A Consciência Pode Conhecer Tudo
A Consciência Pode Conhecer Tudo
A Consciência Pode Conhecer Tudo
A consciência pode conhecer informações raras e fragmentadas daquilo que se passa fora da
consciência, no restante da vida psíquica… A divisão do psíquico
tudo? num psíquico consciente e num psíquico inconsciente constitui a
premissa fundamental da psicanálise, sem a qual ela seria incapaz
Marilena Chaui de compreender os processos patológicos, tão frequentes quanto
graves, da vida psíquica e fazê-los entrar no quadro da ciência… A
In: CHAUI, Marilena. Convite à filosofia. São Paulo: Ática, 2000.
psicanálise se recusa a considerar a consciência como constituindo
a essência da vida psíquica, mas nela vê apenas uma qualidade
CONSCIÊNCIA E CONHECIMENTO
desta, podendo coexistir com outras qualidades e até mesmo faltar.
Vimos que a teoria do conhecimento, distinguindo o Eu, a pessoa,
A PSICANÁLISE
o cidadão e o sujeito, assim como distinguindo graus de consciência
(passiva, vivida, reflexiva), tem como centro a figura do sujeito do Freud era médico psiquiatra. Seguindo os médicos de sua época,
conhecimento, na qualidade de consciência de si reflexiva ou usava a hipnose e a sugestão no tratamento dos doentes mentais, mas
atividade permanente racional que conhece a si mesma. sentia-se insatisfeito com os resultados obtidos.
Que acontecerá, porém, se o sujeito do conhecimento descobrir Certa vez, recebeu uma paciente, Anna O., que apresentava
que a consciência possui mais um grau, além dos três que sintomas de histeria, isto é, apresentava distúrbios físicos (paralisias,
mencionamos e, sobretudo, quando descobrir que não se trata enxaquecas, dores de estômago), sem que houvesse causas físicas para
exatamente de mais um grau da consciência, mas de algo que a eles, pois eram manifestações corporais de problemas psíquicos. Em
consciência desconhece e sobre o qual nunca poderá refletir lugar de usar a hipnose e a sugestão, Freud usou um procedimento
diretamente? Que esse algo, desconhecido ou só indiretamente novo: fazia com que Anna relaxasse num divã e falasse. Dizia a ela
conhecido, determina tudo quanto a consciência e o sujeito sentem, palavras soltas e pedia-lhe que dissesse a primeira palavra que lhe
fazem, dizem e pensam? Em outras palavras, que sucederá quando o viesse à cabeça ao ouvir a que ele dissera (posteriormente, Freud
sujeito do conhecimento descobrir um limite intransponível chamado denominaria esse procedimento de “técnica de associação livre”).
o inconsciente? Freud percebeu que, em certos momentos, Anna reagia a certas
palavras e não pronunciava aquela que lhe viera à cabeça, censurando-
O INCONSCIENTE
a por algum motivo ignorado por ela e por ele. Notou também que, em
Freud escreveu que, no transcorrer da modernidade, os humanos outras ocasiões, depois de fazer a associação livre de palavras, Anna
foram feridos três vezes e que as feridas atingiram o nosso ficava muito agitada e falava muito. Observou que, certas vezes,
narcisismoi, isto é, a bela imagem que possuíamos de nós mesmos algumas palavras a faziam chorar sem motivo aparente e, outras
como seres conscientes racionais e com a qual, durante séculos, vezes, a faziam lembrar de fatos da infância, narrar um sonho que
estivemos encantados. Que feridas foram essas? tivera na noite anterior.
A primeira foi a que nos infligiu Copérnico, ao provar que a Terra Pela conversa, pelas reações da paciente, pelos sonhos narrados e
não estava no centro do Universo e que os homens não eram o centro pelas lembranças infantis, Freud descobriu que a vida consciente de
do mundo. A segunda foi causada por Darwin, ao provar que os Anna era determinada por uma vida inconsciente, que, tanto ela
homens descendem de um primata, que são apenas um elo na quanto ele, desconheciam. Compreendeu também que somente
evolução das espécies e não seres especiais, criados por Deus para interpretando as palavras, os sonhos, as lembranças e os gestos de
dominar a Natureza. A terceira foi causada por Freud com a Anna chegaria a essa vida inconsciente.
psicanálise, ao mostrar que a consciência é a menor parte e a mais Freud descobriu, finalmente, que os sintomas histéricos tinham
fraca de nossa vida psíquica. três finalidades: 1. contar indiretamente aos outros e a si mesma os
Na obra Cinco ensaios sobre a psicanálise, Freud escreve: sentimentos inconscientes; 2. punir-se por ter tais sentimentos; 3.
A Psicanálise propõe mostrar que o Eu não somente não é senhor
na sua própria casa, mas também está reduzido a contentar-se com 2
Filosofia: antropologia e ética Filosofia: antropologia e ética
realizar, pela doença e pelo sofrimento, um desejo inconsciente Freud descobriu três fases da sexualidade humana que se
intolerável. diferenciam pelos órgãos que sentem prazer e pelos objetos ou seres
Tratando de outros pacientes, Freud descobriu que, embora, que dão prazer. Essas fases se desenvolvem entre os primeiros meses
conscientemente, quisessem a cura, algo neles criava uma barreira, de vida e os cinco ou seis anos, ligadas ao desenvolvimento do id: a
uma resistência inconsciente à cura. Por quê? Porque os pacientes fase oral, quando o desejo e o prazer localizam-se primordialmente na
sentiam-se interiormente ameaçados por alguma coisa dolorosa e boca e na ingestão de alimentos e o seio materno, a mamadeira, a
temida, algo que haviam penosamente esquecido e que não chupeta, os dedos são objetos do prazer; a fase anal, quando o desejo
suportavam lembrar. Freud descobriu, assim, que o esquecimento e o prazer localizam-se primordialmente no ânus e as excreções,
consciente operava simultaneamente de duas maneiras: 1. como fezes, brincar com massas e com tintas, amassar barro ou argila,
resistência à terapia; 2. sob a forma da doença psíquica, pois o comer coisas cremosas e sujar-se são os objetos do prazer; e a fase
inconsciente não esquece e obriga o esquecido a reaparecer sob a genital ou fase fálica, quando o desejo e o prazer localizam-se
forma dos sintomas da neurose e da psicose. primordialmente nos órgãos genitais e nas partes do corpo que
Desenvolvendo com outros pacientes e consigo mesmo esses excitam tais órgãos. Nessa fase, para os meninos, a mãe é o objeto do
procedimentos e novas técnicas de interpretação de sintomas, sonhos, desejo e do prazer; para as meninas, o pai.
lembranças, esquecimentos, Freud foi criando o que chamou de No centro do id, determinando toda a vida psíquica, encontra-se o
análise da vida psíquica ou psicanálise, cujo objeto central era o que Freud denominou de complexo de Édipo, isto é, o desejo
estudo do inconsciente e cuja finalidade era a cura de neuroses e incestuoso pelo pai ou pela mãe. É esse o desejo fundamental que
psicoses, tendo como método a interpretação e como instrumento a organiza a totalidade da vida psíquica e determina o sentido de nossas
linguagem (tanto a linguagem verbal das palavras quanto a linguagem vidas.
corporal dos sintomas e dos gestos). O superego, também inconsciente, é a censura das pulsões que a
sociedade e a cultura impõem ao id, impedindo-o de satisfazer
A VIDA PSÍQUICA
plenamente seus instintos e desejos. É a repressão, particularmente a
Durante toda sua vida, Freud não cessou de reformular a teoria repressão sexual. Manifesta-se à consciência indiretamente, sob a
psicanalítica, abandonando alguns conceitos, criando outros, forma da moral, como um conjunto de interdições e de deveres, e por
abandonando algumas técnicas terapêuticas e criando outras. Não meio da educação, pela produção da imagem do “eu ideal”, isto é, da
vamos, aqui, acompanhar a história da formação da psicanálise, mas pessoa moral, boa e virtuosa. O superego ou censura desenvolve-se
apresentar algumas de suas principais idéias e inovações. num período que Freud designa como período de latência, situado
A vida psíquica é constituída por três instâncias, duas delas entre os seis ou sete anos e o início da puberdade ou adolescência.
inconscientes e apenas uma consciente: o id, o superego e o ego (ou o Nesse período, forma-se nossa personalidade moral e social, de
isso, o supereu e o eu). Os dois primeiros são inconscientes; o maneira que, quando a sexualidade genital ressurgir, estará obrigada a
terceiro, consciente. seguir o caminho traçado pelo superego.
O id é formado por instintos, impulsos orgânicos e desejos O ego ou o eu é a consciência, pequena parte da vida psíquica
inconscientes, ou seja, pelo que Freud designa como pulsões. Estas submetida aos desejos do id e à repressão do superego. Obedece ao
são regidas pelo princípio do prazer, que exige satisfação imediata. princípio da realidade, ou seja, à necessidade de encontrar objetos
O id é a energia dos instintos e dos desejos em busca da realização que possam satisfazer ao id sem transgredir as exigências do
desse princípio do prazer. É a libido. Instintos, impulsos e desejos, em superego.
suma, as pulsões, são de natureza sexual e a sexualidade não se reduz O ego, diz Freud, é “um pobre coitado”, espremido entre três
ao ato sexual genital, mas a todos os desejos que pedem e encontram escravidões: os desejos insaciáveis do id, a severidade repressiva do
satisfação na totalidade de nosso corpo. superego e os perigos do mundo exterior. Por esse motivo, a forma
fundamental da existência para o ego é a angústia. Se se submeter ao
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id, torna-se imoral e destrutivo; se se submeter ao superego, coisas e pessoas, odiamos e tememos outras. As coisas e os outros são
enlouquece de desespero, pois viverá numa insatisfação insuportável; investidos por nosso inconsciente com cargas afetivas de libido.
se não se submeter à realidade do mundo, será destruído por ele. Cabe É por esse motivo que certas coisas, certos sons, certas cores,
ao ego encontrar caminhos para a angústia existencial. Estamos certos animais, certas situações nos enchem de pavor, enquanto outras
divididos entre o princípio do prazer (que não conhece limites) e o nos enchem de bem-estar, sem que o possamos explicar. A origem das
princípio da realidade (que nos impõe limites externos e internos). simpatias e antipatias, amores e ódios, medos e prazeres está em nossa
Ao ego-eu, ou seja, à consciência, é dada uma função dupla: ao mais tenra infância, em geral nos primeiros meses e anos de nossa
mesmo tempo recalcar o id, satisfazendo o superego, e satisfazer o id, vida, quando se formam as relações afetivas fundamentais e o
limitando o poderio do superego. A vida consciente normal é o complexo de Édipo.
equilíbrio encontrado pela consciência para realizar sua dupla função. Essa dimensão imaginária de nossa vida psíquica – substituições,
A loucura (neuroses e psicoses) é a incapacidade do ego para realizar sonhos, lapsos, atos falhos, prazer e desprazer com objetos e pessoas –
sua dupla função, seja porque o id ou o superego são excessivamente indica que os recursos inconscientes para surgir indiretamente à
fortes, seja porque o ego é excessivamente fraco. consciência possuem dois níveis: o nível do conteúdo manifesto
O inconsciente, em suas duas formas, está impedido de (escada, mar e incêndio, no sonho; a palavra esquecida e a
manifestar-se diretamente à consciência, mas consegue fazê-lo pronunciada, no lapso; pé torcido ou objeto partido, no ato falho;
indiretamente. A maneira mais eficaz para a manifestação é a afetos contrários por coisas e pessoas) e o nível do conteúdo latente,
substituição, isto é, o inconsciente oferece à consciência um que é o conteúdo inconsciente real e oculto (os desejos sexuais).
substituto aceitável por ela e por meio do qual ela pode satisfazer o id Nossa vida normal se passa no plano dos conteúdos manifestos e,
ou o superego. Os substitutos são imagens (isto é, representações portanto, no imaginário. Somente uma análise psíquica e psicológica
analógicas dos objetos do desejo) e formam o imaginário psíquico, desses conteúdos, por meio de técnicas especiais (trazidas pela
que, ao ocultar e dissimular o verdadeiro desejo, o satisfaz psicanálise), nos permite decifrar o conteúdo latente que se dissimula
indiretamente por meio de objetos substitutos (a chupeta e o dedo, sob o conteúdo manifesto.
para o seio materno; tintas e pintura ou argila e escultura para as Além dos recursos individuais cotidianos que nosso inconsciente
fezes, uma pessoa amada no lugar do pai ou da mãe). Além dos usa para manifestar-se, e além dos recursos extremos e dolorosos
substitutos reais (chupeta, argila, pessoa amada), o imaginário usados na loucura (nela, os recursos são os sintomas), existe um outro
inconsciente também oferece outros substitutos, os mais frequentes recurso, de enorme importância para a vida cultural e social, isto é,
sendo os sonhos, os lapsos e os atos falhos. Neles, realizamos desejos para a existência coletiva. Trata-se do que Freud designa com o nome
inconscientes, de natureza sexual. São a satisfação imaginária do de sublimação.
desejo. Na sublimação, os desejos inconscientes são transformados em
Alguém sonha, por exemplo, que sobe uma escada, está num uma outra coisa, exprimem-se pela criação de uma outra coisa: as
naufrágio ou num incêndio. Na realidade, sonhou com uma relação obras de arte, as ciências, a religião, a Filosofia, as técnicas, as
sexual proibida. Alguém quer dizer uma palavra, esquece-a ou se instituições sociais e as ações políticas. Artistas, místicos, pensadores,
engana, comete um lapso e diz uma outra que nos surpreende, pois escritores, cientistas, líderes políticos satisfazem seus desejos pela
nada tem a ver com aquela que se queria dizer. Realizou um desejo sublimação e, portanto, pela realização de obras e pela criação de
proibido. Alguém vai andando por uma rua e, sem querer, torce o pé e instituições religiosas, sociais, políticas etc.
quebra o objeto que estava carregando. Realizou um desejo proibido. Porém, assim como a loucura é a impossibilidade do ego para
A vida psíquica dá sentido e coloração afetivo-sexual a todos os realizar sua própria função, também a sublimação pode não ser
objetos e todas as pessoas que nos rodeiam e entre os quais vivemos. alcançada e, em seu lugar, surgir uma perversão social ou coletiva,
Por isso, sem que saibamos por que, desejamos e amamos certas uma loucura social ou coletiva. O nazismo é um exemplo de
perversão, em vez de sublimação. A propaganda, que induz em nós
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Filosofia: antropologia e ética Filosofia: antropologia e ética
falsos desejos sexuais pela multiplicação das imagens de prazer, é um prestar-lhe culto, temê-lo. Não se reconhecem nesse Outro que
outro exemplo de perversão ou de incapacidade para a sublimação. criaram. Em latim, “outro” se diz: alienus. Os homens se alienam e
O inconsciente, diz Freud, não é o subconsciente. Este é aquele Feuerbach designou esse fato com o nome de alienação.
grau de consciência como consciência passiva e consciência vivida A alienação é o fenômeno pelo qual os homens criam ou
não-reflexiva, podendo tornar-se plenamente consciente. O produzem alguma coisa, dão independência a essa criatura como se
inconsciente, ao contrário, jamais será consciente diretamente, ela existisse por si mesma e em si mesma, deixam-se governar por ela
podendo ser captado apenas indiretamente e por meio de técnicas como se ela tivesse poder em si e por si mesma, não se reconhecem na
especiais de interpretação desenvolvidas pela psicanálise. obra que criaram, fazendo-a um ser-outro, separado dos homens,
A psicanálise descobriu, assim, uma poderosa limitação às superior a eles e com poder sobre eles.
pretensões da consciência para dominar e controlar a realidade e o Marx não se interessou apenas pela alienação religiosa, mas
conhecimento. Paradoxalmente, porém, nos revelou a capacidade investigou sobretudo a alienação social. Interessou-se em
fantástica da razão e do pensamento para ousar atravessar proibições e compreender as causas pelas quais os homens ignoram que são os
repressões e buscar a verdade, mesmo que para isso seja preciso criadores da sociedade, da política, da cultura e agentes da História.
desmontar a bela imagem que os seres humanos têm de si mesmos. Interessou-se em compreender por que os humanos acreditam que a
Longe de desvalorizar a teoria do conhecimento, a psicanálise sociedade não foi instituída por eles, mas por vontade e obra dos
exige do pensamento que não faça concessões às idéias estabelecidas, deuses, da Natureza, da Razão, em vez de perceberem que são eles
à moral vigente, aos preconceitos e às opiniões de nossa sociedade, próprios que, em condições históricas determinadas, criam as
mas que as enfrente em nome da própria razão e do pensamento. A instituições sociais – família, relações de produção e de trabalho,
consciência é frágil, mas é ela que decide e aceita correr o risco da relações de troca, linguagem oral, linguagem escrita, escola, religião,
angústia e o risco de desvendar e decifrar o inconsciente. Aceita e artes, ciências, filosofia – e as instituições políticas – leis, direitos,
decide enfrentar a angústia para chegar ao conhecimento: somos um deveres, tribunais, Estado, exército, impostos, prisões. A ação
caniço pensante. sociopolítica e histórica chama-se práxis e o desconhecimento de suas
origens e de suas causas, alienação.
A ALIENAÇÃO SOCIAL
Por que os seres humanos não se reconhecem como sujeitos
Às três feridas narcísicas mencionadas por Freud, precisamos sociais, políticos, históricos, como agentes e criadores da realidade na
acrescentar mais uma: a que nos foi infligida por Marx com a noção qual vivem? Por que, além de não se perceberem como sujeitos e
de ideologia. Para compreendê-la, precisamos primeiro compreender agentes, os humanos se submetem às condições sociais, políticas,
o fenômeno da alienação social. culturais, como se elas tivessem vida própria, poder próprio, vontade
Marx era filósofo, advogado e historiador, e interessou-se por um própria e os governassem, em lugar de serem controladas e
estudo feito por um outro filósofo, Feuerbach. Este investigara o governadas por eles? Por que existe a alienação social? Por que os
modo como se formam as religiões, isto é, o modo como os seres homens se deixam dominar pela sua própria obra ou criação histórica?
humanos sentem necessidade de oferecer uma explicação para a Por que filósofos, teólogos, cientistas (portanto, o sujeito do
origem e a finalidade do mundo. conhecimento) elaboram teorias que reforçam a alienação? Por que
Ao buscar essa explicação, os humanos projetam fora de si um ser filósofos dizem que a sociedade é produzida pela Natureza? Por que
superior dotado das qualidades que julgam as melhores: inteligência, teólogos dizem que a família e o Estado existem por vontade de
vontade livre, bondade, justiça, beleza, mas as fazem existir nesse ser Deus? Por que os cientistas afirmam que a sociedade é racional e
superior como superlativas, isto é, ele é onisciente e onipotente, sabe criada pela Razão Universal?
tudo, faz tudo, pode tudo. Pouco a pouco, os humanos se esquecem de Para compreender o fenômeno da alienação, Marx estudou o modo
que foram os criadores desse ser e passam a acreditar no inverso, ou como as sociedades são produzidas historicamente pela práxis dos
seja, que esse ser foi quem os criou e os governa. Passam a adorá-lo, seres humanos.
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Filosofia: antropologia e ética Filosofia: antropologia e ética
Verificou que, historicamente, uma sociedade (pequena, grande, constituída pela divisão entre o desejo dos grandes de oprimir e
tribal, imperial, não importa) sempre começa por uma divisão e que comandar e o desejo do povo de não ser oprimido nem comandado.
essa divisão organiza todas as relações sociais que serão instituídas a Com essa descrição, Marx observou que a sociedade nasce pela
seguir. Trata-se da divisão social do trabalho. Na luta pela estruturação de um conjunto de divisões: divisão sexual do trabalho,
sobrevivência, os seres humanos se agrupam para explorar os recursos divisão social do trabalho, divisão social das trocas, divisão social das
da Natureza e dividem as tarefas: tarefas dos homens adultos, tarefas riquezas, divisão social do poder econômico, divisão social do poder
das mulheres adultas, tarefas dos homens jovens, tarefas das mulheres militar, divisão social do poder religioso e divisão social do poder
jovens, tarefas das crianças e dos idosos. A partir dessa divisão, político. Por que divisão? Porque em todas as instituições sociais
organizam a primeira instituição social: a família, na qual o homem (família, trabalho, comércio, guerra, religião, política) uma parte
adulto, na qualidade de pai, torna-se chefe e domina a mulher adulta, detém poder, riqueza, bens, armas, idéias e saberes, terras,
sua esposa e mãe de seus filhos, os quais também são dominados pelo trabalhadores, poder político, enquanto outra parte não possui nada
pai. disso, estando subjugada à outra, rica, poderosa e instruída.
As famílias trabalham e trocam entre si os produtos do trabalho. Esse conjunto estruturado de divisões torna-se cada vez mais
Surge uma segunda instituição social: a troca, isto é, o comércio. complexo, intrincado, numeroso, multiplicando-se em muitas outras
Algumas famílias conquistam terras melhores do que outras e divisões, sob a forma de numerosas instituições sociais e acabam por
conseguem colheitas ou gado em maior quantidade que outras, revelar a estrutura fundamental das sociedades como divisão social
trocando seus produtos por uma quantidade maior que a de outras. das classes sociais. A esse conjunto (tanto simples quanto complexo)
Ficam mais ricas. As muito pobres, não tendo conseguido produzir de instituições nascidas da divisão social Marx deu o nome de
nada ou muito pouco, vêem-se obrigadas a trabalhar para as mais ricas condições materiais da vida social e política. Por que materiais?
em troca de produtos para a sobrevivência. Começa a surgir uma Porque se referem ao conjunto de práticas sociais pelas quais os
terceira instituição social: o trabalho servil, que desembocará na homens garantem sua sobrevivência por meio do trabalho e da troca
escravidão. dos produtos do trabalho, e que constituem a economia.
Os mais ricos e poderosos reúnem-se e decidem controlar o A variação das condições materiais de uma sociedade constitui a
conjunto de famílias, distribuindo entre si os poderes e excluindo História dessa sociedade e Marx as designou como modos de
algumas famílias de todo poder. Começa a surgir uma quarta produção. A História é a mudança, passagem ou transformação de
instituição social: o poder político, de onde virá o Estado. um modo de produção para outro. Tal mudança não se realiza por
Nessa altura, os seres humanos já começaram a explicar a origem acaso nem por vontade livre dos seres humanos, mas acontece de
e a finalidade do mundo, já elaboraram mitos e ritos. As famílias ricas acordo com condições econômicas, sociais e culturais já
e poderosas dão a alguns de seus membros autoridade exclusiva para estabelecidas, que podem ser alteradas de uma maneira também
narrar mitos e celebrar ritos. Criam uma outra instituição social: a determinada, graças à práxis humana diante de tais condições dadas.
religião, dominada por sacerdotes saídos das famílias poderosas e O fato de que a mudança de uma sociedade ou a mudança histórica
que, por terem a autoridade para se relacionar com o sagrado, tornam- se faça em condições determinadas, levou Marx a afirmar que: “Os
se temidos e venerados pelo restante da sociedade. São um novo homens fazem a História, mas o fazem em condições determinadas”,
poder social. isto é, que não foram escolhidas por eles. Por isso também, ele disse:
Os vários grupos de famílias dirigentes disputam entre si terras, “Os homens fazem a História, mas não sabem que a fazem”.
animais e servos e dão início a uma nova instituição social: a guerra, Estamos, aqui, diante de uma situação coletiva muito parecida
com a qual os vencidos se tornam escravos dos vencedores, e o poder com a que encontramos no caso de nossa vida psíquica individual.
econômico, social, militar, religioso e político se concentra ainda mais Assim como julgamos que nossa consciência sabe tudo, pode tudo,
em poucas mãos. Como escreveu Maquiavel, toda sociedade é faz o que pensa e quer, mas, na realidade, está determinada pelo
inconsciente e ignora tal determinação, assim também, na existência
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Filosofia: antropologia e ética Filosofia: antropologia e ética
social, os seres humanos julgam que sabem o que é a sociedade, produzidos por seu trabalho. Em nossas sociedades modernas, a
dizendo que Deus ou a Natureza ou a Razão a criaram, instituíram a alienação econômica é dupla:
política e a História, e que os homens são seus instrumentos; ou, Em primeiro lugar, os trabalhadores, como classe social, vendem
então, acreditam que fazem o que fazem e pensam o que pensam sua força de trabalho aos proprietários do capital (donos das terras,
porque são indivíduos livres, autônomos e com poder para mudar o das indústrias, do comércio, dos bancos, das escolas, dos hospitais,
curso das coisas como e quando quiserem. das frotas de automóveis, de ônibus ou de aviões, etc.). Vendendo sua
Por exemplo, quando alguém diz que uma pessoa é pobre porque força de trabalho no mercado da compra e venda de trabalho, os
quer, porque é preguiçosa, ou perdulária, ou ignorante, está trabalhadores são mercadorias e, como toda mercadoria, recebem um
imaginando que somos o que somos somente por nossa vontade, como preço, isto é, o salário. Entretanto, os trabalhadores não percebem que
se a organização e a estrutura da sociedade, da economia, da política foram reduzidos à condição de coisas que produzem coisas; não
não tivesse qualquer peso sobre nossas vidas. A mesma coisa acontece percebem que foram desumanizados e coisificados.
quando alguém diz ser pobre “pela vontade de Deus” e não por causa Em segundo lugar, os trabalhos produzem alimentos (pelo cultivo
das condições concretas em que vive. Ou quando faz uma afirmação da terra e dos animais), objetos de consumo (pela indústria),
racista, segundo a qual “a Natureza fez alguns superiores e outros instrumentos para a produção de outros trabalhos (máquinas),
inferiores”. condições para a realização de outros trabalhos (transporte de
A alienação social é o desconhecimento das condições histórico- matérias-primas, de produtos e de trabalhadores). A mercadoria-
sociais concretas em que vivemos, produzidas pela ação humana trabalhador produz mercadorias. Estas, ao deixarem as fazendas, as
também sob o peso de outras condições históricas anteriores e usinas, as fábricas, os escritórios e entrarem nas lojas, nas feiras, nos
determinadas. Há uma dupla alienação: por um lado, os homens não supermercados, nos shoppings centers parecem ali estar porque lá
se reconhecem como agentes e autores da vida social com suas foram colocadas (não pensamos no trabalho humano que nelas está
instituições, mas, por outro lado e ao mesmo tempo, julgam-se cristalizado e não pensamos no trabalho humano realizado para que
indivíduos plenamente livres, capazes de mudar suas vidas individuais chegassem até nós) e, como o trabalhador, elas também recebem um
como e quando quiserem, apesar das instituições sociais e das preço.
condições históricas. No primeiro caso, não percebem que instituem a O trabalhador olha os preços e sabe que não poderá adquirir quase
sociedade; no segundo caso, ignoram que a sociedade instituída nada do que está exposto no comércio, mas não lhe passa pela cabeça
determina seus pensamentos e ações. que foi ele, não enquanto indivíduo e sim como classe social, quem
produziu tudo aquilo com seu trabalho e que não pode ter os produtos
AS TRÊS FORMAS DA ALIENAÇÃO SOCIAL
porque o preço deles é muito mais alto do que o preço dele,
Podemos falar em três grandes formas de alienação existentes nas trabalhador, isto é, o seu salário.
sociedades modernas ou capitalistas: Apesar disso, o trabalhador pode, cheio de orgulho, mostrar aos
1. A alienação social, na qual os humanos não se reconhecem outros as coisas que ele fabrica, ou, se comerciário, que ele vende,
como produtores das instituições sociopolíticas e oscilam entre duas aceitando não possuí-las, como se isso fosse muito justo e natural. As
atitudes: ou aceitam passivamente tudo o que existe, por ser tido como mercadorias deixam de ser percebidas como produtos do trabalho e
natural, divino ou racional, ou se rebelam individualmente, julgando passam a ser vistas como bens em si e por si mesmas (como a
que, por sua própria vontade e inteligência, podem mais do que a propaganda as mostra e oferece).
realidade que os condiciona. Nos dois casos, a sociedade é o outro Na primeira forma de alienação econômica, o trabalhador está
(alienus), algo externo a nós, separado de nós, diferente de nós e com separado de seu trabalho – este é alguma coisa que tem um preço; é
poder total ou nenhum poder sobre nós. um outro (alienus), que não o trabalhador. Na segunda forma da
2. A alienação econômica, na qual os produtores não se alienação econômica, as mercadorias não permitem que o trabalhador
reconhecem como produtores, nem se reconhecem nos objetos se reconheça nelas. Estão separadas dele, são exteriores a ele e podem
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Filosofia: antropologia e ética Filosofia: antropologia e ética
mais do que ele. As mercadorias são igualmente um outro, que não o sociedade – sacerdotes, filósofos, cientistas, professores, escritores,
trabalhador. jornalistas, artistas -, que descrevem e explicam o mundo a partir do
3. A alienação intelectual, resultante da separação social entre ponto de vista da classe a que pertencem e que é a classe dominante
trabalho material (que produz mercadorias) e trabalho intelectual (que de uma sociedade. Essa elaboração intelectual incorporada pelo senso
produz idéias). A divisão social entre as duas modalidades de trabalho comum social é a ideologia. Por meio dela, o ponto de vista, as
leva a crer que o trabalho material é uma tarefa que não exige opiniões e as idéias de uma das classes sociais – a dominante e
conhecimentos, mas apenas habilidades manuais, enquanto o trabalho dirigente – tornam-se o ponto de vista e a opinião de todas as classes e
intelectual é responsável exclusivo pelos conhecimentos. Vivendo de toda a sociedade.
numa sociedade alienada, os intelectuais também se alienam. Sua A função principal da ideologia é ocultar e dissimular as divisões
alienação é tripla: sociais e políticas, dar-lhes a aparência de indivisão e de diferenças
Primeiro, esquecem ou ignoram que suas idéias estão ligadas às naturais entre os seres humanos. Indivisão: apesar da divisão social
opiniões e pontos de vista da classe a que pertencem, isto é, a classe das classes, somos levados a crer que somos todos iguais porque
dominante, e imaginam, ao contrário, que são idéias universais, participamos da idéia de “humanidade”, ou da idéia de “nação” e
válidas para todos, em todos os tempos e lugares. “pátria”, ou da idéia de “raça”, etc. Diferenças naturais: somos
Segundo, esquecem ou ignoram que as idéias são produzidas por levados a crer que as desigualdades sociais, econômicas e políticas
eles para explicar a realidade e passam a crer que elas se encontram não são produzidas pela divisão social das classes, mas por diferenças
gravadas na própria realidade e que eles apenas as descobrem e individuais dos talentos e das capacidades, da inteligência, da força de
descrevem sob a forma de teorias gerais. vontade maior ou menor, etc.
Terceiro, esquecem ou ignoram a origem social das idéias e seu A produção ideológica da ilusão social tem como finalidade fazer
próprio trabalho para criá-las; acreditam que as idéias existem em si e com que todas as classes sociais aceitem as condições em que vivem,
por si mesmas, criam a realidade e a controlam, dirigem ou dominam. julgando-as naturais, normais, corretas, justas, sem pretender
Pouco a pouco, passam a acreditar que as idéias se produzem umas às transformá-las ou conhecê-las realmente, sem levar em conta que há
outras, são causas e efeitos umas das outras e que somos apenas uma contradição profunda entre as condições reais em que vivemos e
receptáculos delas ou instrumentos delas. As idéias se tornam as idéias.
separadas de seus autores, externas a eles, transcendentes a eles: Por exemplo, a ideologia afirma que somos todos cidadãos e,
tornam-se um outro. portanto, temos todos os mesmos direitos sociais, econômicos,
As três grandes formas da alienação (social, econômica e políticos e culturais. No entanto, sabemos que isso não acontece de
intelectual) são a causa do surgimento, da implantação e do fato: as crianças de rua não têm direitos; os idosos não têm direitos; os
fortalecimento da ideologia. direitos culturais das crianças nas escolas públicas são inferiores aos
das crianças que estão em escolas particulares, pois o ensino não é de
A IDEOLOGIA
mesma qualidade em ambas; os negros e índios são discriminados
A alienação se exprime numa “teoria” do conhecimento como inferiores; os homossexuais são perseguidos como pervertidos,
espontânea, formando o senso comum da sociedade. Por seu etc.
intermédio, são imaginadas explicações e justificativas para a A maioria, porém, acredita que o fato de ser eleitor, pagar as
realidade tal como é diretamente percebida e vivida. dívidas e contribuir com os impostos já nos faz cidadãos, sem
Um exemplo desse senso comum aparece no caso da “explicação” considerar as condições concretas que fazem alguns serem mais
da pobreza, em que o pobre é pobre por sua própria culpa (preguiça, cidadãos do que outros. A função da ideologia é impedir-nos de
ignorância) ou por vontade divina ou por inferioridade natural. Esse pensar nessas coisas.
senso comum social, na verdade, é o resultado de uma elaboração
intelectual sobre a realidade, feita pelos pensadores ou intelectuais da
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Filosofia: antropologia e ética Filosofia: antropologia e ética
OS PROCEDIMENTOS DA IDEOLOGIA ocultando as contradições da vida social, bem como as contradições
entre esta e as idéias que supostamente a explicam e controlam.
Como procede a ideologia para obter esse fantástico resultado?
Enfim, uma terceira maneira de operação da ideologia é o silêncio.
Em primeiro lugar, opera por inversão, isto é, coloca os efeitos no
Um imaginário social se parece com uma frase onde nem tudo é dito,
lugar das causas e transforma estas últimas em efeitos. Ela opera
nem pode ser dito, porque, se tudo fosse dito, a frase perderia a
como o inconsciente: este fabrica imagens e sintomas; aquela fabrica
coerência, tornar-se-ia incoerente e contraditória e ninguém
idéias e falsas causalidades.
acreditaria nela. A coerência e a unidade do imaginário social ou
Por exemplo, o senso comum social afirma que a mulher é um ser
ideologia vêm, portanto, do que é silenciado (e, sob esse aspecto, a
frágil, sensitivo, intuitivo, feito para as doçuras do lar e da
ideologia opera exatamente como o inconsciente descrito pela
maternidade e que, por isso, foi destinada, por natureza, para a vida
psicanálise).
doméstica, o cuidado do marido e da família. Assim o “ser feminino”
Por exemplo, a ideologia afirma que o adultério é crime (tanto
é colocado como causa da “função social feminina”.
assim que homens que matam suas esposas e os amantes delas são
Ora, historicamente, o que ocorreu foi exatamente o contrário: na
considerados inocentes porque praticaram um ato em nome da honra),
divisão sexual-social do trabalho e na divisão dos poderes no interior
que a virgindade feminina é preciosa e que o homossexualismo é uma
da família, atribuiu-se à mulher um lugar levando-se em conta o lugar
perversão e uma doença grave (tão grave que, para alguns, Deus
masculino; como este era o lugar do domínio, da autoridade e do
resolveu punir os homossexuais enviando a peste, isto é, a AIDS).
poder, deu-se à mulher o lugar subordinado e auxiliar, a função
O que está sendo silenciado pela ideologia? Por que, em nossa
complementar e, visto que o número de braços para o trabalho e para
sociedade, o vínculo entre sexo e procriação é tão importante (coisa
a guerra aumentava o poderio do chefe da família e chefe militar, a
que não acontece em todas as sociedades, mas apenas em algumas,
função reprodutora da mulher tornou-se imprescindível, trazendo
como a nossa)? Nossa sociedade exige a procriação legítima e legal –
como consequência sua designação prioritária para a maternidade.
a que se realiza pelos laços do casamento –, porque ela garante, para a
Estabelecidas essas condições sociais, era preciso persuadir as
classe dominante, a transmissão do capital aos herdeiros. Assim
mulheres de que seu lugar e sua função não provinham do modo de
sendo, o adultério e a perda da virgindade são perigosos para o capital
organização social, mas da Natureza, e eram excelentes e desejáveis.
e para a transmissão legal da riqueza; por isso, o adultério se torna
Para isso, montou-se a ideologia do “ser feminino” e da “função
crime e a virgindade é valorizada como virtude suprema das mulheres
feminina” como naturais e não como históricos e sociais. Como se
jovens.
observa, uma vez implantada uma ideologia, passamos a tomar os
Em nossa sociedade, a reprodução da força de trabalho se faz pelo
efeitos pelas causas.
aumento do número de trabalhadores e, portanto, a procriação é
A segunda maneira de operar da ideologia é a produção do
considerada fundamental para o aumento do capital que precisa da
imaginário social, através da imaginação reprodutora. Recolhendo as
mão-de-obra. Por esse motivo, toda sexualidade que não se realizar
imagens diretas e imediatas da experiência social (isto é, do modo
com finalidade reprodutiva será considerada anormal, perversa e
como vivemos as relações sociais), a ideologia as reproduz, mas
doentia, donde a condenação do homossexualismo. A ideologia,
transformando-as num conjunto coerente, lógico e sistemático de
porém, perderia sua força e coerência se dissesse essas coisas e por
idéias que funcionam em dois registros: como representações da
isso as silencia.
realidade (sistema explicativo ou teórico) e como normas e regras de
conduta e comportamento (sistema prescritivo de normas e valores). IDEOLOGIA E INCONSCIENTE
Representações, normas e valores formam um tecido de imagens que
Dissemos que a ideologia se assemelha ao inconsciente freudiano.
explicam toda a realidade e prescrevem para toda a sociedade o que
Há, pelo menos, três semelhanças principais entre eles:
ela deve e como deve pensar, falar, sentir e agir. A ideologia assegura,
a todos, modos de entender a realidade e de se comportar nela ou
diante dela, eliminando dúvidas, ansiedades, angústias, admirações,
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Filosofia: antropologia e ética Filosofia: antropologia e ética
1. o fato de que adotamos crenças, opiniões, idéias sem saber de percepção dos mecanismos de dominação e exploração sociais, de
onde vieram, sem pensar em suas causas e motivos, sem avaliar se são onde surgiu a formulação teórica da ideologia.
ou não coerentes e verdadeiras; A busca da cura dos sofrimentos psíquicos, em Freud, e a luta pela
2. ideologia e inconsciente operam através do imaginário (as emancipação dos explorados, em Marx, criaram condições para uma
representações e regras saídas da experiência imediata) e do silêncio, tomada de consciência pela qual o sujeito do conhecimento pôde
realizando-se indiretamente perante a consciência. Falamos, agimos, recomeçar a crítica das ilusões e dos preconceitos que iniciara desde a
pensamos, temos comportamentos e práticas que nos parecem Grécia, mas, agora, como crítica de suas próprias ilusões e
perfeitamente naturais e racionais porque a sociedade os repete, os preconceitos.
aceita, os incute em nós pela família, pela escola, pelos livros, pelos Em lugar de invalidar a razão, a reflexão, o pensamento e a busca
meios de comunicação, pelas relações de trabalho, pelas práticas da verdade, as descobertas do inconsciente e da ideologia fizeram o
políticas. Um véu de imagens estabelecidas interpõe-se entre nossa sujeito do conhecimento conhecer as condições – psíquicas, sociais,
consciência e a realidade; históricas – nas quais o conhecimento e o pensamento se realizam.
3. inconsciente e ideologia não são deliberações voluntárias. O Como disseram os filósofos existencialistas acerca dessas
inconsciente precisa de imagens, substitutos, sonhos, lapsos, atos descobertas:
falhos, sintomas, sublimação para manifestar-se e, ao mesmo tempo, Encarnaram o sujeito num corpo vivido real e numa história
esconder-se da consciência. A ideologia precisa das idéias-imagens, coletiva real, situaram o sujeito. Desvendando os obstáculos
da inversão de causas e efeitos, do silêncio para manifestar os psíquicos e histórico-sociais para o conhecimento, puseram em
interesses da classe dominante e escondê-los como interesse de uma primeiro plano as relações entre pensar e agir, ou, como se
única classe social. A ideologia não é o resultado de uma vontade costuma dizer, entre a teoria e a prática.
deliberada de uma classe social para enganar a sociedade, mas é o
efeito necessário da existência social da exploração e dominação, é a
interpretação imaginária da sociedade do ponto de vista de uma única
classe social. i Conta o mito que o jovem Narciso, belíssimo, nunca tinha visto sua
ERGUENDO O VÉU, TIRANDO A MÁSCARA própria imagem. Um dia, passeando por um bosque, viu um lago.
Aproximou-se e viu nas águas um jovem de extraordinária beleza e
Diante do poder do inconsciente e da ideologia poderíamos ser
levados a “entregar os pontos”, dizendo: Para que tanto esforço na pelo qual apaixonou-se perdidamente. Desejava que o outro saísse das
teoria do conhecimento, se, afinal, tudo é ilusão, véu e máscara? Para águas e viesse ao seu encontro, mas como o outro parecia recusar-se a
que compreender a atividade da consciência, se ela é a “pobre sair do lago, Narciso mergulhou nas águas, foi às profundezas à
coitada”, espremida entre o id e o superego, esmagada entre a classe procura do outro que fugia, morrendo afogado. Narciso morreu de
dominante e os ideólogos? amor por si mesmo, ou melhor, de amor por sua própria imagem ou
Todavia, uma pergunta também é possível: Como, sendo a pela auto-imagem. O narcisismo é o encantamento e a paixão que
consciência tão frágil, o inconsciente e a ideologia tão poderosos,
sentimos por nossa própria imagem ou por nós mesmos porque não
Freud e Marx chegaram a conhecê-los, explicar seus modos de
funcionamento e suas finalidades? conseguimos diferenciar o eu e o outro.
No caso de Freud, foram a prática médica e a busca de uma
técnica terapêutica para indivíduos que permitiram a descoberta do
inconsciente e o trabalho teórico de onde nasceu a psicanálise. No
caso de Marx, foi a decisão de compreender a realidade a partir da
prática política de uma classe social (os trabalhadores) que permitiu a
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