12 Planejamento Municipal REVISTO Marco 2023

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Introdução ao Planejamento Municipal

Ladislau Dowbor
Ed. Brasiliense, 1987

Escrito em 1987, portanto há 25 anos atrás, este pequeno livro responde a uma época
em que, saindo da ditadura, o país buscava visões mais democráticas de gestão. De certa
forma, enfrentava-se o desafio da gestão democrática local, enquanto no plano nacional
estava se gestando a Constituição de 1988, que viria abrir o país para visões mais
modernas. Lido hoje (2012), apresenta uma série de ingenuidades, mas continua atual
no essencial: a construção de formas mais democráticas e participativas de gestão, o
resgate do planejamento, a construção de visões sistêmicas. Dada a época, foi escrito
ainda na era da máquina de escrever, e o texto que aqui apresentamos foi simplesmente
digitalizado, para facilitar o acesso.

Ladislau Dowbor
São Paulo, 9 de novembro de 2012
Esta obra foi elaborada com apoio do Centro de Estudos e Pesquisas de
Administração Municipal — CEPAM.
O CEPAM deseja que este trabalho reforce o debate sobre o tema, estando aberto
a sugestões, contribuições e críticas.
Este trabalho contou com a ajuda da equipe de planejamento do CEPAM: Carlos
Corrêa Leite, Maria do Carmo Meirelles Toledo Cruz, Lúcia Maria Vidigal Lopes da
Silva, Luiz Patrício Cintra do Prado Filho, Rosângela Vecchia e Rubens Sardenberg.
Agradecemos a colaboração dos promotores do planejamento na Prefeitura
Municipal de Penápolis: Carlos Alberto Bachiega, Carlos Pereira Bráz, Eunice Barrinha
Bráz, João Carlos D'Elia e Mario Mendes Raucci.
E a imensa paciência de Carla, Márcia, Mara, Marinez e Ronaldo.

Não há nada mais prático, que uma boa teoria.

Pawel Sulmicki

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Apresentação

O trabalho que segue tem raízes práticas: aplicamos em Penápolis uma proposta
simplificada de planejamento municipal, que deu bons resultados, e pareceu-nos útil
apresentar aqui as suas linhas.
A ideia central é que o município precisa, mais do que de esquemas complexos de
planejamento, de um sistema claro de organização de informação econômica que
permita ao prefeito tomar decisões coerentes baseadas num conhecimento real da
situação.
Por outro lado, a informação é ordenada do ponto de vista do impacto junto à
população, criando a transparência, que é indispensável para uma participação efetiva
da comunidade.
O Brasil sofreu, nas últimas décadas, um processo centralizador extremo, tanto
por parte do Estado, como por parte das grandes empresas e do sistema financeiro.
Ficou esmagada, nesse processo, a presença do município nas decisões sobre o
desenvolvimento. A prefeitura se tornou um órgão que asfalta ruas e constrói praças.
Trata-se de inverter o processo. Um município constitui o espaço de vida de seus
habitantes, que têm de poder participar nas decisões. A prefeitura tem de conquistar um
espaço de intervenção mais amplo, que corresponda a um desenvolvimento econômico
moderno.
A equipe de planejamento municipal do CEPAM tem trabalhado neste sentido,
buscando instrumentos práticos. Depois de uma apresentação mais ampla das
necessidades do planejamento e da descentralização, estuda formas práticas de
ordenamento da informação econômica do município, de sistematização da informação
sobre os recursos financeiros, aspectos organizacionais do planejamento municipal, e as
formas de dinamização da participação comunitária.
No anexo do presente trabalho, apresentamos vários casos que ilustram a
proposta. O leitor interessado em aprofundar a questão pode contatar simplesmente o
grupo de planejamento do CEPAM, avenida Prof. Lineu Prestes, 913, Cidade
Universitária, São Paulo. Encontrará gente tão interessada em aprender quanto ele.

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A crise das soluções universais

Todos nós buscamos, de uma forma ou outra, soluções universais. E grande parte
dos conflitos que presenciamos deve-se a esta nossa exagerada tendência para a
simplificação.
A realidade é que somente soluções globais e simplificadas tendem a transformar-
se em força social, pois análises mais complexas e que levam em conta mais fatores
diluem-se em torno das sutilezas e especificidades do processo analisado: resultam
muitas opiniões e pouca força.
É este o caso, evidentemente, da simplificação que se fez, e que se faz muito
ainda, em torno do "mercado" e do "planejamento", como sistemas completos de
regulação econômica.
Devemos dizer, desde já, que não colocamos os dois termos no mesmo nível. À
medida que se torna mais complexo o conteúdo técnico do nosso crescimento
econômico, e que a produção se torna mais socializada, o espaço do mercado, como
mecanismo racionalizador do conjunto do sistema, se reduz bastante. E o planejamento
ocupa, sem dúvida, um espaço crescente, inclusive nas próprias empresas.
Mas não é isso que está no centro das nossas preocupações, e sim o fato de
nenhum dos dois poder pretender constituir a "pedra filosofal" da racionalidade
econômica. O que está na ordem do dia não é se a solução correta é o mercado ou o
plano, e sim como estes dois elementos, combinados com outros, devem articular-se
para assegurar a regulação dos nossos processos econômicos.

A complexidade dos processos econômicos

A simplificação resulta, sem dúvida, de uma certa impotência. Os processos


econômicos evoluíram muito nos quarenta anos de pós-guerra, tornaram-se mais
complexos, enquanto os nossos instrumentos teóricos ainda constituem frágeis
extensões das grandes escolas europeias de outros tempos.
Não é preciso ir muito longe para ver a que ponto a nossa realidade está fora dos
parâmetros simplificadores dos neoclássicos ou dos monetaristas modernos.
Para já, todo o nosso sistema financeiro se tornou mundial, e uma nação, os
Estados Unidos, detém a moeda-base, o dólar. Em outros termos, temos uma moeda

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4internacional cuja emissão é controlada por uma nação, com todo o poder político de
intervenção sobre os mecanismos econômicos que isto significa.
O espaço mercantil também se mundializou. Mas, com a aceleração do ritmo de
desenvolvimento tecnológico, o "leque" se abriu, e a concorrência não se dá — é o
mínimo que se pode dizer — sempre entre iguais. A guerra pela ocupação do espaço
econômico mundial, travada pelas empresas multinacionais com o apoio dos seus
respectivos governos, tem pouco a ver com o bucólico padeiro de Adam Smith.
A remuneração dos agentes econômicos, elemento chave das construções teóricas
tradicionais, também mudou profundamente. Hoje, a remuneração varia mais em função
do sistema econômico do que do aporte produtivo. O mesmo médico, com uma
capacidade científica determinada, ganhará 15 mil dólares por mês se estiver na área da
medicina de luxo de um país rico ou de um país pobre, 500 dólares se estiver na esfera
da medicina popular, seja estatal ou privada, 5 mil dólares se for contratado pela
Organização Panamericana da Saúde, ou 200 dólares se estiver num programa de
cooperação chinês.
A evolução das telecomunicações e, particularmente, da telemática, permite que
hoje qualquer estabelecimento financeiro jogue com alterações de preços de matérias-
primas e com variações de taxas de câmbio ao nível internacional, levando em segundos
a gigantescas transferências internacionais, das quais estão excluídos países ou
empresas que não podem financiar ramificações mundiais.
O próprio nível de produção em áreas-chave da economia leva a que duas ou três
empresas às vezes cubram toda a necessidade de consumo de um país. Como evitar o
efeito monopolístico? Hoje, a própria teoria do monopólio, ou a da concorrência
monopolística, torna-se muito insuficiente na medida em que, ao efeito de controle de
preços ou de matéria-prima, se acrescenta o peso político da grande empresa e a
estratégia de alianças internacionais do grupo a que pertence.
Será preciso lembrar quão profundamente foram afetadas todas as economias, e
particularmente as economias subdesenvolvidas, pela decisão política dos norte-
americanos em elevar a sua taxa de juros, ou pelas variações do preço do petróleo —
com todos os seus efeitos sobre os custos de produção — nos últimos anos?
Os parâmetros mudaram. Hoje, em qualquer município, cruzam-se linhas de
forças dos processos econômicos internacionais, levando, por exemplo, toda uma região
a se ver invadida pela cana-de-açúcar, ou pela soja, ou pelo gado. Às reorientações
produtivas correspondem reorientações da estrutura social: o camponês policultor é

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5substituído pelo bóia-fria, ou simplesmente levado a emigrar, transtornando toda a
organização econômica e social de uma região.

Os limites da ação do mercado

O problema não se resolve no ser contra ou a favor do mercado. É preciso


entender que a própria discussão em torno do mercado, a criação das estatais, o peso da
intervenção do Estado na área da política de conjuntura — preços, taxas de câmbio,
taxas de juros, salários, política fiscal e de crédito — e o uso de mecanismos de
planejamento resultam da insuficiência crescente do mercado como mecanismo
regulador.
Se o mercado preenchesse as suas funções reguladoras tradicionais, não se
estariam utilizando sistemas complementares cada vez mais complexos.
A confiança exagerada num instrumento que deixou de ser adequado ou suficiente
leva a perigosas regressões ao laissez-faire, laissez-passer, do século passado, sem
atentar para o fato de que as condições de vida da "mão invisível" há tempo já deixaram
de existir para um conjunto de setores.
A tendência nos Estados Unidos, nestes anos 80, foi, sem dúvida, caracterizada
pela "desregulamentação", com relativa redução dos controles do Estado. Mas essa
redução não levou, de forma alguma, ao reforço dos mecanismos de mercado: "Uma
onda de fusões ganhou os Estados Unidos, a Inglaterra e a Alemanha, desde que a
desregulamentação foi encorajada pelos dirigentes destes países. Nos Estados Unidos,
onde a tradição antitruste é a mais forte, a divisão antitruste do departamento da justiça
e a comissão federal do comércio foram reduzidas à impotência. O valor de fusões de
empresas passou de 12 bilhões de dólares em 1975 para 83 bilhões em 1981 e 122
bilhões em 1984.1
Assim, a redução do espaço de regulamentação pública não se transforma numa
volta ao passado — concorrência livre no mercado —, e sim num reforço de controle
centralizado do mercado pelas grandes empresas. É característico que a redução do
papel do Estado coincida com a eliminação das leis antitruste que asseguravam a fluidez
do mercado.

1 Frédéric F. Clairmont e John Cavanagh, Le Club des Deux Cents ou les vertus de Ia concentration –
Le monde Diplomatique, dez. 1985, p.22.

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Hoje, no mundo capitalista, as vendas das 200 maiores empresas particulares são
da ordem de 3.000 bilhões de dólares, representando 26% do produto mundial (sem os
países socialistas).2
Em outros termos, quando não é organizada pelo Estado, a economia é organizada
pelos grandes grupos. O que não existe mais é mercado que não seja "organizado", em
que prevaleça simplesmente o preço e a qualidade do produto.
A acelerada redução do papel do mercado como regulador da economia não se
deve apenas — longe disso — à monopolização da economia pelos grandes grupos
multinacionais. O conteúdo tecnológico cada vez mais complexo dos processos
produtivos torna muito difícil a entrada de novas empresas, a não ser através de acordos
de transferência de tecnologia. A elevada escala de produção exige a organização e
orientação do consumo através da publicidade e do crédito ao consumidor. Os
elevadíssimos investimentos de infraestrutura exigem planejamento prévio do seu uso
produtivo, e não é em função dos altos e baixos da oferta e procura da energia que se
constroem ou se deixam de construir gigantescas hidroelétricas ou centrais nucleares.
Cerca de um terço do comércio mundial se faz hoje simplesmente fora do mercado, com
preços e qualidade fixados administrativamente, através do comércio intra-empresarial,
ligando matriz-filial ou filial-filial do mesmo grupo. As próprias opções econômicas
fundamentais de determinados países — o Japão na área eletroeletrônica, a Alemanha
na área de máquina-ferramenta, a Suíça na mecânica de precisão e química — resultam
não das flutuações do mercado ou de vantagens comparadas, e sim de opções políticas
corretas relativamente às tendências de longo prazo da economia mundial, e que
levaram esses países a realizarem os investimentos de pesquisa e desenvolvimento
necessários.
Na realidade, a presença do mercado como mecanismo regulador se reduz e se
altera em vários sentidos: primeiro, cria-se o que poderíamos chamar de "mercado
administrado", em que assistimos não ao simples emperramento dos mecanismos de
mercado pela monopolização, e sim ao ordenamento planejado do espaço econômico
dos diversos grupos; segundo, a presença do mercado passa a se diferenciar
profundamente segundo as áreas econômicas, com forte predominância nas áreas da
pequena produção de bens de consumo diário, e virtual desaparecimento nas áreas de
bens de capital e investimento pesado ou infraestruturas econômicas, bem como nas
áreas-chave da economia. Enfim, é preciso notar o recuo generalizado e a falência do

2 Frédéric F. Clairmont e John Cavanagh, op. cit.

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mercado como elemento regulador e racionalizador nas áreas da infraestrutura social,
particularmente da saúde, educação e habitação, onde se comprovou ser não só
inoperante, como nocivo e fator de atraso.
O mercado, como mecanismo regulador fundamental, encarregado de assegurar
que milhões de atividades econômicas que desempenhamos de forma independente
levem a constituição de sistemas econômicos coerentes, já não desempenha a sua
função. Já não corresponde, simplesmente, ao nível de desenvolvimento das nossas
forças produtivas. O fato de deixar de ser o elemento regulador fundamental não
significa, entretanto, que deixe de ser indispensável. É o que se constatou nas economias
planificadas.

Evolução da planificação centralizada

Há uma forte tendência para considerar os países que aplicam o planejamento


central da economia um conjunto rígido de sistemas burocráticos. Esta visão resulta,
simplesmente, da nossa ignorância relativamente ao que se passa nos países socialistas.
Se atentarmos para a forma como foi organizada a construção do oleoduto do
Alasca, envolvendo centenas de empresas numa atividade plurianual, e terminando não
só no dia como na hora prevista, e o projeto de gasoduto transiberiano na União
Soviética, veremos que as técnicas de planejamento utilizadas são rigorosamente
semelhantes. Sabe-se de antemão os montantes de energia transportada, as empresas que
a utilizarão, os investimentos complementares que serão realizados. Nenhum país se
lança em investimentos deste montante sem assegurar que todos os elos da cadeia
técnica estejam previstos. E ninguém espera milagres por parte da mão invisível. O
planejamento de longo prazo assumiu um papel decisivo, ainda que discreto, na
organização dos equilíbrios intersetoriais do sistema capitalista, através das grandes
empresas.3
Era natural que as economias socialistas, que surgiram em países pobres e
subdesenvolvidos e que se concentraram inicialmente nas grandes obras de infra-
estrutura que o desenvolvimento moderno exige, tivessem adotado, na primeira fase,

3 Neste sentido, a teoria do monopólio é amplamente insuficiente, os investimentos complementares


em cadeia, estudados pela escola sueca e apresentados por Hirschman como mecanismo espontâneo
de reequilíbrio econômico, constituem um aspecto de crescente penetração da grande empresa na
regulação intersetorial, através do planejamento empresarial de longo prazo. O planejamento
empresarial constitui mais um elemento da transformação do mercado, que aqui chamamos de
"mercado administrado".

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formas muito centralizadas de planificação econômica. Isto é exigido tanto pelo tipo de
investimento, que tem impacto ao nível nacional e tem de obedecer a uma visão global,
como pelo grande esforço de financiamento exigido: num país pobre nenhuma empresa
regional, e menos ainda privada, assumiria investimentos deste porte.
Imaginar que tudo se planifica desta forma nos países socialistas é tão pouco
realista como imaginar que nos Estados Unidos tudo se organiza como o oleoduto do
Alasca. A planificação socialista é um sistema de regulação profundamente diferenciado
segundo os setores, e o próprio sistema evolui profundamente, acompanhando as etapas
de desenvolvimento destes países.
Em termos muito gerais, podemos dizer que a planificação socialista atravessou
um período muito centralizado na fase das grandes obras, particularmente voltadas para
as infraestruturas energéticas e de transportes, siderurgia, metalurgia, química pesada e
outras indústrias de base. Na fase de constituição de setores intermediários da indústria
e da agricultura criaram-se os complexos industriais e agroindustriais descentralizados,
e hoje o enriquecimento do tecido econômico, com milhões de empresas voltadas para o
consumo individual, levou a uma regulação que se realiza por contratos
interempresariais. A empresa que não assegura qualidade e preço simplesmente não terá
contratos, e o Estado intervém apenas na coerência do conjunto.
O resultado hoje é um conjunto diversificado de sistemas de regulação, que evolui
rapidamente. As transformações que ocorrem na União Soviética desde a década de 60
são, neste sentido, muito características.
Há, seguramente, tanta consciência nos países socialistas de que um sistema
centralizado de decisão é insuficiente, sejam quais forem as técnicas utilizadas, como há
consciência, nos países capitalistas, de que o mercado constitui hoje um instrumento
parcial e muito insuficiente de alocação racional de recursos.
Esta é a problemática que enfrentamos, e não há dúvida de que os adeptos da
estatização generalizada e da planificação central, como os adeptos da total liberdade de
mercado e da privatização generalizada, estão simplesmente fora da realidade.

Planejamento e descentralização

Uma das transformações fundamentais do planejamento é a descentralização. Esta


implica que as decisões sobre a utilização de recursos sociais não sejam tomadas de

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forma centralizada por um grupo de técnicos, e sim que sejam tomadas ao nível local ou
pelas próprias pessoas que deverão gerir os recursos.
Há uma certa confusão, criada particularmente pelo Banco Mundial, que identifica
descentralização ou privatização. É importante salientar que a relação de propriedade
nem sempre é essencial para o tipo de mecanismo de gestão econômica. Muitas
empresas estatais regem-se perfeitamente por mecanismos de mercado, tanto nos países
capitalistas como nos socialistas, e um plano dispõe de muitos mecanismos para orientar
a produção de produtores privados. O fato de empresas pertencerem ao Estado não
significa de modo algum que tudo pertence a uma entidade central, da mesma forma que
não se pode dizer que as empresas nos países capitalistas pertencem todas a uma
entidade global chamada "o capital".
Ao analisarmos a estrutura do ensino privado e do ensino público no Brasil,
constatamos que o ensino privado é bastante mais centralizado: concentra-se na
prestação de serviços às camadas ricas e busca as regiões mais ricas do país, com muito
maior número de alunos por professor do que o ensino público.
Constatamos igualmente que um dos maiores problemas gerados pela
centralização, que é a formação da chamada macrocefalia urbana — gigantescos centros
urbanos que centralizam as atividades econômicas do país —, enquanto imensas regiões
se veem semiabandonadas, constitui uma característica da economia privada, e não das
economias que utilizam o planejamento como forma dominante de regulação.
A propriedade privada ou social da produção tem, sem dúvida, influência decisiva
em termos de para quem se faz o desenvolvimento: em proveito de elites ou da
população em geral. Mas não há nada na propriedade social que predetermine a
centralização, ou na propriedade privada que leve à descentralização. O que se apresenta
como tendência geral, pelo contrário, é que o sistema capitalista avança para uma
crescente centralização, enquanto o sistema planificado evolui para a descentralização.
Maior papel que as relações de propriedade jogam hoje as relações técnicas de
produção. É interessante constatar que a produção de cereais, que se presta bem para a
mecanização e o gigantismo das unidades de produção, se realiza nos Estados Unidos e
na União Soviética em unidades bastante semelhantes. Trata-se de empresas agrícolas
muito mais do que de "agricultura familiar", com engenheiros, muito apoio científico e
vinculação direta com a agroindústria. Entretanto, tanto nos países capitalistas como nos
socialistas, a agricultura intensiva que exige muitos cuidados, como a horticultura, se
realiza dominantemente em pequenas unidades privadas de produção. Os cinturões

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verdes das grandes cidades são constituídos por lotes individuais na Alemanha Federal e
na Alemanha Oriental, na Polônia ou na União Soviética.
Gigantescos projetos, como Itaipu, estão na órbita estatal, tanto nos países
socialistas como nos países capitalistas, simplesmente porque as relações técnicas das
infra-estruturas energéticas não condizem com iniciativas descentralizadas de órbita
social ou privada.
Uma tentativa que se tornou um anti-exemplo histórico foi a de descentralizar a
produção siderúrgica na China, no tempo do "grande salto". Há atividades que não se
descentralizam, pelas próprias relações técnicas que presidem à sua execução.4
Na realidade, nem todos os setores podem ser "regulados" pelos mesmos
mecanismos, e à medida que a tecnologia torna cada vez mais diferenciados os
subsistemas técnicos de produção, reduz-se o espaço das soluções universais.
Enfrentamos hoje uma hierarquização das atividades econômicas, e esta
hierarquização exige a articulação de formas diversificadas de regulação.

Articulação dos mecanismos de regulação

Podemos dizer que hoje a regulação das atividades econômicas se dá através de


quatro mecanismos: o mercado, o planejamento, a política de conjuntura do Estado e a
participação comunitária.
Segundo o sistema adotado, capitalista ou socialista, o peso dado a cada um dos
mecanismos será diferente. Mas será diferente também segundo o nível de
desenvolvimento atingido pelo país, e os diferentes setores da economia serão mais ou
menos regulados por cada um destes mecanismos.
Por que "regulação"? Porque é um conceito que permite integrar os diversos
instrumentos de que dispomos — mercado, política de conjuntura do Estado,
planejamento e participação comunitária — na função que procuram desempenhar:
assegurar a alocação racional de recursos e adequar o esforço econômico às
necessidades sociais. E para definir estes mecanismos, os conceitos de "mercado" e
"plano" são demasiado estreitos. O conceito de "regulação" desenvolvido inicialmente
pelos economistas franceses nos parece útil, já que marca bem esta nossa necessidade
ampla de "regular" o funcionamento da economia.
4 Essas relações não são estáticas. A evolução tecnológica recente está reabrindo possibilidades de
produção descentralizada em numerosas áreas, como a metal-mecânica, hidroeletricidade, eletrônica
e mais outras.

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Ao propormos o estudo das formas como os diversos mecanismos se articulam,
pretendemos reduzir um pouco a visão excessivamente ideológica de cada um deles: o
"bom", para alguns, seria o mercado, sendo os outros mecanismos excrescências
nocivas que "atrapalham" a mão invisível; para outros, a solução é o Estado e os
mecanismos centrais de controle, ficando o mercado visto como um elemento de caos
ou de desorganização; o desenvolvimento comunitário para outros ainda, na linha do
small is beautiful, onde o planejamento local e participativo se apresenta como
"solução" para conter a desorganização econômica e política crescente; o planejamento
central enfim, visto como eixo fundamental de racionalização da atividade econômica,
com muitas ilusões sobre o seu potencial técnico.
É tempo de pensarmos na articulação racional desses e de outros eventuais
mecanismos de regulação, deixando à parte o debate sobre qual seria globalmente "o
melhor". É claro que aqui, ao entrarmos no estudo do planejamento municipal,
interessa-nos particularmente a participação comunitária, seja ela designada como auto-
planejamento, planejamento local, espaço local, planejamento descentralizado ou outro
termo.
É preciso entender que um elemento essencial ao planejamento municipal é
justamente a definição dos limites da sua intervenção, frente aos outros mecanismos de
regulação.
Esses mecanismos são, na nossa concepção, fundamentalmente complementares.
Complementares, mas cada um no seu lugar. Conhecemos demais os desastres que o
planejamento central representa ao tentar meter-se em produção de séries curtas de
camisas ou outros bens de consumo popular, deixar aos mecanismos de mercado
grandes investimentos de infraestruturas econômicas, montar gigantes burocráticos
centralizados — privados ou estatais — para resolver problemas de saúde, ou tentar
substituir atividades que só são produtivas em grande escala, por iniciativas
comunitárias.
Entender planejamento municipal é, portanto, ter bem presente o limite desta
intervenção e entender sua relação com outros níveis de regulação.
O mercado, antes de tudo, está hoje quase desaparecido como mecanismo
regulador nas áreas sociais, da educação, da saúde, bem como da cultura. Nas áreas de
investimentos pesados, tanto nas infraestruturas econômicas como na indústria pesada,
deixou de ser um elemento regulador significativo, e podemos utilizar o conceito de

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"mercado organizado" ou "mercado administrado". Nas áreas de produção de bens de
consumo básicos continua muito significativo.
A política de conjuntura do Estado, também chamada política econômica de curto
prazo, assegura intervenção reguladora essencialmente sobre a área financeira: política
de preços, política salarial, política fiscal, política cambial, política de crédito e política
monetária. Hoje este instrumento passa por imensas dificuldades para racionalizar a sua
intervenção, na medida em que o sistema financeiro nos países capitalistas se
internacionalizou, reduzindo de maneira muito significativa o seu alcance ao nível
nacional, sobretudo nos países dependentes.
O planejamento central deve articular os esforços de crescimento da economia
para assegurar a harmonia do conjunto. Em termos práticos, um país utiliza
planejamento para definir a sua vocação geoeconômica, as estratégias de
desenvolvimento de longo prazo com seus componentes setoriais (agricultura, indústria,
infraestruturas econômicas e sociais), os seus planos de investimento (os famosos
planos quinquenais ou quadrienais), e finalmente planos anuais de produção, com os
seus balanços financeiros e técnico-materiais.
A participação comunitária e o planejamento descentralizado permitem assegurar
a racionalidade de um conjunto de atividades econômicas que estão diretamente ligadas
ao espaço de vida do habitante: o bairro e sua urbanização, a escola, as infraestruturas
culturais e de lazer, a saúde, a pequena produção local, serviços pessoais, setores que
nem a grande empresa privada nem a intervenção estatal jamais conseguiram atender
adequadamente, já que ninguém consegue melhor identificar necessidades e racionalizar
o uso correspondente dos recursos que a comunidade interessada.
É óbvio que a prioridade dada a cada um desses mecanismos responde a interesses
políticos, e não só à racionalidade "técnica": as multinacionais c as grandes empresas
dominantes querem que tudo seja realizado segundo a "liberdade do mercado", pela
simples razão de dominarem o mercado; os grupos privados que dominam politicamente
o Estado defendem a extensão da sua política econômica, que se materializa em
subsídios e outras vantagens para eles, enquanto os grupos que não têm influência sobre
a decisão estatal querem um Estado mais "neutro"; o planejamento é defendido por
quem quer adequar o desenvolvimento e a alocação de recursos às necessidades
públicas, mas no caso de um Estado "privatizado" como é o Estado brasileiro, o
planejamento transformou-se em simples instrumento de acesso à bolsa de recursos
públicos; finalmente, a extensão da participação comunitária e do planejamento

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descentralizado é defendida por quem quer democratizar a sociedade, assegurando
maiores benefícios para a base da população brasileira.
Assim, a articulação dos diversos mecanismos obedece frequentemente mais a
interesses políticos do que a escolhas de adequação técnica. Um exemplo: os
microprojetos financiados pelo salário educação sobem uma longa escada da escola para
a Secretaria da Educação do município, a Secretaria da Educação do Estado, o
Ministério em Brasília, refazendo o mesmo caminho após várias avaliações, num prazo
que varia entre seis e oito meses. Trata-se de projetos de aumento de salas de aula ou
conserto de um telhado de escola, que nunca deveriam sair das mãos das únicas pessoas
que podem apreciar a sua utilidade: a própria escola, eventualmente a comissão de pais
ou a Secretaria municipal. Mas é Brasília que "concede" o recurso, em detrimento da
racionalidade da sua utilização.
Quando falamos em planejamento municipal estamos, portanto, colocando um
problema geral e importante de racionalização das formas de gestão da nossa economia
e, particularmente, o problema da hierarquização das atividades e das decisões.
Problema técnico e político ao mesmo tempo, e que constitui um elemento
fundamental da democratização da nossa sociedade.

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A importância da descentralização

A gravidade da situação

Por trás do problema da descentralização está o problema básico da nossa


sobrevivência econômica. Muitos não têm visão da gravidade da situação que
enfrentamos neste fim de século.
Sem dúvida, os países capitalistas desenvolvidos e os países socialistas
conseguiram grandes avanços. Mas o que ocorre com o mundo subdesenvolvido, o
Terceiro Mundo ao qual pertencemos? Alguns dados precisam ser lembrados.
Em 1987 somos 5 bilhões de habitantes no planeta. Cerca de 1,2 bilhões vivem
em países desenvolvidos. O restante, 3,8 bilhões, vive em países pobres. São três
quartos da população mundial. A população dos países ricos aumenta atualmente cerca
de 7 milhões de habitantes por ano. A dos países pobres, 77 milhões. O grande problema
que enfrentamos, neste fim de século, é o problema da pobreza.
Esta pobreza se manifesta de modo particular nos países capitalistas
subdesenvolvidos, que contam em 1987 com cerca de 2,6 bilhões de habitantes, com um
ritmo de aumento da ordem de 50 milhões por ano.
Uma análise fria deste mundo subdesenvolvido revela cerca de 800 milhões de
pessoas vivendo em estado de pobreza absoluta, um número similar de subnutridos,
entre 10 e 12 milhões de crianças com menos de cinco anos que morrem de fome por
ano, cerca de 800 milhões de analfabetos, cifra que aumenta cerca de 7 milhões por ano.
De forma geral, um pouco mais de dois bilhões de pessoas vivem em estado de miséria.
Todas estas cifras são crescentes e se encontram nos relatórios nada extremistas da
FAO, UNICEF, Banco Mundial e outros.
As raízes desta situação catastrófica são mais políticas do que econômicas. O
mundo produz atualmente cerca de 2.500 dólares de bens e serviços por pessoa e por
ano, o que significa que, no caso de uma repartição um pouco mais justa, haveria espaço
para uma vida digna e normal para toda a população do planeta.
No próprio Brasil, onde a produção anual por habitante é da ordem de 1.800
dólares, uma repartição mais justa permitiria assegurar um nível de vida confortável
para a totalidade da população. A realidade é que a metade do produto social é

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consumida por 10% das famílias mais ricas do país. Apesar de sermos um dos países
mais bem dotados para a agricultura do mundo, temos cerca de 80 milhões de
subnutridos. Somente o Haiti, a Bolívia e Honduras têm uma mortalidade infantil mais
elevada que a nossa. Cerca de 60% da nossa mão-de-obra são analfabetos ou
semiletrados. O essencial do aparelho produtivo industrial está concentrado em três ou
quatro cidades, o êxodo rural desestrutura a população camponesa e transforma as
cidades em aglomerados cada vez menos controláveis.

Desequilíbrios e formas de regulação

Por que esses desequilíbrios tão graves?


Se atentarmos para a forma de regulação econômica e social dos países
capitalistas desenvolvidos, constatamos que constitui um sistema relativamente
sofisticado. Por uma parte, apesar da existência de grandes empresas, no conjunto a
própria amplitude das atividades econômicas assegura uma relativa fluidez dos
mecanismos de mercado. Nas áreas de infraestrutura, de bens de capital e de eixos de
desenvolvimento tecnológico, o mercado exerce função reguladora limitada, mas a
planificação empresarial de médio e longo prazo permite uma coerência bastante
elevada. A capacidade de intervenção reguladora do Estado, através de política de
crédito, de preços, de câmbio, etc., é muito desenvolvida, e permite um bom controle de
conjuntura. Finalmente, a comunidade ou o município constitui uma unidade de decisão
muito respeitada, e sabe-se, inclusive, que é difícil para uma empresa privada instalar-se
numa localidade sem a aprovação formal dos seus habitantes, que além disso intervém
ativamente nas decisões de orientação do desenvolvimento local. Em outros termos, o
capitalismo desenvolvido dotou-se de mecanismos de controle e regulação dos diversos
setores, que permitem uma significativa aproximação entre as decisões econômicas
individuais e os interesses da população.5
Os países socialistas estão num processo de diversificação dos instrumentos de
regulação das atividades econômicas, conforme vimos no primeiro capítulo. O
planejamento econômico desempenha evidentemente o papel central, assegurando, em
particular, a coerência inter-setorial das grandes decisões que têm impacto de longo
prazo sobre a economia do país. E impressionante ver capitais não congestionadas,

5 É ilusório pensar, entretanto, que estas mesmas empresas quando instaladas cm países dependentes,
sem formas de controle social dos processos econômicos, mantêm o seu comportamento civilizado.

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estrutura industrial descentralizada, serviços sociais acessíveis a toda a população,
qualquer que seja a parte do território ou grupo social. O lado negativo era — e ainda é
em boa parte — a centralização das decisões, com a burocratização das pequenas
atividades de produção e de serviços, como padarias, pequenas fábricas de confecção,
etc. Isso foi em grande parte remediado pela descentralização, o recurso aos
mecanismos de mercado para estes setores, a generalização do sistema de relações
contratuais entre empresas. No caso de alimentos básicos e de medicamentos essenciais,
utiliza-se o mercado subsidiado, segundo a saudável concepção de que algumas coisas
não podem faltar a ninguém. Finalmente, a comunidade — bairro ou município —
desempenha hoje um papel regulador intenso em todas as decisões que exigem
conhecimento da situação local e controle dos interessados.

Regulação e subdesenvolvimento

Os países capitalistas subdesenvolvidos estão em situação muito particular. Não


dispõem nem dos mecanismos de planificação dos países socialistas, nem dos
mecanismos de mercado e de controle social dos países capitalistas desenvolvidos,
enquanto a política de conjuntura do Estado se vê atropelada por interesses privados
nacionais e transnacionais que puxam para lados diferentes.
Um problema que está no centro do drama e do caos econômico em que vivem os
países subdesenvolvidos capitalistas, com as suas inflações, fome, ditaduras militares,
etc., é o desta insuficiência de mecanismos efetivos de regulação da economia.
O mercado, como regulador, se vê profundamente limitado pela monopolização
muito elevada de uma série de setores-chave da economia, particularmente dos serviços
econômicos. O mercado não é descartado, mas os seus mecanismos são deslocados em
função dos interesses dos grandes grupos. Os produtores de tomate, por exemple,
constituem uma faixa de pequenos e médios agricultores com atividades reguladas por
mecanismos de mercado competindo entre si, o que reduz o preço de venda do produto.
Mas a compra e a transformação está na mão de alguns grupos, como a CICA, onde
domina o sistema de mercado administrado. É o caso igualmente dos produtores de
fumo, relativamente a um gigante como a Souza Cruz. As grandes empresas
transformadoras de tabaco defendem o livre mercado, mas para os seus fornecedores. A
própria transformação é altamente monopolizada.

17
O mercado é assim deslocado para áreas bem definidas da atividade econômica.
Globalmente, não tem força para assegurar a coerência do conjunto das atividades
econômicas.
O planejamento central, como instrumento de regulação ao nível do Estado,
praticamente não existe. Ainda que quase todos os países subdesenvolvidos disponham
de "planos", a atividade econômica não obedece aos planos nem na área privada nem na
área estatal. O planejamento, na realidade, é visto com desconfiança, inclusive com
profundo preconceito ideológico quando tenta ser eficiente. Tem mais função de
promoção política do governo que apresenta o plano, do que de ordenamento das
atividades econômicas.
A participação comunitária e o espaço municipal foram, em geral, esmagados
tanto pela centralização financeira, como pela centralização administrativa. A política
econômica de curto prazo se vê diretamente afetada pelo fato de o Estado ser
dependente da economia capitalista mundial. Dominam as opções vinculadas à balança
de pagamentos, à dívida, ao financiamento externo, às taxas de câmbio, às remessas de
lucros, etc. As políticas de impacto interno, como as de preços e de salários, são
determinadas em função da necessidade de atrair financiamentos externos, de satisfazer
as empresas transnacionais instaladas no país, de manter a competitividade dos produtos
exportados.
As decisões históricas de política econômica do país, como a Instrução 113 da
SUMOC, são relativas a como o país se insere na economia dominante internacional, e
não especificamente de estabelecimento de equilíbrios internos. Assim, os quatro
principais mecanismos de regulação econômica são deficientes ou não existem, ou ainda
são submetidos a interesses que coincidem apenas parcialmente com os interesses da
população.
Na ausência de mecanismos internos suficientemente fortes, predomina como
mecanismo regulador a força das empresas transnacionais, que definem parâmetros de
comportamento econômico para o país, em função de um processo de acumulação cuja
lógica é internacional. É característico que um país como o Brasil, que tinha todas as
condições para uma opção ferroviária em termos de transportes, e de hidroeletricidade
em termos de energia, tenha optado pelo transporte rodoviário, o mais caro, e pelo
petróleo, não renovável, em função das necessidades de desenvolvimento do grupo de
empresas transnacionais do automóvel nos anos 50.

18
A regulação através das empresas transnacionais não deve ser subestimada e
constitui, na realidade, um sistema regulador específico: planejamento do
18desenvolvimento de longo prazo, organização da influência política, sistema de
apoios internacionais, adequação da política econômica do Estado às suas necessidades,
definição de linhas de desenvolvimento tecnológico de longo prazo. Tudo isso tem hoje
pouco a ver com a "mão invisível".
Nenhum país fica com uma economia sem regulação. O que caracteriza a
economia subdesenvolvida é o fato de a regulação se dar dominantemente através de
interesses externos organizados, ainda que haja ampla faixa de coincidência de
interesses entre as orientações das transnacionais e as elites locais. Uma industrialização
centrada no automóvel particular pode não responder às necessidades básicas da
população, mas corresponde aos anseios de conforto das camadas mais ricas.
Isto pode ser dito de outra forma: a regulação através do mecanismo dominante
constituído pelas empresas transnacionais responde a apenas uma parte dos anseios
nacionais. E o problema-chave que se coloca para o país em termos de regulação da sua
economia, em função das necessidades da população, é o de recuperação da autoridade
sobre os mecanismos internos da regulação. A estatização, a nacionalização, ou ainda a
utilização do planejamento central não trarão respostas adequadas enquanto forem
utilizadas no quadro de um processo de acumulação mundial.6
O reforço da economia local significa portanto muito mais do que um small is
beautiful. Significa a recuperação da autoridade da população sobre o seu próprio
desenvolvimento, numa das suas dimensões essenciais.
É importante salientar que não se transforma a economia apenas agindo no nível
local, do bairro ou do município. O desenvolvimento local encontra o seu espaço ao
transformar outros mecanismos de regulação, de forma que o apoiem: planejamento
central, assegurando as infraestruturas; política econômica do Estado, assegurando os
meios financeiros; o mercado, assegurando um sistema organizado de espaço
econômico para a produção local.

6 Não se trata, evidentemente, de sonhar com autarquia. A interdependência é positiva, mas quando os
termos do relacionamento são definidos de forma equilibrada pelos dois lados. A fraqueza dos
mecanismos internos de regulação dificulta a definição de uma política nacional, impedindo ou
limitando o uso produtivo dos aportes externos. O problema não se coloca, portanto, em termos de
economia aberta ou fechada, e sim em termos de condições internas de uma inserção favorável no
espaço econômico mundial. O virtual fracasso das políticas de "ajuda ao desenvolvimento" está
evidentemente relacionado com esta insuficiência de mecanismos internos de regulação.

19
Descentralização, participação e planejamento significam, em última instância, o
gradual reencontro da economia com as necessidades gerais da população.

O potencial da descentralização

O potencial da descentralização e, particularmente, do planejamento municipal, se


manifesta em várias dimensões do desenvolvimento: econômica, financeira,
tecnológica, administrativa e, sobretudo, política.
No plano econômico há uma racionalidade evidente em se assegurar que os
próprios beneficiários das iniciativas econômicas garantam o seu controle. É quem está
construindo uma casa que sabe em que momento estará precisando de telha, cimento,
madeira, mão-de-obra, e em que quantidade. Não há computador ou modelo de
avaliação de projetos capaz de substituir o conhecimento da realidade, ou a motivação
da população local, e assegurar que as realizações correspondam aos seus interesses.
Além disso, a decisão local se dá com o conhecimento dos fatores de produção
existentes. Uma grande empresa produtora de álcool estará interessada na
disponibilidade de mão-de-obra e no seu baixo custo, e assim chega a prever a
viabilidade da instalação de uma usina. Já o município levará em conta o fato de que a
monocultura leva a um emprego intensivo, mas apenas alguns meses por ano, o que
significa que no conjunto a produção da força de trabalho do município será menor, e a
comunidade ficará mais pobre. Ou ainda, poderá promover atividades complementares,
como culturas de ciclo curto, para assegurar o pleno emprego da mão-de-obra durante o
ano todo.
Este ordenamento das atividades econômicas, em função dos fatores
subutilizados, deve ser realizado por quem tem uma visão do conjunto dos interesses da
comunidade, dos recursos disponíveis, do nível de utilização que seria socialmente
desejável.
Ao lado do enfoque de subutilização de recursos, há o enfoque das prioridades: as
empresas que se instalam buscam a sua lógica de lucro, e não levam cm conta o que o
município ou a comunidade mais necessitam numa escala local de prioridades.
Há municípios com situação dramática em termos de alimentação, outros em
termos de acesso à água, outros ainda na área de saúde. Quem pode assegurar que o
conjunto das iniciativas que se tomarão a nível de cada indivíduo que busca o seu lucro

20
corresponderá efetivamente ao que globalmente se deseja para o município? É,
obviamente, o próprio município, organizado de forma participativa.
No plano financeiro, trata-se de assegurar que o excedente criado ao nível do
município fique no município, e que seja racionalmente utilizado. A tendência natural
das forças do mercado é que os recursos financeiros se dirijam para onde têm maiores
oportunidades de aplicação lucrativa. E isso representa em geral a sua orientação para
municípios mais desenvolvidos, onde as infraestruturas existentes asseguram economias
externas — mão-de-obra formada, redes de transporte, sistemas de estocagem e
comercialização, etc., além da existência de um mercado maior.
O resultado é que municípios mais fracos financiam os mais fortes, num processo
de polarização que leva ao êxodo rural, à ruptura cidade/campo, e a tantas outras
manifestações do subdesenvolvimento.
Quando um município se "dissolve" no espaço econômico nacional, deixando que
agências financeiras de São Paulo — que na prática são as que dominam — decidam o
que será feito com recursos financeiros de cada localidade, elevam-se os cursos
burocráticos, já que cada decisão tem de passar pelas matrizes distantes e, sobretudo, a
utilização de recursos se realiza em função dos grandes grupos com quem o banco tem
interesses majoritários e de longo prazo, coincidam ou não com os interesses imediatos
da população local.
Outro campo de grande importância é o da tecnologia. Hoje em dia, as opções
tecnológicas tornaram-se essenciais em termos de escolha de estratégia de
desenvolvimento. É óbvio que, quando a decisão é tomada por critérios setoriais,
predomina a solução "padrão" para todas as realidades, quer a ação seja decidida pelo
Estado, quer por empresas privadas. A SABESP implanta o mesmo "pacote" tecnológico
em municípios grandes ou pequenos, porque desenvolve o seu plano de racionalidade
global — economia pela padronização de equipamento, por exemplo — para todo o
Estado, e busca facilidade de gestão em termos globais. Ao nível de um município
pequeno ou médio, é natural que as soluções deixem simplesmente de levar em conta as
condições particulares, elevando os custos.
Ao nível local pode aparecer como sendo economicamente mais racional a
construção de uma pequena barragem hidroelétrica, com a constituição de um sistema
local de irrigação de terras subutilizadas, do que a solução regional que se preocupa
apenas com a redução do custo unitário de produção da unidade de energia ou com a
possibilidade de passar os contratos para grandes empreiteiras nacionais.

21
O conjunto de tecnologias alternativas, tecnologias "doces" com suas diversas
denominações, não são automaticamente mais rentáveis do que as soluções "grandes" e
de tecnologia mais sofisticada. A vantagem é que são mais maleáveis, mais flexíveis, e
podem se adaptar melhor a especificidades locais. Por isso dependem vitalmente do
reforço do espaço local de decisão econômica.
Um produtor de equipamento grande e sofisticado, que trabalha para todo o país,
busca as soluções "médias" que permitirão aplicação mais generalizada. As próprias
vinculações internacionais levam a que estas soluções sejam às vezes as mais
exportáveis. Como fica, frente a esse tipo de solução técnica, um município que tem
uma camada significativa de produtores rurais e industriais de pequena e média escala?
A ampla gama de tecnologias alternativas hoje existentes constitui um recurso
suplementar importante para a dinamização do desenvolvimento, mas necessita de um
espaço de decisão econômica descentralizada e participativa. Tecnologia alternativa
implantada sob forma de "pacote" é tão pouco produtiva quanto a tecnologia pesada.
Outra dimensão do planejamento municipal é a racionalidade administrativa que
ele permite.
Antes de tudo, o município, a comunidade ou um bairro constituem espaços
socialmente identificados, ou espaços participativos. Nas diversas áreas profissionais
sabe-se quem é quem, quem é competente e quem não é, há uma dimensão geral nas
coisas que permite que sejam compreendidas e dominadas pela própria comunidade.
Quem de nós já não sentiu a sua impotência como indivíduo da grande empresa
que opera em nível nacional, ou da grande máquina administrativa estatal? A empresa
expulsa a mão-de-obra, elimina a base alimentar local, polui os rios, e o indivíduo se
sente como espectador de uma dimensão que lhe escapa.
Trata-se, sem dúvida, e no aspecto mais rigoroso, da perda de uma parcela da
cidadania. Uma decisão federal ou estadual que leva ao alagamento de uma região, ou a
sua invasão pela cana — como resultado de subvenções do Estado — é uma decisão de
"racionalidade" nacional, buscando reforçar a produção de energia. Não há
possibilidade de uma administração racional dos recursos enquanto não houver
capacidade por parte do município, da comunidade, de negociar o ajuste da
racionalidade nacional com a racionalidade local. Isto é tão pouco subversivo que
ocorre não apenas nos países socialistas, como na maioria dos países capitalistas
desenvolvidos.

22
Na realidade, é preciso recuperar a racionalidade da decisão local. Não há
computador que substitua o conhecimento direto que um bom administrador tem do seu
campo de trabalho. Os complicados dossiês de pedidos de financiamento que viajam de
qualquer município até São Paulo para serem examinados por economistas treinados em
cálculo de taxas de retorno, nunca atingiram o nível de eficiência de um bom gerente
que sabe com quem trabalha e nas mãos de quem está pondo o dinheiro. No sistema
centralizado em que vivemos há um gigantesco custo burocrático de seguimento de
milhões de pequenas decisões locais. De certa forma, os custos administrativos das
grandes empresas refletem o mesmo problema que viviam há vinte anos as burocracias
socialistas, quando toda decisão local tinha que passar por instâncias centrais.
É importante compreender que o problema da centralização excessiva é, no Brasil,
tanto um problema estatal como empresarial. A empresa privada é uma área produtiva,
mas sobretudo de serviços como as grandes redes bancárias, não deixa nada a desejar às
burocracias públicas.
Em outros termos, a divisão hoje passa em parte apenas entre o setor privado e o
setor estatal. Mais importante se tornou a divisão ante o aparelho central, incluindo os
grandes monopólios nacionais, as multinacionais e as estatais, com o apoio político
centralizado ao nível federal por um lado; e o conjunto das iniciativas locais e
comunitárias, privadas ou não, que se moldam às necessidades reais do espaço de sua
implantação.
Enfim, o problema da descentralização tem uma dimensão política essencial. O
aumento do espaço de decisão local significa um aumento de decisões em que os
indivíduos da comunidade sabem de que se trata, quem é responsável, quais são os
interesses em jogo.
Para o indivíduo não interessa apenas que as iniciativas econômicas tomadas
correspondam às suas necessidades. O indivíduo encontra na construção das condições
da sua vida e na organização do seu cotidiano uma dimensão importante da sua
existência. Em outros termos, o cidadão tem o direito de contribuir para a orientação do
seu desenvolvimento.
De certa forma, a descentralização hoje representa a devolução do espaço de
decisão ao cidadão, que antigamente ele tinha ao ser proprietário da sua unidade
agrícola, do seu posto de artesão. Hoje, esta participação é necessariamente muito
limitada, tanto na grande empresa privada como na administração estatal centralizada. A

23
produção se faz em grande escala, as decisões são técnicas, em geral sequer
compreendidas pelo cidadão.
Mas a tão necessária dimensão participativa está sendo recuperada através do
espaço de residência e de convívio que representam o município, o bairro, a
comunidade.
Devolver uma dimensão significativa à decisão local implica devolver ao cidadão
um espaço onde ele pode moldar o mundo no qual vive. Recuperar o espaço de decisão
local significa recuperar a dimensão política da economia, e com isto a dimensão
política do cidadão. O que pode significar uma cidadania que não intervém sobre a
criação de suas condições de vida?

24
Os recursos disponíveis

Planejar é promover de maneira ordenada o desenvolvimento dos recursos


existentes. E o planejamento municipal é particularmente importante, pois além da
necessidade geral de planejamento — por razões que já vimos do enfraquecimento do
mercado como mecanismo regulador — é preciso levar em conta que o município
passivo frente às grandes forças econômicas nacionais se vê simplesmente engolido por
dinâmicas que lhe escapam.
Ninguém vai pedir desculpas a um município que se deixou invadir por uma
monocultura qualquer, permitiu que as terras fossem esgotadas, o agricultor
transformado em trabalhador temporário, ficando o município empobrecido e
desarticulado; perguntarão apenas por que ele não teve capacidade de defender os seus
interesses.
Defender os interesses é promover o desenvolvimento municipal, numa visão de
longo prazo, entendendo que é o lugar de vida dos filhos, dos netos, a quem é preciso
deixar algo melhor: é este problema que enfrentamos.
E óbvio, entretanto, que se trata de dinamizar o que já existe, e não de inventar
uma visão futura idealizada, desgarrada da realidade. Planejar é, antes de tudo, ter os
pés no chão, entender a dinâmica existente para então intervir.
O primeiro passo é uma sólida avaliação dos recursos existentes. No Brasil, por
exemplo, dos 850 milhões de hectares que compreendem o território nacional, temos
cerca de 450 milhões de hectares de boa terra pronta para cultivo. Segundo o último
censo agrícola, estamos cultivando apenas 50 milhões de hectares,7 pouco mais de 10%.
Enquanto isso, no país temos algo como 25 milhões de trabalhadores desempregados ou
subempregados. O resultado é que cerca de 80 milhões são subnutridos, num dos países
mais bem dotados em recursos naturais e humanos.
Esta situação, ao nível de país, resulta de um acúmulo de subutilização de recursos
em milhares de municípios. E cabe a cada município analisar como se manifesta
concretamente esta deformação no seu território.
Em termos práticos, a pergunta que se deve fazer em cada município é a seguinte:
quais são os recursos disponíveis e como estão sendo utilizados?

7 Culturas temporárias; as culturas permanentes representam cerca de 30 milhões de hectares.

25
Os recursos naturais

O primeiro passo é a avaliação dos recursos naturais. É surpreendente a que ponto


as administrações municipais desconhecem o estoque de recursos existentes. A
prefeitura muitas vezes se preocupa com a administração puramente urbana, sem atentar
suficientemente para a dinamização do seu potencial de riqueza.
O recurso mais óbvio é a terra. É evidente que não há terra "disponível": toda a
área é normalmente apropriada por diversos agentes econômicos. Entretanto, é
necessário avaliar esta apropriação e confrontá-la com o uso que está sendo dado.
Essas avaliações são relativamente simples de fazer e consistem no que se chama
de análise do solo e do seu uso. Há terras mais ou menos férteis, critério técnico
fundamental. A esse critério é preciso acrescentar uma avaliação econômica: quais terras
estão melhor situadas em termos de acesso a vias de transporte, de mercado, de água
para irrigação e para pecuária, etc. Essa avaliação permite então ter uma ideia do
potencial agrícola do município.
Esse potencial, por sua vez, é confrontado com o uso real, o qual pode ser
classificado segundo a intensidade. Há as culturas intensivas, como a horticultura, em
que o valor extraído por hectare é muito elevado. Em seguida, as culturas extensivas,
particularmente de grãos e, de forma geral, as culturas temporárias, que se renovam em
cada ano (arroz, feijão, etc.). Várias culturas permitem um uso mais racional do solo
através do cultivo associado (milho com feijão, por exemplo) ou do cultivo duplo.
Em termos de intensidade de uso do solo, vêm em seguida as culturas
permanentes (café, laranja, etc.), que podem ser relativamente mais econômicas em
mão-de-obra permanente, mas que exigem mão-de-obra temporária em grande
quantidade no período da safra, causando instabilidade de trabalho.
Nenhum proprietário diz que a sua terra está parada e considera "pasto" qualquer
terra onde haja gado. Na realidade, no Brasil há uma média de três hectares por animal,
o que significa realmente terra jogada fora. É preciso avaliar qual a capacidade local de
sustento de gado por hectare e determinar, em função disso, a subutilização da terra.
Duas outras formas de subutilização da terra são o pousio e a reserva florestal.
Ambas podem ser necessárias ou constituir uma forma disfarçada de evitar o uso
produtivo do solo.

26
Finalmente, há a gigantesca subutilização da terra, que consiste em simples
especulação. O Brasil ainda é um dos poucos países no mundo em que se utiliza terra
26como reserva de valor. Em outros termos, em vez do empresário procurar desenvolver
a produção, imobiliza a terra, na espera de que atividades de investimento do Estado ou
de outros empresários venham valorizar o seu imóvel. Cria-se assim uma casta de
proprietários que nem produzem, nem deixam produzir, e criam um "peso" de
imobilismo que paralisa o município.
Faz parte essencial do planejamento elaborar um quadro da situação, mostrar aos
habitantes do município o desperdício ocasionado de recursos econômicos e promover a
sua mobilização. Em muitos países, a terra parada paga tantos impostos que os
proprietários são obrigados a produzir, ou a vender a terra a quem seja capaz de
produzir.
Outro recurso geralmente subutilizado é a água. Mais uma vez, há um
conhecimento insuficiente deste recurso. Um estudo aprofundado dos recursos hídricos
pode apresentar um imenso potencial subutilizado em termos de acesso a água potável,
promoção de irrigação, desenvolvimento de piscicultura e recuperação de terras por
drenagem de várzeas. O desenvolvimento de infraestruturas para o cinturão verde das
cidades, com horticultura intensiva em pequenas propriedades, permite absorver o
desemprego ou assegurar a atividade da mão-de-obra subutilizada durante certos
períodos do ano, sobretudo no caso de municípios com forte proporção de monocultura.
A água é um recurso social e o seu uso racional no município deve ser planejado:
devem ser estudadas as diversas fontes, confrontadas com os diversos usos. É o que se
chama de balanço de recursos hídricos. Lembremos que uma boa utilização de água
potável constitui muitas vezes a forma mais rápida e mais barata de eliminar as
principais doenças, e que o ordenamento racional do uso da água pode dinamizar
fortemente tanto a agricultura como a indústria.
Um outro recurso natural, geralmente pouco estudado e subutilizado, é o material
de construção. Trata-se de material pesado, e o não aproveitamento dos recursos locais
significa custos de transporte elevados de produtos de outras regiões. É preciso realizar
o balanço de materiais de construção e conhecer a fundo os recursos locais: pedra,
argila, madeira, fibras, etc. Esse conhecimento permitirá ao município, por sua vez,
adotar uma política tecnológica de construção frente às empreiteiras, privilegiando as
empresas dispostas a utilizar materiais de construção locais, reduzindo os custos.

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Assim, além da economia realizada, a atividade construtora pode levar à
multiplicação de uma série de atividades que geram emprego, nas áreas de cerâmica,
madeira, etc, assegurando uma melhor integração econômica do município e permitindo
a criação de economias externas.
Enfim, o município deve promover estudos aprofundados das suas reservas
minerais. Não é necessário esperar que uma empresa do Estado ou internacional faça os
estudos e, ulteriormente, se aproveite dos conhecimentos para a montagem de empresas
com pouca participação do município. O conhecimento prévio dos seus recursos por
parte do município melhora a sua capacidade de negociar com as empresas candidatas
às formas de exploração capazes de assegurar proveitos para a integração econômica do
próprio município, privilegiando subcontratos com empresas locais já existentes.
Na realidade, muitos municípios ficam aguardando, de forma passiva, que os
estudos do solo sejam realizados pelo Ministério da Agricultura, que os estudos
minerais sejam realizados pelo Ministério das Minas e Energia ou por empresas
privadas e assim por diante, sem levar em conta que a prefeitura e a comunidade dos
habitantes do município são os únicos que podem juntar os dados relativos aos recursos
hídricos, da terra, minerais e outros, para definir uma visão global coerente e uma
estratégia de desenvolvimento racional para o município.
Dois pontos devem ficar claros para quem se preocupa com o desenvolvimento do
seu município: primeiro, em nenhum lugar se cruzam as informações setoriais (minas,
energia, agricultura, etc.) a não ser no próprio município, e se as autoridades municipais
com a comunidade não promoverem a harmonização de políticas ao nível local, esta
simplesmente não ocorrerá; segundo, a área dos recursos naturais é uma área em que os
mecanismos de mercado são particularmente inoperantes e geralmente nocivos.
Os recursos naturais são não renováveis, ou renováveis a longo prazo (caso das
florestas) ou com custos elevadíssimos (caso da água poluída ou da terra esgotada). A
destruição da fauna ou dos recursos pesqueiros é também em geral definitiva, e hoje um
sem número de municípios vê uma base importante de produção da sua riqueza
simplesmente destruída.
Isso resulta dos mecanismos de mercado nessa área da economia. Numerosas
empresas pesqueiras, por exemplo, praticam a sobre-pesca, ou seja, a pesca excessiva
que não permite a reprodução do peixe e acaba destruindo os recursos. As empresas
deslocam-se então para outras regiões, continuando a destruição. Essas empresas se
justificam de forma simples: se não recorrerem a essa prática, outras o farão, levando

28
assim o lucro. Dessa forma, a concorrência nestes casos leva a uma destruição da base
de reprodução de riqueza da população, o recurso natural.
No Japão é proibida a pesca, para as grandes empresas, no litoral onde existem
municípios com comunidades de pescadores: os barcos de pesca industrial devem
buscar o peixe em alto mar, ou firmar contratos no exterior. Isto foi obtido por meio de
organização dos municípios e das comunidades.
A área dos recursos naturais exige assim um controle efetivo da comunidade
ameaçada, não só para protegê-los, como para assegurar a sua exploração racional.
Isso, por sua vez, exige uma transformação do equilíbrio de decisão política, entre
as empresas que exploram os recursos naturais e a comunidade: trata-se de democratizar
a decisão econômica do município. O Brasil é, neste sentido, um país
caracteristicamente subdesenvolvido: as empresas privadas ou estatais consideram que
não tem satisfação a dar às comunidades onde se instalam, e que a prefeitura deve
limitar-se a asfaltar ruas e ornamentar praças.
O resultado é o nível impressionante que atingiu no Brasil o esgotamento de
solos,8 a destruição de florestas — com as perturbações de chuvas e de desertificação
que resultam — a poluição do litoral de norte a sul do país, o desaparecimento da fauna,
do recurso pesqueiro, a poluição dos rios e do ar, dinâmica cujo impacto sentirá a
próxima geração, mas de maneira irreversível se não intensificarmos as providências
hoje.

Os recursos humanos

Para tornar os recursos naturais produtivos, é necessário mobilizar os recursos


humanos, com a ajuda do capital acumulado. Vejamos os recursos humanos.
Em termos práticos, temos quatro problemas a estudar, quando se trata de recursos
humanos: a avaliação da força de trabalho, o seu nível de formação, as formas de sua
utilização e o seu nível de remuneração.
Cada município dispõe de uma determinada força de trabalho. Esta deve ser
conhecida em detalhe. No Brasil, por exemplo, temos em 1987 cerca de 140 milhões de

8 Este constitui um exemplo clássico dos efeitos dos mecanismos de mercado na área de riqueza não
renovável: como é mais barato comprar terra nova que recuperar a terra esgotada, em muitas regiões
as empresas rurais praticam um cultivo predatório, destroem a mata, esgotam o solo e se deslocam
simplesmente para a região seguinte, deixando as áreas esgotadas para a pecuária extensiva, que não
cria riqueza nem emprego para a população local.

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habitantes. Desses, cerca de 80 milhões, entre 16 e 64 anos, estão em idade de trabalhar.
Cerca de 55 milhões estão dispostos a trabalhar, o que constitui a população
economicamente ativa, a PEA. A diferença entre a população em idade de trabalhar e a
população disposta a trabalhar — no Brasil são cerca de 25 milhões de pessoas —
resulta, em boa parte, da falta de emprego interessante e remunerador. Se subtrairmos
dos 55 milhões da PEA os desempregados ou subempregados, os setores "tampão" do
emprego como domésticas, etc., e os setores de baixa produtividade, por falta de
formação, organização e equipamento minimamente adequados, e compararmos o
resultado com a população em idade de trabalhar, teremos uma ideia da imensa
subutilização do nosso principal recurso: a força de trabalho. Parece-nos realista estimar
que no Brasil temos mais de 25 milhões de pessoas subutilizadas ou simplesmente não
utilizadas para efeitos de desenvolvimento econômico, em cálculo francamente
conservador.
A subutilização da mão-de-obra constitui seguramente um dos principais
problemas que enfrentamos, e a sua raiz se encontra em situações concretas nos
municípios.
A primeira providência consiste, portanto, em se criarem as bases informativas
para se conhecer os recursos humanos disponíveis: população total, população em idade
de trabalho, população economicamente ativa, população efetivamente empregada,
desemprego declarado, desemprego oculto.
O cruzamento dos dados de subutilização dos recursos humanos com os dados de
subutilização de recursos naturais — terra, materiais de construção ou outros — aponta,
frequentemente, para soluções práticas que podem ser colocadas para discussão da
comunidade, visando a promoção do desenvolvimento do conjunto dos recursos.
Um segundo ponto a estudar é o nível de formação da mão-de-obra, um dos
problemas-chave do Brasil. Em 1983, de um total de 51 milhões de trabalhadores, 31
milhões, ou seja, 61,6% eram semiletrados ou simplesmente analfabetos.9
Como promover um desenvolvimento, que exige cada vez mais conhecimentos,
quando na média a população ativa dos municípios do interior do país é constituída por
dois terços ou mais de analfabetos funcionais?
O baixo nível de formação da mão-de-obra acarreta a dificuldade de se promover
investimentos mais sofisticados. O resultado são municípios invadidos pela monocultura

9 Quarto ano escolar ou menos. Detalhes e fontes, em L. Dowbor, Aspectos econômicas da educação,
São Paulo, Ática, 1986.

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e a usina de álcool, ou os municípios de pecuária, que expulsam mão-de-obra. No
primeiro caso, o resultado são os municípios "bóia-fria". No segundo, municípios
despovoados, com prosperidade de grandes fazendeiros apenas.
Romper o círculo vicioso exige tempo, pois o investimento no homem é de longo
prazo. O ensino privado apenas se interessa pela lucrativa formação de elites, enquanto
o Estado assegura um ensino formal apenas parcialmente adequado à formação da mão-
de-obra.
As soluções têm, portanto, de ser locais. Conhecendo detalhadamente o nível de
formação local e as especializações existentes, a comunidade tem de promover o
preenchimento das insuficiências mais evidentes e procurar gradualmente favorecer
investimentos que qualificam a mão-de-obra, em vez de desvalorizá-la.
Eliminar o analfabetismo, universalizar o ensino formal, melhorar a formação dos
professores, adequar o ensino profissional à dinâmica econômica local, envolver as
empresas na elevação do nível de formação da mão-de-obra, tudo isso exige visão de
conjunto e um ordenamento de ações de longo, médio e curto prazo, que não pode
evidentemente ser deixado para a "mão invisível", já que o mercado e a "livre iniciativa"
são, reconhecidamente, inoperantes nos investimentos sociais de longo prazo.
Mas nos parece igualmente inoperante a regulação através de iniciativas
centralizadas do Estado: a dinamização da formação da mão-de-obra e a promoção de
atividades capazes de absorver e multiplicar esta formação exigem que o conjunto do
processo seja regulado localmente, através de ampla participação comunitária nos
diversos níveis. Os governos federal e estadual são importantes para apoiar esta
dinâmica, mas a orientação deve ser fundamentalmente local.
O terceiro problema é o das formas de utilização da mão-de-obra, estreitamente
vinculado, conforme vimos, ao nível de formação.
No Brasil, em 1983, a população economicamente ativa era da ordem de 51
milhões de trabalhadores. Desses, 6,8 milhões trabalhavam na indústria, 13,1 milhões na
agricultura, 4,6 milhões na construção, 5,1 milhões no comércio, para mencionar alguns
setores mais significativos.
De forma geral, o município no Brasil caracteriza-se pela convivência de setores
adiantados e setores muito atrasados. Isto resulta do progresso tecnológico de tipo
"vertical" que faz avançar muito alguns setores e deixa outros estagnados, levando à
constituição de ilhas tecnológicas que não conseguem dinamizar o conjunto de tecido
econômico da região. Frequentemente, inclusive, estas "ilhas" têm mais vinculações

31
com a área internacional ou com as metrópoles do país do que propriamente com a
economia local. Este tipo de desenvolvimento resulta, obviamente, na subutilização dos
recursos humanos do município.
A monocultura ou excessiva especialização do município — que acaba
dependendo de um só ou de alguns produtos apenas — leva a necessidades muito
elevadas de mão-de-obra no período do plantio ou da safra, e a um vazio durante o resto
do ano. Isso dá origem ao nomadismo rural e à formação de periferias miseráveis e
instáveis em torno dos centros rurais.
Pode-se esperar que a iniciativa privada resolverá o problema da plena utilização
da mão-de-obra? O Banco Mundial estimou que no ritmo atual levaria cerca de três
quartos de século para absorver a mão-de-obra marginalizada.10
O município deve elaborar o calendário de utilização dos seus recursos humanos,
de forma a completar com atividades secundárias os períodos de pouco emprego, ou de
utilizar a mobilização de estudantes e faixas normalmente não empregadas nos
momentos de pico, ou ainda multiplicar atividades sazonais complementares.
E deve-se, sobretudo, pensar nas especializações setoriais que melhor possam
viabilizar a economia do município, concentrando a formação e a utilização da mão-de-
obra nesses setores: é o caso de municípios turísticos, de municípios de serviços, etc.
A harmonização interna, no espaço do município, entre atividades industriais,
agrícolas e de diversos serviços, a elevação do nível tecnológico do conjunto, visando
tanto a plena utilização dos recursos humanos como a homogeneidade tecnológica,
exige evidentemente um espaço de participação ampla nas decisões e uma ruptura com
formas centralizadas em que algumas famílias ou algumas empresas ordenam o espaço
municipal em função dos seus interesses ou de interesses externos.
Planejamento municipal e democratização são neste sentido inseparáveis, e as
forças políticas retrógradas terão de adaptar-se.
Um último ponto importante: o nível de remuneração. É conhecida a situação
muito particular do Brasil neste campo: os 10% de famílias mais ricas do país
consomem mais da metade do produto social, o que, segundo a classificação do Banco
Mundial, nos coloca em último lugar em termos de distribuição de renda e justiça social.
Isto significa um baixíssimo nível de remuneração de grande parte da população
trabalhadora: em 1983, 28 milhões de trabalhadores, 57% do total, auferiram menos de
dois salários mínimos, limite de pobreza absoluta. Desses 28 milhões, 16% auferiam

10 Banco Mundial, Brazil: Human Resources Special Report, Washington, 1979.

32
salários inferiores a um salário mínimo. Um salário mínimo significa cerca de dois
dólares por dia pelo câmbio oficial. Em geral, cerca de duas pessoas pelo menos devem
viver com cada salário.
Esta marca maior do subdesenvolvimento e do atraso político só será erradicada
ao ser enfrentada município por município. Teoricamente, uma prefeitura pouco pode
fazer neste campo, já que os salários são geralmente pagos por empresas privadas. Além
do mais, prevalece ainda uma concepção teórica do século passado, segundo a qual o
baixo salário atrai desenvolvimento, na medida em que as empresas buscam fatores de
produção mais baratos. Se esse mecanismo funcionasse, o Nordeste estaria hoje
impressionantemente desenvolvido.
Na realidade, os grupos dirigentes do município têm que tomar consciência de que
a modernização exige, conforme ocorreu nos outros países hoje desenvolvidos, a
generalização da prosperidade. Mão-de-obra formada, bem remunerada, significa mão-
de-obra de elevada produtividade e que constitui forte mercado local, atraindo
atividades mais nobres e mais dinamizadoras do desenvolvimento.
Um município tem, na realidade, uma gama de instrumentos de intervenção: a
fiscalização efetiva da aplicação das leis trabalhistas, do registro da carteira profissional,
o favorecimento de empresas que têm política salarial mais avançada quando da
instalação de novas empresas, além do amplo trabalho de conscientização da
comunidade sobre os seus direitos e deveres na área do acesso ao produto social -
podem contribuir significativamente para a modernização das relações salariais. Em
geral, torna-se igualmente essencial a promoção do pequeno e médio agricultor, em
termos de condições de vida e de trabalho.
Não há dúvida, entretanto, que o problema do nível de remuneração e do acesso à
renda do país dependem primordialmente da política econômica do Estado.
Poucas pessoas mantém hoje a ilusão de que o mercado constituiria um regulador
eficaz da distribuição de renda. O salário hoje depende menos da capacidade individual
do profissional, do que do circuito econômico ao qual pertence. E a remuneração nos
diversos circuitos econômicos depende essencialmente, conforme vimos, da posição
estratégica ocupada pelo setor na cadeia técnica de um produto ou de um serviço —
veja-se a capacidade de obter salários de mecânicos de aviação — e da capacidade de
organização sindical.
O planejamento econômico centralizado tampouco constitui um instrumento
regulador significativo neste campo: os níveis salariais e o acesso das diversas parcelas

33
da população ao produto social dependem menos de um plano e da sua decisão técnica
sobre a melhor estrutura de remuneração, do que de equilíbrios políticos que
determinem a política econômica do Estado.
Isso não impede que, em termos gerais, a política de recursos humanos, a sua
modernização, melhor utilização, melhor formação e nível mais justo de remuneração
devam constituir um eixo essencial de preocupação do planejamento municipal.

A riqueza acumulada

Conforme vimos, o município dispõe de recursos naturais e de recursos humanos


para aproveitá-los. Mas este aproveitamento se faz por meio de instrumentos de
produção e sobre a base de uma riqueza já acumulada nas etapas anteriores.
O conhecimento detalhado desta acumulação é essencial.
A riqueza acumulada deve ser avaliada nas suas duas formas: o nível de riqueza
individual dos habitantes e o nível de desenvolvimento das forças produtivas.
A riqueza individual se mede, antes de tudo, pelo domicílio. O último censo, de
1980, nos dá uma ideia de como vive o brasileiro. São 26,4 milhões de domicílios. Um
terço é de apenas um dormitório, e 2,5 milhões de domicílios têm um só dormitório,
mas abrigam mais de quatro pessoas.
Outra linha de avaliação do nível de riqueza individual acumulada é o que
podemos chamar de equipamento doméstico básico. No Brasil de 1980, 32% dos
domicílios cozinham com fogão a lenha, 55% têm televisão, 22% têm automóvel, e 59%
não têm instalações sanitárias, sequer a fossa séptica. Além do problema da
insuficiência de equipamento, coloca-se aqui, portanto, o problema do equilíbrio na sua
aquisição: há mais domicílios com televisão do que com instalações sanitárias mínimas.
É preciso ter uma ideia do conjunto destes dados para saber qual é o nível de
riqueza acumulada dos habitantes do município, e para estimular atividades que
assegurem a generalização deste conforto. Afinal, o desenvolvimento econômico tem
em boa parte este objetivo.
A habitação e o equipamento doméstico básico constituem riqueza individual.
Mas, hoje em dia, o conforto e o nível de vida dependem em grande parte da base de
consumo social: a população deve ter fácil acesso ao médico, à escola, ao ônibus, à
informação, à cultura.

34
Na realidade, a dinamização e ordenamento destes três tipos de riqueza acumulada
— a habitação, o equipamento doméstico e a base de consumo social — dependem de
mecanismos de regulação bastantes diferentes.
A habitação, enquanto fica na mão de grandes empresas construtoras, e ainda que
o financiamento esteja na mão do Estado, será excessiva para os ricos e insuficiente
para os pobres. É preciso realmente assegurar uma política local, não apenas por
município, como frequentemente por bairro, para que os habitantes possam controlar a
construção de acordo com os seus meios. São políticas necessariamente diversificadas,
onde funciona particularmente bem a cooperativa, que exige controle local e
diferenciação segundo o nível do poder aquisitivo.
O equipamento domiciliar é, em geral, produzido por grandes empresas
transnacionais e escapa quase totalmente à política industrial do município. É uma área
regulada pelo que chamamos de "mercado administrado", em que a concorrência existe,
mas entre um número limitado de empresas. Para assegurar as necessidades das
famílias, o município deverá promover o acesso à renda de forma cada vez mais justa,
forma indireta de assegurar o acesso ao produto.
Quanto às infra-estruturas sociais, trata-se, sem dúvida, de uma área de
intervenção particularmente adequada aos mecanismos locais de regulação. É o
município que pode, melhor do que grandes empresas privadas ou o planejamento
estatal, assegurar que cada comunidade, cada bairro, tenha o seu posto de saúde, a sua
escola, o seu cinema, os seus meios de transporte e a segurança adequados. Nada como
o habitante de um bairro para saber onde há lama quando chove, onde o atendimento
médico é insuficiente. E o debate das comunidades de vários bairros confrontando as
suas necessidades tem dado melhores resultados do que a avaliação de projetos por
instituições financeiras distantes — sejam estatais ou privadas — ou a submissão da
dinâmica à voracidade das empreiteiras, que têm tanto mais facilidade de intervir sobre
as decisões quanto estas são mais centralizadas.
O conforto econômico do cidadão não se limita naturalmente aos três grupos de
consumo enumerados acima. Tem particular importância, por exemplo, o abastecimento
diário em bens de consumo não duráveis. Mas estes não se acumulam e dependem da
capacidade instalada de produção e distribuição.
A capacidade de produção resulta de uma acumulação de longo prazo, e o seu
conhecimento é essencial. Podemos organizar os dados em torno de quatro áreas: o

35
aparelho produtivo rural, o aparelho produtivo industrial, as infraestruturas físicas e as
infraestruturas de serviços econômicos.
É importante notar que a intensidade de uso do aparelho produtivo e das
infraestruturas depende em grande parte de mecanismos de mercado, dos preços de
fatores e dos preços de venda ao consumidor. Mas a própria estruturação do aparelho
produtivo e das infraestruturas depende de intervenção consciente e de planejamento,
envolvendo uma visão de longo prazo e a harmonização das decisões dos agentes
econômicos, privados ou não, que o mercado não pode assegurar.
O aparelho produtivo rural envolve o investimento na própria terra — não a
compra e sim os investimentos de desenvolvimento da capacidade de produção, como
canais de irrigação ou drenagem, desmatamento, plantio de árvores contra erosão — nas
construções e no maquinário agrícola. Este aparelho produtivo pode ser mais ou menos
desenvolvido, ou até inexistente no caso da terra ser utilizada como reserva de valor e
não como capital, como pode ser desigual, no sentido de sobrecapitalização de algumas
grandes propriedades, por exemplo, e de subequipamento do pequeno e médio produtor.
O conhecimento detalhado do aparelho produtivo industrial é igualmente
importante, visando identificar o grau de desenvolvimento global e os desequilíbrios
existentes. É fundamental, por exemplo, desenvolver de forma equilibrada a capacidade
de produção industrial e agrícola, para assegurar a homogeneidade do tecido econômico
do município, promovendo uma integração entre os diversos setores de produção.
Quanto mais o município transforma localmente, mais excedente é reaplicado ao nível
local.
Em outros termos, uma empresa relativamente pequena, ainda que tenha custos
unitários relativamente mais elevados do que uma grande empresa instalada em São
Paulo, pode ser viável porque se "encaixa" bem no tecido econômico local, economiza
em custos de matéria-prima local e em transportes, e tem efeitos estruturais positivos
sobre o conjunto da economia local.
O município tem que ter esta capacidade de estudar os "nichos" industriais mais
viáveis e promover — através de créditos, isenções, etc. — os investimentos
complementares que asseguram a melhor integração entre agricultura e indústria, e a
melhor integração entre as empresas existentes.
Hoje já não é possível ter uma atitude passiva frente à estruturação do aparelho
produtivo do município, pois os chamados mecanismos de mercado não asseguram
suficientemente as complementaridades locais. Um município passivo pode se tornar

36
uma simples periferia de uma grande empresa, produzindo matéria-prima para uma
transformação cujos frutos não retornam ao município, e levando a uma desvalorização
progressiva tanto dos recursos naturais como humanos.
O aparelho produtivo, tanto agrícola como industrial, necessita para o seu
funcionamento de um conjunto de infraestruturas que tampouco se constitui
36espontaneamente, por influência da "mão invisível". De certa forma essas
infraestruturas constituem as veias e outros canais de comunicação que existem no
nosso corpo e asseguram o funcionamento adequado do conjunto.
Um grupo de infraestruturas é o que podemos chamar de infraestruturas físicas:
trata-se da rede de estradas e outras infraestruturas de transportes e armazenagem; da
rede de telecomunicações, permitindo a circulação da informação; da rede energética,
permitindo a produção e distribuição da energia; da rede de canalização de água e
esgotos.
Essas quatro redes fundamentais de infraestrutura constituem o tecido de apoio
das atividades econômicas, criando o que chama de "economias externas": um
município bem dotado em infraestruturas físicas assegura que novos empreendimentos e
as empresas existentes encontrarão uma série de condições básicas para funcionar de
maneira mais eficiente.
As infraestruturas físicas constituem uma área privilegiada do planejamento
municipal. Trata-se de investimentos públicos em geral, através dos quais a comunidade
financia melhores condições de funcionamento para a empresa. É fundamental,
portanto, que esses investimentos sejam organizados de forma que as diversas redes se
complementem e permitam o crescimento harmonioso da cidade e das atividades rurais.
O mapeamento adequado das infraestruturas existentes permite, normalmente,
visualizar com facilidade as áreas insuficientemente servidas, as discrepâncias entre as
diversas redes, e os tipos de desequilíbrios que o município terá de enfrentar.
Não há mecanismo de mercado que possa assegurar o desenvolvimento
harmonioso das infraestruturas físicas, na medida em que se trata em geral de
investimentos caros, de longo prazo, que exigem uma visão global do desenvolvimento
do município e que são rentáveis de forma indireta, pelas economias externas que criam
para o conjunto das atividades econômicas. Uma empresa privada pode até ser
encarregada de gerir um serviço, mas a construção das suas infraestruturas exige
planejamento local e, geralmente, financiamento público.

37
É importante lembrar que, ainda que a construção das redes de infraestruturas
físicas possa depender de administrações supramunicipais ou de autarquias, como no
caso de energia ou de telecomunicações, a lógica integradora do conjunto das redes
depende da influência da prefeitura e da participação comunitária sobre as formas de
sua estruturação local.
O outro grupo é constituído pelas infraestruturas de serviços econômicos. Trata-se
essencialmente de dois tipos de serviços, indispensáveis para o funcionamento
adequado da economia municipal: os serviços comerciais e os serviços de intermediação
financeira.
O comércio é dominantemente de área privada e constitui seguramente uma
atividade regulada por mecanismos de mercado, em que o planejamento municipal ou o
planejamento central têm pouca interferência. Entretanto, à própria necessidade
crescente de organização do conjunto da economia abre espaços significativos de
intervenção de dois mecanismos.
Por um lado, trata-se do mecanismo regulador da política de conjuntura do
Estado, que intervém sobre os preços, e coloca barreiras à especulação e abuso
econômico que a concentração econômica crescente ocasiona. O Plano Cruzado é um
exemplo típico de intervenção estatal nesta área.
Por outro lado, o planejamento municipal tem de assegurar o equilíbrio das redes
de infraestruturas comerciais, de forma que cada bairro, cada comunidade do município,
tenha um acesso fácil aos produtos básicos. A organização das feiras livres, a criação de
circuitos diretos de contato produtor-consumidor, a própria defesa do consumidor, cada
vez mais esmagado pela força da grande empresa comercial, definem uma ampla área
de intervenção reguladora municipal.
A monopolização e especulação sobre produtos básicos constitui uma praga de
quase todos os países capitalistas ou socialistas. Nos países capitalistas
subdesenvolvidos, o problema é simplesmente mais grave, com o impressionante nível
de monopolização comercial que atingiu produtos de consumo diário.
O município precisa criar a sua ‘identidade comercial' e deixar de ser
simplesmente um ponto de cruzamento de interesses federais, estaduais e de grandes
grupos privados. No Brasil este problema é particularmente agudo, na medida em que
frequentemente a monopolização, ao nível de circulação, é mais elevada — somos o
país dos intermediários — do que ao nível de produção.

38
Outra área essencial que deve ser avaliada é a da intermediação financeira. O
Brasil herdou do regime militar uma gigantesca máquina financeira, extremamente
centralizada, permitindo um elevado grau de monopolização do acesso aos recursos
financeiros,
O funcionamento de milhares de agências — hoje um município com menos de 50
000 habitantes frequentemente tem entre 10 e 15 agências bancárias — constitui um
custo para a sociedade. Os bancos financiam esses custos e os seus lucros através dos
juros elevados, o que dificulta a atividade produtiva. As empresas que tomam
empréstimos incluem os custos financeiros no custo de produção, aumentando os preços
de venda, e é finalmente o consumidor quem paga, no preço mais elevado do produto,
os custos da intermediação, cada agência construída, cada computador instalado.
O sistema de intermediação financeira cobra assim um tipo de imposto privado, já
que o consumidor paga os seus custos de funcionamento, ainda que não utilize nenhum
banco. Esta é a razão por que em muitos países, mesmo capitalistas, o sistema
financeiro foi retirado do controle privado: sendo financiado pela sociedade, deve
responder às necessidades sociais.
A justificativa dos custos que a intermediação financeira representa para nós deve,
portanto, ser encontrada na sua contribuição efetiva para o desenvolvimento.
Hoje, o controle municipal sobre os recursos financeiros levantados no município
e depositados nos bancos locais é muito limitado. As agências, pertencentes em geral a
grandes grupos de São Paulo, obedecem à lógica econômica desses grupos e se orientam
para as atividades mais lucrativas, ainda que isto signifique desviar recursos do
município mais pobre para o mais rico.
A própria orientação setorial do uso dos recursos obedece ao interesse dos grandes
grupos de São Paulo, ou às orientações globais do governo federal. O município fica,
nestas condições, com capacidade limitada de determinar a orientação dos recursos
financeiros segundo as prioridades reais sentidas ao nível local: prioridade à agricultura
alimentar ou à agroindústria, aos investimentos sociais ou infraestruturas econômicas, e
assim por diante.
A virtual inexistência, no Brasil, do sistema municipal de intermediação financeira
e a excessiva centralização promovida nos últimos 20 anos, levam a que haja
financiamento para grandes empreendimentos — os chamados projetos faraônicos —
enquanto fica dramaticamente subfinanciada a pequena e média empresa, tanto
industrial, como a agrícola e de serviços. Isso, por sua vez, reforça o profundo

39
desequilíbrio do país entre setores ultramodernos e setores atrasados, um dificultando a
dinâmica do outro.
Em muitos países onde existe o sistema privado, a intermediação financeira é
estreitamente regulamentada pelos poderes públicos. Isto se deve tanto às evidentes
insuficiências do mercado como mecanismos reguladores dos fluxos financeiros, como
ao fato já mencionado que os bancos trabalham com recursos que são sociais e devem,
portanto, adequar-se às necessidades sociais.
A simples estatização dos bancos, entretanto, constitui uma solução limitada.
Por um lado, quando se passa o controle do sistema financeiro para o Estado, é
preciso pensar quem controla o Estado, e a simples estatização não significa
necessariamente uma medida progressista e pode inclusive representar maior acesso dos
grandes grupos nacionais e multinacionais aos recursos financeiros.
Por outro lado, não há solução simples, já que os mecanismos de financiamento
têm de se adaptar ao tipo de atividade econômica financiada. Neste sentido, os grandes
investimentos de desenvolvimento das infraestruturas nacionais devem ser controlados
pelo Estado ao nível federal ou estadual, como se faz com o BNDES, em função de
planos de desenvolvimento. Mas o financiamento das iniciativas econômicas de
pequeno e médio porte, bem como o da construção habitacional, deve ser
descentralizado e depender de decisões estritamente locais.
Este setor exige, portanto, uma articulação de vários níveis de intervenção:
financiamento dos grandes empreendimentos econômicos através de organismos
financeiros estatais, em função de prioridades definidas pelo planejamento central;
financiamento de grandes investimentos empresariais através do reinvestimento e do
mercado de ações, captando recursos que o público conscientemente deseja aplicar na
atividade empresarial; financiamento dos pequenos e médios empreendimentos
econômicos através de controle local e comunitário, no nível do município; e controle
do volume geral de financiamentos através da política de conjuntura do Estado, que
influi sobre a taxa geral de juros e políticas de crédito em nível nacional.
A necessidade desses vários níveis de regulação dos mecanismos financeiros
resulta dos vários tipos de atividades econômicas que necessitam de financiamento. Não
se coloca, portanto, a ideia de uma municipalização generalizada da atividade de
intermediação financeira. Mas não podemos deixar de constatar que o nível de
financiamento local e comunitário simplesmente não existe no mapa financeiro do

40
Brasil, e torna-se indispensável, para a própria racionalidade das atividades econômicas,
criar e desenvolver esta área de atividade.
O estudo da intermediação financeira mostra com excepcional clareza a que
ponto o debate, em termos de setor "privado" e "estatal", é demasiado simplificador, e
hoje insuficiente. O setor privado que tanto se queixa do "burocratismo" do Estado
conseguiu constituir gigantescos bancos que não deixam a desejar a qualquer
burocratismo centralizado, asfixiando pela irracionalidade econômica as atividades
efetivamente produtivas. Um banco centralizado atenderá prioritariamente grandes
empresas — agrícolas ou industriais — simplesmente porque os dossiês de
40informação são demasiadamente complexos para que a pequena ou média empresa
possa se interessar, e porque o próprio banco procura economias de escala em termos de
custos burocráticos, preferindo fazer o dossiê para quantias elevadas. Por outro lado, o
financiamento adequado é o que faz chegar os recursos a quem tem uma boa iniciativa
econômica em mãos; e esta iniciativa depende normalmente mais de um indivíduo
disposto e capaz do que do volume de papéis preenchidos. Neste sentido, a máquina que
sofre de gigantismo, seja privada ou estatal, leva às mesmas perdas para a sociedade. E
colocar recursos financeiros cm quantidade e condições adequadas, no ponto certo,
depende de um profundo conhecimento local do tecido econômico específico, e dos
indivíduos que melhor os podem utilizar.
Não há dúvida que hoje uma prefeitura tem poucas possibilidades de intervenção
nesta área. Mas é uma área que está madura para alterações profundas. O tema tem
voltado repetidamente à tona, com os "bancos municipais", "caixas econômicas
municipais" e outras propostas. O atraso na sua materialização resulta, sem dúvida, da
força dos grandes grupos econômicos privados e multinacionais, que têm a ganhar com
a centralização financeira.
Na falta de modificações estruturais, o município pode promover o estudo da sua
rede de intermediação financeira, pressionar o estado e a Federação para maior controle
local de uso de recursos, e negociar com as agências locais dos grandes grupos o
reinvestimento, no próprio município, dos recursos por ele levantados.
É um espaço ainda muito limitado de ação. Mas o planejamento municipal não
existe sem recursos municipais. E estes são muito mais do que simplesmente os recursos
do orçamento da prefeitura.

41
O estudo dos recursos naturais, dos recursos humanos e da riqueza acumulada no
município, desenvolvido de maneira regular e atualizada, permite um planejamento
municipal esclarecido, com os pés no chão.
É preciso saber, entretanto, como os homens se relacionam, no município, em
termos de controle desses recursos. Trata-se de estudar esses recursos também do ponto
de vista das relações de produção que originam.
Em termos práticos, trata-se de saber quem controla a terra, quem controla as
principais empresas, como se estrutura o poder econômico local. Geralmente, os
responsáveis políticos do município têm um conhecimento detalhado dessa situação.
Mas é essencial que a comunidade conheça bem esta estrutura, para melhorar e
esclarecer a sua participação.
Não há nada como a transparência sobre quem controla os recursos e como os usa,
para melhorar a eficiência econômica geral. A democracia na área econômica é
eminentemente saudável e funciona.

42
O uso racional dos recursos

Ainda que as soluções sejam relativamente complexas, o problema que


enfrentamos é simples: trata-se de assegurar o uso de recursos que permita maximizar o
desenvolvimento. O desenvolvimento deve ser entendido no sentido moderno, incluindo
não só o aumento da produção como o equilíbrio social no acesso aos benefícios. De
pouco adianta construir usinas e mansões de luxo, que têm de ser guardadas por
esquadrões da morte e jagunços, fazendo o país regredir à Idade Média.
Vimos no capítulo anterior uma série de sugestões relativas ao conhecimento
necessário da base econômica que já existe no município. Só planeja de forma eficiente
quem conhece profundamente a situação sobre a qual deve intervir.
Uma outra área de conhecimento necessária, que analisaremos no presente
capítulo, é a dos recursos de que dispõe uma administração municipal para transformar
a sua base econômica. Sabemos que esses recursos são limitados, e um enfoque realista
exige que sejam conhecidos de forma detalhada.
Voltamos a insistir: uma administração municipal que se contente em tapar
buracos de rua e ornamentar as praças não necessita de planejamento, e as propostas que
aqui desenvolvemos são para uma visão mais ambiciosa, comprometida com o bem-
estar da população.

Os recursos financeiros do município

A estrutura de recursos do município é relativamente simples. Vamos revisá-la


brevemente.
Antes de tudo, é preciso lembrar que as municipalidades no Brasil trabalham com
recursos muito limitados: o desenvolvimento das empresas transnacionais, os grandes
projetos de apoio, as grandes opções de estratégia de desenvolvimento com prioridade
ao transporte rodoviário e à energia não renovável, necessitaram uma centralização
muito forte dos recursos públicos nas mãos do governo federal, por um lado, e nas mãos
do governo do Estado de São Paulo, por outro.
Houve assim uma centralização na qual o município, como instância básica de
desenvolvimento econômico e social, se viu esmagado.

43
Uma das fontes de receita da municipalidade é o recurso próprio. Esta fonte,
baseada no imposto predial e territorial urbano e no imposto sobre serviços, além de
algumas taxas locais e receitas diversas, chega, por exemplo, num município médio
como Penápolis, a assegurar um terço das receitas. Assim, o município brasileiro é ainda
muito dependente para financiar o seu desenvolvimento de recursos externos, que lhe
são transferidos por outros níveis de administração do estado.
O peso elevado das transferências é significativo, pois implica que receber
recursos pode depender mais da fidelidade para cima — com o poder superior na
hierarquia do estado — do que da fidelidade para baixo, com a população do município
que forneceu os votos.
Entre as receitas de transferência destacam-se o Fundo de Participação dos
Municípios (FPM), ao nível federal. Este fundo é constituído de parcela de 17% do
produto da arrecadação do Imposto de Renda e do Imposto sobre Produtos
Industrializados (IR e IPI). Temos ainda a participação no Imposto de Circulação de
Mercadorias (ICM), do qual 20% são transferidos aos municípios.
Para definir quanto receberá cada município, são utilizados critérios de valor
adicionado, população, receita tributária própria e um percentual fixo rateado pelo
número de municípios. As transferências podem representar metade ou mais dos
recursos com que lidará a municipalidade.
Um outro tipo de transferências é formalizada através de convênios. A
municipalidade pode, por exemplo, apresentar uma série de projetos às secretarias
estaduais, visando desenvolver a infraestrutura de saúde, ou asfaltar uma estrada
solicitando recursos para a sua execução. Neste caso influi, evidentemente, a capacidade
de planejamento do município, particularmente a de elaboração e avaliação de projetos.
Mas influi também, de maneira decisiva, o apoio que uma administração municipal
consegue ter junto a determinadas secretarias.
Essa forma centralizada de atribuição de recursos leva, evidentemente, a
deformações: muitas vezes se desenvolverão setores não segundo as prioridades do
município, mas segundo os níveis de relacionamento que um prefeito tem com
determinadas secretarias do governo estadual.11

11 Um exemplo extremo, mas real, é de uma região que recebeu verbas para reflorestamento de uma
zona coberta de florestas. Procedeu-se ao desmatamento, para em seguida poder replantar árvores, e o
financiamento ficar em área "amiga".

44
Uma característica importante é o próprio fato das administrações municipais
conhecerem de maneira muito deficiente as possibilidades de obter fundos por
convênios, resultando numa grande subutilização dos fundos disponíveis.
Uma outra fonte de recursos é constituída pelo crédito. No caso de curto prazo, a
municipalidade recorre aos bancos amigos, ou à antecipação de receita. Mas o recurso
ao financiamento de curto prazo decorre mais da má gestão financeira ou de situações
imprevistas, do que da busca de recursos para o desenvolvimento. Este é financiado
pelo crédito de longo prazo, que ultrapassa um exercício, e não deve exceder certos
limites tanto no montante como no serviço da dívida (juros e principal). As
municipalidades recorrem a bancos do Estado, bancos privados e outras fontes como o
Fundo Nacional de Apoio ao Desenvolvimento (FNDU), Fundo de Apoio ao
Desenvolvimento Social (FAS), Banco Nacional de Habitação (BNH).
Uma característica geral é a insuficiência de instrumentos propriamente
municipais de crédito, que vimos no capítulo anterior. Outra característica é a imensa
dificuldade das administrações que assumem saber avaliar o grau de endividamento do
município, levando à subutilização de recursos disponíveis em alguns casos, e ao
endividamento excessivo que provoca onerosas interrupções de projetos em outros.
Além desses recursos diretamente administrados pela prefeitura, há os recursos
cuja utilização a municipalidade pode influenciar e ajudar a orientar em função das
necessidades da população.
Trata-se por um lado das atividades públicas não municipais: é o caso das escolas
estaduais, de iniciativas federais, de atividades das autarquias — energia,
telecomunicações, água — das empresas estatais e outras atividades públicas que a
municipalidade não administra.
O número de funcionários públicos não municipais envolvidos no
desenvolvimento e gestão do município é geralmente muito significativo, levando à
existência de gestões paralelas no mesmo território, cabe evidentemente à
municipalidade assegurar a harmonia do conjunto.
Como pode a municipalidade gerir racionalmente os seus recursos se ignora parte
dos investimentos públicos realizados? Para dar um exemplo, o relativo isolamento de
uma parte do município pode ser reduzido por meio de uma estrada ou de uma linha
telefônica. Mas a prefeitura não tem acesso aos dados dos investimentos em curso ou
projetados da empresa de telecomunicações, e não existe o mecanismo regular e

45
obrigatório de informação à instância política superior que constitui a administração
municipal.
A luta pela informação e pela harmonização dos planos de desenvolvimento das
diversas instâncias administrativas existentes no município é muito importante, e uma
prefeitura que se apoie na comunidade e assegure este complemento das suas funções
poderá obter uma dinâmica de desenvolvimento muito mais elevada, ainda que não
disponha de recursos próprios mais elevados.
Por outro lado, trata-se do planejamento indicativo dos recursos privados. Ainda
que a iniciativa privada, no caso brasileiro, tenha liberdade quase total de agir sem
consultar a comunidade — fase ultrapassada na maioria dos países desenvolvidos —, a
municipalidade tem como influir sobre os processos econômicos da área privada através
de vários mecanismos. O uso desses mecanismos tem por objetivo assegurar que o
conjunto das iniciativas da área privada e das áreas públicas leve a um desenvolvimento
equilibrado.
Um primeiro mecanismo é simplesmente a informação. As empresas têm
frequentemente uma visão muito parcial ou demasiado setorial da economia do
município. Uma boa informação sobre recursos subutilizados, sobre a dinâmica de
expansão prevista, sobre necessidades futuras mais evidentes do município, pode
melhorar muito a opção empresarial e torná-la mais coerente com o tecido econômico
do município.
Outro mecanismo é o da criação de economias externas para a dinamização da
iniciativa privada. Trata-se, em geral, de infra-estruturas de acesso à energia, água,
transportes, telecomunicações e armazenamento, bem como da formação profissional e
outras iniciativas. O relativo caos da localização industrial de muitos municípios é hoje
ultrapassado pela definição de zonas de expansão industrial, com infra-estruturas
planejadas para possibilitar um desenvolvimento de longo prazo sem poluir ou
prejudicar a expansão propriamente urbana.
Um terceiro mecanismo de planejamento indicativo é a concessão de vantagens,
como isenções de impostos, concessão de terrenos a baixo custo, e subvenções que
permitam influenciar o tipo de empresa que se instalará no município, ou
desenvolvimento de empresas já existentes.
Enfim, a municipalidade pode mobilizar recursos através de iniciativas e
mobilização: é o caso de mutirões, financiamentos empresariais extraordinários para
determinadas ações de interesse geral, mobilização de determinados grupos

46
profissionais, criação de empresas comunitárias, organização dos desempregados
sazonais para realizações que não exigem elevado investimento. Muitas campanhas de
construção de casa própria, de erradicação de doenças, de alfabetização, têm funcionado
apelando para esse tipo de recursos extraordinários.
Resumindo, a administração municipal trabalha com recursos que administra
diretamente, que provém de receitas próprias, transferências (nomeadamente os
convênios) e créditos; e trabalha com recursos que pode administrar de forma indireta,
46que consistem em atividades públicas não municipais, em atividades privadas das
empresas e em iniciativas populares.
Ao organizar um quadro informativo simplificado do conjunto desses recursos, a
administração municipal cria condições de influir sobre uma gama bastante elevada de
decisões, melhorando a eficiência do conjunto.

O uso dos recursos

O uso dos recursos — o que os planificadores chamam de alocação racional de


recursos — é na realidade relativamente simples no Brasil, porque os recursos
municipais são poucos. Os recursos próprios dos municípios são da ordem de 5% dos
recursos públicos tributários. Se contarmos as transferências da União e dos governos
de estado aos municípios, chegamos a cerca de 16%. Nos Estados Unidos, os
municípios gastam cerca de 35% dos recursos públicos, mais do dobro,
proporcionalmente, que no Brasil.
O resultado é que só com a folha de pagamentos da prefeitura, a municipalidade
gasta em geral metade ou mais dos recursos que lhe são atribuídos. Os salários dos
funcionários e o material como papel, etc., constituem os gastos de custeio da prefeitura.
Esses gastos são, na realidade, muito difíceis de comprimir e não contribuem
diretamente para o desenvolvimento.
Um outro grupo de despesas relativamente fixas é o serviço da dívida. A maior
parte dos municípios brasileiros está endividada, e isto significa que uma parte do
orçamento disponível para cada ano já está comprometida para pagar juros e restituir o
principal da dívida anteriormente contraída.
Deduzidas estas partes do orçamento, fica em geral um quarto ou menos para
financiar o desenvolvimento efetivo do município: construção de escolas, reforço da

47
infraestrutura de transportes, etc. Torna-se, portanto, essencial para a prefeitura
conhecer os fundos disponíveis para investimento, que poderíamos chamar de forma
mais geral de fundo municipal de desenvolvimento.
É preciso constatar, antes de tudo, que a contabilização atual dos recursos do
município dificulta uma clara visão desse fundo. As "despesas de capital" incluem
operações financeiras que não contribuem para o desenvolvimento do município, e
excluem atividades como por exemplo uma campanha de alfabetização, que contribui
indiscutivelmente.
Igualmente insuficiente é a caracterização clássica de "investimento" como uso de
recursos para aumentar ou repor o estoque de capital fixo. Hoje em dia, tomou grande
importância o que chamamos de "investimento não material". Uma campanha de
popularização de tecnologia destinada a aumentar a produtividade do setor mais
atrasado do município, por exemplo, constitui sem dúvida uma excelente iniciativa de
promoção do desenvolvimento municipal. Mas não se trata de um investimento que
resulta na produção de uma hidroelétrica, de máquinas, ou outro bem de produção
concreto.
Esta necessidade de um conceito mais amplo, tão evidente ao nível municipal, é
que nos faz trabalhar de forma geral com o conceito de "projeto de desenvolvimento",
como unidade de despesa que leva à dinamização do município, e com o conceito de
"fundo municipal de desenvolvimento", que resume a totalidade de recursos utilizados
para financiar os projetos de desenvolvimento.
Uma boa parte dos projetos de desenvolvimento dura mais de um ano. Alguns
projetos mais significativos podem exigir cinco ou mais anos para a sua conclusão.
Consequentemente, o fundo de desenvolvimento já se encontra em parte absorvido
pelos projetos iniciados em exercícios anteriores. O que resta para projetos novos é
evidentemente muito limitado.
Promover o desenvolvimento municipal implica assim gerir, com o máximo de
racionalidade possível, um fundo muito escasso de recursos. Esta compreensão é
importante por três razões. Primeiro, porque define os limites dos "milagres"
municipais: o que se pode fazer numa gestão representa uma alteração relativamente
limitada da situação existente. Segundo, porque nos faz compreender que o
desenvolvimento municipal é um assunto de médio e longo prazo, tornando-se essencial
a continuidade das iniciativas de uma gestão para outra. Esta, por sua vez, exige uma
participação efetiva da comunidade, para que as iniciativas de desenvolvimento não

48
oscilem de acordo com a personalidade de um prefeito, mas sigam uma linha contínua
definida pelas necessidades básicas da população.
Enfim, porque nos dá uma clara visão da necessidade do planejamento: é preciso
assegurar que os poucos recursos sejam utilizados com a máxima eficiência, e isto
implica que cada projeto, resulte de uma profunda compreensão das dinâmicas locais,
transformando-se numa alavanca que mobiliza e torna mais produtivas as outras
atividades já em curso.
Em outros termos, devemos chegar a uma clara hierarquização dos projetos
segundo a sua importância dinamizadora para o conjunto das atividades econômicas do
município. Essa hierarquização, por sua vez, exige um conhecimento muito mais
detalhado das atividades em curso, do tecido econômico municipal, incluindo as
atividades públicas não municipais e as atividades do setor privado.
Em termos de uso de recursos, a administração municipal deve assim chegar a
uma visão clara dos recursos efetivamente disponíveis para o desenvolvimento. Por
outro lado, deve chegar a um conhecimento aprofundado das oportunidades de
iniciativas de desenvolvimento, de forma a hierarquizá-las segundo o seu impacto sobre
a economia local.
Há alguns anos o governo exigia, para abrir financiamentos para municípios, que
estes apresentassem planos de sua utilização. O resultado foi que os municípios que
tinham recursos contrataram grandes empresas de consultoria, que redigiram "planos":
elaborados por técnicos que dominam os modelos de cálculo de rentabilidade, mas que
ignoram as condições locais, esses planos constituíram em geral caricaturas do que é
planejamento.
Como vimos, o planejamento municipal parte de um profundo conhecimento da
realidade local e deve assegurar amplo mecanismo participativo, para que as decisões
correspondam realmente aos desejos da comunidade.
Não há modelo para isto. Há o sólido trabalho de organização da base informativa
do planejamento, o esforço de formação de quadros da própria prefeitura, e a longa e
paciente estruturação da participação comunitária nas decisões municipais. Planejar não
é elaborar um simples documento — o "plano"—, é criar um sistema racional e
democrático de decisão sobre o processo de desenvolvimento econômico e social do
município.

49
A base informativa do planejamento

A forma mais prática de proceder à organização do planejamento municipal é


começar pela criação da base informativa. Boa parte das críticas, perfeitamente
procedentes, que já se fizeram ao planejamento econômico e social, prende-se ao fato de
se criarem castelos no ar para o futuro, o "plano", desgarrados da realidade que se quer
modificar.
O ponto de partida, portanto, é a organização de um sólido sistema de informação
sobre as atividades já em curso.
Organizar informação quer dizer também saber escolher a informação
significativa. Neste sentido, é preciso que os gastos correntes do município pagamento
de salários, compra de papel, etc. — entrem em rotinas de gestão, deixando tempo e
capacidade administrativa para analisar as decisões que impacto real sobre o
desenvolvimento.
Utilizaremos como ponto de partida o que chamaremos de projetos. O conceito,
como vimos, concerne fundamentalmente aos investimentos — construção de uma
estrada, aquisição de uma usina de transformação de lixo —, mas inclui investimentos
não materiais que contribuem significativamente para o desenvolvimento municipal —
campanhas de vacina, de alfabetização, desenvolvimento tecnológico, etc.
A administração municipal necessita ter uma visão atualizada dos projetos em
curso. Esta informação se sintetiza normalmente por meio de um instrumento prático, a
ficha de projeto, que deve conter os elementos essenciais de informação, evitando
complicações excessivas que as tornam instrumento de especialistas.
A estrutura da ficha é simples: trata-se dos dados de identificação do projeto — o
seu objetivo, secretaria responsável, instituição que executa, custo total, organismo
financiador e período de execução.
Em seguida vêm os dados de insumos necessários: recursos financeiros, recursos
humanos, e classificação de gastos — equipamento, mão-de-obra e outros — segundo
as características mais importantes.
Em terceiro lugar, os dados de seguimento financeiro do projeto: quem financiou,
condições de financiamento, os desembolsos por ano e por classe.

50
Finalmente, os dados de seguimento físico do projeto: é um espaço indispensável
que permite ao responsável pelo projeto dizer, em termos claro, se o mesmo avança ou
não, em que ritmo, e quais são as principais dificuldades encontradas.
As administrações municipais estão em geral mais acostumadas a organizar
informação econômica segundo necessidades de informação agregada dos governos de
estado e federal, do que para melhorar a gestão dos recursos no próprio município. É
importante equilibrar os interesses burocráticos, de forma a limitar as informações às
instâncias superiores ao que realmente poderão utilizar, e ordenar mais informação para
uso de planejamento local.
É fundamental que qualquer pessoa não especializada possa ler uma ficha de
projeto e entender do que se trata. Em outros termos, a construção de uma escola na Vila
Matilde se chamará exatamente assim, evitando as terminologias técnicas de
50classificação de gasto que eliminam a transparência da informação e limitam a
participação.
Outro princípio geral a se respeitar é o de manter o equilíbrio entre informação
quantitativa e qualitativa. Há um mito de que qualquer coisa dita cm números é mais
científica do que quando dita em palavras. A realidade é que os números são mais
facilmente agregáveis e favorecem a administração centralizada, enquanto os dados
qualitativos — explicitando, por exemplo, em palavras simples em que situação está
determinado projeto — facilitam particularmente o planejamento local, onde se valoriza
a possibilidade do conhecimento direto.
Enfim, é preciso lembrar que a informação em terminal de computador não é mais
científica numa folha de papel. O ordenamento do conjunto das fichas de projetos num
microcomputador é, sem dúvida, muito útil, mas a atenção principal deve ser dada ao
realismo da informação, que deve apresentar o que realmente acontece e não o que
deveria ser apresentado às instâncias superiores de controle.
O segundo passo consiste no ordenamento dos projetos segundo os setores
econômicos, de forma a permitir uma análise de como está avançando o conjunto das
iniciativas de desenvolvimento. A classificação proposta é a seguinte:
1. base produtiva: agricultura, indústria;
2. serviços de intermediação: comércio, intermediação financeira;
3. infraestrutura física: transportes, telecomunicações, energia, água;
4. infraestruturas sociais: educação, saúde, habitação, turismo, informação e
cultura, segurança, trabalho;

51
5. administração do desenvolvimento: planejamento, finanças, administração
pública.
Teríamos assim cinco áreas de atividades, subdivididas em setores. As áreas têm a
sua lógica, que já vimos parcialmente. A primeira concerne à base material da nossa
reprodução, a segunda concerne à área da circulação dos bens e serviços e de sua
representação monetária, essenciais para a própria atividade produtiva. A terceira área
concerne aos investimentos que criam economias externas para a produção, através das
"redes" de apoio. A quarta representa o investimento no homem, satisfazendo as suas
necessidades básicas e aumentando a sua capacidade de produção. Enfim, a
administração do desenvolvimento reúne as atividades destinadas a melhorar a gestão
dos recursos do município, atividades sempre subestimadas e sobretudo pouco
51integradas entre si, ainda que investir na capacidade de administração do próprio
município seja altamente rentável a longo prazo.
A definição dos setores varia segundo o município. Uma localidade onde o setor
pesqueiro é essencial poderá acrescentá-lo na área produtiva como um setor específico,
ou ainda subdividi-lo em pesca industrial e pesca artesanal. Mas o ordenamento
apresentado serve como ponto de referência.
É importante ordenar os projetos segundo esses setores, ainda que uma
administração municipal não tenha secretarias ou encarregados para cada uma delas:
trata-se de classificação econômica e não administrativa. Um secretário pode estar
encarregado de saúde e de educação, mas isto não impede que se trate de dois grupos de
atividades cujo andamento deve ser avaliado independentemente no município.
Uma vez definidos os setores, e elaboradas as fichas de projetos existentes em
cada setor, é preciso avaliar a coerência dos projetos com a realidade de cada setor. Isto
se realiza através da elaboração de balanços setoriais.
Nenhum projeto é em si bom ou mau: a sua utilidade depende da situação
concreta do município. Não é necessariamente positivo um município criar uma
faculdade, se não puder ulteriormente assegurar a qualidade das aulas. Em outros
termos, os projetos tomam sentido quando confrontados com a situação do setor.
Os balanços setoriais constituem documentos sintéticos — de algumas dezenas de
páginas — apresentando: os dados básicos do setor — por exemplo o atraso educacional
ou as insuficiências habitacionais mais significativas —, uma avaliação da capacidade
institucional da municipalidade para lidar com o setor, e a estratégia que está sendo
adotada. Essa estratégia se materializa nos projetos, que serão apresentados brevemente

52
segundo a lógica que ocupam: no balanço do setor agrícola, por exemplo, poderão ser
agrupados projetos destinados a melhorar a produção alimentar, projetos de agro
exportação, e projetos gerais de apoio institucional e formação de mão-de-obra. Uma
última parte será destinada a apontar os principais pontos de estrangulamento do setor
visando melhorias.
O que se obtém como resultado é uma radiografia de cada setor, que permite
avaliar o seu andamento e, sobretudo, criar uma visão de conjunto.
É essencial que o balanço de cada setor seja realizado pelos responsáveis efetivos,
e não por um grupo ou equipe técnica externa. Uma visão realista exige que as
avaliações técnicas sejam permeadas pelas tendências políticas reais que presidem às
opções, ainda que o documento final seja tecnicamente menos perfeito.
O passo seguinte consiste na agregação dos dados das fichas de projetos e dos
balanços setoriais, formando o que chamamos de balanço anual de desenvolvimento
municipal.
Trata-se de um documento relativamente simples, que tem a imensa vantagem de
reunir, num só lugar, o conjunto dos dados sobre as atividades de desenvolvimento em
curso. Isto permite a harmonização das diversas atividades setoriais de forma que o
conjunto constitua uma estratégia de desenvolvimento coerente.
Um outro balanço anual — o balanço de financiamento — reproduz o documento
anterior, mas classifica os dados por fonte de financiamento e não por setor de
aplicação. Esse documento permite ter uma visão sintética, por projeto, de como estão
sendo utilizadas as diversas fontes de financiamento que o município utiliza. A
confrontação desses dados com as fontes de financiamento permite, em geral, identificar
tanto a eventual sobrecarga de endividamento junto a determinados organismos, como a
subutilização de áreas que normalmente financiam o desenvolvimento municipal. Esse
instrumento de trabalho é particularmente útil na complexidade exagerada dos sistemas
de financiamento existentes no Brasil.
Em termos práticos, o esforço de organização das bases de informação para o
planejamento põe na mão do prefeito três instrumentos de trabalho: um fichário de
projetos que lhe permite, através de consulta de uma ficha ou do computador, saber em
que pé anda cada um dos projetos em curso de execução, permitindo revisões periódicas
da situação com os secretários ou com as empresas encarregadas de execução; um
balanço de execução dos projetos, que lhe permite ver a amplitude de iniciativas de
cada uma das secretarias, bem como identificar os pontos problemáticos de cada setor; e

53
um balanço de financiamento, que lhe permite, nas reuniões com as diversas
instituições que contribuem para financiar atividades no seu município, ter uma visão
detalhada do que está sendo realizado com os fundos de determinada instituição, e, em
consequência, definir uma estratégia de busca de novos recursos. Os dois balanços
constituem o balanço anual de desenvolvimento municipal.
Além desses documentos básicos de informação econômica, o esforço de
organização das bases informativas do planejamento visa um efeito estrutural indireto:
na elaboração da documentação, é o conjunto da administração municipal que é
obrigado a estruturar-se para dispor, a qualquer momento e de forma sistematizada, da
informação necessária para a jornada de decisões significativas da política de
desenvolvimento municipal, o que leva a um importante esforço de racionalização
administrativa.
Grande parte desta informação já é produzida. Entretanto, é produzida segundo
exigências de organização de dados agregados em instâncias superiores ou de controle
orçamentário, contábil e financeiro do Ministério da Fazenda, do Tribunal de Contas e
do Banco Central. Essa informação agrega-se mal ao nível local, e a realidade é que,
apesar do grande esforço de preenchimento de formulários dos mais variados tipos, a
administração municipal segue impressionantemente desinformada sobre a sua própria
realidade e pouco se preocupa com o realismo de uma informação que não é para seu
uso.
A regularização dos balanços anuais de desenvolvimento dos municípios permite
melhorar significativamente a transparência econômica local, multiplicando o número
de pessoas — tanto na administração municipal como na comunidade — com visão
global da situação e das necessidades. É um passo necessário para a democratização no
campo da economia e para a racionalidade das decisões.
Mas é igualmente um passo necessário para desenvolver mecanismos de
planejamento mais sofisticados. Com dois ou três anos de produção de balanços anuais
de desenvolvimento municipal, cria-se a capacidade de seguir a realidade e os projetos
de desenvolvimento, de "sentir" o que é realista propor e o que não é, ou quais são os
prazos e os custos reais de determinados projetos de desenvolvimento. Criam-se, em
outros termos, as condições prévias do planejamento.
Este pequeno esforço de ordenamento da informação básica do município não
deve ser subestimado: um avanço relativamente modesto nos cerca de 5000 municípios
do país, em termos de capacidade de planejamento e de realismo de informação, pode

54
ter um efeito muito significativo sobre a qualidade da informação agregada ao nível
nacional e, portanto, para o planejamento central. Esta qualidade da informação
agregada é hoje, como se sabe, deplorável. Como melhorá-la se a base de produção da
informação — o município — não está organizada para produzir informação realista?
A iniciativa deve permitir também a ruptura de um círculo vicioso de
centralização e irracionalidade do desenvolvimento. Sabemos que cerca de 85% dos
recursos públicos têm sua aplicação regulada ao nível federal e dos governos do Estado,
ficando apenas 15% para os municípios. Em consequência, as administrações
municipais não desenvolvem capacidade de planejamento, pois ficam pendentes de
mecanismos de alocação de recursos de organismos superiores. Por outro lado, as
administrações estaduais e federal alegam não poder entregar recursos aos municípios,
pois estes não teriam capacidade de planejamento para assegurar o seu uso produtivo.
Na realidade, a administração pública sofre neste sentido de uma deformação básica: os
níveis centrais administram mais recursos do que a sua capacidade efetiva de regulação,
tomando frequentemente decisões de detalhe sobre projetos locais sem a mínima base
informativa correspondente. A ausência de conhecimento direto da situação local é
então substituída por malabarismos de agregação de dados quantitativos nos
computadores. O reforço da capacidade local de planejamento permite justamente
redefinir as instâncias de decisão segundo a melhor capacidade de regulação, e a
instância subutilizada é claramente a do município.

55
A organização do planejamento

Vimos até agora, em linhas gerais, dois passos importantes do planejamento


municipal: o levantamento dos recursos existentes — recursos naturais, humanos, e
riqueza acumulada — e o sistema de avaliação do uso dos recursos para o
desenvolvimento.
É importante compreender que planejamento também se planeja. De nada adianta
colocar de imediato exigências excessivas sobre a administração, quando esta não tem
ainda o costume de elaboração de dados confiáveis e de sua verificação, ou não entende
corretamente a sua necessidade. Em outros termos, a capacidade de planejamento se
desenvolve, e as exigências devem corresponder à capacidade real de aplicação. A
inutilidade dos planos complexos elaborados por empresas de consultoria, que as
administrações utilizam para buscar recursos, mas não para ordenar as suas atividades, é
neste sentido característica.
O planejamento como sistema organizado de trabalho — e não meramente como
redação de um documento — implica, portanto, alterações no sistema de organização da
informação, reforço da capacidade administrativa e um amplo trabalho de formação.
Trata-se, portanto, antes de tudo, de um esforço da administração municipal sobre si
mesma. Técnicos contratados podem ajudar, mas a dinâmica deve ser essencialmente
local.
A prioridade que damos à organização da base informativa prende-se à riqueza
dos efeitos estruturais desta atividade. Para organizar os dados dos seus setores, as
secretarias são obrigadas a aprofundar o seu conhecimento da realidade local e a se
acostumar a apresentá-la de forma padronizada e comparável. A elaboração dos
balanços anuais obriga a administração municipal a criar uma visão de conjunto. A
discussão dos balanços setoriais faz aparecer naturalmente as discrepâncias e
incoerências entre as orientações dos diversos setores e leva à compreensão da
necessidade de uma atividade planejada. Trata-se, portanto, de uma atividade prévia e
necessária.
Entretanto, à medida que os dados básicos do município vão sendo ordenados,
aparecem com clareza os diversos níveis de planejamento de que se necessita. Por um
lado, trata-se do planejamento de curto, médio e longo prazo. Por outro lado, trata-se

56
56do planejamento para a própria prefeitura e para outras áreas socioeconômicas do
município.
Vejamos primeiro o problema dos horizontes de planejamento. De forma geral,
uma administração municipal tem de trabalhar com quatro horizontes diferentes.
O horizonte mais distante é o que define a vocação estratégica do município.
Trata-se de uma concepção que estuda, por exemplo, o que será o município no ano
2000, e pode dar lugar a um conjunto de consultas à população sobre as possíveis
opções. Para muitos, o horizonte ano 2000 pode parecer muito distante. Não é,
entretanto, em termos de desenvolvimento econômico. A instalação de uma faculdade
de medicina, por exemplo, com a construção das instalações, formação dos professores
e formação dos alunos leva aos primeiros médicos formados num espaço de 12 a 15
anos. Os alunos que hoje entram na escola constituirão a população ativa dentro de 12
ou mais anos. Deficiências atuais de formação básica significam insuficiências de mão-
de-obra qualificada já no próximo século. O ano 2000 pode ser igualmente útil para
fixar uma série de objetivos políticos ou compromissos básicos do município: saúde
para todos, educação básica generalizada, autossuficiência alimentar e outros objetivos
norteadores do desenvolvimento municipal. Este horizonte permite, enfim, definir
opções estratégicas relativas ao tipo de especialização mais vantajosa para o município
ou para a região: há municípios com vocação natural turística, outros com vocação de
serviços mecânicos e de transporte, outros ainda com vocação marcada de
transformação agroindustrial, e assim por diante. A competência numa área exige
esforços durante longos anos.
Um outro horizonte é o que chamamos de longo prazo: trata-se de iniciativas que
levam mais de uma gestão para serem completadas, em geral num prazo da ordem de
seis a oito anos. Entram nessa classe de iniciativas a construção de portos, de usinas
hidroelétricas, de grandes infraestruturas de transporte, de abertura de minas. O
aproveitamento dos rios e a recuperação dos recursos naturais poluídos ou destruídos,
no caso de recursos florestais ou pesqueiros, por exemplo — também entram nessa faixa
de longo prazo. São iniciativas em que o controle popular é particularmente importante,
pois podem levar a obras faraônicas e absurdas que resultam de acordo entre políticos e
empreiteiras que buscam grandes contratos. Além disso, uma vez decididos, exigem
continuidade sob pena de pesadas perdas para a região e controle dos efeitos ecológicos.
Em geral, este tipo de plano envolve acordos e coordenação com outros municípios da

57
região, e é particularmente útil a reunião periódica de responsáveis de diversos
municípios para definir as opções.
O horizonte de médio prazo é normalmente o mais importante, porque coincide
com o prazo de maturação da maior parte dos projetos. Trata-se dos famosos planos
quadrienais ou quinquenais. Um projeto mais significativo exige, em geral, estudos
prévios, estudos de factibilidade e de realização técnica, busca de financiamento,
seleção de executores, realização e entrega. Um município que tem poucos projetos
pesados pode utilizar o horizonte trienal, ou buscar coincidências políticas consideradas
mais úteis: acompanhar os prazos dos planos nacionais de desenvolvimento, ou
estabelecer um plano por gestão municipal.
Entram no plano de médio prazo a totalidade de projetos de desenvolvimento:
construção de estradas, estabelecimento de sistemas de apoio tecnológico aos
produtores locais, campanhas de alfabetização, e assim por diante.
Em geral elaboram-se planos diretores setoriais para os principais setores — plano
diretor energético, de transportes, de desenvolvimento industrial, etc, passando-se em
seguida à elaboração do plano de médio prazo, harmonizando as diversas propostas
setoriais entre si, e o conjunto com os recursos efetivamente disponíveis.
O plano de curto prazo é o plano anual. Trata-se do plano operacional, pois define
tarefas, orça recursos que serão gastos por cada projeto, estabelece prazos de execução
das diversas etapas.
Os horizontes temporais aqui definidos funcionam, naturalmente, de forma
articulada. A vocação estratégica e a visão de um longo prazo se materializam em
projetos num plano de médio prazo. Estes, por sua vez, são inscritos nos planos anuais
já como programas concretos de execução.
Os planos anuais constituem extensão natural dos balanços de execução de
projetos que vimos anteriormente. À medida que melhora o ordenamento dos dados, o
balanço de execução de projetos passa a incluir dados sobre o ano em curso, as
realizações efetivas do ano anterior e as projeções para o ano seguinte. Isto implica que
o balanço de execução de projetos de 1987, por exemplo, contém os resultados de 1986
e as projeções para 1988. No ano seguinte, 1988, serão verificados os dados de 1987,
permitindo ajustar a programação de 1988 e as projeções para 1989. Temos assim uma
"fatia" trienal que se desloca, tendo sempre o ano em curso como ano central.
Isto simplesmente facilita o trabalho. O programa anual é demasiado curto para
incluir projetos completos, e um triênio permite ter uma visão do conjunto. Além do

58
que, a revisão das cifras programadas para se obterem os dados do que foi efetivamente
realizado desenvolve a capacidade de programação, dando aos 58administradores do
município o "pulso" da capacidade de realização, preparando-os para o trabalho de
elaboração de planos de médio prazo.

Níveis de organização

Para avançar com os trabalhos de planejamento, a municipalidade deve


evidentemente dotar-se de organização correspondente. Mais uma vez, não há soluções
universais, porque as situações são diferentes. A busca de soluções adequadas às
condições locais implica que se evite a visão "organogrâmica", que consiste em criar
quadradinhos no papel antes de criar e testar a validade das atividades que se pretende
desenvolver.
Neste sentido, as propostas que seguem abaixo visam explicitar possíveis aspectos
organizativos das principais atividades de planejamento. Ninguém escapa de pensar a
sua própria racionalidade de forma criativa.
Um ponto chave é a organização de um núcleo de planejamento. Muitas
prefeituras dispõem de secretarias de planejamento, em outras o planejamento se
confunde com a atividade do prefeito. De modo geral, o ideal é ter uma equipe muito
restrita, com pessoas bastante qualificadas. A qualificação elevada é necessária porque
as pessoas que trabalham no núcleo têm de ter uma visão global da situação do
município. Por outro lado, um núcleo com nível insuficiente simplesmente não terá peso
junto às secretarias técnicas como obras, educação e outras.
O excesso de pessoal tende a dificultar a elaboração de trabalhos de síntese e levar
à produção de muito papel de qualidade limitada, prática que enterra qualquer esforço
de planejamento.
O núcleo pode se organizar, de forma relativamente livre, em torno das seguintes
atividades:
1) ordenamento dos dados básicos do município, como estatísticas demográficas,
dados de produção, etc.;
2) ordenamento dos projetos do município, por setor de atividade, conforme visto
acima;
3) ordenamento dos projetos por fontes de financiamento;

59
4) organização dos estudos setoriais: uso do solo, potencial hídrico, recursos
naturais, etc.;
5) organização de estudos e informação sobre determinados problemas
considerados mais importantes pela comunidade: subnutrição, segurança,
tecnologia e outros problemas intersetoriais que exigem intervenção coordenadora
do planejamento.
O núcleo deve ter o papel de organizador e promotor de trabalhos nas áreas
mencionadas, evitando a tentação centralizadora de "supersecretaria". Em outros
termos, para enfrentar o problema da subnutrição, o núcleo poderá organizar os estudos
necessários através de um grupo que inclua responsáveis das áreas diretamente
interessadas, como saúde, agricultura, educação e outros, em vez de sempre realizar os
seus próprios estudos.
Por outro lado, o núcleo precisa organizar uma rede de consultores de confiança
para problemas técnicos específicos. Isto é particularmente útil para realizar contra-
avaliações de grandes contratos e projetos, já que, em geral, qualquer projeto envolve
interesses, e um município médio dificilmente pode ter especialistas permanentes em
todas as áreas. A consultoria técnica, em áreas bem definidas e com termos de referência
precisos, pode, neste sentido, ser extremamente útil.
É preciso lembrar ainda a importância da utilização da capacidade científica da
região. Esta é subestimada, mas a realidade é que há, em geral, uma elevada capacidade
científica subutilizada nos municípios e nas regiões, que deveria ser associada aos
estudos necessários para a definição dos rumos do desenvolvimento.
Teremos assim um núcleo de planejamento relativamente pequeno, coordenando
trabalhos especializados, e transformando a informação recebida para efeitos de decisão
política, por meio de documentos de síntese.
O funcionamento regular de um núcleo de planejamento depende vitalmente da
coordenação estreita de trabalhos com a secretaria de finanças e a de administração,
com quem forma o que poderíamos chamar de núcleo de administração do
desenvolvimento.
Este aspecto tem sido sistematicamente subestimado. Na realidade, é difícil
organizar o planejamento sem organizar simultaneamente a complementaridade das suas
atividades com as outras duas principais áreas-meio, porque não há planejamento se não
há controle de uso dos recursos financeiros. De modo geral, observa-se ou uma
duplicação desnecessária de controles, que burocratizam as áreas de execução técnica,

60
ou uma insuficiência de coordenação que dilui a informação e impede o controle
efetivo. Temos então a burocracia sem os resultados.
O número de papéis preenchidos é sem dúvida elevado, mas na prática não se sabe
quanto custou a construção de determinada escola ou outra iniciativa, pois os dados
estão diluídos nos gastos "da secretaria”, em gastos gerais, etc. Na realidade, o
planejamento exige transparência financeira da administração, uma clara delimitação
entre gastos de funcionamento e gastos de investimento da prefeitura e o seguimento
contábil de "unidade de custo" que representa o projeto.
Em termos práticos, a criação de uma escola municipal exige a abertura de uma
ficha do projeto e a anotação do conjunto dos gastos sucessivamente feitos na
construção e equipamento da escola, até a conclusão. Isto implica, evidentemente, que o
mesmo tipo de classificação de gastos seja utilizado na compra de equipamento, uso de
maquinário, liberação de materiais e pagamento de fornecedores, pelos diferentes
departamentos da prefeitura, para que todos os dados parciais possam ser agregados na
conta de investimentos, projeto por projeto.
Este entrosamento entre atividades de planejamento e atividades de controle
financeiro permite ter uma visão de conjunto da evolução dos gastos e confrontar os
custos com os resultados obtidos.
A clara definição das unidades de custo — projeto — permite, por sua vez, uma
compreensão melhor, por parte da administração municipal, do custo decorrente do
projeto de investimento. Criar um posto de saúde, por exemplo, representa determinado
investimento. Mas o seu funcionamento significa que uma parte do orçamento
municipal será definitivamente bloqueada para assegurar o custeio de médicos,
enfermeiras, medicamentos, consertos periódicos, reformas, e assim por diante.
Esta visão é essencial para que a administração municipal e a comunidade possam
assegurar um equilíbrio entre o investimento produtivo e os investimentos sociais.
Assim, a visão financeira e a orientação econômica devem completar-se, e o
conjunto deve funcionar de forma entrosada, com rotinas complementares e ajustadas.
É importante frisar que ao redefinir os controles financeiros em função das
necessidades do planejamento há, em geral, uma simplificação das rotinas e, sobretudo,
o trabalho de contabilidade deixa de ser uma atividade formal, para constituir a base do
planejamento financeiro da municipalidade, dando ao prefeito e à comunidade a visão
clara de como foram utilizados os meios destinados ao desenvolvimento, e do que se
pode programar de forma realista.

61
Do ponto de vista da participação comunitária, não há dúvida que se trata de um
aspecto essencial. Ninguém — ao nível da comunidade—pode participar efetivamente
se lhe dão cifras cada dia diferentes e classificadas de forma incompreensível,
relativamente ao uso dos recursos já comprometidos, e à disponibilidade de recursos
para projetos novos.
Neste sentido, não há dúvida que é necessário reorientar parcialmente a filosofia
contábil atualmente utilizada: essa servirá um pouco menos para agregação de dados ao
nível superior e um pouco mais para utilização racional pela prefeitura e pela
comunidade. Os ajustes necessários são inclusive relativamente pequenos, já que nada
impede a coexistência de códigos numéricos, que permitem o tratamento por
computador, com nomes claros que indicam para os leigos o tipo de despesa de que se
trata. E a racionalização da gestão econômica dos municípios não escapa desta medida
básica: a democratização da informação.
Vimos assim as tarefas do núcleo de planejamento e o seu entrosamento
necessário com a área financeira e a área administrativa da prefeitura. Este conjunto
forma o que chamamos aqui de núcleo de administração de desenvolvimento e é
essencial que seja coerente e trabalhe de forma coordenada, em estreita ligação com o
prefeito.
Em outro nível estão as relações com as secretarias técnicas, encarregadas das
chamadas atividades-fim: educação, saúde, agricultura, indústria, etc.
A tensão entre as áreas "meios" e as áreas "fins" é tradicional. Na medida em que
as áreas de planejamento, finanças e administração, que constituem o núcleo de
administração do desenvolvimento municipal se organizam de maneira a facilitar o
trabalho e dar condições ideais de funcionamento às áreas fins, a situação tende a
melhorar significativamente. Isto implica que haja compreensão melhor, por parte do
núcleo de administração, de que o desenvolvimento municipal tem de se materializar,
em última instância, em escolas, saúde, mais indústrias, e assim por diante.
O relacionamento entre as duas áreas pode hoje ser definido como burocrático: as
secretarias técnicas informam o estritamente obrigatório, e as áreas de administração do
desenvolvimento realizam exercícios de contas que servem para satisfazer o tribunal de
contas e outras instâncias externas ao município, sem retorno real para as secretarias
técnicas.
Por trás do problema do relacionamento das duas áreas está, portanto, um
problema de visão ou de filosofia de administração municipal: a consciência de que

62
ambas constituem instrumentos a serviço da população local. Em outros termos,
62ambas têm de apresentar serviços tecnicamente competentes e criar instrumentos que
permitam à comunidade apreciar a eficiência e orientação do conjunto.
O entrosamento das duas áreas implica que a informação solicitada às secretarias
técnicas seja relevante para a compreensão da dinâmica do desenvolvimento do
município, e que o material organizado pelo planejamento e os serviços financeiros
constituam instrumentos práticos de trabalho das secretarias técnicas.
O núcleo de planejamento pode ser essencial para o bom funcionamento de cada
secretaria técnica: é quem pode elaborar a visão do conjunto que permite a cada
secretaria ou serviço entender em que contexto está trabalhando. O balanço anual de
execução de projetos, que resume as atividades de todos os setores de atividade é, neste
sentido, particularmente útil, pois cada secretaria ou serviço pode entender a orientação
dos outros setores e organizar a complementaridade intersetorial. O resultado é que o
município passa a ter uma política de desenvolvimento, e não segmentos dispersos de
atividade.
O ordenamento do planejamento financeiro, por sua vez, ao ser apresentado não
apenas sob forma satisfatória para controle de contas e agregação ao nível superior, mas
de maneira simplificada e adequada para que o prefeito e cada secretaria técnica possam
ver como anda a execução financeira de cada um dos seus projetos, torna-se instrumento
essencial de realismo das programações setoriais.
Enfim, a apresentação periódica à comunidade de um balanço claro de como anda
a execução financeira e física dos projetos que lhe interessam permite que a
administração municipal sinta crescentemente onde está o ponto efetivo, onde se medem
os resultados: na comunidade e suas condições concretas de vida.
Um último nível de organização que merece atenção particular é o
relacionamento com o próprio prefeito. De forma geral, a ausência ou fraqueza de
mecanismos de planejamento levam a uma dificuldade organizacional, por parte do
prefeito, em definir o que tem importância e o que não tem, o que será relevante a longo
prazo e o que tem importância apenas momentânea.
Neste sentido, o ordenamento dos dados e das atividades que se referem ao
desenvolvimento, aos projetos de maneira geral, e a existência do núcleo de
planejamento asseguram na prefeitura a presença da reflexão de médio prazo. Em outros
termos, cria-se a visão que assegura que as milhares de decisões pontuais que

63
constituem o cotidiano do prefeito e dos diversos níveis administrativos obedeçam a
uma ordem, uma reforçando a outra.

Consciência e participação

A organização das atividades de planejamento dentro da prefeitura representa


evidentemente apenas uma parte da questão. A outra parte é a organização da
participação comunitária nas decisões.
Antes de tudo, é preciso dizer que não há modelo para a organização da
participação comunitária. Essa será diferente segundo o município seja dominantemente
urbano ou rural, industrial ou agrícola, relativamente isolado ou situado perto de um
grande centro. Será diferente também segundo os equilíbrios políticos locais e o nível de
conscientização já atingido pela população.
O que iremos delinear aqui são, portanto, pontos de referência para uma ação
organizativa. Esta deve se adaptar à realidade local e responder a um profundo
conhecimento da dinâmica política do município.
Voltemos ao ponto chave: somos um país com 80 milhões de subnutridos, 58% da
população auferindo menos de dois salários mínimos, cerca de dois terços de
analfabetos funcionais da nossa mão-de-obra. Por trás das formas organizativas
delineia-se, portanto, um grande objetivo: reinserir de forma digna, no desenvolvimento
econômico, a população esmagada pelos modelos econômicos elitistas. Não há
modernização econômica possível sem este objetivo social, e se trata, grosso modo, de
dois terços da nossa população.
Durante anos, os mesmos interesses que criaram o nosso desequilíbrio pregaram
que o planejamento e a liberdade individual se contradizem. É natural que para quem
tem acesso aos recursos públicos e privados, como é o caso das grandes empresas, o
planejamento apareça como uma limitação à liberdade de dispor dos recursos como
queiram.
Mas a verdade é que o que tem impacto social tem de ter controle social.
Atividades que transformam as condições de vida da comunidade têm de ser
consideradas de maneira ampla, da mesma forma que o espaço individual e familiar tem
de ser respeitado pela comunidade.

64
O que já não se sustenta é uma empresa ou um grupo de interesses promover
ações com recursos que são da sociedade, com trabalho da comunidade, podendo
ocasionar desemprego, poluição, esgotamento de solos, favelização de parte da
população, emigração de outra, e se abrigar atrás da propriedade privada e da liberdade
individual.
O que caracteriza em boa parte o nosso capitalismo selvagem é que,
contrariamente a boa parte do empresariado europeu, por exemplo, tem pouca
consciência da sua responsabilidade social. O seu senso de responsabilidade se limita à
própria empresa.
Essa ausência de consciência social se deve, em boa parte, à ausência de estruturas
de participação popular na avaliação das decisões econômicas. De certa forma, o
indivíduo passa a ter mais consciência de pertencer a uma empresa — empresas como o
Bradesco e certas multinacionais chegam inclusive a pregar um tipo de "patriotismo
empresarial" — do que à comunidade em que vive: a cidadania é substituída pelo
vínculo patronal.
Neste sentido, a intervenção regulamentadora do Estado definindo salário mínimo,
preservação do meio ambiente, limite de remessa de lucros e outras normas às quais a
empresa tem de se ater, será insuficiente enquanto o trabalhador e, gradualmente, o
empresário não se conscientizarem de que o que deixarão aos seus filhos não são os
seus empregos e sim uma comunidade, um ambiente de vida mais ou menos bem
estruturado.
Recuperar a cidadania significa, em outros termos, recuperar também a cidadania
econômica, com a possibilidade de intervir nas condições do nosso desenvolvimento
econômico e social, de ordenarmos o nosso ambiente de vida.
O instrumento chave desta participação é o planejamento: propostas ordenadas
num plano e submetidas à comunidade significam a possibilidade dos indivíduos se
pronunciarem antes das decisões serem tomadas, em vez de se limitarem a protestar
diante de fatos já consumados. Isto sim significa respeito à liberdade individual, e não a
livre decisão de uma empresa instalar uma fábrica de celulose nos subúrbios de Porto
Alegre, de uma empresa rural monopolizar as terras de um município e transformá-lo
em plantação ou em reserva de terras ociosas.
O planejamento não participado leva a esta situação curiosa que hoje vivemos: o
indivíduo não tem liberdade de construir a sua casa ou abrir uma padaria - tendo de
passar por inúmeros controles burocráticos —, mas não há controle sobre a iniciativa da

65
grande empresa que pode desestruturar todo um município. Isto porque o planejamento
não participado acaba operando onde há menos força política organizada.
Assim, a humanização do nosso desenvolvimento econômico e social e a
civilização das nossas classes dirigentes passam pela participação popular na decisão
65econômica. Esta, por sua vez, exige um sistema de informação efetiva do cidadão e
instrumentos práticos de participação nas decisões.
A criação de instrumentos participativos ao nível municipal enfrenta no Brasil
dificuldades particulares: o próprio desenvolvimento caótico da atividade empresarial
criou um nomadismo econômico que é dos mais altos do mundo. Constatamos no
último censo que cerca de 40% dos domicílios brasileiros são habitados por pessoas que
neles residem há menos de dois anos. Esta rotatividade domiciliar prejudica,
evidentemente, a criação de uma consciência comunitária e reforça a indiferença pelo
que acontece com a rua, o bairro, o município. É preciso romper um círculo vicioso.
Um nível significativo de participação pode se dar através dos meios científicos e
educacionais. De forma geral, pode-se pensar num Centro de Estudos Municipais, que
permita mobilizar as capacidades científicas locais em torno da resolução dos problemas
básicos enfrentados pelo município e pela região.
Este nível de organização permite desenvolver pesquisa de fundo: estudos
demográficos, estudos da posse e uso do solo, estudos da própria história do município,
criando gradualmente um núcleo de estudiosos que conhecem o seu município e os seus
problemas mais significativos.
Este trabalho pode ser capitalizado através de diversas iniciativas. Por um lado,
este núcleo pode dar assistência às escolas primárias e secundárias, de forma que os
alunos possam trabalhar e realizar pesquisas sobre a realidade concreta do próprio
município. É perfeitamente viável, por exemplo, introduzir no segundo grau uma
matéria específica sobre o desenvolvimento do município, para que os futuros cidadãos
adquiram uma outra visão que não a dos discursos oficiais. O Centro de Estudos
Municipais poderia, entre outros, elaborar material didático sobre o município.
Por outro lado, o núcleo pode promover uma reorientação parcial dos eventuais
estudos universitários, incluindo no currículo das diversas faculdades ampla pesquisa da
realidade local. Isto permite formar gente interessada na realidade do seu município,
reduzindo a tendência para a emigração de quadros dinâmicos, na medida em que uma
pesquisa voltada para o estudo do potencial econômico concreto do município faz

66
aparecer oportunidades de intervenção e transformação, rompendo o clima de
imobilismo que frequentemente prevalece em municípios do interior.
Trata-se, sem dúvida, de um investimento de longo prazo, mas que não deve ser
subestimado: a formação de uma geração de jovens, conhecedores do potencial da sua
66região e do seu município, pode constituir uma alavanca poderosa para a
transformação local.
O núcleo pode igualmente ter um efeito significativo de integração da informação
produzida pelas autarquias do Estado: o IBGE, as empresas de telefonia, de energia, as
delegações ministeriais como a de agricultura e outras produzem todas as informações
significativas sobre a região e o município, as quais servem para publicações nacionais e
não estão sendo suficientemente utilizadas para promover a compreensão dos problemas
locais de desenvolvimento.
Um outro nível de organização da participação parte da divisão geográfica do
município. É preciso ordenar o espaço municipal de acordo com a sua lógica
demográfica, condições de vida, elos comunitários. Neste sentido, é necessário repensar
a divisão por bairros e por zonas rurais, de forma a organizar a participação no seu
conteúdo espacial. Bairros específicos têm problemas específicos: há os que não têm
asfalto, os que são carentes de água, e assim por diante. Este nível organizacional
permite a participação em torno dos problemas de urbanização, de infraestrutura social e
outros que têm intensa vinculação ao local de moradia.
O mais coerente é criar uma comissão de representantes por bairro e de assegurar
um espaço de reunião e debate para atribuição de verbas, discussão de prioridades,
definição das próprias formas de participação nas decisões. Particular cuidado deve ser
dado à representação das áreas rurais do município, já que há uma tendência geral para
exagerar o peso do setor urbano.
Uma das dificuldades encontradas no trabalho com os comitês do bairro é a
exagerada localização das reivindicações: busca-se a praça, o asfalto, o esgoto, a
iluminação, mas sem visão dos investimentos mais amplos e das necessidades de mais
longo prazo do município como um todo.
Trata-se, sem dúvida, de um problema de maturidade política: somos um país sem
cultura participativa e a transformação do nível de consciência é lenta.
Um outro nível de participação é o dos corpos organizados no município: os
sindicatos, as representações profissionais, as associações. De uma forma ou de outra,
trata-se de grupos de pressão que já têm tradição participativa ou reivindicatória. Trata-

67
se de ordenar gradualmente esta participação, criando canais regulares de expressão e
consulta sobre problemas relevantes do município.
É preciso levar em conta que a participação pode se dar de forma setorial: os
médicos e enfermeiros do município, por exemplo, podem organizar uma campanha de
esclarecimento sanitário, e constituir, através dos postos de saúde descentralizados,
67um canal relativamente permanente de informação aos cidadãos sobre determinadas
opções da área sanitária.
Os diversos organismos de participação municipal podem ser coordenados num
tipo de Conselho de Desenvolvimento Municipal, que reuniria os grupos representativos,
ou um conjunto de representantes de diversas áreas do município. O corpo de
vereadores, por sua excessiva vinculação política, dificilmente consegue preencher esta
função de um organismo amplo destinado a buscar consenso sobre as orientações de
médio e longo prazo do município.
A tendência em tais tipos de organismos é, naturalmente, de um grupo político
buscar hegemonia. É difícil evitar a tendência, mas é fundamental buscar sempre uma
representação ampla, que permita cruzamento de interesses e dê aos participantes a
dimensão social dos problemas que o município tem de enfrentar.
A tradição do cacique ou do coronel, hoje vestindo gravata e dotado de poderosos
apoios de grupos financeiros, é simplesmente uma realidade. A ideia de manter a
economia centralizada para evitar o reforço do caciquismo, entretanto, ignora em geral
um dado básico: as principais forças econômicas locais são justamente as que têm
poderosas ramificações em direção aos centros econômicos do país e ao exterior. Em
outros termos, os chamados caciques são justamente os que mantêm o município
subordinado às políticas centralizadoras tanto do estado como dos grandes grupos
privados nacionais e multinacionais.
Em consequência, a atribuição de maiores recursos ao município e a organização
da participação da comunidade nas decisões sobre as formas de sua utilização
constituem a melhor política para limitar tanto o poder centralizador dos grandes grupos
econômicos como o do cacique e coronéis, e para adaptar o desenvolvimento às
necessidades da população.
Vimos acima algumas possibilidades de organização de uma participação
sistemática: o centro de estudos municipais, os comitês de bairro, as associações de
áreas profissionais, a possibilidade da formação de um conselho de desenvolvimento
municipal. A organização da participação, entretanto, num país que não tem tradições de

68
política participativa, exige muita flexibilidade e o aproveitamento de todas as
oportunidades de mobilização.
Um exemplo é a experiência recente de discussão dos orçamentos municipais. Em
Penápolis, Presidente Prudente e outros municípios, foram reunidos os representantes da
comunidade, aproveitando a necessidade de mandar a proposta de orçamento municipal
para a Secretaria de Planejamento do estado, e a própria comunidade se viu chamada a
decidir sobre o uso a dar aos recursos.
Os recursos sendo limitados, os representantes acostumaram-se a ordenar
prioridades, a equilibrar a repartição por áreas geográficas, a evitar projetos
demasiadamente ambiciosos que esgotam os recursos, a pensar o médio e o longo prazo
do município.
Podem ser organizadas, de forma semelhante, reuniões para debates por bairro, ou
debates mais amplos das opções significativas do município. A consulta à comunidade
— sob forma inclusive de pequenos plebiscitos — é utilizada em muitos países como
forma de assegurar decisões mais racionais e também provocar a discussão e
conscientização da população.
Em outros termos, há uma gama de instrumentos que podem ser utilizados,
visando a formação de uma cultura de planejamento e de participação – forma, sem
dúvida, lenta, mas profunda, de assegurarmos a utilidade social dos recursos, e a
autoridade do cidadão sobre a atividade econômica que, afinal das contas, é o resultado
do esforço de todos nós.
Não há dúvida de que o clima político do país, neste fim de século, está mudando.
Há cada vez menos pessoas dispostas a aceitar as barbaridades que se praticam em
nome da liberdade da grande empresa e dos interesses do Estado, ou a acreditar no
espantalho comunista que é agitado cada vez que se propõe uma forma de
desenvolvimento mais humana. A atenção está se voltando para a busca de instrumentos
concretos de controle social, diversificado e flexível, sobre o desenvolvimento caótico
que temos vivido.
Que o mercado já não constitui um mecanismo suficiente para pôr ordem na nossa
economia é uma evidência. A intervenção centralizadora do Estado, seja através de
planejamento centralizado ou de gestão por decretos globais, também já demonstrou os
seus limites.

69
O planejamento municipal participativo e a descentralização constituem, neste
sentido, um instrumento de ordenamento econômico que já deu as suas provas em
muitos países, e sem dúvida é o grande recurso regulador subutilizado no pais.

70
Anexos

Apresentamos a seguir alguns casos concretos, para Ilustrar os temas


desenvolvidos no texto. Não queremos apresentar modelos: cada realidade deve ser
enfrentada levando em conta as suas especificidades. Mas é importante salientar que os
próprios excessos da centralização levaram a inúmeras buscas de alternativas, e cada
município tem muito a ganhar com o seu conhecimento.
Não devemos ter ilusões: no contexto atual, o município ainda tem pouco espaço
para alternativas, pois estas dependem de um apoio que ainda é limitado e da maturação
de uma série de condições políticas. Mas não se pode esperar condições de facilidade
para desenvolver iniciativas que abrem caminho.
A RECÉM (Rede de Comunicação de Experiências Municipais) tem cadastradas
mais de mil experiências em diversas áreas do desenvolvimento municipal. Os
documentos estão à disposição para consulta no CEPAM (Centro de Estudos e
Pesquisas de Administração Municipal) em São Paulo.
O CEPAM elaborou igualmente um relatório técnico, intitulado "Instrumentos de
planejamento municipal" que apresenta em detalhe fichas de projetos, relatórios
setoriais, balanços globais e outros instrumentos práticos que aqui são apenas
mencionados. O relatório está disponível no CEPAM — Cidade universitária, São
Paulo.

1) A centralização dos recursos tributários

Dados existentes sobre a repartição das receitas em cada nível de governo, para o
ano de 1983, nos permitem verificar que o conjunto das transferências oriundas da
União e dos estados representam para os municípios 68,5% do total da receita, contra
31,5% de receita tributária própria.
A preponderância dessa fonte de recursos pode ser aquilatada quando se compara
a receita tributária própria com as receitas efetivamente disponíveis para os municípios.
Se considerarmos apenas a receita tributária própria em cada nível de governo,
veremos que a repartição desse item da receita foi a seguinte em 1983: União, 57,8%;
Estado, 37,0%; Município, 05,2%.

71
Se adicionarmos o montante de transferências, veremos que a repartição dos
recursos efetivamente disponíveis foi, para o mesmo ano, a seguinte: União, 48,4%;
Estado, 35,2%; Município, 16,4%.
Dados do período de 1957 a 1983 mostram que a concentração de recursos, tanto
tributários quanto os efetivamente disponíveis, a favor do governo federal, atingiu o
máximo em 1976, e se mantém elevada.

2) Gestão federal e estadual no município

Um efeito indireto da excessiva centralização dos recursos c da sua gestão é que


os próprios órgãos federais e estaduais acabam instalando funcionários permanentes nos
municípios. Criam-se assim duas gestões públicas, a que depende da prefeitura e a que
depende de instâncias superiores.
Em alguns municípios analisados, 30 a 40% dos funcionários públicos de cada um
não são funcionários municipais.
Alguns órgãos apresentam esta "capilaridade" dos níveis centrais de decisão como
descentralização. Trata-se, pelo contrário, de manter o poder de decisão centralizado, ao
mesmo tempo que se instalam funcionários em cada município para seguimento,
controle ou execução.
Esses funcionários prestam contas fora do município, apesar da sua atividade se
desenvolver nele. A influência da prefeitura e da comunidade local sobre a orientação
dos serviços fica evidentemente prejudicada.
A seguir apresentamos alguns dados de municípios paulistas:
Município A Município B Município C

População total 7.080 14.486 31.335

Funcionários da
110 256 580
prefeitura

Funcionários
estaduais das cinco 62 122 378
principais secretarias

% de funcionários
36,5% 32,3% 39,5%
estaduais no total

72
A tendência merece um estudo detalhado.

3) Turismo de produtos: o custo das estruturas comerciais centralizadas

É frequente a queixa de pequenos comerciantes frente aos altos preços de


produtos típicos de seus municípios ou à falta destes nas quitandas da cidade.
Praticamente toda a produção do estado vinha para o CEAGESP de São Paulo para daí
ser redistribuída no Estado.
Dizia-se que o comerciante tinha interesse em trazer para São Paulo o produto
porque aqui ele “pegava preço melhor", além da vantagem da venda de toda a carga, "do
caminhão cheio". Não se computava a enorme perda de produtos no transporte e na
manipulação, que de fato forçava uma alta nos preços unitários, além do custo de
transporte e custos de intermediação.
O controle do "turismo" dos produtos não existe. Há poucos anos, porém, alguns
estudiosos do assunto resolveram acompanhar a trajetória da batata cultivada em
Montemor, região de Campinas. Depois de colhida, era transportada por mais de 200
quilômetros para ser lavada. Em seguida, fazia outra viagem de aproximadamente 150
quilômetros, para o CEAGESP-São Paulo, onde era comprada pelos pequenos
comerciantes de Montemor, para ser vendida no seu local de origem.
Pode-se imaginar o enorme custo econômico e social embutido neste mecanismo
centralizado de comercialização. A situação melhorou com a construção dos
CEAGESPs regionais. Ainda assim, apenas 60% das mercadorias que entram no
CEAGESP-São Paulo se destinam a São Paulo. Sabe-se que há produtos, como a papaia
e o melãozinho, que vêm do Norte para São Paulo, retornando em seguida ao Norte,
evidentemente muito mais caros.
O prejuízo do município é múltiplo: consome o produto mais caro, alimenta
atravessadores e transportadores inúteis que em geral sequer são do município e perde o
valor acrescentado de possível transformação local. Prejudica-se igualmente a
organização da complementaridade econômica entre os diversos municípios da região.
O valor transferido para São Paulo, sob forma de lucro de intermediação, resulta
em menor capacidade de investimento e desenvolvimento econômico no município.

73
4) Fontes e uso de recursos: um exemplo

Alguns aspectos financeiros de um município situado na região Oeste do Estado


podem ser apresentados de forma a ilustrar as fontes de recursos e a composição das
despesas.
Do lado da receita, partir de dados retirados dos balanços do município dos anos
de 1981 a 1985 e atualizando-se os valores em cruzados, pode-se montar um quadro,
que permite visualizar a distribuição dos recursos obtidos em suas duas grandes fontes:
as receitas próprias e as receitas transferidas, e analisar a sua evolução.
O quadro da página seguinte nos mostra que a fonte preponderante da receita para
o município, no período, foi realmente a receita de transferência de recursos do estado e
da União, quer seja a constitucional ou a negociada, representando em média mais de
dois terços do total.
Se analisarmos os dois principais itens das receitas de transferência, podemos
notar que a receita oriunda do ICM é fundamental para esse município, pois só ela
representou em média 37,04% do total, o dobro do percentual médio da receita
tributária própria. Também o percentual de recursos oriundo do FPM é superior ao da
receita tributária.
Nota-se a queda gradativa da receita tributária no período, passando de 24,50%
em 1981 para 15,07% em 1985. Deve-se destacar também a evolução do item Demais
Receitas, preponderantemente receitas de aplicações financeiras de 7,61% em 1981 para
14,48% em 1985, e que nesse ano praticamente se igualou ao da receita tributária.
É importante salientar finalmente as operações de crédito como fonte alternativa
de recursos em 1981 e com participação média de 4,13% no período de 1982 a 1985, em
face da insuficiência de recursos.
Ao somarmos os recursos oriundos de fontes externas, isto é, de recursos de
transferência (corrente e de capital) e de operações de crédito, fica mais evidenciado o
grau de dependência desse município, oscilando de 67,8% em 1981 para 74,42% em
1982, 77,39% em 1983, 74,6% em 1984 e 70,44% em 1985, o que significa que o
município tem um controle limitado sobre cerca de 70% dos recursos que utiliza.

74
Participação no total % Média no
Fontes de Recursos
período %
1981 1982 1983 1984 1985
1. Receitas próprias 32,11 25,58 22,61 25,40 29,55 27,05
1.1. Receita tributária 24,50 19,60 16,31 16,61 15,07 18,42
1.2. Demais receitas 07,61 05,98 06,30 08,79 14,48 08,63
2. Receitas de
transferências (total) 67,89 70,97 68,92 74,19 66,02 69,59
2.1. Imposto sobre
Circulação de
Mercadorias 38,24 40,23 41,23 37,54 27,98 37,04
2.2 Fundo de Participação
dos Municípios 20,35 18,31 19,78 20,35 19,83 19,72
2.3. Outras 9,30 12,43 07,91 16,30 18,21 12,83
3. Operações de crédito 3,45 08,47 00,41 04,42 04,18
Total 100 100 100 100 100

Do lado da despesa, com dados do mesmo período, pode-se montar um quadro


que permite a visualização da sua discriminação e evolução.
Ao nível global, vê-se que o município gastou em média no período 80,1% com
despesas correntes, embora com tendência declinante nos dois últimos anos, e 19,9%
com as despesas de capital. Analisando-se os principais itens que compõem as despesas
correntes, nota-se a preponderância do item Despesas com Pessoal que representou em
média 42,1% do total de gastos, embora venha se mantendo constante nos dois últimos
anos. Para sua cobertura foi insuficiente a receita própria, que participou em média com
62,04% do total dessa despesa, sendo necessária a utilização de receitas de fontes
externas para complementá-la.

Participação no total % Média no


Discriminação
Período %
1981 1982 1983 1984 1985
1. Despesas correntes 77,32 75,62 87,02 85,02 75,58 80,1
1.1. Pessoal e encargos 38,01 41,68 47,54 42,59 40,70 42,1
1.2. Material de consumo 12,39 10,72 10,77 9,68 12,97 11,3
1.3. Outras 18,00 17,91 15,19 17,82 10,43 15,27
1.4. Transferências correntes 8,92 8,31 13,52 14,93 11,48 11,4
2. Receitas de capital 22,68 24,38 12,98 14,98 24,42 19,9
2.1. Investimentos 11,89 21,83 10,55 10,71 20,52 15,1
2.2. Inversões financeiras 9,03 0,82 0,39 0,20 - 2,61
2.3. Transferências de capital 1,76 1,73 2,04 4,07 3,90 2,7
Total 100 100 100 100 100

75
Quanto ao outro grande grupo de despesas, as de capital, destaca-se a participação
dos investimentos com média de 15,1%.
O acesso da administração municipal aos recursos de órgãos, fundos e programas
dos governos federal e estadual, além dos em que por obrigação constitucional e legal
ela tem participação, envolve um componente de negociação política entre o prefeito
75e autoridades governamentais. Essa fonte de recursos tem sido muito utilizada
mediante convênio, embora nem sempre a sua disponibilidade coincida com a
prioridade eleita pelo município.
É preciso que a administração municipal tenha controle efetivo das receitas
provenientes desses convênios, pois podem estar vinculadas a determinado tipo de
gasto, exigir contrapartida de alocação de recurso por parte do município ou mesmo
obrigá-lo a um aporte adicional de recursos. Deve-se também atentar para o aumento
das despesas de custeio com manutenção dos serviços, obras ou atividades objetos dos
convênios, que influenciará os recursos disponíveis para investimento. O ordenamento
detalhado do seguimento destes convênios, o fato de poder apresentar bons relatórios de
uso dos recursos já atribuídos e projetos bem estruturados para pedir recursos novos
constituem efeitos importantes do planejamento.
Simplificados em seus tecnicismos e organizados de forma que a estrutura de
alocação de recursos e o controle das despesas possam ser feitos por projeto, de forma
global e de modo a possibilitar uma análise econômica do desenvolvimento do
município, o orçamento programa e o orçamento plurianual de investimento permitirão
a participação da comunidade na sua elaboração e podem perfeitamente constituir um
instrumento de apoio ao planejamento municipal. Isto exige que se integrem no
processo de planejamento e não sejam elaborados apenas para cumprir uma obrigação
legal.

5) Penápolis: o orçamento com participação popular

No Estado de São Paulo uma experiência efetiva de orçamento com participação


popular pode ser creditada ao município de Penápolis. Desde 1983, a administração vem
procurando aperfeiçoar os mecanismos de discussão orçamentária com a população.
Para garantir a maior representatividade possível, a área urbana foi dividida,
segundo características comuns, em treze setores e a zona rural foi considerada como
setor específico.

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A discussão do orçamento se realiza em duas fases: em junho e julho, a Assessoria
de Apoio Comunitário da Prefeitura realiza reuniões com cada um dos treze setores e a
zona rural, com ampla divulgação pelo rádio e imprensa locais. Na época oportuna são
enviados convites às residências do setor em discussão.
As reuniões realizam-se no período noturno para garantir a participação da
população que trabalha. Há grande preocupação em demonstrar ao munícipe seu papel
de contribuinte com direitos de exigir do poder público o atendimento das suas
necessidades.
As reivindicações do setor são colocadas em ordem de prioridade. Dez
representantes por setor são eleitos. A eles cabe a tarefa de levar a lista de reivindicações
para a segunda fase do trabalho, que se constitui de pelo menos três reuniões entre os
representantes e o executivo municipal (prefeito, secretários, assessores e equipe
técnica).
A segunda fase é realizada no mês de agosto de cada ano. Nela procuram-se
agrupar as reivindicações de cada setor, por área. Por exemplo, saúde, educação,
transporte, urbanização, etc. Isto para simplificar o processo de priorização de todas as
reivindicações, frente às disponibilidades financeiras limitadas da prefeitura. O
resultado é a elaboração do orçamento a ser enviado pelo Executivo à Câmara
Municipal, no mês de setembro. Os vereadores são convidados a acompanhar o
processo de discussão. A discussão sobre as fontes e uso dos recursos municipais,
desenvolvidos nesses quatro anos de governo, formou um grupo razoável de pessoas
que, hoje, conhecem detalhadamente o problema. A cada ano, dos representantes dos
setores é tirada uma comissão que, juntamente com a equipe técnica da área financeira
da prefeitura, vereadores e profissionais do mercado imobiliário, elabora a planta
genérica de valores que determina a cobrança de IPTU, principal imposto municipal. O
Código Tributário do município sofreu, nessa gestão, uma série de alterações, propostas
nas discussões de orçamento.
O modelo de planejamento desenvolvido no município enquanto experiência
piloto, em 1986, permitiu a realização de estudos setoriais. O material será utilizado a
partir deste ano para ampliar os horizontes de conhecimento dos grupos que discutem o
orçamento. Assim, a discussão dos problemas específicos dos diferentes bairros abre
espaço para a participação nas decisões sobre problemas mais amplos do município.

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6) Região de Cruzeiro: a definição de uma opção regional

A região de governo de Cruzeiro compreende os municípios de Areias, Bananal,


Cruzeiro, Lavrinhas, Queluz, São José do Barreiro e Silveiras e é chamada de Fundo do
Vale do Paraíba.
Essa região foi a maior produtora de café até a metade do século XIX. O
esgotamento dos solos, a crise econômica de 1929, a queda dos preços do café e a
construção da Rodovia Presidente Dutra, desativando quase totalmente a Estrada dos
Tropeiros, reduziram a importância econômica da região. Cinco das sete cidades se
tornaram economicamente estagnadas, com a sua população em declínio.
Hoje, sua principal atividade econômica é a agropecuária extensiva e de baixa
produtividade, que não dinamiza a região. A indústria é praticamente inexistente com
exceção de Cruzeiro. Em função da falta de infraestrutura, da distância dos centros
produtores e consumidores, entre outros, é difícil pensar na indústria como atividade
dinamizadora.
Diante desse quadro os prefeitos procuraram uma nova opção econômica para a
região. As atrações naturais (Serras da Mantiqueira e Bocaina), históricas (arquitetura
dos séculos XVIII, XIX e XX) e culturais (festas típicas, artesanato, etc.) conduziram os
prefeitos da região a optar pelo turismo. Os prefeitos indicaram representantes dos seus
municípios que, em conjunto com técnicos do CEPAM e do Escritório Regional de
Governo — formaram uma equipe de trabalho.
Cada um dos municípios realizou um levantamento do potencial turístico: atrações
naturais, históricas e culturais, bem como equipamentos e serviços turísticos
disponíveis. Com os dados obtidos, a viabilidade da opção foi confirmada, ainda que
seja necessária uma ampliação da infraestrutura existente.
Os debates e os trabalhos da equipe de planejamento já permitiram a definição dos
programas concretos de ação, dos quais alguns estão em execução.

7) Região de Araçatuba: recuperação de terras improdutivas

Exemplo de aproveitamento de recursos ociosos, o Consórcio Intermunicipal de


Correção de Várzea da Região de Araçatuba encontrou uma fórmula de recuperar
78terras improdutivas. Ele agrega seis municípios: Gabriel Monteiro, Buritama,
Auriflama, General Salgado, Penápolis e Birigüi. Seu objetivo principal é conseguir,

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num prazo de dez anos, recuperar 10 mil hectares de área de várzea existente na região,
com uma meta anual de mil hectares.
Para isso o consórcio conseguiu recursos da ordem de Cz$ 2.100.000,00, dos
quais Cz$ 600.000,00 Vieram das prefeituras municipais e o restante da Secretaria do
Interior.
O projeto foi elaborado pela Secretaria da Agricultura através de seus órgãos:
CATI (Coordenadoria de Assistência Técnica Integral) e DIRÁ (Divisão Regional
Agrícola). Todo o apoio técnico está sendo dado através da DIRÁ de Araçatuba e das
casas de agricultura dos municípios envolvidos. O papel da Secretaria do Interior foi o
de mobilizar os municípios e agregá-los ao consórcio, única forma de viabilizar um
projeto que demanda investimentos, frente às dificuldades financeiras e Operacionais
que hoje traduzem a realidade municipal.
O consórcio conta ainda com a participação do DAEE (Departamento de Águas e
Energia Elétrica) e da Secretaria de Promoção Social.
Com o DAEE ficou a responsabilidade pela contratação e treinamento de
operadores de máquina, por ser um dos únicos órgãos do Estado com experiência
técnica no manuseio dos equipamentos necessários à recuperação das várzeas. Com a
Promoção Social, o desenvolvimento do trabalho de integração e valorização do homem
do campo, beneficiário do projeto.
As áreas de várzea que receberão o benefício de recuperação foram escolhidas
através de critérios que procuraram dar prioridade ao pequeno e médio produtor de
alimentos. Um fator determinante da escolha da área foi a adesão do proprietário ao
projeto. Há necessidade de se conseguir agregar diversos proprietários para tornar viável
a execução da obra, uma vez que o fenômeno físico da várzea não obedece à divisão da
propriedade da terra.
Ao beneficiário do projeto cabem a manutenção da área e as despesas com
combustível. Do total da produção 6% retornam ao consórcio em espécie. Este montante
tem dois destinos: 3% pertencem ao consórcio e subsidiam a manutenção do maquinário
e os outros 3% serão aplicados pelas prefeituras na merenda escolar.
Cada proprietário assina, com o consórcio, um contrato renovável para produzir
alimentos durante três anos.
O maquinário fica por um período de dois meses em cada município. Atualmente
o projeto encontra-se na fase de recuperação da primeira várzea, no município de
Gabriel Monteiro. A ordem da execução dos serviços foi determinada por sorteio.

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A Secretaria da Agricultura só conseguiu viabilizar seu projeto de recuperação da
várzea quando foi colocado à sua disposição um instrumento como o consórcio
intermunicipal, que agrega não só diversas prefeituras, mas também diversos órgãos
estaduais. Esse projeto acabou por sensibilizar o Ministério da Agricultura, por ser o
único que promove a integração entre a ação dos municípios e a ação do Estado. Em
função disso foi liberada uma verba de Cz$ 7.500.000,00 que será utilizada na
agilização e ampliação do projeto. Hoje já estão sendo feitos estudos na área de
beneficiamento e armazenagem, tornando o programa mais completo.
É fácil perceber a autonomia que este consórcio está adquirindo em função da
independência financeira. A tendência é de que ele cresça e se transforme em modelo de
recuperação de várzea, capaz de ser levado a outras regiões do país.

8) Toledo: empresas comunitárias – uma opção de dinamização industrial

Toledo, cidade situada na região oeste do Paraná, tinha, no final da década de 70,
sua economia baseada na monocultura da soja e do trigo, gerando uma concentração
fundiária, desemprego e êxodo da sua população.
Em 1979 a Associação Comercial e Industrial de Toledo — ACIT, em conjunto
com o Centro de Apoio à Pequena e Média Empresa do Paraná — (CEAG/PR), tentou
achar uma nova forma de ativar economicamente o município. A opção foi por uma
industrialização baseada em empresas comunitárias. Seriam aproveitados os recursos
subutilizados existentes e a própria comunidade, através da compra de cotas das
empresas, participaria das decisões de desenvolvimento do município.
Iniciaram esse processo de industrialização com um curtume que passou a utilizar
o couro, subproduto de um frigorífico de Toledo. Surgia então a primeira empresa
comunitária — INCOPESA.
Em função dos resultados positivos surgiram novas opções de produção: calçados
(INCASA), bolas de futebol (INCOBOLAS), picles (INCAL), adubo orgânico
(INCOA) e outras empresas que se utilizam dos mesmos conceitos da primeira.
Com essa iniciativa o município começou a diversificar sua produção (hoje há
mais de 16 ramos industriais), acarretando um aumento da renda municipal e a
utilização de recursos financeiros da própria comunidade em setores produtivos. Foram
gerados aproximadamente mil empregos diretos e vários indiretos, a mão-de-obra local

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foi utilizada e reciclada, a consciência empresarial local se desenvolveu, o comércio foi
dinamizado, enfim, a estrutura produtiva local sofreu uma profunda modificação.
Hoje essas empresas são responsáveis por mais de 10% do ICM arrecadado no
município.
Há muito para ser feito, mas o caminho é interessante: a própria comunidade
definindo a sua forma de desenvolvimento, utilizando-se de recursos locais
subutilizados.

9) Jambeiro: mutirão e mobilização de recursos locais

Num país como o Brasil, onde parcela significativa da população recebe menos
que dois salários mínimos, o acesso à moradia torna-se um sério problema tendo em
vista o seu alto custo.
Alguns órgãos estaduais já há algum tempo têm se preocupado em desenvolver
sistemas de produção de habitações para população de baixa renda. O mutirão vem se
institucionalizando como instrumento adequado. Neste sistema a população não é
apenas mão-de-obra para execução de casas mas tem também um papel ativo na gestão
do processo, participando do planejamento, elaboração do projeto, definição de critérios
para o trabalho e execução.
O que se tem notado é que a presença ativa da população traz enormes avanços
qualitativos nos programas habitacionais. O município de Jambeiro, com pouco mais de
3 mil habitantes, é um exemplo dos bons resultados que traz a integração e participação
de diferentes parcelas da comunidade
Empresários locais, comerciantes e população carente, através de discussões e
troca de sugestões, conseguiram desenvolver no município uma sistemática de
construção e aquisição de materiais que como resultado forneceu unidades habitacionais
de dimensões maiores do que as que habitualmente se têm construído e em número
superior do que seria possível se tivessem contado apenas com recursos obtidos dos
órgãos de outra esfera governamental.
Apresentado o problema das condições subumanas em que viviam algumas
famílias, comerciantes do município doaram material de construção para colaborarem
na edificação das casas necessárias; e os fornecedores habituais da prefeitura municipal,
fossem eles fornecedores de gasolina, material de consumo, de areia, de cal ou cimento,
se propuseram a doar 10% do valor de cada compra efetuada pela prefeitura em

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materiais de construção; em troca de água e iluminação um proprietário local de uma
grande quadra do município cedeu uma parte dessa quadra para a prefeitura construir as
casas populares. A soma dessas colaborações deu condições de se ter no município um
programa bem mais abrangente.
O engenheiro da prefeitura, visitando uma série de municípios com experiência
em programas de habitação popular, trouxe uma tecnologia desenvolvida em outro
município onde não se emprega madeira na cobertura para suporte das telhas, o que
acarretou um barateamento significativo no custo da unidade habitacional.
Pequenos municípios vizinhos também vinham se preocupando com a questão
habitacional e resolveram se associar a Jambeiro para consorciadamente realizar a
compra dos equipamentos necessários.

10) Alternativas tecnológicas: o uso do aguapé para saneamento básico

Alguns municípios do interior do Estado de São Paulo estão enfrentando o


problema da poluição com o método "aguapé".
Trata-se de um projeto adaptado de experiências estrangeiras, que propõe uma
alternativa para o tratamento de esgotos urbanos e para a preservação de mananciais. A
primeira experiência com o aguapé foi desenvolvida pelo Centro de Energia Nuclear da
Agricultura da Universidade de São Paulo, no município de Piracicaba.
O rio Piracicaba teve um braço canalizado para uma lagoa com aguapés. As raízes
dessa planta realizam uma primeira filtragem da água, purificando-a, pois elas parecem
um chumaço de algodão que retém fisicamente os poluentes. O projeto compreende,
além da lagoa de aguapés, um campo de solo filtrante, onde a água ao atravessá-lo sofre
novo processo de filtragem. A água, depois de passar pela lagoa de aguapés e pelo solo
filtrante, é praticamente uma água de bica.
Os poluentes servem como nutrientes para a planta e adubo para a agricultura. O
arroz plantado nos tabuleiros de solo filtrante chega a produzir mais que o dobro do
normal.
O método exige uma engenharia fácil e barata, acessível a praticamente todos os
municípios, tanto do ponto de vista técnico como financeiro. Está sendo aplicado, além
de em Piracicaba, em Jacareí, Atibaia e Novo Horizonte.
O uso dessa, como de outras alternativas tecnológicas, reduz os gastos de custeio
dos municípios, liberando recursos para investimentos produtivos. Mas implica que o

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município conheça os seus recursos e invista efetivamente na pesquisa tecnológica
local.

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