A Extincao de Misericordias No Seculo X

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A Misericórdia .

Edições Colibri
. C. M. Torres Vedras . Inst. Alexandre Herculano, 2022, pp. 75-85

A extinção de misericórdias no século XIX.


O caso da Santa Casa de Abiul

Ricardo Pessa de Oliveira*

1. As linhas gerais sobre a história das misericórdias portuguesas do século XIX,


período para o qual continuam a faltar estudos, foram já traçadas por Maria Antónia
Lopes em diversos textos, com destaque para os capítulos que escreveu para os Portuga-
liae Monumenta Misericordiarum1. Nessa centúria acentuou-se a intervenção do poder
central sobre estas instituições, desde logo, com a publicação do alvará de 18 de outubro
de 1806, que, entre outros aspetos, estipulou que os provedores de comarca, corregedores
ou juízes de fora tomassem contas às misericórdias, o que além de coartar a sua
autonomia, constituiu mais uma despesa2. Mais tarde, em 1835, os governadores civis
passaram a fiscalizar as contas destas instituições e, no ano seguinte, os administradores
do concelho também adquiriram competências na matéria3. Atas de eleições, compromis-

* Universidade de Lisboa, Faculdade de Letras, Centro de Literaturas e Culturas Lusófonas e Europeias.


Instituto Europeu de Ciências da Cultura Padre Manuel Antunes. ricardo_pessaoliveira@sapo.pt
1 Maria Antónia Lopes, “As Misericórdias de D. José ao final do século XX”, Portugaliae Monumenta
Misericordiarum, vol. 1, Fazer a História das Misericórdias, coordenação científica de José Pedro
Paiva, Lisboa, União das Misericórdias Portuguesas, 2002, pp. 86-94; Maria Antónia Lopes, José
Pedro Paiva, “Introdução”, Portugaliae Monumenta Misericordiarum, coordenação científica de José
Pedro Paiva, vol. 7, Sob o signo da mudança: de D. José a 1834, direção científica de Maria Antónia
Lopes e José Pedro Paiva, Lisboa, União das Misericórdias Portuguesas, 2008, pp. 7-36; Maria
Antónia Lopes, José Pedro Paiva, “Introdução”, Portugaliae Monumenta Misericordiarum, coorde-
nação científica de José Pedro Paiva, vol. 8, Tradição e Modernidade: o período da monarquia
constitucional (1834-1910), direção científica de Maria Antónia Lopes e José Pedro Paiva, Lisboa,
União das Misericórdias Portuguesas, 2010, pp. 7-30. Consulte-se ainda Maria Marta Lobo de Araújo,
A Misericórdia de Vila Viçosa: de finais do Antigo Regime à República, Vila Viçosa, Santa Casa da
Misericórdia de Vila Viçosa, 2010; José Viriato Capela e Maria Marta Lobo de Araújo, A Santa Casa
da Misericórdia de Braga 1513-2013, Braga, Santa Casa da Misericórdia de Braga, 2013; Saul
António Gomes e Kevin Careira Soares, A Santa Casa da Misericórdia de Porto de Mós: 500 Anos de
História, Porto de Mós, Santa Casa da Misericórdia de Porto de Mós, 2016; Célia Reis, A Misericór-
dia de Torres Vedras (1520-1975), Torres Vedras, Santa Casa da Misericórdia de Torres Vedras,
2016; Sob o Manto da Misericórdia. Contributos para a História da Santa Casa da Misericórdia do
Porto, coordenação de Inês Amorim, vols. 2 e 3, Coimbra, Almedina, 2018. Seja-nos ainda permitido
referir os livros da nossa autoria sobre as Santas Casas de Abiul, de Pombal e da Redinha, cf. Ricardo
Pessa de Oliveira, História da Santa Casa da Misericórdia de Pombal (1628-1910), Pombal, Santa
Casa da Misericórdia de Pombal, 2016; Idem, A Misericórdia de Abiul: Fragmentos da sua História
(1592-1870), Abiul, Associação Amigos de Abiul, 2019; Idem, A Santa Casa da Misericórdia da
Redinha (1642-1975), Redinha, Santa Casa da Misericórdia da Redinha, 2022 (no prelo).
2 Maria Antónia Lopes, José Pedro Paiva, “Introdução”, Portugaliae Monumenta Misericordiarum […],
vol. 7, p. 12.
3 Maria Antónia Lopes, José Pedro Paiva, “Introdução”, Portugaliae Monumenta Misericordiarum […],
vol. 8, p. 8.

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Ricardo Pessa de Oliveira

sos (por decreto de 22 de outubro de 1868), contas, mapas de doentes e orçamentos tudo
tinha de ser submetido à aprovação do Governo Civil do respetivo distrito, que passou a
ter, entre outros mandos, capacidade legal de destituir as Mesas eleitas e de nomear
comissões administrativas, cenário a que poucas misericórdias escaparam, por vezes
durante longos períodos4. O século XIX, sobretudo a sua segunda metade, ficou também
marcado pela publicação de novos e inovadores compromissos, que apresentaram
diversas novidades que passaram pela abolição do numerus clausus e da distinção entre
irmãos de primeira e de segunda condição, pela possibilidade de admissão de menores
emancipados e de mulheres (imposta por portaria de 6 de dezembro de 1872), por elei-
ções diretas, pela redução do número de membros que compunham a Mesa e pela
atualização da sua nomenclatura, transformações que, ainda assim, não ocorreram em
todas as misericórdias5. No decurso de Oitocentos, os gastos com o culto tenderam a
diminuir. Subsistiram formas de assistência tradicional, como a concessão de cartas de
guia a viandantes pobres ou o enterro dos mortos, mas também foram criados novos
serviços ou áreas de intervenção, como o apoio ao ensino primário, acentuando-se, toda-
via, a tendência para considerar o serviço hospitalar a sua principal incumbência, fazen-
do-se notar um investimento na melhoria ou na construção de novas instalações
hospitalares6. Embora tenham sido criadas outras instituições, caso dos asilos de infância
desvalida, as Santas Casas continuaram a ser consideradas fundamentais e a ocupar a
primazia no domínio da assistência à pobreza. A lei de 22 de junho de 1866 que estendeu
às misericórdias a desamortização do património não necessário às atividades pias e
beneficentes foi outro dos aspetos marcantes dessa centúria, ainda que o seu verdadeiro
impacto permaneça por apurar7. Refira-se, por fim, que, se foram criadas 34 novas miseri-
córdias (sem contar com as cinco instituídas no Brasil, entre 1802 e 1816), foram também
várias as que foram extintas ou que estiveram na iminência de o ser, aspeto que não tem
merecido a devida atenção por parte da historiografia. É precisamente este o objeto deste
estudo que pretende analisar o caso concreto da Misericórdia de Abiul8.

2. A 28 de agosto de 1869, um alvará do governador civil do distrito de Leiria extin-


guiu esta Santa Casa, supressão que apenas seria consumada em julho do ano seguinte.
Saliente-se, desde já, que a decisão de extinguir uma misericórdia não era inédita e a de
suprimir esta em particular não terá causado grande surpresa. Com efeito, já na segunda
metade do século XVIII haviam sido eliminadas algumas misericórdias e as propostas
para abolir a de Abiul, fundada em 1592, remontavam à década de 18509.

4 Sobre o assunto cf. Maria Antónia Lopes, “As Misericórdias como palcos de luta partidária e
instrumentos de domínio político (1834-1945)”, Congresso Internacional 500 anos de História das
Misericórdias. Atas, coordenação de Bernardo Reis, Braga, Santa Casa da Misericórdia de Braga,
2014, pp. 239-258; Ana Isabel Coelho Silva, “A norma e o desvio: história da evolução dos compro-
missos das misericórdias portuguesas”, Portugaliae Monumenta Misericordiarum, coordenação de
José Pedro Paiva, vol. 10, Novos Estudos, Lisboa, União das Misericórdias Portuguesas, 2017, p. 69.
5 Maria Antónia Lopes, José Pedro Paiva, “Introdução”, Portugaliae Monumenta Misericordiarum […],
vol. 8, pp. 17-19; Ana Isabel Coelho Silva, “A norma e o desvio […]”, pp. 69-71.
6 Maria Antónia Lopes, José Pedro Paiva, “Introdução”, Portugaliae Monumenta Misericordiarum […],
vol. 8, pp. 21-22.
7 Isabel dos Guimarães Sá, Maria Antónia Lopes, História Breve das Misericórdias Portuguesas 1498-
-2000, Coimbra, Imprensa da Universidade de Coimbra, 2008, pp. 90-92.
8 Nas páginas seguintes retoma-se, em grande medida, o que se escreveu em Ricardo Pessa de Oliveira,
A Misericórdia de Abiul […], pp. 175-187.
9 Se na metrópole as primeiras extinções datam de 1775, em territórios ultramarinos, com a retração do

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A extinção de misericórdias no século XIX. O caso da Santa Casa de Abiul

Em 1775, nove misericórdias dos coutos de Alcobaça (Aljubarrota, Alvorninha, Cela,


Cós, Évora, Maiorga, Pederneira, Santa Catarina e Turquel), haviam sido extintas e ane-
xadas à daquela vila, com o propósito de suportar um hospital capaz de socorrer todos os
doentes pobres daquele território10. Mais tarde, em 1829, na ilha Terceira, o conde de Vila
Flor, capitão geral da Província de Angra, ordenou a extinção das misericórdias de São
Sebastião e de Vila Nova, alegando má administração e ausência de serviços relevantes,
pretendendo incorporar os seus bens na câmara de Angra e canalizar as suas rendas para a
criação de enjeitados11. Conhece-se a reação de protesto da de São Sebastião que
sobreviveu, mas que terá acabado por ser extinta por alvará de 17 de maio de 1860, ainda
que posteriormente reativada12. No período da monarquia constitucional, com a intensifi-
cação da intervenção do Estado nos estabelecimentos de beneficência, várias misericór-
dias, por proposta dos governadores civis de distrito, estiveram na iminência de ser extin-
tas e algumas foram-no de facto, estando ainda por fazer esse levantamento 13. Além do
caso específico da Misericórdia de Lisboa, que, em 1834, deixou de ser uma irmandade
para passar a ser um organismo do Estado, sabe-se, por exemplo, que, em 1848, no
distrito de Castelo Branco houve tentativas de suprimir as que não asseguravam serviços
sociais relevantes14; que, em 1866, o governador civil de Faro pensou em extinguir a de
Odeceixe, por insuficiência de irmãos e de rendimentos15; e que, no ano seguinte, o
governador civil do distrito do Funchal, que já havia tentado extinguir a da Calheta,
reafirmou que a única forma de empregar convenientemente os recursos daquela insti-
tuição era suprimindo-a e repartindo os seus bens entre a congénere do Funchal, onde
eram tratados os doentes pobres de todo o distrito, e o asilo de mendicidade, que também
admitia inválidos de toda a ilha16. Mencione-se ainda que, em 1868, o governador civil de
Évora ameaçou extinguir a Misericórdia de Mora se não se fizessem eleições nesse ano 17.
Também no distrito de Leiria se defendeu ou pensou a extinção de várias misericór-
dias, designadamente a de Abiul, Aljubarrota, Batalha, Louriçal, Pederneira, Porto de
Mós e Redinha. Em junho de 1854, o governador civil de Leiria, António Vaz da Fonseca
e Melo, em relatório lido à Junta Geral do Distrito, referindo-se aos estabelecimentos de
beneficência, defendeu que:

Estado da Índia, várias misericórdias já haviam sido desativadas, cf. Isabel dos Guimarães Sá,
As Misericórdias Portuguesas de D. Manuel I a Pombal, Lisboa, Livros Horizonte, 2001, p. 46.
10 No reinado de D. Maria I, a de Aljubarrota e a da Pederneira conseguiram reverter a situação e
obtiveram alvará de desanexação e restituição dos seus bens e pertences, cf. Francisco Baptista
Zagalo, Historia da Misericordia de Alcobaça. Esboço historico desta Misericordia desde a sua
fundação até á actualidade, Alcobaça, Tipografia de António M. d’Oliveira, 1918, pp. 193-214.
11 Portugaliae Monumenta Misericordiarum […], vol. 7, pp. 21 e 507-509.
12 Informação colhida em http://www.vilassebastiao.com/index.php?abrir=1.2.4 (consultado a 4 de abril
de 2021).
13 No final do século XIX, Costa Goodolphim apresentou uma listagem das misericórdias extintas no
distrito de Leiria, mas a mesma contém vários erros, cf. Costa Goodolphim, As Misericordias,
Lisboa, Imprensa Nacional, 1897, p. 228.
14 Portugaliae Monumenta Misericordiarum […], vol. 8, pp. 529-531.
15 Portugaliae Monumenta Misericordiarum […], vol. 8, p. 546.
16 Portugaliae Monumenta Misericordiarum […], vol. 8, p. 567.
17 Maria Antónia Lopes, “A luta pelo domínio das Misericórdias: da Monarquia Liberal ao Estado
Novo (1834-1945)”, Portugaliae Monumenta Misericordiarum, coordenação de José Pedro Paiva,
vol. 10, Novos Estudos, Lisboa, União das Misericórdias Portuguesas, 2017, p. 409.

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Ricardo Pessa de Oliveira

“uma das necessarias medidas para este ramo administrativo se regularizar, é a reu-
nião das mizericordias pequenas ás de maiores rendimentos. Devendo esta medida ser
sugeita ao conhecimento de Sua Magestade, proponho-a á vossa consideração,
persuadindo de que devem ser incorporadas, a mizericordia da Batalha á de Leiria, a
de Aljubarrora á de Alcobaça, as do Louriçal, da Redinha e de Abiul á de Pombal”18.

Dias depois, no seguimento desta exposição, a Junta Geral aprovou a proposta e, no


caso que nos interessa, confirmou a intenção de unir as misericórdias de Abiul, do Louri-
çal e da Redinha à de Pombal, ainda que o concelho louriçalense não fosse extinto19. Em
novembro de 1854, essa proposta foi remetida em consulta ao monarca, mas muito prova-
velmente terá sido rejeitada porquanto não existia legislação que consentisse extinguir
uma irmandade com o pretexto da falta de rendimentos20.
Seja como for, continuou a defender-se aquela solução. Em obra publicada no ano
seguinte, D. António da Costa de Sousa de Macedo, secretário-geral do distrito de Leiria,
ao verificar a enorme desproporção entre os rendimentos das misericórdias daquele
distrito, afirmou ser “inadmissivel que hajam misericordias com receitas annuaes de 15 a
30 mil réis unicamente”21. Reportava-se claramente à de Abiul que, segundo os dados por
si compulsados, tivera um rendimento de 15 730 réis, o mais baixo das 14 misericórdias
do distrito. Para o autor era imperioso anexar as Santas Casas mais modestas às de maio-
res cabedais, tal como proposto pela Junta Geral22.
Em agosto de 1858, foi a vez de Manuel de Santa Ana Cruz, administrador do conce-
lho de Pombal, referindo-se às limitações do hospital administrado pela Santa Casa
daquela vila, voltar a apelar não só à reunião das quatro misericórdias existentes na sua
área de jurisdição, mas também à de algumas confrarias paroquiais:

“Neste concelho á hoje quatro mizericordias, é verdade que com piquenos rendi-
mentos, mas todas ellas reunidas á de Pombal com algumas confrarias podem talvez
dar um contingente com que possa formar-se um estabelecimento, onde aquelles
infelizes [doentes pobres] achem senão todo, pelo menos o possivel lenitivo para os
males que os affligem, e que a humanidade reclama se preste”23.

Mais uma vez, a ideia centralizadora não passou do papel e foi necessário esperar dez
anos para que fosse, em parte, colocada em prática, o que evidencia que o assunto era
complexo, pouco consensual e esbarrava na legislação em vigor. Pese não termos locali-
zado qualquer documento que comprove resistência a esse desígnio, é óbvio que tal
possibilidade desagradava às elites locais que sempre haviam dominado estas instituições
e que, após a extinção dos respetivos concelhos, tinham na misericórdia local o derradeiro

18 O Leiriense, n.º 5, de 15 de julho de 1854.


19 Leiria, Arquivo Distrital de Leiria (doravante ADL), Junta Geral do Distrito de Leiria, Atas (1842-
-1854), VI-48-A-1, fl. 89v. Os concelhos de Abiul e da Redinha haviam sido extintos em 1836,
enquanto o do Louriçal acabou por ser extinto, pelo decreto de 24 de outubro de 1855. O território
desses antigos concelhos foi integrado no de Pombal, cf. Joaquim Eusébio, Pombal – 8 Séculos de
História, 2.ª edição, Pombal, Câmara Municipal de Pombal, 2007, p. 178.
20 O Leiriense, n.º 68, de 24 de fevereiro de 1855.
21 António da Costa de Sousa de Macedo, Estatistica do Districto Administrativo de Leiria, Leiria,
Tipografia Leiriense, 1855, p. 238.
22 António da Costa de Sousa de Macedo, Estatistica do Districto […], p. 238.
23 Leiria, ADL, Governo Civil, Correspondência de Administradores do Concelho, -1-III-47-E-1, doc.
avulso.

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A extinção de misericórdias no século XIX. O caso da Santa Casa de Abiul

centro de poder. Desejavam, claro está, continuar a administrar a sua irmandade (ainda
que, cada vez mais, controlados e vigiados pelos representantes do poder central), a ter
acesso privilegiado ao crédito da mesma, a exercer domínio sobre a vida de diversas
pessoas e a gozar do capital simbólico que a pertença e a liderança destas instituições
continuavam a garantir.
Como se denota na proposta do administrador do concelho de Pombal, a ideia não
passava apenas pela extinção e união das misericórdias, mas também das confrarias
sediadas na matriz da vila, cujas despesas eram quase em exclusivo canalizadas para o
culto religioso. Foi precisamente por essas que se começou. A 22 de dezembro de 1868, o
governador civil de Leiria extinguiu, de uma assentada, as confrarias paroquiais das
Almas e de Nossa Senhora do Rosário e também a Ordem Terceira do Carmo da vila de
Pombal (geridas, desde 1860, por uma comissão administrativa) estipulando, posterior-
mente, que os seus bens fossem incorporados na Misericórdia pombalense. Subsistiu
apenas a do Santíssimo Sacramento que, à época, contava com 34 irmãos que concorda-
ram reconstruir legalmente a confraria, elaborando novo texto normativo 24. Oito meses
depois, o mesmo magistrado decretou a supressão da Santa Casa de Abiul, mas não a do
Louriçal nem a da Redinha que, aliás, continuam em funcionamento.
A questão que se coloca é o porquê de apenas ter sido extinta a Misericórdia de Abiul?
Conforme supradito, na década de 1850, advogava-se suprimir, além das do concelho de
Pombal e da do Louriçal, várias Santas Casas do distrito leiriense, designadamente a de Alju-
barrota, a da Batalha e a de Pederneira. Ao que parece, as três últimas terão registado melho-
rias na sua administração. Em setembro de 1855, D. António da Costa louvou publicamente
os progressos ocorridos nas da Pederneira e de Porto de Mós, escrevendo, a propósito desta
última, que teria “verdadeira pena de ver anexada a outra a mizericordia de Porto de Moz”25.
Pouco depois, em junho de 1856, o governador civil, António Vaz da Fonseca e Melo,
afirmou que as Santas Casas dos concelhos de Alcobaça, Batalha e Pederneira haviam
melhorado muito a sua administração, conquanto continuasse a advogar a incorporação das
“de pequenos rendimentos a outras maiores que lhes ficaram mais proximas”26.
Quanto às misericórdias de Abiul, do Louriçal e da Redinha nada foi referido. Pode-
ríamos apontar vários motivos para a extinção da primeira e para a conservação das duas
últimas, designadamente a localização geográfica, a população das respetivas freguesias,
as rendas que financiavam as diferentes irmandades, os socorros que efetivamente
prestavam e, sobretudo, o número de membros que as compunham.
Segundo o censo de 1864, o Louriçal era a freguesia mais populosa do concelho de
Pombal. O seu número de fogos (1128) e o de habitantes (5182) era superior ao registado
na freguesia sede de concelho que, em 1847, fora reduzida em território e em população
com a criação de uma nova freguesia. Se pensarmos que a Misericórdia do Louriçal
socorria igualmente os pobres da freguesia vizinha da Mata Mourisca, que pertencera ao
extinto concelho louriçalense, verifica-se que servia uma população de 7347 indivíduos27.

24 Leiria, ADL, Governo Civil, Registo de Alvarás, -1-III-55-A-2 [Livro de Registo de Alvarás (1862-
-1880), fls. 29-31].
25 O Leiriense, n.º 122, de 5 de setembro de 1855. Sobre a Misericórdia porto-mosense cf. Saul António
Gomes, Kevin Carreira Soares, A Santa Casa da Misericórdia de Porto de Mós […].
26 O Leiriense, n.º 204, de 28 de junho de 1856. Refira-se que a Santa Casa da Pederneira, embora
viesse a ser definitivamente extinta em 1877, tinha receitas mais elevadas do que a de Pombal. Em
1852, a primeira registou um rendimento ordinário de 359 699 réis e a segunda apenas de 184 023
réis, cf. António da Costa de Sousa de Macedo, Estatistica do Districto […], p. 237.
27 Em maio de 1883, um ofício da Santa Casa de Pombal para o administrador dos hospitais da Univer-

A MISERICÓRDIA 79
Ricardo Pessa de Oliveira

As freguesias de Abiul e da Redinha ficavam muito aquém destes cômputos. A primeira


contava 526 fogos e 2413 habitantes e a segunda 497 fogos e 2040 habitantes. Logo, se o
fator população poderia ter pesado na decisão de manter a Santa Casa do Louriçal o
mesmo não teria sucedido no caso da congénere da Redinha28. Pelo contrário, poderíamos
admitir que a localização geográfica desta última tivesse favorecido a sua manutenção já
que a Redinha, tal como Pombal, era servida pela estrada real que ligava Coimbra a
Lisboa, pelo que o número de pobres que circulava entre misericórdias e que, natural-
mente, passava pela vila era bastante considerável, sobretudo entre agosto e novembro,
período de maior afluência de doentes ao hospital termal das Caldas da Rainha.
Por outro lado, a receita e a despesa das Misericórdias do Louriçal e da Redinha eram
significativamente mais elevadas do que as da congénere de Abiul29. Excluindo os valores
apresentados por António da Costa de Sousa de Macedo, não dispomos de dados para o
período em que a última estava ativa, mas em 1884/85, a irmandade da Redinha teve uma
receita de 219 638 réis e uma despesa de 190 570 réis30. Enquanto, para o mesmo ano
económico, a Misericórdia do Louriçal previu arrecadar 76 750 réis e despender 67 200
réis, acabando por gastar somente 49 700 réis31. No que toca à assistência à pobreza a da
Redinha despendeu um total de 58 796 réis (30,9 por cento da despesa) e a do Louriçal
35 460 réis (71,4 por cento). Não restam dúvidas de que o número de pobres socorridos por
estas duas irmandades era superior ao dos auxiliados pela Santa Casa de Abiul. Em 1870,
referiu-se que a da Redinha mantinha uma casa onde concedia hospedagem aos pobres em
trânsito e que, além de prestar assistência aos mortos, atribuía esmolas e remédios a doentes
pobres tratados ao domicílio, socorrendo anualmente 150 pessoas “incluindo pobres, que

sidade de Coimbra esclareceu existirem três misericórdias no concelho. A de Pombal socorria os


pobres das freguesias de Abiul, Almagreira, Pelariga, Pombal, Santiago de Litém, São Simão de
Litém, Vermoil e Vila Cã. A do Louriçal os das freguesias do Louriçal e da Mata Mourisca. A da
Redinha somente os da sua freguesia, cf. Pombal, Arquivo da Santa Casa da Misericórdia de Pombal
(doravante ASCMP), Registo da correspondência expedida pela Misericórdia de Pombal (1875-
-1935), fls. 51-52.
28 João da Costa Brandão e Albuquerque, Censo de 1864. Relação das freguezias do Continente e Ilhas.
População, sexos, fogos. Divisão civil, militar, judicial e ecclesiastica, Lisboa, Tipografia da Gazeta
de Portugal, 1866, p. 85.
29 Em 1852, a primeira teria tido receitas no valor total de 89 935 réis e a segunda de 103 369 réis,
enquanto a de Abiul, como já verificámos, se ficará pelos 15 730 réis, cf. António da Costa de Sousa
de Macedo, Estatistica do Districto […], p. 237.
30 A receita compreendeu saldo do ano antecedente 126 518 réis, juros de inscrições 43 500 réis, juros
de capitais mutuados 9240 réis, venda de foros 5540 réis, rendimento de bens próprios não
arrendados 7840 réis, venda de casas 1000 réis, recebido de dívidas ativas 17 145 réis e um donativo
no valor de 8855 réis. Por sua vez, foram despendidos 118 mil réis em capital mutuado, 44 326 com
remédios a pobres, 14 470 réis com esmolas aos mesmos, 8 mil réis com o ordenado do andador,
3501 réis com contribuições, 1308 réis com expediente e 965 réis com cera para a igreja da Santa
Casa, cf. Leiria, ADL, Governo Civil, Licenciamento e Fiscalização, Santa Casa da Misericórdia da
Redinha, -1-III-74-D-5.
31 A diferença explica-se, sobretudo, pelo facto de não ter tido lugar a procissão e o sermão de quinta-
-feira santa, em virtude de o pregador ter adoecido. A receita estimada compreendeu 6610 réis
relativos ao saldo do ano anterior, 56 240 réis de juros de capitais mutuados, 11 200 réis de dívidas
ativas a cobrar, 1500 réis da renda de uma loja e 1200 réis de foros a dinheiro. Quanto à despesa real,
foram gastos 16 mil réis com receituário a pobres, 14 950 réis com esmolas, 4510 réis com a
condução de pobres, 5860 réis com a festividade da Visitação, 3755 réis com azeite e cera, 3425 réis
com expediente e 1200 réis com o ordenado do andador, cf. Leiria, ADL, Governo Civil, Licencia-
mento e Fiscalização, Santa Casa da Misericórdia do Louriçal, -1-III-74-D-4.

80 A MISERICÓRDIA
A extinção de misericórdias no século XIX. O caso da Santa Casa de Abiul

transitam com penas, e outros, que vão a banhos das Caldas”32 e a do Louriçal afirmou
socorrer aproximadamente cem indivíduos por ano, com esmolas e remédios 33.
Por último, mas, como teremos oportunidade de verificar, mais importante, o número
de irmãos das Misericórdias do Louriçal e da Redinha era também superior ao da irman-
dade abiulense. Em 1892, a primeira era constituída por 62 irmãos, enquanto a segunda
afirmou contar com 56 membros (embora quatro estivessem ausentes e outros tantos
tivessem já falecido).

3. O alvará de 28 de agosto de 1869, já referido neste texto, acusou a Santa Casa de


Abiul de ter cometido várias irregularidades. Segundo o documento, o estado de adminis-
tração da irmandade era deplorável: há muitos anos que não eram remetidos orçamentos
nem prestadas contas e a escrituração estava desorganizada. A ação do anterior provedor,
Gerardo António da Costa (1791-1864), que dominara a instituição durante 27 anos
consecutivos, entre 1837/38 e 1863/64, foi alvo de duras críticas que, por certo, nada
agradaram ao provedor em exercício, filho homónimo daquele:

“tendo sido desde longa data geridos os bens e rendimentos d’esta irmandade por
um unico homem, que denominando-se provedor concentrava em sua pessôa todas
as attribuições da Meza, pagando, fazendo despezas arbitrarias, e dispondo a seu
belo prazer dos fundos do estabelecimento, chegando o chamado thezoureiro a
declarar no fim de uma conta lançada no livro d’elle, e respectiva ao anno de 1861,
que elle nada havia recebido nem pago, porque o dito provedor era quem praticava
todos esses actos”34.

Com efeito, sabe-se que assinou diversas escrituras públicas sem se fazer acompanhar
de qualquer outro membro da Mesa35, que conservou em casa documentação relativa à
Santa Casa, designadamente livros de receita e despesa, escrituras várias e tombos de
bens36, e que, quando faleceu, foi sepultado na capela da instituição, quando o enterro no
interior dos templos fora há muito proibido37.
Regressando ao alvará de extinção, eram, sem dúvida, acusações graves para a
Misericórdia, mas também, diga-se, para o próprio governador civil e seus antecessores
que, estando a par da situação, pouco ou nada haviam deliberado. Efetivamente, já em
1865, Francisco Gomes de Almeida Branquinho, governador civil de Leiria (1865-1868),
durante uma visita ao seu distrito, verificara que a irmandade não prestava contas desde
1861 e que toda a escrituração estava “na maior irregularidade”38; e, alguns anos depois,
em junho de 1869, o administrador do concelho de Pombal voltou a encontrar a contabili-
dade “muito eregular e defeciente”39, permanecendo as contas por aprovar há vários anos.

32 Leiria, ADL, Governo Civil, Correspondência de Administradores do Concelho, -1-III-47-E-2, doc.


avulso (resposta à portaria de 19 de outubro de 1870).
33 Leiria, ADL, Governo Civil, Correspondência de Administradores do Concelho, -1-III-47-E-2, doc.
avulso (resposta à portaria de 19 de outubro de 1870).
34 Leiria, ADL, Governo Civil, Registo de Alvarás, -1-III-55-A-2 [Livro de Registo de Alvarás (1862-
-1880), fls. 40v-41].
35 Cf., por exemplo, Leiria, ADL, Registos Notariais, Pombal, V-104-A-18, fls. 83-84v e V-104-A-23,
fls. 24-24v.
36 Pombal, ASCMP, Livro de deliberações da Misericórdia de Abiul (1864-1870), fls. 5-5v.
37 Leiria, ADL, Registos Paroquiais, Abiul, Óbitos, IV-40-E-18, fl. não numerado.
38 Pombal, ASCMP, Livro de deliberações da Misericórdia de Abiul (1864-1870), fl. 6.
39 Pombal, ASCMP, Livro de deliberações da Misericórdia de Abiul (1864-1870), fl. 19.

A MISERICÓRDIA 81
Ricardo Pessa de Oliveira

Ainda de acordo com o alvará de extinção, os abusos haviam decorrido com a coni-
vência dos irmãos que, evidenciando pouco interesse pela instituição, não compareciam
às eleições. Por último, afirmou-se que há muito não era inscrito qualquer novo irmão. A
existência de arbitrariedades e de irregularidades é inegável, mas quer esta última
acusação quer uma outra relativa ao não envio de orçamentos eram falsas. Embora seja
irrefutável que a confraria, evidenciava pouca capacidade para renovar o seu quadro de
irmãos, entre 1864 e 1869, haviam ingressado seis novos membros, cinco dos quais em
1867 e, quanto a orçamentos, sabemos que o do ano económico de 1864/65 foi efetiva-
mente remetido para o Governo Civil e aprovado a 30 de dezembro de 186440. Além des-
se, são conhecidos os projetos elaborados para os anos económicos de 1868/69, 1869/70 e
1870/71 que, por certo, terão sido remetidos para aquela autoridade41.
Independentemente da maior ou menor exatidão das acusações, o certo é que o
principal (e único) fundamento para a extinção foi outro. Aliás, não poderia ser de outra
forma. Erros e má gestão existiam em várias misericórdias e muitas eram as que não
remetiam os orçamentos em tempo útil. Acontece que, de acordo com o código adminis-
trativo português, esses problemas eram resolvidos através da destituição dos corpos
gerentes e da nomeação de comissões administrativas42. De resto, a de Abiul já havia
experimentado essa realidade em 1835. Por isso, a justificação do governador civil, José
Ferreira da Cunha e Sousa, teve de recair noutro ponto: o número insuficiente de irmãos.
É que o decreto de 21 de outubro de 1836 fora claro ao estabelecer que a extinção de
qualquer irmandade só poderia ocorrer quando faltasse o número necessário de irmãos
para a eleição da Mesa43, e a portaria de 27 de setembro de 1862, esclarecera que, ainda
que esse número não estivesse determinado na lei, cada irmandade devia possuir, ao
menos, o dobro dos irmãos necessários para formar o referido órgão44.
Tendo notícia de que a irmandade abiulense não observava essa exigência, o governa-
dor, seguindo os trâmites fixados no decreto supramencionado, mandou afixar edital para
que os irmãos, no prazo de quinze dias, comparecessem na administração do concelho
para assinarem termo de responsabilidade, pelo qual se obrigassem a continuar na admi-
nistração da Casa. Sucedeu que esse registo, efetuado a 3 de agosto de 1869, foi assinado
somente por 15 irmãos, número considerado insuficiente por não ser duplo ao dos
mesários designados no compromisso da Misericórdia de Lisboa, de 1618. Pese as fontes
não o referirem, acreditamos que nem todos os irmãos compareceram à assinatura do
termo. Basta referir que na eleição de 2 de julho de 1870, votaram 19 membros, não exis-
tindo registo de entrada de qualquer novo irmão no período que mediou entre as duas
datas45. Além desse aspeto, verifica-se que, mais uma vez, o alvará distorceu factos. Se

40 No referido livro de registo de orçamentos (1864-1870), existe apenas informação da aprovação


desse orçamento. Os campos relativos aos anos económicos de 1865/66, 1866/67, 1867/68, 1868/69 e
1869/70 acham-se por preencher, cf. Leiria, ADL, Governo Civil, Registo de processos de contas de
corporações de beneficência, -1-III-75-B-2.
41 No de 1869/70 referiu-se que a verba destinada para a obra da capela constituía “despesa extraordinaria
para satisfazer todo o pagamento da obra feita na capela da Santa Casa já lançada no orçamento no ano
antecedente digo anterior como se pede na representação ao excelentissimo senhor governador civil”,
cf. Pombal, ASCMP, Livro de deliberações da Misericórdia de Abiul (1864-1870), fl.18v.
42 Codigo Administrativo, Lisboa, Imprensa Nacional, 1842, p. 54 (artigo 226).
43 Collecção de Leis e outros Documentos Officiaes publicados desde 10 de Setembro até 31 de
Dezembro de 1836, sexta série, Lisboa, Imprensa Nacional, 1837, pp. 67-68.
44 Collecção Official da Legislação Portugueza, Ano de 1862, redigida por José Maximo de Castro
Neto Leite e Vasconcelos, Lisboa, Imprensa Nacional, 1863, pp. 31-32 (suplemento).
45 Conhecemos o nome de 17 dos irmãos existentes a 2 de julho de 1870: Alexandre Martins, António

82 A MISERICÓRDIA
A extinção de misericórdias no século XIX. O caso da Santa Casa de Abiul

era verdade que a irmandade seguia o texto normativo da congénere olisiponense também
o era que, desde há alguns anos, a Mesa era formada apenas por nove irmãos (um prove-
dor, um secretário, um tesoureiro e seis vogais) pelo que, se tivermos em consideração
que o número real de membros seria, pelo menos, de 19, a irmandade estava em
condições de continuar. Seja como for, não parece ter existido, por parte dos irmãos,
qualquer tentativa de impugnar o alvará. Note-se ainda a ausência a quaisquer referências
à diminuta ação assistencial prestada pela Santa Casa de Abiul ou às suas ténues receitas,
sinal claro de que esses não constituíam argumentos válidos para extinguir uma qualquer
confraria ou irmandade.
Ainda que o documento tivesse ordenado que o administrador do concelho notificasse
os irmãos sobre a extinção e tomasse imediatamente posse de todos os objetos e
propriedades da irmandade, tal apenas veio a suceder a 16 de julho de 1870, já depois de,
a 21 de abril desse ano, a Junta Geral do Distrito ter confirmado o destino a dar a esses
bens e também aos das outras confrarias e Ordem Terceira extintas: a incorporação na
Misericórdia de Pombal. A 16 de julho procedeu-se ao inventário46 e a 7 de outubro,
efetivou-se a anexação47. Assinale-se que, no momento da extinção, os mesários abiulen-
ses continuaram a proteger os devedores de foros e de juros, ou seja, continuaram a auto
proteger-se, não incluindo no inventário determinados títulos que apenas seriam
remetidos para Pombal a 23 de dezembro, depois de insistentemente requeridos pelo
administrador do concelho ao ex-provedor, Gerardo António da Costa (1840-1907)48.

4. As tentativas de extinguir várias misericórdias no distrito de Leiria (pelo menos


sete, ou seja, metade das existentes) e a supressão efetiva da de Abiul e, mais tarde, da de
Pederneira, têm de ser entendidas no seu contexto concreto. No século XIX, passou a
considerar-se que o fim supremo das misericórdias era a administração dos respetivos
hospitais e que o tratamento dos enfermos pobres era a sua principal obrigação. Na
segunda metade de Oitocentos, várias Santas Casas construíram ou remodelaram hospi-
tais e os textos normativos, aprovados nesse período, expressam de forma clara o relevo
conferido à assistência hospitalar49. Refira-se, a título exemplificativo, a Misericórdia de
Pombal que, no seu compromisso de 1873, esclareceu que “presentemente a principal
obrigação d’esta Santa Caza é accorrer ás necessidades do seu hospital”50, ou ainda a
riquíssima Misericórdia do Porto que em relatório de 1887, elucidou que o hospital de
Santo António era “verdadeiramente a Santa Casa da Misericórdia […] porque a principal

Cardoso da Paz, António Furtado da Silveira, Caetano da Cunha, Domingos Luís, Francisco Xavier
de Lemos, Gerardo António da Costa, Gerardo dos Reis e Cunha, João Furtado da Silveira, João
Mendes da Cruz, João Nunes Eugénio, José Ferreira dos Santos, José Rodrigues (Chão de Ulmeiro),
Manuel Ferreira Castelão, Manuel Ferreira dos Santos, Manuel Rodrigues (Ribeira) e Manuel da
Silva, cf. Pombal, ASCMP, Livro de deliberações da Misericórdia de Abiul (1864-1870), fls. 21v-22.
46 O inventário foi realizado na presença do administrador interino do concelho de Pombal, tendo
ficado por depositário dos bens arrolados Manuel Ferreira Castelão, regedor daquela freguesia e
antigo mesário da instituição extinta, cf. Pombal, ASCMP, Livro de deliberações da Misericórdia de
Abiul (1864-1870), fls. 22-23v.
47 Pombal, ASCMP, Livro de Atas da Misericórdia de Pombal (1862-1871), fls. 82-82v.
48 Pombal, Arquivo Municipal de Pombal (doravante AMP), Administração do Concelho, Registo da
correspondência com todas as autoridades exceto do Governo Civil (1870-1874), fls. 44v-45, 53v e 57.
49 Maria Antónia Lopes, José Pedro Paiva, “Introdução”, Portugaliae Monumenta Misericordiarum
[…], vol. 8, p. 24.
50 Leiria, ADL, Governo Civil de Leiria, Licenciamento e Fiscalização, Santa Casa da Misericórdia de
Pombal, -1-III-74-D-4, Compromisso da Santa Casa da Misericórdia de Pombal, cap. 7, art. 51.

A MISERICÓRDIA 83
Ricardo Pessa de Oliveira

missão da irmandade é tratar dos doentes”51. Os poucos estudos sobre as misericórdias


dos séculos XIX e XX evidenciam que estas passaram a direcionar a maior parte dos seus
recursos para a assistência hospitalar, diminuindo os gastos com o culto e com outras
obras de misericórdia52.
Num concelho que contava com quatro misericórdias das quais apenas uma, a de
Pombal, administrava um pequeno hospital com condições bastante precárias e com
capacidade muito reduzida (quando comparado com espaços congéneres do passado),
julgaram os sucessivos governadores civis e administradores do concelho ser indispen-
sável a junção das quatro Santas Casas e também a de algumas confrarias devocionais.
Acreditavam que a ampliação das rendas, procedente dessas anexações, iria concorrer
para aumentar a capacidade do estabelecimento hospitalar e para melhorar as suas condi-
ções. Extinguiram-se as confrarias paroquiais das Almas e do Rosário, sediadas na matriz
de Pombal, a Ordem Terceira do Carmo da mesma vila, mas apenas a Santa Casa de
Abiul, instituição muito modesta, localizada numa freguesia rural, pouco povoada, cujos
rendimentos nunca terão sido superiores a 100 mil réis, cuja receita média anual parece
ter diminuído progressivamente a partir de meados do século XVIII, que, em 1852, apre-
sentou a receita mais baixa das 14 Santas Casas do distrito de Leiria, com um rendimento
inferior a 16 mil réis, e que, em 1869/70, arrecadou apenas 33 830 réis, longe dos 140 mil
orçados.
Uma confraria que teve de lidar com diversas e graves contrariedades que muito a
enfraqueceram. No início de Oitocentos, foram os estragos causados pela terceira Invasão
Francesa, danos que a obrigaram a investir tempo e dinheiro para tombar bens, adquirir os
trastes necessários ao culto divino e recuperar o edifício do hospital/albergue. Pouco
depois, foram as fraudes praticadas por alguns irmãos nobres, que conduziram à nomea-
ção de uma comissão administrativa em 1835. Na primeira metade dessa centúria, foi
obrigada a dissolver contratos e a diminuir foros em consequência de danos causados por
incêndios florestais. Por último, além do desleixo administrativo dos seus mesários, teve
de enfrentar sucessivos atrasos no pagamento de foros e juros, este último, um problema
crónico a que nenhuma misericórdia terá escapado.
No final da década de 1860, a Santa Casa de Abiul contava com menos de 20 irmãos,
não admitia doentes na casa que servia de hospital, então já em avançado estado de ruína,
e evidenciava reduzida capacidade para socorrer os pobres da freguesia e os que transi-
tavam pela mesma. Era uma instituição pobre e caduca que não conseguira adaptar-se aos
novos tempos, numa época em que a principal função atribuída às misericórdias era,
como se escreveu, a administração dos respetivos hospitais. Uma irmandade que exercia
diminuta atração sobre os abiulenses, que pouco reunia, que não fizera qualquer esforço
no sentido de elaborar um novo texto normativo e que, ao contrário de outras congéneres,
não conseguira engendrar novas formas de angariar fundos, que poderiam ter passado
pela promoção de bazares, espetáculos ou pela abertura de subscrições públicas, em voga
na segunda metade do século XIX. Uma corporação cujos mesários pouco ou nada
fizeram para evitar ou impugnar o alvará de 1869, que determinou a sua extinção.
Mas a Misericórdia de Abiul não foi a única a ser extinta nesse século, ainda que
algumas possam, posteriormente, ter sido reativadas. Apontem-se os casos das congéne-

51 António Almodovar, “Património e Economia da Salvação”, in Sob o Manto da Misericórdia.


Contributos para a História da Santa Casa da Misericórdia do Porto, coordenação de Inês Amorim,
vol. III (1820-1910), Coimbra, Almedina, 2018, p. 179.
52 Maria Marta Lobo de Araújo, A Misericórdia de Vila Viçosa […], p. 119; Ricardo Pessa de Oliveira,
História da Santa Casa […], pp. 158-163.

84 A MISERICÓRDIA
A extinção de misericórdias no século XIX. O caso da Santa Casa de Abiul

res de Barbacena, mandada anexar por alvará do governador civil de Portalegre, de 10 de


dezembro de 1859, à Santa Casa de Elvas53; de São Sebastião, nos Açores, que terá sido
extinta por alvará de 17 de maio de 186054; de Alvalade, então concelho de Aljustrel,
extinta em 1861, cujos bens terão sido incorporados na Casa Pia de Beja 55; tal como
foram os da de Vila Ruiva (extinta antes de 1858)56; a Misericórdia de Atalaia, extinta em
1869; a Misericórdia de Beringel, abolida em data não apurada, mas depois de 1848 57; a
de Tancos, extinta em 1876, que viu o seu espólio ser integrado na Junta da Paróquia 58; a
Santa Casa da Pederneira, no distrito de Leiria, extinta pela segunda vez, e de forma
definitiva, por proposta dos próprios irmãos, por alvará do governador civil de 24 de
fevereiro de 1877, passando, por portaria de 27 de junho desse ano, o seu património para
a novo hospital da Real Casa de Nossa Senhora da Nazaré59; ou ainda a de Ourém, que
segundo Costa Goodolphim terá sido extinta e os seus bens incorporados no hospital civil
de Santo Agostinho, fundado em 189160. Sobre as do distrito de Castelo Branco mencio-
nou o mesmo autor, valendo-se de um relatório do governador civil, publicado em 1860,
que das 29 misericórdias existentes muitas haviam sido “extintas e outras incorporadas
nas que tinham administrações mais cuidadas”61. Embora a obra permaneça como uma
fonte importante para o estudo das Santas Casas de Oitocentos, tem de ser analisada com
cautela pois contém alguns erros, também no que respeita à extinção destas instituições.
Apresenta, por exemplo, um capítulo sobre as misericórdias extintas no distrito de Leiria,
onde incluiu a da Redinha que não estava, nem nunca foi extinta, estando aliás em
atividade. Quantas e quais foram efetivamente extintas, quais os ritmos de extinção, que
motivos conduziram a esse desfecho, qual a reação dos seus membros, que instituições
incorporaram o seu património e se a extinção teve os resultados esperados, constituem,
pois, questões para as quais é necessário encontrar resposta em futuras investigações.

53 Costa Goodolphim, As Misericordias […], p. 267.


54 Informação colhida em http://www.vilassebastiao.com/index.php?abrir=1.2.4 (consultado a 4 de abril
de 2021).
55 Informação recolhida em https://www.cm-santiagocacem.pt/municipio/freguesias/ (consultado a 4 de
abril de 2021).
56 Costa Goodolphim, As Misericordias […], p. 99. http://digitarq.adbja.arquivos.pt/details?id=1081774
(consultado a 4 de abril de 2021).
57 Costa Goodolphim, As Misericordias […], p. 99.
58 Informação recolhida em http://www.monumentos.gov.pt/Site/APP_PagesUser/SIPA.aspx?id=1967
(consultado a 4 de abril de 2021).
59 Pedro Penteado, História administrativa do Fundo da Santa Casa da Misericórdia da Pederneira
(extraído do “Inventário” do arquivo da entidade existente no Arquivo da Confraria de Nossa
Senhora da Nazaré), [Nazaré, 1999]. Disponível em (1) (PDF) História administrativa do Fundo da
Santa Casa da Misericórdia da Pederneira (extraído do “Inventário” do arquivo da entidade existente
no Arquivo da Confraria de N.ª Sr.ª da Nazaré) | Pedro Penteado – Academia.edu (consultado em 29
de janeiro de 2022).
60 Costa Goodolphim, As Misericordias […], pp. 347-348.
61 Costa Goodolphim, As Misericordias […], p. 144.

A MISERICÓRDIA 85

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