada pelo ora recorrid
O Ministério Público, nessas contra-alegações, recordando jurisprudência reite
proferida pelo Tribunal Constitucional nos últimos 16 anos, na sequência do Acórdão n.º
concluíra que “[a] norma do artigo 169.º, n.º 1, do Código Penal, na redação da Lei n.º 59/200
setembro, na qual se prevê e pune o crime de lenocínio, não viola o artigo 18.º, n.º 2, da Constituição, nã
isso, inconstitucional”.
O ora recorrido não respondeu à motivação do recurso do Ministério Público.
II – Fundamentação
2. Está em causa, nos presentes autos, a questão da inconstitucionalidade d
incriminatória do lenocínio contida no artigo 169.º, n.º 1, do Código Penal (“[q]uem, profi
ou com intenção lucrativa, fomentar, favorecer, ou facilitar o exercício por outra pessoa de prostituição é
inconstitucionalidade, por oposição a outras decisões do Tribunal Constitucional (Acó
694/2017, 90/2018, 178/2018, entre muitos outros, adiante referidos), nos quais a mesm
não foi julgada desconforme à Constituição.
A questão da inconstitucionalidade da referida norma penal (e, anteriormente,
correspondente do artigo 170.º, n.º 1, do mesmo Código, na numeração anterior à Lei n.º
de 4 de setembro; estando em causa, fundamentalmente, a descrição típica do lenocínio in
pela Lei n.º 65/98, de 2 de setembro) foi já apreciada pelo Tribunal Constitucional, num
particularmente expressivo de arestos, numa linha decisória iniciada com a prolação do A
144/2004 – posteriormente a este, v., designadamente, os Acórdãos n.os 196/2004,
170/2006, 396/2007, 522/2007, 591/2007, 141/2010, 559/2011, 605/2011, 654/2011,
149/2014, 641/2016, 421/2017, 694/2017, 90/2018, 178/2018, 160/2020 e 589/2020
todas essas decisões no sentido da não inconstitucionalidade e, recentemente, no Ac
134/2020 (trata-se da decisão aqui recorrida), no sentido da inconstitucionalidade.
Destina-se o presente recurso, precisamente, a superar a apontada divergência,
recorrente, pois, face aos termos do artigo 79.º-D, n.º 1, da LTC, parte legítima.
2.1. No Acórdão n.º 144/2004 – verdadeiramente a decisão matriz desta proble
jurisprudência constitucional (que podemos definir como a constitucionalidade da incrim
lenocínio, na descrição típica introduzida pela Lei n.º 65/98) –, o Tribunal decidiu n
inconstitucional a norma (ao tempo) constante do artigo 170.º, n.º 1, do Código Pena
profissionalmente ou com intenção lucrativa, fomentar, favorecer ou facilitar o exercício por outra pessoa de
ou a prática de atos sexuais de relevo é punido com pena de prisão de 6 meses a 5 anos” (a autonom
prática de atos sexuais de relevo, “caiu” do tipo do lenocínio com a reforma do Cód
corporizada na Lei n.º 59/2007, sendo intuitivo que a materialidade subjacente ao trecho
não deixava de estar contida no conceito de prostituição)].
Importa recordar, nos seus traços mais expressivos, os fundamentos dessa decisão d
de há 16 anos:
“[…]
– os bens jurídicos protegidos pela norma em crise são, em primeira linha, ‘sentimentalismos transpessoa
ordem moral e não bens pessoais como a liberdade e autodeterminação sexual;
– não sendo a prostituição em si punível, incriminar‑se a atividade comercial ou lucrativa que tem
prostituição ou ‘atos similares’ corresponde a privar os cidadãos de exercer uma atividade profissional por impos
morais.
A pergunta a que importa responder é, portanto, a de saber se fere alguma norma ou princípio co
incriminação das condutas que constituem a factualidade típica do artigo 170.º.
6. Não se terá, aqui, de responder à questão geral sobre se o Direito Penal pode, constitucionalmente
meramente morais, questão que não pode ser resolvida sem o esclarecimento prévio do que se entende por be
morais e que não pode deixar de tomar em consideração que há valores e bens tidos como morais e
inequivocamente, no campo do Direito. A relação entre o Direito e a Moral ou o Ethos tem sido objeto de um
muito importante, sendo uma das questões fundamentais da Filosofia do Direito. Com efeito, desde a tr
radicada em Stuart Mill (On liberty, 1859) ou mesmo do pensamento de Kant (Metaphysik der Sitten, 179
Direito se situa apenas no plano do dano ou do prejuízo dos interesses ou da violação dos deveres (externos)
outros até às conceções de uma total fusão entre o Direito e a Moral, em que se reconhece que o Direito tem legi
impor coletivamente valores morais (assim, por exemplo, no pensamento anglo‑saxónico, Patrick Dev
Enforcement of Morals, 1965, em nome da manutenção da identidade da sociedade), tem‑se mantido acesa
uma unidade mais vasta (assim, Arthur Kaufmann, Recht und Sittlichkeit, 1964, p. 9, e, de modo introdutó
J. Batista Machado, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, 1990, p. 59 e ss.).
Assim, tanto quem procure em valores morais a legitimação do Direito, como quem acentue a distinção
Direito, reconhecerá, inevitavelmente, que existem bens e valores que participam das duas ordens normativas
conceções diversas sobre o Direito, mas coincidindo neste último ponto, cf. Radbruch, Filosofia do Direito […
Teoria Pura do Direito […] – este último, apesar da separação radical entre Direito e Moral, não deixa de re
Direito pode tutelar valores morais, sem que, por isso, Direito e Moral se confundam; também Hart o
“Positivism and the Separation of Law and Morals”, Harvard Law Review, 1958; ver ainda, do mesmo auto
Direito […]]. Mesmo as posições mais favoráveis à autonomia do Direito não negam que possam existir v
tutelados também pelo Direito, segundo a lógica deste e, por força dos seus critérios (sobre toda a problemática da
a Moral e o Direito, veja‑se, por exemplo, Arthur Kaufmann, Rechtsphilosophie, 2ª ed., 1997, Ku
Rechtsphilosophie, 1994). Porém, questão prévia a tal problemática e decisiva no presente caso, é a de saber s
artigo 170.º, n.º 1, do Código Penal apenas protege valores que nada tenham a ver com direitos e ben
constitucionalmente, não suscetíveis de proteção pelo Direito, segundo a Constituição portuguesa.
Ora, a resposta a esta última questão é negativa, na medida em que subjacente à norma do artigo 17
inevitavelmente uma perspetiva fundamentada na História, na Cultura e nas análises sobre a Sociedade segu
situações de prostituição relativamente às quais existe um aproveitamento económico por terceiros são situações c
é o da exploração da pessoa prostituída (cf., sobre a prostituição, nas suas várias dimensões, mas caracteri
‘fenómeno social total’ e, depreende‑se, um fenómeno de exclusão, José Martins Bravo da Costa, ‘O crime
Harmonizar o Direito, compatibilizar a Constituição’, em Revista de Ciência Criminal, ano 12, n.º 3, 2002
do mesmo autor e Lurdes Barata Alves, Prostituição 2001 – O Masculino e o Feminino de Rua, 2001). T
não resulta de preconceitos morais, mas do reconhecimento de que uma Ordem Jurídica orientada por valore
assente na dignidade da pessoa humana não deve ser mobilizada para garantir, enquanto expressão de liber
situações e atividades cujo ‘princípio’ seja o de que uma pessoa, numa qualquer dimensão (seja a intelectual, seja
a sexual), possa ser utilizada como puro instrumento ou meio ao serviço de outrem. A isto nos impele, desde log
da Constituição, ao fundamentar o Estado Português na igual dignidade da pessoa humana. E é nesta linha
que Portugal ratificou a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mul
23/80, em D.R., I Série, de 26 de julho de 1980), bem como, em 1991 a Convenção para a Supressão
Pessoas e de Exploração da Prostituição de Outrem (D.R., I Série, de 10 de outubro de 1991).
É claro que a esta perspetiva preside uma certa ideia cultural e histórica da pessoa e uma certa ideia
sexualidade, bem como o reconhecimento do valor científico das análises empíricas que retratam o ‘mundo da p
note‑se que neste terreno tem sido longo o percurso que conduziu o pensamento sociológico desde a cara
prostituição como anormalidade ou doença – assim, C. Lombroso e G. Ferro, La femme criminelle et la prosti
no caso português, os estudos de Tovar de Lemos, A prostituição. Estudo anthropologico da prostituta portugu
sobre as conceções da ciência acerca da prostituição no início do século, cf. Maria Rita Lino Garnel, ‘A
prostituição’, em Themis, ano III, n.º 5, 2002, p. 295 e ss. – até ao reconhecimento de que as prostitutas s
exploração e produto de uma certa exclusão social). Mas tal horizonte de compreensão dos bens relevantes é sem
a ideias de autonomia e liberdade, valores da pessoa que estão diretamente em causa nas condutas que favorece
ou meramente se aproveitam da prostituição.
Não se concebe, assim, uma mera proteção de sentimentalismos ou de uma ordem moral convencional
mesmo dominante, que não esteja relacionada, intrinsecamente, com os valores da liberdade e da integridade mor
que se prostituem, valores esses protegidos pelo Direito enquanto aspetos de uma convivência social orientada p
proteção para com pessoas em estado de carência social. A intervenção do Direito Penal neste domínio tem,
significado diferente de uma mera tutela jurídica de uma perspetiva moral, sem correspondência necessária
essenciais do Direito e com as suas finalidades específicas num Estado de Direito. O significado que é a
legislador penal é, antes, o da proteção da liberdade e de uma ‘autonomia para a dignidade’ das pessoas que
Não está, consequentemente, em causa qualquer aspeto de liberdade de consciência que seja tutelado pelo artigo 4
Constituição, pois a liberdade de consciência não integra uma dimensão de liberdade de se aproveitar das carênc
de lucrar com a utilização da sexualidade alheia. Por outro lado, nesta perspetiva, é irrelevante que a prostitu
proibida. Na realidade, ainda que se entenda que a prostituição possa ser, num certo sentido, uma expre
disponibilidade da sexualidade individual, o certo é que o aproveitamento económico por terceiros não deixa de p
já uma interferência, que comporta riscos intoleráveis, dados os contextos sociais da prostituição, na autonomia
agente que se prostitui (colocando‑o em perigo), na medida em que corresponda à utilização de uma dimensão e
íntima do outro não para os fins dele próprio, mas para fins de terceiros. Aliás, existem outros casos, na O
portuguesa, em que o autor de uma conduta não é incriminado e são incriminados os terceiros compartic
autonomia de uma pessoa ou o seu consentimento em determinados atos não justifica, sem mais, o comporta
auxilie, instigue ou facilite esse comportamento. É que relativamente ao relacionamento com os outros há deve
que ultrapassam o mero não interferir com a sua autonomia, há deveres de respeito e de solidariedade qu
princípio da dignidade da pessoa humana.
7. Por outro lado, que uma certa “atividade profissional” que tenha por objeto a específica negação deste
seja proibida (neste caso, incriminada) não ofende, de modo algum, a Constituição. A liberdade de exercício d
de atividade económica tem obviamente, como limites e enquadramento, valores e direitos diretamente associados
autonomia e da dignidade de outro ser humano (artigos 471.º, n.º 1, e 61.º, n.º 1, da Constituição). P
particularmente condicionadas, como objeto de trabalho ou de empresa, atividades que possam afetar a vida
integridade moral dos cidadãos [artigo 59.º, n.º 1, alíneas b) e c), ou n.º 2, alínea c), da Constituição]. Não
todo em causa a violação do artigo 47.º, n.º 1, da Constituição. Nem também tem relevância impeditiva dest
aceitação de perspetivas como a que aflora no pronunciamento do Tribunal de Justiça das Comunidades (sente
novembro de 2001, Processo n.º [C-268/99]), segundo a qual a prostituição pode ser encarada como atividade
qualidade de trabalho autónomo (cf., em sentido crítico, aliás, Massimo Luciani, ‘Il lavoro autonomo de la p
Quaderni Costituzionali, anno XXII, n.º 2, Giugno 2002, p. 398 e ss.). Com efeito, aí apenas se cons
permissão de atividade das pessoas que se prostituem nos Estados membros da Comunidade impede uma
quanto à autorização de permanência num Estado da União Europeia, daí não decorrendo qualquer conseq
licitude das atividades de favorecimento à prostituição.
8. As considerações antecedentes não implicam, obviamente, que haja um dever constitucional de incrimina
previstas no artigo 170.º, n.º 1, do Código Penal. Corresponde, porém, a citada incriminação a uma opç
criminal (note‑se que tal opção, quanto às suas fronteiras, é passível de discussão no plano de opções de políti
veja‑se Anabela Rodrigues, Comentário Conimbricense, I, 1999, p. 518 e ss.), justificada, sobretudo, pela norm
entre as condutas que são designadas como lenocínio e a exploração da necessidade económica e social, das p
dedicam à prostituição, fazendo desta um modo de subsistência. O facto de a disposição legal não exigir, expres
elemento do tipo uma concreta relação de exploração não significa que a prevenção desta não seja a motivação fu
incriminação a partir do qual o aproveitamento económico da prostituição de quem fomente, favoreça ou fac
exprima, tipicamente, um modo social de exploração de uma situação de carência e desproteção social.
Tal opção tem o sentido de evitar já o risco de tais situações de exploração, risco considerado elevado e nã
justificada pela prevenção dessas situações, concluindo‑se pelos estudos empíricos que tal risco é elevado e existe,
no nosso país, na medida em que as situações de prostituição estão associadas a carências sociais elevadas (sob
sociológica da prostituição cf., por exemplo, Almiro Simões Rodrigues, ‘Prostituição: – Que conceito? – Que r
Infância e Juventude, […] n.º 2, 1984, p. 7 e ss., e José Martins Barra da Costa e Lurdes Barata Alves
2001..., ob.cit., supra) não é tal opção inadequada ou desproporcional ao fim de proteger bens jurídicos pessoai
com a autonomia e a liberdade. Ancora‑se esta solução legal num ponto de vista que tem ainda amparo num
ofensividade, à luz de um entendimento compatível com o Estado de Direito democrático, nos termos do qual
uma opção de política criminal baseada numa certa perceção do dano ou do perigo de certo dano associada
deveres para com outrem – deveres de não aproveitamento e exploração económica de pessoas em estado de carên
com interesse para a questão da construção do conceito de dano nesta área e independentemente da posição sobre
aí defendida, matéria que não tem relevância no contexto do presente acórdão, Catherine Mackinnen, Por
Morality in and Politics, em Toward a Feminist Theory of State, 1989, que defende a incriminação da pornog
da sua ofensividade contra a imagem da mulher e a construção da respetiva identidade como pessoa. Também s
de construção do dano, cf. Sandra E. Marshall, ‘Feminism, Pornography and the Civil Law’, em Recht und
Heike Jung e outros), 1991, p. 383 e ss., defendendo a autora que, na pornografia, o dano consistiria n
humanidade da mulher, sendo relevante para o tema do presente Acórdão a perspetiva de que ‘a perda da aut
um assunto meramente subjetivo ... a autonomia é negada mesmo que não se reconheça. Aqui pode ser traçad
com a escravatura ... A própria condição da escravatura requer que o escravo não se veja a si próprio como algu
ou a quem falta autonomia ... Isto pode ser formulado dizendo que uma tal pessoa não se pode ver
completamente. Como item da propriedade não possui um em si mesma’]. O entendimento subjacente à lei pen
suma, na proteção por meios penais contra a necessidade de utilizar a sexualidade como modo de subsistê
diretamente fundada no princípio da dignidade da pessoa humana. Questão diversa que não está suscitada
autos é a que se relaciona com a possibilidade processual de contraprova do perigo que serve de fundamento à inc
casos como o presente ou ainda, naturalmente, com a prova associada à aplicação dos critérios de censura de culp
da atenuação ou eventual exclusão de culpabilidade, em face das circunstâncias concretas do caso.
9. Em face do exposto, não se pode considerar que estejam violados pela norma em crise quaisquer normas
constitucionais.
2.1.1. Em texto doutrinário posterior à prolação desta decisão (que ocorreu em 10/0
sua relatora, Conselheira Maria Fernanda Palma, em expressa alusão ao Acórdão n.º 14
adiantando um debate que, quanto a este, ganharia expressão na jurisprudência do Tribun
de um voto divergente constante do Acórdão n.º 396/2007, cfr. item 2.2.1., infra) –,
seguinte:
“[…]
A discussão sobre se a defesa de uma certa moralidade pode, em nome da coesão social inspirada n
dominante, justificar a intervenção do Direito Penal ou, pelo contrário, não a pode justificar em função
ideológico e da liberdade de opção tem de ser travada, porém, tomando em conta a repercussão de certas conduta
moralidade dominante na interação social e o próprio conceito de bem jurídico. Na análise desta questão devem
para além das perspetivas ideológicas que tradicionalmente contrapõem os pontos de vista mais liberais aos
todas as perspetivas científicas acerca do condicionamento da autonomia de pessoas sem maturidade física e emo
[, designadamente,] da imposição de estereótipos. Se radicalizássemos o ponto de vista liberal, teríamos de
Direito Penal pudesse intervir em toda a área da sexualidade entre adultos e, provavelmente, excluiríamos qua
penal de pessoas que são submetidas a enormes condicionamentos na sua autonomia sexual, apesar de pe
consentimento formal, como sucede, por exemplo, no crime de lenocínio entre adultos.
[…]” (Maria Fernanda Palma, Direito Constitucional Penal, Coimbra, 2006, pp. 77/78).
E, em nota de rodapé a este trecho (nota 69, pp. 77/78), aludindo à obra de John Stua
Liberty, “como paradigma do pensamento liberal”, acrescentava a Autora a seguinte observação:
“[…]
Stuart Mill infere da liberdade individual a liberdade de procurar e de dar conselho, mas não já a licitu
de quem, profissionalmente ou com finalidade lucrativa, contribua para condutas autolesivas (abrindo casas de jo
drogas ou explorando a prostituição…). Neste ponto, Stuart Mill concebe argumentos a favor de posições oposta
consumo de drogas e a prostituição são lícitos, parece não ter sentido, em certa perspetiva, passarem a ser ilícito
da dedicação profissional ou da atividade lucrativa (é esta, afinal, a tese derrotada, a propósito do lenocínio, n
Tribunal Constitucional n.º 144/2004); no entanto, o facto de o Estado permitir condutas autolesivas em
princípio da liberdade individual não significa que deixe de ter opinião sobre elas e que deva estimulá-las – d
casas de jogo, permitindo o tráfico de drogas ou admitindo o lenocínio. No fundo, é esta diferenciação, reconheci
Mill, que explica, por exemplo, a descriminalização do consumo (Lei 30/2000, de 29 de novembro), em co
severa punição do tráfico de droga (Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro) na Ordem Jurídica portuguesa.
2.2. Como antes dissemos, diversos acórdãos, no seguimento do Acórdão n.º 144
pronunciaram sobre idêntica questão, nem sempre por unanimidade. Assim, se o juíz
inconstitucionalidade foi (tal como no Acórdão n.º 144/2004) unânime nos acórdãos n.os
303/2004, 170/2006, 591/2007, 141/2010, 559/2011, 605/2011, 203/2012, 149/2014,
160/2020 e 589/2020, o mesmo já foi maioritário nos acórdãos n.os 396/2007,
654/2011, 641/2016, 421/2017, 694/2017 e 90/2018 e, como vimos, no Acórdão ora
afirmou-se, por maioria, o juízo inverso: o de desconformidade à Constituição.
Importa, pois, indicar as razões das divergências que foram emergindo nas decisões do
l b d ld d d d d
(com declaração de voto retomada, por remissão, no Acórdão n.º 522/2007); no Ac
654/2011; no Acórdão n.º 641/2016 (com declarações de voto retomadas, por rem
Acórdãos n.os 421/2017, 694/2017 e 90/2018); e, por fim, no Acórdão n.º 134/2020, qu
objeto do presente recurso.
2.2.1. No Acórdão n.º 396/2007, divergiu a Senhora Conselheira Maria João Antunes,
posição da maioria a seguinte declaração de voto (que retomou no Acórdão n.º 522/2007)
“[…]
Votei vencida por entender que o artigo 170.º, n.º 1, do Código Penal, na redação dada pela Lei n.º 65
setembro, é inconstitucional, por violação do artigo 18.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa.
A Lei n.º 65/98 alterou a estrutura típica do crime de lenocínio, previsto no artigo 170.º do Código Pena
a exigência típica da ‘exploração duma situação de abandono ou necessidade’, ao arrepio de uma evolução
matéria de crimes sexuais, que se inscreve num paradigma de intervenção mínima do direito penal, o ramo
afeta, mais diretamente, o direito à liberdade (artigo 27.º, nºs 1 e 2, da CRP). Num paradigma em que a
apenas a necessária para a tutela de bens jurídicos (não da moral), que não obtêm proteção suficiente e adequa
outros meios de política social.
Com eliminação daquela exigência típica, o legislador incrimina comportamentos para além dos que of
jurídico da liberdade sexual, relativamente aos quais não pode ser afirmada a necessidade de restrição do direit
enquanto direito necessariamente implicado na punição (artigos 18.º, n.º 2, e 27.º, n.ºs 1 e 2, da CRP).
Como se escreveu no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 211/95 […] ‘o que justifica a inclu
situações no direito penal é a subordinação a uma lógica de estrita necessidade das restrições de direitos e
decorrem da aplicação de penas públicas (artigo 18.º, n.º 2, da Constituição). E é também ainda a censurabilid
de certas condutas, isto é, prévia à normativação jurídica, que as torna aptas a um juízo de censura pessoal.
Em suma, é, desde logo, a exigência de dignidade punitiva prévia das condutas, enquanto expressão de
gravidade ética e merecimento de culpa (artigo 1.º da Constituição, do qual decorre a proteção da essencial
pessoa humana), que se exprime no princípio constitucional da necessidade das penas (e não só da subsidiaried
penal e da máxima restrição das penas que pressupõem apenas, em sentido estrito, a ineficácia de outro meio
ainda, no sentido de o artigo 18.º, n.º 2, ser critério para aferir da legitimidade constitucional das incriminações
n.ºs 634/93, 650/93, […], e 958/96, […]).
“[…]
1. Por confronto com a versão original do Código Penal de 1982, a incriminação do lenocínio, no que
questão de constitucionalidade em juízo, resultou ampliada pela alteração introduzida com a Lei n.º 65/
setembro. Na referida versão de 1982, constava (artigo 215.º, n.º 1, alínea b)), como elemento do tipo, a exp
agente, de uma ‘situação de abandono ou de extrema necessidade económica’ das pessoas dedicadas ao
prostituição. A reforma de 1995 (Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de março) já alargou um pouco essa previsã
em que se contentou com a exploração de ‘situações de abandono ou de necessidade económica’ (artigo 170
legislador de 1998 abandonou, pela Lei n.º 65/98, de 2 de setembro, qualquer exigência quanto ao aproveita
situação de vulnerabilidade daquelas pessoas, suprimindo, pura e simplesmente, o segmento que a exprimia.
2. Como é orientação constante deste Tribunal – cfr., entre muitos outros, os Acórdãos n.ºs 426/
650/93 e 311/95 – a incriminação de certas condutas, na medida em que implica uma restrição dos direitos
à liberdade e/ou de propriedade, tem que ser justificada perante o princípio da proporcionalidade expresso na
Por força da sua repercussão negativa no âmbito de proteção destes direitos, a imposição de uma pena fica i
sujeita à ‘restrição das restrições’ enunciada no artigo 18.º, n.º 2, da CRP, devendo «limitar-se ao ne
salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos».
Este princípio postula, não apenas uma intervenção mínima ou de ultima ratio do direito penal, só atuant
a sua adequação, na falta ou ineficácia de instrumentos de proteção de outro tipo – cfr., por último, o Acórdão
−, mas, antes do mais, a suficiente dignidade do bem jurídico tutelado, capaz de justificar o merecimento de pu
de afetação.
De forma que, neste contexto valorativo, o primeiro passo a dar, para aferir da legitimidade con
incriminação do lenocínio, é o da identificação precisa de bem jurídico-penal que ela visa tutelar.
3. O tratamento jurídico-penal dos crimes na esfera sexual evoluiu fortemente nas últimas décadas, co
alterações significativas nos padrões de conduta e nas conceções ético-sociais, neste domínio.
Pode dizer-se que o elemento polarizador dessa evolução foi o franco acolhimento, também neste cam
valorativa da autonomia individual e do livre desenvolvimento da personalidade, em medida sem paralelo no p
mudança – porventura uma verdadeira ‘mudança de paradigma’ – traduziu-se, por um lado, num recuo na c
de condutas livremente assumidas por pessoas com maturidade e autonomia decisórias, e, por outro, num al
incriminações, em resultado de uma consciência mais afinada dos deveres de respeito pela integridade
autodeterminação dos outros.
Em face desta localização, dir-se-ia que é este o bem jurídico protegido pelo artigo 170.º, n.º 1, do C
conclusão revela-se algo apressada, pois não tem qualquer respaldo na estrutura tipológica da norma incriminad
com a eliminação, na revisão de 1998, do segmento que estabelecia, como elemento do tipo, a exploração da v
situacional, em razão de abandono ou necessidade económica, da pessoa que se prostitui, desapareceu qualquer c
proteção da vontade livre dessa pessoa. Essa conexão consta apenas do n.º 2 (de modo diversificado, consoante
como elemento de uma forma qualificada de crime de lenocínio, sujeita a uma moldura penal agravada.
E, nisso, a norma do n.º 1 do artigo 170.º contrasta fortemente com todas as outras disposições de tutela
sexual. Em todas elas está presente, como elemento definidor do tipo legal de crime, o exercício de violência, co
menos constrangimento sobre a vontade da vítima, ou então, no caso da fraude sexual, de indução em erro
obstativa de genuína expressão volitiva, por parte de quem é enganado.
Atendendo à configuração tipológica, ganha fundamento a ideia de que criminalizada é a atividade profis
fins lucrativos de proxenetismo, em si mesma, em quaisquer circunstâncias, sem se exigir um encaminham
prostituição imputável ao aproveitamento de condições situacionais tipicamente geradoras de défices de autonomia
A valoração, pela doutrina, deste novo dado legislativo foi, de uma forma geral, fortemente crítica – cf
Figueiredo Dias, ‘O ‘direito penal do bem jurídico’ como princípio constitucional…’, XXV anos de j
constitucional portuguesa, Coimbra, 2009, 31 s,, 39, para quem, «tendo o legislador ordinário eliminado a ex
o favorecimento da prostituição se ligasse à ‘exploração de situações de abandono ou de necessidade económica
referência do comportamento ao bem jurídico da liberdade e da autodeterminação sexual e tornou-se infiel a
direito penal do bem jurídico», «surgindo a incriminação − pode ler-se em Direito penal. Parte geral, I, 2.ª
2007. p. 124 − referida à tutela de puras situações tidas pelo legislador como imorais»; Anabela Rodrigues,
art. 170.º’, Comentário conimbricense do Código Penal. Parte especial, I, Coimbra, 1999, p. 519, p
incriminação do lenocínio visa «proteger bens jurídicos transpersonalistas de étimo moralista por via do direito p
4. Na jurisprudência constitucional, tem vingado uma posição eclética, que procura conjugar, com
incriminação, o interesse geral da sociedade e a tutela de um bem pessoal.
[…]
Para justificar que faz parte da teleologia da norma a tutela da ‘autonomia para a dignidade’, [o A
144/2004] invoca a ‘normal associação entre as condutas que são designadas como lenocínio e a exploração d
económica e social das pessoas que se dedicam à prostituição’. A carência de tutela penal estaria, de certo modo,
‘necessidade de utilizar a sexualidade como modo de subsistência’, necessidade que, segundo padrões de ti
normalidade social, é explorada por aqueles que fomentam, favorecem ou facilitam o exercício da prostituição. D
se que «o facto de a disposição legal não exigir, expressamente, como elemento do tipo uma concreta relação de ex
significa que a prevenção desta não seja a motivação fundamental da incriminação a partir da qual o ap
económico da prostituição de quem fomente, favoreça ou facilite a mesma exprima, tipicamente, um modo social
de uma situação de carência e desproteção social».
Mas, sem contestar esses índices de normalidade, a verdade é que, não sendo a prostituição um fenómeno
uniforme, com a eliminação daquela exigência o legislador não evita consequências de sobreinclusão, do pont
necessidade de tutela da liberdade sexual da pessoa que se prostitui. Não excluindo do âmbito da incriminaçã
que não se comprove o aproveitamento de uma especial situação de fragilidade, quanto às condições de uma re
decisória, de alguém que possa ser considerado ‘vítima’ dessa conduta, ‘o legislador incrimina comportamentos p
que ofendem o bem jurídico da liberdade sexual’, como se sustenta na declaração de voto da Conselheira
Antunes, anexa ao Acórdão n.º 396/2007.
Compreende-se cabalmente que, estando em causa a disponibilização, mediante uma contrapartida mone
dimensão íntima da personalidade, para satisfação sexual de outro e com obtenção de ganhos (também) por
legislador penal seja aqui particularmente exigente quanto às garantias de uma decisão livre, não requerendo,
n.º 1 do artigo 170.º, as formas qualificadas de perturbação da autonomia presentes nos outros tipos de cr
Ainda se compreenderá que o aproveitamento objetivo de situações de desamparo seja o bastante, sem exigên
individualizadas de ‘pressão’ sobre a vontade da vítima (contra, Anabela Rodrigues, ob. cit., p. 519-520). M
explicar, à luz da necessidade de tutela da liberdade sexual, porque é que é dispensável a comprovação de qu
ainda que apenas situativamente indiciada, desse bem jurídico.
Essa constatação torna ineliminável, de acordo com o princípio da necessidade da intervenção penal, a
outro bem jurídico-penal, para justificar a incriminação.
O Acórdão n.º 144/2004 […] faz apelo direto à dignidade da pessoa humana, para val
constitucionalmente (e não como ‘mera proteção de sentimentalismos ou de uma ordem moral convencional’) a in
lenocínio.
A dignidade da pessoa humana é a mais basilar ideia regulativa de toda a ordem jurídica. No plano con
lhe reconhecida a natureza de um dos dois fundamentos do Estado português (artigo 1.º da CRP). Nessa qua
primária da disciplina da atuação dos poderes públicos para com as pessoas, nela radicando, não só como limite,
como tarefa, valorações constitutivas de princípios constitucionais, de direitos fundamentais de defesa, bem como
a prestações, no quadro dos direitos económicos, sociais e culturais.
Mas não se exclui que, em veste integrativa, dela possa resultar o reconhecimento de direitos não e
previstos. Assim aconteceu com o direito a um mínimo de existência, na sua vertente positiva de direito a prest
garantidoras da sobrevivência, em situações de necessidade, o qual, pelo Acórdão n.º 509/2002, foi imediatam
na dignidade da pessoa humana.
Em todas estas projeções, a dignidade da pessoa humana tem um alcance prescritivo que leva ao reco
posições jurídico-subjetivas constitucionalmente tuteladas. E ainda que não constituindo um sistema fechado,
diversificado catálogo de direitos fundamentais é possível inferir uma unidade de sentido, como consagração de
articulado de valores constitucionais atinentes à pessoa humana. Daí que a excecional fundamentação direta
certa solução tuteladora de uma pretensão subjetiva em exigências postuladas pela dignidade da pessoa human
pela mediação concretizadora de uma regra de proteção de um concreto bem jurídico, se possa ainda mover estrit
do universo axiológico-normativo da Constituição.
É em direção de certo modo oposta a esta que a ideia foi mobilizada pelo Acórdão n.º 144/200
fundamento de um direito contra o Estado, mas como fundamento do exercício do poder punitivo do Estado, e
de direitos fundamentais. O que logo suscita a questão de saber se da dignidade da pessoa humana são infer
particulares, imposições de conduta penalmente sancionáveis, mesmo quando o incumprimento não ofende
específico. O que, noutras palavras, se interroga é se tem acolhimento constitucional um padrão objetivo de d
conexionado com a liberdade e a integridade da personalidade de outrem, em termos tais que leve a conf
legitimante da incriminação de uma conduta lesiva, no relacionamento interpessoal.
Esta última nota é indispensável para uma definição rigorosa daquilo que está em questão. Na verdade
apenas de negar garantia jurídica à atividade de lenocínio, o que a coloca fora do âmbito de proteção con
liberdade de profissão e da liberdade de iniciativa económica privada. Para além da ineficácia vinculativa de co
âmbito, por essa via facilmente se justificam, prima facie (sem necessidade de ponderações, em concreto), medidas
liberdade de ação, como, por exemplo, certas medidas de polícia ou a proibição de publicidade.
Para justificar soluções deste tipo, basta considerar (corretamente) que a atividade de proxenetismo não é a
âmbito de proteção de nenhuma das normas constitucionais garantidoras da liberdade de ação. Mas, mais do qu
aqui se trata é de saber se ela preenche o conceito material de crime, com as restrições daí decorrentes
fundamentais do agente. Não se questiona se essa atividade merece ou não proteção constitucional; o que se que
é causa legítima de afetação, através da ação punitiva do Estado, de bens protegidos.
Por isso mesmo, não se revela conclusiva a ideia, em si mesma de justeza inatacável, de que ‘a autonomia d
ou o seu consentimento em determinados atos não justifica, sem mais, o comportamento do que auxilie, instigue
comportamento’ (Acórdão n.º 144/2004). É bem verdade que a tolerância perante o próprio que desenvolve
vista pelo Estado e pela sociedade como um mal, em função do respeito pela liberdade individual, não tem n
que se estender ao terceiro que promove essa conduta, retirando daí ganhos pecuniários. ‘Tal como, em geral,
afetam outros’, essa intervenção de um terceiro deve estar sujeita a ‘controlo social’ (Stuart Mill, On Liberty,
Indianapolis/Cambridge, p. 97). Mas este entendimento deixa intocada a questão posta, no ponto decisivo
constitucionalmente legítimo que esse controlo se exerça (também) por meios penais.
No caso, já argumentativamente apontado (Maria Fernanda Palma, Direito constitucional penal, Coim
78, n. 69), da ‘severa punição do tráfico de droga’, por contraste com a descriminalização do consumo, a legitim
punição é incontroversa, justamente porque é certo que o tráfico possibilita e potencia a afetação de bens
consumidores, com proteção constitucional.
[…]
Ora, não parece sustentável que a ideia geral e abstrata de dignidade da pessoa, desvinculada de qualq
garantística da autodeterminação de quem se prostitui, conserve ainda um conteúdo constitucionalmente determ
de validar a restrição a direitos fundamentais que a criminalização representa.
Como vimos, a densificação e concretização jurídico-positiva dessa ideia, na ordem constitucional, são le
pela consagração de direitos de defesa e de direitos sociais, cobrindo a dupla dimensão negativa e positiva da
pessoa. Por esse todo normativo é possível dar substância à posição constitucional de igual reconhecimento e r
cada pessoa, individualmente considerada, como ser único e diferenciado, goza.
Mas falham de todo indicações normativas precisas, no plano constitucional, para fazer decorrer da dignid
humana obrigações negativas de conduta, criminalmente sancionáveis, não impostas pela tutela de bens pess
pessoa.
[…]
Deste modo, a paradoxal objetivação, no plano das relações intersubjetivas, do atributo pessoal da dignida
de deveres não correlacionados com o necessário respeito pela concreta autoconformação da personalidade do out
a partir de dados da própria Constituição, mas de uma ideia prévia e exógena a ela, com base na moral comum
Não se afigura, assim, que a intervenção do direito penal, neste domínio, vise ‘salvaguardar outros direito
constitucionalmente protegidos’, como exige o n.º 2 do artigo 18.º da CRP. Ela decorre, antes, da tutela dos ‘b
conceito que, embora radique noutros complexos normativos e não se mostre concretizável por inferências
Constituição portuguesa – que, aliás, ao invés de outras leis fundamentais, não lhe faz qualquer referência −
padrão constitucional, como fator de legitimação de uma incriminação e, logo, de restrições a direitos fundamen
d i
[…]
Está fora de qualquer dúvida de que a proteção da liberdade sexual das pessoas está entre os fundam
‘ético-sociais’, como também jurídico-constitucionais, da ‘vida em sociedade’ (para utilizarmos a epígrafe da ver
Código Penal de 1982). O que se contesta é que uma certa conceção de ordem moral (ainda que generalizadam
meio social) constitua, em si mesma, uma dimensão da garantia constitucional da dignidade da pessoa humana,
sua aplicação autónoma no âmbito criminal, sem conexão com a tutela de um bem constitucionalmente definido
Há que concluir que a caracterização legal do crime de lenocínio, ao dispensar, após a revisão de 1998,
estrutural do tipo, o aproveitamento pelo agente de uma situação de abandono social ou de carência económi
ultrapassa, com ofensa ao princípio da proporcionalidade, o que seria justificado pela função tutelar de um
jurídico-penal.
“[…]
Votei vencido por entender que a norma do n.º 1 do artigo 169.º do Código Penal, na redação dada
65/98, de 2 de setembro, é inconstitucional, por violação do artigo 18.º, n.º 2, da Constituição da República P
A Reforma de 1998 – Lei n.º 65/98 –, ao suprimir do elemento do tipo legal de lenocínio a «exploraçã
de abandono ou de necessidade económica» tornou indefinido o bem jurídico por ele tutelado: a liberdade sexual
se prostitui?; a moral sexual?; uma determinada conceção de vida?; a paz social?
A questão da identificação do bem jurídico que a norma visa proteger suscitou na doutrina e na j
divergências interpretativas que não deixarão de persistir enquanto não houver uma reformulação do prece
supressão daquela exigência típica também eliminou a ligação do comportamento ao bem jurídico da li
autodeterminação sexual, com a consequente incriminação de comportamentos que vão além dos que ofendem ess
e relativamente aos quais não se pode afirmar a necessidade de restrição do direito à liberdade (cfr. votos d
Acórdãos n.º 396/2007 e 654/2011, cuja fundamentação acompanho).
De modo que só fazendo uma interpretação restritiva da norma, no sentido de se aplicar apenas aos ca
vítima se encontra numa situação de necessidade económica e social, é possível afirmar que o tipo legal vida p
jurídico da liberdade sexual. Simplesmente, não pode considerar-se que a letra da lei é mais ampla que o seu esp
foi o próprio legislador que quis eliminar do texto da lei aquela exigência. Se o fez para proteção de outros bens
o deveria deixar inserido no capítulo dos crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual.
E não é no valor da dignidade da pessoa humana que se pode encontrar o bem jurídico-constitucional dign
penal. Como refere Figueiredo Dias, não é «essa a natureza do princípio, como não é essa a função de que surg
matéria penal; antes sim a de se erguer como veto inultrapassável a qualquer atividade do Estado que não r
dignidade essencial e, deste modo, antes que como fundamento, como limite de toda a intervenção estadual» (O
do bem jurídico como princípio jurídico-constitucional implícito’, in, Revista de Legislação e de Jurisprudência, A
260).
Portanto, admitindo que a conduta de quem, profissionalmente, ou com intenção lucrativa, fomenta, favor
o exercício de prostituição por pessoa que se encontra numa situação de necessidade económica e social neces
penal, com entendo, então só a introdução desse último elemento no tipo legal colocará o preceito em conform
Constituição.
“[…]
Votei vencido por estar convencido de que a norma de incriminação e punição do lenocínio constante do n
169.º do Código Penal é contrária à Constituição, por violação do disposto no n.º 2 do artigo 18.º da C
República. E é assim porquanto a incriminação da conduta típica não está preordenada à salvaguarda – menos
tanto necessária – de quaisquer ‘direitos ou interesses constitucionalmente protegidos’. Ou dito em linguagem
penal, não é necessária à proteção de qualquer bem jurídico. Bem jurídico que não se descortina na pertinente
típica. Noutra perspetiva, estamos perante uma manifestação concreta dos chamados ‘crimes sem vítima
criminológico do termo, na linha da E. Shur (victimless crimes ou crimes without victims. Cf. Edwin Schur, Cr
Victims: Deviant Behavior and Public Policy, Prentice Hall inc.1965).
É seguramente assim a partir da reforma de 1998. Que inter alia eliminou o inciso –‘exploração d
abandono ou de necessidade económica’ – constante da versão originária (de 1982/1995). E deste
deliberadamente mão do momento da factualidade típica que associava a infração à ofensa à liberdade sexual e
de si uma incriminação exclusivamente votada à punição de ‘quem, profissionalmente ou com intenção lucrat
favorecer ou facilitar’ uma prática em si mesma irrelevante e indiferente para o direito penal – a prostituiç
afastamento da liberdade sexual da área de proteção da norma deixa apenas em campo a prevenção ou repress
um exercício de moralismo atávico, com que o direito penal do Estado de Direito da sociedade secularizada e de
nossos dias nada pode ter a ver.
Uma consideração das coisas contra a qual não pode pertinentemente invocar-se a ideia de obviar a pe
dignidade ou a autonomia das pessoas – homens ou mulheres – envolvidas na prostituição. Na certeza de que a
é que pode, ela própria, configurar um atentado perverso à dignidade ou autonomia das pessoas. Que s
esclarecidas e livres – no fundo a situação típica pressuposta pela incriminação – devem poder legitimamente esco
a sua vida tanto à sombra da ‘virtude’ como do ‘pecado’. Uma escolha insindicável, que devem poder lev
inteiramente resguardados contra a intromissão do direito penal. De outro modo e acolhendo-nos à síntese de Fig
‘teríamos uma situação absolutamente anormal e incompreensível: a de o direito penal, pretendendo tutelar o be
eminente dignidade (sexual) da pessoa, sacrificá-lo ou violá-lo justamente em nome daquela dignidade. Poi
pertence à liberdade da vontade da pessoa dedicar-se ou não ao exercício da prostituição. O que colocaria o Es
do jus puniendi) na mais contraditória e perversa das situações: a de sacrificar a integridade pessoal in
legitimação o propósito de a tutelar!’ (Figueiredo Dias, ‘O ‘direito penal do bem jurídico’ como princ
constitucional implícito’, RLJ, ano 145.º, maio-junho de 2016, p. 261). Nesta linha não podemos a
entendimento que a este propósito vem sendo sistematicamente sufragado pelo TC. Que tem procurado apoiar
material da incriminação na sua relação ‘com os valores da liberdade e da integridade moral das pessoas que s
como se sustenta, entre outros, no Acórdão n.º 144/2004 (no mesmo sentido, Acórdãos n.ºs 170/2006
141/2010, 559/2011, 203/2012, 149/2014). Explicitando que a ‘intervenção do Direito Penal neste
portanto, um significado diferente de uma mera tutela jurídica de uma perspetiva moral, sem correspondência n
valores essenciais do Direito e com as suas finalidades específicas num Estado de Direito. O significado que é
legislador penal é, antes, o da proteção da liberdade e de uma ‘autonomia para a dignidade’ das pessoas que s
Uma consideração das coisas que é posta em crise quando confrontada com o recorte típico da incriminação.
factos mesmo nas constelações fácticas em que as pessoas que se prostituem, sendo maiores, o fazem com toda
autonomia. O que obriga o TC a acolher-se a uma insustentável razão de paternalismo. Argumentando que
entenda que a prostituição possa ser, num certo sentido, uma expressão de livre disponibilidade da sexualidade
certo é que o aproveitamento económico por terceiros não deixa de poder exprimir já uma interferência que co
intoleráveis, dados os contextos sociais da prostituição, na autonomia e liberdade do agente que se prostitui (c
perigo), na medida em que corresponda à utilização de uma dimensão especificamente íntima do outro não p
próprio, mas para fins de terceiro” (id. ibid). Para além desta (suposta) tutela da autonomia e da liberdad
(efetivo) sacrifício da autonomia e da liberdade –, sobra ainda a ideia de prevenção do risco de exploração. Assi
termos do mesmo acórdão: ‘o facto de a exploração legal não exigir, expressamente, como elemento do tipo
relação de exploração não significa que a prevenção desta não seja a motivação fundamental da incriminação a p
o aproveitamento económico da prostituição de quem fomente, favoreça ou facilite a mesma exprima, tipicame
social de exploração de uma situação de carência e desproteção social’ (ibid). Em vez de uma incriminação p
tutela da autonomia e da liberdade sexual, teríamos então uma infração, concebida como crime de perigo abstra
custa do sacrifício da liberdade e da autonomia sexual. Afinal de contas, à custa do sacrifício do único bem jur
do qual o legislador pode incriminar comportamentos humanos relacionados com a vida sexual das pessoas.
É por isso que não posso acompanhar o entendimento de que a norma constante do artigo 169.º do Có
versão vigente satisfaz as exigências de que a Constituição da República faz depender a legitimação
criminalização.
“[…]
6. Num Estado de direito democrático, o legislador ordinário dispõe inerentemente de uma grande libe
definição das normas jurídicas que disciplinam a vida social. Em razão da legitimidade que para esse efeito l
pela comunidade, é inequivocamente a si que compete definir, entre tantas outras matérias, as condutas cuja prát
sanção penal e o exato recorte dessas condutas. No entanto, esta intervenção criminalizante está sujeita a cer
constitucionais, encontrando no princípio do direito penal do bem jurídico (à semelhança do que, embora com
verifica em vários outros ordenamentos jurídicos) um primeiro e fundamental constrangimento. Manifestação
imperativo de proporcionalidade a que transversalmente se subordina a restrição de direitos fundamentais,
perfila-se como uma barreira ao excesso – seja ele arbitrário ou apenas inadvertido – na restrição do direito à
via penal, proibindo toda a criminalização que não possa ser justificada em nome de outros direitos
constitucionalmente consagrados.
Ainda que, considerada a representatividade de que a atuação do legislador ordinário se reveste – em esp
ela se exprima, como aqui necessariamente acontece, através de lei formal (lex stricta) –, a criminalização de
possa sempre supor-se exprimir o que em determinado momento constitua um sentimento de censura ético-juríd
na sua comunidade, é indispensável que essa conduta se mostre ofensiva – e suficientemente ofensiva – para um
com dignidade constitucional. De facto, se à criminalização de uma conduta é inerente a restrição de um direito
Constituição (o direito à liberdade, consagrado no seu artigo 27.º) e se, consequentemente, a lei só pode restring
na medida necessária para salvaguardar outros direitos ou interesses consagrados na Constituição (nos termos
18.º, n.º 2), a conclusão que se impõe é a de que a lei só pode criminalizar uma conduta na medida ne
salvaguardar outros direitos ou interesses consagrados na Constituição.
Por outro lado, constituindo a restrição do direito à liberdade a consequência jurídica mais drástica de e
ordenamento jurídico português admite, justifica-se que os limites da atuação legislativa que se traduza em s
dada conduta com essa consequência sejam entendidos como manifestações especialmente intensas do
proporcionalidade. Não porque envolvam qualquer variação estrutural desse princípio: trata-se, ainda aqui, ess
procurar as linhas a partir das quais o parâmetro constitucional se opõe e impõe à vontade da maioria dem
organizada. Antes porque permitem que logo à partida se assuma que os juízos de adequação,
proporcionalidade em sentido estrito em que o mesmo se desdobra só serão positivos quando a favor dessa res
nítidas exigências de proteção de outros direitos fundamentais, podendo neste sentido considerar-se que a margem
do legislador ordinário na criminalização de condutas é menos ampla do que o é na generalidade da sua atuação
Daí que se justifique uma designação própria – ‘princípio do direito penal do bem jurídico’ (vd. sobre
Figueiredo Dias, ‘O «direito penal do bem jurídico» como princípio jurídico-constitucional – Da doutri
jurisprudência constitucional portuguesa e das suas relações’, XXV Anos de Jurisprudência Constituciona
Coimbra Editora, 2009, p. 31 ss.) –, designação essa cujo alcance, portanto, não será apenas o de operar um
temática do princípio da proporcionalidade para as matérias penais (e, mais particularmente, para a crim
condutas), mas o de denotar desde logo que essa especificação se funda no reconhecimento de uma suficien
taxonómica ao princípio do direito penal do bem jurídico, que o individualiza dentro do reino da proporcion
pertence. É essa autonomia que explica a utilização de conceitos também próprios no contexto do juízo de prop
que este princípio requer: fala-se aí de ‘dignidade de tutela penal’ para significar a exigência de que exista um
constitucional que a norma incriminatória seja adequada a tutelar; de ‘carência de tutela penal’ ou de ‘subsi
qualquer caso geralmente a falar-se aí de ‘proporcionalidade em sentido estrito’ para significar o exercício de p
direitos ou conjuntos de direitos que, vencidos os dois testes anteriores, se vejam em conflito. Mas também aqui,
sobretudo aqui, avultam as especificidades desta matéria, porque, conforme referido, um daqueles conj
necessariamente o direito à liberdade.
Por fim, importa notar que, se a prática de certas condutas, de que é exemplo paradigmático a conduta
não corresponde ao exercício de qualquer direito fundamental – caso em que a restrição do direito à liberd
inerente à criminalização, tende a constituir o seu único efeito –, muitos (ou mesmo uma grande parte dos)
crime previstos no nosso ordenamento jurídico-penal coenvolvem, pelo menos prima facie, uma restrição de o
fundamentais. É disso exemplo o crime de difamação previsto no artigo 180.º do Código Penal, de que decorr
exercício das liberdades de expressão e de imprensa. Nestes casos, um juízo positivo de proporcionalidade tende
difícil do que em geral, na medida em que aí estejam de facto em causa, ao lado do direito à liberdade e no me
balança que ele, outros direitos fundamentais ainda. No outro prato de balança terá de estar, não apenas
interesse constitucionalmente protegido, mas, nas palavras do Acórdão n.º 99/2002, «um direito ou bem con
primeira importância».
O princípio do direito penal do bem jurídico constitui – pode dizer-se com segurança – um eleme
jurisprudência deste Tribunal Constitucional (cf., por exemplo, e embora nem todos prolatados no
inconstitucionalidade, os Acórdãos n.ºs 25/84, 85/88, 426/91, 527/95, 288/98, 604/99, 312/2000
99/2002, 337/2002, 617/2006, 75/2010, 377/2015). Não se divisam, nem aí nem na doutrina nacio
consideráveis de uma tendência para a preterição do princípio do bem jurídico como referência matricial do concei
crime em favor de outros como o da proteção do ordenamento jurídico ou o da proteção da vigência da norma
Jorge de Figueiredo Dias, op. cit., p. 40), nem razões bastantes para que as críticas que lhe podem plau
apontadas sejam vistas como insuperáveis (cf. e.g. Maria João Antunes, Constituição, Lei Penal e
Constitucionalidade, Almedina, 2019, p. 43 ss.; José de Faria Costa, ‘Sobre o objeto de proteção do direito pen
bem jurídico na doutrina de um direito não iliberal’, Revista de Legislação e de Jurisprudência, 142, n.º 397
158 ss.). Contudo, naturalmente, a existência de consenso em torno deste princípio não impede a existênci
quanto à questão de saber se uma dada conduta se mostra ou não ofensiva – e suficientemente ofensiva – pa
jurídico com dignidade constitucional. É o que se verifica em relação à conduta criminalizada no artigo 16
Código Penal, cuja fiscalização é solicitada nos presentes autos.
[…]
8. O entendimento foi reiterado pelo Tribunal Constitucional v.g. nos Acórdãos n.ºs 196/2004,
170/2006, 396/2007, 522/2007, 591/2007, 141/2010, 559/2011, 605/2011, 654/2011,
149/2014, 641/2016, 421/2017, 694/2017, 90/2018 e 178/2018. Se nestas decisões se reiterou o sen
acolhido no Acórdão n.º 144/2004, é aí também discernível um certo desígnio de reconciliação desse ve
inconstitucionalidade com o princípio do direito penal do bem jurídico, que na fundamentação daquele Acórdão
um papel discreto. Não que aí tenha sido exatamente renegado: a consideração dispensada ao princípio é visíve
fundamentação onde se procura afastar a ideia de que este tipo legal de crime mais não faz do que tutelar «sent
ou «uma ordem moral convencional particular» e se procura antes atribuir-lhe a tutela de valores mais conc
«liberdade» e «uma ‘autonomia para a dignidade’ das pessoas que se prostituem». No entanto, ao conc
«significado que é assumido pelo legislador penal» com este tipo legal de crime é o da «proteção por meios pe
necessidade de utilizar a sexualidade como modo de subsistência», proteção essa que seria «diretamente fundad
da dignidade da pessoa humana», acaba por admitir-se ao princípio do direito penal do bem jurídico uma ma
que dificilmente poderia deixar de conduzir a um considerável esvaziamento – ou, pelo menos, a uma
indefinição – do seu conteúdo prescritivo: qualquer norma incriminatória poderia justificar-se, praticament
especificação normativa, em nome da proteção da dignidade da pessoa humana ínsita no artigo 1.º da Constituiç
A ideia de que pode ver-se no princípio da dignidade da pessoa humana um bem jurídico capaz d
proporcionalidade da restrição da liberdade inerente à criminalização de uma conduta, ou de que esse princípio p
outro modo autónomo suster a criminalização de uma conduta, é, porém, uma ideia que suscita sérias reservas.
um ponto de vista sistemático, porque ele surge consagrado na nossa Constituição enquanto princípio fundame
como noutras Constituições enquanto direito fundamental Depois nos planos literal e teleológico porque o el
constante do Relatório da Delegação Portuguesa à 9.ª Conferência Trilateral (Itália, Espanha e Portugal), ‘O
Dignidade da Pessoa Humana na Jurisprudência Constitucional’, 2007, in www.tribunalconstitucional.pt, p.
alcance que lhe é dado pela Constituição – de critério último de legitimidade do poder político estadual – o
dignidade da pessoa humana acaba por ter um conteúdo de tal modo amplo (idêntico afinal de contas a um
constantes da tradição do Estado de direito) que não chega a ter densidade suficiente para ser fundamento dir
jurídicas subjetivas». Conclui-se aí: «O que nele se contém é por isso, e ao mesmo tempo, algo mais e algo men
direito. Quando muito o princípio confere ao sistema constitucional de direitos fundamentais unidade e coerên
ajudando as tarefas práticas da sua interpretação e integração. O que se lhe não pode pedir é que ele seja t
mesmo, como fonte de um outro e autónomo direito (fundamental).» Esta perspetiva – como ali igualmente se e
consenso doutrinário e tem recebido acolhimento reiterado na nossa jurisprudência constitucional desde os seus p
logo o Acórdão n.º 6/84), ainda que com alguns desvios, em todo o caso bem circunscritos.
Se o princípio da dignidade da pessoa humana não pode geralmente fundamentar direitos subjetivos de
autónomo, mais dificilmente ainda poderá fundamentar, desse modo direto e autónomo, restrições a esses mesm
seu elevado grau de abstração prejudica a sua utilização tanto para um efeito como para o outro, mas a segund
ainda como uma utilização contra libertate, o que por si só suscita fundadas dúvidas teleológicas e axiológica
dizer-se que a abstração do princípio da dignidade da pessoa humana o impede, em via de regra, de ser visto
prescrições precisas – de «soluções jurídicas concretas», nas palavras do Acórdão n.º 105/90 –, sejam elas
desfavoráveis de um prisma individual, mas especialmente as segundas. Decerto que a criminalização de uma co
ela própria a produzir efeitos benignos, mas a beneficiária destes efeitos, mesmo quando se trate da proteção
interesses de natureza eminentemente pessoal, é a comunidade como um todo. Não tem o princípio da dignid
humana como desígnio fundamental, justamente, impedir a instrumentalização do indivíduo para a consecução
comunitárias, ainda que presumivelmente louváveis? Isto mesmo faz com que o princípio da dignidade da pe
«não deva constituir fundamento de validade constitucionalidade de uma incriminação como a constante do atu
mas possa pelo contrário, ao menos em certas circunstâncias, ser legitimamente invocado como fundam
inconstitucionalidade» (Jorge de Figueiredo Dias, op. cit., p. 41).
Mesmo deixando de parte esse e outros relevantes problemas (por exemplo, de legalidade criminal) suscit
criminalização autonomamente filiada num princípio tão abstrato como o da dignidade da pessoa humana – p
na verdade, da categoria dos ‘conceitos essencialmente contestados’ –, e mantendo-nos antes num estrito
proporcionalidade, como poderá, pois, fazer-se decorrer diretamente de um tal princípio, que não de alguma sua
tangível, uma concreta e garantida restrição de direitos fundamentais? Como afirma Manuel da Costa Andra
de Imprensa e Inviolabilidade Pessoal, Coimbra Editora, 1996, p. 13, se «a dignidade humana é a verdad
numenal protegida pelo direito penal», ela é-o forçosamente «sob a forma e sub nomine dos bens jurídico-pe
pessoal», as únicas «mostrações ou cintilações fenomenológicas acessíveis à racionalidade jurídica». Sem a ref
direito ou interesse específico, é a própria avaliação da proporcionalidade que fica inviabilizada, por nada h
pratos da balança que seja minimamente mensurável.
[…]
9. [O] Acórdão n.º 178/2018, confirmando a Decisão Sumária n.º 129/2018, acrescentou aos argu
expostos alguns dados empíricos relevantes:
«(...) Neste sentido, corroborando as conclusões dos Acórdãos citados, estudos sobre prostituição (...) dem
cerca de 75% a 90% das mulheres prostituídas foram vítimas de agressões físicas ou abuso sexual na infânc
sua própria família e a maioria das pessoas prostituídas, de ambos os sexos, foi iniciada na prostituição por ter
era menor de idade, havendo prova empírica suficiente de que a vitimação por abuso sexual na infância ou n
contribuiu, de forma significativa, para a sua entrada na prostituição. Aproximadamente 90% das mulhe
indicou que gostava de deixar a prostituição, mas que tinha medo de ser rejeitada e de não ter emprego (…
estudo revelou que 62% das mulheres na prostituição relataram terem sido vítimas de violação e 68% apresen
de stress pós-traumático tal como as vítimas de tortura (...), sendo consensual entre os estudos feitos o elevado ris
e de morte das mulheres prostituídas (...).
Por outro lado, o fenómeno da prostituição, nas últimas décadas, passou a estar ligado ao tráfico de
meninas para exploração sexual, um dos negócios mais rentáveis do mundo e que criou a chamada “escravatur
modernos, sendo a linha de fronteira entre serviços sexuais prestados com consentimento e prostituição forçada
difícil de provar. A prostituição é hoje considerada uma forma de violência contra as mulheres integrada n
violência de género, que atinge de forma desproporcionada as mulheres só pelo facto de o serem (Lobby Europeu
Resolução do Parlamento Europeu, de 5 de abril de 2011). Para além destas considerações, a prostituição é u
patriarcal que promove na sociedade a ideia de que o dinheiro permite aos homens o uso do corpo das mulher
construção de uma sociedade baseada na igualdade de género, tarefa fundamental do Estado imposta constituc
artigo 9.º, alínea h), da CRP.
A incriminação das condutas previstas no artigo 169.º, n.º 1, da CRP corresponde, neste contexto, a
política criminal justificada pela normal associação entre as condutas que são designadas como lenocínio e a
necessidade económica e social das pessoas prostituídas, que dependem desta atividade para sobreviverem
prostituição, em regra, não como uma escolha sua baseada na liberdade e na autonomia, mas como a contin
percurso de abandono, pobreza e vitimação por abuso sexual na infância.
(…)
[E]sta norma visa combater um fenómeno invisível na sociedade e que se traduz na exploração das pessoa
que prestam um consentimento meramente formal à atividade da prostituição, mas que não vivem em estrutur
sociais que lhes permitam tomar decisões em liberdade, por pobreza, desemprego e percursos de vida marcados p
pelo abandono desde uma idade muito jovem. Por outro lado, o fenómeno da prostituição, nos últimos trinta
muito, verificando-se uma estrita ligação entre a prostituição e o tráfico de pessoas, o qual atinge dimens
inimagináveis há algumas décadas atrás. Verificou-se também que o sistema não tem instrumentos para
prática, a ténue linha que separa o consentimento da pessoa para a prática de atos de prostituição das situaçõ
prostituição forçada. As leis que criminalizam o uso do serviço sem o consentimento da vítima enfrentam dific
na sua implementação e o sistema não consegue aplicá-las efetivamente (...). Neste contexto de política
desaparecimento do requisito da «exploração de um estado de necessidade ou de abandono» situa-se dentro d
liberdade de conformação do legislador democrático e visa, não a tutela de qualquer moral, mas a proteç
fundamentais das pessoas à autonomia, à integridade pessoal, ao livre desenvolvimento da personalidade e à dign
1.º, 25.º, n.º 1 e 26.º, n.º 1, da CRP).
A prostituição é uma questão que preocupa os Estados, por estar associada ao tráfico de pessoas e
violação de direitos humanos de um número cada vez mais elevado de pessoas, na sua maioria mulheres e crian
(traficadas de países subdesenvolvidos para países desenvolvidos), impedindo a estas pessoas o acesso à cidadania
à igualdade de direitos, e à autonomia na condução da sua vida. As pessoas são utilizadas como fonte de lucro
através de uma atividade que é hoje designada como a escravatura dos tempos modernos, tratando-se a prostitui
negócios mais rentáveis do mundo, movimentando cerca de $186.00 biliões por ano e envolvendo cerca de 40-4
pessoas, 90% das quais dependentes de outrem e 75% das quais têm idades compreendidas entre 13 e 25 anos
estatísticas dos Estados membros da EU, cerca de 60% a 90% das pessoas prostituídas são vítimas de cri
(...).
(...)
Existe consenso entre os Estados membros da UE de que o tráfico de pessoas e a exploração sexu
erradicados, [existindo dados estatísticos] segundo os quais, em 2008, 90% das pessoas prostituídas eram
maioria das mulheres prostituídas eram migrantes, principalmente da Europa de Leste). Segundo o mes
Parlamento Europeu, está a «ganhar apoio crescente a conceção que entende que o negócio da prostituição
legitimado, por violar os princípios ínsitos na Carta dos Direitos Fundamentais, entre os quais se encontra o
igualdade» (...).
No quadro social e jurídico descrito, dada a complexidade da definição dos instrumentos legais adequad
das pessoas prostituídas e ao combate ao tráfico, não pode deixar de se entender que está dentro da margem d
legislador democrático consagrar o modelo de criminalização do lenocínio, nos moldes em que o faz o artigo 16
CP, que não padece assim de qualquer vício de inconstitucionalidade material, por violação do princípio da prop
ínsito no artigo 18.º, n.º 2, da CRP.»
10. Todavia, nem os argumentos de natureza normativa nem os de natureza empírica acima apresentado
de afastar a circunstância de que, na sua configuração atual, o tipo legal de crime do lenocínio simples abrange m
do que aquelas que, à luz daqueles mesmos argumentos, se justificaria que abrangesse. Naturalmente
entendimento segundo a qual este tipo legal de crime é inconstitucional não questiona que «a liberdade, desig
liberdade sexual» (Acórdão n.º 421/2017) constitua um direito constitucionalmente protegido para os efeitos d
proporcionalidade decorrente do artigo 18.º, n.º 2, da Constituição, nem que possa existir uma «norma
empiricamente comprovável, «entre as condutas que são designadas como lenocínio e a exploração da necessidad
social, das pessoas que se dedicam à prostituição, fazendo desta um modo de subsistência» (Acórdão n.º 144/20
v.g. pelo Acórdão n.º 178/2018). O ponto essencial para a linha que afirma a inconstitucionalidade – ou,
mínimo denominador comum aos vários entendimentos que nela se inscrevem – é o de que é ilegítimo, em
Mais longe vão Anabela Miranda Rodrigues / Sónia Fidalgo, ‘Artigo 169.º’, Comentário Conimbrice
Penal, Tomo I, Coimbra Editora, 2.ª ed. (CCCP-I), p. 798 s., para quem «[n]em mesmo a exigência qu
versão do CP de 1995 quanto à verificação do elemento típico ‘exploração de situações de abandono ou
económica’ justificava [a] incriminação», pois «de vontade deficiente na decisão não se pode falar logo, só pelo fac
estar em situação de abandono ou de necessidade económica». Procurando novamente um denominador comum
pelo menos de concordar-se que o papel que era desempenhado pela exigência típica de que haja exploração de
de abandono ou necessidade económica da pessoa que se prostitui não foi substituído pelo que é agora desem
exigência típica de que a pessoa que favorece, fomenta ou facilita a prostituição o faça profissionalmente ou
lucro. Esta exigência, que antes surgia prevista como elemento qualificativo do tipo legal de base e agora faz p
tem a virtualidade de cingir o âmbito desta norma incriminatória a hipóteses em que existe uma exploração da
prostitui, o elemento mínimo para que possa falar-se de um perigo para a liberdade sexual. Na verdade, essa e
diz sobre a pessoa que se prostitui, senão sobre aquela que contribui para que a mesma se prostitua, não se
todo evidente a existência de um nexo entre o caráter profissional ou lucrativo desta atuação e a debilidad
prostitui. Além disso, a natureza profissional ou o intuito lucrativo da atuação da pessoa que favorece a pr
impede o estabelecimento de relações sinalagmáticas com a pessoa que se prostitui. O/A proprietário/a do aloj
explora a fim de que aí tenha lugar a prática de prostituição tanto poderá estar, desse passo, a facilitar, fomenta
a prostituição de uma pessoa que se encontre numa situação de vulnerabilidade como a de uma pessoa que n
numa tal situação e que tenha, antes e ainda assim, decidido prostituir-se, por exemplo por ver nisso um mod
nível mais satisfatório de rendimento financeiro. Em nenhum de tais casos poderá também dar-se como adquir
como significativamente mais provável, a partir do caráter profissional e/ou da intenção lucrativa do/a dono/
que a sua ação tenha caráter exploratório, desde logo quando o valor cobrado for um valor normal, idêntico ao
a qualquer cliente (na mesma linha, vd. o exemplo formulado por Carlota Pizarro de Almeida, ‘O crime d
artigo 170.º, n.º 1, do Código Penal (Anotação ao Acórdão TC n.º 144/04)’, Jurisprudência Constitucional
p. 34).
Importa notar que a liberdade sexual de uma pessoa inclui a decisão de praticar atos sexuais com outra e
encontrar (objetivamente) ou sentir (subjetivamente) ameaçada por um mal importante não imputável a esta seg
cuja conduta, por conseguinte, mesmo que praticada com consciência daquela circunstância, não merece censura
afirma Pedro Caeiro, ‘Observações sobre a projetada reforma do regime dos crimes sexuais e do crime de violên
(em apreciação no Grupo de Trabalho – Alterações Legislativas – Crimes de Perseguição e Violência D
Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias)’, 2019, in www.parlamento.pt
acompanhando Tatjana Hörnle, ‘The new German law on sexual assault and sexual harassment’, German
18, n.º 6 (2017), p. 1323 ss.: «Aí, é crucial distinguir o que deve ser incriminado e aquilo que pertence a
organização (ainda que condicionada) da vida sexual. Como bem discorre Tatjana Hörnle, “it is a part of p
freedom to use sexuality not only for pleasure or love, but also in an instrumental way as a means to aver
disadvantage”». Daí, no fundo, que seja hoje relativamente incontroversa, entre nós, a falta de dignida
prostituição propriamente dita, assim como do recurso à prostituição, independentemente de a pessoa que se pr
em virtude de uma situação de vulnerabilidade em que se encontre ou de qualquer outra razão, como aquela, j
esta pessoa procurar nisso um rendimento financeiro suplementar relativamente àquele que seria já suficiente par
situação de necessidade económica se não pudesse falar.
[…]
12. Na doutrina, mesmo quem se pronuncia pela não inconstitucionalidade tende a basear essa con
interpretação restritiva do tipo legal de crime de lenocínio simples, de modo a considerá-lo aplicável apenas a sit
exista exploração de uma situação de vulnerabilidade de quem se prostitui. É disso exemplo Paulo Pinto de A
Comentário do Código Penal à Luz da Constituição da República Portuguesa e da Convenção Europeia do
Homem, Universidade Católica Editora, 3.ª ed., 2015, p. 673. É também o caso de Inês Ferreira Leite, ‘A
da Liberdade Sexual’, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, 21, n.º 1 (2011), p. 82, para quem, «mais
que construir o bem jurídico tutelado em torno de uma interpretação acrítica do tipo penal, será reconstruir o
função de uma interpretação valorativa da incriminação, tendo como farol a verificação da lesão ou da colocação
liberdade sexual».
Porém, não se afigura possível, quer em face da sua letra, quer da sua história, quer, ainda, de considera
sistemática, interpretar este tipo legal de crime no sentido de o mesmo exigir que tenha havido exploração de um
vulnerabilidade da pessoa que se prostitui: essa exigência não só não consta do n.º 1 do artigo 169.º como foi a
retirada dele pelo legislador e deslocada para a alínea d) do n.º 2 do mesmo preceito – ainda que em
reconfigurados, visto bastar agora que tenha havido aproveitamento (não sendo já necessário que tenha havido e
uma circunstância de especial vulnerabilidade da vítima –, passando portanto a constituir elemento qualificati
natureza sem que isso representasse uma denegação da intencionalidade normativa imprimida a esse tipo legal
legislador, aqui sim em iminente ingerência na sua liberdade de conformação. A jurisprudência deste Tribunal,
sempre suposto uma interpretação deste tipo legal de crime no sentido de o seu âmbito não estar cingido a hip
haja exploração de uma situação de vulnerabilidade de quem se prostitui, tendo inclusivamente explicitado já
abrange casos de exercício de prostituição por «pessoa auto determinada» (Acórdão n.º 294/2004). Simp
concluído pela não inconstitucionalidade do tipo legal assim interpretado.
13. Se o Tribunal Constitucional tem entendido ser esse o único sentido normativo possível de extrair do
n.º 1, do Código Penal, e se tem entendido que esse tipo legal de crime visa ainda a proteção do bem juríd
sexual», então é forçoso concluir que o Tribunal o concebe como um crime de perigo abstrato, técnica criminaliz
entender também já expresso pelo Tribunal, apesar de envolver uma significativa antecipação da tutela de bens
se expõe necessariamente a inconstitucionalidade, na medida em que, inter alia, efetivamente se ligue ainda à pr
jurídicos (vd. por exemplo os Acórdãos n.ºs 426/91, 246/96, 7/99 e 95/2001). O tipo legal de crime de len
abrange situações em que não existe perigo concreto de lesão da liberdade sexual de quem se prostitui, mas is
justificável pelo facto de à conduta típica ser inerente um perigo abstrato de lesão desse bem jurídico: a já refe
associação entre as condutas que são designadas como lenocínio e a exploração da necessidade económica e social»
atualmente, o ponto essencial do debate.
Contudo, o entendimento aqui acolhido é o de que nem mesmo entendido nesses termos este tipo legal de c
expor-se a um juízo de inconstitucionalidade, pelas razões que em seguida se apresentam.
Em primeiro lugar pode questionar-se a solidez daquela premissa, bem como a necessidade de recu
criminalização no confronto com outras medidas aptas a alcançar o mesmo objetivo com menor restriçã
fundamentais, designadamente a pura descriminalização do lenocínio e a regulamentação da prostituição,
pressuposto de que «os riscos que [com o crime de lenocínio] se querem esconjurar (em todo o caso sempre existen
grau) resultam mais da incriminação da atividade em causa (e assim da natureza ‘subterrânea’, clandestina
remetida) do que dela mesma» (Pedro Soares de Albergaria/Pedro Mendes Lima, op. cit., p. 238; já Ana
Rodrigues/Sónia Fidalgo, op. cit., p. 799).
Admitindo que aquela «normal associação» existe, deve em qualquer caso questionar-se se ela permite
tipo legal de crime com uma estrutura de perigo abstrato. Conforme expõe a este respeito Carlota Pizarro de
cit., p. 31 ss.: «A mera associação (incidindo sobre regularidades estatísticas) pode servir de fundamento a um
mas não é suficiente para a criação de crimes de perigo. (...) Há uma diferença de fundo entre esta situação
perigo abstrato: nestes últimos, o agente só é punível se realizar (efetiva e dolosamente) a atividade de
incriminação – a qual consiste num início do iter criminis que levará (ou levaria) presumivelmente (com base n
à concretização do perigo e eventualmente da lesão (numa relação vertical, de causalidade); no primeiro cas
partir de certos indícios, a verificação (concomitante, mas numa relação apenas horizontal, de coincidência
proibida e que não se logra provar. Ora em direito penal, como é para todos evidente, não pode haver lugar a pr
a prática do facto proibido (e menos ainda inelidíveis, como seria o caso), pois tal hipótese colide frontalmente co
da presunção de inocência.» É esta, de resto, a única visão consentânea com o fundamento da admissibilidad
recurso aos crimes de perigo abstrato: o de constituir uma técnica criminalizadora necessária a um direito penal
sociedade do risco» (Jorge de Figueiredo Dias, op. cit., p. 38). Baseada numa mera associação, que não num a
causal de perigosidade, a norma incriminatória perde o seu referente teleológico, expondo-se à crítica de que «pu
consegue provar por não conseguir provar o que quer punir» (Pedro Soares de Albergaria / Pedro Mendes Lim
209). Desse modo – pode acrescentar-se –, a norma conforma-se com a eventualidade de punir também, pelo m
o que não quer sequer punir, razão pela qual pode duvidar-se que um tipo legal de crime com estas caracterís
sequer uma vontade da maioria.
Por outro lado, a configuração de uma norma como crime de perigo abstrato traz consigo particulares
plano da tipicidade – é dizer, da determinabilidade da conduta proibida. Como o Tribunal Constitucional
ocasiões sustentou (e.g., nos Acórdãos n.ºs 20/91 e 426/91), é crucial que o bem jurídico tutelado possa s
identificado e que a conduta típica seja descrita de forma especialmente precisa. Relativamente à norma em apreç
considerar-se que a mesma satisfaz ambas as exigências: quanto à primeira, embora o bem jurídico pretensam
não seja absolutamente consensual, é de conceder que existem elementos suficientes para se concluir estar em cau
sexual; quanto à segunda, embora o tipo legal faça uso de elementos subjetivos e normativos, é relativamente ind
âmbito de incidência. O que falha redondamente na norma é o facto de dela não emergir uma possibilidade
suficientemente robusta entre a primeira e a segunda exigências. Nas palavras de Jorge de Figueiredo Dias
Antunes, ‘Da inconstitucionalidade da tipificação do lenocínio como crime de perigo abstrato’, in Estudos em H
Senhor Conselheiro Presidente Joaquim de Sousa Ribeiro – Vol. I, Almedina, 2019, p. 157: «Por um lado,
id l i b j ídi di d d d l d i
perigo os bens jurídicos identificados pela jurisprudência constitucional.» De facto, como os autores notam
jurisprudência constitucional que tem reconhecido que o perigo pressuposto por este tipo legal de crime não é verd
perigo de lesão da liberdade sexual, ou de qualquer outro direito titulado pela pessoa que se prostitui (à
integridade pessoal, ao livre desenvolvimento da personalidade), mas o perigo de exploração de uma situaç
vulnerabilidade em que a mesma se encontra. Ou seja, o perigo de verificação do elemento típico que o legisla
tipo legal. Dá disto exemplo o Acórdão n.º 641/2016, quando aí se afirma que «a ofensividade que legitima
penal assenta numa perspetiva fundada de que as situações de prostituição, relativamente às quais exist
aproveitamento económico por terceiros, comportam um risco elevado e não aceitável de exploração de uma situaç
e desproteção social», acompanhado pelo Acórdão n.º 90/2018, onde se afirma: «não se pressupõe que a
prostituição estejam necessariamente associadas a carências sociais elevadas e que qualquer comportament
favorecimento ou facilitação da prostituição comporta uma exploração da necessidade económica ou social do
prostitui, mas antes que tais situações comportam um risco elevado e não aceitável de exploração de uma situaç
e desproteção social» […].
É certo que ambos os arestos referem que essa exploração «interfer[e] com – colocando em perigo – a
liberdade do agente que se prostitui». O facto é que essa exploração não faz parte do tipo legal e está já, portant
a ser pressuposta. A feição que o problema afinal assume é, então, a seguinte: a única linha de entendimento ca
relacionar este tipo legal de crime com a tutela de bens jurídicos (sc., aquela segundo a qual ele constitui um c
abstrato destinado a tutelar a liberdade sexual de quem se prostitui) assenta, em última análise, num perigo de
um elemento que não consta desse tipo legal de crime (sc., a exploração de uma situação de vulnerabilidade de
Portanto, assim interpretado, o tipo legal de crime envolve duas presunções (não deve tentar evitar-se o termo, p
de perigo abstrato é de presunções que se trata: cf. Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal. Parte Geral. To
2019, Gestlegal, p. 360), uma das quais, além de frágil (cf. supra, o ponto 10), se suporta ainda na outra, p
sentido dizer-se estarmos perante um crime de perigo duplamente abstrato. Talvez mais exatamente: de um cr
abstrato elevado ao quadrado, em que: (i) a base é a presunção de que a exploração de uma situação de vuln
quem prostitui encerra tipicamente um perigo para a sua liberdade sexual; e (ii) o expoente é a presunção de que
quem, profissionalmente ou com intuito lucrativo, fomente, favoreça ou facilite a exercício de prostituição encer
um perigo de exploração de uma situação de vulnerabilidade de quem se prostitui. Em resultado dess
exponenciação, o âmbito da proibição é muito mais extenso do que aquele que, considerado o bem jurídico q
tutelar, seria o seu âmbito natural. Entre este âmbito natural e aquele âmbito exponenciado está um conjunto
de condutas que decerto incluirá situações em que há perigo concreto de lesão ou até dano do bem jurídico, mas i
uma pura contingência, pois nada há no tipo legal de crime que cuide realmente de direcioná-lo para a punição d
um dos aspetos que o separa de tipos legais como o da condução de veículo em estado de embriaguez ou sob a
estupefacientes ou substâncias psicotrópicas, previsto no artigo 292.º do Código Penal, em que o perigo de lesão
toda e qualquer das condutas abrangidas pela norma incriminatória e, por isso, resguarda o tipo legal de crime
de que não é necessária uma intervenção penal tão antecipada.
14. Nos tipos legais de crime que almejam a tutela da liberdade sexual, o assentimento – mais especificam
– do portador concreto do bem jurídico não se limita a traçar uma fronteira entre comportamentos ofensivos e co
inócuos para o bem jurídico, nem uma fronteira entre ofensas intoleráveis e ofensas transigíveis ao bem juríd
fronteira entre comportamentos ofensivos do bem jurídico e comportamentos potencialmente necessários à satisf
jurídico (vd. Manuel da Costa Andrade, Consentimento e Acordo em Direito Penal (Contributo para a Fund
um Paradigma Dualista), Coimbra Editora, 1991, p. 362 ss. et passim). Por isso que a prática de atos
adultos sem o acordo de um deles constitua uma conduta que indiscutivelmente reclama a intervenção do direi
que a prática de tais atos de forma consensual seja, mais do que lícita, uma expressão igualmente indiscutíve
bem jurídico.
Isso significa que esses tipos legais envolvem, que têm sempre latente, um potencial efeito restritivo sobre
jurídico que justifica a sua existência. Esta conceção dualista do assentimento ou da concordância do portad
bem jurídico – conceção que se mantém incontrovertida – pode, aliás, ser invocada em abono da interpretação re
referida (no ponto 12), segundo a qual o tipo legal de crime do lenocínio simples continua a pressupor a explo
situação de especial vulnerabilidade de quem se prostitui. Contudo, as mesmas razões então indicadas perm
válidas: essa afigura-se uma interpretação contra legem, sendo antes forçoso concluir que o legislador prete
criminalizar, quando praticada profissionalmente ou com intuito lucrativo, a conduta de fomentar, facilitar o
prostituição independentemente de a pessoa que se prostitui ter oferecido o seu acordo à prática dos atos sexu
mesma se traduz. De resto, como já se referiu, a própria exigência de que haja exploração de uma situação de v
da pessoa que se prostitui continua a não pressupor o acordo dessa pessoa à prática de tais atos, pelo que, n
ponto, não há diferença sensível entre a vigente redação deste tipo legal de crime e aquela que a precedeu, a qual
um crime de perigo abstrato. A diferença é, essa sim, que a redação precedente procurava estabelecer um nexo
aqui não releva, pois não é essa a norma sob fiscalização –, enquanto a redação atual resiste a qualque
identificação de um nexo dessa natureza (nos termos explanados supra, no ponto 13).
Já se disse que o recurso à técnica do perigo abstrato na criminalização de comportamentos não está,
constitucionalmente vedado. O ponto que se procura agora fazer é o de que os crimes de perigo abstrato, já de
especiais condições constitucionais quando comparados com os crimes de dano e os crimes de perigo concreto – on
bem jurídico é, respetivamente, certa ou mais próxima – são ainda mais difíceis de sustentar quando estejam e
jurídicos suscetíveis de acordo, como a liberdade sexual. Se o acordo do portador, mais do que tornar lícita
terceiro, a convoca à realização do bem jurídico, o legislador, ao criminalizar um comportamento em nome de um
dessa natureza através de uma presunção, está a conformar-se com uma dada probabilidade de restringir o direi
do terceiro em nome de um direito que não sofreu perigo concreto e, além disso, com uma equivalente pro
restringir o exercício desse mesmo direito por parte do seu portador. Conforme afirma Augusto Silva Dias, op
em termos que ajudam a ilustrar esta perspetiva: «Descrições típicas abrangentes que não explicitam suficient
modo as condutas provocam a perda ou redução do valor da integridade pessoal para o seu titular (…), acabam
casos de coisificação com casos de objetivação voluntária do próprio ser humano, isto é, casos de negação da iden
com situações de exercício normal dessa liberdade.»
Importa notar que o lenocínio apresenta, neste ponto, uma relevante particularidade em relação a
destinados a tutelar a liberdade sexual: o seu objeto direto ou imediato não é a própria prática dos atos sexu
traduz a prostituição, mas o ato de fomentar, facilitar ou favorecer essa prática. Por essa razão, nã
necessariamente de concluir que este tipo legal de crime comporte uma restrição desproporcional da liberdade sexu
prostitui: o tipo legal não veda essa prática, embora limite as condições em que a mesma pode ser
designadamente a possibilidade de associação de quem se prostitui a uma pessoa ou organização de pessoas
facilite ou favoreça essa prática. Porém, se não se perder de vista que o único desígnio constitucionalmente legít
legal de crime seria o de tutelar a liberdade sexual de quem se prostitui, e que a sua estrutura é a de uma presu
de uma cadeia de presunções) segundo a qual essa pessoa não prestou o seu acordo àquela prática, a perspetiva
deixa de se lhe aplicar: o fundamento último do tipo legal não deixa de ser a tutela de um direito que, em fa
tipicamente descrita, pode plausivelmente ter sido exercido pelo seu portador.
A criação de crimes de perigo abstrato em nome da tutela da liberdade sexual, ou de outro bem jurídic
acordo, não está terminantemente excluída em termos constitucionais. Contudo, quando o nexo entre a factualid
bem jurídico tutelado ou pretensamente tutelado for débil, como se concluiu ser aqui o caso (supra, ponto
circunstância de esse bem jurídico ser um bem jurídico suscetível de acordo empresta ainda força suplementar à c
decorrente, sem mais, daquela debilidade – de que o tipo legal de crime comporta uma restrição desproporciona
liberdade (consagrado no artigo 27.º da Constituição) de quem, ainda que profissionalmente ou com intuito luc
fomente ou favoreça a prática da prostituição por outra pessoa. Desenvolvendo-se aquela conduta dentro de um e
perante o recorte típico da norma incriminatória, a livre disposição do bem jurídico por parte de quem se prost
plausível, a sua criminalização não pode deixar de considerar-se desproporcional.
Pode conceder-se que esta norma incriminatória seja adequada a tutelar a liberdade sexual, no sentid
constitui um bem jurídico digno de pena e de que a conduta tipicamente descrita é objetivamente apta a abrange
que essa liberdade foi exposta a um perigo concreto de lesão. No entanto, a norma não resiste ao teste da
extrema fragilidade do nexo entre a conduta que aí é descrita e o único bem jurídico que a norma poderia tutela
facto de a mesma abranger situações em que há até um exercício da liberdade sexual por parte de quem se p
permitem a conclusão de que tal norma seja necessária para tutelar esse direito. Mesmo persistindo na via da cr
o legislador poderia empreender essa tutela com significativamente menor restrição do direito à liberdade, através
típico que, podendo porventura ainda configurar-se como crime de perigo abstrato, apresente um autêntico nexo d
típica entre conduta e bem jurídico. Poderia então ainda discutir-se a proporcionalidade em sentido estrito da nor
menos estar-se-ia já num contexto de verdadeiro conflito de direitos e interesses constitucionais. Pelo contrário, a
incriminatória restringe um direito (à liberdade) em nome de um outro (à liberdade sexual) que pode plausivel
sido colocado em perigo concreto e ter até sido livremente exercido pelo seu titular, circunstância em que não
carência de tutela penal.
Importa apenas acrescentar que esta conclusão não aproveita diretamente a outros tipos legais de crim
como crimes de perigo abstrato e destinados a tutelar a liberdade e a autodeterminação sexuais, como a div
detenção com vista à divulgação, de material pornográfico em que sejam utilizados menores, previstas e puni
176.º, n.º 1, alíneas c) e d), do Código Penal. Sem encetar um exercício de comparação mais exaustivo e, no
exprimir qualquer consideração sobre a constitucionalidade de tais normas, pois não são elas as normas so
bastará notar que, ali, a utilização dos menores nos materiais em causa é criminalmente proibida (cf. a alínea
i ) ái d i i d i d i
poderia considerar-se resultante de um exercício de liberdade sexual, razão pela qual, desde logo, se está a
domínio dos crimes contra a autodeterminação sexual.
“[ ]
Em relação à constitucionalidade da norma constante do artigo 169.º, n.º 1, do CP, nos termos da
profissionalmente ou com intenção lucrativa, fomentar, favorecer ou facilitar o exercício por outra pessoa de
alega uma vez mais o recorrente que o facto de a norma não exigir como requisito da incriminação «a exploraçã
de abandono ou de necessidade económica», implicaria uma violação, na sua perspetiva, do princípio da prop
ínsito no artigo 18.º, n.º 2, da CRP, por não estar o legislador a tutelar a liberdade sexual das pessoas prostitu
uma determinada moral social, que não competiria ao direito penal proteger, de acordo com o princípio da interv
ou da ultima ratio, invocando a seu favor os argumentos aduzidos nos votos de vencido à jurisprudência do
Tribunal, que tem proferido um juízo negativo de inconstitucionalidade em relação à norma impugnada.
Os argumentos referidos nos votos de vencido incidem sobre a ausência de um bem jurídico com dignidade
traduzisse na proteção de direitos ou interesses constitucionalmente protegidos, e no entendimento, segundo o q
prevê um crime sem vítima, que visaria apenas a prevenção ou a repressão do moralismo ou de sentimentos re
traduziria um paternalismo do legislador, que seria até suscetível de ofender a liberdade das pessoas que, de liv
quisessem prostituir.
Contudo, como tem sido reafirmado pela jurisprudência dominante no Tribunal Constitucional, esta
combater um fenómeno invisível na sociedade e que se traduz na exploração das pessoas prostituídas, que
consentimento meramente formal à atividade da prostituição, mas que não vivem em estruturas económico-so
permitam tomar decisões em liberdade, por pobreza, desemprego e percursos de vida marcados pela violência e p
desde uma idade muito jovem. Por outro lado, o fenómeno da prostituição, nos últimos trinta anos, mudou muit
se uma estrita ligação entre a prostituição e o tráfico de pessoas, o qual atinge dimensões crescentes, inimagináve
décadas. Verificou-se também que o sistema não tem instrumentos para distinguir, na prática, a ténue linha
consentimento da pessoa para a prática de atos de prostituição das situações de tráfico e prostituição forçada
criminalizam o uso do serviço sem o consentimento da vítima enfrentam dificuldades sérias na sua implementaç
não consegue aplicá-las efetivamente (cf. Sexual exploitation and its impact on gender equality, European Parli
http://www.europarl.europa.eu/RegData/etudes/etudes/join/2014/493040/IPOLFEMM_ET(2014)49
Neste contexto de política criminal, o desaparecimento do requisito da «exploração de um estado de nece
abandono» situa-se dentro da margem de liberdade de conformação do legislador democrático e visa, não a tutel
moral, mas a proteção de direitos fundamentais das pessoas à autonomia, à integridade pessoal, ao livre desen
personalidade e à dignidade (artigos 1.º, 25.º, n.º 1 e 26.º, n.º 1, da CRP).
A prostituição é uma questão que preocupa os Estados, por estar associada ao tráfico de pessoas e
violação de direitos humanos de um número cada vez mais elevado de pessoas, na sua maioria mulheres e crian
(traficadas de países subdesenvolvidos para países desenvolvidos), impedindo a estas pessoas o acesso à cidadania
à igualdade de direitos, e à autonomia na condução da sua vida. As pessoas são utilizadas como fonte de lucro
através de uma atividade que é hoje designada como a escravatura dos tempos modernos, tratando-se a prostitui
negócios mais rentáveis do mundo, movimentando cerca de $186.00 biliões por ano e envolvendo cerca de 40-4
pessoas, 90% das quais dependentes de outrem e 75% das quais têm idades compreendidas entre 13 e 25 an
exploitation and its impact on gender equality, European Parliament, 2014 – um estudo pedido ou encom
Comissão do PE relativa aos Direitos das Mulheres e à Igualdade de Género). Segundo estatísticas dos Estado
EU, cerca de 60% a 90% das pessoas prostituídas são vítimas de crimes de tráfico (Ibidem).
Desde 1979, que as Nações Unidas têm por objetivo combater todas as formas de tráfico das mulheres e
da prostituição das mulheres, conforme consta do artigo 6.º da Convenção sobre a Eliminação de Todas a
Discriminação contra as Mulheres (CEDAW).
A regulação jurídica e penal desta matéria encontra-se em evolução nos países da UE, visando a definiçã
fortes de combate à exploração sexual e a elaboração de convenções e diretivas dirigidas ao alargamento da incr
aumento das penas quando a pessoa prostituída é menor de idade (Diretiva 2011/93/UE) ou vítima de tráfi
do Conselho da Europa contra o tráfico de seres humanos, de 2005, e as Diretivas 2011/36/UE e 2012/29
Existe consenso entre os Estados membros da UE de que o tráfico de pessoas e a exploração sexu
erradicados, afirmando-se no estudo «Sexual exploitation and prostitution and its impact on gender equality
atrás citado, p. 9, que «A prostituição e a exploração sexual são assuntos altamente genderizados, com mulhe
na maioria dos casos, a vender o seu corpo, por coação ou com consentimento, e homens e rapazes a pagar po
(sobre dados estatísticos, na Holanda, vide TAMPEP, 2009, Netherlands Country Report, citado no estudo d
Europeu, p. 37, segundo os quais, em 2008, 90% das pessoas prostituídas eram mulheres e a maioria
prostituídas eram migrantes, principalmente da Europa de Leste). Segundo o mesmo estudo do Parlamento Eu
«ganhar apoio crescente a conceção que entende que o negócio da prostituição não pode ser legitimado, por viola
ínsitos na Carta dos Direitos Fundamentais, entre os quais se encontra o princípio da igualdade» (Ibidem, p. 9)
No quadro social e jurídico descrito, dada a complexidade da definição dos instrumentos legais adequad
das pessoas prostituídas e ao combate ao tráfico, não pode deixar de se entender que está dentro da margem d
legislador democrático consagrar o modelo de criminalização do lenocínio, nos moldes em que o faz o artigo 16
CP, que não padece assim de qualquer vício de inconstitucionalidade material, por violação do princípio da prop
ínsito no artigo 18.º, n.º 2, da CRP.
“[…]
[N]ão se pressupõe que as situações de prostituição estejam necessariamente associadas a carências sociais
qualquer comportamento de fomento, favorecimento ou facilitação da prostituição comport[e] uma exploração d
económica ou social do agente que se prostitui, mas antes que tais situações comportam um risco elevado e nã
exploração de uma situação de carência e desproteção social, colocando em perigo a autonomia e liberdade do
prostitui.
[…]
Por outro lado, […] a jurisprudência constitucional acima referida […] apreciou o critério da necessid
penal, enquanto decorrência do princípio da proporcionalidade, na dimensão acolhida no n.º 2 do artigo 18.º da
No entanto, e conforme se salienta no Acórdão n.º 694/2017, em que o Tribunal Constitucional se pro
esta matéria, tal apreciação não se «deve confundir, porém, com o controlo da bondade das opções que o legislado
no âmbito da sua margem de conformação, tome na concretização do respetivo programa político criminal, morm
inadequação ou insuficiência para a tutela do bem jurídico em proteção de meios não penais de controlo social a
decisão recorrida, pressupondo a manutenção da proibição do lenocínio, aponta a ‘via contraordenacional mínim
regulação administrativa da atividade’ –, questão que não incumbe a este Tribunal apreciar».
Mesmo que a expressão exploração esteja fora do tipo – e, como tal, não seja facto a
concreto – o risco da sua materialização é suficientemente forte para conter a norma d
limites da proporcionalidade e, em particular, da necessidade da intervenção penal.
2.5. É o sentido da linha decisória a este respeito assumida, e diversas vezes reite
Tribunal Constitucional desde 2004, num entendimento geral desta questão que ora cu
oposição ao Acórdão recorrido, afirmar de novo.
III – Decisão
3. Em face do exposto, decide-se:
a) Não julgar inconstitucional a norma incriminatória constante do artigo 169.º,
Código Penal;
3.1. Custas pelo recorrente nessa impugnação inicial (o recorrido no recurso para o
por ter decaído globalmente neste processo, em função do resultado do presente re
pretensão impugnatória que dirigiu ao Tribunal Constitucional (artigo 84.º, n.º 2, da LTC)
se a taxa de justiça em 25 unidades de conta, ponderados os critérios estabelecidos no arti
1, do Decreto-Lei n.º 303/98, de 7 de outubro (cfr. o artigo 6.º, n.º 1, do mesmo diploma)
Lisboa, 27 de janeiro de 2021 – José António Teles Pereira – Maria José Rangel de Mesquita –
Raimundo (vencida: junto declaração de voto) – João Pedro Caupers – Pedro Machete – Joana
Costa (vencida nos termos da fundamentação constante do acórdão recorrido, que subscrevi) –
Almeida Ribeiro (vencido, nos termos da fundamentação do acórdão n.º 134/2020 – o acórdão reco
subscrevi).
O relator atesta os votos de conformidade ao presente Acórdão do Conselheiro Fer
Ventura, da Conselheira Maria de Fátima Mata-Mouros e da Conselheira Mariana Canotilho,
igualmente o voto de vencido do Senhor Conselheiro Lino Rodrigues Ribeiro – cujos term
seguintes: “vencido nos termos da fundamentação do Acórdão recorrido” – e o voto de vencido d
Conselheiro Presidente, Manuel da Costa Andrade – cujos termos são os seguintes: “vencido
da declaração de voto junta ao Acórdão n.º 641/2016”.
O relator atesta igualmente o voto de conformidade do Conselheiro José João Abrantes.
José Teles Pereira
DECLARAÇÃO DE VOTO
Votei vencida o presente acórdão, por entender que a reforma de 1998, ao deixar cair do respetivo
elemento “explorando situações de abandono ou de necessidade económica”, elimina o inciso que,
enquadrava o lenocínio como um crime de ofensa à liberdade sexual e autodeterminação da pe
caso, vítima da conduta de aproveitamento económico da prostituição. Na versão até então vi
aproveitamento económico quando a vítima se encontrava em estado de necessidade, con
comportamento lesivo e ofensivo por colocar em perigo a autonomia e liberdade do agente que se
Enquanto opção de política criminal, a atual redação assume que as situações de prostituição, relati
quais existe promoção e aproveitamento económico por terceiros, comportam um risco elev
aceitável de exploração de uma situação de carência e desproteção social, interferindo – colocando
– a autonomia e liberdade de agente que se prostitui. Foi essa posição que este Tribunal tem sufra
o acórdão mais uma vez assimilou.
No entanto, muito embora se compreenda a preocupação que subjaz a essa posição, entendo que
como hoje se encontra desenhado, enquanto crime de perigo abstrato, se afasta dos critérios legitim
incriminação.
A conceção que hoje subjaz à norma, limitada que estaria por força do artigo 18.º, n.º 2, da Con
em especial, do princípio da dignidade penal do bem jurídico e da necessidade penal, parte de um
não demonstrada e que o legislador expressamente afastou do respetivo tipo legal – o risco ou peri
da autonomia de vontade do agente que se prostitui e da sua liberdade sexual –, ou, mais concre
situação de especial vulnerabilidade em que a “vítima” se encontra.
Porém, e como chama a atenção o acórdão fundamento, “quando o nexo entre a factualidade típica e o
tutelado ou pretensamente tutelado for débil, (…) a circunstância de esse bem jurídico ser um bem jurídico suscetí
empresta força suplementar à conclusão de que o tipo legal de crime comporta uma restrição desproporcional do direi
(consagrado no artigo 27.º da Constituição) de quem, ainda que profissionalmente ou com intuito lucrativo, facilit
favoreça a prática da prostituição por outra pessoa”. O mesmo sucederá, porventura, em todas as situaçõ
se não verifique essa exploração da necessidade económica (ou de vulnerabilidade) do agente que s
Nesta linha de raciocínio, entendo que a conduta tipicamente descrita não resiste ao teste da n
dada a fragilidade do nexo entre a conduta que é descrita e o bem jurídico que a norma pretende
outro lado, neste contexto, o apelo direto à dignidade da pessoa humana, enquanto princípio prescr
impõe uma especial atenção para a necessidade de tutela de situações de especial vulnerabilidade, c
uma especial consideração pela própria liberdade e autodeterminação sexual do agente que se p
nesse sentido, a norma de incriminação afetará, de forma desproporcional, o direito ao exer
liberdade, em violação dos artigos 18.º, n.º 2, e 27.º, n.º 1, da Constituição, o que legitima u
inconstitucionalidade do artigo 169.º, n.º 1 do Código Penal.