Acórdão N
Acórdão N
Acórdão N
º 144/2004
Proc. nº 566/2003
2ª Secção
Rel.: Consª Maria Fernanda Palma
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional
I
Relatório
1. A. foi condenada pelo Tribunal Judicial de Viana do Castelo na pena de um
ano de prisão, suspensa por dezoito meses mediante a condição de entregar à instituição
“B.” a quantia de € 1.500,00 (mil e quinhentos euros) pela prática de um crime de
lenocínio previsto e punido no artigo 170º, nº 1, do Código Penal. Dessa decisão
recorreu a arguida para o Tribunal da Relação de Guimarães, invocando, entre o mais,
que o artigo 170º, nº 1, do Código Penal, é inconstitucional por “limitar e condicionar a
consciência pessoal e a liberdade de escolher livremente a profissão ou o género de
trabalho”, violando os artigos 41º, nº 1 e 47º, nº 1, da Constituição.
O Ministério Público junto do Tribunal Judicial de Viana do Castelo, em
resposta ao recurso sustentou a não inconstitucionalidade do referido artigo 171º do
Código Penal, concluindo o seguinte:
– o crime de lenocínio não pune a própria prática da prostituição, mas
sim toda aquela conduta que fomenta, favorece e facilita tal prática,
com intenção lucrativa ou profissionalmente;
– a ser assim, não viola o art. 171.º do CP qualquer normativo
constitucional, mormente os arts. 41.º e 47.º da CRP invocados pela
recorrente;
– ao condenar a arguida em pena de prisão, suspensa na sua execução,
mas subordinada ao cumprimento de um dever, o Mmo. Juiz a
quo teve em conta as finalidades da punição, atendendo, no presente
caso, à protecção da própria pessoa que se dedica à prática da
prostituição e que acaba por ser explorada por outrem;
– pelo exposto, entendemos que bem andou o Mmo juiz ao condenar a
arguida da prática do crime pelo qual vinha acusada devendo, pois,
negar-se provimento ao recurso e manter-se, na íntegra, a decisão
recorrida.
O Ministério Público junto do Tribunal da Relação de Guimarães juntou parecer
nos termos do qual o recurso não merecia provimento, afirmando, no que concerne à
questão de constitucionalidade suscitada, que “o que está em causa não é a liberdade de
escolha da profissão, a não ser que seja profissão viver à custa de outras pessoas,
nomeadamente explorando a sua prostituição ...”.
O Tribunal da Relação de Guimarães rejeitou o recurso, expressando-se do
seguinte modo sobre a questão de constitucionalidade:
Seja qual for o bem jurídico tutelado na norma em apreço, a
conclusão que a recorrente formula está sempre errada. Pela simples
razão de que, em qualquer circunstância, é censurável - ética e
juridicamente censurável - o aproveitamento intencionalmente lucrativo
de uma determinada condição de outra pessoa e em especial da
prostituição.
Não se trata de um mero exercício comercial, com sinalagmatismo
de prestações: trata-se, isso sim, de uma actividade que viola valores da
comunidade e concepções ético-sociais dominantes e que assim se
manterá, seja qual for a solução que se vier a tomar sobre o problema
social em causa, enquanto tal actividade fomentar, favorecer ou
facilitar a degradação pessoal de um indivíduo.
Para a recorrente, ao menos em matéria sexual, não existe uma
teoria constitucional dos direitos fundamentais: a sua regra é a do “vale
tudo”!
Ora, ao contrário do que pensa, os direitos fundamentais não têm
autonomia individual, em que é o indivíduo que decide ou não do seu
uso, sem qualquer controle do seu valor ou desvalor pelo Direito
(Teorias Liberais), mas antes são opções constitucionais de valor
(Teorias dos Valores), traduzidas em princípios objectivos que elegem
sentimentos comunitariamente estabelecidos e onde a liberdade
individual apenas se realiza pela conformação com tais sentimentos,
controlada pelo Direito.
Como diz o Sr. Procurador da República-Adjunto, “o preceito não
pune a prostituição!. Esta é ainda uma profissão livre! O que se pune
é o fomentar, o favorecer ou o facilitar oexercício da
prostituição, profissionalmente ou com intencão lucrativa”.
Ou como realça o Sr. Procurador-Geral Adjunto, para quem não é
para condutas como a da arguida que a Constituição dá liberdade de
escolha de profissão: “...o que está em causa não é a liberdade de
escolha da profissão, a não ser que seja profissão viver à custa de
outras pessoas, nomeadamente explorando a sua prostituição”.
Aliás, a seguir-se a concepção de liberdade de escolha que a
recorrente propõe, a Mafia, em geral, ou, em especial, as actuais
“Mafias de Leste”, que vivem da exploração de parte dos salários de
imigrantes, devem ser consideradas como altruístas “Centros de
Emprego”!
A elaboração da recorrente é mais que bizarra, como lhe chama o
Sr. PGA, é reveladora do enorme desvalor (a “consciência
pessoal” que a arguida invoca) que ela tem pelas pessoas que lhe
proporcionavam o ganho desonesto e que, afinal, nem terá sido
devidamente ponderado para a medida da pena e para a ponderação do
benefício da suspensão da sua execução.
É que, e com isto se aborda a segunda questão levantada no
recurso, a condição imposta emerge exactamente de um benefício que o
Mmo Juiz resolveu dar à arguida e cuja fundamentação não carece de
ser expressa.
Assim sendo, e considerando também a natureza do crime em
apreço e os proventos presumidos, é natural que se lhe impusesse um
relativo ónus.
Afinal, considerando, pelo menos, duas profissionais, a uma
média de cinco relações sexuais por dia, em escassos seis dias a arguida
“ganhava”
os € 1.500,00!
2. Em face do acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Guimarães, veio a
arguida recorrer para o Tribunal Constitucional ao abrigo do artigo 70º, nº 1, alínea b),
da Lei do Tribunal Constitucional, sustentando a inconstitucionalidade da norma
contida no nº 1 do artigo 170º do Código aprovado pelo Decreto-Lei nº 400/82, com as
alterações que lhe foram introduzidas pelo Decreto-Lei nº 48/95 e pela Lei nº 65/98, de
2 de Setembro.
Tendo sido determinado por despacho da Relatora que alegasse, veio a
recorrente apresentar as suas alegações sustentando o seguinte:
Entramos, pois, no campo da moralidade e do pudor.
Modestamente entendemos (e nisso não estamos sós, veja-se a
propósito as considerações do Prof. Figueiredo Dias, citado no
comentário conimbricense ao art.º 170° do Código Penal) que a
incriminação que é feita pelo n° 1 do art.º 170° do C.P. pretende
defender sentimentalismos transpessoais, não tendo, como deveria ter,
em primeira linha, os bens de natureza pessoal.
O Direito criminal não deveria ter por fim o defender valores de
ordem moral, mas sim, e tratando-se de um “crime contra as pessoas”
defender interesses eminentemente pessoais, tais como, a liberdade e
autodeterminação sexual.
A actual redacção do n° 1 do art.º 170° do C.P. ao invés de
diminuir o leque de situações incriminadas que têm um forte pendor
moral, veio aumentá-las, pois retirou dos elementos a exploração de
situações de abandono ou de necessidade económica.
Há até quem defenda que este crime - lenocínio - tal como está
previsto é um crime sem vítima, pois não protege ninguém em concreto;
defendendo, antes, interesses de cariz sentimentalista.
A previsão legal, ao criminalizar, como o faz, a conduta de
quem profissionalmente ou com intenção lucrativa, fomentar,
favorecer ou facilitar o exercício da prostituição ou actos sexuais de
relevo, parece estar a tolher direitos de outras pessoas.
Note-se que, não é punível criminalmente quem fomentar,
favorecer ou facilitar o exercício da prostituição ou actos sexuais de
relevo.
Além de ser controversa a criminalização de condutas, entre
adultos, de práticas de natureza sexual que ofendam apenas a
moralidade e pudor público, parece-nos que tal criminalização fere
direitos constitucionalmente garantidos, como o fere a inclusão da
referência a “profissionalmente ou com intenção lucrativa”.
Temos por assente que nem a prática da prostituição, nem a
prática de actos sexuais de relevo, com adultos, nem o seu
favorecimento, fomento ou facilitação é criminalmente punível.
Porque o será que tais práticas serão apenas puníveis quando são
exercidas profissionalmente e com intenção lucrativa ???
Apesar de do ponto de vista da moral social e da defesa dos bens e
valores da sociedade até entendermos a relutância da lei em permitir
profissionalmente a exploração comercial de actividades ligadas à
prostituição, comercialmente a prostituição, como o permitem já várias
legislações europeias, a verdade é que do ponto de vista estritamente
técnico-jurídico, não concordamos com tal incriminação.
Ao criminalizar-se quem exerce uma actividade comercial que
tem por base a prostituição ou “actos similares”, quando pode ser
exercida pelo próprio ou por terceiro (este sem intuito lucrativo) parece
estar a privar-se o cidadão de exercer uma actividade profissional, por
imposição de regras e princípio morais.
Parece-nos, salvo o devido respeito por outras opiniões que as
limitações impostas pela norma do n° 1 do artigo 170° do C.P. pode
conflituar e restringir (nos termos do previsto no n° 2 do artigo 18°
da C.R.P) o direito à liberdade de consciência, bem como o direito de
livre escolha de profissão.
Concluindo:
1 - A norma contida no n° 1 do artigo 170° do Código Penal
pode violar o preceituado nos artigos 41 ° e 47° n° 1, conjugados
com o n° 2 do artigo 18° da Constituição da República Portuguesa.
2 - As decisões judiciais que aplicaram a norma do n° 1 do
artigo 170° do C.P. devem ser revogadas, por aplicação de norma
inconstitucional.
3 - A arguida deverá ser absolvida.
O Ministério Público junto do Tribunal Constitucional contra-alegou
propugnando a não inconstitucionalidade da norma sub judicio. Concluiu as suas
alegações nos seguintes termos:
1 - O crime de lenocínio do artigo 170° n° 1 do Código Penal
visa a protecção de um bem jurídico complexo, que abarca o interesse
geral da sociedade relativo à postura sexual e ao ganho honesto, como
também a personalidade de quem seja visado pela conduta do agente.
2 - O seu sancionamento penal não representa qualquer violação
do princípio da proporcionalidade consagrado no artigo 18° n° 2 da
Constituição, gozando nesta matéria o legislador ordinário de uma
ampla discricionariedade.
3 - Na incriminação do lenocínio não é posto em causa o carácter
subsidiário do direito penal, nem se configura como excessiva a
restrição imposta a qualquer direito ou expressão de liberdade, com
protecção constitucional, do agente da infracção penal.
4 - Não deverá assim, proceder o presente recurso.
Tudo visto, cumpre decidir.
II
Fundamentação
4. Está em causa, no presente processo, a eventual inconstitucionalidade da
norma contida no artigo 170º, nº 1, do Código Penal, por violação dos artigos 41º e 47º,
nº 1, conjugados com o artigo 18º, nº 2, da Constituição.
Tem o citado artigo 170º, nº 1, do Código Penal, o seguinte teor:
Quem, profissionalmente ou com intenção lucrativa, fomentar,
favorecer ou facilitar o exercício por outra pessoa de prostituição ou a
prática de actos sexuais de relevo é punido com pena de prisão de 6
meses a 5 anos.
5. O ponto de vista que a recorrente apresenta ao Tribunal Constitucional
consubstancia-se no seguinte:
– os bens jurídicos protegidos pela norma em crise são, em primeira linha,
“sentimentalismos transpessoais”, valores de ordem moral e não bens
pessoais como a liberdade e autodeterminação sexual;
– não sendo a prostituição em si punível, incriminar-se a actividade
comercial ou lucrativa que tem por base a prostituição ou “actos
similares” corresponde a privar os cidadãos de exercer uma actividade
profissional por imposição de regras morais.