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S é r i e E n s i n o , A p r e n d i z a g e m e Te c n o l o g i a s

Luciani Paz Comerlatto


Sinthia Cristina Batista
Eliane Menegotti
Organizadoras

Apoio
EDITORA DA UFRGS
Diretor
Cláudio Oliveira Rios
Conselho Editorial
Carlos Gustavo Tornquist
Fabiana de Amorim Marcello
Leandro Raizer
Sergio Roberto Kieling Franco
Stella de Faria Valle
Simone Sarmento
Henrique Carlos de Oliveira Castro
Andre Luiz Netto Ferreira
Ângela de Moura Ferreira Danilevicz
André Luís Prytoluk
Cláudio Oliveira Rios, presidente
Série Ensino, Aprendizagem e Tecnologias

Luciani Paz Comerlatto


Sinthia Cristina Batista
Eliane Menegotti
Organizadoras

Apoio
© dos autores
1ª. edição: 2024

Direitos reservados desta edição:


Universidade Federal do Rio Grande do Sul

Coordenação da Série:
Leonéia Hollerweger, Tanara Forte Furtado e Marcello Ferreira

Coordenação da Editoração: Leonéia Hollerweger e Ely Petry


Revisão: Equipe de Revisão da SEAD
Capa: Bruno Assis, Tábata Costa, Ely Petry, Marcavisual
Editoração eletrônica: Marcavisual

A grafia desta obra foi atualizada conforme o Acordo Ortográfico da Língua


Portuguesa, de 1990, que entrou em vigor no Brasil em 1º de janeiro de 2009.

O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de


Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) -
Código de Financiamento 001.

FICHA CATALOGRÁFICA
___________________________________________________________________________________
G393 A gestão da educação no contexto da Região Metropolitana de Porto Alegre e do Litoral Norte
do RS [recurso eletrônico] / organizadoras Luciani Paz Comerlatto, Sinthia Cristina
Batista [e] Eliane Menegotti ; coordenado pela SEAD/UFRGS. – Porto Alegre: Editora
da UFRGS, 2024.
494 p. : pdf

(Série Ensino, Aprendizagem e Tecnologias)

1. Educação. 2. Gestão escolar. 3. G estão democrática. 4. Política educacional. 5.


Formação continuada I. Comerlatto, Luciani Paz. II. Batista, Sinthia Cristina. III. Menegotti,
Eliane. IV. Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Secretaria de Educação a Distância.
IV. Série.
CDU 37.014.5(816.5)
___________________________________________________________________________________
CIP-Brasil. Dados Internacionais de Catalogação na Publicação.
(Jaqueline Trombin– Bibliotecária responsável CRB10/979)

ISBN 978-65-5725-102-7
Sumário
Apresentação 8

1. Redemocratização do espaço escolar: 15


relação comunidade-escola, onde se
perdeu?
Taiane Gonçalves de Freitas

2. Gestão Democrática e participação 51


cidadã: implantação do Grêmio
Estudantil como desafio da Gestão
Democrática
Paulo Henrique Caprio Silva

Maria Raquel Caetano

3. A implementação da Associação de 93
Pais e Servidores como princípio
da Gestão Democrática no IFRS –
campus Ibirubá
Sandra Rejane Zorzo Peringer

Josiane Carolina Soares Ramos Procasko


4. Parcerias público-privadas na 121
educação e a Gestão Democrática:
impacto na autonomia da escola
Carolina de Campos Derós

Luciani Paz Comerlatto

5. Distorção idade/série: um estudo 161


sobre seus fatores numa escola
pública do Rio Grande do Sul
Fabiana Machado

Elisete Enir Bernardi Garcia

6. Gestão de processos educacionais 195


inclusivos como garantia do direito à
educação
Marlize Petrykovski Pretto

Eliane Menegotti

7. Bullying: do entendimento ao papel 235


do Estado
Emerson Roberto de Oliveira

Alexandre José Rossi


8. Base Nacional Comum Curricular: 273
da teoria à prática
Jéssica Boaventura dos Santos Ferraz

Mariângela Silveira Bairros

9. A Gestão Democrática na Educação 307


Infantil: manutenção de vínculos em
tempos de pandemia
Graziela Iochims Spolavori

Maria Luiza Rodrigues Flores

10. Gestão Democrática na Educação 347


Infantil: olhares e leituras de mundo
das gestoras das escolas municipais
de Educação Infantil de Capão da
Canoa (RS)
Vanessa Silva Bernardes

Fabiana de Amorim Marcello


11. Reformulação do Projeto Político- 387
Pedagógico: sob os princípios da
Gestão Democrática voltada à
Educação Infantil
Fabiani Gedtel Erhart

Rudinei Müller

12. Projeto Político-Pedagógico: 423


uma vivência coletiva para a
transformação do cotidiano na escola
da infância, para além da pandemia da
covid-19
Eliana Regina Cardoso de Rosa

Fabiana Soares Mathias

13. Reflexões sobre a oferta do 461


curso de Especialização em Gestão
da Educação (EAD) na Região
Metropolitana de Porto Alegre e do
Litoral Norte do RS
Luciani Paz Comerlatto

Sinthia Cristina Batista


APRESENTAÇÃO

O presente livro é um compilado de artigos apresentados como


trabalhos de conclusão de curso, fruto das pesquisas realizadas pelos
cursistas em diálogo com os seus respectivos orientadores, professo-
res do Curso de Especialização em Gestão da Educação, modalidade
a distância, realizado pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul
(UFRGS), campus Litoral Norte, em parceria com a Universidade Aberta
do Brasil (UAB), no período de 2019 a 2020.
O Curso visou contribuir com a formação de gestores das escolas
públicas da Educação Básica na perspectiva da Gestão Democrática e
da efetivação do direito à educação com qualidade social. Ele se inseriu
no desenvolvimento de uma política pública de educação continuada
de educadores, que envolveu ações cooperativas para responder à ne-
cessidade de aprofundamento dos processos da Gestão Democrática
da educação, prevista enquanto princípio na Constituição Federal de
1988, na Lei de Diretrizes e Bases (LDB) – Lei n. 9.394/96 – e no Plano
Nacional de Educação. A efetivação da Gestão Democrática requer re-
pensar as relações sociais e institucionais que se estabelecem no âmbito
das práticas escolares, incluindo as políticas públicas para a educação.
Nesse sentido, o Curso de Especialização buscou ampliar a reflexão de
conceitos e práticas fundamentais para a gestão escolar democrática,
o que inclui o enfrentamento dos desafios presentes na gestão do coti-
diano das escolas públicas.
Partimos do entendimento de que a educação e a formação con-
tinuada são direitos e que a escola é um espaço público, autônomo e
emancipatório, lugar que produz e reproduz conhecimentos a partir

8 Luciani Paz Comerlatto | Sinthia Cristina Batista | Eliane Menegotti (Organizadoras)


do diálogo e da experiência individual e, sobretudo, coletiva dos sujei-
tos em relação. É nesse universo que ocorre a articulação entre teoria
e prática como ampliação da compreensão sobre o campo da educação
e da escola como parte constitutiva do processo histórico, um espaço
de desenvolvimento do sujeito histórico-social na sua integralidade.
Trata-se de uma busca inesgotável de atualização, aprofundamento e
apropriação dos conhecimentos historicamente produzidos, a fim de
efetivamente contribuir para o processo de conquista do viver bem do,
no e para o coletivo da sociedade.
Fundamentados nessa perspectiva, buscamos, por meio do Curso,
proporcionar o debate sobre a democracia e o exercício da Gestão De-
mocrática educacional no contexto histórico atual; refletir sobre a im-
portância da participação efetiva de todos os segmentos que compõem
o coletivo da comunidade escolar na gestão administrativa, pedagógica
e financeira, tendo em vista o desenvolvimento da cidadania e da qua-
lidade social da educação dos sujeitos em diálogo; ampliar a formação
de profissionais da educação numa perspectiva ética que subsidie
atuações transformadoras com vistas à melhoria do Sistema Educacio-
nal Brasileiro, priorizando conteúdos que auxiliem na análise e na refle-
xão a respeito do processo educativo, tendo em vista a diversidade do
contexto sociopolítico-econômico e étnico-cultural brasileiro e o uso
das tecnologias de informação e comunicação; possibilitar a articula-
ção entre ensino, pesquisa e extensão na produção do conhecimento e
de práticas pedagógicas voltadas à justiça social; estimular a utilização
das novas tecnologias como ferramentas para a transparência da ges-
tão escolar e do exercício da democracia; desenvolver o conhecimento
sobre os principais programas, planos e ações governamentais para a

A Gestão da Educação no contexto da Região Metropolitana de Porto Alegre


e do Litoral Norte do RS 9
Educação Básica; problematizar os conceitos de diversidade e diferença
no cotidiano escolar nas seguintes perspectivas: epistemológica, no
que se refere à pluralidade de saberes; dos marcadores identitários
raça/etnia, gênero e sexualidade; e geracional, em suas interfaces com
a legislação educacional; e possibilitar aos gestores oportunidades
para a ampliação de capacidades de elaboração e desenvolvimento
de ações e projetos administrativos e pedagógicos juntamente com a
comunidade escolar.
O papel da pesquisa no Curso em questão perpassou toda a orga-
nização curricular. Articuladas à pesquisa, foram desenvolvidas ações
de extensão elaboradas pelo coletivo de alunos e professores do curso,
buscando maior aproximação entre teoria e prática, bem como entre
comunidade, escola e universidade. Como já mencionado, ensino, pes-
quisa e extensão foram dimensões presentes ao longo de todo o Curso,
em especial durante a elaboração do projeto de intervenção escolar.
O projeto de intervenção foi desenvolvido pela disciplina de Prá-
ticas de Intervenção, ofertada em três módulos correspondentes aos
três semestres de desenvolvimento do Curso. O objetivo foi propiciar ao
cursista, em diálogo com a sua comunidade escolar, a elaboração de uma
proposta de intervenção conforme a realidade local, pautada na autono-
mia, no exercício da democracia e na busca pela qualidade social da edu-
cação. Esse trabalho resultou em 13 artigos apresentados nesta obra.
O primeiro artigo, Redemocratização do espaço escolar: relação
comunidade-escola, onde se perdeu?, de autoria de Taiane Gonçal-
ves de Freitas, discute os processos de participação da comunidade
escolar, entendidos como estruturantes para a Gestão Democrática,
sinalizando a dialética da relação entre a gestão da escola e a comuni-

10 Luciani Paz Comerlatto | Sinthia Cristina Batista | Eliane Menegotti (Organizadoras)


dade como fundamental para instauração da democracia na educação
e na escola.
Na sequência, os professores Paulo Henrique Caprio Silva e Ma-
ria Raquel Caetano apresentam o artigo Gestão Democrática e
participação cidadã: implantação do Grêmio Estudantil como desafio
da Gestão Democrática. Eles abordam aspectos referentes à
participação dos estudantes nos espaços democráticos e de tomada
de decisões da escola, no Grêmio Estudantil e no Conselho Escolar.
As professoras Sandra Rejane Zorzo Peringer e Josiane Carolina
Soares Ramos Procasko nos trazem o artigo A implementação da As-
sociação de Pais e Servidores como princípio da Gestão Democrática
no IFRS – campus Ibirubá, que aborda a integração e a participação de
todos os sujeitos de forma mais efetiva e direta nos processos educacio-
nais, contribuindo para a democratização e a qualidade do ensino nas
instituições públicas.
Carolina de Campos Derós e Luciani Paz Comerlatto, no artigo
Parcerias público-privadas na educação e a Gestão Democrática: im-
pacto na autonomia da escola, refletem sobre o crescente aumento
das parcerias público-privadas na Rede Pública de Ensino. As autoras
propõem uma reflexão crítica, tendo como base as decorrências dessas
parcerias para o exercício da Gestão Democrática da educação.
O artigo de Fabiana Machado e Elisete Enir Bernardi Garcia apre-
senta a Distorção idade/série: um estudo sobre seus fatores numa es-
cola pública do Rio Grande do Sul, tendo em vista os meios de garantia
da inclusão, da permanência e do sucesso escolar, por meio do trabalho
coletivo entre a gestão escolar e sua comunidade, junto aos demais ór-
gãos que visam e buscam a qualidade e a equidade dentro da escola.

A Gestão da Educação no contexto da Região Metropolitana de Porto Alegre


e do Litoral Norte do RS 11
Marlize Petrykovski Pretto e Eliane Menegotti, no artigo Ges-
tão de processos educacionais inclusivos como garantia do direito
à educação, tratam da educação inclusiva e do direito à educação,
discutindo que os sistemas educacionais, para serem inclusivos, pre-
cisam considerar, ao elaborar seus projetos político-pedagógicos, a
diversidade, pensando em metodologias e propostas para oferecer
aos estudantes possibilidades de desenvolvimento, tendo respeitadas
as suas individualidades.
No artigo Bullying: do entendimento ao papel do Estado, Emerson
Roberto de Oliveira e Alexandre José Rossi apresentam a pesquisa-ação
desenvolvida com vistas a identificar e combater o bullying dentro dos es-
paços escolares na perspectiva da Gestão Democrática da educação, uma
vez que o tema precisa ser abordado em toda a sua complexidade, envol-
vendo a comunidade escolar para fortalecer os laços entre ela e a escola.
Jéssica Boaventura dos Santos Ferraz e Mariângela Silveira Bair-
ros, no artigo Base Nacional Comum Curricular: da teoria à prática,
abordam as estratégias para implementar a Base Nacional Comum Cur-
ricular na escola pública, refletindo sobre os objetivos do documento
e os desafios e as dificuldades que ele trouxe à instituição pesquisada,
principalmente pelas barreiras da pandemia da covid-19, que nos afas-
tou da escola com a suspensão das aulas presenciais.
Graziela Iochims Spolavori e Maria Luiza Rodrigues Flores, no artigo
A Gestão Democrática na Educação Infantil: manutenção de vínculos
em tempos de pandemia, destacam reflexões acerca da importância
de manter vínculos na Educação Infantil e abordam estratégias de in-
tervenção possíveis em tempos de pandemia na perspectiva da Gestão

12 Luciani Paz Comerlatto | Sinthia Cristina Batista | Eliane Menegotti (Organizadoras)


Democrática da escola pública, um dos princípios constitucionais
fundamentais para sua oferta com qualidade.
O artigo Gestão Democrática na Educação Infantil: olhares e lei-
turas de mundo das gestoras das escolas municipais de Educação In-
fantil de Capão da Canoa (RS), elaborado por Vanessa Silva Bernardes
e Fabiana de Amorim Marcello, apresenta os processos de Gestão Edu-
cacional Democrática no âmbito da Educação Infantil por meio das nar-
rativas das gestoras, sobretudo na medida em que elas dizem respeito
aos processos de implantação de uma gestão nesses moldes.
Fabiani Gedtel Erhart e Rudinei Müller nos trazem o artigo Refor-
mulação do Projeto Político-Pedagógico: sob os princípios da Gestão
Democrática voltada à Educação Infantil, em que abordam a reformu-
lação do Projeto Político-Pedagógico evidenciando nesse processo os
movimentos da participação da comunidade escolar.
Posteriormente, Eliana Regina Cardoso de Rosa e Fabiana Soares
Mathias apresentam o artigo Projeto Político-Pedagógico: uma vivên-
cia coletiva para a transformação do cotidiano na escola da infância,
para além da pandemia da covid-19. As autoras, ao longo do desenvol-
vimento da pesquisa, fizeram várias observações decorrentes da rea-
valiação do Projeto Político-Pedagógico, bem como do modo como as
estratégias foram pensadas para dialogar com a comunidade escolar.
E para finalizar, o artigo intitulado Reflexões sobre a oferta do curso
de Especialização em Gestão da Educação (EAD) na Região Metropo-
litana de Porto Alegre e do Litoral Norte do RS, de autoria de Luciani
Paz Comerlatto e Sinthia Cristina Batista, é um esforço da Coordenação
do Curso em refletir sobre a trajetória deste. Apresenta como objetivo

A Gestão da Educação no contexto da Região Metropolitana de Porto Alegre


e do Litoral Norte do RS 13
geral expor a trajetória do Curso além de seus limites, possibilidades e
contradições, na busca pela expansão do exercício da Gestão Democrá-
tica da educação, tanto em nível de formação continuada quanto no mo-
vimento real das suas respectivas instituições educacionais.
Destacamos que, com a proposição do curso, colocamo-nos diante
do compromisso da defesa da educação pública, socialmente referen-
ciada, laica e de qualidade social para todos.

Luciani Paz Comerlatto


Sinthia Cristina Batista
Eliane Menegotti

14 Luciani Paz Comerlatto | Sinthia Cristina Batista | Eliane Menegotti (Organizadoras)


1
Redemocratização
do espaço escolar:
relação
comunidade-escola,
onde se perdeu?1

Taiane Gonçalves de Freitas2

1Trabalho de Conclusão do Curso de Especialização em Gestão da Educa-


ção, orientado pela Professora Doutora Sinthia Cristina Batista, do Depar-
tamento Interdisciplinar em Ciências e Tecnologia da Universidade Federal
do Rio Grande do Sul campus Litoral Norte.

2 Pós-graduada em Psicopedagogia pela Pontifícia Universidade Católica


do Paraná. Pós-graduada em Gestão da Educação pela Universidade Federal
do Rio Grande do Sul. Graduada em Pedagogia Séries Iniciais pela Pontifícia
Universidade Católica do Paraná. Professora concursada na Rede Municipal
de Porto Alegre.
E-mail: taianefreitas30@gmail.com
INTRODUÇÃO

O presente texto é resultado do projeto de intervenção do Curso


de Especialização em Gestão da Educação da Universidade Federal do
Rio Grande do Sul campus Litoral Norte, implementado na Escola Muni-
cipal de Ensino Fundamental (EMEF) Dolores Alcaraz Caldas, situada no
extremo-sul da cidade de Porto Alegre (RS) e identificada, aqui, como
escola. Trata-se de uma discussão sobre os processos de participação
da comunidade escolar, entendidos como estruturantes para a Gestão
Democrática, pois sinalizam a dialética da relação entre a gestão da es-
cola e a comunidade como elemento fundamental para o exercício da
democracia na educação e na escola. A análise dessa intervenção está
ancorada na observação da relação comunidade-escola, considerando
a ótica dos diferentes sujeitos que a compõem. O referencial teórico
interpela a Gestão Democrática como modo de organização da escola
pública em que a participação da comunidade é fundamental, e usa
como arcabouço os autores Gandin (2001), Cury (2002), Souza (2009) e
Carvalho (2008). Em termos metodológicos, trata-se de um estudo com
orientação qualitativa, associando a pesquisa-ação com relatos de ob-
servações, entrevistas semiestruturadas, diálogos com a equipe diretiva
e levantamento bibliográfico. O estudo aponta que a participação da co-
munidade escolar na escola não tem sido de fato priorizada, estimulada
e exercida pelos sujeitos que a compõem, deixando a gestão escolar a
cargo exclusivamente dos gestores e da escassa representatividade dos
segmentos no Conselho Escolar. A partir da pesquisa-ação e do projeto
de intervenção, a escola foi motivada a perceber e reconhecer a frágil

16 Taiane Gonçalves de Freitas


relação que mantém com a sua comunidade e a possibilidade de poten-
cializar seu papel social, fortalecendo a Gestão Democrática.

GESTÃO ESCOLAR

A relação que a escola estabelece com os sujeitos que a compõem


constitui a forma como ela é gerida, seja pela Gestão Democrática, seja
pelo gerencialismo da educação. Quando pensamos em uma escola pú-
blica que tem a imensa responsabilidade social de garantir o direito à
educação, precisamos avigorar a Gestão Democrática assegurando
a participação ativa de todos os segmentos escolares em todos os as-
pectos de organização, caracterização e identificação da instituição de
ensino. Essa perspectiva de gestão está amplamente amparada pela
legislação brasileira. A Gestão Democrática é apontada pela Consti-
tuição Federal de 1988 (Brasil, [2016]) como um dos princípios para a
educação brasileira e é regulamentada por leis complementares, como
a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN), e pelo Plano
Nacional da Educação, em sua emenda 19.
Para além de uma concepção teórica ou de uma característica
formal dada à escola pelos seus gestores, essa prática perpassa a
compreensão de que, para uma sociedade que prima pela democracia
como princípio fundamental, a formação política dos seus sujeitos só
pode ser desenvolvida em um processo de democratização, cuja práxis
é a participação.

Redemocratização do espaço escolar:


relação comunidade-escola, onde se perdeu? 17
Entre os períodos de março de 2019 e setembro de 2020, foi pos-
sível problematizar a experiência de participação na comunidade es-
colar em questão. A análise realizada trouxe reflexões sobre a gestão
escolar, nas quais se evidenciaram as seguintes questões: como a escola
tem realizado suas práticas? A comunidade reconhece a importância da
sua participação para a construção de uma escola que não esteja alheia
à sua realidade social? Em que momentos a comunidade é chamada a
participar da escola? Como promover a Gestão Democrática da escola
frente a essa relação desmotivada com a comunidade escolar? Eis aqui a
caminhada que levou a tal reflexão.

ANALISANDO A RELAÇÃO ESTABELECIDA ENTRE


ESCOLA E COMUNIDADE
Pesquisa-ação e projeto de intervenção

Em 25 de julho de 1957, foi oficialmente fundada a Escola Muni-


cipal Dolores Alcaraz Caldas, por meio do Decreto nº. 1.282/57, com
funcionamento na Vila Dona Theodora sob a jurisdição da Prefeitura
Municipal de Porto Alegre. No entanto, ela já existia sete anos antes,
em 1950, por iniciativa da Sra. Patrocina Saldanha da Gama. Para criar
a escola, Patrocina contou com a Prefeitura Municipal de Porto Alegre,
que apoiou a iniciativa e a autorizou a levar sua ideia adiante, mas não
disponibilizou recursos para a construção do espaço escolar. Aos pou-
cos, Patrocina mobilizou a comunidade e, utilizando recursos próprios,
construiu a escola, que começou a funcionar em 21 de março de 1950.

18 Taiane Gonçalves de Freitas


Devido à crescente demanda por vagas, e de acordo com a LDBEN
nº. 5.692/71, gradativamente a pequena escola se transformou em uma
escola de 1º Grau Completo. Em 1971, em decorrência da remoção das
famílias que moravam na Vila Theodora para a Zona Sul de Porto Ale-
gre, a escola foi transferida parcialmente para seu local definitivo, a Vila
Nova Restinga. Em 1975, a primeira turma recebeu o certificado de con-
clusão do 1º grau. Em 30 de junho de 1977, por intermédio do Decreto
de Denominação nº. 6.008, a escola passou a se chamar Escola Munici-
pal de 1º Grau Dolores Alcaraz Caldas.
Em 1º de janeiro de 2000, por meio do Decreto de Alteração de
Denominação nº. 12.964/00, a escola passou a se chamar Escola Muni-
cipal de Ensino Fundamental Dolores Alcaraz Caldas. A implementação
do Serviço de Educação de Jovens e Adultos (SEJA) ocorreu em 1993,
por meio do Decreto nº. 945/91; no primeiro semestre de 1996, passou
a vigorar a Totalidade de Conhecimento, funcionando como Ensino Fun-
damental: Educação de Jovens e Adultos (EJA).
A escola adotou o sistema de ensino por Ciclos de Formação a par-
tir de 1999, bem como as Totalidades de Ensino para Jovens e Adultos.
Em 2000, foi implantada a Sala de Integração e Recursos para o aten-
dimento de alunos com deficiência visual. Essa sala acompanha não
somente os alunos da escola, mas também de outras instituições do
zoneamento, bem como oferece suporte ao trabalho do professor com
alunos cegos ou de baixa visão. Atualmente, são duas professoras na
SIRDV e uma professora com dois estagiários na SIR, que atende alunos
com deficiência intelectual.

Redemocratização do espaço escolar:


relação comunidade-escola, onde se perdeu? 19
A escola se constitui por uma comunidade escolar com aproxima-
damente 1.600 pessoas – entre professores, estudantes e servidores
técnicos – distribuídas conforme se observa nas Tabelas 1 e 2:

Tabela 1 – Recursos humanos da EMEF Dolores Alcaraz Caldas.

Funcionários Funcionário
Professores Diretores SOP Estudantes
concursados terceirizados
6 contratados 1 diretora 4 orientadoras 2 16 1.505

81 concursa- 2 vice-dire-
4 supervisoras
dos toras

Fonte: Escola Municipal de Ensino Fundamental Dolores Alcaraz Caldas (2015).

Tabela 2 – Comunidade escolar da EMEF Dolores Alcaraz Caldas.

Servidores Servidores
Gestão Estudantes
concursados terceirizados
11 professores
Direção SOP
na gestão
1 diretora 4 orientadoras 81 professores 6 professores 1.505
2 servidores 16 servidores
2 vice-diretoras 4 supervisoras
técnicos técnicos

Fonte: Escola Municipal de Ensino Fundamental Dolores Alcaraz Caldas (2015).

O quadro de professores apresenta algumas insuficiências por au-


sências no quadro e/ou carga horária insuficiente, principalmente na EJA
e na SIR. É comum que os alunos que necessitam de atendimento espe-
cializado aguardem em uma lista de espera para frequentar a Sala de In-
tegração e Recursos e que os alunos da Educação de Jovens Adultos, por
vezes, fiquem durante o ano todo sem professor de alguma disciplina. Na
Tabela 3, é possível observar a demanda de carga horária por setor a fim
de atender à população escolar, esta apresentada na Tabela 4:

20 Taiane Gonçalves de Freitas


Tabela 3 – Carga horária por setor.

Supervisão Orientação Setor de


apoio Direção Biblioteca SIR LA
pedagógica pedagógica disciplinar

120 horas 90 horas 80 horas 120 horas 120 horas 80 horas 100 horas

Fonte: Escola Municipal de Ensino Fundamental Dolores Alcaraz Caldas (2015).

Tabela 4 – População escolar em 2019.

Modalidade Número de alunos


Educação Infantil 120
EF Anos iniciais 734
EF Anos finais 451
Educação de Jovens e Adultos (EJA) 200
Total 1505

Fonte: Sistema de Informações Educacionais (2021).

Como ponto de partida da pesquisa, foi sugerido investigar as prin-


cipais dificuldades da escola, já sinalizadas em seus debates internos e
normativas, sobretudo ao se analisar seu Projeto Político-Pedagógico
(PPP), importante instrumento para a realização da gestão escolar de-
mocraticamente referenciada. A leitura atenta da última versão do PPP,
elaborada no ano de 2015, sinalizou a baixa participação da comuni-
dade no espaço escolar e a falta de interesse dos pais para com a edu-
cação dos filhos. No texto do PPP sobre o diagnóstico da escola, consta
que ela “carece da participação da comunidade na elaboração e prática
de seus projetos” e que teria como estratégia para reverter esse qua-
dro os programas Escola Aberta (que não existe mais) e Mais Educação

Redemocratização do espaço escolar:


relação comunidade-escola, onde se perdeu? 21
(que ainda existe, mas com novos moldes) (Escola Municipal de Ensino
Fundamental Dolores Alcaraz Caldas, 2015).3
As entrevistas e os diálogos realizados com a comunidade esco-
lar cotidianamente e em momentos específicos para a realização desta
pesquisa4 corroboraram essa fragilidade apontada, em 2015, no PPP.
Sobretudo no momento da pandemia ocasionada pela expansão da
doença causada pelo novo coronavírus (covid-19), a vivência de um
momento adverso durante o ano de 2020 evidenciou contradições im-
portantes para pensar a relação entre a escola e sua comunidade (pro-
fessores, alunos, funcionários, pais e responsáveis).
De modo geral, observou-se que os pais e responsáveis se sentem
convocados pela escola a cumprir com obrigações específicas, como a
participação passiva em datas comemorativas, mutirões de melhorias
no espaço escolar, entrega de avaliações e reuniões organizadas (para
“chamar sua atenção” sobre o rendimento escolar ou o comportamento
dos filhos). Eles não se sentem convidados ou considerados sujeitos par-
tícipes da comunidade escolar.
Contudo, observa-se que, apesar de a gestão escolar lamentar a
ausência das famílias, há momentos em que a presença delas chega a
ser considerada incômoda e até mesmo inconveniente. Um exemplo
disso foi quando algumas mães foram convidadas para ajudar a cui-
dar das crianças durante o recreio a partir do projeto Mães Atuantes
na Escola (MAE): muitos professores fizeram queixas por se sentirem

3 Os projetos Escola Aberta e Mais Educação realizavam atividades extracurriculares no espaço


da escola e no contraturno escolar. Atualmente, o projeto Mais Educação oferece atividades ex-
tracurriculares em instituições externas que estabelecem parcerias de trabalho com a prefeitura
de Porto Alegre.

4 O termo de consentimento livre esclarecido da escola encontra-se em posse da autora do artigo.

22 Taiane Gonçalves de Freitas


desconfortáveis com a presença delas, e as reclamações levaram à ex-
tinção do projeto.
Essa situação assinala a necessidade de se repensar a aproximação
entre comunidade e escola para fortalecer os processos de participação
ampla da comunidade escolar. Algumas questões serão evidenciadas
para discutir a dificuldade da participação das famílias na gestão e, de
modo amplo, na vida da escola.

Como os sujeitos praticam a relação comunidade-escola

Após entrevistas realizadas durante a pandemia com alguns sujei-


tos que compõem a escola, com seis meses de atividades presenciais sus-
pensas, podemos perceber que o assunto da Gestão Democrática e da
participação da comunidade escolar traz consigo uma série de constata-
ções acerca do papel da escola. As entrevistadas serão representadas,
aqui, apenas pela inicial do nome, garantindo sua privacidade. Foram se-
lecionadas para participação das entrevistas duas mães de alunos da es-
cola, identificadas aqui como D. e M.; duas professoras que atuam como
gestoras da escola; a diretora C.; a vice-diretora A.; e, finalmente, uma
professora que atua em sala de aula na escola, identificada com a inicial J.
Ao perguntar às mães em que momentos elas participam da
vida escolar, D., mãe de dois alunos, disse que sua atuação se resume
às reuniões de pais e a assuntos que envolvam os seus filhos. D. já
foi representante do segmento de pais no Conselho Escolar e saiu
por considerar que as decisões ali tomadas não representavam os
interesses da comunidade escolar e que os pais sequer sabiam da
existência do Conselho. Já M., mãe e avó de alunos da escola, atualmente

Redemocratização do espaço escolar:


relação comunidade-escola, onde se perdeu? 23
representante do segmento de pais no Conselho Escolar, disse que não
precisa que ninguém a convide a participar e que gosta de saber o que
acontece na escola dos filhos e reconhece que a participação dos pais é
muito pequena.
As falas das mães assinalam uma das questões fundamentais a se-
rem discutidas: o fato de a família ter acesso restrito à escola, em espa-
ços e tempos definidos, impedindo que esses sujeitos se apropriem dos
processos democráticos que envolvem a escola, que opinem e que tra-
gam suas demandas.
Ao mesmo tempo, ao dialogar com as professoras sobre como per-
cebem a participação da comunidade na escola, C., que atualmente é di-
retora da escola, diz que esta é limitada e que há pouca participação dos
pais. A., vice-diretora da escola, reconhece que a participação da comu-
nidade é a forma de efetivar a Gestão Democrática e que é necessário
estabelecer essa troca de informações sobre o que ali acontece. J., pro-
fessora de educação física, diz que a escola é muito setorizada, o que di-
ficulta a participação dos pais, dos alunos e até mesmo dos professores;
diz que as decisões e construções dependem muito da compreensão
do motivo da participação e de que a comunidade realmente se sinta
partícipe dos processos que envolvem a escola.
As falas das professoras refletem o reconhecimento da necessi-
dade de aproximar a comunidade da escola para além dos momentos de
tomada de decisão e de datas comemorativas.
Quando perguntado às mães se a escola permite e estimula a par-
ticipação dos pais, D. diz que a escola permite, mas não estimula; M. diz
que a escola não desestimula e que os pais não têm interesse em par-

24 Taiane Gonçalves de Freitas


ticipar, pois não reconhecem a importância desse espaço na vida dos
seus filhos.
Na leitura das professoras, houve momentos em que a escola esti-
mulou fortemente a participação dos pais, mas de modo pontual e fo-
cado: segundo as professoras A. e C., esse chamado ocorre quando a
escola precisa de apoio da comunidade em processos de luta contra im-
posições dos governantes, nos processos de eleição, como de diretores
e conselhos escolares, ou para a entrega de avaliações, reuniões de pais
e sábados festivos.
Sobre o papel da escola e como melhorar sua relação com a comu-
nidade, uma das mães diz que espera uma integração bem maior entre
comunidade e escola, na qual os pais possam interagir mais e haja mais
momentos em que a família possa participar da escola, não somente em
reuniões e sábados comunitários.
No que diz respeito às estratégias de participação da escola,
quando perguntado às professoras sobre como têm trabalhado a parti-
cipação das famílias, C. diz que, em 2015, a escola teve um projeto cha-
mado MAE (Mães Atuantes na Escola) que não foi bem recebido pelos
professores e acabou antes mesmo de se efetivar, pois os professores
se incomodaram com a participação dos pais; ainda, C. diz que tem o
intuito de criar a Escola de Pais para aproximar as famílias da escola. A
vice-diretora afirma que há apenas ações fragmentadas e que a comu-
nidade é chamada somente quando é preciso. Apesar disso, reconhece
que a escola deveria ser um polo cultural na sua comunidade, ofere-
cendo conhecimento de diferentes formas. J. diz que isso não é traba-
lhado e estimulado pela escola e que apenas agora, durante a pandemia,

Redemocratização do espaço escolar:


relação comunidade-escola, onde se perdeu? 25
quando é necessário que os alunos acessem a plataforma Córtex5 de
ensino remoto, os professores estão estabelecendo contato com as fa-
mílias e os alunos.
Esses relatos expõem a tensão na relação escola-comunidade e
na não promoção de espaços democráticos dentro da escola. A ausên-
cia das famílias na escola, relatada por todas as entrevistadas, pode ser
entendida como a contestação da comunidade a um espaço no qual os
sujeitos não se sentem representados nem representantes. O silêncio e
a ausência são expressões muito relevantes na reflexão sobre como a
Escola tem conduzido e construído suas relações.

Atuação da escola durante a pandemia

Em 2020, após duas semanas de aula, a escola precisou interromper


as aulas devido à pandemia do coronavírus. Quando saímos da escola
naquele dia 18 de março de 2020, sem muita noção da proporção do
problema, pensamos que em, no máximo, 15 dias estaríamos de volta.
Deixamos os trabalhos pendentes nos armários, as reuniões ficaram
agendadas com as famílias, e os nossos lanches foram deixados na gela-
deira. Ao final de agosto de 2020, não tínhamos perspectiva de retorno

5 A plataforma Córtex foi implantada como projeto-piloto em escolas da Rede Municipal de Porto
Alegre no ano de 2019, com a finalidade de transferir a gestão da rotina escolar (preenchimen-
to de chamadas, planejamentos e avaliações) para o meio digital. No entanto, em 2020, em de-
corrência da pandemia de covid-19 e da realidade do ensino remoto, a plataforma foi alterada,
sem consulta prévia às necessidades pedagógicas de docentes e discentes, a fim de se tornar um
instrumento para o ensino remoto, no qual era possível enviar atividades e mensagens de texto
a alunos e famílias. As atividades precisavam ser fotografadas pelos alunos para a realização da
devolutiva aos professores. Em 2021, a plataforma Córtex tornou-se obsoleta e caiu em desuso
enquanto ferramenta pedagógica devido à baixa conectividade dos alunos. A nova equipe gestora
da prefeitura de Porto Alegre iniciou o uso de uma nova ferramenta para o ensino remoto e híbri-
do da Rede, a plataforma Classroom.

26 Taiane Gonçalves de Freitas


às aulas, o qual se iniciou apenas a partir de outubro, primeiramente
com a Educação Infantil nas escolas particulares.
O ano de 2020 já iniciou diferente, com pendências e atrasos, como
tem ocorrido nos últimos quatro anos com o (des)governo que assola
a cidade de Porto Alegre. A nova direção da escola, eleita em 2019 de
forma democrática por todos os seus segmentos, não pôde assumir e
iniciar sua gestão no período previsto; assumiu durante a pandemia, in-
formando os professores, em uma reunião geral via Google Meet, que
sua posse havia sido oficializada, inaugurando uma nova forma de gerir
a escola em uma gestão a distância.
No final de abril, com o avanço da pandemia e sem previsão de re-
torno das aulas, passamos a postar atividades para os alunos do 1º ao
9º ano na página do Facebook da escola, com o intuito de conservar o
vínculo e de auxiliar nossos estudantes a manter, na medida do possível,
uma rotina de estudos. Obtivemos pouco retorno das atividades e não
sabíamos qual era a real condição de acesso dos alunos a esse recurso.
No mês de maio, a escola recebeu presencialmente a comunidade
pela primeira vez desde o início da pandemia, atendendo algumas famí-
lias em horário agendado para entregar alimentos que haviam sobrado
no refeitório, seguindo as orientações da mantenedora. Aproveitamos
esses momentos e doamos também livros didáticos para os alunos que
tinham dificuldades em acessar as atividades. A Secretaria Municipal de
Educação (SMED) mandou também, nessa época, mais algumas cestas
básicas para doação, mas que não contemplavam todos os alunos (fo-
ram enviadas por volta de 50 cestas para uma instituição escolar com
1.300 alunos).

Redemocratização do espaço escolar:


relação comunidade-escola, onde se perdeu? 27
A partir do dia 22 de junho (após 17 semanas de aulas a distância),
a escola foi informada pela SMED que deveria passar a disponibilizar as
atividades para os alunos por meio da plataforma Córtex para ensino
remoto, migrando gradativamente as atividades de sua página no Face-
book para a nova plataforma. A equipe diretiva da escola iniciou um mu-
tirão para a atualização de dados cadastrais dos alunos na plataforma,
certificando-se de que todos estavam incluídos nela e conferindo os da-
dos. A divulgação dessa plataforma foi feita via site da prefeitura, carta-
zes no portão da escola, página do Facebook e grupo de WhatsApp com
os pais. Apenas no mês de setembro de 2020, a gratuidade de dados no
uso da plataforma, prometida pela prefeitura, foi efetivada. A direção
da escola criou um WhatsApp para atender à comunidade e aos alunos,
o qual funciona de segunda a sexta-feira, das 8h às 20h. Uma das vice-
-diretoras é responsável por responder às demandas.
Antes de iniciarmos o uso da plataforma, foram realizadas for-
mações com os professores e várias reuniões para que se aproprias-
sem dela e para criarmos uma organização para as atividades on-line.
O Serviço de Orientação Educacional (SOE), setor do qual faço parte,
é o responsável pela liberação das solicitações de acesso dos alunos e
responsáveis, diariamente. No mês de setembro de 2020, com a libera-
ção do uso de dados da plataforma pela prefeitura de Porto Alegre, dos
1.299 alunos, 647 estavam conectados à Córtex.
Em julho, o SOE contatou todas as famílias cujos filhos não esta-
vam na plataforma para orientar sobre seu uso e saber o motivo de não
a estarem acessando. O acesso aumentou consideravelmente após es-
ses contatos telefônicos, pois muitos pais ou responsáveis não sabiam
da existência dessa plataforma de ensino. De posse dessas informações

28 Taiane Gonçalves de Freitas


e com ciência dos motivos para o não acesso das famílias à Córtex, foi
decidido pela equipe diretiva que seriam ofertadas as atividades na
modalidade impressa aos alunos que não tinham meios para acessar a
plataforma, pensando em garantir, mesmo que tardiamente, o direito à
educação para todos.
A partir das conversas com as famílias, foi possível constatar alguns
dos motivos que impossibilitaram o acesso à plataforma, como falta de
internet ou acesso precário, falta de aparelho celular, único aparelho na
casa para ser compartilhado por várias pessoas (o adulto, muitas vezes,
é o único que tem celular e o leva para o trabalho), celular muito pequeno
ou com a tela danificada e dificuldade em navegar na plataforma.
Em agosto, ao chamarmos a comunidade para receber um kit de
alimentos perecíveis e uma cesta básica de alimentos não perecíveis
oferecidos pela SMED, aproveitamos o momento para entregar os ma-
teriais impressos aos alunos. As 17 semanas de aula realizadas até o
momento no Facebook e migradas para a Córtex foram entregues quin-
zenalmente aos alunos no formato de cadernos, cada um com quatro
semanas de aula. A partir dessas entregas de atividades, tivemos um
novo e importante dado em mãos: o número de alunos que não estavam
na plataforma e que não tiveram acesso ao material impresso ofertado
pela escola.
Após seis meses sem atividades presenciais na escola, cerca de 30%
dos alunos permaneceram sem acesso à plataforma Córtex, sem buscar
as atividades impressas e sem as famílias estabelecerem contato. Além,
obviamente, da preocupação com o prejuízo cognitivo na vida desses
alunos e com as experiências vividas num momento em que não tiveram
contato nenhum com a escola, outra preocupação se colocou: o que a

Redemocratização do espaço escolar:


relação comunidade-escola, onde se perdeu? 29
escola representa na vida dessas famílias, posto que por seis meses ne-
nhum motivo as fez procurá-la? As práticas democráticas, como ouvir
o coletivo, dar voz aos alunos e construir parcerias com a comunidade
escolar, por vezes, não são um exercício cotidiano. Democracia exige
persistência, tempo e dedicação.
Esse número alarmante de um terço das famílias sem contato ne-
nhum com a escola reflete, ao mesmo tempo, a ausência dos pais e dos
alunos na vida escolar e a ausência da instituição escola como essencial
na vida desses sujeitos. Contatamos três dessas famílias, fazendo vi-
sitas às suas residências, e conversamos sobre a experiência de viver
uma pandemia com as crianças em casa, sem ir à escola, procurando
entender o que essa ausência de contato com a escola por seis meses
poderia significar.
Uma das mães, identificada aqui como G., disse que os filhos esta-
vam bem e, por vezes, faziam algumas atividades retiradas da internet,
que estava aguardando a reabertura da escola, acompanhando pelas no-
tícias, e que não soube da doação de alimentos pela escola.
L., mãe que mora em uma das ocupações da Restinga e vive em
condições precárias, disse que a filha sente falta da escola, mas não tem
feito nenhuma atividade, porque ela não sabia que isso estava sendo
ofertado nem que poderia ser feito em casa.
D., mãe de cinco filhos, demonstrou preocupação com as per-
das das crianças, pois elas já têm muita dificuldade, e, sem estudar
todo esse tempo, não sabe como será. Também não ficou sabendo da
doação de alimentos.

30 Taiane Gonçalves de Freitas


Mesmo com o reconhecimento de que as crianças sentem falta da
escola e de que seu processo de aprendizagem está sendo prejudicado,
por algum motivo, essas famílias não sentiram necessidade de procurar
a escola por seis meses, o que leva às perguntas: que papel a escola tem
na vida dessas famílias? O que ela representa no momento de pandemia?
Essas questões não poderão ser amplamente respondidas neste
espaço, mas a falta de participação da comunidade nos processos deci-
sórios da escola, bem como a falta da construção coletiva e colaborativa
desse espaço estimulam uma relação unilateral na qual a escola solicita
ou não a presença dos pais e responsáveis e que provavelmente contri-
bui para o afastamento das famílias da escola enquanto espaço comuni-
tário e da educação enquanto direito social.

Hierarquização dos processos decisórios da escola

A escola, ao fortalecer a Gestão Democrática e estimular a par-


ticipação da comunidade nos processos decisórios em que os sujeitos
se apropriam do espaço público, proporciona o enfrentamento da so-
ciedade às políticas que atacam a educação, defendendo-a como um
direito social fundamental para o fortalecimento da cidadania e indis-
pensável para a participação de todos nos diferentes espaços políticos
da nossa sociedade. De acordo com Cury (2007), comunidade e escola
precisam criar, por meio da educação, uma força para superar as suas
dificuldades, construindo uma identidade própria e coletiva e atuando
juntas como agentes facilitadores do desenvolvimento pleno do edu-
cando. O autor se refere à educação escolar como uma dimensão fun-
dante da cidadania, e tal princípio é indispensável para a participação de

Redemocratização do espaço escolar:


relação comunidade-escola, onde se perdeu? 31
todos nos espaços sociais e políticos. No entanto, as políticas de Estado,
na maior parte das vezes, materializam-se em propostas de governos
antidemocráticos, sendo impostas sem participação e nenhuma escuta
da sociedade e dos profissionais que atuam nos diferentes espaços pú-
blicos da educação, sobretudo nas escolas.
No município de Porto Alegre, a gestão dos anos de 2017 a 2020
trabalhou implantando programas e políticas de modo arbitrário, com
sério risco de ser ineficiente e dispendiosa, uma vez que ignora a real
necessidade dos sujeitos que vivem e/ou trabalham nas diferentes co-
munidades e bairros. Prova disso foi a compra pela prefeitura da Pla-
taforma Córtex para o ensino remoto, que desconsiderou as iniciativas
e estratégias realizadas pelas escolas, descontinuando o trabalho que
vinha sendo feito. Sem nenhuma consulta prévia (o que é prática desse
governo), determinou para o trabalho docente o uso de um meio digi-
tal que, na prática, é uma plataforma de gestão do trabalho, e não de
desenvolvimento do processo de ensino-aprendizagem. No anúncio, foi
garantido o acesso gratuito ao uso de dados, mas ele só foi efetivado
precariamente em setembro, cinco meses após o início da pandemia.
Mesmo com as dificuldades e limitações impostas pela plataforma
determinada pela prefeitura, as escolas da Rede Municipal de Ensino
(RME) de Porto Alegre, por meio do intenso trabalho dos professores e
professoras, garantiram o envio de atividades ao longo do ano de 2020,
estabelecendo o processo de ensino-aprendizagem entre professores e
alunos tanto a partir da plataforma quanto por meio de atividades im-
pressas. Assumimos a orientação de uso de uma plataforma que não foi
construída por nós professores e para cuja formatação sequer contri-
buímos, o que evidencia a imposição desse recurso que não atinge me-

32 Taiane Gonçalves de Freitas


tade dos nossos alunos, mas que será a única forma de validar os dias
letivos durante a pandemia.
Novamente de forma arbitrária e sem consulta à comunidade esco-
lar, após seis meses sem organização e sem orientações para as escolas
sobre protocolos de segurança para o retorno das atividades presen-
ciais, o então prefeito de Porto Alegre, Nelson Marchezan Júnior, e o
então secretário de educação, Adriano Naves de Brito, anunciaram
(oralmente) um calendário de retorno às aulas presenciais em um prazo
insuficiente para que as escolas da RME se programassem. Além disso,
desconsideraram o alto índice de contágio da covid-19 vivido naquele
período em todo o estado do Rio Grande do Sul, referenciado pela ele-
vada taxa de ocupação de UTIs na cidade, e a iminente possibilidade de
ampliação de contágio por conta do retorno presencial das comunida-
des escolares, que não foram consultadas pelo governo nessa questão.
Porto Alegre se encontrava em situação de calamidade pública, posto
que o Decreto Municipal nº. 20.534, de 31 de março de 2020, ainda es-
tava em vigor.
No dia 14 de setembro de 2020, mediante reunião on-line, o pre-
feito e o secretário de educação de Porto Alegre anunciaram o retorno
às aulas presenciais, mesmo que o município estivesse, no momento,
com bandeira vermelha por conta do contágio da covid-19. O retorno
estava previsto para começar de forma gradual no dia 28 de setembro
de 2020, com o oferecimento de almoço para os alunos da Educação
Infantil (quatro e cinco anos), que iriam comer em uma escola que não
adotou nenhum protocolo de segurança.

Redemocratização do espaço escolar:


relação comunidade-escola, onde se perdeu? 33
No dia 22 de setembro de 2020, o Conselho Escolar da escola
chamou a comunidade para uma reunião on-line via Google Meet – a
primeira realizada nesse formato pelo Conselho –, tendo como pauta
principal o retorno das atividades escolares presenciais. Houve a par-
ticipação de 39 pessoas, das quais 10 eram pais ou responsáveis e 29
eram professores. Não tivemos nenhum representante dos segmentos
de funcionários e de alunos.
Esse número de participantes, com apenas 10 pais, indica que não
chegamos a 1 % do número de famílias dos alunos da escola, o que re-
flete quão precária está a relação entre escola e comunidade e o quanto
esse processo de participação deve ser construído no cotidiano da es-
cola, e não em chamamentos para apoio em momentos específicos.
A pauta principal da reunião foi o possível retorno das atividades
escolares presenciais ainda em 2020, ação imposta pelo prefeito de
Porto Alegre, tendo como marco para a retomada das atividades na
escola a oferta de almoço para os alunos da Educação Infantil. A escola
queria ouvir a comunidade sobre essa possibilidade e perguntar se, con-
siderando as condições sanitárias da pandemia naquele momento, as
famílias mandariam seus filhos para a escola, num cenário de contínua
evolução da covid-19. Apenas duas mães presentes quiseram se mani-
festar durante a reunião; por um lado, havia, por parte das famílias, o
constrangimento de se expor e a insegurança sobre uma situação nunca
antes vivida, mas isso também reflete a inabitual ação dos pais ou res-
ponsáveis de falar sobre as questões que envolvem a escola.
Como defende Souza (2009, p. 136), “democratizar a gestão da es-
cola pressupõe a participação das pessoas na gestão, e isso significa que
a participação não pode se resumir aos processos de tomada de deci-

34 Taiane Gonçalves de Freitas


sões”. Nesse sentido, a participação democrática pressupõe uma ação
reguladora, fiscalizadora, avaliadora, além de decisória sobre os rumos
da vida política e social da escola e da sociedade.
É fundamental ouvir a comunidade acerca desse assunto e conhecer
seus posicionamentos para direcionar e fortalecer as ações da escola;
porém, essa participação não ocorrerá pela urgência do assunto ou pela
necessidade de unir forças com a comunidade para o enfrentamento de
alguma situação que afete a vida de todos: a prática democrática deve
ser a base das relações. Não podemos chamar e mobilizar a comunidade
apenas em situações de urgência ou calamidade.
A expectativa dessa reunião – fortalecer o diálogo com a
comunidade – permitiria pensar e organizar outra proposta de volta
às aulas e, mais importante, construir coletivamente o posicionamento
da escola frente a essa determinação do governo municipal. Entretanto,
o documento construído a partir da reunião com o Conselho Escolar e
encaminhado ao Sindicato dos Municipários (Simpa) apenas protocolou
a “representatividade”, o mínimo necessário para validar um documento,
o que está muito longe de ser a participação necessária para a Gestão
Democrática da escola.
Tido como entendimento da maioria, definiu-se que a comunidade
escolar não se sentia segura, naquele momento, para retornar às
atividades presenciais na escola. Contudo, dado o volume da participação,
é difícil garantir que esse fosse o entendimento geral. O pressuposto do
“respeito à maioria” como prática da democracia, segundo Souza (2009),
pode representar atitude pouco democrática de fato, particularmente
como realizado no mundo da democracia representativa formal. O
Conselho Escolar tem atuado em suas deliberações a partir da regra

Redemocratização do espaço escolar:


relação comunidade-escola, onde se perdeu? 35
da maioria simples, per se; nessa importante reunião, não participaram
todos os sujeitos da escola, portanto existe o sério risco de ele não
representar a comunidade em que está inserido e, com isso, não ter o
seu apoio efetivo. Se não pautarmos as ações da escola pelo diálogo e
pela alteridade, pouco restará de democrático nessas ações coletivas.
A Gestão Democrática da escola é a participação efetiva dos vários
segmentos da comunidade escolar – pais, professores, alunos e funcio-
nários – em um processo por meio do qual atuam na escola, identificam
problemas, discutem, deliberam e planejam, encaminham, acompa-
nham, controlam e avaliam o conjunto das ações voltadas ao desenvol-
vimento da própria escola na busca por soluções dos seus problemas.
Esse processo de participação coletiva pressupõe, para sua efetivação,
instâncias colegiadas de caráter deliberativo, bem como a implemen-
tação do processo de escolha de dirigentes escolares, além da partici-
pação de todos os segmentos da comunidade escolar na construção do
Projeto Político-Pedagógico e na definição da aplicação dos recursos
recebidos pela escola.
As escolas precisam produzir mecanismos para garantir a parti-
cipação da comunidade escolar no processo de organização e gestão
dessas instâncias educativas. Para a efetivação dessa participação, é
necessário que os agentes que compõem essa comunidade conheçam
as leis que a regem, as políticas governamentais propostas para a edu-
cação e as concepções que norteiam essas políticas e, principalmente,
que estejam engajados na defesa de uma escola democrática que tenha
entre seus objetivos a construção de um projeto de transformação do
sistema autoritário vigente, que usa de “barganhas” políticas para atrair
aprovação e eleitores.

36 Taiane Gonçalves de Freitas


Compreender que a escola é da comunidade e, portanto, não a re-
duzir a um equipamento da Rede de Ensino é também um aprendizado
necessário a todos os professores, estudantes e famílias da Rede Pú-
blica de Ensino. A escola tem o compromisso de identificar e articular
os vários sujeitos e espaços de aprendizagem existentes na comunidade
para ampliar e otimizar as oportunidades de aprendizagem para seus
alunos. Sabemos que tanto os pais quanto os professores estão sempre
ocupados nas suas tarefas diárias, o que dificulta o encontro entre am-
bos, mas é importante descobrir meios de facilitar essa comunicação
entre escola e comunidade.

(RE)DEMOCRATIZAR A ESCOLA

A escola é uma elaboração histórica dos homens, lugar onde se


desenvolvem potencialidades individuais e coletivas e onde mulheres
e homens se apropriam do saber social (conjunto de conhecimentos e
habilidades, atitudes e valores que são produzidos pela sociedade). É um
espaço democrático por excelência, onde gestores de escola e de políticas
públicas e educadores se educam e elaboram sua forma de compreender
o mundo, a educação, a humanidade e o próprio conhecimento.
A escola pública é um espaço de promoção de justiça social,
de equidade e de igualdade, ferramentas necessárias para haver mu-
danças em uma sociedade; precisamos apenas potencializar esse es-
paço. Conhecida como lugar de produção da cultura, da política e do
conhecimento, por onde passam diferentes pontos de vista, o desafio
da escola pública é se tornar um lugar plural e de participação, o que

Redemocratização do espaço escolar:


relação comunidade-escola, onde se perdeu? 37
demanda que ela seja convidativa e aberta a novas possibilidades para
o trabalho social.
Para que a escola exerça seu papel, a Gestão Democrática é
centralidade, uma vez que tem como precondição a participação e o
diálogo entre todos os segmentos da escola que agem em conjunto,
promovendo sua autonomia e ressignificando as práticas escolares.
Como diz Cury (2007, p. 489), a Gestão Democrática da educação “[...]
é a forma dialógica e participativa com que a comunidade educacional
se capacita para levar a termo um projeto pedagógico de qualidade e da
qual nascem cidadãos ativos”. Indo além das políticas públicas formais
para a educação, é possível alcançar uma educação que permita com-
preender a realidade e possibilite o acesso e a produção do conheci-
mento para além da sobrevivência, como parte da emancipação em um
processo de humanização.
Diante da importância que o saber tem na sociedade e na vida dos
sujeitos sociais, o direito à educação passa a ser politicamente exigido
como uma arma não violenta de reivindicação e de participação política.
Desse modo, sua efetivação em práticas políticas se converte em instru-
mento de redução das desigualdades e das discriminações, em busca de
uma sociedade mais igual e humana. Segundo Cury (2007, p. 486-487,
grifo do autor),

[...] mesmo que a igualdade de resultados não possa ser as-


segurada a priori, seria odioso e discriminatório conferir ao
conhecimento uma destinação social prévia. [Nesse sentido],
a igualdade torna-se, pois, o pressuposto fundamental do
direito à educação, sobretudo nas sociedades politicamente

38 Taiane Gonçalves de Freitas


democráticas e socialmente desejosas de uma maior igualda-
de entre as classes sociais e entre os indivíduos que as com-
põem e as expressam.

Daí a importância de as escolas públicas assumirem essa responsa-


bilidade e potencializarem suas ações, ressignificando suas práticas, re-
vendo suas competências e possibilitando a todos os sujeitos igualdade
de condições de acesso aos bens trazidos pelo conhecimento, de tal ma-
neira que possam participar em termos de escolha ou mesmo contribuir
para esses objetivos.
A escola é um dos principais lugares onde se aprende sobre cidada-
nia de forma empírica, validando, a partir das suas práticas, os direitos
e deveres de todos os sujeitos e potencializando seu poder de intervir
e transformar a sociedade. Esse aprendizado/vivência sobre cidadania
não é assunto específico de nenhuma disciplina, mas atravessa e ultra-
passa os currículos escolares: são ações preconizadas na essência do
“ser escola”, em que todos os envolvidos no processo se percebem parte
integrante da instituição.
No Brasil, um dos países mais desiguais do mundo, onde poucas
pessoas se apropriam de uma parcela tão grande da renda, ao passo que
a maioria vive em situação de pobreza e extrema pobreza, a escola pú-
blica preconiza a promoção de justiça social, de equidade e de igualdade.
Ocorre que, se a escola não se permitir ser um espaço democrático e de
direito, dando voz e vez a toda a comunidade escolar, será apenas mais
um espaço público que não pertence de verdade ao povo. Com isso:

Redemocratização do espaço escolar:


relação comunidade-escola, onde se perdeu? 39
As possibilidades de superação das desigualdades sociais
reproduzidas – entre outras formas – pelo sistema de ensi-
no são pauta de uma ação social/coletiva, por meio da qual a
educação escolar busca rever seus rumos, suas organizações.
Porém, certamente a face individual dessa tarefa parece ser
a mais hercúlea das ações, pois demanda a autoconsciência,
a emancipação de cada um dos indivíduos e, uma vez que se
constata que este é um mundo que é expressão do reino das
necessidades, essa se torna uma tarefa ainda mais complexa
(Souza, 2009, p. 127).

A democracia é indubitavelmente necessária para o exercício de


outros direitos e uma dimensão fundamental dos processos educativos
para que as sociedades se democratizem. Dessa forma, a educação, di-
reito de todos que têm como objetivo o pleno desenvolvimento da pes-
soa cidadã, implica a democratização da gestão da educação e da escola.
Democracia é exercício, é cotidiano. Democracia exige persistência,
tempo e dedicação.
A partir de 1985, a democracia como instituição política central
trouxe esperança à sociedade brasileira e possibilitou também que as
escolas fossem lócus privilegiado para sua prática.

O que temos visto, porém, são muitas contradições que di-


zem respeito à forma como a educação e a escola são pen-
sadas na realidade, principalmente no que se refere a maior
ou menor abertura para participação dos diferentes sujeitos
que compõem a unidade escolar (Girotto, 2013, p. 22).

40 Taiane Gonçalves de Freitas


O processo de democratização começa no interior da escola, por
meio da criação de espaços nos quais todos os seus segmentos possam
discutir criticamente o cotidiano escolar. Nesse sentido, a função da es-
cola é formar indivíduos críticos, criativos e participativos, com condi-
ções de atuar criticamente na sociedade da qual fazem parte.
Ao analisar as diferentes instâncias e instrumentos da gestão
escolar, algumas ações foram apontadas no Projeto de Intervenção
como imprescindíveis para a construção de uma escola democrática.
A primeira diz respeito ao Projeto Político-Pedagógico da escola, que
é resultado da forma como a comunidade escolar, a partir de seus dife-
rentes sujeitos, compreende e se relaciona com o lugar e com o mundo
por meio da educação. Ele define a identidade da escola, as relações
dos sujeitos e as concepções que as permeiam. O PPP reafirma a li-
gação intrínseca entre lugar e educação, encarando tal ligação como
elemento fundamental de inserção da escola e dos seus sujeitos no
mundo. A construção coletiva do PPP permite à escola um processo de
ressignificação no qual a sua função educativa vem somar uma série de
outras funções que dizem respeito ao exercício da cidadania e à realiza-
ção da democracia.
Outro ponto fundamental é a criação e o fortalecimento das
diferentes instâncias de participação da comunidade escolar nos
processos que envolvem as práticas e o cotidiano da escola. Uma das
principais instâncias dessa participação é o Conselho Escolar, que precisa
ser fortalecido para contar com mais do que duas representatividades
de cada segmento da escola. Como vimos no caso do chamamento do
Conselho da escola em 2020, é preciso resgatar a importância desse
colegiado e torná-lo de fato presente em diferentes momentos da

Redemocratização do espaço escolar:


relação comunidade-escola, onde se perdeu? 41
organização escolar, não apenas nas decisões que têm como imperativo
a assinatura dos seus membros para validar documentos e o uso de
verbas da escola. Vale ressaltar que o Conselho Escolar tem grande
potencial educativo, pois, por meio dele, pais, alunos e funcionários
podem se apropriar da escola enquanto espaço público e, com isso,
tornar-se de fato corresponsáveis por tudo que ali acontece.
Outro colegiado essencial na construção de uma escola democrá-
tica é o Grêmio Estudantil, pois o papel dos alunos é fundamental para a
democratização da escola, uma vez que eles são os principais sujeitos da
educação e o sentido de todo o trabalho educativo.
Para a maioria dos professores e em todos os currículos, encontra-
mos a criticidade como um dos objetivos da educação; ou seja, a escola
precisa contribuir na formação de um sujeito crítico. Mas o que ocorre
no interior das escolas nos faz perceber que existe um descompasso en-
tre aquilo que está posto no discurso e o que se realiza na prática. Que-
remos um aluno crítico com relação à globalização, ao desmatamento,
mas não sobre o que se passa dentro da escola e da sala de aula. Por-
tanto, de nada adianta o discurso da escola sobre a importância de for-
mar sujeitos críticos e autônomos se ela age de forma autoritária e nega
a participação dos alunos nas decisões, não permitindo o desenvolvi-
mento da autonomia e da reflexão necessárias à prática da cidadania.
Por último, para a construção coletiva de uma escola democrática,
as práticas educativas democráticas são essenciais. De nada adianta a
existência do Conselho Escolar, do Grêmio Estudantil e da Associação
de Pais e Mestres se persistem em sala de aula práticas autoritárias,
como se a atuação democrática estivesse restrita a alguns espaços ou
momentos. Significa dizer, com isso, que os professores, antes de pla-

42 Taiane Gonçalves de Freitas


nejarem suas aulas, precisam levar em consideração a realidade dos
alunos e seus conhecimentos prévios. As interrelações que formam a
unidade escolar precisam fundamentar a prática docente, tornando o
aluno o principal orientador da sua prática.
A escola é parte da sociedade, é feita por alunos/cidadãos oriundos
de determinada classe social, que vivem em um estado, cidade e bairro
específicos, na localidade onde se situa a escola. Os diferentes inte-
resses, as concepções, as construções e as expectativas em relação à
educação e à sociedade precisam ser ouvidos e acolhidos por seus pro-
fessores para que, assim, a prática docente tenha intencionalidade e os
alunos se realizem enquanto sujeitos.
Com base nesta pesquisa-ação, elaborou-se, ainda no ano de 2019,
um Projeto de Intervenção (PI) com o principal objetivo de propor uma
experiência democrática em que se crie a real condição para participa-
ção de todos os sujeitos, a fim de que se sintam à vontade para opinar e
percebam que suas opiniões são reconhecidas e podem significar ações.
Muitas ações foram pensadas para promover mudanças/transforma-
ções da realidade na qual a comunidade, ao pesquisar sobre sua própria
realidade, tem a possibilidade de adquirir novos conhecimentos e de
ressignificar sua prática.
Dentre as principais ações pensadas no Projeto de Intervenção
estão a revisão e a reelaboração do PPP não apenas com representa-
tividades, mas com a participação de todos os sujeitos, posto que sua
última versão foi feita quase que unicamente pela equipe diretiva; o co-
nhecimento da própria comunidade por parte da escola para que haja
uma aproximação entre elas; o fortalecimento dos colegiados, do Con-
selho Escolar e do Grêmio Estudantil; e a criação da Escola de Pais.

Redemocratização do espaço escolar:


relação comunidade-escola, onde se perdeu? 43
Pensar em Gestão Democrática é refletir sobre a necessidade de
ampliação de processos decisórios e de participação efetiva da comu-
nidade escolar e local nas ações escolares. Para rompermos com uma
gestão autocrática e centralizadora, precisamos fortalecer os meios
que possibilitam as ações que são sugeridas no PI, em que comunidade
e escola precisam criar, por meio da educação, uma força para superar
suas dificuldades, construindo uma identidade própria e coletiva. Eis os
caminhos para efetivar a Gestão Democrática:

• um Conselho Escolar atuante, participativo, que se reúna sistema-


ticamente e tome decisões para que possa incrementar uma polí-
tica escolar mais justa;

• um Grêmio Estudantil que dê voz aos estudantes, que os faça sujei-


tos na difícil caminhada de se proporem seres em construção, em
busca de sentido. O Grêmio desafia-os ao trabalho coletivo, à par-
ticipação e a ouvir opiniões divergentes; isso tudo pode levar a um
aprendizado com pertinência e com ações que ensinem os estudan-
tes a ter uma postura mais autônoma diante das decisões coletivas;

• uma Escola de Pais que facilite a interlocução e a participação dos


membros desse segmento que, muitas vezes, deixam de participar
da escola por se sentirem incapacitados de falar com professores
sobre educação ou sobre o trabalho realizado pela escola. Também
será um espaço de aprendizado e construções que tragam benefí-
cios para a escola e para a comunidade em geral;

44 Taiane Gonçalves de Freitas


• um Projeto Político-Pedagógico que sirva como bússola para nor-
tear as ações da escola e contribua para a criação de possibilidades
reais para o enfrentamento dos problemas sociais pelos quais a es-
cola passa.

Mas o ano de 2020, destinado à prática do PI, foi atípico. Essa nova
realidade imposta pela pandemia do coronavírus exigiu adaptações do
Projeto, que, sem o convívio com os sujeitos da escola, ficará, momenta-
neamente, apenas no papel e quiçá como promessa de influenciar po-
sitivamente a construção de novos conceitos e atitudes, visando uma
escola, de fato, democrática.

CONSIDERAÇÕES FINAIS: A PARTICIPAÇÃO É O


MEIO PARA A GESTÃO DEMOCRÁTICA DA ESCOLA

A pesquisa-ação realizada na Escola Municipal de Ensino Funda-


mental Dolores Alcaraz Caldas teve como resultado, além do projeto
de intervenção, uma reflexão que, por consequência da situação de
pandemia que vivemos, possibilitou referendar a problemática posta
pela pesquisa. Ainda que o Projeto de Intervenção não tenha se concre-
tizado em 2020, muitas problemáticas trazidas pela nova organização
da escola em decorrência da pandemia trouxeram embasamento para
ampliar a discussão sobre o problema que impulsionou o PI: a relação da
comunidade com a escola e desta com a comunidade, o que nos faz re-
fletir sobre o direito à educação, a Gestão Democrática e a importância
da educação para o processo de transformação social e de cidadania.

Redemocratização do espaço escolar:


relação comunidade-escola, onde se perdeu? 45
Algumas evidências apresentadas pela pesquisa, como a falta de
procura pela escola por seis meses durante a pandemia e a falta de par-
ticipação da comunidade nos processos decisórios ou para fazer reivin-
dicações, trouxeram consigo uma indagação que foi compartilhada com
a equipe diretiva da escola. Essas constatações têm promovido diálogos
entre a equipe gestora sobre a significância da escola na vida dessas fa-
mílias e a compreensão de que temos decidido os caminhos da escola
sem dar voz aos sujeitos que são o desígnio e a razão de sua existência.
Conforme Libâneo (2004), a população, em sua maioria, não
demonstra muito interesse pela coisa pública e não reivindica sua
participação nos processos decisórios e na melhoria dos serviços –
considera que, se a escola mantém a frequência dos professores e a
merenda escolar para os alunos, já é o suficiente. Mas a gestão parti-
cipativa dentro do sistema educativo requer a parceria entre escola e
comunidade para que haja a efetivação de forma real dessa prática.
Para que ela saia da teoria e passe para a práxis, é preciso que acon-
teçam atividades práticas de ações conjuntas entre ambos, levando a
uma aproximação positiva.
A escola pode e precisa contribuir para a formação de sujeitos
críticos, autônomos e atores sociais, mas não conseguirá sem ser real-
mente espaço de participação e vivência desses princípios. Como afirma
Girotto (2013, p. 24), “não há como pensar a democracia e a cidadania
sem pensar numa reestruturação/ressignificação dos espaços públicos
com vistas a fomentar a real participação dos sujeitos”. Assim, ao nos
incumbirmos de tornar a escola de fato um espaço que é de todos e é
construído por todos, conhecendo e valorizando os saberes e interesses
da comunidade em que está inserida e tendo nas práticas docentes o al-

46 Taiane Gonçalves de Freitas


vará para o desenvolvimento da criticidade por parte dos nossos alunos,
sem dúvida teremos sujeitos mais livres e com poder de escolha.
Ao possibilitar que os pais ou responsáveis façam parte desse pro-
cesso de humanização e sejam também beneficiados por essa vivência
de participação democrática e de construção de ideais visando ao bem
comum, estaremos também contribuindo para uma sociedade mais
justa e menos desigual. Como diz Cury (2002, p. 255):

A igualdade é o princípio tanto da não-discriminação [sic]


quanto ela é o foco pelo qual homens lutaram para eliminar
privilégios de sangue, de etnia, de religião ou de crença. Ela
é ainda o norte pelo qual as pessoas lutam para ir reduzindo
as desigualdades e eliminando as diferenças discriminatórias.

Ao tornar a participação dos alunos e dos pais a essência das ações


escolares, mostrando que a escola é patrimônio de todos e que seu signi-
ficado está nos sujeitos que a compõem, poderemos estreitar a relação
entre a comunidade e a escola, perdida em algum momento da nossa ca-
minhada. Talvez assim esses pais e alunos atuantes na escola, que reco-
nhecem o significado e a intencionalidade da instituição de ensino, não
ficariam seis meses sem procurar saber o que a escola tem feito para
garantir a educação dos alunos em um momento de pandemia.
Se pretendemos rever essa relação que a escola vem mantendo
com a comunidade, as instituições públicas de ensino precisam rever as
experiências democráticas que têm promovido à comunidade escolar,
elemento fundamental para um processo político capaz de possibilitar
igualdade de condições e oportunidades para todos. Será necessário
que as escolas instiguem a participação ativa e crítica de alunos, pais e
responsáveis, professores e funcionários nas decisões e ações tomadas

Redemocratização do espaço escolar:


relação comunidade-escola, onde se perdeu? 47
pela escola, fortalecendo diferentes instituições de participação da co-
munidade escolar, como Grêmio Estudantil, Escola de Pais e Conselho
Escolar. Gestores e professores precisam, urgentemente, compreender
o potencial educativo desses órgãos, uma vez que também é por meio
deles que pais, alunos e funcionários podem se apropriar da escola en-
quanto espaço público e, com isso, tornar-se, de fato, corresponsáveis
por aquilo que ali acontece.
Carvalho (2008, p. 492) afirma que, “na essência de um propósito
emancipatório e de desenvolvimento da autonomia, está a participação
proativa da população alvo”, que clama para que a escola se torne es-
paço público de vocalização, participação e interlocução política dos ci-
dadãos que a frequentam, em uma relação libertadora e emancipatória.
A escola pública terá que rever suas práticas para além do desen-
volvimento dos currículos e da gestão burocrática que onera o tempo
dos gestores; terá que (re)conhecer sua comunidade, trazê-la para perto
da escola e deixá-la exercer seu direito de contribuir na construção dos
propósitos da escola, jogando todos “no mesmo time”. Haverá grandes
perspectivas ao termos a comunidade escolar como coadjuvante na
construção educacional e na formação social dos seus sujeitos. Pode-
mos começar pelo diálogo com a comunidade, ouvindo o que eles têm a
dizer sobre a escola e sobre seu papel na construção desta, falas que ex-
pressam desejos e possibilidades como as aqui relatadas, que mostram
que os pais da escola esperam interagir e participar mais dela, não só nos
sábados comunitários e nas reuniões administrativas.

48 Taiane Gonçalves de Freitas


REFERÊNCIAS
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1988. Brasília, DF: Presidência da República, [2016].

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Redemocratização do espaço escolar:


relação comunidade-escola, onde se perdeu? 49
50
2
Gestão Democrática
e participação
cidadã: implantação
do Grêmio Estudantil
como desafio da
Gestão Democrática

Paulo Henrique Caprio Silva1


Maria Raquel Caetano2

1 Pós-graduado em Gestão da Educação pela Universidade Federal do Rio


Grande do Sul. Pós-graduado em Psicopedagogia Institucional pela Univer-
sidade Castelo Branco. Graduado em Pedagogia pela Pontifícia Universi-
dade Católica do Rio Grande do Sul. Orientador Educacional na educação
pública municipal de Gravataí desde 2012.
E-mail: paulo_caprio@hotmail.com

2 Doutora em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul.


Mestre em Educação pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande
do Sul. Professora do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia
Sul-rio-grandense. Professora do Curso de Especialização em Gestão da
Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Orientadora
do estudo.
E-mail: caetanoraquel2013@gmail.com

51
INTRODUÇÃO

A Gestão Democrática implica luta pela garantia da autonomia


da unidade escolar, participação efetiva nos processos de tomada de
decisão, incluindo a implementação de processos colegiados nas es-
colas, financiamento pelo poder público, entre outros (Paro, 2010). Ela
é entendida como a participação efetiva dos vários segmentos da co-
munidade escolar (pais, professores, estudantes e funcionários) na or-
ganização, na construção e na avaliação dos projetos pedagógicos, na
administração dos recursos da escola e em outros processos decisórios.
Assim como o direito à educação foi conquistado por meio das lutas
históricas, a Gestão Democrática da educação emerge a partir dos mo-
vimentos que resultaram em conquistas democráticas para a sociedade
brasileira durante a década de 1980. Tais manifestações tiveram como
bandeira a luta em defesa da escola pública e por melhores condições
de trabalho e remuneração para os professores, incluindo, também, rei-
vindicações por mudanças na gestão e organização da educação e pela
valorização do magistério como profissão. Nesse sentido, ela passa a re-
presentar a luta pelo reconhecimento da escola como espaço de política
e trabalho (Oliveira, 2004), possibilitando o debate sobre os objetivos
educacionais e contrapondo “a organização burocrática e hierárquica
da administração escolar” (Luce; Medeiros, 2006, p. 15); além disso,
implica participação, suscitando a ideia de que a política, como práxis
social, está presente na escola.
Este trabalho é resultado de investigação teórico-prática acerca
dos temas Gestão Escolar Democrática e Participação Estudantil e em-
basa o artigo de conclusão da 1ª edição do Curso de Especialização em

52 Paulo Henrique Caprio Silva | Maria Raquel Caetano


Gestão da Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul –
Litoral Norte em parceria com a Universidade Aberta do Brasil. Este
estudo visa iniciar uma caminhada de Gestão Democrática na Escola
Municipal de Ensino Fundamental Áurea Celi Barbosa, lócus da análise
e da intervenção; mais especificamente, aborda a participação dos estu-
dantes nos espaços democráticos e de tomada de decisões da escola, no
Grêmio Estudantil e no Conselho Escolar, conforme assegurado na Lei
de Diretrizes e Bases da Educação (Lei nº. 9.394 de 1996), em seu artigo
14, inciso II.
O olhar sobre as formas de participação implica pensar em quais
são os espaços propícios para que haja a participação. Como afirma
Menegotti (2018), entre os mais importantes mecanismos de participa-
ção que podem ser vivenciados em uma escola pública estão os Con-
selhos Escolares (CE). Esse colegiado é um elemento fundamental na
organização e na gestão das escolas, sendo, sob os princípios da Gestão
Democrática, quem “[...] delibera e toma decisões sobre as dimensões
administrativas, pedagógicas e financeiras, restando à direção da escola
(ou equipe diretiva) a execução de tais decisões acompanhadas e moni-
toradas pela instância colegiada” (Batista, 2016, p. 135).
Considerando a importância que possui a participação do CE e de
outros instrumentos para a efetivação da Gestão Democrática, foram
executadas ações pontuais com os educandos da escola, planejadas e
articuladas de forma coletiva por um grupo de professores com histó-
rico de participação estudantil. A escola pesquisada não tem um Grêmio
Estudantil (GE); diante disso, pretende-se mudar esse cenário apresen-
tando estratégias construídas com os educadores no que diz respeito à
implantação do GE.

Gestão Democrática e participação cidadã:


implantação do Grêmio Estudantil como desafio da Gestão Democrática 53
O percurso metodológico dessa intervenção foi construído com
orientação qualitativa, com a proposta de pesquisa-ação que permite
uma ação entre o pesquisador e os sujeitos envolvidos na situação
(Thiollent, 1986). A produção de dados também envolve a aplicação
de um questionário on-line e pesquisa bibliográfica com vistas a refletir
acerca dos achados da investigação.
Como integrante da metodologia, no levantamento de dados uti-
lizou-se o questionário on-line para compreender quais conhecimentos
prévios os educandos apresentavam sobre o tema Grêmio Estudantil,
sua vontade de participação e construção, além da disponibilidade e
dos recursos para tal. Após essa etapa, foram utilizados os encontros
de formação com os educandos, no formato de rodas de conversa, so-
bre temas pertinentes ao Grêmio Estudantil, como movimentos sociais,
Movimento Estudantil e Gestão Escolar Democrática.
É imprescindível analisar que os educandos são o objetivo primeiro
da prática pedagógica de uma escola pública que pensa a transformação
social, mas não ocupam lugar na tomada de decisões. Trabalhar na pers-
pectiva de propiciar o pensamento crítico e participativo dos educan-
dos é, ao mesmo tempo, acreditar na potencialidade de discernimento
do jovem e prepará-lo para a participação consciente, social e política
como cidadão, dentro e fora da escola.

54 Paulo Henrique Caprio Silva | Maria Raquel Caetano


GESTÃO ESCOLAR DEMOCRÁTICA, PARTICIPAÇÃO
E GRÊMIO ESTUDANTIL

O Grêmio Estudantil é uma instância colegiada que representa a


vontade coletiva dos estudantes. Por meio dele, eles têm voz e vez no
processo educativo. É um dos mecanismos da Gestão Democrática,
considerado fruto do Movimento Estudantil criado pela União Nacio-
nal dos Estudantes (UNE) no dia 22 de dezembro de 1938, no Rio de
Janeiro, embora alguns estudos afirmem que a atuação do Movimento
Estudantil é anterior a essa criação (Semprebom; Ribeiro, 2008).
A partir da Constituição Federal de 1988 (Brasil, [2016]), que até
certo ponto avança na garantia dos direitos e propõe a Gestão Demo-
crática como um princípio a ser utilizado na gestão das escolas, a Lei de
Diretrizes e Bases (LDB) – Lei nº. 9.394/96 – também assegura, nos arti-
gos 14 e 15, as normas da Gestão Democrática do ensino público, espe-
cialmente por meio da participação dos profissionais e da comunidade
escolar na gestão da escola:

Art. 14. Os sistemas de ensino definirão as normas da Ges-


tão Democrática do ensino público na educação básica, de
acordo com as suas peculiaridades e conforme os seguintes
princípios:

I. Participação dos profissionais da educação na elaboração


do projeto pedagógico da escola;

II. Participação das comunidades escolar e local em conse-


lhos escolares ou equivalentes (Brasil, 1996).

Gestão Democrática e participação cidadã:


implantação do Grêmio Estudantil como desafio da Gestão Democrática 55
Na trajetória da Gestão Democrática da escola, o ato participativo
é um dos pressupostos indispensáveis para sua efetivação. Ela tomou
forma e transformou-se na oportunidade real e ideal para consolidar a
escola como um espaço público, de construção coletiva e de desenvol-
vimento dos cidadãos. Essa forma de gestão é o início do aprendizado
da democracia e define-se como a mediação para o desenvolvimento de
uma sociedade livre (Caetano, 2010).
Paro (2016) lembra que uma das formas de identificar as ferra-
mentas democráticas da escola pública é analisar a situação em que se
encontram esses mecanismos de ação coletiva de que a escola dispõe.
A falta de mobilização estudantil é algo que agride o que se pensa so-
bre educação, mas é preciso dizer que, por muito tempo, acreditava-se
que essa iniciativa precisaria partir dos educandos, para que tivesse o
mínimo possível de interferência da visão dos educadores sobre o mo-
vimento em relação às diretrizes. Mas a prática empírica tem mostrado
que os educandos do Ensino Fundamental, que é o nível de atendimento
prioritário da escola pesquisada, necessitam da orientação e do suporte
dos educadores. Nesse sentido, Libâneo (2004, p. 138) avalia que “a
conquista da cidadania requer um esforço dos educadores em estimular
instâncias e práticas de participação popular”. E estimular a mobilização
estudantil nada mais é do que preparar os educandos para a cidadania.
Acredita-se que só se aprende a ser cidadão, a ser democrático sendo.
Para que isso ocorra, faz-se necessário que os envolvidos no processo
educativo se percebam como agentes, e não expectadores do processo,
em que a autonomia possa ser exercida com sua real finalidade, ou seja,
a elaboração conjunta de estratégias educacionais que visem melhores

56 Paulo Henrique Caprio Silva | Maria Raquel Caetano


condições para uma formação de qualidade das crianças e dos jovens
que fazem parte do processo escolar.
É compromisso da Gestão Escolar, sob o princípio da Gestão
Democrática, apoiar a organização do Grêmio Estudantil, a participação
de todos os segmentos da comunidade escolar e a valorização dessas
participações.

Participação significa a atuação dos profissionais da educa-


ção e dos usuários (alunos e pais) na gestão da escola. Há dois
sentidos de participação articulados entre si. Há a participa-
ção como processo organizacional em que os profissionais e
usuários da escola compartilham, institucionalmente, certos
processos de tomada de decisão. No primeiro sentido, por
meio de canais de participação da comunidade, a escola deixa
de ser uma redoma, um lugar fechado e separado da realida-
de, para conquistar um status de uma comunidade educati-
va que interage com a sociedade civil. Vivendo a prática da
participação nos órgãos deliberativos da escola, os pais, os
professores, os alunos vão aprendendo a sentir-se responsá-
veis pelas decisões que os afetam num âmbito mais amplo da
sociedade. No segundo sentido, a participação é ingredien-
te dos próprios objetivos da escola e da educação (Libâneo,
2004, p. 159).

A Gestão Escolar Democrática, a Eleição de Diretores, os Conse-


lhos Escolares e o Movimento Estudantil são conquistas da sociedade
civil organizada, mediante muita luta, em um momento histórico de
redemocratização da sociedade ao término de um período de regime
totalitário. O país vive uma democracia muito jovem, que se encontra

Gestão Democrática e participação cidadã:


implantação do Grêmio Estudantil como desafio da Gestão Democrática 57
ameaçada pelos recentes ataques às instituições, como perseguições
políticas e de ameaça à vida e à democracia. Essas ameaças

[...] também ferem elementos fundamentais do princípio


constitucional da Gestão Democrática da escola, por um lado
porque impedem a expressão de determinadas ideias e posi-
ções políticas/ideológicas sobre o mundo e a sociedade; por
outro lado porque efetivamente retrocedem em mecanismos
já estabelecidos na legislação brasileira, como a organização
autônoma dos estudantes em entidades representativas e a
participação da comunidade escolar no processo de eleição
de diretores (Peroni; Caetano; Lima, 2021, p. 14).

Como educadores progressistas, é necessário cada vez mais incen-


tivar a participação ativa dos jovens em todos os espaços educacionais,
estimulando os educandos para a produção acadêmica, a inspiração à
pesquisa e a valorização das ciências. É preciso o encorajamento à parti-
cipação cidadã e à busca de protagonismo dentro de suas próprias rea-
lidades, tomando para si a responsabilidade do próprio destino. Dessa
forma, objetiva-se o crescimento e a evolução da sociedade, não permi-
tindo retrocessos.
Os educandos não se tornarão críticos e reflexivos rapidamente
porque, como qualquer aprendizagem, isso necessita de tempo para
se consolidar, como já afirmava Freire (2015, p. 103): “Ninguém é su-
jeito da autonomia de ninguém. Por outro lado, ninguém amadurece de
repente, aos vinte e cinco anos. A gente vai amadurecendo todo dia,
ou não. A autonomia, enquanto amadurecimento do ser para si, é pro-
cesso, é vir a ser”.

58 Paulo Henrique Caprio Silva | Maria Raquel Caetano


Ao educador, cabe proporcionar experiências, vivências, situações
e indagações para que o educando possa questionar e se colocar em
dúvida sobre suas próprias certezas, construindo novos pensamentos e
ideias. Compete ainda aos educadores acreditar nos jovens como sujei-
tos ativos da aprendizagem escolar, social e histórica; enfim, da apren-
dizagem cidadã.
A própria escola não se modificará rapidamente; mas, como
destaca Paro (2016, p. 15), “se queremos uma escola transformadora,
precisamos transformar a escola que temos aí. E a transformação dessa
escola passa necessariamente por sua apropriação por parte das ca-
madas trabalhadoras”. Essa apropriação pelas camadas trabalhadoras
dialoga com a ideia de Gestão Democrática, de descentralização do po-
der e da compreensão por parte da sociedade de que a escola é um es-
paço plural que lhe pertence e que é de sua responsabilidade também.
Acontecendo a apropriação do que é público, rompe-se com a lógica da
aceitação do que é posto, com o conformismo e com a baixa qualidade
do que é público. Ao romper com o conformismo, é preciso que haja o
comprometimento com a busca por qualidade.
Paro (2015) ainda aponta que o caráter autoritário do diretor é as-
tutamente mantido pelo Estado, pois, ao assumir esse papel, dividindo
os setores da escola, centraliza e transmite uma ideia de poder absoluto,
blindando os “escalões superiores” da reivindicação popular e minimi-
zando sua atuação, ao mesmo tempo que acaba por atender ao anseio
do governo, e não da sua comunidade. Em outras palavras, ele se torna o
braço do governo nas periferias. Dessa forma, fica muito mais fácil para
os governantes negar as reivindicações do diretor do que de toda uma
comunidade.

Gestão Democrática e participação cidadã:


implantação do Grêmio Estudantil como desafio da Gestão Democrática 59
É esse caráter autoritário que acaba por esvaziar a participação
dos segmentos foco deste estudo e intervenção. Pode-se observar
que as pessoas que começam a participar e que se propõem a compor
o Conselho Escolar, por exemplo, vão se afastando ao perceberem que
o processo decisório é centralista. E isso ocorre com todos os segmen-
tos. A Gestão Centralizadora se utiliza do processo democrático para ser
eleita, mas se contrapõe à ideia de democracia, afastando a participação
popular: reafirma uma ideologia equivocada de que alguém é eleito de-
mocraticamente não para representar, mas para mandar, decidir e guiar.
O entendimento do processo eleitoral como um todo precisa evo-
luir. Ao elegerem, as pessoas parecem passar uma procuração de plenos
poderes ao eleito. E não é isso, pois eleição é representação. O eleito
precisa dialogar com a totalidade dos representados, consultar, ouvir
e considerar. Não se compreende como admissível que uma direção,
eleita pelo voto, possa administrar como se a escola fosse sua proprie-
dade. É imperativo romper com a Gestão Centralizadora e fortalecer a
Gestão Democrática.
Nesse sentido, a Gestão Democrática é concreta porque é um
processo alicerçado na participação, na transparência, na coletividade,
na competência, na liderança e na autonomia, afirmando, assim, a es-
cola como um espaço capaz de gerar e construir ideias que permitam
melhorar tudo aquilo que é próprio dela. Na busca de compreender o
que pensam os educandos, eles precisam ter vez e voz. Freire (2015,
p. 58) lembra que “o respeito à autonomia e à dignidade de cada um é
um imperativo ético e não um favor que podemos ou não conceder uns
aos outros”.

60 Paulo Henrique Caprio Silva | Maria Raquel Caetano


Ao permitir que o educando possa exercer seu direito de contes-
tar as decisões locais de uma direção eleita em uma escola pública, de
todos para todos, ensina-se que o cidadão tem o direito de contestação,
de se indignar e de cobrar seus governantes. Mas se compreende que
a contestação não pode ser irreflexiva e sem argumento, de modo a
questionar por questionar. Precisa-se incentivar o educando a construir
a capacidade de discutir problemas, defender suas ideias, respeitar as
ideias divergentes e propor soluções. É imperativo compreender que o
educando é a razão para a escola existir e que o fazer pedagógico é para
ele. Lembra Libâneo (2004, p. 139) que: “A escola é lugar de comparti-
lhamento de valores e de aprender conhecimentos, desenvolver capa-
cidades intelectuais, sociais, afetivas, éticas, estéticas. Mas é também
lugar de formação de competências para a participação da vida social,
econômica e cultural”.
Acredita-se que o Grêmio Estudantil e o Conselho Escolar são es-
paços democráticos importantíssimos para o crescimento dos educan-
dos, mas pouco difundidos ou compreendidos por esse segmento. Por
isso, precisam ser espaços parceiros um do outro. O Grêmio Estudantil
agiria como um espaço agregador, de convivência, de lazer, de trocas,
mas também de formação, de diálogo e de discussões que subsidiassem
seus representantes no Conselho Escolar, estimulando, de fato, a repre-
sentatividade e o retorno à base.
Para tudo isso, é fundamental pensar o Grêmio Estudantil como
protagonista, gestor, com espaço na participação da gestão da escola,
e não apenas para cumprir tarefas, tampouco para servir de plataforma
política para qualquer movimento que não o seu próprio. Concorda-se
com Paro (1998, p. 6) quando este avalia que:

Gestão Democrática e participação cidadã:


implantação do Grêmio Estudantil como desafio da Gestão Democrática 61
Entendida a democracia como medição para a realização da
liberdade em sociedade, a participação dos usuários na ges-
tão da escola inscreve-se, inicialmente, como instrumento a
que a população deve ter acesso para exercer o seu direito
à cidadania. Isto porque, à medida que a sociedade se demo-
cratiza, e como condição dessa democratização, é preciso
que se democratizem as instituições que compõem a socie-
dade, ultrapassando os limites da chamada democracia po-
lítica e construindo aquilo que Norberto Bobbio chama de
democracia social.

Acredita-se que analisar o processo de implementação do Grêmio


Estudantil na escola pública como desafio da Gestão Democrática, com
a participação de todos os segmentos da comunidade escolar, é neces-
sário para estabelecer a relação intrínseca entre Gestão Democrática
e participação. E essa relação só acontecerá se as pessoas se sentirem
realmente participantes, valorizadas e pertencentes a esse espaço es-
colar. Criar e estimular o sentimento de pertencimento e corresponsa-
bilidade pelo espaço escolar, pelo fazer pedagógico e pelo crescimento
da comunidade precisa ser um dos comprometimentos da Gestão Esco-
lar Democrática. O Grêmio Estudantil, mais do que uma sede, é um mo-
vimento; é uma ideia capaz de modificar a ação e a compreensão desses
jovens em formação; é a organização, o crescimento, o empoderamento
e a diversidade de pensamentos e vivências; e é, além de tudo, acreditar
e esperançar que é possível viver democraticamente desde cedo.

62 Paulo Henrique Caprio Silva | Maria Raquel Caetano


PERCURSO METODOLÓGICO
Caracterização do lócus da pesquisa

A Escola Municipal de Ensino Fundamental Áurea Celi Barbosa,


pertencente à Rede Pública do município de Gravataí (RS), foi fundada
em outra localidade, em outubro de 1940, quando começou a funcionar
em uma casa particular pertencente à professora e diretora Sra. Olinda.
Mais tarde, passou para outra casa, de propriedade do Sr. Pedro Maia.
Tempos depois, a Escola passou para a casa da Sra. Zeli Teresa Braga, na
Rua Otávio Schemes, contando com o trabalho de outras três docentes.
Com o crescimento do número de alunos, a prefeitura construiu, na Vila
São Vicente, a atual escola, que teve como diretora a Sra. Ada Negrini.
Finalmente, em 1978, a Prefeitura Municipal emitiu o Decreto nº. 1.547,
que criou, oficialmente, a Escola Municipal Áurea Celi Barbosa (1º Grau
Incompleto). Atualmente, situa-se na Rua Marco Polo, 729, Vila São Vi-
cente, na cidade de Gravataí, e é uma das maiores escolas do município
no que se refere ao número de alunos e ao espaço físico. Ela oferece os
níveis de Educação Infantil (pré-escola de cinco anos) e Ensino Funda-
mental Completo e a Modalidade de Educação de Jovens e Adultos e
atende, aproximadamente, 1.200 alunos nos três turnos (manhã, tarde
e noite). Para tanto, conta em seu quadro funcional com 83 professores
e 22 funcionários auxiliares. A escola possui seis prédios, entre adminis-
trativos e salas de aula; nesses prédios, ao todo, há 20 salas de aula, uma
sala de recursos multifuncionais, biblioteca, sala de vídeo, laboratório
de informática (desativado), refeitório, secretaria, coordenação peda-
gógica, direção e uma pequena sala para atendimentos e reuniões. Na
parte externa, a escola possui duas quadras poliesportivas, uma quadra

Gestão Democrática e participação cidadã:


implantação do Grêmio Estudantil como desafio da Gestão Democrática 63
de areia e uma pracinha com brinquedos para os alunos da Educação In-
fantil; na grande área do pátio, há a construção de um ginásio poliespor-
tivo, porém já paralisada inúmeras vezes, longe da fase de acabamento.
O perfil da comunidade é residencial, em sua maioria, de baixa
renda. Há comércios no entorno da escola, alguns de composição fa-
miliar. A comunidade escolar tem o costume de acompanhar os alunos
menores até a porta da sala de aula, por isso há grande fluxo de res-
ponsáveis na entrada e na saída dos turnos, mas essa presença não se
traduz nas reuniões realizadas pela escola, tampouco na composição e
na participação do Conselho Escolar.
Em âmbito municipal, a Rede Pública é composta por 75 escolas,
sendo 60 delas de Ensino Fundamental, e atende em torno de 29 mil
alunos. De maneira oficial, o município adota, nos anos iniciais do Ensino
Fundamental, o Sistema de Ensino Aprende Brasil;3 porém, grande parte
das escolas municipais desistiu de utilizar o método e o material didático.
Vale destacar que a escola pesquisada deixou de utilizar esses recursos
no ano de 2018. Apesar disso, a “parceria” é divulgada como investi-
mento em Educação nas peças publicitárias da administração pública.
Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas
(IBGE) (2020), no ano de 2010, o município de Gravataí teve 95,7 % de
escolarização na faixa etária dos 6 aos 14 anos, o que aponta um alto ín-
dice de acesso à educação nessa faixa. Ao se pensar na qualidade dessa
educação e pesquisar o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica
(IDEB) do município, percebe-se que, de fato, esse índice vem aumen-

3 O Sistema de Ensino Aprende Brasil, em seu site oficial www.sistemaaprendebrasil.com.br


(2020), define seu objetivo como “ampliar a qualidade do ensino nas escolas do seu município.
Livros didáticos, assessoria pedagógica e plataformas digitais são as nossas soluções para a rede
pública”. Esse é um Sistema de assessoria privado contratado pelo município de Gravataí.

64 Paulo Henrique Caprio Silva | Maria Raquel Caetano


tando,4 tanto nos anos iniciais quanto nos anos finais do Ensino Fun-
damental, porém ainda está aquém da meta estipulada. Isso também
ocorre com a escola pesquisada, que apresenta um aumento gradual,
mas sem conseguir atingir as metas propostas.
À época, a decisão de adesão ao Sistema de Ensino mencionado
coube aos gestores municipais e direções de escola, sem o tempo
necessário para conhecer e refletir sobre o que se oferecia, ou confrontar
com o Projeto Político-Pedagógico, ou discutir com a comunidade
escolar. Isso faz pensar sobre as razões para a baixa participação dos
responsáveis no Conselho Escolar, por exemplo. Não há registro ou lem-
brança de quaisquer pesquisas envolvendo estudantes ou responsáveis
quanto à qualidade ou eficiência do Sistema de Ensino mencionado, o
que demonstra a verticalidade das decisões.

Situação do Projeto Político-Pedagógico

O Projeto Político-Pedagógico (PPP) é o planejamento das ações


que serão desenvolvidas por todos na escola. Nesse sentido, deve ser
elaborado pela comunidade escolar como prerrogativa aos condicio-
nantes legais (Menegotti, 2018).
De fato, o PPP emerge como um mecanismo legal que retrata a
identidade da escola. Em especial, o PPP da escola pesquisada foi cons-
truído com a participação de todos os segmentos da escola desde a ela-
boração até a implantação, garantindo a Gestão Escolar Democrática;

4 O IDEB do município vem gradativamente aumentando; chegou ao ano de 2017 com o resultado
de 5,4 nos anos iniciais do Ensino Fundamental, tendo como meta 5,8. Nos anos finais do Ensino
Fundamental, o município atingiu nota 4,0, tendo como meta 4,8.

Gestão Democrática e participação cidadã:


implantação do Grêmio Estudantil como desafio da Gestão Democrática 65
porém, os educadores acabam por assumir o papel de protagonistas do
processo, pois a comunidade, muitas vezes, apenas concorda com o que
eles falam ou decidem, sendo necessário muito estímulo para que efe-
tue alguma contribuição. Uma questão pertinente a ser pensada é que,
na construção do PPP e nos momentos de avaliação do documento, a
escola acaba agindo com os grupos separados, ou seja, cada grupo em
seu turno de trabalho.
O PPP foi revisitado em sua plenitude no ano de 2017. Para
esse ano, planejou-se discutir as linhas pedagógicas e os processos
de avaliação, na intenção de fomentar a reflexão sobre o documento
e promover maior coerência com as práticas e ações vivenciadas na
escola no cotidiano, problematizando para tornar palpável e vivo o que
está no documento.
No hall de entrada da escola está grafitada a Filosofia da Escola,
parte integrante do PPP. Porém, mesmo em espaço de visível acesso,
ela nem sempre consegue se traduzir nas ações e intenções praticadas
nesse espaço.

A Escola é o espaço dinâmico e democrático da ação educa-


tiva que garante a todos o acesso ao conhecimento. Oportu-
niza espaços de discussão, preferencialmente públicos, con-
tribuindo para a construção de uma sociedade crítica, justa
na igualdade e na democracia. Oportuniza o acesso à apren-
dizagem, integrando a realidade do aluno para aprimorar o
seu saber, de maneira a privilegiar igualmente a todos, garan-
tindo a inclusão, trabalhando etnias, diversidades culturais,
identidades de gênero e preconceitos através da nossa práti-

66 Paulo Henrique Caprio Silva | Maria Raquel Caetano


ca pedagógica e de uma metodologia voltada para atender as
necessidades e interesses dos educandos (Escola Municipal
de Ensino Fundamental Áurea Celi Barbosa, 2007, p. 9).

No seu Marco Situacional, o PPP traz uma ideia de sociedade frag-


mentada, com necessidade de maior engajamento social e político, e
apresenta a escola como importante espaço de ação nessa trajetória
de transformação. O documento ainda fala sobre “[...] a importância do
planejamento coletivo e participativo, em que todos se sintam agentes
responsáveis pelo acompanhamento, execução e aprimoramento de
suas metodologias” e que, para isso, a escola precisa “[...] proporcionar
momentos em que a comunidade escolar possa ter espaço para deba-
tes, troca de experiências e também para o planejamento de ensino”
(Escola Municipal de Ensino Fundamental Áurea Celi Barbosa, 2007, p.
7). Porém, esses espaços de debates e planejamento, de participação e
apropriação da comunidade e dos educandos estão cada vez mais dis-
tantes da prática vivenciada.
Considerando os pressupostos do Marco Situacional, a Escola Áurea
Celi Barbosa “visa contribuir para a formação do cidadão inspirada nos
ideais que buscam comprometimento crítico com os problemas sociais”.
Almeja, ainda, “formar alunos críticos, conscientes, participativos, res-
ponsáveis e agentes transformadores da sociedade em que vivem atra-
vés da educação, do estudo e do trabalho” (Escola Municipal de Ensino
Fundamental Áurea Celi Barbosa, 2007, p. 7). Dessa forma, essa linha de
estudos e de proposição de ações dialoga com os anseios construídos na
discussão do PPP da escola, pois pretende fomentar a participação em
espaços que hoje não são ocupados.

Gestão Democrática e participação cidadã:


implantação do Grêmio Estudantil como desafio da Gestão Democrática 67
Como objetivos desta pesquisa e intervenção, estabeleceram-se
alguns parâmetros sobre os quais se faz necessário pensar e refletir. É
preciso analisar formas de planejar essa objetivação a fim de cumprir a
função deste estudo, que é ultrapassar o campo das ideias e chegar às
ações. Pensa-se que a objetivação deste estudo contribuirá para a apro-
ximação entre os documentos legais da escola e a prática vivenciada de
forma contínua. Assim, cabem ao coletivo as ações necessárias para que
esse movimento permaneça dessa forma, continuamente.

Foco da pesquisa e intervenção

Como foco de pesquisa e proposta de intervenção na realidade


observada, foi escolhida, coletivamente, a participação dos educandos
nos processos e espaços democráticos da instituição escolar, como pre-
visto no PPP e na base da Gestão Democrática. No Projeto Político-Pe-
dagógico da escola, está registrado que “a escola objetiva implementar
o Grêmio Estudantil, incentivando a efetiva participação dos alunos na
Escola, incentivando e assessorando sua formação, construção de re-
gulamento e ações na Escola” (Escola Municipal de Ensino Fundamental
Áurea Celi Barbosa, 2007, p. 39).
Não se constitui o GE apenas por constar no PPP da escola ou no
plano de gestão da direção; ao contrário, o GE é um espaço de vontade
dos educandos que estão na escola e que reconhecem como legítima
sua participação nas discussões e na tomada de decisões que envolvem
o dia a dia nesse espaço, que deve ser exemplarmente democrático.
Mesmo da forma como funciona atualmente, ainda nos documentos da
Escola, é possível ler a compreensão de Gestão Democrática e da ne-

68 Paulo Henrique Caprio Silva | Maria Raquel Caetano


cessidade de estimular e promover a participação de todos os segmen-
tos, especialmente dos estudantes.

A busca desta gestão inclui necessariamente a ampla e


efetiva participação dos representantes dos diferentes
segmentos da Escola nas decisões/ações administrativo-
pedagógicas desenvolvidas, procurando meios em reunir
todos os segmentos para discutir assuntos referentes à
prática pedagógica e o ambiente escolar. Logo, precisamos
trabalhar junto aos segmentos a importância da participação
de todos nos processos de decisões da Escola no âmbito
administrativo, financeiro e pedagógico, conscientizando-
os que a Escola é de todos. Há de ocorrer momentos de
reflexão e esclarecimentos sobre as bases legais da Gestão
Democrática para que se tomem as decisões coletivamente.
Também podemos proporcionar e estimular espaços de
vivência democrática aos alunos como: Grêmio Estudantil,
participação efetiva no Conselho Escolar e nos Conselhos
de Classe participativos (Escola Municipal de Ensino
Fundamental Áurea Celi Barbosa, 2007, p. 13).

Diante da observância dessa necessidade, o projeto de interven-


ção começou a ser pensado por parte dos educadores representantes
do Conselho Escolar com a intenção de promover a discussão sobre a
importância de ocupação desses espaços pelos estudantes.
A escolha da participação dos estudantes nos espaços democráti-
cos e de tomada de decisões, para este estudo e intervenção, tem fun-
damentação nos documentos legais da escola e nos pilares da Gestão
Escolar Democrática, mas também no sentimento de indignação de
diversas pessoas da comunidade escolar que têm visto o Grêmio Es-

Gestão Democrática e participação cidadã:


implantação do Grêmio Estudantil como desafio da Gestão Democrática 69
tudantil ser pauta somente nas propostas de eleição de diretores. Nos
dois últimos pleitos, o Grêmio Estudantil figurou entre as “promessas”
de campanha, mas, encerrado o processo, muitos são os dificultadores
para que ele se concretize, inclusive a falta de espaço físico para que se
constitua. Isso denota a falta de entendimento sobre o Movimento Es-
tudantil, que é, como o próprio nome diz, movimento, pensamento, diá-
logo e sentimento de pertencimento. Mesmo que falte uma sede, todo o
espaço escolar é, por definição, dos educandos.
Ao pensar nos avanços e desafios da escola pública, cabe com-
preender que a educação precisa despertar a vontade política e o
espírito de participação e corresponsabilidade em seus educandos, ob-
jetivando a formação integral desses jovens.

Abordagem metodológica

Como a intenção deste estudo e intervenção é conseguir movi-


mentar a escola para a reflexão coletiva e fomentar a participação da
comunidade escolar, em especial dos educandos, a metodologia esco-
lhida para nortear este trabalho foi a pesquisa-ação. Nas palavras de
Thiollent (1986, p. 14):

Pesquisa-ação é um tipo de pesquisa social com base empí-


rica que é concebida e realizada em estreita associação com
uma ação ou com a resolução de um problema coletivo e no
qual os pesquisadores e os participantes representativos da
situação ou do problema estão envolvidos de modo coopera-
tivo ou participativo.

70 Paulo Henrique Caprio Silva | Maria Raquel Caetano


A pesquisa-ação é uma forma de investigação que prima pela
participação coletiva em todo o processo, desde o planejamento até a
execução da pesquisa. Ela valoriza as contribuições e construções de
conhecimento do coletivo: ao pesquisar e refletir sobre os problemas e
as alternativas de solução, produz conhecimento entre seus participan-
tes. Utilizando uma metodologia participativa e qualitativa, o pesquisa-
dor faz parte do processo e integra o coletivo, assim como os sujeitos
pesquisados. É um método da vivência democrática, em que todos têm
sua importância.
A pesquisa-ação tem por característica ser uma pesquisa-inter-
venção, mobilizando os participantes da comunidade pesquisada como
seres pensantes, capazes de realizar uma ação concreta e uma interven-
ção na realidade social pesquisada. Essa intervenção pretende trans-
formar a realidade social da escola de não participação dos educandos
nos processos de tomada de decisão, planejamento e avaliação institu-
cional. Tal realidade é encarada com certa normalidade por parte dos
sujeitos que a atribuem ao “sempre foi assim”, cuja estrutura preesta-
belecida inquieta parte dos educandos e educadores, que consideram
contraditória aos documentos legais a proposta progressista que se
busca. Essa mobilização tem a função política de empoderamento e de
fortalecimento da participação social crítica na tomada de consciência
e no exercício da ação democrática, cumprindo o papel social da escola.
Diante dessa problemática, inicialmente, pensou-se em propiciar
momentos de pesquisa, estudo e formação à comunidade escolar
com a intenção de reavivar o desejo de participação dos educandos e
de discutir o papel social da escola e a importância da participação de

Gestão Democrática e participação cidadã:


implantação do Grêmio Estudantil como desafio da Gestão Democrática 71
cada um, com vistas à ocupação dos espaços democráticos. Para isso,
objetivou-se a reorganização e retomada do Grêmio Estudantil.

No meio do caminho tinha uma pandemia

No início de 2020, a população mundial foi surpreendida com o


surgimento de um novo vírus, o coronavírus (covid-19). Identificada na
China, pelo Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC), como
um surto de doença respiratória em trabalhadores de um mercado
de alimentos, a covid-19 mostrou uma capacidade de disseminação e
virulência avassaladora e, desde então, atingiu mais de 150 países dos
cinco continentes.
O Ministério da Saúde, em 3 de fevereiro de 2020, por meio da
Portaria nº. 188, declarou emergência em Saúde Pública de importân-
cia nacional em decorrência da infecção humana pelo novo coronavírus
(Brasil, 2020c). Em 11 de março do mesmo ano, a Organização Mundial
da Saúde (2020) declarou que elevou o estado de contaminação do co-
ronavírus a nível de pandemia.
A Lei nº. 13.979, de 6 de fevereiro de 2020, considerou o isolamento
das pessoas contaminadas e a restrição de atividades ou a separação
de pessoas suspeitas de contaminação através da quarentena (Brasil,
2020a). Já a Portaria nº. 356, de 11 de março de 2020, do Ministério
da Saúde, regulamentou que a medida de quarentena seria determinada
mediante ato administrativo editado pelos órgãos de saúde em cada ní-
vel de gestão (Brasil, 2020b).

72 Paulo Henrique Caprio Silva | Maria Raquel Caetano


No município de Gravataí, por meio do Decreto nº. 1.779, de 16 de
março de 2020, iniciou o período de suspensão de aulas, garantindo as
medidas de prevenção e contenção da covid-19. Já no dia 12 de maio,
o Conselho Municipal de Educação lançou a Indicação nº. 1 de 2020,
na qual, entre outras orientações, autoriza-se a realização de aulas não
presenciais no município.
De 18 de março até o início de junho, as aulas foram completa-
mente suspensas no município. A partir da emissão da Indicação men-
cionada, a escola criou estratégias de atendimento remoto. Mesmo com
a ausência de proposta oficial da mantenedora ou de plataforma digital
adequada, a escola se estruturou para disponibilizar as atividades e rea-
lizar os atendimentos pedagógicos através de grupos de WhatsApp e
perfis nas redes sociais já existentes na escola, além da entrega presen-
cial de materiais pedagógicos para os estudantes sem acesso à internet.
É importante ressaltar que, em virtude do distanciamento social,
adotado como modo de enfrentamento à covid-19, o início desse
planejamento precisou excluir os principais sujeitos desse processo – os
educandos. Também fez com que fosse necessário buscar novas estra-
tégias para alcançá-los, uma vez que, para este estudo e intervenção,
sua participação era fundamental.
Diante dessa nova realidade vivenciada, fez-se indispensável re-
pensar os processos metodológicos e os objetivos possíveis de serem
realizados nesse momento, mas sem desistir do objetivo principal, para
quando fosse possível. Dessa forma, optou-se por investigar o conheci-
mento dos educandos sobre o tema de estudo e pensar ações futuras
para instrumentalizar esse coletivo para a construção do processo de

Gestão Democrática e participação cidadã:


implantação do Grêmio Estudantil como desafio da Gestão Democrática 73
retomada do Grêmio Estudantil, assim que fosse possível o retorno pre-
sencial com segurança.

Reorganização dos processos metodológicos

Constatada a impossibilidade de dar seguimento à proposta inicial


que se embasava na presencialidade, coube pensar uma estratégia para
acessar os educandos de forma a compreender um pouco seus conheci-
mentos prévios sobre o assunto abordado, sua disponibilidade, seu inte-
resse e sua vontade de discutir esse tema. Como a escola estabeleceu o
uso do WhatsApp como plataforma de comunicação pedagógica, pare-
ceu mais adequado pensar uma possibilidade de instrumento de coleta
de dados que fosse possível enviar às famílias pelo aplicativo.
Dessa maneira, foi construído e utilizado um formulário on-line.
Como público-alvo dessa ação, estabeleceu-se o envio do formulário
aos educandos do sexto ao nono ano do Ensino Fundamental. É impor-
tante ressaltar que o preenchimento foi por adesão e que o envio foi
realizado por meio dos grupos utilizados pedagogicamente. De um total
de aproximadamente 320 educandos atingidos nos grupos referentes a
esse recorte discente, obtiveram-se 65 respostas,5 uma amostragem de
aproximadamente 20 %.
Faz-se necessário ressaltar que se utilizou o termo aproximada-
mente pela oscilação de participantes nesses grupos, pois são diversas
as condições variáveis que se encontram nesse contexto tão recente
da educação, como o fato de que muitos dos participantes desses gru-

5 Os termos de consentimento para participar de pesquisa acadêmica encontram-se em posse dos


autores do artigo.

74 Paulo Henrique Caprio Silva | Maria Raquel Caetano


pos são os responsáveis pelos educandos, pois estes não dispõem de
aparelho compatível com a tecnologia, além de haver as questões da
capacidade dos aparelhos e do acesso à internet. Nessas condições,
considera-se razoável a amostragem obtida.

Produção e análise de dados a partir de formulário on-line

Para o levantamento de dados que integram a pesquisa, foi utili-


zado um formulário on-line e solicitado que os participantes o respon-
dessem. Os eixos e as questões propostas foram:

Quadro 1 – Eixos e questões propostas.

Eixo Questão
Identificação do
- Nome, idade e ano que está cursando.
estudante
- Tu já ouviste falar em Grêmio Estudantil?
Informações sobre
- O que tu entendes sobre Grêmio Estudantil?
o Grêmio Estudantil
- Na tua opinião, o que faz o Grêmio Estudantil?
- Qual é a função do Grêmio Estudantil dentro da
Função e impor- escola?
tância do Grêmio
Estudantil - Qual é a importância de a escola ter o Grêmio Estu-
dantil? Justifique tua resposta.
- O que tu entendes sobre representatividade?
Representatividade - Tu achas importante ser representado ou represen-
tar alguém?
- Quem são teus representantes na escola?

Gestão Democrática e participação cidadã:


implantação do Grêmio Estudantil como desafio da Gestão Democrática 75
- Tu gostarias que o Áurea Celi tivesse Grêmio Estu-
dantil?
- Estamos planejando realizar algumas discussões
de forma on-line sobre o Movimento Estudantil e o
Engajamento
Grêmio. Tu te interessarias em participar?
- Qual é o melhor horário para que tu possas parti-
cipar desse encontro virtual de discussões sobre o
Grêmio?
- Como tu percebes a escola para tua formação?
Justifique tua resposta.
Escola
- Quais são teus objetivos na escola? O que tu achas
que a educação pode fazer pela tua vida?

Fonte: Elaborado pelos autores.

A seguir, apresentam-se alguns dados obtidos, bem como se busca


analisá-los e contextualizá-los na realidade observada.

Gráfico 1 – Idade dos participantes.

Fonte: Elaborado pelos autores.

Legenda descritiva: Imagem retangular de fundo branco contendo gráfico de colunas horizontais em cor violeta. Apresenta
as idades de 10 a 19 anos ou mais, com maior incidência de respostas entre 12 e 14 anos.

76 Paulo Henrique Caprio Silva | Maria Raquel Caetano


Como pôde ser previsto, pelo recorte dado ao público da pesquisa,
a maior concentração de pesquisados se encontrava na faixa etária en-
tre 12 e 15 anos (Gráfico 1). Mas chama a atenção a existência de duas
respostas assinaladas na opção 19 anos ou mais. Ocorre que a escola
tem alunos de um período recente de sua história, quando era comum a
multirrepetência de alguns estudantes que “não conseguiam atingir os
objetivos”. Casos de alunos com quatro ou cinco reprovações na mesma
série eram tratados como um fracasso quase que exclusivo do aluno e
de sua família ou, ainda, como uma deficiência não diagnosticada. Nos
últimos anos, a escola vem revendo seus paradigmas pedagógicos e me-
todológicos para combater esse tipo de situação.

Gráfico 2 – Ano ou série de matrícula.

Fonte: Elaborado pelos autores.

Legenda descritiva: Imagem retangular de fundo branco contendo, no lado esquerdo, um gráfico circular dividido em
quatro percentuais desiguais nas cores laranja, verde, azul e vermelha. Na parte direita da imagem, há seis círculos
coloridos indicando as possibilidades de respostas.

No Gráfico 2, observa-se um dado importante para a sobrevivên-


cia e a continuidade deste estudo: a grande participação de alunos do
sexto ao oitavo ano (acima de 70 %). Isso denota que, teoricamente, es-

Gestão Democrática e participação cidadã:


implantação do Grêmio Estudantil como desafio da Gestão Democrática 77
ses alunos permanecerão na escola nos próximos anos, possibilitando a
continuidade das ações.
Em decorrência de toda a problemática trazida pela pandemia,
faz-se imperioso que este estudo e suas ações programadas para o
momento de distanciamento tenham reflexos em breve, quando for
possível voltar ao convívio escolar. Dessa forma, a intervenção se enca-
minha para um fomento desses jovens, ou seja, uma instrumentalização
necessária para que sejam os multiplicadores desse movimento desde
já, mas com vistas a um futuro no formato presencial.

Gráfico 3 – Tu já ouviste falar em Grêmio Estudantil?

Fonte: Elaborado pelos autores.

Legenda descritiva: Imagem retangular de fundo branco contendo, no lado esquerdo, um gráfico circular dividido em três
percentuais desiguais nas cores azul, laranja e vermelha. Na parte direita da imagem, há três círculos coloridos indicando as
possibilidades de respostas.

No Gráfico 3, avalia-se que o Grêmio Estudantil é uma ideia viva


para os estudantes que responderam à pesquisa. Isso porque, para uma
escola que, há pelo menos 10 anos, não vivencia o movimento estudantil
organizado, mais da metade dos estudantes pesquisados já ter ouvido
sobre o Grêmio Estudantil denota a força desse movimento. Também
há de se fazer justiça ao trabalho de alguns colegas professores que,

78 Paulo Henrique Caprio Silva | Maria Raquel Caetano


mesmo de forma isolada, vêm fomentando e instigando o assunto junto
aos estudantes. É importante ressaltar, também, o trabalho realizado
pela Orientação Educacional quanto à escolha de representantes de
turma e pelos professores conselheiros, que costumam abordar os con-
ceitos e as diferenças entre representatividade e liderança, bem como o
Grêmio Estudantil e o Conselho Escolar.

Gráfico 4 – Qual é a função do Grêmio Estudantil dentro da escola?

Fonte: Elaborado pelos autores.

Legenda descritiva: Imagem retangular de fundo branco contendo gráfico de colunas horizontais em cor violeta.

No levantamento trazido no Gráfico 4, é possível verificar que a


maioria dos estudantes pesquisados compreende o conceito principal
de função do Grêmio Estudantil, pois mais de 92 % dos pesquisados
responderam que a função do GE é representar os alunos. Ainda é pos-
sível observar que obtiveram grande marcação as opções “reivindicar
junto à direção melhorias” e “promover campeonatos, feiras e temas”,
por exemplo.

Gestão Democrática e participação cidadã:


implantação do Grêmio Estudantil como desafio da Gestão Democrática 79
Essa compreensão das funções do Grêmio Estudantil por parte
dos estudantes pesquisados também pode ser observada nas ques-
tões propostas de forma aberta, quando eles puderam responder de
maneira livre.

Gráfico 5 – Qual é a importância de a escola ter o Grêmio Estudantil?

Fonte: Elaborado pelos autores.

Legenda descritiva: Imagem retangular de fundo branco contendo, no lado esquerdo, um gráfico circular dividido em
quatro percentuais desiguais nas cores vermelha, azul, laranja e verde. Na parte direita da imagem, há quatro círculos
coloridos indicando as possibilidades de respostas.

É interessante observar no Gráfico 5 que, mesmo a escola não


tendo um Grêmio Estudantil há muito tempo, a maioria dos estudantes
(96,9 %) acredita que ela ter um GE é muito importante. Da mesma
forma, no Gráfico 6, fica mais clara a vontade dos estudantes pesqui-
sados que a escola tenha GE, quando 83,1 % se mostraram favoráveis à
retomada do GE e nenhum estudante se mostrou contrário.
Aproveita-se para trazer, neste ponto, algumas falas retiradas da
pesquisa que são entendidas como importantes para a amostragem do
pensamento desse público, uma vez que não se pode avançar nas de-
mais estratégias. Quando perguntado sobre a importância do GE, o es-

80 Paulo Henrique Caprio Silva | Maria Raquel Caetano


tudante D.G.G., de 14 anos, cursando o 8º ano, respondeu: “O Grêmio
Estudantil é importante, representa a voz dos alunos, mas nossa escola
tem funcionado por todo esse tempo sem um Grêmio Estudantil”. Já o
estudante M.E.N., também de 14 anos e cursando o 8º ano, respondeu:
“Eu acho muito importante ter um grêmio estudantil, já que eles vão
representar o que os alunos pensam”. Ainda, a estudante R.G.C., de 15
anos, cursando o 9º ano, respondeu:

O GE é bem importante sim, até mesmo para o melhor desen-


volvimento dos alunos, perderem essa timidez que muitos
têm e aprender a “trabalhar” em conjunto, e também é claro,
passar mais horas com a cabeça cheia pensando em coisas
para a escola, e não ficar com a cabeça vazia sem exercitar.

Pode-se afirmar que essa foi uma tônica das respostas ao longo do
levantamento. Salta aos olhos o fato de os estudantes demonstrarem o
sentimento de não serem escutados.

Gráfico 6 – Tu gostarias que o Áurea Celi tivesse Grêmio Estudantil?

Fonte: Elaborado pelos autores.

Legenda descritiva: Imagem retangular de fundo branco contendo, no lado esquerdo, um gráfico circular dividido em três
percentuais desiguais nas cores vermelha, azul e verde. Na parte direita da imagem, há quatro círculos coloridos indicando
as possibilidades de respostas.

Gestão Democrática e participação cidadã:


implantação do Grêmio Estudantil como desafio da Gestão Democrática 81
Gráfico 7 – Tu achas importante ser representado ou representar alguém?

Fonte: Elaborado pelos autores.

Legenda descritiva: Imagem retangular de fundo branco contendo, no lado esquerdo, um gráfico circular dividido em três
percentuais desiguais nas cores azul, laranja e vermelha. Na parte direita da imagem, há três círculos coloridos indicando as
possibilidades de respostas.

No Gráfico 7, verifica-se que apenas 67,7 % dos entrevistados acham


importante ser representados ou representar alguém, enquanto 30,8 %
disseram ser indiferentes. Esses dados dialogam com o fato percebido
na questão que pergunta se o pesquisado sabe quem são seus represen-
tantes, à qual grande parte não soube responder. Acredita-se que esse
fato tenha algumas razões importantes que ajudaram a fundamentar
este estudo, por exemplo, o esvaziamento do segmento de estudantes
no Conselho Escolar. Mas outro fato precisa ser levantado: a impossibi-
lidade de escolha dos representantes de turma nesse ano.
Na análise sobre representação, apresenta-se a fala da estudante
F.S.A, de 12 anos, cursando o 6º ano, que, mesmo mais nova que os es-
tudantes citados anteriormente, traz um posicionamento organizado e
estruturado para sua faixa etária.

82 Paulo Henrique Caprio Silva | Maria Raquel Caetano


O Grêmio Estudantil é importante porque ele dá voz ao es-
tudante e tem às vezes que o estudante, por exemplo, ele
tem vergonha de falar o que tá [sic] precisando melhorar no
colégio, e o GE vai poder falar. O estudante não vai precisar
ficar com vergonha porque é para o próprio estudante que
ele vai falar, não é para diretora, para uma pessoa assim com
mais autoridade, e o GE vai poder falar com vocês sobre isso,
então acho que isso que faz o GE ser importante. A represen-
tação, por exemplo, eu não tenho só que me representar, mas
eu tenho que representar um monte de gente, e a gente tem
que tomar um cuidado para a gente não dar voz só para nossa
opinião, mas à dos outros também, então acho que é isso que
a representação significa. Eu não sei se tenho representante
na escola e eu acho que eu também ficaria feliz com qualquer
pessoa, qualquer aluno que fosse representar o grêmio estu-
dantil. Eu respondi que a escola é boa porque eu acho que tem
que melhorar um pouco em várias questões, e seria bom ter
grêmio estudantil para a gente discutir um pouco sobre isso.

Nesse registro, a estudante relata com suas palavras o que com-


preende por representação e por coletividade. Isso demonstra a
fragilidade da reivindicação individual frente à hierarquia posta, perce-
bendo-se a necessidade de discussão e reivindicação por parte de seu
segmento quanto às questões que lhe parecem inadequadas ou que ne-
cessitam de intervenção.

Gestão Democrática e participação cidadã:


implantação do Grêmio Estudantil como desafio da Gestão Democrática 83
Gráfico 8 – Como tu percebes a escola para tua formação?

Fonte: Elaborado pelos autores.

Legenda descritiva: Imagem retangular de fundo branco contendo, no lado esquerdo, um gráfico circular dividido em
cinco percentuais desiguais nas cores azul, laranja, vermelha, violeta e verde. Na parte direita da imagem, há cinco círculos
coloridos indicando as possibilidades de respostas.

É interessante analisar que mais de 85 % dos alunos pesquisados


consideram a escola boa, muito boa ou excelente para a sua formação.
Mesmo tendo críticas em relação a alguns aspectos, a maioria dos alu-
nos pesquisados mantém a escola bem-conceituada na sua avaliação.
Isso denota a abertura que existe para avançar junto aos educandos,
pois nessa questão há a presença da afetividade deles para com a escola,
não como espaço ou prédio, mas como um organismo vivo, pulsante, de
aprendizagens e vivências.

ANALISANDO OS DADOS

Um fato a ser observado e ponderado quando se analisam os dados


da pesquisa a partir dos eixos propostos é a participação dos estudantes
dos anos finais do Ensino Fundamental. Esse dado é importante porque

84 Paulo Henrique Caprio Silva | Maria Raquel Caetano


traz consigo o estágio de desenvolvimento desses jovens, tornando o
estudo especialmente interessante do ponto de vista democrático, uma
vez que as reflexões e vivências acerca do tema podem ser significativas
para o sujeito que está se formando.
É importante considerar que a retomada do Grêmio Estudantil não
se constitui em algo pontual ou isolado, visto que objetiva o retorno e,
por conseguinte, a continuidade do Movimento Estudantil organizado
dentro da instituição analisada. Acreditamos que, uma vez retomado
esse espaço, os jovens se reconhecerão como protagonistas, como par-
ticipantes, como corresponsáveis pela escola e interessados diretos na
continuidade do GE.
A pesquisa possibilitou observar que muitos jovens não conse-
guem se reconhecer como importantes agentes desse espaço e desse
fazer pedagógico, visto que demonstraram dificuldades em reconhecer
seus representantes, pois muitos apontaram a direção ou os profes-
sores nesse papel. Diante disso, cabe refletir sobre o quanto a escola
consegue estimular a participação dos estudantes, quanto se valoriza e
estimula sua voz e quanto se permite que os estudantes questionem ou
contribuam com as práticas que estão postas.
Mesmo com todas as dificuldades enfrentadas no ano de 2020,
considera-se que o fato de se conseguir reavivar o assunto do Grêmio
Estudantil entre os estudantes já é um avanço muito importante. Fo-
mentar esse querer saber mais e essa vontade de conversar sobre o as-
sunto é manter essa ideia viva nos corações e nas mentes desses jovens.
Assim, as estratégias de continuidade deste estudo precisam per-
durar. Mesmo sendo posteriores à escrita deste artigo, essas ações vão
embasar a instrumentalização desse grupo de estudantes para que

Gestão Democrática e participação cidadã:


implantação do Grêmio Estudantil como desafio da Gestão Democrática 85
tenham condições de colocar as ideias em prática quando do retorno
presencial. Como ações possíveis que podem cumprir esse objetivo,
deve-se manter a continuidade do contato com os estudantes sobre
o tema, por meio da oferta de materiais por aplicativo de mensagens,
como vídeos e infográficos, mapas mentais e pequenos textos, para que
embasem as discussões entre os estudantes e educadores participantes
desse grupo de discussões. É imprescindível despertar nos estudantes a
noção da importância de cada um nesse processo e também da organi-
zação do movimento para que atinja seus objetivos.
Além disso, é fundamental trabalhar a importância da comissão
eleitoral e agregar mais pessoas interessadas em auxiliar, principal-
mente do segmento de pais e responsáveis, bem como dos funcionários
da escola, para envolver os demais segmentos e dar respaldo às ações
dos estudantes. Acredita-se que envolver os demais segmentos nesse
momento pode criar um sentimento de corresponsabilidade pelo
movimento dos estudantes, auxiliando na continuidade e na manuten-
ção desse importante espaço democrático. Porém, é importante ter
clareza de que esse envolvimento precisa necessariamente respeitar a
autonomia da instituição GE. Esse envolvimento pensado diz respeito
ao necessário diálogo entre as instâncias e os segmentos de uma insti-
tuição maior, que é a escola, mas cada um precisa ter seu espaço e res-
peitar os demais.
Como um dos desdobramentos proporcionados pela pesquisa, po-
dem-se trazer os planejamentos de atividades não presenciais do mês
de outubro, quando o tema escolhido foi Direitos Humanos, com a par-
ticipação, especificamente, dos oitavos anos na área das linguagens. Na
ocasião, foram estimuladas atividades diretamente ligadas ao tema do
Grêmio Estudantil e à participação dos estudantes. Dessa maneira, afir-
ma-se que a pesquisa também cumpriu seu objetivo de movimentar a
escola no sentido de discutir o tema e problematizar o fato de não ter o
GE em funcionamento, embora seja visível o interesse dos estudantes.
Outra fala que chama a atenção nas pesquisas devolvidas pelos es-
tudantes é a de que eles não se sentem escutados na escola. Essa é uma
fala muito presente nessa amostragem e carrega consigo um peso muito
grande para que se possa fazer uma autocrítica das práticas. A escola
precisa ser bem mais que um espaço aonde os educandos vão para rece-
ber conteúdo – é preciso ressignificar a escola para que ela consiga dia-
logar com essa geração que se apresenta, e não mais apenas discursar.
Para ilustrar a perspectiva do espaço de convivência e de pertenci-
mento do educando, compartilha-se a fala do estudante V.E.S.R., de 11
anos, que cursa o 6º ano:

Se grêmio estudantil for isso mesmo que estou pensando,


será ótimo pra ajudar o aluno a querer estar na escola. Os alu-
nos fazem a proposta chegando num consenso, e a pessoa es-
colhida para representante leva para a direção. O aluno deve
sentir desejo de estar na escola. Às vezes, os professores só
passam aqueles textos gigantes para ser copiados no cader-
no, e isso se torna muito cansativo. Tem professores que che-
gam gritando na sala de aula, e o cara sente medo de tirar al-
guma dúvida. Na verdade, eu não gosto mais de estudar. Mas
meus pais me obrigam, principalmente minha mãe. Ela diz que
lá na frente eu vou agradecer por ter me cobrado isso, mas daí
mesmo que eu fico bravo. Gosto só de Educação Física.

87
A fala do estudante mostra que algo precisa ser feito. A reflexão é
importantíssima, mas a ação é urgente. Uma ação ordenada e pensada.
Esse recorte, longe de qualquer intenção de culpabilizar os docentes,
demonstra o quanto o diálogo está comprometido nesse ambiente e o
quanto algumas vezes a escola perde a capacidade de escuta e de empa-
tia. Precisa-se devolver a voz aos estudantes sob o risco de se ter uma so-
ciedade muda em um futuro próximo. E o GE pode ser esse lugar de fala,
de voz, de pensar, de conviver e de criar, um espaço de pertencimento e
de acolhida, que confira um novo sentimento aos estudantes sem voz.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao término deste artigo, que apresentou parte do processo de


intervenção na escola, pode-se dizer que os objetivos traçados para a
retomada do Grêmio Estudantil transcendem em muito este estudo. É
possível afirmar que ele acabou por se constituir em um ponto de par-
tida para os ideais de democratização e participação na escola pública
pesquisada, e não mais em um ponto de chegada.
A pesquisa proporcionou reflexões e questionamentos importan-
tes para compreender o fenômeno do esvaziamento dos espaços demo-
cráticos e traçar ações possíveis para esse período de distanciamento
social. Além disso, permitiu pensar estratégias de ações para quando a
escola puder receber sua comunidade novamente.
Pode ser observado, nas respostas obtidas, o sentimento de des-
crédito com os processos democráticos, difundidos na sociedade como
senso comum nos últimos tempos e que servem aos modelos de governo

88
centralizadores que passam longe dos objetivos e ideais almejados
neste estudo. E isso faz refletir sobre quanto da falta de participação da
comunidade perpassa a estrutura vertical da escola, o modelo centrali-
zador de tomada de decisões e a relação vertical da mantenedora com
a escola e a comunidade.
Por vezes, a gestão local parece se esquecer de que está a serviço
de sua comunidade escolar e acaba por responder somente ao pressu-
posto hierárquico (mantenedora, direção, professores, funcionários,
responsáveis e, por último, estudantes). Acredita-se que é premissa da
Gestão Escolar Democrática pensar a escola em seu contexto comuni-
tário. A escola não pode ser um organismo à parte da comunidade em
que está inserida; é preciso conhecer as potencialidades e as problemá-
ticas desse espaço comunitário para poder pensar estratégias de ação
pedagógica que visem problematizar e propor intervenções para além
da escola. Essa é a função social da escola.
Da mesma forma, não há como analisar as problemáticas existen-
tes sem contextualizá-las e confrontá-las com as ações políticas nesse
espaço. Não há espaço para o posicionamento apolítico na Educação.
Paulo Freire (2015) já dizia que toda educação é política.
Conclui-se este artigo afirmando que adotar a Gestão Democrática
é possibilitar situações das quais a comunidade escolar participe efeti-
vamente, oferecendo contribuições significativas tanto ao processo de
formação dos alunos quanto às melhorias para a escola, implicando, as-
sim, a participação de todos os sujeitos envolvidos no processo educa-
tivo. Dessa forma, a gestão escolar deixa de ser centralizadora e passa
a ser percebida sob um aspecto solidário e integrador. É nesse sentido

89
que Cury (2002, p. 21-22) afirma que “a Gestão Democrática é a gestão
da administração concreta”.

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92
3
A implementação
da Associação de
Pais e Servidores
como princípio da
Gestão Democrática
no IFRS campus
Ibirubá

Sandra Rejane Zorzo Peringer1


Josiane Carolina Soares Ramos Procasko2

1 Mestre em Engenharia da Produção pela Universidade Federal de Santa


Maria. Especialista e Graduada em Matemática pela Universidade Regional
Integrada do Alto Uruguai e das Missões de Santo Ângelo. Professora do
Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Sul
campus Ibirubá.
E-mail: sandra.peringer@ibiruba.ifrs.edu.br

2 Doutora e Mestre em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande


do Sul. Professora do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do
Rio Grande do Sul campus Porto Alegre.
E-mail: josiane.ramos@poa.ifrs.edu.br
INTRODUÇÃO

Este artigo é parte de um Trabalho de Conclusão de Curso que


prevê a elaboração de um Projeto de Intervenção a ser desenvolvido no
Curso de Especialização em Gestão da Educação, na modalidade a dis-
tância, da Secretaria de Educação a Distância da Universidade Federal
do Rio Grande do Sul (UFRGS). A proposta tem como objetivo subsidiar
a implementação de uma Associação de Pais e Servidores no Instituto
Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Sul (IFRS)
campus Ibirubá e como desafio da Gestão Democrática, proporcionar a
integração e a participação de todos os sujeitos de forma mais efetiva e
direta nos processos educacionais, contribuindo para a democratização
e a qualidade do ensino.
A Lei nº. 11.892, de 29 de dezembro de 2008, institui a Rede Fe-
deral de Educação Profissional, Científica e Tecnológica (RFEPT) e cria
os Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia (Brasil, 2008).
Atualmente, são 644 unidades organizadas em 38 Institutos Federais
(IFs). Os IFs3 são instituições pluricurriculares e multicampi4 e apresen-
tam uma particularidade: a verticalização do ensino, ou seja, no mesmo
campus são ofertadas Educação Básica, Educação Superior e Pós-

3 Os Institutos Federais têm como fundamentos estruturantes a verticalidade, a transversalidade


e a territorialidade. Possuem como princípio educativo a formação humana integral, o trabalho
enquanto princípio educativo, a prática social como fonte de conhecimento e a indissociabilidade
entre todas as dimensões do processo educativo: ensino, pesquisa e extensão (Brasil, 2008).

4 Reitoria, campus, campus avançado, polos de inovação e polos de educação a distância especiali-
zados na oferta de educação profissional e tecnológica (EPT) em todos os seus níveis e formas de
articulação com os demais níveis e modalidades da Educação Nacional ofertam os diferentes tipos
de cursos de EPT, além de licenciaturas, bacharelados e pós-graduação stricto sensu.

94 Sandra Rejane Zorzo Peringer | Josiane Carolina Soares Ramos Procasko


graduação, permitindo que os docentes atuem em diferentes níveis e
modalidades de ensino e possibilitando aos estudantes usufruírem da
mesma estrutura educacional para o desenvolvimento do seu processo
de ensino e aprendizagem, focada na formação onilateral da pessoa,
unindo ensino, pesquisa e extensão.
O IFRS pertence à Rede Federal e é uma autarquia federal
vinculada ao Ministério da Educação (MEC). Atualmente, possui 17
campi5 em 16 municípios do Rio Grande do Sul, os quais são definidos
na forma da lei, no Estatuto e Regimento Geral do IFRS. A organização,
as competências e o funcionamento das instâncias deliberativas,
consultivas, administrativas e acadêmicas, que complementam as
disposições estatutárias e regimentais do IFRS, estão previstas no
Regimento dos campi e no Regimento complementar.
O campus Ibirubá está localizado no município de Ibirubá6 e iniciou
sua trajetória a partir da caminhada da Escola Técnica Alto Jacuí (ETAJ).
Em 1989, foi criada a Escola Municipal Agrícola, com pré-qualificação
em Agropecuária. Em 1995, foi implantado pela Prefeitura Municipal
de Ibirubá o Ensino Médio e Técnico em Agropecuária, que cessou suas
atividades em 2002, com a inauguração da ETAJ. Os cursos iniciaram
oficialmente em 2003, e foram contempladas as áreas de Agropecuária,
Indústria, Gestão e Informática. Em 6 de julho de 2006, a partir da federa-
lização da ETAJ, foi criado o campus avançado Ibirubá, e em 30 de novem-

5 As unidades do IFRS são: campus Alvorada, campus Bento Gonçalves, campus Canoas, campus
Caxias do Sul, campus Erechim, campus Farroupilha, campus Feliz, campus Ibirubá, campus Osório,
campus Porto Alegre, campus Restinga (Porto Alegre), campus Rio Grande, campus Rolante, campus
Sertão, campus Vacaria, campus Veranópolis e campus Viamão. A Reitoria está localizada no muni-
cípio de Bento Gonçalves (Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do
Sul, 2020).

6 Ibirubá fica a noroeste do Rio Grande do Sul, está localizado na Região do Alto do Jacuí e perten-
ce à microrregião de Cruz Alta e à mesorregião do noroeste rio-grandense.

A implementação da Associação de Pais e Servidores


como princípio da Gestão Democrática no IFRS campus Ibirubá 95
bro de 2009, foi implementado o núcleo avançado do Instituto Federal
de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Sul, que assumiu
efetivamente suas atividades letivas em 2010. Em 24 de abril de 2013, foi
publicada no Diário Oficial da União a portaria do IFRS campus Ibirubá.
Atualmente, o campus Ibirubá oferece os seguintes cursos:

• ensino técnico integrado ao Ensino Médio: Agropecuária,


Informática e Mecânica;

• ensino técnico subsequente ao Ensino Médio: Eletrotécnica e


Mecânica;

• cursos superiores: Licenciatura em Matemática, Agronomia,


Engenharia Mecânica e Ciência da Computação;

• pós-graduação: Especialização em Ensino, Linguagens e


suas Tecnologias; e o curso EaD – Audiovisuais: Arte, Técnica e
Linguagem.

O campus Ibirubá conta com 70 docentes efetivos, 53 técnicos


administrativos, 23 colaboradores terceirizados e mais de 1.000 estu-
dantes matriculados. Os cursos ofertados visam atender as diferentes
realidades sociais, culturais e produtivas, locais e regionais.
O IFRS tem nos princípios da Gestão Democrática7 as bases para a
sua organização e funcionamento. A instituição sempre teve como meta
buscar maneiras de otimizar sua estrutura administrativa, pautada na

7 A gestão democrática no IFRS está garantida nas políticas institucionais, como a Política Ins-
titucional para os Cursos de Ensino Médio Integrado do Instituto Federal do Rio Grande do Sul,
aprovada pela Resolução nº. 55, de 25 de julho de 2019, mencionando a importância de “garantir
nos campi a institucionalização de tempos e espaços de encontros entre os professores e equipe
pedagógica que favoreçam a construção de metodologias integradoras”, envolvendo todos os su-
jeitos, protagonistas no processo de ensino e aprendizagem, com planejamento coletivo: profes-
sores das diversas áreas, equipe pedagógica e estudantes (Instituto Federal de Educação, Ciência
e Tecnologia do Rio Grande do Sul, 2019, p. 11).

96 Sandra Rejane Zorzo Peringer | Josiane Carolina Soares Ramos Procasko


participação e no envolvimento do maior número de sujeitos nos pro-
cessos decisórios, no respeito às deliberações tomadas em coletivo, no
reconhecimento dos órgãos colegiados como instâncias privilegiadas de
consulta e deliberação, na liberdade de expressar opiniões e no senti-
mento de responsabilidade coletiva em relação aos assuntos institucio-
nais (Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande
do Sul, 2018).
Dessa forma, justifica-se a prática de intervenção no sentido de
proporcionar espaço para a participação de todos os sujeitos envolvidos
nos processos educacionais do IFRS campus Ibirubá como forma de le-
gitimação dos processos educativos e da própria Gestão Democrática.
Observa-se a participação dos docentes, dos técnicos administrativos
e dos discentes nas diferentes comissões, colegiados de curso, Conse-
lho de campus, Diretórios Acadêmicos, Grêmio Estudantil, Coletivo das
Ovelhas Negras,8 Comissão Própria de Avaliação e demais comitês pre-
vistos nos documentos institucionais. Porém os documentos norteado-
res não preveem a participação dos pais e/ou responsáveis; portanto,
a implementação de uma Associação de Pais e Servidores (Apas) pos-
sibilitaria o envolvimento com os trabalhos da escola e a interação de
pais, professores e técnicos administrativos ao integrar a escola à co-
munidade, assim como a comunidade a ela, contribuindo para melhorar
a qualidade do ensino.

8 O Coletivo da Ovelhas Negras é um grupo formado por estudantes do Ensino Médio Integrado
e servidoras do campus Ibirubá. As ações do Coletivo envolvem discussões com as temáticas de
gênero, feminismo e diversidade sexual que são promovidas por meio de reuniões, rodas de con-
versa e participação em eventos.

A implementação da Associação de Pais e Servidores


como princípio da Gestão Democrática no IFRS campus Ibirubá 97
A associação que se pretende constituir não é de participação
meramente executória, como as Unidades Executoras (Uex), utilizadas
para designar as entidades de direito privado, sem fins lucrativos,
vinculadas à escola com o objetivo de receber e gerir os recursos
financeiros transferidos para o funcionamento das instituições. No
ano de 2017, o coordenador de Desenvolvimento Institucional e a
Direção de Ensino convidaram os pais e responsáveis pelos estudantes
dos Cursos Técnicos Integrados ao Ensino Médio para participarem de
uma reunião com o objetivo de propor a criação de uma Associação de
Pais e Servidores (Apas) e ouvir deles se consideravam importante a
sua implementação no campus Ibirubá. A proposta, na época, não teve
continuidade.
Tendo em vista que a comunidade acadêmica tem questionado e
apontado como importante a participação desses sujeitos na escola, a
atual gestão, ao visar o fortalecimento da Gestão Democrática e buscar
promover maior integração da comunidade escolar, atuando de forma
mais efetiva e direta nos processos educacionais, apresenta como pro-
posta a implementação de uma Apas.
A partir da explanação inicial, e para melhor entendimento e orga-
nização deste artigo, optou-se por dividi-lo da seguinte forma: inicial-
mente, apresenta-se a metodologia utilizada para o desenvolvimento;
na sequência, evidencia-se um tipo de levantamento inspirado na abor-
dagem de construção de estado do conhecimento sobre o tema de pes-
quisa; e, por fim, são expostos os resultados e as considerações finais.
A metodologia utilizada para a realização deste trabalho foi a pesqui-
sa-ação, em sua essência, alinhada à pesquisa bibliográfica e à pesquisa
documental. Buscou-se um aporte especialmente nas contribuições de

98 Sandra Rejane Zorzo Peringer | Josiane Carolina Soares Ramos Procasko


autores como Vitor Henrique Paro (2016), Heloisa Lück (2017) e Eliezer
Pacheco (2011), que abordam a Gestão Democrática da escola pública,
bem como nos trabalhos de Danilo Gandin (2008), que concebe o pla-
nejamento participativo como ferramenta para intervir na realidade e,
assim, garantir a oferta educacional com qualidade.
Ao partir do princípio de que o foco deste trabalho é a participação
dos pais na instituição de ensino campus Ibirubá, faz-se necessário falar
da Gestão Democrática. Inicialmente, aborda-se o princípio de Gestão
Democrática como marco importante na legislação do país, assegurada
na legislação vigente como um dos princípios orientadores das políticas
de educação brasileira, definida na Constituição Federal (Brasil, 2016),
referendada na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – Lei nº.
9.394/96 (Brasil, 1996) e reafirmada no Plano Nacional de Educação –
Lei nº. 13.005/14 (Brasil, 2014). A concepção de Gestão Democrática
que utilizamos é embasada nos entendimentos de Paro (2016) e consi-
dera que, quando todos os sujeitos (docentes, técnicos administrativos,
alunos e pais) participarem das decisões sobre seus objetivos e seu fun-
cionamento, haverá força para pressionar o Estado a prover a escola de
autonomia e de recursos. Nesse contexto, a escola precisa se organizar
democraticamente com vistas a alcançar objetivos transformadores.
Conforme Lück (2017, p. 63), a “participação é um princípio a per-
mear todos os segmentos, espaços e momentos da vida escolar e dos
processos do sistema de ensino, de acordo com os postulados demo-
cráticos, orientadores da construção conjunta”. Nesse sentido, as Apas
são espaços privilegiados de construção dessa participação coletiva,
pois representam uma oportunidade de levar as famílias para dentro da
escola e de aproximá-las e envolvê-las nos processos de ensino e apren-

A implementação da Associação de Pais e Servidores


como princípio da Gestão Democrática no IFRS campus Ibirubá 99
dizagem. Para o campus Ibirubá, a implementação de uma Apas possibi-
litaria a participação do segmento de pais, que não está regulamentado
nos documentos e nas políticas institucionais.
Pacheco (2011, p. 9) afirma que a instituição de ensino, seja do nível
que for, “é parte da comunidade e, na maioria dos casos, o único espaço
de integração e organização, portanto, deve estar permanentemente
aberta à comunidade”. Desse modo, é preciso definir o “protagonismo
daqueles que fazem educação em cada instituição de ensino e na socie-
dade como um todo” (Pacheco, 2011, p. 10). Nesse contexto, o gestor
tem o papel fundamental de promover e sustentar um ambiente propí-
cio à participação plena, tanto de seus profissionais como de alunos e
pais, mediante um trabalho de articulação e desenvolvimento de habili-
dades e atitudes de participação (Lück, 2017).

DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA
Metodologia

Partindo do pressuposto de que a Gestão Democrática implica um


processo de participação coletiva, pode-se afirmar que é um trabalho
associado, de pessoas que analisam situações e decidem sobre o seu
encaminhamento. Esse encaminhamento gera o agir de forma conjunta,
utilizando uma ferramenta chamada Planejamento Participativo, que
pode ser usada para organizar os processos de intervenção na realidade
no sentido de contribuir para a construção de pessoas e das estruturas
sociais (Gandin, 2001).

100 Sandra Rejane Zorzo Peringer | Josiane Carolina Soares Ramos Procasko
A metodologia proposta foi desenvolvida com base na pesquisa-a-
ção (Thiollent, 1986), na pesquisa bibliográfica (Markoni; Lakatos, 2010)
e na documental (Gil, 2017). Para a pesquisa bibliográfica, foram utili-
zados autores como Eliezer Pacheco (2011), Heloísa Lück (2017), Vitor
Paro (2016), Danilo Gandin (2001), entre outros que abordam a Gestão
Democrática da educação e a participação de todos os sujeitos envolvi-
dos nos processos educacionais. Outra fonte utilizada, além de disser-
tações, teses e artigos publicados nos últimos quatro anos (2016-2020)
relacionadas ao objeto de estudo desta pesquisa, foi a participação de
pais articulada por meio de uma Associação de Pais e Servidores. Reali-
zou-se a busca no portal de periódicos da Coordenação de Aperfeiçoa-
mento de Pessoal de Nível Superior (Capes) e no Repositório Digital da
UFRGS (Lume), nos meses de julho e agosto de 2020.
Thiollent (1986) afirma que a pesquisa-ação está associada a diver-
sas formas de ação coletiva, que é orientada em função da resolução de
problemas ou de objetivos de transformação, além da participação, e su-
põe uma forma de ação planejada de caráter social, educacional, técnico
ou outro. De acordo com Richardson (2004, p. 153), na pesquisa-ação,

Definido o problema, o grupo discute o planejamento da


ação, analisando diversas possibilidades de ações que con-
tribuam à solução do problema. [...] o papel fundamental do
pesquisador ou da equipe de pesquisa é ajudar ao grupo no
processo de pensar, agir, refletir e avaliar.

Para Marconi e Lakatos (2010, p. 166), “a pesquisa bibliográfica, ou


fontes secundárias, abrange toda bibliografia já tornada pública em re-
lação ao tema de estudo, desde publicações, boletins, jornais, revistas,

A implementação da Associação de Pais e Servidores


como princípio da Gestão Democrática no IFRS campus Ibirubá 101
livros, pesquisas, teses etc.”. O seu objetivo é permitir que tudo o que foi
escrito, dito ou filmado sobre determinado assunto possa ser acessado
pelo pesquisador.
A pesquisa documental, segundo Marconi e Lakatos (2010, p. 157),
tem como característica o fato de que “a fonte de coleta de dados está
restrita a documentos, escritos ou não, constituindo o que se denomina
de fontes primárias”. Por sua vez, Fonseca (2002 apud Gerhardt; Silveira,
2009, p. 37) define pesquisa documental como a que “recorre a fontes
mais diversificadas e dispersas, sem tratamento analítico, tais como: re-
latórios, documentos oficiais, cartas, filmes, fotografias, pinturas, tape-
çarias, relatórios de empresas, vídeos etc.”. De forma a complementar
esse entendimento, Gil (2017, p. 30) afirma que a “pesquisa documental
é muito parecida com a bibliográfica [e que] a diferença está na natureza
das fontes, [justamente por valer-se de] materiais que não receberam
ainda um tratamento analítico”.
No sentido de buscar descritores para um primeiro levantamento
da pesquisa bibliográfica, foram utilizados Institutos Federais, Associa-
ção de Pais e Estudantes, Gestão Democrática e participação de pais
e responsáveis, tendo como recorte os critérios de busca de títulos e
palavras-chave, dentro do Banco de Teses e Dissertações da Capes e
no Repositório Digital da UFRGS (Lume). Para a análise documental, foi
realizada uma busca nas legislações educacionais e em seus respectivos
documentos normativos, além do Regulamento de Associações de Pais
nos Institutos Federais e documentos institucionais do Instituto Federal
do Rio Grande do Sul (IFRS), como o Projeto Político-Pedagógico (PPP) e
o Plano de Desenvolvimento Institucional (PDI). Na sequência, também
foi efetuada uma busca no Regimento Interno Complementar dos 17

102 Sandra Rejane Zorzo Peringer | Josiane Carolina Soares Ramos Procasko
campi do IFRS para verificação de quais possuem associação prevista na
estrutura organizacional, visando contribuir para a proposta de imple-
mentação de uma associação na perspectiva da participação efetiva dos
pais na definição dos processos pedagógicos, diferente da perspectiva
tradicional de uma Unidade Executora.

A participação dos pais e a Gestão Democrática da


educação

Os referenciais aqui apresentados foram selecionados com base


em uma concepção de gestão escolar democrática, e alguns dos autores
que embasam este artigo compõem o referencial disponibilizado para
leituras e reflexões ao longo do curso. Autores como Danilo Gandin
(2008), Eliezer Pacheco (2010), Heloísa Lück (2017) e Vitor Paro (2016)
constituem a base teórica deste estudo e foram selecionados a partir de
uma concepção de Gestão Democrática e participativa. Em tempos de
transformações na sociedade brasileira, educadores e movimentos so-
ciais organizados em defesa de um projeto de educação pública de qua-
lidade social e da democratização nas concepções de gestão escolar se
intensificaram a partir da década de 1980, resultando na aprovação do
princípio de Gestão Democrática na educação por meio da Constitui-
ção Federal de 1988, artigo 206, inciso VI, “Gestão Democrática do en-
sino público, na forma da lei” (Brasil, 2016), que representou um grande
avanço frente a um sistema de ensino historicamente excludente, eli-
tista e autoritário.

A implementação da Associação de Pais e Servidores


como princípio da Gestão Democrática no IFRS campus Ibirubá 103
Para que esse princípio se efetive, as instituições de ensino, no seu
cotidiano escolar, precisam passar por uma mudança de paradigmas.
Nessa concepção, Lück (2017, p. 57) define a Gestão Democrática como
o “processo em que se criam condições para que os membros de uma
coletividade não apenas tomem parte de suas decisões mais importan-
tes, mas assumam responsabilidades por sua implementação”. A Gestão
Democrática representa um marco importante na legislação do país e
é parte do projeto de construção da democratização da sociedade bra-
sileira. Ela foi definida na Constituição Federal de 1988 como um dos
princípios orientadores das políticas de educação brasileira e preconi-
zada no artigo 3º, inciso VIII, da Lei de Diretrizes e Bases da Educação
(LDB) – Lei nº. 9.394/96 (Brasil, 1996). Por sua vez, o Plano Nacional de
Educação (PNE) focaliza a Gestão Democrática em duas metas: a meta
7 e a meta 19 (Brasil, 2014).
O tema da Gestão Democrática é referendado pela LDB (artigo 3º,
VIII) quando ela destaca a “Gestão Democrática do ensino público, na
forma desta Lei e da legislação dos sistemas de ensino” (Brasil, 1996)
e oportuniza às instituições de ensino que definam as suas formas de
democratização e os vínculos com a comunidade, conforme preconizam
seus artigos 14 e 15:

Art. 14. Os sistemas de ensino definirão as normas da Ges-


tão Democrática do ensino público na educação básica, de
acordo com as suas peculiaridades e conforme os seguintes
princípios:

I - Participação dos profissionais da educação na elaboração


do projeto pedagógico da escola;

104 Sandra Rejane Zorzo Peringer | Josiane Carolina Soares Ramos Procasko
II - Participação das comunidades escolar e local em conse-
lhos escolares ou equivalentes.

Art. 15. Os sistemas de ensino assegurarão às unidades es-


colares públicas de educação básica que os integram pro-
gressivos graus de autonomia pedagógica e administrativa e
de gestão financeira, observadas as normas gerais de direito
financeiro público (Brasil, 1996).

O Plano Nacional de Educação (PNE),9 em seu artigo 9º e em sua


Meta 19, reafirma esse princípio e estabelece com maior clareza as polí-
ticas de Gestão Democrática. Entre as estratégias previstas, estão:

Estimular [...] a constituição e o fortalecimento de grêmios


estudantis e associações de pais [...] a constituição e o for-
talecimento de conselhos escolares e conselhos municipais
de Educação [...] a participação e a consulta de profissionais
da Educação, alunos(as) e seus familiares na formulação dos
projetos político-pedagógicos [das escolas] (Brasil, 2014).

Nesse cenário, existem mecanismos legais que viabilizam a Gestão


Democrática: a construção do Projeto Político-Pedagógico, a partici-
pação em conselhos escolares, o Grêmio Estudantil, os Conselhos de
Classe Participativos e a eleição para diretores, que focalizam processos
pedagógicos de aprendizagem da democracia tanto para a comunidade
escolar quanto para a comunidade em geral (Bairros, 2019). A existência

9 O Plano Nacional da Educação (PNE) é um marco na Educação Nacional por ter tido grande
participação e acolher os principais pleitos da sociedade. Com vigência de 2014 até 2024, o PNE
conta com 20 metas, das quais oito têm prazos intermediários já vencidos. Além disso, a Lei tem
254 estratégias relacionadas a essas metas e 14 artigos que definem ações a serem realizadas
pelo País (Brasil, 2017). O prazo para o cumprimento da meta 19, “Garantia de condições para a
efetivação da gestão democrática da Educação”, era 2015, porém ela não apresenta indicadores e
não possui iniciativas em curso em âmbito nacional.

A implementação da Associação de Pais e Servidores


como princípio da Gestão Democrática no IFRS campus Ibirubá 105
desses mecanismos, por si só, “não é capaz de garantir que a democra-
cia aconteça, mas tampouco sem eles a escola poderá desenvolver uma
Gestão Democrática” (Drabach; Souza, 2014, p. 229). Nesse sentido,
Lück (2009, p. 71) acrescenta ao entendimento da Gestão Democrática
a noção de um

[...] processo em que se criam condições e se estabelecem as


orientações necessárias para que os membros de uma coleti-
vidade não apenas tomem parte, de forma regular e contínua,
de suas decisões mais importantes, mas assumam o compro-
misso para a sua efetivação.

Conforme Paro (2016), criar espaços democráticos não é tarefa fá-


cil e encontra um sem-número de obstáculos para sua concretização.
Incentivar a criação desses espaços não garante a prática da Gestão De-
mocrática, mas é um marco importante. Devem-se oferecer condições
para que a participação seja entendida como um processo que vai além
da tomada de decisões: a participação efetiva dos sujeitos implica en-
volver-se nos processos, assumir responsabilidades e, assim, promover
os resultados propostos e almejados. A Gestão Democrática tem como
fundamentos “[...] a descentralização, a participação e a autonomia pe-
dagógica e administrativa, e é defendida pelos defensores da escola
pública, bem como suas entidades representativas” (Silva; Silva; Santos,
2016, p. 536). A participação da comunidade na escola se fundamenta
no diálogo como prática educativa.
Desse modo, o processo de construção do planejamento escolar
representa uma estratégia para o fortalecimento da democracia e do
princípio da Gestão Democrática do ensino público. Nesse aspecto,

106 Sandra Rejane Zorzo Peringer | Josiane Carolina Soares Ramos Procasko
Gandin (2001, p. 82) afirma que o “planejamento participativo é uma
ferramenta utilizada para intervir na realidade”, cujo objetivo é garan-
tir a oferta educacional com qualidade. Para Lück (2017, p. 27), a ges-
tão participativa é “uma das dimensões mais importantes da Gestão
Educacional Democrática, sem a qual esta não se efetiva”. Uma gestão
considerada democrática investe na autonomia dos sujeitos para o com-
partilhamento das decisões, identificando o potencial de colaboração
de cada pessoa e do segmento escolar na promoção de um trabalho
coletivo na construção da cidadania e na efetivação do processo demo-
crático. Para que a Gestão Democrática se efetive nas escolas públicas,
é preciso aprofundar e compreender a vivência de processos democrá-
ticos em uma instituição de ensino e contribuir de forma efetiva com a
aprendizagem de cada um dos estudantes.

Associação de Pais e Servidores como mecanismo de


participação

O Ministério da Educação e Desporto instituiu em 1995 o Pro-


grama de Desenvolvimento do Ensino Fundamental, que propunha a
transferência de recursos financeiros do Governo Federal diretamente
para as unidades escolares, ao obrigar as escolas públicas a criar Uni-
dades Executoras (UEx) ou transformar os órgãos colegiados para que
ficassem habilitados a receber, gerenciar e gerar recursos financeiros
para a escola (Parente; Lück, 1999). Não existe legislação federal que
trate especificamente da criação e da gestão das associações no sistema
educacional brasileiro, e a obrigatoriedade é somente para escolas que
recebem recursos do Programa Dinheiro Direto na Escola (PDDE).

A implementação da Associação de Pais e Servidores


como princípio da Gestão Democrática no IFRS campus Ibirubá 107
A denominação genérica de UEx foi adotada a fim de se referir às
diferentes nomenclaturas utilizadas pelas escolas brasileiras para de-
signar uma entidade de direito privado, sem fins lucrativos, vinculada
à escola. Independentemente da denominação que a unidade escolar
e a comunidade escolham, seja ela “associação”, “círculo de pais e mes-
tres” ou outra, o importante é que a entidade congregue pais, alunos,
funcionários e professores da escola com o objetivo de incentivar a
cooperação e a interação entre escola e comunidade nas ações socioe-
ducacionais. As Unidades Executoras têm como princípio básico ser en-
tidade de representação dos pais, estudantes e profissionais da escola,
na busca pela autonomia, cooperação e integração entre a escola, a fa-
mília e a comunidade, em suas dimensões pedagógica e administrativa
(Parente; Lück, 1999).
As escolas públicas não são entidades com personalidade jurídica;
por isso, o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE)
criou as UEx. Em seu conceito genérico, uma UEx é uma

[...] entidade privada sem fins lucrativos, representativa das


escolas públicas, integrada por membros da comunidade es-
colar comumente denominada de caixa escolar, associação
de pais e mestres, conselho escolar, círculo de pais e mestres
etc., constituída para receber, executar e prestar contas dos
recursos destinados às referidas escolas (Brasil, 2013, p. 25).

Dessa forma, constitui-se pessoa jurídica de direito privado, não


tem caráter político-partidário, religioso ou racial nem fins lucrativos,
é representada oficialmente pelo presidente e responde pelas obriga-
ções sociais da comunidade escolar. As UEx possuem uma organização

108 Sandra Rejane Zorzo Peringer | Josiane Carolina Soares Ramos Procasko
administrativa registrada em estatuto próprio, constituída de pessoas
eleitas em assembleia geral, com mandato de dois anos, sendo o pleito
realizado por voto secreto. As metas 7 e 19 do PNE 2014 focalizam a
Gestão Democrática e trazem um conjunto de estratégias associadas.
Uma das recomendações feitas pela estratégia 19.4 refere-se à consti-
tuição e ao fortalecimento da participação estudantil e de pais, por meio
de grêmios estudantis e de associações de pais e mestres (Brasil, 2014).
A meta 19 tinha prazo para ser cumprida até 2015, porém não há
iniciativas em âmbito nacional para a sua efetivação. O relatório do Ob-
servatório do PNE aponta para a existência de órgãos colegiados nas
instituições e processos participativos, todavia não há indicadores ca-
pazes de medir e fornecer informações sobre a qualidade dessa atua-
ção. O relatório aponta que aumentaram as instituições que contam
com a participação do segmento docente, técnico-administrativo, dis-
cente e de pais (Brasil, 2014). De acordo com Gandin (2008), a partici-
pação pode ser exercida em três níveis: um primeiro é de colaboração,
mais frequente na prática; um segundo que vai além da colaboração e é
aparentemente mais democrático, chamado de “decisão”; e um terceiro,
muito pouco frequente, que é a construção em conjunto.
De acordo com Paro (2016, p. 22), “a Gestão Democrática deve im-
plicar necessariamente a participação da comunidade”, a qual é definida
como participação nas decisões. Como o próprio autor aponta, “isto não
elimina, obviamente, a participação na execução, mas também não a
tem como fim e sim como meio, quando necessário, para a participação
propriamente dita, que é a partilha do poder, a participação na tomada
de decisões” (Paro, 2016, p. 22).

A implementação da Associação de Pais e Servidores


como princípio da Gestão Democrática no IFRS campus Ibirubá 109
Nesse contexto, Paro (2016, p. 24) complementa que a participa-
ção da comunidade na escola, “como todo processo democrático, é um
caminho que se faz ao caminhar, o que não elimina a necessidade de se
refletir previamente a respeito dos obstáculos e potencialidades que a
realidade apresenta para a ação”. Já Lück (2017, p. 35) traz para o de-
bate a noção de participação à luz das “inúmeras formas e nuances no
contexto escolar”, manifestando-se desde a participação com propósito
individualista até a participação efetiva de todos os sujeitos nos pro-
cessos sociais e assumindo responsabilidades com relação às decisões
tomadas ao visar à melhoria contínua como um todo. Na perspectiva da
autora, a equipe de gestão constitui uma equipe de liderança que deve
ser capaz de estabelecer reciprocidade entre a escola e a comunidade.
Nesse sentido, a autora afirma que:

Boas escolas, portanto, podem ser as consideradas abertas à


comunidade, seja convidando seus membros a participarem
como voluntários do processo escolar, seja levando os alunos
a participarem das problemáticas de sua cidade, emprestan-
do, desse modo, ao currículo, um sentido de realidade, tal
como deve ser (Lück, 2014, p. 113).

De acordo com Pacheco (2011, p. 10), a “intervenção no processo


didático-pedagógico completa-se, no âmbito da escola, com a partici-
pação organizada dos pais ou responsáveis da comunidade”. Assim, a
Associação de Pais e Servidores, enquanto instância de participação,
acaba adquirindo outra dimensão no contexto da instituição educa-
tiva e constitui-se como um importante mecanismo de participação da
comunidade escolar ao contribuir efetivamente para a consecução da

110 Sandra Rejane Zorzo Peringer | Josiane Carolina Soares Ramos Procasko
Gestão Democrática, além de potencializar e aperfeiçoar os processos
decisórios institucionais, o desenvolvimento da autonomia, a cidadania
e a corresponsabilização pelas decisões operadas pela equipe gestora.
A participação das pessoas contribui para desenvolver nos ci-
dadãos o hábito de participar e, dessa forma, formará gerações mais
comprometidas e participativas. Para tanto, as instituições precisam
se consolidar como espaços educativos e democráticos que incentivem
alunos, servidores, pais e comunidade, cotidianamente, a participar de
forma crítica e colaborativa de todas as ações e decisões tomadas nesse
universo, ouvindo seus anseios e dando voz àqueles que fazem aconte-
cer a prática educativa no chão da escola.

RESULTADOS

A produção dos dados pautou-se pela articulação da pesquisa bi-


bliográfica alinhada à pesquisa documental. Na busca por artigos, teses
e dissertações no portal de periódicos da Capes e no repositório digi-
tal Lume da UFRGS, no recorte temporal de quatro anos (2016-2020),
não foram localizados estudos e investigações envolvendo a organiza-
ção, o funcionamento e a atuação de Associações de Pais e Servidores
no contexto da Rede Federal de Educação Profissional e Tecnológica;
mais especificamente, no conjunto dos Institutos Federais de Educação,
Ciência e Tecnologia. Considerando que não foram encontrados estu-
dos envolvendo a temática proposta, foi realizada uma busca (pesquisa
documental) nos Regimentos Gerais dos Institutos Federais de Educa-
ção, Ciência e Tecnologia que compõem a Rede Federal de Educação

A implementação da Associação de Pais e Servidores


como princípio da Gestão Democrática no IFRS campus Ibirubá 111
Profissional e Tecnológica, a fim de verificar se a Associação de Pais e
Servidores faz parte do organograma institucional.
Para este estudo, buscou-se o Regimento Geral dos 38 Institutos
Federais que compõem a RFEPT, na página oficial de cada um deles. Da
mesma forma, não se localizou nada nesse sentido. Constatou-se que as
Apas não se apresentam como elemento da política institucional, mesmo
que essa mesma política privilegie a participação dos diferentes sujeitos
que compõem o espaço acadêmico-institucional. Devemos considerar
que o papel das Apas, em parte, já é desenvolvido por outras instâncias
da instituição, como os conselhos superiores (Consup) e os conselhos de
campus (Concamp), dentro de um rigoroso processo de burocratização
que, de alguma maneira, acaba sendo um empecilho para a efetivação
da participação da comunidade acadêmica, elemento tão caro ao con-
texto dos Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia.
O Instituto Federal do Rio Grande do Sul, assim como os de-
mais Institutos Federais, não prevê em seu Regimento Geral a obri-
gatoriedade de constituição de Associação de Pais. Os documentos
institucionais preveem a participação dos segmentos docente, técnico-
-administrativo e discente e de membros externos à comunidade aca-
dêmica, trazendo o controle social e a perspectiva da comunidade para
dentro da Instituição. Em consulta à Reitoria, obteve-se a informação
de que apenas um dos campi do IFRS possui constituída uma Associa-
ção de Pais e Servidores, mas que seria importante essa participação
como forma de aproximação e de envolvimento das famílias nos pro-
cessos de ensino e aprendizagem.

112 Sandra Rejane Zorzo Peringer | Josiane Carolina Soares Ramos Procasko
Em todo o levantamento, percebeu-se que alguns campi dos IFs, de
forma isolada, possuem regulamentada em seus Regimentos Internos
a possibilidade da participação dos pais através da Apas. Inicialmente,
foi feita uma busca na página oficial dos 17 campi do IFRS, nos 11 campi
do Instituto Federal Farroupilha (IFFar) e nos campi do Instituto Federal
Sul-rio-grandense (IFSul) e constatou-se que apenas um, o IFRS campus
Sertão, possui uma Apas institucionalizada.
Na busca pelos campi dos Institutos Federais que possuem regula-
mentada uma Associação de Pais, localizamos o IFRS campus Sertão, o
Instituto Federal Catarinense (IFC) campus Araquari, campus Blumenau,
campus Rio do Sul, campus São Francisco do Sul e campus Videira, o Ins-
tituto Federal de Brasília campus Brasília e o Instituto Federal de Goiás
campus Anápolis. Na análise dos regulamentos das Associações de Pais
dos campi dos Institutos Federais que apresentam em seus Regimentos
Internos uma associação constituída, constatou-se que eles têm por fi-
nalidade promover a integração da escola com a comunidade e com a
família, aproximar a comunidade acadêmica da comunidade externa e
estabelecer um sentimento de pertencimento ao buscar o desempenho
mais eficiente do processo educativo.
O Regimento Interno dos campi do IFRS prevê a participação dos
docentes, dos técnicos administrativos, dos estudantes e da comuni-
dade externa em Colegiados de Curso, no Consup, no Concamp, em
comissões de reformulação de Projetos Pedagógicos de Curso, na ela-
boração das Políticas Institucionais e nas Comissões que venham a ser
constituídas, porém não prevê a participação dos pais ou responsáveis.
Ao se considerar que todos são mecanismos importantes de partici-
pação, a implementação de uma Apas possibilitaria o envolvimento da

A implementação da Associação de Pais e Servidores


como princípio da Gestão Democrática no IFRS campus Ibirubá 113
família com os trabalhos da escola e a interação de pais, professores e
técnicos administrativos, integrando a escola à comunidade, assim como
a comunidade a ela, contribuindo para a melhor qualidade do ensino.
Os Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia são re-
sultado de um grande movimento das políticas públicas implantadas
no Brasil: são a materialização de um projeto progressista que possui
um preponderante caráter social comprometido com um projeto de so-
ciedade e que entende a educação como enriquecimento de conheci-
mentos e como instrumento na construção e no resgate da cidadania
e da transformação social, numa perspectiva democrática e de justiça
social (Pacheco, 2010). Os IFs são uma institucionalidade inédita, fruto
de um debate democrático; “não são nem Universidade, que estabelece
uma hierarquia de saberes vinculada à hierarquia das classes sociais,
nem escola técnica para trabalhadores” (Pacheco, 2020, p. 7) e alcança-
ram uma importante legitimidade com a sociedade brasileira. Portanto,
“nosso maior desafio é a formação de uma nova cultura institucional
comprometida com uma sociedade democrática e socialmente justa”
(Pacheco, 2020, p. 20).
Pacheco (2010, p. 8) afirma “que a educação não ocorre apenas
nos espaços de educação formal”, que a escola é parte da comunidade e
que todos os espaços escolares devem ser disponibilizados para a par-
ticipação de todos os atores envolvidos no processo educacional, pos-
sibilitando a intervenção coletiva no processo didático-pedagógico. Os
IFs são “espaços privilegiados para a construção e democratização do
conhecimento” (Pacheco, 2010, p. 8). O que se propõe, então,

114 Sandra Rejane Zorzo Peringer | Josiane Carolina Soares Ramos Procasko
[...] não é uma ação educadora qualquer, mas uma educação
vinculada a um Projeto Democrático, comprometido com a
emancipação dos setores explorados de nossa sociedade;
uma educação que assimila e supera os princípios e concei-
tos da escola e incorpora aqueles gestados pela sociedade
organizada. Mais do que isso, a comunidade educa a própria
escola e é educada por ela, que passa a assumir um papel mais
amplo na superação da exclusão social (Pacheco, 2010, p. 10).

Em relação ao Plano de Desenvolvimento Institucional (PDI), ges-


tão 2019-2023, e ao Projeto Político-Pedagógico (PPI) do IFRS, apre-
senta-se a Gestão Democrática como uma das características do IFRS,
praticada de forma paritária entre os três segmentos que compõem a
comunidade acadêmica – discente, docente e técnico-administrativo –,
com a participação dos estudantes no centro do processo educativo e a
participação ativa nas instâncias colegiadas e nos fóruns deliberativos.
Ressalta-se que a participação organizada dos pais ou responsáveis
e da comunidade mediante a articulação da Associação constitui uma
forma significativa de promover a aproximação entre docentes, técni-
cos administrativos, discentes e comunidade e, assim, de ser atendido
um dos principais objetivos dos IFs: a educação pública e democrática,
contribuindo para a conscientização dos pais a respeito do seu papel na
educação dos filhos e da importância da educação para e na construção
de uma nova sociedade.

A implementação da Associação de Pais e Servidores


como princípio da Gestão Democrática no IFRS campus Ibirubá 115
CONCLUSÃO

Este estudo se apresenta como um primeiro movimento reflexivo


sobre a importância da Associação de Pais e Servidores no contexto
dos Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia como ele-
mento-chave para a efetivação da participação dos sujeitos do espaço
educativo, como preconiza a Lei Federal nº. 11.892/08 (Brasil, 2008).
Nesse sentido, e em função do estado pandêmico atual, foi utilizada a
pesquisa bibliográfica e documental na busca de subsídios no intuito de
contribuir com a decisão da implementação de uma Associação de Pais,
Estudantes e Servidores na instituição de ensino IFRS campus Ibirubá.
O projeto de Prática de Intervenção que previa a implementação da
Associação foi planejado para ser colocado em prática no ano de 2020;
porém, foi preciso adiar a implementação, pois, considerando o cenário
da covid-19, houve a suspensão das atividades letivas no IFRS. Em um
primeiro momento, foi realizada uma reunião com a Coordenação do
Desenvolvimento Institucional, a Coordenação de Ensino e a Direção
de Ensino para abrir uma discussão sobre a importância de implementar
uma Associação de Pais e Servidores no campus Ibirubá, buscando maior
participação dos pais, ao considerar que os demais segmentos possuem
sua representatividade efetivada nos colegiados de curso, conselhos de
campus, diretórios acadêmicos, grêmios estudantis, Coletivo das Ovelhas
Negras e demais comissões previstas nos documentos institucionais.
No início desse ano letivo, a gestão apresentou a proposta, em reunião
geral, para os servidores, que manifestaram ser importante e necessária
a participação dos pais e responsáveis nos processos educacionais.

116 Sandra Rejane Zorzo Peringer | Josiane Carolina Soares Ramos Procasko
Considera-se, com base nos estudos realizados, que não resta a
menor dúvida de que a participação dos pais, articulada através de uma
Apas, é de suma e positiva importância, pois esses sujeitos estão em
diálogo permanente com a comunidade. A partir da criação de um am-
biente colaborativo, com a participação e o comprometimento de todos
os sujeitos, haverá a contribuição na formação de cidadãos mais cons-
cientes e atuantes em seu meio, possibilitando uma mudança de visão
aos nossos estudantes, que se constituirão como sujeitos participativos
e transformadores da sociedade em que vivem. É uma prática que cons-
trói a autonomia e o empoderamento dos sujeitos participantes da co-
munidade acadêmica.
O IFRS vai constituindo a Gestão Democrática cotidianamente, por
meio da participação de docentes, técnicos administrativos e discentes
na consulta e na deliberação nos processos decisórios, na construção
dos documentos e das políticas institucionais e na liberdade de expres-
sar opiniões a partir de um debate coletivo. Nesse contexto, por ser um
espaço que compreende a participação dos sujeitos, considera-se que
a criação de uma Associação de Pais é uma alternativa que possibilita-
ria o desenvolvimento de ações pedagógicas capazes de proporcionar
a aproximação e a integração entre a escola e a comunidade por meio
de atividades que contemplem arte e cultura, reuniões, participação
nas mostras institucionais, elaboração do Projeto Pedagógico dos cur-
sos e outras atividades. Assim, ela pode, também, contribuir para um
maior diálogo entre todos os segmentos da comunidade acadêmica,
pois, em geral, a participação dos pais se limita à ação de controle e co-
brança do desempenho dos filhos, dissociada de um processo contínuo
de orientação.

A implementação da Associação de Pais e Servidores


como princípio da Gestão Democrática no IFRS campus Ibirubá 117
Sabe-se que a participação, em sentido dinâmico, pleno, não é uma
prática comum, em decorrência de uma cultura burocrática e centraliza-
dora vigente no cotidiano escolar e no sistema de ensino brasileiro. Lück
(2017, p. 19) ressalta que “toda pessoa tem poder de influência sobre o
contexto de que faz parte”; porém, em geral, observamos uma falta de
consciência do poder de participação e da influência na determinação
dos processos decisórios, na construção das políticas institucionais e na
elaboração dos projetos pedagógicos institucionais.
Essa prática de intervenção não será tarefa fácil e não será mudada
por simples desejo dos gestores, mas sim pelo resultado de muito es-
forço e competência e de um ambiente estimulador, que só será efeti-
vado a partir de ações como muito diálogo, valorização das habilidades
e organização e gestão da instituição de ensino construída de forma co-
laborativa com todos os envolvidos nos processos educacionais.

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120 Sandra Rejane Zorzo Peringer | Josiane Carolina Soares Ramos Procasko
4
Parcerias
público-privadas
na educação e a
Gestão Democrática:
impacto na
autonomia da escola

Carolina de Campos Derós1


Luciani Paz Comerlatto2

1 Pós-graduanda do Curso de Especialização em Gestão da Educação da


UFRGS campus Litoral Norte.
E-mail: carolderos@gmail.com

2 Doutora em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul.


Professora Adjunta na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Coorde-
nadora do Curso de Especialização em Gestão da Educação da Universidade
Federal do Rio Grande do Sul campus Litoral Norte.
E-mail: lucianipaz@gmail.com
INTRODUÇÃO

Este artigo é fruto do Trabalho de Conclusão do Curso de Especia-


lização em Gestão da Educação, ofertado pela Universidade Federal do
Rio Grande do Sul (UFRGS) campus Litoral Norte em parceria com a Uni-
versidade Aberta do Brasil (UAB), desenvolvido ao longo dos anos de
2019 e 2020. Apresentam-se como temática as parcerias público-priva-
das numa Rede de Ensino Público de Educação Básica situada na região
Sul do Brasil, na capital do Estado do Rio Grande do Sul.3 A escolha por
essa temática é fruto da nossa preocupação sobre o crescente aumento
das parcerias público-privadas na Rede em estudo. Assim, buscamos,
por meio do estudo teórico-metodológico, refletir sobre o problema de
pesquisa: quais são as decorrências das parcerias público-privadas na
Rede Pública de Ensino em estudo para o exercício da Gestão Demo-
crática da Educação?
A justificativa para a relevância da pesquisa está centrada no au-
mento de novas ofertas de parcerias que emergem na área da educação,
na qual elas comumente são implementadas sem nenhuma discussão
prévia com as comunidades escolares, sendo então necessária a proble-
matização dessas questões para buscar o fortalecimento do exercício
da Gestão Democrática da Educação.
O procedimento metodológico escolhido para esta pesquisa foi a
pesquisa-ação, uma forma de trabalho que permite ao pesquisador in-
tervir diante de um problema. Conforme Thiollent (1986), a pesquisa-
-ação exige a participação ativa do pesquisador e resulta na resolução,
por meio da ação, de um problema efetivo identificado. Em decorrência

3 Em razão da ausência do termo de consentimento informado livre e esclarecido, não será iden-
tificada a rede em estudo.

122 Carolina de Campos Derós | Luciani Paz Comerlatto


da situação que vivemos, com o isolamento social gerado pela covid-19,
os instrumentos metodológicos foram repensados para que a pesquisa
ainda pudesse ter um impacto significativo para auxiliar na construção
do novo Projeto Político-Pedagógico da escola, mesmo que no momento
seja difícil o acesso a todos os segmentos escolares.
A escola na qual este trabalho foi desenvolvido está localizada
na região periférica de determinada cidade, onde a escolha pela pro-
posta de educação em tempo integral foi de grande importância à co-
munidade escolar, em razão da alta vulnerabilidade social do território.
Inicialmente, todas as construções de documentos pedagógicos e pro-
postas de trabalho eram executadas pelos professores e funcionários
da Rede de Ensino, mas gradativamente houve a entrada de inúmeras
parcerias público-privadas em sua rotina. Estas já eram comuns nessa
Rede de Ensino na Educação Infantil, pois não existem vagas suficientes
para suprir toda a demanda de atendimento, havendo então a terceiri-
zação do serviço para a população por meio do convênio de entidades
e da compra de vagas em escolas particulares. Nas iniciativas voltadas
para a educação integral, essa tendência também aparece, visto que ini-
cialmente o atendimento acontecia via o projeto Mais Educação do Mi-
nistério da Educação (MEC). Para ter a sua capacidade de atendimento
ampliada, os alunos passaram a ser atendidos no contraturno por ins-
tituições privadas parceiras. Atualmente, vem-se ampliando o número
de parcerias por meio de inúmeras outras frentes além das elencadas
anteriormente, desde formações de professores, entrega de materiais
pedagógicos, liberação de prédios públicos para a oferta de Educação
Infantil e Ensino Fundamental pela iniciativa privada, até a inserção e a
adaptação de uma Plataforma de Gestão Escolar para poder atender os

Parcerias público-privadas na educação e a Gestão Democrática:


impacto na autonomia da escola 123
alunos em suas atividades complementares e controlar o trabalho rea-
lizado pelas escolas através dos índices de conectividade e solicitações
de acesso ao aplicativo.
Na primeira parte deste artigo, realizamos uma revisão bibliográ-
fica enfocando os principais conceitos em diálogo com a temática: as
parcerias público-privadas, a Gestão Democrática e a autonomia, sendo
esta condição prioritária para que haja o exercício da democracia nas
comunidades escolares. Mediante esses tópicos, serão apresentados
os dados da instituição na qual a pesquisa foi desenvolvida e um breve
histórico de sua constituição, para que as informações encontradas pos-
sam ser analisadas e futuramente problematizadas junto ao coletivo dos
docentes, tendo em vista a busca pelo fortalecimento de práticas que
promovam o poder da comunidade escolar no processo de discussão e
na tomada de decisão em tudo que diz respeito à escola.

CAMINHOS DA PESQUISA

Dentro de uma pesquisa qualitativa, existe a preocupação com


aspectos da realidade que não podem ser quantificados, centrando-se
na compreensão e na explicação da dinâmica das relações sociais. Para
Minayo (2001 apud Gerhardt; Silveira, 2009, p. 32), a pesquisa qualitativa
“trabalha com o universo de significados, motivos, aspirações, crenças,
valores e atitudes, o que corresponde a um espaço mais profundo das
relações, dos processos e dos fenômenos que não podem ser reduzidos
à operacionalização de variáveis”.

124 Carolina de Campos Derós | Luciani Paz Comerlatto


O procedimento metodológico adotado nesta pesquisa é a pesqui-
sa-ação. Essa metodologia é, conforme Thiollent (1986, p. 16),

[...] um tipo de pesquisa social com base empírica que é


concebida e realizada em estreita associação com uma ação
ou com a resolução de um problema coletivo e no qual os
pesquisadores e os participantes representativos da situação
ou problema estão envolvidos de modo cooperativo ou
participativo.

A pesquisa-ação, portanto, é uma forma de trabalho que permite


ao pesquisador intervir diante de um problema. Ela exige a participa-
ção ativa do pesquisador e resulta na resolução, por meio da ação, de
um problema efetivo identificado. Conforme explanação da professora
Valéria Viana Labrea, em suas aulas de metodologia da pesquisa-ação
durante o ano de 2019,4 a pesquisa é concebida e realizada em estreita
associação com uma ação ou com a resolução de um problema coletivo
no qual os pesquisadores e os participantes representativos da situação
ou do problema estão envolvidos de modo cooperativo ou participativo.
Assim, todos são sujeitos ativos de um processo, ou seja, a formulação
do problema, os objetivos, as possíveis hipóteses, a coleta de dados, en-
tre outros aspectos são discutidos e analisados pelo grupo.
Fonseca (2002 apud Gerhardt; Silveira, 2009, p. 40) reforça essa
posição ativa do pesquisador quando diz que “o investigador abandona
o papel de observador em proveito de uma atitude participativa e de
uma relação sujeito a sujeito com os outros parceiros”. Gerhardt e
Silveira (2009), em seu artigo, apontam que as vivências do pesquisador

4 A professora Valéria Viana Labrea ministrou em nosso curso a disciplina de Metodologia da Pes-
quisa, com enfoque voltado para a pesquisa-ação.

Parcerias público-privadas na educação e a Gestão Democrática:


impacto na autonomia da escola 125
são elementos que colaboram com a realização das análises dos dados,
visto que essa é a sua realidade. A relação entre o pesquisador e os
demais sujeitos acaba por ser de troca, o que traz à tona uma reflexão
crítica sobre a prática e o consequente conhecimento ampliado do
pesquisador acerca das situações que o rodeiam.
Dentro das ideias iniciais para o desenvolvimento desta pesquisa,
planejadas durante as disciplinas do curso de especialização no ano de
2019, realizamos observações sistemáticas de reuniões do coletivo da
escola e de momentos pontuais do dia a dia nos quais as questões relati-
vas às parcerias público-privadas se manifestassem. Em decorrência do
isolamento social gerado pela covid-19, os instrumentos metodológicos
foram repensados para que a pesquisa ainda possa ter um impacto sig-
nificativo para auxiliar na construção do novo Projeto Político-Pedagó-
gico da escola, mesmo que neste momento seja difícil o acesso a todos
os segmentos escolares. Anteriormente, a proposta era de realização de
rodas de conversa, gerando na instituição um espaço de trocas e diá-
logo acerca dessas parcerias com todos os segmentos da comunidade
escolar. Realizamos, por fim, a aplicação dos métodos somente com os
professores, pelas dificuldades de acesso aos demais segmentos.
Além das observações realizadas nas reuniões de professores, foi
criado um questionário na plataforma Google Forms e enviado a todos
os professores da escola pesquisada. No questionário, foram trazidas
questões acerca da percepção do corpo docente sobre o impacto das
parcerias público-privadas em suas rotinas de trabalho e na autonomia
da tomada de decisões da instituição. Esses resultados, somados aos
registros de atas das reuniões on-line que vêm acontecendo com o cole-
tivo de professores e ao registro e análise de documentos oriundos da

126 Carolina de Campos Derós | Luciani Paz Comerlatto


Secretaria de Educação quando foram pautadas essas parcerias, forne-
cidos pela equipe diretiva, mostraram o caminho para as futuras refle-
xões com o grupo que vão colaborar para a construção do novo Projeto
Político-Pedagógico da escola.
Talvez por envolver a entrada de parcerias externas nas instâncias
públicas, a Secretaria de Educação do município estudado não assinou
o Termo de Consentimento Informado Livre e Esclarecido, não autori-
zando a realização do estudo. Por esse motivo, os locais e os sujeitos
da pesquisa não tiveram seus nomes identificados. Esses servidores
públicos são concursados e pertencem às mais diversas áreas de conhe-
cimento, mas todos possuíam conhecimento acerca dos movimentos
realizados na escola sobre as parcerias público-privadas. Apenas a es-
cola foi contextualizada histórica e geograficamente na região metro-
politana para a compreensão analítica do objeto de estudo. A pesquisa
seguiu orientações éticas, sendo que, para a produção de dados, houve
envolvimento direto com escolas, professores e servidores públicos.
Esta pesquisa teve como premissa ética o retorno à escola, sinali-
zando as descobertas apontadas e propondo-se, em parceria com pro-
fessores e gestão, trabalhar com essa realidade em defesa da qualidade
das escolas públicas. Assim, aos poucos, as análises realizadas foram
compartilhadas com toda a comunidade escolar nas reuniões dos gru-
pos de trabalho para a constituição do seu novo Projeto Político-Pe-
dagógico, nas quais está acontecendo o compartilhamento dos dados
analisados e os questionamentos levantados sobre os impactos e as
transformações que as parcerias público-privadas existentes na escola
trouxeram ao seu dia a dia. Nesses momentos, as observações e impres-
sões serão relatadas e oportunizarão um momento de proposições para

Parcerias público-privadas na educação e a Gestão Democrática:


impacto na autonomia da escola 127
que a escola pense em práticas para fortalecer os elementos que cons-
tituem a Gestão Democrática.

PARCERIAS PÚBLICO-PRIVADAS

O sentido de parceria público-privada, conforme Faria (2019,


p. 58), é “o poder ou a capacidade que o setor privado tem de intervir,
sob a concessão da administração pública, para assumir responsabili-
dades a partir de contratos legais que anteriormente acometia apenas
ao poder público”. Assim, tanto a prestação do serviço público quanto
a sua elaboração podem ser atribuídas agora a uma instituição de na-
tureza privada.
A Gestão Democrática da educação em nosso país, advinda do
processo de redemocratização da década de 1980 e garantida como
direito constitucional, estava começando a dar seus primeiros passos
quando foi atravessada pelas parcerias público-privadas, que trouxe-
ram elementos do mercado para a gestão escolar com a prerrogativa
de que a gestão privada é mais eficiente do que a gestão pública. Inú-
meros formatos de parcerias público-privadas na área da educação
passaram a emergir como “salvadores”, e é perceptível na atualidade
o aumento do número de empresas voltadas para esse segmento.
Conforme Rossi, Lumertz e Pires (2017), que analisaram o modelo de
parceria proposto pelo Instituto Ayrton Senna com as secretarias es-
taduais e municipais de educação do Rio Grande do Sul, a ótica geren-
cialista contida nessas parcerias

128 Carolina de Campos Derós | Luciani Paz Comerlatto


[...] não apenas reforça a percepção de que a educação pública
vem passando por uma crise e possui vários problemas de
gestão, ensino e aprendizagem; mas também afirma, por
meio de sua atuação, a máxima de que o sistema privado
funciona melhor que o sistema público; assim, eles teriam
as soluções para os problemas que a escola pública enfrenta
(Rossi; Lumertz; Pires, 2017, p. 564).

Autores como Hypolito e Gandin (2013) mostram as diferentes fa-


cetas desse caminho, visto que não se trata tão somente de uma privati-
zação, tampouco da venda de produtos comerciais na educação, mas de
um processo mais complexo de privatização endógena e exógena.

Na primeira o estado e o setor público são mimetizados pelo


privado, trazendo para a gestão pública a forma de gestão do
setor privado, e é uma mudança no funcionamento interno
da administração. Na segunda forma de privatização, exó-
gena, há uma entrega da prestação do serviço público para
a responsabilidade de instituições privadas, com ou sem fins
lucrativos. Isso ocorre por meio de transferência de respon-
sabilidades, terceirização de serviços e até mesmo da própria
gestão do público (Hypolito; Gandin, 2013, p. 335).

Dentro dessa reestruturação, questiona-se a qualidade da educa-


ção pública e aponta-se que o Estado é incapaz de provê-la adequada-
mente, sendo necessário que ela seja reorganizada e redimensionada
para se obter maior eficiência (Hypolito; Gandin, 2013). Segundo Rossi,
Lumertz e Pires (2017), a proposta é mudar o modelo de gestão, aparen-
temente burocrático e patrimonialista, para um modelo de gestão ge-
rencial. Nesse modelo, o cidadão é visto como um cliente que consome

Parcerias público-privadas na educação e a Gestão Democrática:


impacto na autonomia da escola 129
serviços públicos, trazendo a lógica do mercado para a gestão escolar.
Assim, os conceitos de qualidade no mercado emergem, visando metas,
eficiência e eficácia e trazendo a responsabilização dos fracassos para
os agentes públicos. Também com a parceria público-privada e o forta-
lecimento do terceiro setor, o privado acaba por influenciar ou definir
o público na execução das políticas, definindo o conteúdo e a gestão da
educação (Peroni, 2009). Essas proposições de formas de ação não cor-
respondem ao princípio da Gestão Democrática, que deveria, a priori,
orientar o funcionamento das escolas públicas, e tornam a estrutura das
escolas semelhante à de empresas.
Nessa lógica de mercado, a educação passa a ser entendida como
mercadoria, num processo produtivo pautado pelo aumento de produ-
tividade e alcance de resultados, desconsiderando processos pedagógi-
cos de ensino-aprendizagem e o contexto social da comunidade na qual
a escola está inserida. Conforme Lumertz (2008, p. 14), sendo um direito
público e mantida pelo poder público, a educação “está à mercê do se-
tor privado, que traz uma concepção de gestão radicalmente contrária
às propostas de um ensino democrático, participativo e com qualidade
social”. Elementos mercadológicos como a meritocracia fazem com que
o sucesso e o fracasso sejam o foco das ações, trazendo à tona a culpabi-
lização dos sujeitos da comunidade escolar pelos fracassos decorrentes
e esvaziando a autonomia das mantenedoras e das escolas no conteúdo
e na direção da educação.

130 Carolina de Campos Derós | Luciani Paz Comerlatto


GESTÃO DEMOCRÁTICA DA EDUCAÇÃO

A base da Gestão Democrática é o espaço de autonomia. A Gestão


Democrática da Educação (GDE) é o exercício de poder, autocriação e
autogestão. Ela se constitui no cotidiano escolar, no espaço de questões
para discussão. Assim, o exercício da autonomia instituída pela vontade
e segundo os valores e objetivos coletivos da escola torna-se o caminho
necessário e urgente para que a escola pública seja efetivamente demo-
crática (Brasil, 2004).
A GDE é algo recente do ponto de vista histórico no contexto bra-
sileiro. Com a promulgação da Constituição Federal, em 5 de outubro
de 1988, foi estabelecido em seu artigo 205 que “A educação, direito de
todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com
a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pes-
soa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o
trabalho” (Brasil, [2016]).
No artigo 206 da Constituição de 1988, foram estabelecidos al-
guns pressupostos nos quais o direito à educação deve ser pautado.
Entre eles, em seu inciso VI, é incluída a Gestão Democrática do Ensino
Público. A Gestão Democrática, conforme Drabach e Souza (2014, p.
229), é compreendida como

[...] um processo político através do qual as pessoas que


atuam na/sobre a escola identificam problemas, discutem,
avaliam, deliberam e planejam, encaminham, acompanham,
controlam e avaliam o conjunto das ações voltadas ao desen-
volvimento da própria escola na busca de soluções daqueles
problemas.

Parcerias público-privadas na educação e a Gestão Democrática:


impacto na autonomia da escola 131
A Gestão Democrática foi reiterada no artigo 3º, inciso VIII, da Lei
de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), Lei nº. 9.394/96, na
qual se menciona a “Gestão Democrática do ensino público, na forma
desta Lei e da legislação dos sistemas de ensino” (Brasil, 1996). O artigo
14 da LDB trata especificamente da questão, determinando que

Os sistemas de ensino definirão as normas da Gestão Demo-


crática do ensino público na Educação Básica de acordo com
as suas peculiaridades, conforme os seguintes princípios: I-
participação dos profissionais de Educação na elaboração
do PPP da escola; II- participação das comunidades escolar
e local em conselhos escolares ou equivalentes (Brasil, 1996).

O artigo 15 da LDB prevê a autonomia da escola para promover


uma gestão participativa: “Os sistemas de ensino assegurarão às uni-
dades escolares públicas de Educação Básica que os integram pro-
gressivos graus de autonomia pedagógica e administrativa e de gestão
financeira, observadas as normas gerais de direito financeiro público”
(Brasil, 1996).
Dentro do entendimento de que a Escola Pública é de todos, finan-
ciada por todos e para atender ao interesse do que é de todos, a Gestão
Democrática, conforme Drabach e Souza (2014, p. 229), deve ser vista
“como processo democratizante, uma vez que a democracia é também
uma ação educativa, no sentido da conformação de práticas coletivas na
educação política dos sujeitos”.
A existência de mecanismos como a eleição de diretores, a cons-
trução coletiva do projeto pedagógico e o conselho escolar potencia-
liza o desenvolvimento da Gestão Democrática na escola, conforme
Drabach e Souza (2014, p. 229), na qualidade de

132 Carolina de Campos Derós | Luciani Paz Comerlatto


[...] espaço para o diálogo, a participação, a expressão dos an-
seios da comunidade escolar. Sabemos, contudo, que por si
só estes instrumentos não são capazes de garantir que a de-
mocracia aconteça, mas tampouco sem eles a escola poderá
desenvolver uma Gestão Democrática.

Dentro dos elementos citados, destaca-se a importância do Pro-


jeto Político-Pedagógico (PPP) como elemento transformador da edu-
cação. Siécola (2016, p. 106) aponta que sua elaboração não pode ser
vista como o mero cumprimento de um aspecto legal, pois ele é “um
documento vivo e eficiente na medida em que serve de parâmetro para
discutir referências, experiências e ações de curto, médio e longo prazo”.
Assim, ele é uma ferramenta de planejamento e avaliação que todos os
envolvidos precisam consultar a cada tomada de decisão e que não deve
ficar engavetado, desatualizado ou inacabado. Ele abre a escola para o
diálogo e é, para a autora, “a síntese de um processo permanente de
discussão para definir, coletivamente, as diretrizes, as prioridades e as
metas da instituição escolar e, ao mesmo tempo, traçar os caminhos
para alcançá-las” (Siécola, 2016, p. 107). Essa abertura para o diálogo
dentro das instituições escolares, tanto na construção do PPP quanto
em outras decisões do cotidiano, viabiliza maior participação dos diver-
sos atores sociais que podem contribuir nesses processos, sendo cami-
nho para o exercício da autonomia.

Parcerias público-privadas na educação e a Gestão Democrática:


impacto na autonomia da escola 133
AUTONOMIA

Autonomia, conforme Comerlatto (2013, p. 112), é compreendida


como “o direito do ser humano em ser, ter e fazer parte da elaboração
e tomada de decisões naquilo que altera a sua vida e/ou a vida da socie-
dade”. No espaço da educação, a autora traz a noção de que a autonomia
escolar se refere ao direito de a comunidade escolar participar de todas
as etapas que dizem respeito ao pensar dos movimentos da escola, pau-
tados nos desejos do coletivo. Parte-se do princípio de que autonomia,
assim como participação, é algo construído diariamente pelo coletivo, e
não resultado de atos e resoluções decretadas.
A autonomia em todos os âmbitos (financeiro, pedagógico e admi-
nistrativo), custeada e mantida pelo poder público, é uma das principais
marcas e condição sine qua non para que haja um real exercício de Ges-
tão Democrática. É com base nesse conceito que pretendemos expor
que a parceria público-privada interfere no processo em questão, uma
vez que promove disputas entre os sujeitos envolvidos, desconsidera
a realidade escolar e trabalha com material padronizado. Porém, con-
forme Paro (2006), a questão da autonomia da escola deixou de estar
presente apenas na fala dos educadores progressistas para fazer parte
também do discurso conservador e privatista da educação.
A importância da autonomia, segundo Rossi, Lumertz e Pires (2017,
p. 568), consiste no fundamento da concepção democrático-participa-
tiva da gestão escolar, perspectiva que

134 Carolina de Campos Derós | Luciani Paz Comerlatto


[...] entende a autonomia escolar como a possibilidade de que
a escola decida seu próprio rumo, juntamente com professo-
res, pais, alunos, funcionários e comunidade em geral, numa
corresponsabilidade para o êxito daquela instituição, sem
desconsiderar o papel fundamental do poder público.

Ao orientar suas práticas para o fortalecimento da sua própria au-


tonomia, Barbosa e Coelho (2019) entendem que são propiciados meios
para que a instituição escolar crie condições que direcionam a comuni-
dade escolar para a resolução de seus problemas e potencialização de
suas qualidades, possibilitando uma resposta melhor aos desafios da
mudança, fomentando a avaliação dos resultados e direcionando o olhar
de todos os atores envolvidos nesse processo para o planejamento de
ações, atividades e projetos a serem desenvolvidos pela escola.
Conforme apontado por Drabach e Souza (2014, p. 236), ao citarem
Adrião, a autonomia é considerada o centro da ressignificação dos me-
canismos da Gestão Democrática, na lógica gerencial, e “[...] é entendida
no sentido da responsabilização das unidades escolares pelo sucesso ou
fracasso das políticas educacionais”. Como destacado pelos autores, os
discursos em torno da autonomia escolar tinham por objetivo “qualificar
o movimento em direção à responsabilização das unidades escolares
enquanto unidades produtoras das mazelas do ensino fundamental”
e, como tais, responsáveis primeiras pela “correção destas mesmas
mazelas” (Drabach; Souza, 2014, p. 236). Testes padronizados para
avaliações gerais tornam-se cada vez mais uma sistemática comum
das Secretarias de Educação, gerando o que é chamado pelos autores
de “descentralização centralizada” (Drabach; Souza, 2014, p. 239): se,
por um lado, são incentivadas a autonomia e a descentralização das

Parcerias público-privadas na educação e a Gestão Democrática:


impacto na autonomia da escola 135
decisões na escola, por outro, os testes de desempenho visam à padro-
nização dos resultados e à busca pela uniformidade do que se ensina
na escola e da forma como se ensina. Assim, o desempenho da escola
e do trabalho docente é avaliado dentro de padrões generalizados que
não levam em conta a caminhada da comunidade escolar. A equipe es-
colar, dessa forma, desiste de determinar o processo de aprendizagem
para, segundo Drabach e Souza (2014, p. 239), “[...] se concentrar e se
autoavaliar pelo pseudo ‘produto’ desta aprendizagem, medida e de-
monstrada através dos exames nacionais”. Assim, a dita autonomia que
as escolas possuem não é tão forte, a partir do momento que seus resul-
tados são cobrados externamente.
No texto de Hypolito e Gandin (2013, p. 336), lê-se que essas ava-
liações são “uma forma sofisticada de o estado regular o ensino desde
longe, uma espécie de ausente presente”. É com essa lógica então que o
estado organiza um complexo sistema de avaliação, baseado em

[...] exames padronizados, modificando diretrizes curricula-


res para atender aos requisitos desses exames, redirecionar
a formação docente, definir índices e metas, redirecionar o
financiamento da educação e demonstrar as fraquezas do
magistério. O resultado de tudo isso é uma espécie de accou-
ntability, uma prestação de contas, uma forma de responsabi-
lização (Hypolito; Gandin, 2013, p. 336, grifo do autor).

Hypolito e Gandin (2013, p. 337) também apresentam dados de


que inúmeras pesquisas sobre a educação pública encontram diferentes
evidências e orientam-se por diferentes aportes teóricos, identificando
que a padronização curricular, os exames padronizados, os índices etc.
provocam “um empobrecimento curricular e fragilizam o magistério e

136 Carolina de Campos Derós | Luciani Paz Comerlatto


sua formação”. Assim, questiona-se muito a eficácia dessas políticas a
partir de evidências de quão frágeis têm sido seus resultados após déca-
das de a educação estar submetida a tais modelos gerenciais.
Como apontado por Comerlatto (2013), acontece no Brasil um mo-
vimento contraditório no qual, se, por um lado, a Constituição de 1988
consagrou a Gestão Democrática, por outro, o mesmo Estado cedeu às
pressões de escolas privadas, levando a lógica de mercado à gestão es-
colar sob o falso pretexto de superar a crise atual. Assim, a perspectiva
desse mercado é, como antigamente, pensar na educação do homem
para a geração de força de trabalho, possibilitando mais lucros. Tais par-
cerias público-privadas e o mercado acabam por afirmar que possuem
a receita para a aprendizagem, tratando a educação como mera presta-
ção de serviços.
Nesse sentido, cada vez mais se abrem espaços para as parcerias
público-privadas dentro das escolas. Parece algo sedutor que alguém ou
alguma coisa venha de fora da escola e tenha condições de organizá-la;
porém, a autonomia da escola fica fragilizada, porque precisa se subme-
ter às regras impostas pela organização parceira, as quais, geralmente,
sequer são debatidas com a comunidade (Lumertz, 2008). A autonomia
escolar necessita de condições mínimas de funcionamento, ou seja, me-
didas políticas e administrativas. Daí a importância da construção de
um projeto pedagógico próprio com a participação e a colaboração de
todos os segmentos escolares.

Parcerias público-privadas na educação e a Gestão Democrática:


impacto na autonomia da escola 137
A ESCOLA E A ENTRADA DAS PARCERIAS
PÚBLICO-PRIVADAS EM SUA TRAJETÓRIA

Para que possamos pensar em como as parcerias público-privadas


impactam na gestão da escola em questão, faz-se necessário voltarmos
a aspectos históricos de constituição da organização da unidade escolar
e pensar pontos que possam ter ocasionado uma virada na forma de en-
xergar os projetos até então constituídos.
A escola que é o foco desta pesquisa-ação foi inaugurada no ano de
2015 para dar conta do reassentamento de parte da população de uma
comunidade bastante vulnerável da cidade. Ela atende, atualmente,
cerca de 600 alunos, entre turmas de Educação Infantil a partir dos
quatro anos de idade e de Ensino Fundamental completo, e encontra-
-se em uma região periférica com altos índices de violência, prostituição
e drogadição, fatores que foram considerados no trabalho pedagógico
proposto pela escola. Por isso, fez sentido a escolha pelo modelo de
atendimento dos alunos em tempo integral, sendo esta, até hoje, uma
das principais características da escola junto à comunidade.
No início dos trabalhos, em 2015, todas as turmas foram atendidas
em turno integral. Já em 2016, atendendo a determinação da mantene-
dora em razão da falta geral de recursos humanos, seu funcionamento
foi alterado: apenas as turmas da Educação Infantil e 1º ciclo (1º, 2º e 3º
anos de Ensino Fundamental) permaneceram dessa forma. Foram ofer-
tadas 50 vagas aos alunos do 2º e do 3º ciclos, que puderam se inscre-
ver para participar das atividades no contraturno. Apesar do impacto da
perda de muitos recursos humanos, a escola nesse momento conseguiu

138 Carolina de Campos Derós | Luciani Paz Comerlatto


ainda manter boa parte do número de professores da própria Rede Mu-
nicipal atendendo nos projetos.
Nessa Rede de Ensino, as parcerias público-privadas já eram co-
muns na Educação Infantil. Nas iniciativas voltadas para a educação
integral, essa tendência também aparecia, visto que inicialmente o
atendimento acontecia via o projeto Mais Educação do MEC. Para ter
a sua capacidade de atendimento ampliada, os alunos passaram a ser
atendidos cada vez mais no contraturno também por instituições priva-
das parceiras. No ano de 2016, apareceu a primeira entidade parceira
conveniada na referida unidade escolar, quando um educador social foi
encaminhado para suprir a falta de professor para a área que engloba
artes, danças e outras formas de expressão corporal e artística. Com
isso, professores ligados a entidades conveniadas entraram para aten-
der a demanda, e surgiram dificuldades para integrá-los aos projetos da
escola, visto que seus tempos para planejamento não eram os mesmos,
e, muitas vezes, suas propostas metodológicas não entravam em conso-
nância com o Projeto Político-Pedagógico vigente.
Essa realidade se manteve na instituição até o ano de 2018. Em
2019, houve mais uma redução do número de professores da escola que
atuavam no turno integral, os quais foram substituídos por parceiros
de outra entidade, além dos educadores sociais já existentes. O projeto
apresentado à Secretaria de Educação para oferta do atendimento não
foi discutido anteriormente pela mantenedora com a escola, portanto
não houve diálogo para a escolha do parceiro. A Secretaria ressaltava
que a escola traria o fio condutor para o projeto através de seu Projeto
Político-Pedagógico, mas sem a possibilidade de discussões prévias,
sem horários de planejamentos em comum e com tentativas de cons-

Parcerias público-privadas na educação e a Gestão Democrática:


impacto na autonomia da escola 139
trução de propostas voltadas a “apagar incêndios”, o trabalho acabou
por não trazer benefícios, gerando insatisfação da comunidade escolar,
que culpava a escola pelo que estava acontecendo.
Além das dificuldades encontradas para a efetivação da integra-
ção das propostas na educação integral, no último ano surgiram novos
elementos terceirizados voltados à educação básica: provas avaliativas,
professores contratados, formações e materiais vindos de parceiros
externos e a busca por metodologias inovadoras prontas para serem
aplicadas em todas as escolas. Com isso, alterou-se rapidamente toda
uma configuração já estabelecida e construída por anos, o que trouxe
insegurança aos profissionais de uma Rede que, até então, sempre havia
tido espaço para diálogo e construções metodológicas próprias e que,
agora, navega em terreno desconhecido. A solução encontrada pela Se-
cretaria de Educação foi “importar” propostas, dizendo, dessa maneira,
estar construindo uma educação inovadora.
Uma forma de exemplificar o aumento de entrada de parcerias pú-
blico-privadas na rotina da escola é por meio do Gráfico 1, que traz a
progressão de aumento das PPPs ao longo dos anos somente na uni-
dade escolar em questão, conforme relato dos professores em reuniões
pedagógicas. Essas empresas desenvolveram trabalhos das mais diver-
sas naturezas, entre consultorias, oferta de materiais didáticos e minis-
trando aulas.

140 Carolina de Campos Derós | Luciani Paz Comerlatto


Gráfico 1 – Parcerias público-privadas na Rede estudada entre os anos de 2015 e 2020.

Fonte: Elaborado pelos autores.

Legenda descritiva: Gráfico em que a linha azul crescente apresenta o número de parcerias público-privadas (empresas)
que trabalharam na instituição estudada entre os anos de 2015 e 2020.

Ainda, no início do ano de 2020, todas as escolas foram surpreen-


didas com a retirada dos seus professores das atividades de educação
integral, os quais foram substituídos completamente por entidades pri-
vadas que participaram de edital para o firmamento desse tipo de con-
vênio. Não houve diálogo entre a mantenedora e as escolas para que
todos conhecessem as propostas educacionais dessas entidades a fim
de realizar o diálogo com os Projetos Político-Pedagógicos vigentes.
As tentativas de diálogo para a manutenção dos professores nos
projetos enfraqueceram com a chegada da pandemia de covid-19. Em
março de 2020, todos os trabalhos presenciais foram suspensos, e a
Rede aguardava a proposta da mantenedora para a continuidade das
atividades de forma remota. À medida que as respostas não vinham, as

Parcerias público-privadas na educação e a Gestão Democrática:


impacto na autonomia da escola 141
escolas iniciaram intensa mobilização via redes sociais para tentar man-
ter o vínculo com seus alunos e não os deixar inteiramente sem acesso
à educação. Todos ficaram sem respostas até o início do mês de junho,
quando, em uma coletiva de imprensa, as escolas foram comunicadas
que as aulas seriam on-line através de um aplicativo de celular parceiro.
A implantação da plataforma, segundo o prefeito da cidade, não teria
custos para o município, pois o valor seria custeado por doações de em-
presários. Por precisar de internet para o acesso, prometeu-se à popu-
lação acesso gratuito à rede de dados via celular, mas esse ponto só se
efetivou no mês de setembro. É importante citar que essa plataforma,
em sua origem, constitui-se uma ferramenta de gestão que era utilizada
como teste por algumas escolas para a realização de controle de fre-
quência escolar. Ela sofreu várias adaptações para servir a essa nova
funcionalidade, o que gerou inúmeros problemas de acesso por parte
dos alunos e suas famílias. Também houve um aumento das cobranças
da Secretaria de Educação sobre as escolas, visto que, por meio do seu
painel geral, era feito o controle do volume de conectividade das escolas
e do aceite de liberação de acessos.
Conforme Aguiar e Santos (2018), governos municipais utiliza-
ram-se da estratégia de flexibilização da proposta pedagógica e do
currículo sem uma proposta de política educacional central, o que
acarretou a responsabilização dos professores sobre a formulação das
estratégias curriculares nas escolas e da gestão dos meios e dos fins do
trabalho escolar. Essas políticas educacionais foram chamadas de “pro-
gramas abertos ou vazios”, que evidenciam uma posição de abertura
e acolhimento para diversos caminhos possíveis, porém geram a ine-
xistência de uma proposta unificada de trabalho. Mediante o hiato de

142 Carolina de Campos Derós | Luciani Paz Comerlatto


discussões gerado, houve a intensificação do trabalho docente a partir
de um viés gerencial mercadológico.
Entre as mudanças significativas que demonstram o atual avanço
gerencial na reorganização do trabalho docente no município estudado,
possuímos como exemplo da ruptura com os processos democráticos a
verticalização da gestão das escolas. A partir da inserção das novas po-
líticas nesse cenário, a figura do diretor escolar passa a ocupar o centro
das atenções, pois é dessa figura que se esperam, afinal, as habilidades
e a eficiência de um gerente. Conforme Aguiar e Santos (2018), esses
sujeitos passaram a ser submetidos, inclusive, a sistemáticas formas de
responsabilização através de e-mails, reuniões e comunicados oficiais
que frequentemente relembram as responsabilidades, os compromis-
sos e, especialmente, as possíveis consequências do não cumprimento
de alguma solicitação ou diretriz por parte da mantenedora. Além da
ênfase na figura dos diretores escolares, outro ponto que chama aten-
ção é que, desde a entrada da última gestão na Prefeitura, as decisões
sobre o calendário e a rotina escolar passaram a ser tomadas unilateral-
mente pela Secretaria de Educação, sem consulta e sem deliberação das
escolas ou seus representantes.

A ESCOLA DENTRO DA ESCOLA: AS PARCERIAS


PÚBLICO-PRIVADAS NO DIA A DIA

Como um dos passos da pesquisa, encaminhamos, ao final do mês


de agosto de 2020, um questionário via plataforma Google Forms aos
professores da escola. Houve o retorno de 21 questionários, do total

Parcerias público-privadas na educação e a Gestão Democrática:


impacto na autonomia da escola 143
de 30 professores. O que mais surpreendeu foi que, ao pensar as parce-
rias público-privadas na instituição de ensino, poucos citaram em suas
respostas a plataforma utilizada para as aulas on-line, elemento que tem
sido discutido de forma intensa em toda a rede de escolas do município
e que se tornou pauta constante de apontamentos, construções de tra-
balho e readaptações nas reuniões gerais e de pequenos coletivos em
razão da forma tão abrupta com que entrou na rotina dos professores.
Aparentemente, por não existir uma figura humana dentro da escola
executando tal parceria e pelo fato de a mantenedora não ter passado
documentos norteadores para o trabalho (sendo basicamente tudo
construído pelas próprias escolas, cada uma à sua maneira), existe a di-
ficuldade de entender em um primeiro momento como essa plataforma
também impacta na manutenção da Gestão Democrática.
Nas atas produzidas em reuniões de professores, fica mais evidente
o quanto essa plataforma dificultou os trabalhos até então realizados
pela escola. Após quase quatro meses sem informações sobre como
seriam desenvolvidas as atividades complementares durante o período
da pandemia, a escola se reorganizou para manter o vínculo com seus
alunos através do envio de atividades via Facebook ou WhatsApp.
A partir do início do mês de junho de 2020, data do anúncio do uso
da plataforma na mídia, as reuniões tiveram o aplicativo como pauta
principal, e neste material fica evidente o quanto isso desestabilizou
o trabalho até então executado pela escola. As principais discussões
que estavam acontecendo anteriormente versavam sobre o novo
Projeto Político-Pedagógico da escola e a proposição de planejamentos
ampliados que preenchessem as lacunas que a pandemia de covid-19

144 Carolina de Campos Derós | Luciani Paz Comerlatto


deixaria no trabalho pedagógico, mas acabaram sendo deixadas de lado
para que se desse conta da demanda de trabalho imposta.
Em decorrência da falta de documentos orientadores que organi-
zassem o trabalho pedagógico para todas as escolas da Rede de Ensino,
o grupo buscou possibilidades de adequação à sua realidade de trabalho,
quando o esforço foi o de não gerar ainda mais prejuízos aos alunos, que
já estavam sendo prejudicados por conta da pandemia. Também houve
um aumento significativo do volume de trabalho, visto que, por se tra-
tar de uma plataforma em construção, seus recursos constantemente
apresentavam falhas, eram de difícil manuseio e geravam retrabalho em
volume excessivo, conforme relatos dos gestores, professores e super-
visores. O grupo da escola ficou perdido por um tempo, buscando cami-
nhos e possibilidades para o uso da plataforma que poderiam ter sido
encaminhados pela mantenedora.
Essa atitude de trabalhar de forma vertical, não enviando orienta-
ções por escrito e não consultando as comunidades escolares para pro-
curar as melhores alternativas para cada realidade, fragilizou o trabalho
pedagógico das escolas da Rede ao longo da última gestão da cidade,
quando cresceu a culpabilização das direções de escola e equipes pelas
falhas e, com isso, também aumentou a preocupação de todo o corpo
docente em ser penalizado por algo que poderia ser visto pela mantene-
dora como insubordinação ou ilegalidade. Ao não se comprometer com
as orientações, a Secretaria de Educação acabou por gerar uma grande
desorganização nas escolas, que se reforçou em seus pronunciamen-
tos na mídia sobre a necessidade da ampliação das parcerias público-
privadas para trazer qualidade ao trabalho, visto que, aos olhos deles,
o trabalho realizado pelos servidores públicos é fraco ou insuficiente.

Parcerias público-privadas na educação e a Gestão Democrática:


impacto na autonomia da escola 145
Nos questionários preenchidos, 83,3 % dos professores sinaliza-
ram que as propostas de entidades parceiras enviadas para trabalhar
com a escola não estavam de acordo com o Projeto Político-Pedagógico.
Além disso, 94,3 % deles apontaram que, já dentro da escola, houve di-
ficuldades para a execução do PPP da escola por parte das entidades
parceiras. Entre as dificuldades, aparecem:

• a diferenciação entre as parcerias impostas pela mantenedora e


as construídas pela escola com entidades parceiras (houve maior
respeito pelo trabalho desenvolvido na escola quando as parcerias
foram construídas pela escola, como o desenvolvimento do projeto
de construção e cuidado da horta da escola);

• a tentativa de aplicar dentro da escola pública uma escola anacrô-


nica, aos moldes de uma “escola particular”;

• a falta de percepção da realidade da comunidade escolar e, conse-


quentemente, a falta de preparo dos profissionais;

• a ausência de diálogo com os professores da turma para que fosse


pensada uma linha de ação conjunta, como se os parceiros ficassem
alheios ao cotidiano escolar, o que impactou significativamente o
comportamento e o aprendizado dos alunos;

• a imposição da parceria ao grupo de professores da escola, gerando


certo desconforto;

• a falta de visão de integralidade do aluno, no sentido de considerar


o que era feito no turno regular e as ações conectadas com as pro-
postas da escola;

146 Carolina de Campos Derós | Luciani Paz Comerlatto


• o descuido com a estrutura e a infraestrutura da escola, como se
não fizessem parte do ambiente;

• a falta de conhecimento do que é a Rede de Ensino na qual as par-


ceiras ingressaram.

A fala de um dos coordenadores de uma entidade parceira, ao ini-


ciar os trabalhos na escola, evidenciou tanto o desconhecimento acerca
do histórico da escola e da Rede de Ensino quanto a crença de que par-
cerias público-privadas são sinônimo de qualidade, quando dito que
eles chegaram para fazer o Ideb da escola “bombar”. A escola, desde a
sua primeira avaliação no ano de 2015, obteve resultados positivos na
avaliação, e muito desse destaque se deve aos avanços do trabalho do
próprio grupo de professores. Na primeira reunião geral realizada para
tentar solucionar os problemas que aconteciam dentro da escola desde
o início do trabalho do parceiro, essa fala foi trazida por inúmeros pro-
fessores, que se sentiram atacados e desvalorizados enquanto profis-
sionais de educação, pois acreditavam que a entidade parceira achava
que eles não tinham competência para realizar seu trabalho.
Os professores da escola enxergaram inúmeras pioras no seu tra-
balho docente desde a entrada das parcerias público-privadas na sua ro-
tina. Nessa questão, os relatos foram extensos, o que evidencia o quanto
o impacto foi sentido no dia a dia. A principal queixa foi o desestímulo
sofrido pela ruptura do trabalho até então ofertado pela escola, com a
consequente desvalorização dos profissionais. Também apareceu em
inúmeros questionários o fato de que o modo de trabalho dos parceiros
era diferente do que é desenvolvido na escola, gerando desorganizações,
conflitos e dificuldades para todos (professores, alunos e famílias). Pro-

Parcerias público-privadas na educação e a Gestão Democrática:


impacto na autonomia da escola 147
fessores relatam que os estudantes reclamavam frequentemente de es-
tarem sendo tratados de forma “aquém” pelos “novos professores”, pois
parecia que eles achavam que os alunos não possuíam conhecimentos
prévios. Conforme a resposta dada por um dos professores, os alunos
contavam em suas aulas que essa particularidade na abordagem do tra-
balho fazia com que eles corrigissem seus novos professores em plena
aula expositiva e, assim, entrassem em conflito com eles, até mesmo se
negando a realizar as tarefas propostas, por julgarem que elas estavam
aquém das suas habilidades e competências já apreendidas.
Entre as decorrências negativas, também apareceu a demora para a
efetivação do início do integral, causada pela mantenedora por conta da
demora na assinatura dos contratos de trabalho e no repasse financeiro.
Isso gerou insatisfação por parte das famílias, que passaram a cobrar da
escola algo que não dependia dela, mas sim da Secretaria de Educação.
Com a entrada tardia das instituições, um professor relata que:

Em sua maioria, as turmas se desorganizaram. Houve perda


de referência e se multiplicaram casos de indisciplina que
antes eram pontuais. Muitas turmas ficaram mais agitadas,
e isso impactou no aproveitamento no turno regular. O cui-
dado com o ambiente e organização das salas também se
notou piora, pois sempre foi algo muito trabalhado na esco-
la, e as salas começaram a ficar com mais coisas jogadas no
chão, classes riscadas, classes e cadeiras desorganizadas.
Houve casos de alunos andarem sobre as mesas e sujarem
as paredes no turno inverso. E isso não se via com tamanha
proporção. E começou a acontecer no turno da manhã. Outro
aspecto que contribuiu para a desorganização das turmas foi
a rotatividade desses professores. Em algumas turmas foram

148 Carolina de Campos Derós | Luciani Paz Comerlatto


muitas trocas, prejudicando muito em turmas que já necessi-
tavam uma atenção maior nas questões emocionais, compor-
tamentais e de aprendizagem. Outro aspecto que impactou
negativamente foi o fato de que houve mais brigas à tarde, e
no dia seguinte ainda traziam o mesmo conflito, pois não foi
resolvido no dia anterior. Nesse sentido também, os pais aca-
bavam cobrando os professores do turno regular pelos acon-
tecimentos do turno da tarde (Questionário nº. 14).

Nesse sentido, 82,4 % dos professores consideram negativo o im-


pacto das parcerias público-privadas no que diz respeito ao exercício
da Gestão Democrática. Na compreensão dos professores, só houve
algum impacto positivo quando ocorreram escolhas por parte da
Equipe Diretiva da escola, pois elas agregavam experiência no fazer pe-
dagógico e dialogavam com o Projeto Político-Pedagógico construído
pela comunidade escolar. Pelo fato de as parcerias terem sido coloca-
das na escola sem diálogo ou planejamento conjunto com a Equipe Di-
retiva, não houve autonomia de gestão nem de projetos, tampouco das
pessoas envolvidas, originando uma “escola dentro da nossa escola”
(Questionário nº. 19). Alguns dos profissionais levados para a institui-
ção não possuíam formação pedagógica, e outros jamais tinham traba-
lhado com crianças. Assim, a postura desses trabalhadores trouxe aos
professores a sensação de descomprometimento para com a comuni-
dade escolar, tanto desses profissionais quanto da mantenedora, que
não observou a realidade da escola antes de inserir os projetos. Essa
sensação é exemplificada no questionário do professor nº. 14, quando
ele coloca que essa imposição

Parcerias público-privadas na educação e a Gestão Democrática:


impacto na autonomia da escola 149
[...] quebrou um trabalho que vinha sendo construído desde
o início da escola e que não pode continuar nos moldes an-
teriores. A comunidade escolar não foi ouvida a respeito da
proposta dessa parceria, ela foi comunicada e precisou aca-
tar. A demora para a chegada da prometida parceria também
estava além da gerência da direção e teve forte impacto nos
ânimos e no relacionamento com a comunidade escolar, pois
as famílias matricularam seus filhos considerando o turno in-
tegral, e esse demorou para se efetivar. A escola precisou se
adaptar a essa nova realidade, mas a instituição parceira veio
e pouco se adaptou ao contexto da nossa escola.

Um professor, mesmo sendo contrário às PPPs, sinalizou em seu


questionário um impacto positivo trazido por esse movimento dentro
da instituição, relacionado aos esforços realizados pela Equipe Diretiva
da escola e pelos professores para garantir o exercício da Gestão De-
mocrática. Segundo o professor:

Os fatores que fazem com que as parcerias público-privadas,


junto à nossa escola, sejam avaliados por mim como positi-
vos, no que tange ao exercício da gestão democrática, advém
do seguinte: - muitas reuniões foram feitas com os alunos no
sentido de explicar para eles o porquê daquela “nova rotina”
e da paciência, receptividade, abertura e acolhimento que
eles deveriam ter para com a “nova escola dentro da escola”
– os professores da Rede Municipal de Ensino procuraram
reunir-se com os “professores novos”, a fim de alinhavar as
condutas através de um fio condutor comum, o que não foi
possível visto que essa “escola dentro da escola” já veio com
um, por assim dizer, modus operandi pronto. Desse modo, a

150 Carolina de Campos Derós | Luciani Paz Comerlatto


gestão democrática foi exercitada, pois a escola teve de con-
viver; e esta é a terminologia mais apropriada, *conviver*,
com uma diferença escamoteadamente [sic] imposta, e isso,
por inversão, fez com que aprendêssemos a dialogar e a (re)
construir uma gestão ainda mais democrática – por diversas
vezes os professores, escrevo por mim e, tenho certeza, pe-
los meus pares também, tiveram de parar o conteúdo formal
que estava sendo trabalhado para atender questões que
eram trazidas por nossos alunos, mas questões enviadas des-
de os “professores novos”, numa tentativa mal orquestrada,
da parte destes últimos, de, quem sabe, conectar, segundo o
entendimento deles, os conteúdos que poderiam estar sen-
do trabalhados; […] Nós, professores/servidores públicos,
inúmeras vezes, tivemos de nos adaptar em nossos plane-
jamentos, pois não havia reuniões, requisitadas da parte da
“escola dentro da escola”, que pudessem fazer com que um
ponto comum fosse vislumbrado – a gestão democrática foi
exercitada no sentido de explicar para o aluno e fazê-lo en-
tender que aqueles “novos tempos” da “escola dentro da es-
cola”, bem como os “novos espaços” por ela utilizados eram
agora mesmo diferentes e deveriam ser aproveitados da me-
lhor forma para que o estudante pudesse apreender a maior
“qualidade” e “quantidade” de novos conhecimentos. Por fim,
destaco que a gestão democrática foi exercitada também nos
momentos em que os alunos estavam em horário de aula com
a “escola dentro da escola”, mas que, entretanto, problemas
(brigas, provocações, instigamentos) eram trazidos para nós,
os professores da RME, tendo de ser resolvidos da melhor
forma possível, pois tínhamos de ter em mente a ética e o

Parcerias público-privadas na educação e a Gestão Democrática:


impacto na autonomia da escola 151
acerto necessários; tudo isso tendo em mente aqueles mes-
mos professores que deveriam estar com os alunos, mas não
estavam (Questionário nº. 19).

Nessa linha, 82,4 % dos professores acreditam que as parcerias pú-


blico-privadas na sua escola reduziram a autonomia da unidade escolar
no que diz respeito à garantia do exercício da Gestão Democrática, visto
que foram parcerias impostas e que, conforme um dos professores,
“onde há imposição, não há democracia” (Questionário nº. 2). Os profes-
sores relatam que os trabalhos ofertados possuíam um direcionamento
desconectado da realidade escolar e que, como a comunidade escolar
não teve participação para tal tomada de decisão, já feriu de partida o
pressuposto para a consolidação de uma Gestão Democrática. Pouco
foi reconhecido dos projetos da instituição, do PPP e da filosofia da es-
cola, e não havia reuniões para que os professores pudessem planejar
juntos ações importantes para a comunidade nos projetos voltados para
a educação em tempo integral. As instalações e os recursos financeiros
da escola e da Prefeitura foram usados sem responsabilização pelos re-
flexos do trabalho deles na comunidade escolar. Não poder cancelar a
proposta e ter que continuar até o final do ano, mesmo sabendo que o
trabalho não era positivo, por ordem da mantenedora, foi outro fator
apresentado para comprovar a redução da autonomia da instituição. Os
professores também trouxeram o fato de que, atualmente, houve um
grande aumento de trabalho e de atribuições sem planejamento prévio
por parte da mantenedora e sem consulta da comunidade escolar para
pensar na viabilidade da proposta.
Acerca do impacto nos programas de educação em tempo integral:

152 Carolina de Campos Derós | Luciani Paz Comerlatto


O que percebíamos como consequências na mudança do
integral era considerado falta de aceitação e acolhimento,
quando na verdade se buscava fazer dar certo, uma vez que
era essa a nova realidade de turno integral, e o que a escola
visa é o aluno. [...] O que se observou é que mesmo a escola fa-
zendo esforços para que funcionasse, uma vez que era esse o
funcionamento proposto para o integral, a entidade parceira
permanecia como algo desconectado da escola. Apesar dos
esforços de setores como Direção, SSE e SOE no sentido de
mostrar o funcionamento da escola e o que estavam perce-
bendo no decorrer da parceria na busca por um alinhamen-
to das propostas e unidade, essa unidade não se efetivava.
O que se via eram concepções e funcionamentos próprios
desconectados da realidade da escola e que não estavam su-
bordinados à escola. Era como uma outra ideia de escola, mas
apenas usando a estrutura. Então os impactos percebidos e
mencionados pela equipe diretiva à entidade parceira eram
vistos como resistência de professores e má vontade. Então
o que se tinha como ideia de escola, considerando a integra-
lidade do aluno, estava cada vez mais distante, pois o que a
escola dizia para a entidade parceira pouco era considerado,
uma vez que tinha gerência própria e as questões de aprendi-
zagem não estavam subordinadas ao SSE da escola, embora
esse setor tenha feito inúmeras tentativas de alinhamento.
Sendo assim, se via muitas coisas se distanciando do que a
escola tinha como proposta, mas que não dependiam da von-
tade da Direção, pois eram fruto da parceria, e sobre ela não
se tinha total gerência (Questionário nº. 14).

Parcerias público-privadas na educação e a Gestão Democrática:


impacto na autonomia da escola 153
Com isso, conforme a narrativa identificada em uma das respostas
ao questionário, a escola teve que “se virar sozinha” para conseguir re-
solver os problemas gerados pelas parcerias público-privadas impostas.
Apesar da organização de reuniões e momentos de troca, não houve
muitos avanços, pois os professores perceberam que as instituições
parceiras não possuíam clareza sobre as suas metodologias de trabalho
e sobre como executar as suas propostas na realidade apresentada pela
comunidade escolar. No Questionário nº. 19, o professor traz o papel
que a escola teve nesse momento ímpar:

É a escola, em seu corpo diretivo, democraticamente eleito,


com seus funcionários, professores, pais e alunos, que tem de
dar conta da Educação de sua comunidade. Isso não é, pen-
so, uma coisa que possa ser delegada. Nesse sentido, a escola
é uma das poucas instituições que ainda preserva o sentido
e o âmago daquilo que pode ser genuinamente chamado de
democracia; do Conselho Escolar à Direção, passando pelo
“Grêmio Estudantil” e as eleições de “lideranças de turmas”,
até chegar nos Professores Conselheiros, também democra-
ticamente eleitos, tudo na escola pulsa e respira a democra-
cia. Assim, foi a escola que teve que resolver um sem-número
de problemas e questões que emergiram em seu cotidiano,
reafirmando, com isso, sua responsabilidade e sua primazia, à
qual é chamada, frente a qualquer instituição que seja.

Essa última citação reforça a importância da comunidade escolar


para que a Gestão Democrática, princípio constitucional, continue va-
lendo, e o fato de que a omissão do Estado cria políticas públicas efetivas
para a educação não pode servir de justificativa para que professores e

154 Carolina de Campos Derós | Luciani Paz Comerlatto


instituições escolares sejam considerados culpados pelos fracassos den-
tro das unidades escolares. A escola deve ter a possibilidade de decidir
o próprio rumo, juntamente com professores, pais, alunos, funcionários
e comunidade em geral, numa corresponsabilidade para o êxito daquela
instituição, sem desconsiderar o papel fundamental do poder público.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Com base na pesquisa realizada, evidenciamos o grande impacto


que as parcerias público-privadas tiveram no exercício da Gestão De-
mocrática na escola. Por meio do trabalho vertical da Secretaria de
Educação ao longo de inúmeras gestões, houve uma gradativa desor-
ganização da Rede Municipal de Ensino, o que fez com que as escolas
precisassem buscar formas de manter a qualidade do trabalho ofertado
para que o discurso da ineficiência do serviço público não fosse vali-
dado. O aumento da falta de orientações gerais foi potencializado e uti-
lizado para justificar a necessidade de impor metodologias e parceiros
externos, fazendo com que a entrada dessas parcerias público-privadas
acontecesse de forma intensa, em prol de uma suposta qualidade e con-
trole das unidades escolares. Os movimentos realizados pela mantene-
dora até poderiam indicar um desconhecimento do que é a Rede que
assumiram durante a sua gestão, suas construções históricas, propostas
e riquezas, porém o foco nos problemas os respalda a manter em ação
uma lógica gerencialista e mercadológica de enxergar a educação muni-
cipal que, em vez do diálogo, escolhe o externo como forma de resolver
as questões internas.

Parcerias público-privadas na educação e a Gestão Democrática:


impacto na autonomia da escola 155
Essa atitude de trabalhar verticalmente fragilizou o trabalho peda-
gógico das escolas da Rede de Ensino à medida que cresceu a culpabili-
zação das direções de escola e equipes pelas falhas. Com isso, aumentou
a preocupação de todo o corpo docente em ser penalizado por algo que
poderia ser visto pela mantenedora como insubordinação ou ilegali-
dade. Ao não se comprometer com as orientações, houve grande desor-
ganização nas escolas, reforçada pelos pronunciamentos da Secretaria
de Educação sobre a necessidade da ampliação das parcerias público-
-privadas para trazer qualidade ao trabalho, visto que, aos olhos deles,
os trabalhos realizados pelos servidores públicos eram considerados
fracos ou insuficientes.
Apontamentos como esses reforçam o sentimento dos professo-
res da escola com a entrada das parcerias público-privadas: eles elen-
caram inúmeras decorrências negativas no seu trabalho docente desde
a entrada desses parceiros, e a extensão dos relatos apresentados nos
questionários evidenciou o quanto esse impacto foi sentido no dia a dia.
A principal queixa foi o desestímulo sofrido pela ruptura do trabalho até
então ofertado pela escola, com a consequente desvalorização dos pro-
fissionais. Também apareceram em inúmeros questionários o aumento
do volume de trabalho, com maior burocratização das rotinas escolares,
e o fato de que o modo de trabalho dos parceiros era diferente do que
era desenvolvido anteriormente na escola, gerando desorganização,
conflitos e dificuldades para todos (professores, alunos e famílias) – a
chamada “escola dentro da escola”.
Foram as instâncias dentro da unidade escolar que conseguiram se-
gurar, parcialmente, o avanço dessas parcerias na instituição, trazendo à
tona a necessidade do exercício constante da Gestão Democrática para

156 Carolina de Campos Derós | Luciani Paz Comerlatto


barrar o avanço de políticas educacionais que têm como foco a respon-
sabilização das instituições públicas pelos ditos “fracassos”, por meio de
modelos baseados em métodos empresariais.
A autonomia precisa ser exercitada e entendida como a própria es-
cola, que deve decidir seus próprios caminhos, e a participação de toda a
comunidade escolar é que traz sentido às práticas da instituição. A pes-
quisa apontou que as parcerias público-privadas, quando impostas pela
mantenedora, cruzam os caminhos das instituições escolares de forma
negativa, prejudicando o exercício da Gestão Democrática ao desconsi-
derar a realidade das comunidades nas quais essas empresas se inserem
e o seu Projeto Político-Pedagógico. Os movimentos da mantenedora
não respeitaram a autonomia da escola, incorporando às suas rotinas
projetos que, se não fosse a força da comunidade, poderiam acabar por
descaracterizar a instituição escolar. A parceria público-privada inter-
fere na Gestão Democrática quando desconsidera a realidade local e
modifica a ideia de autonomia escolar, atribuindo à escola e a seus pares
a única responsabilidade pelo sucesso e/ou fracasso e afastando cada
vez mais a noção de corresponsabilidade entre poder público e socie-
dade civil.
Ao final da pesquisa, identificamos a importância de lutar contra as
parcerias público-privadas na educação, tendo em vista a necessidade
de que esses movimentos possam ser refletidos, discutidos e escolhi-
dos pela comunidade escolar. Essas reflexões acabam sendo difíceis,
porém importantes para o grupo da escola, que passa a enxergar me-
lhor as possibilidades de luta e resistência a partir do fortalecimento da
comunidade escolar como um todo, trazendo a possibilidade de rever-
ter ou minimizar o impacto das parcerias público-privadas por meio de

Parcerias público-privadas na educação e a Gestão Democrática:


impacto na autonomia da escola 157
seu Projeto Político-Pedagógico e, com isso, buscar o fortalecimento da
Gestão Democrática na instituição.

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Parcerias público-privadas na educação e a Gestão Democrática:


impacto na autonomia da escola 159
160
5
Distorção
idade/série:
um estudo sobre
seus fatores numa
escola pública do
Rio Grande do Sul

Fabiana Machado1
Elisete Enir Bernardi Garcia2

1 Especialista em Gestão da Educação pela Universidade Federal do Rio


Grande do Sul. Mestranda em Educação pela Universidade Estadual do Rio
Grande do Sul. Professora na Rede Municipal de Portão.
E-mail: fabyyanamachado@bol.com.br

2 Doutora e Mestre em Educação pela Universidade do Vale do Rio dos Si-


nos. Professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Coordenado-
ra do Grupo interdisciplinar de pesquisas em Educação de Jovens e Adultos
e Educação Popular: direito, políticas públicas e processos educacionais.
E-mail: elisete.bernardi@ufrgs.br

Distorção idade/série: um estudo sobre seus fatores


numa escola pública do Rio Grande do Sul
INTRODUÇÃO

O presente texto é resultado de uma pesquisa vinculada a uma


Prática de Intervenção realizada no percurso do desenvolvimento da 1ª
Edição do Curso de Especialização em Gestão da Educação da Universi-
dade Federal do Rio Grande do Sul campus Litoral Norte/UAB. O obje-
tivo principal da intervenção foi analisar os principais fatores que levam
à distorção idade/série dos estudantes na Escola Municipal de Ensino
Fundamental (EMEF) Vila São Jorge, localizada no município de Portão
(RS). Teve-se como foco os meios de garantia da inclusão, permanência
e sucesso escolar, por meio do trabalho coletivo entre a gestão escolar e
sua comunidade, juntamente com os demais órgãos que visam e buscam
a qualidade e a equidade3 dentro da escola, como o Conselho Escolar e o
Conselho Municipal de Educação (CME).
A preocupação com essa temática surgiu primeiramente durante
uma reunião realizada pela Promotoria Regional de Educação de Novo
Hamburgo (Preduc NH),4 que apresentou os dados educacionais do mu-
nicípio de Portão, a partir dos quais foi possível perceber que o maior
problema da escola EMEF Vila São Jorge estava relacionado à distorção
idade/série, principalmente nos anos finais, a partir do sexto ano.
Os dados apresentados indicam no munícipio um alto índice de
estudantes em distorção idade/série, com um dado de 44 % (anos fi-
nais do Ensino Fundamental), abarcando tanto as escolas municipais

3 Quando nos remetemos e pensamos na palavra equidade, precisamos conceituá-la tecnicamen-


te. Segundo o dicionário Michaelis, essa palavra pode ser definida como “uma justiça natural; dis-
posição para reconhecer imparcialmente o direito de cada um” (Equidade, 2020).

4 Reunião realizada em 28 de agosto de 2019, da qual a pesquisadora Fabiana Machado partici-


pou como representante do Conselho Municipal de Educação.

162 Fabiana Machado | Elisete Enir Bernardi Garcia


quanto as estaduais. Desse total, 40,5 % são provenientes somente da
Rede Municipal, representando, assim, um número bastante elevado e
preocupante.
É relevante analisar esses dados e buscar soluções pedagógicas
para que a escola consiga ser um espaço de permanência, com qualidade
para todas as crianças, jovens e adultos que nela estão inseridos. É nessa
perspectiva que se insere nossa pesquisa, que tem como problemática
central entender as causas que levam à distorção idade/série e, ao
mesmo tempo, refletir sobre o processo de naturalização dessa distor-
ção dentro da escola. Afinal, o que fazer e como fazer para superar esse
descompasso na aprendizagem?
Ainda, cabe perguntar a quem compete resolver ou buscar alterna-
tivas para correção de fluxo. Seria responsabilidade da mantenedora da
Educação do Município, da escola ou dos conselhos representativos da
instituição escolar?
Quando falamos em correção de “fluxo escolar”,5 estamos indi-
cando que os estudantes não estão se encaminhando pelo trajeto se-
quencial desejado pelo currículo escolar, ou seja, não estão na série/
etapa de acordo com sua idade por motivos diversos; entre eles po-
demos citar reprovações, descontinuidades do ano escolar, evasão ou
abandono. Assim, esses estudantes necessitam de políticas e estraté-
gias pedagógicas para recolocarem-se no fluxo escolar.
Segundo o site do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Edu-
cacionais Anísio Teixeira (Inep) (2020), “a distorção idade-série é o indi-
cador educacional que permite acompanhar o percentual de alunos, em

5 Ainda sobre os conceitos aqui utilizados, segundo o dicionário Michaelis, fluxo significa “movi-
mento contínuo de algo que segue um curso” (Fluxo, 2020).

Distorção idade/série: um estudo sobre seus fatores


numa escola pública do Rio Grande do Sul 163
cada série, que têm idade acima da esperada para o ano em que estão
matriculados”. Assim, consideramos que os sujeitos que se encontram
nessa situação são estudantes que têm dois ou mais anos de “atraso
escolar”. São principalmente adolescentes que, em algum momento,
foram reprovados ou evadiram e, posteriormente, retornaram à escola
em uma série não correspondente a sua idade.
Diante do exposto, a presente pesquisa6 teve como objetivo ge-
ral buscar auxiliar a escola nesse processo de investigação, apontando
meios para que se promovam a qualidade e a equidade para todos os
estudantes que estão envolvidos na distorção de idade/série. Salienta-
mos, aqui, que a educação deve estar pautada nos princípios da Gestão
Democrática; nesse sentido, o Conselho Municipal de Educação (CME),
importante órgão representativo da sociedade, vem contribuir para a
garantia do direito à educação para todos: crianças, jovens e adultos.
Nesse sentido, destaca-se que a dimensão da pesquisa foi quali-
tativa, baseada na perspectiva da pesquisa-ação. A metodologia deste
trabalho reporta-se ao processo do Projeto de Intervenção que foi rea-
lizado na EMEF Vila São Jorge e que, a partir de um encontro ampliado
com a equipe diretiva da escola, professores, Secretaria Municipal de
Educação, Cultura, Desporto e Turismo (Semecdt), Conselho Municipal
de Educação (CME) e Promotoria Regional da Educação de Novo Ham-
burgo, tratou da questão de reprovações e da distorção idade/série do
município (Rio Grande do Sul, 2019). Na ocasião, além da visibilidade
dos dados, refletiu-se sobre as ações que deveriam ser realizadas pelos

6 Cabe destacar que foram realizadas pesquisas utilizando o repositório Lume da UFRGS e não
foram encontrados trabalhos científicos ou pesquisas relacionadas à educação de Portão (RS), que
é foco da nossa pesquisa.

164 Fabiana Machado | Elisete Enir Bernardi Garcia


órgãos competentes ali envolvidos, entre eles, a escola. Esses dados fo-
ram analisados pelas pesquisadoras, resultando na escrita deste artigo.
A coleta de dados ocorreu por meio de um questionário semiaberto,
com link do Formulários Google, para que a equipe diretiva e os profes-
sores da escola respondessem às perguntas relacionadas à distorção
idade/série e à realidade das turmas em que lecionam. A organização
e a análise dos dados serviram para a interpretação sobre a realidade
investigada, dentro de uma perspectiva da Gestão Democrática.
Não poderíamos deixar de mencionar o momento de excepciona-
lidade que o mundo todo está vivendo com a pandemia do coronavírus
(SARS-CoV-2),7 pois tal situação tem desafiado a todos nós envolvidos
com a educação,8 principalmente no que tange ao abandono e ao au-
mento da evasão escolar, uma vez que muitos dos estudantes, ao perde-
rem os vínculos com a escola, e com o aumento da desigualdade social,
acabam desistindo de continuar seus estudos. E há uma piora signi-
ficativa principalmente para aqueles que já vêm de um histórico com
dificuldades de aprendizagem, comportamentais e de repetições de
anos escolares.

7 A situação que se apresenta em decorrência da pandemia da covid-19 não encontra preceden-


tes na história mundial do pós-guerra.

8 Mesmo diante de todas as questões levantadas, entendemos que a preservação da vida deve es-
tar em primeiro lugar e que o retorno das aulas presenciais deve ocorrer apenas quando tivermos
condições e barreiras sanitárias adequadas para que todos possam estar em segurança.

Distorção idade/série: um estudo sobre seus fatores


numa escola pública do Rio Grande do Sul 165
DESAFIOS DA ESCOLA PÚBLICA: A CONSTRUÇÃO
DA GESTÃO DEMOCRÁTICA

Considerando a necessidade de tomarmos por referência a ques-


tão da gestão escolar nas escolas, para que esta seja realizada com qua-
lidade e esteja pautada como base e horizonte de toda ação pedagógica,
torna-se urgente analisar e refletir sobre a questão da distorção idade/
série, suas possíveis causas e o enfrentamento para a correção do fluxo
escolar, levando em consideração a importância do trabalho pedagó-
gico dentro de uma perspectiva de Gestão Democrática.
Um dos pressupostos da Gestão Democrática é que a escola, sendo
um espaço público, tenha participação ativa de todos os envolvidos nos
processos de ensino e aprendizagem, que devem ser vistos como sujei-
tos, e não como objetos de sua construção. A escola é, ou deveria ser,
um dos espaços democráticos que busca, por meio de sua ação pedagó-
gica, a diversidade humana e a convivência. Para tal, Oliveira, Moraes
e Dourado (2004, p. 6) entendem que o trabalho escolar se situa numa
esfera não material, pretendendo assim a formação de seres humanos
enquanto sujeitos históricos, e enfatizam que “a escola, nessa ótica,
caracteriza-se como uma instituição social cuja especificidade consiste
em seu caráter criador, como geradora do conhecimento, consubstan-
ciada na indissociabilidade entre teoria e prática”.
Freire (1989, p. 30) corrobora essa ideia ao afirmar que, na cons-
trução do conhecimento, o direito à palavra vem do reconhecimento de
que nenhum de nós está só no mundo e de que “cada um de nós é um
ser no mundo, com o mundo e com os outros. Viver ou encarnar esta

166 Fabiana Machado | Elisete Enir Bernardi Garcia


constatação evidente, enquanto educador ou educadora, significa reco-
nhecer nos outros [...] o direito de dizer a sua palavra”.
A implantação do Sistema Municipal de Educação (SME), que é
uma das formas de possibilitar a construção da Gestão Democrática no
município, busca efetivamente promover a qualidade da educação em
todas as suas instâncias, com base na participação da sociedade como
um todo. Dessa maneira, a criação do SME tornou-se um importante
ato de responsabilidade de todos os seus envolvidos, pois a proposta
educacional deve estar embasada nos princípios da Gestão Democrá-
tica e em suas necessidades e características locais, como afirma Werle
(2008, p. 84) quando diz:

Criar seu SME indica a intenção de assumir, com responsa-


bilidade pedagógica, administrativa e política, a educação lo-
cal. A criação do SME possibilita restringir o abuso do poder
e do arbítrio de alguns poderosos e de instalar, por exemplo,
processos qualificados de contratação/concurso de docen-
tes de forma que sua designação para escolas da rede siga
normas expressas no município, divulgadas e comuns a todas
as escolas.

Assim, o SME possibilita que a responsabilidade pela educação seja


um comprometimento da comunidade portonense, uma vez que sua au-
tonomia e abrangência se tornam locais e todos participam do processo
de democratização do ensino. Ainda, nesse sentido de tomada de de-
cisões coletivas e descentralização do poder do gestor escolar, um dos
principais objetivos da escola, na visão de Gestão Democrática, apon-
tado no Projeto Político-Pedagógico da escola, é fortalecer e democra-
tizar as relações humanas, bem como ampliar as relações da escola com

Distorção idade/série: um estudo sobre seus fatores


numa escola pública do Rio Grande do Sul 167
a comunidade. Segundo Paro (2002), a Gestão Democrática da escola
pública só vai mudar, tornando-se democrática e autônoma de fato, se a
comunidade escolar estiver consciente da força da sua união, exigindo a
partir daí seus direitos como comunidade escolar unida.

A problematização: distorção idade/série

Pela legislação que organiza e normatiza a oferta de ensino no país


(Lei nº. 9.394, de 1996), a criança deve ingressar aos seis anos de idade
no 1º ano do Ensino Fundamental e concluir a etapa aos 14 anos. Na
faixa etária dos 15 aos 17 anos, o jovem deve estar matriculado no En-
sino Médio. O índice da distorção9 é calculado em anos e representa a
defasagem entre a idade do estudante e a idade recomendada para a
série que ele está cursando (Brasil, 1996).
Durante a pesquisa realizada, muitos dos professores entrevista-
dos expressaram o entendimento de que a taxa de distorção idade/série
atinge os maiores índices no 6º ano do Ensino Fundamental, em decor-
rência das aprovações dos estudantes dos anos iniciais, do 1º ao 4º ano,
com muitas dificuldades de aprendizagem. Essa visão desconsidera os
aspectos sociais, cognitivos e emocionais de cada estudante envolvido
nesse processo.
O artigo 24, inciso V, da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (Lei
nº. 9.394) respalda legalmente uma proposta pedagógica de aceleração
quando estabelece que um dos critérios da verificação do rendimento
escolar seja a aceleração de estudos para estudantes com atraso esco-

9 O estudante é considerado em situação de distorção ou defasagem idade/série quando a dife-


rença entre a idade do aluno e a idade prevista para a série é de dois anos ou mais.

168 Fabiana Machado | Elisete Enir Bernardi Garcia


lar. Mais do que uma intervenção pedagógica, alterar o quadro da dis-
torção idade/série é um investimento na educação do município, e se
faz necessário entender como esse processo ocorre dentro da escola,
uma vez que a correção e a manutenção de fluxo escolar exigem um
diagnóstico de cada realidade.

Há uma íntima relação entre a taxa de distorção idade-série e


a taxa de repetência, sendo que esta é causa daquela. Embora
a relação não seja linear, ela é monótona crescente – quanto
maior for a repetência nos anos anteriores ao ano em ques-
tão, maior será a defasagem (Soares; Satyro, 2008, p. 10).

A problemática da distorção idade/série precisa ser pensada para


além de um espaço de recuperação; precisa estar em sintonia com a
Proposta Pedagógica da escola e levar em consideração os interesses e
as especificidades de cada estudante, buscando estratégias que visem à
prevenção e à manutenção das aprendizagens. Uma das possibilidades
de discutir a questão apresentada pode ser por meio dos Conselhos Es-
colares, o que passaremos a desenvolver a seguir.

O Conselho Escolar na escola: como fica a participação da


comunidade?

O Conselho Escolar tem um papel fundamental para a garantia de


dois pilares fundamentais para a sociedade: democracia e cidadania.
Nessa linha de pensamento, o Conselho Escolar constitui-se como um
importante instrumento para propor, de forma participativa, caminhos
de discussão e de resoluções das questões locais que envolvem a escola.

Distorção idade/série: um estudo sobre seus fatores


numa escola pública do Rio Grande do Sul 169
O Conselho Escolar pode ser visto como um mecanismo de Ges-
tão Democrática da escola. Segundo Werle (2003), ele se relaciona com
os princípios da igualdade, da liberdade e do pluralismo em virtude da
sua composição por diferentes segmentos da comunidade escolar em
regime de paridade, assegurando o direito de manifestação de diversos
pontos de vista e de diferentes opiniões.
Podemos afirmar, então, que a instituição do conselho escolar se
justifica pela necessidade de termos um espaço de participação efetiva,
tanto dos pais e responsáveis pelos estudantes quanto dos professores
e demais segmentos da comunidade escolar. Esse espaço de participa-
ção que o Conselho Escolar representa poderá complementar os demais
espaços de participação que temos na escola, como conselho de classe,
reuniões pedagógicas, associação de pais e mestres, assembleias e reu-
niões de pais, no enfrentamento dos nossos problemas, reafirmando e
legitimando as decisões a serem tomadas coletivamente.
Em conversa com membros que compõem o Conselho Escolar da
escola investigada sobre o entendimento que possuem com relação
às verdadeiras funções desse Conselho, verificou-se que muitos deles
manifestaram que têm pouca ou nenhuma participação na tomada das
decisões escolares; ou seja, muitas informações às quais os membros
do Conselho Escolar têm acesso estão somente relacionadas a assun-
tos financeiros da escola, e os conselheiros muitas vezes não entendem
a função do Conselho e pouco sabem sobre o seu funcionamento. Con-
sequentemente, suas ações se restringem a atender a direção da es-
cola, principalmente no que tange às exigências que o diretor enfrenta
no seu cotidiano: “Em geral, os pais não fazem nada, só vão lá para ou-
vir algumas coisas e mais nada. O conselho escolar é um ‘segmento’ da

170 Fabiana Machado | Elisete Enir Bernardi Garcia


direção. É só para assinar papel. A gente não sabe bem o que se pode
fazer, como fazer. Precisamos de uma ajuda, de uma assessoria (Mãe
representante, 2020).
Quando questionamos se dentro do Conselho Escolar se discute
sobre a problemática da distorção idade/série e em que momentos e es-
paços a escola vem realizando essa escuta ativa com sua comunidade
escolar, há uma unanimidade entre todos: “nunca conversamos sobre
isso”. Pergunta-se: como avançar o debate dentro da escola se não há
a participação de todos? Como desnaturalizar a compreensão de que a
disfunção idade/série acontece por culpa dos estudantes?
O Conselho Escolar mostra-se também um espaço onde se pode
debater com profundidade as problemáticas e o cotidiano de maneira
crítica, contando com a participação mais efetiva e reunindo todos
os segmentos escolares. Dessa maneira, qual é a função do Conselho
nessa situação?

A prática de consulta ao conselho escolar não parece estar


implantada. Em algumas escolas, professores fazem assem-
bléias de docentes e decidem alterar procedimentos de
recuperação, sem envolver o conselho escolar na decisão. Os
dados sugerem que a criação do conselho escolar não é sufi-
ciente para introduzir uma cultura de participação na comu-
nidade escolar (Werle, 2003, p. 175).

Cabe a nós, educadores, percebermos e entendermos que a dis-


torção idade/série precisa ser mais do que discutida pelos órgãos
competentes, como Secretaria de Educação e Conselho Municipal de
Educação, mas também ser entendida como um assunto que deve ser
dialogado com todos os membros da comunidade escolar. A escola pre-

Distorção idade/série: um estudo sobre seus fatores


numa escola pública do Rio Grande do Sul 171
cisa se questionar sobre o que vem fazendo de fato para resgatar a au-
toestima e prever alternativas que visem à superação dessa defasagem
entre os estudantes.
Seguindo o estudo sobre a temática, a seguir, vamos discutir e pro-
blematizar os dados pesquisados na escola.

UMA MIRADA POR MEIO DOS INDICADORES

Para que possamos refletir sobre a realidade da escola pesquisada,


é preciso analisar os indicadores que apontam para a distorção idade/
série. Esses indicadores são fundamentais para a compreensão das re-
provações que acontecem na escola.
No Gráfico 1,10 que demonstra as reprovações da escola no ano de
2018, podemos verificar que, de 280 alunos, 173 reprovaram. É possível
inferir que essa situação de reprovação é que tem gerado a disfunção
idade/série na escola. Outra questão dessa realidade é pensar os moti-
vos que levaram ao alto número de reprovados nos sextos anos, visto
que, somado ao dos sétimos anos, atinge o percentual de 37 % de repro-
vados da escola. Podemos, assim, identificar que as maiores taxas de es-
tudantes fora da idade estão nos anos finais do Ensino Fundamental.

10 Os dados do Gráfico 1 foram coletados pela escola no segundo semestre de 2019 e objeti-
varam olhar a vida escolar dos estudantes ao longo de sua trajetória, considerando desde o seu
ingresso no Ensino Fundamental, por meio das fichas de matrículas e históricos escolares.

172 Fabiana Machado | Elisete Enir Bernardi Garcia


Gráfico 1 – Reprovações em 2018.

Fonte: Elaborado pelos autores.

Legenda descritiva: O gráfico de barras horizontais mostra o número de reprovações durante o ano de 2018. No eixo
vertical estão listados os anos/seriação do primeiro ao nono ano, mais a opção “nunca reprovou”. O gráfico mostra que no
primeiro ano houve zero reprovações, no segundo ano, cinco reprovações, no terceiro ano, 15 reprovações, no quarto ano,
13 reprovações, no quinto ano, 18 reprovações, no sexto ano, 61 reprovações, no sétimo ano, 42 reprovações, no oitavo
ano, 14 reprovações, no nono ano, 5 reprovações e “nunca reprovaram”, 152 respostas. (Fim da descrição).

A equipe de gestão da escola, ao ser questionada sobre esse con-


texto de reprovação, apresentou as principais razões para essa situa-
ção, a saber: o não acompanhamento da família, o excesso de faltas e a
transferência escolar.
Caberia perguntar se esses estudantes são os mesmos dos anos
iniciais. É preciso considerar que muitos estudantes ingressam em no-
vas escolas no sexto ano. Uma análise que poderia ser realizada é verifi-
car se os alunos reprovados nos sextos anos são predominantemente os
que ingressaram na escola naquele ano. Essas questões podem indicar
mais pontualmente a análise da reprovação.

Distorção idade/série: um estudo sobre seus fatores


numa escola pública do Rio Grande do Sul 173
É preciso pensar essa situação das reprovações não só para evitar a
disfunção idade/série, mas também para que a escola cumpra com a sua
finalidade de aprendizagem com qualidade para todos. Nesse sentido,
de acordo com Oliveira (2002, p. 250):

Uma escola de qualidade é certamente aquela que possui cla-


reza quanto a sua finalidade social, o que em geral se dá por
meio do projeto político pedagógico e da gestão democráti-
ca. A escola precisa observar o cumprimento de seu papel
no que tange à atualização histórico-cultural dos educandos
mediante apreensão dos saberes historicamente produzidos
pelo conjunto da sociedade.

Como mencionado na introdução deste artigo, a Promotoria Re-


gional de Educação que abrange o município de Portão apresentou os
dados relativos ao município em relação ao quantitativo de matrículas,
distorção e taxas de rendimento. De acordo com os dados apresentados
a respeito das matrículas nos anos iniciais, em 2015, havia 2.344 estu-
dantes matriculados; em 2019, 2.256 estudantes. Já nos anos finais do
Ensino Fundamental, em 2015, havia 1.809 estudantes matriculados;
em 2019, 1.732 estudantes (Rio Grande do Sul, 2019). Com isso, obser-
vamos uma diminuição na taxa de matriculados nos anos finais, estabe-
lecendo um comparativo de 2015 até 2019.
Com relação à taxa de distorção idade/série, em 2019, nos anos ini-
ciais do Ensino Fundamental, apresentava-se um dado de 14,7 %; e, nos
anos finais, encontrou-se a expressiva porcentagem de 42,8 %.
Os dados apresentados já vêm sendo discutidos amplamente, não
só pela escola, mas pela educação do município como um todo, para que
se busquem alternativas para o enfrentamento da defasagem idade/

174 Fabiana Machado | Elisete Enir Bernardi Garcia


série e a correção do fluxo escolar, de maneira efetiva e assertiva, pois
o percentual de 42,8 % de distorção para os anos finais do Ensino Fun-
damental não pode passar despercebido. Além disso, o percentual de
reprovações que, somado com o abandono, passa de 30 % é também
uma questão que precisa ser estudada e que demanda ações para evitar
essa situação. A pesquisa que resultou neste artigo pretendeu ser um
suporte para essa análise e ajudar a trilhar caminhos possíveis pela es-
cola e pela comunidade escolar em busca da garantia da aprendizagem
e da qualidade da educação.

RESULTADOS: REFLETINDO SOBRE A REALIDADE

Garantir a todos uma trajetória escolar bem-sucedida é um dever


de todos os educadores e deveria ser um compromisso de todos os ór-
gãos responsáveis pela educação. No intuito de compreender os índices
de distorção idade/série e os desafios implicados na gestão do trabalho
pedagógico na Escola Municipal de Ensino Fundamental Vila São Jorge,
inicialmente, realizou-se uma análise dos dados obtidos para que assim
se entendesse a realidade da escola.
Na pesquisa realizada11 com os professores da escola mencionada,
podemos perceber a porcentagem de estudantes que estão em distor-
ção idade/série. Foram entrevistados 17 professores – três da Educação
Infantil, sete dos anos iniciais do Ensino Fundamental e sete dos anos
finais do Ensino Fundamental – e três membros da equipe de gestão da
escola – diretora, vice-diretora e supervisora escolar.

11 O Termo de Consentimento Institucional referente à pesquisa realizada na EMEF Vila São Jor-
ge encontra-se em poder das autoras.

Distorção idade/série: um estudo sobre seus fatores


numa escola pública do Rio Grande do Sul 175
Conforme podemos ver no Gráfico 2,12 ao serem interrogados se
tinham alunos em distorção idade/série, 60 % dos entrevistados afirma-
ram que já tiveram ou têm essa situação em suas turmas.

Gráfico 2 – Distorção idade/série na escola.

Fonte: Elaborado pelos autores.

Legenda descritiva: O gráfico sobre “Distorção idade/série na escola” possui formato circular(pizza) e apresenta as
respostas para o questionamento: “Nas turmas em que trabalha, você tem alunos em distorção idade/série?” À direita
uma legenda, em que o azul representa as respostas “sim” e o vermelho “não”. Ao todo, foram 20 respostas em que 60%
responderam“sim” e 40% “não”.

Os motivos para a distorção idade/série elencados pelos docentes


nos questionários foram a repetência e o ingresso tardio com suas múl-
tiplas causas, dentre elas a dificuldade na aprendizagem. Esses, segundo
os professores, são os fatores que levam os estudantes a estar na sala
de aula com idade acima da dos demais, gerando inúmeras consequên-
cias para os envolvidos.

12 Dados coletados pelas pesquisadoras na EMEF Vila São Jorge via Google Forms.

176 Fabiana Machado | Elisete Enir Bernardi Garcia


Esse fato ocasiona um estímulo à evasão, prejudicando o anda-
mento do estudante no fluxo do sistema educativo, também resultando
em desperdício de recursos financeiros e frustrações de perspectivas
pessoais. Além disso, cabe evidenciar que parte das políticas públicas
voltadas para a melhoria da qualidade do ensino preocupa-se com o fra-
casso escolar e com o fato de a defasagem idade-série estar atuando
diretamente no resultado dos indicadores de evasão, abandono e re-
provação (Fritsch; Vitelli; Rocha, 2014, p. 221).
Outro dado muito relevante que apareceu na pesquisa foram os
fatores que levam a essa distorção. O destaque está justamente, con-
forme o que já vem sendo mencionado, na dificuldade de aprendizagem
e na falta de apoio familiar.

Gráfico 3 – Motivos que levam à distorção idade/série.

Fonte: Elaborado pelos autores.

Legenda descritiva: O gráfico de barras horizontais sobre os “Motivos que levam à distorção idade/série”, apresentam
as respostas para o seguinte questionamento: “Na sua opinião, quais são os motivos que levam à distorção idade/série?”
Dentre os motivos apresentados, 90% estão relacionados à difculdade de aprendizagem, seguidos por 85% das respostas
para falta de apoio familiar. 60% referem-se ao desinteresse, 50% indisciplina, 25% à metodologia dos professores e a
outros fatores e 20% a problemas de relacionamento (fim da descrição).

O maior número de casos apontados pela pesquisa ocorre nos anos


finais do Ensino Fundamental ou um pouco antes, a partir do 5º ano. Al-
guns estudantes começam a se desestimular, vão perdendo o interesse,

Distorção idade/série: um estudo sobre seus fatores


numa escola pública do Rio Grande do Sul 177
e isso está muito presente no 6º ano, considerando que, a partir desse
ano, os alunos passam a ter vários professores, na maioria das vezes um
professor por componente curricular (nos anos iniciais, a organização
curricular é feita por unidocência – um professor titular por turma). A
pesquisa identificou que uma das questões que podem estar associadas
ao menor número de casos de evasão e reprovação dos anos iniciais tem
relação com a aproximação, com o vínculo que é criado pelos docentes
com os estudantes, já que convivem por mais tempo.

Gráfico 4 – Perfil dos alunos em distorção idade/série.

Fonte: Elaborado pelos autores.

Legenda descritiva: O gráfico de barras horizontais sobre o “Perfil ds alunos em distorção idade/série”, responde ao
qustionamento: “Com base na sua experiência, a maioria dos alunos em distorção idade /série tem como perfil”. 100% das
respostas indicam alunos que apresentam dificuldade de aprendizagem, 65%, alunos indiciplinados e 15% indicam alunos
apáticos. (Fim de descrição).

No momento em que analisamos esses dados, percebemos que,


caso os estudantes pudessem ter sido escutados, o que não foi possível
em razão da pandemia de covid-19, provavelmente poderíamos agregar
outra compreensão que nos trouxesse outros motivos talvez aqui não
mencionados. Porém, deixamos registrada a necessidade de que isso
seja previsto pela ação da escola.

178 Fabiana Machado | Elisete Enir Bernardi Garcia


Outra questão que surge com a pesquisa é: por que muitos desses
estudantes em distorção idade/série são encaminhados para a Educa-
ção de Jovens e Adultos (EJA), que não é ofertada pela escola? Podemos
nos perguntar também sobre onde está a responsabilidade da escola,
da modalidade sequencial (regular), com a matrícula, a frequência e o su-
cesso (aprovação) dos estudantes. Por isso, precisamos entender todo
esse processo: o caminho do estudante no ensino sequencial e sua saída
para a Educação de Jovens e Adultos.
A pesquisa, ao levantar essa questão, buscou analisar a percep-
ção de professores que atuam na única escola municipal de Portão que
oferece a modalidade EJA a respeito dos estudantes que se encontram
em distorção idade/série e são recebidos na EJA. Segue um excerto de
uma professora:

Geralmente ele veio “expulso” da escola diurna e está na ex-


pectativa de entrar para a escola dos adultos que vão para
escola à noite, que fazem o que bem entendem. São aqueles
que foram excluídos da escola regular antes de concluir o
quinto ano. Quando vê que seus colegas não são seus pares
sociais, que está num grupo mais identificado com seus pais
e avós, ele quer saber o que precisa fazer para ir para o próxi-
mo Módulo, da gurizada (Relato de uma professora da EJA, da
Rede Municipal de Ensino de Portão, dos anos iniciais, 2020).

A professora segue sua fala dizendo que o estudante, quando de-


cide seguir os estudos no módulo seguinte, relativo aos anos finais, age
de forma proativa:

Distorção idade/série: um estudo sobre seus fatores


numa escola pública do Rio Grande do Sul 179
Ouve as possibilidades, participa daqueles momentos de
construção de conceitos, de reflexão do ser aluno, de como
aprender... Escolhe: ou se organiza, organiza seus conheci-
mentos que basicamente estão solidificados no ensino re-
gular com anos de repetência e dão conta desta fase inicial
de EJA, se prontifica a expor suas dificuldades de aprendi-
zagens, estuda, faz as tarefas, aprende, dá conta do que fal-
tava, vai para o próximo Módulo e segue suas aprendizagens
em meio ao pessoal mais jovem, ou desiste. Às vezes voltam
para a nossa sala de aula no recreio, às vezes vem para per-
guntar dúvidas de um novo conteúdo [...] (Relato de uma pro-
fessora da EJA, da Rede Municipal de Ensino de Portão, dos
anos iniciais, 2020).

É necessário compreendermos todos os fatores que estão


envolvidos nas questões de reprovação, a distorção idade/série e as
implicações geradas não só pelos índices, mas também pelas trajetórias
desses sujeitos que são submetidos a situações de fracasso.
Garcia (2019, p. 295) corrobora essa ideia quando se refere à distor-
ção idade/série e ao caminho que o jovem percorre até chegar na EJA:

Se faz necessário repensar a escola de “ensino regular se-


quencial” para que não seja mais preciso o jovem transferir-
-se da mesma para frequentar a EJA, por ser grande demais,
por apresentar um risco com sua presença indisciplinada, ou,
ainda, por estar em disfunção idade-série.

Tudo isso vai além da realidade que a escola apresenta: faz parte
de um problema percebido no contexto nacional, que também é indi-
cado nas avaliações de larga escala e em documentos internacionais. O

180 Fabiana Machado | Elisete Enir Bernardi Garcia


Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) também se manifesta
sobre isso:

Além de enfrentar o círculo vicioso de reprovação, atraso


escolar, distorção idade-série e abandono, é importante
que as redes educacionais e as escolas busquem construir
uma nova cultura, na própria escola e em diálogo com as fa-
mílias, de não mais produzir fracasso escolar. Uma cultura
de currículo que permita a todos aprenderem com significa-
do (Unicef, 2018, p. 14).

Há índices que ajudam a compor esse retrato retirados do Índice


de Desenvolvimento da Educação Básica (IDEB), uma ferramenta para
acompanhar o desempenho da escola, calculado a partir dos dados so-
bre aprovação escolar obtidos no Censo Escolar e das médias de de-
sempenho nas avaliações do Inep, o Sistema de Avaliação da Educação
Básica (SAEB) para os municípios. Analisando o IDEB do município de
Portão e da EMEF Vila São Jorge (4º/5º ano e 8º/9º ano) referente ao
ano de 2019, constatamos que a nota do município no IDEB 2019 para
os anos iniciais ficou em 5.9, sendo que a média projetada foi de 6.1.
Com relação à escola pesquisada, a média do IDEB nos 4º/5º anos
ficou em 5.5, visto que a meta projetada era de 6.4. Dos 8º/9º anos, a
nota referente ao ano de 2019 não apareceu, em razão de o número
de participantes no SAEB ser insuficiente para que os resultados
fossem divulgados.
Dessa maneira, sinaliza-se que os dados e as reflexões que estamos
apresentando apontam para uma cultura de reprovações e, por conse-
quência, para a distorção idade/série, naturalizando, por vezes, essa si-
tuação. Não há como falar em correção de fluxo escolar sem pensar em

Distorção idade/série: um estudo sobre seus fatores


numa escola pública do Rio Grande do Sul 181
alternativas de manutenção desse fluxo, ou corre-se o risco de apenas
criar paliativos, perpetuando o mesmo ciclo conhecido nas escolas, com
sujeitos em situação de não aprendizagem.

A construção de caminhos possíveis de percorrer

São muitos os desafios colocados para a escola e seus profissio-


nais em relação aos temas da contemporaneidade; entre eles estão as
questões geracionais, as novas configurações familiares, o consumo
exacerbado e o excesso de exposição aos meios eletrônicos. Logo,
faz-se necessário promover diálogos sobre as temáticas que envolvem
o contexto cotidiano dos estudantes, tendo como perspectiva que a
educação deve ser guiada pelos princípios da democracia, garantindo o
acesso, a permanência e o sucesso dos estudantes na escola e propor-
cionando-lhes as condições necessárias para que obtenham êxito, sem
qualquer forma de discriminação.
Durante a pesquisa, várias soluções foram apontadas pelos entre-
vistados em relação às questões de reprovações e distorções idade/sé-
rie, das quais destacamos:

Quadro 1 – Soluções apontadas.

Uma proposta a curto prazo seriam turmas de aceleração. Mas, a longo


prazo, é importante que a escola tenha um projeto para as famílias se
integrarem com a escola e, consequentemente, acompanhar a vida esco-
lar de seus filhos. Acredito que também seria importante os professores
reverem as suas metodologias quando um percentual muito grande da
turma está reprovando.

182 Fabiana Machado | Elisete Enir Bernardi Garcia


Seria interessante fazer um “acelera”, mas de uma forma pedagógica coe-
rente com o ensino. Criar um projeto para alunos que estão com dificulda-
de e tentar recuperá-los para avançarem de turma.
Na minha opinião, é uma questão social, porque a maioria dos alunos que
apresentam o problema da distorção idade/série são justamente os menos
favorecidos e com família desestruturada, mas penso que devemos fazer
algumas ações simples que estão ao nosso alcance, como trazer as famílias
para a escola, dialogar com elas e se aperfeiçoar buscando novas práticas
de ensino.
Construção de uma turma diferenciada, com metodologia diferente da
convencional, aulas de reforço em contraturnos, maior acompanhamento
docente, maior incentivo financeiro e pedagógico, educação integral com
alimentação reforçada (café da manhã e almoço na escola).

Fonte: Elaborado pelos autores.

Em todas as respostas apresentadas, percebeu-se que a correção


do “fluxo” deve partir de um trabalho pedagógico que seja efetivo, que
busque e resgate a família para dentro da escola e que crie condições
pedagógicas para transformar a aprendizagem desses estudantes. So-
ma-se a essa análise também a professora historiadora do município,
quando diz que:

A escola é o melhor lugar e o melhor caminho para a luta po-


lítica pela igualdade e inclusão social. Uma visão de escola
democrática aposta na universalidade da cultura escolar, no
sentido de que cabe à escola transmitir os saberes públicos
que apresentam um valor, independentemente de circuns-
tâncias e interesses particulares, em função do desenvolvi-
mento humano (Girardi, 2020, p. 21).

Distorção idade/série: um estudo sobre seus fatores


numa escola pública do Rio Grande do Sul 183
Não podemos deixar de mencionar o Plano Municipal de Educação
(PME) do município de Portão (RS), com destaque à meta 2: “Universa-
lizar o Ensino Fundamental de 9 (nove) anos para toda a população de
6 (seis) a 14 (quatorze) anos e garantir que pelo menos 95 % (noventa
e cinco por cento) dos alunos concluam essa etapa na idade recomen-
dada, até o último ano de vigência deste PME” (Portão, 2015, p. 52).
Cabe aqui lembrar que o último ano de vigência do PME será 2025.
Esse Plano é uma política educacional de planejamento que contém me-
tas e estratégias para curto, médio e longo prazos, objetiva atender às
demandas reais da educação do município e engloba ações de todas as
esferas administrativas atuantes no território municipal.
Pelos estudos e análises da pesquisa, podemos dizer que uma su-
gestão para alterar a realidade aqui posta seria construir uma proposta
que utilizasse as brechas da legislação sobre as classes de aceleração,
que é uma estratégia de intervenção pedagógica, cuja metodologia al-
ternativa objetiva sanar lacunas de aprendizagem e melhorar o desem-
penho dos estudantes, possibilitando uma equalização do tempo versus
aprendizagem ao longo de sua trajetória escolar. Como consequência
dessas ações, espera-se corrigir o fluxo e superar a questão do fracasso
escolar, que tem raízes tanto na desigualdade social quanto em meca-
nismos internos à escola.
A proposta das classes de aceleração,13 de maneira geral, visa di-
minuir a defasagem idade/série, corrigindo o fluxo escolar ao readaptar
estudantes com dois anos ou mais de repetência no ensino sequencial.

13 A aceleração da aprendizagem é um termo atribuído ao programa instituído em 1997 pelo


Ministério da Educação (MEC), que visa corrigir a distorção do fluxo escolar, ou seja, a defasa-
gem entre a idade e a série que os estudantes deveriam estar cursando.

184 Fabiana Machado | Elisete Enir Bernardi Garcia


A correção do fluxo escolar demanda políticas públicas, financiamento
e proposta pedagógica, pois existe legislação específica para isso. Veja-
mos o que diz o Conselho Estadual de Educação do Rio Grande do Sul,
na Resolução nº. 343:

Art. 4º As Instituições de ensino devem implementar pro-


jetos pedagógicos contemplando diferenciação curricular,
conforme o disposto no artigo 23 da LDBEN, para os ado-
lescentes com defasagem idade/etapa escolar, podendo ser
adotado como referência o Programa Trajetórias Criativas
(Rio Grande do Sul, 2018, p. 3).

Em conversa com a Secretária de Educação de Portão, ela apon-


tou algumas ações que já vêm sendo realizadas com os estudantes que
apresentam dificuldades de aprendizagem:

Para prevenção, em 2019, criamos o Núcleo de Aprendi-


zagem, um projeto em parceria com a APAE do município,
com o objetivo de atender crianças do 3º ano do EF com di-
ficuldades de aprendizagem e crianças da Educação Infantil
com dificuldades na fala. Contempla duas profissionais de
Psicopedagogia, uma fonoaudióloga, uma psicóloga e uma
profissional intérprete em LIBRAS. Em 2020, pretendíamos
ampliar a carga horária de alguns profissionais; infelizmente,
devido à pandemia, não conseguimos dar seguimento (En-
trevista com a Secretária de Educação de Portão, Rosaura
Gomes, 2020).

Certamente, algumas estratégias de superação dos problemas


educacionais que afetam a instituição escolar, com esforço coletivo, são
possíveis de serem aplicadas, o que consideramos fundamental para

Distorção idade/série: um estudo sobre seus fatores


numa escola pública do Rio Grande do Sul 185
que haja uma crescente melhora em relação aos problemas de distorção
diagnosticados e à possibilidade de os estudantes enfrentarem cada vez
menos o tão debatido fracasso escolar. Nesse sentido, Hoffmann (2001,
p. 112) nos ajuda a entender a importância do envolvimento e da escuta
das diferentes vozes da comunidade escolar:

É preciso criar espaços para ouvir o grupo de pessoas


envolvidas, sem pressa de chegar a soluções. É preciso
dar vez aos mais jovens, à comunidade que vê a escola de
fora, aos professores que vêm de outras instituições, aos
alunos de todas as idades. É preciso buscar a diversidade de
pensamento, ao invés de afastá-la sistematicamente, com
medo das discussões acontecerem.

Sob esse enfoque, destacamos que é necessário que surjam novas


discussões no interior da escola sobre o tema distorção idade/série e
suas causas. Os estudantes precisam ter espaços para dizer o que pen-
sam, numa relação dialógica e recíproca. O Sistema Municipal de En-
sino, a comunidade, educandos e educadores podem estabelecer laços
de pertencimento com a escola e, ao fortalecerem seus vínculos, con-
seguir chegar mais perto do entendimento dos problemas que afastam
muitos estudantes do sucesso escolar. Com isso, de forma coletiva, cabe
buscar alternativas para inclusão dos estudantes em descompasso de
aprendizagem, tornando-os parte da escola e buscando que cada vez
menos estudantes estejam incluídos nos índices de insucesso escolar.
É por meio dessa construção coletiva que teremos uma organização
capaz de efetivar uma educação de qualidade, gratuita e para todos,
além de formar cidadãos críticos capazes de transformar a sua reali-
dade. Essas ações devem fazer parte do planejamento da escola. Con-

186 Fabiana Machado | Elisete Enir Bernardi Garcia


forme Libâneo (2005, p. 149), “o processo de planejar refere-se a uma
antecipação da prática, de modo a prever e programar as ações e os
resultados desejados, constituindo-se numa atividade necessária à to-
mada de decisões”.
Refletindo também com Werle (2003), podemos dizer que a par-
ticipação dos sujeitos nas ações e nas decisões ajudaria no empodera-
mento e no protagonismo de pensar uma escola conectada às suas vidas:

A participação dos indivíduos nas instituições sociais é di-


retamente proporcional à posse de instrumentos materiais
e culturais e suas possibilidades de expressão. Esse aspecto
assegura-lhes competência social. Sem isto, os indivíduos
tornam-se constrangidos a delegar seus espaços de partici-
pação, desapossando-se do campo de poder, dando espaço
ao exercício de dominação pelos demais (Werle, 2003, p. 83).

Podemos sinalizar que uma das situações que foi levantada pela es-
cola diz respeito à participação dos pais na vida escolar dos filhos, apon-
tando que se faz necessário buscar uma sinergia entre pais e filhos para
que a escola possa ter maior participação das famílias nas atividades e
no planejamento escolar.

Não é possível respeito aos educandos, à sua dignidade, a seu


ser formando-se, à sua identidade fazendo-se, se não se le-
vam em consideração as condições em que eles vêm existin-
do, se não se reconhece a importância dos “conhecimentos
de experiência feitos” com que chegam à escola (Freire, 1996,
p. 26, grifo do autor).

Distorção idade/série: um estudo sobre seus fatores


numa escola pública do Rio Grande do Sul 187
Em sintonia com o pensamento de Freire (1996), entendemos que é
necessário dizer que uma das ações dos gestores é a de possibilitar que
a dimensão político-pedagógica da escola aconteça, ou seja, que a es-
cola seja democrática e comprometida com sua função social. Para isso,
importantes desafios estão postos: organizar e mobilizar a comunidade
escolar, fazendo com que ela atue de forma participativa e efetiva na
escola, discutindo e decidindo coletivamente; promover interação e
participação dos professores, buscando compreender e desnaturalizar
a evasão e as reprovações; e possibilitar que os estudantes sejam tam-
bém sujeitos de suas aprendizagens e possam se envolver, discutir e en-
contrar caminhos para resolução dos problemas que se relacionam com
a disfunção idade/série.

CONCLUSÃO

Ao finalizar este artigo, recordamos de como iniciamos a pesquisa


que deu origem a ele e como percorremos os caminhos das indagações,
da vivência – principalmente da primeira autora do artigo, como profes-
sora na escola pesquisada e membro do Conselho Municipal de Educa-
ção – e das leituras realizadas sobre a distorção idade/série, tendo como
perspectiva os princípios da Gestão Democrática. Na caminhada, mui-
tas dúvidas fizeram parte da trajetória da pesquisa. Agora, ao finalizar,
mesmo sabendo que toda conclusão é provisória, podemos fazer algu-
mas considerações conclusivas.

188 Fabiana Machado | Elisete Enir Bernardi Garcia


Consideramos que a mudança da escola será possível à medida que
tivermos consciência da necessidade de refletir sobre a práxis pedagó-
gica. Mais do que investigar as causas que elevam os índices de repro-
vação, evasão e disfunção idade/série, é preciso entender que existe um
conjunto de fatores, tanto sociais e econômicos quanto culturais, que
envolvem os problemas educacionais de cada sujeito. Assim, não é acei-
tável que seja atribuída ao indivíduo a culpabilização pelo seu fracasso.
É necessário exigir políticas públicas que colaborem na construção
de propostas pedagógicas voltadas ao atendimento com qualidade dos
estudantes em “situação de atraso”, para que não sejam excluídos da
escola e responsabilizados por isso. E essa situação ainda foi agravada
pela pandemia de covid-19. Mais do que nunca, precisamos rever nos-
sas ações pedagógicas dentro da escola, respeitando o direito de cada
criança, de cada adolescente, de cada jovem de aprender e se desenvol-
ver na interação com seus pares.
Destaca-se a importância dos Conselhos Escolares para que acon-
teça o efetivo funcionamento da Gestão Democrática autônoma nas es-
colas públicas brasileiras e se estabeleçam ações que tenham a intenção
de garantir a aprendizagem dos estudantes. Nesse sentido, o currículo
precisa ser pensado em relação a acesso, permanência e aprendizagem
de todos os seus sujeitos; muito mais do que avaliar e medir o conheci-
mento, a educação precisa acompanhar o processo de cada um de seus
estudantes, entendendo os motivos que levam à não aprendizagem.
A pesquisa indica que esses motivos nem sempre estão relacio-
nados apenas à questão da reprovação, mas, muitas vezes, estão asso-
ciados a várias situações, como questões familiares, trocas de escola e
problemas emocionais. A escola precisa acolher a sua comunidade esco-

Distorção idade/série: um estudo sobre seus fatores


numa escola pública do Rio Grande do Sul 189
lar, buscando efetivar o acompanhamento de todos os seus estudantes,
desde a Educação Infantil até a finalização de todas as suas etapas, com-
preendendo que todos os sujeitos aprendem, cada um no seu tempo e
no seu ritmo.
Acreditamos que a análise desenvolvida durante todo o processo
de pesquisa desvelou uma trama de vários aspectos pedagógicos e
sociais que estão ligados também à função e à natureza do Conselho
Escolar. Há um longo caminho a percorrer até a efetivação da Gestão
Democrática de uma escola pública com equidade e qualidade. Desta-
ca-se, nesse sentido, que é preciso assumir o processo de escuta dos
estudantes, do fortalecimento do protagonismo e da busca por uma
proposta pedagógica que seja de fato para cada um deles. É necessário
problematizar os números e os índices, pois muitas vezes eles acabam
sendo usados para justificar problemas que são naturalizados como fra-
casso dentro do processo de ensino-aprendizagem.
A investigação na escola permitiu descobrir e construir um cami-
nho possível para que possamos compreender a importância da parti-
cipação ativa de todos os sujeitos envolvidos no processo de ensinar e
aprender. O encantamento pela temática fez com que este artigo fosse
o pontapé inicial para discussões e debates no município acerca da dis-
torção idade/série e, mais do que isso, que ele seja capaz de auxiliar na
construção de futuras resoluções, por parte do Conselho Municipal de
Educação, que dialoguem com projetos e propostas educacionais den-
tro das escolas.
Fica o aprendizado de que a escola deve ser o lugar de múltiplas
aprendizagens, de muitos conhecimentos, de muita diversidade e de
muito acolhimento. A escola é muito mais que um prédio: é o lugar que

190 Fabiana Machado | Elisete Enir Bernardi Garcia


possibilita a transformação e a emancipação dos sujeitos. Que possa-
mos fortalecer nossas ações com o diálogo democrático da participação
social e da busca pela equidade e qualidade da educação.

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com defasagem idade/etapa escolar na oferta diurna. Acrescenta o inciso X
no artigo 16 da Resolução CEEd nº 320, de 18 de janeiro de 2012, e os §§ 4º
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Distorção idade/série: um estudo sobre seus fatores


numa escola pública do Rio Grande do Sul 193
194
6
Gestão de processos
educacionais
inclusivos como
garantia do
direito à educação

Marlize Petrykovski Pretto1


Eliane Menegotti2

1 Especialista em Educação pela Universidade Federal de Pelotas. Especia-


lista em Gestão da Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do
Sul. Mestranda em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do
Sul. Professora de anos iniciais e de Língua Portuguesa nos anos finais na
Rede Municipal de Nova Prata, RS.
E-mail: marlizepretto@gmail.com

2 Mestre em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul.


Doutoranda na Linha de Políticas e Gestão de Processos Educacionais pela
Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
E-mail: elimenegotti@gmail.com

Gestão de processos educacionais inclusivos como garantia do direito à educação


INTRODUÇÃO

O presente artigo foi elaborado a partir do Projeto de Interven-


ção realizado nas escolas municipais de Nova Prata (RS).3 Esse projeto
começou a ser construído no primeiro semestre de 2019, na disciplina
de Práticas de Intervenção I do Curso de Especialização em Gestão da
Educação, promovido pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul,
Litoral Norte, modalidade a distância, em parceria com a Universidade
Aberta do Brasil (UAB), tendo continuidade no segundo semestre do
mesmo ano e em 2020, com os módulos II e III da referida disciplina. A
pesquisa foi desenvolvida pela Equipe Pedagógica da Secretaria Muni-
cipal de Educação em colaboração com as escolas da Rede Municipal de
Ensino do município.
A metodologia escolhida para a pesquisa e intervenção foi a pes-
quisa-ação, por ser uma metodologia participativa e democrática que
permite analisar o contexto em conjunto com seus pares, identificando
um problema comum. Desse modo, toda a comunidade escolar foi en-
volvida numa análise qualitativa da realidade, por meio de reuniões com
grupos focais por segmentos e grupos de estudo e reflexão, a fim de
identificar o problema e buscar, coletivamente, ações para resolvê-lo.
Partindo da análise dos dados levantados nas escolas e das siste-
matizações dos trabalhos dos grupos focais, percebeu-se a necessidade
de analisar as práticas escolares desenvolvidas nas escolas da Rede Mu-
nicipal de Nova Prata (RS), tendo em vista a garantia da diversidade e do
direito à educação a todos os alunos. Esse direito é previsto na Consti-
tuição Federal (CF) de 1988, que assegura a universalização do ensino,

3 Pesquisa-ação autorizada por Termo de Consentimento assinado pela Secretária de Educação


de Nova Prata.

196 Marlize Petrykovski Pretto | Eliane Menegotti


com igualdade de acesso e permanência na escola a todas as crianças,
jovens e adultos, incluindo alunos de educação especial (Brasil, [2016]),
desafiando as escolas a criar oportunidades de desenvolvimento para
todos para garantir o nível adequado de aprendizagem.
Mais do que a inserção dos alunos com necessidades educacionais
especiais nas escolas regulares, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional (LDBEN) (Brasil, 1996), as Diretrizes Curriculares Nacionais
(DCNs) (Brasil, 2001, 2010), o Plano Nacional de Educação (PNE) (Bra-
sil, 2001) e outros documentos que servem como embasamento legal da
educação brasileira propõem que os sistemas educacionais, para serem
inclusivos, precisam considerar, ao elaborar seus projetos político-pe-
dagógicos (PPP), a diversidade, pensando em metodologias e propostas
para oferecer a todos os estudantes possibilidades de desenvolvimento,
tendo respeitadas as suas individualidades.
Nessa perspectiva, foi preciso analisar o que dizem os textos polí-
tico-normativos da legislação brasileira sobre a diversidade e o direito à
educação, destacando os documentos norteadores de Nova Prata (RS),
bem como identificar quais práticas escolares têm contribuído para a
garantia da diversidade e do direito à educação aos alunos e crianças,
buscando, por meio da Gestão Democrática dos processos educacio-
nais, promover práticas educativas que garantam a inclusão e o desen-
volvimento de todos.
O presente artigo divide-se em cinco seções. Na primeira, são apre-
sentadas a pesquisa e a temática a ser abordada no texto; a seção dois,
por sua vez, reflete sobre as políticas, o embasamento legal e teórico,
os sujeitos e as ações necessárias para a garantia do direito à educação
e a organização da escola de forma inclusiva. A seguir, são indicados os

197
caminhos metodológicos trilhados para a realização da pesquisa-ação, o
lócus da pesquisa, seus primeiros passos, a continuidade e encaminha-
mentos a partir dos dados coletados. Na quarta seção, são apresenta-
dos os resultados e a discussão destes, a contextualização e a análise da
Rede Municipal de Ensino de Nova Prata, evidenciando sua realidade,
indicadores de qualidade, serviços de apoio e práticas que contribuem
para a construção de uma escola inclusiva. Por fim, a última seção des-
tina-se às considerações finais, quando são apresentados os avanços e
as limitações da pesquisa e o caminho a ser trilhado para que se possa
garantir a educação com aprendizagem para todos.

ESCOLA INCLUSIVA: POLÍTICAS, SUJEITOS


ENVOLVIDOS E AÇÕES

Quando pensamos em questões relacionadas à modalidade da


Educação Especial, precisamos considerar os aspectos específicos e le-
gais da educação brasileira que dialogam com as condições em que ela
se configurou historicamente. Programas isolados ou promovidos por
organizações sociais contribuíram para que a Educação Especial fosse
incorporada na agenda do Estado, com o intuito de pensar em políticas
públicas que melhorassem as condições de atendimento, a partir da
perspectiva da Educação Inclusiva.
Com a Constituição Federal (CF) de 1988, artigo 205 (Brasil,
[2016]), tem-se estabelecida a universalização do acesso à educação e a
própria educação como “um direito de todos, garantindo o pleno desen-
volvimento da pessoa, o exercício da cidadania e a qualificação para o
trabalho”. A CF determina ainda, no artigo 206, inciso I, a “igualdade de

198 Marlize Petrykovski Pretto | Eliane Menegotti


condições de acesso e permanência na escola” como um dos princípios
para o ensino e para a garantia do direito à educação.
Assim, ao assegurar o direito à educação a todos, esse documento
apresenta um desafio a todas as escolas, redes e educadores, que preci-
sam reavaliar a sua concepção de inclusão, a estrutura das escolas e as
práticas pedagógicas e buscar estratégias que possibilitem o desenvol-
vimento das crianças e dos adolescentes tão heterogêneos que aden-
tram as salas de aula na educação básica.
Do mesmo modo, a Declaração Mundial de Educação para Todos,
firmada em Jomtien, na Tailândia (Unicef, 1990), reitera em seu artigo
2º a necessidade de universalizar o acesso à educação básica a homens,
mulheres e crianças, concentrando a atenção na aprendizagem, bus-
cando, por meio de cooperação, parcerias e alianças, organizar um es-
paço adequado para aprender, com o objetivo de promover a equidade,
e garantindo um ensino de qualidade como forma de superar os eleva-
dos índices de analfabetismo e de diminuir a evasão e as desigualdades.
Nessa perspectiva, esse documento aponta, em seu preâmbulo, que a
educação até então ministrada evidenciava graves deficiências, sendo
necessário “[...] torná-la mais relevante e melhorar sua qualidade” (Uni-
cef, 1990). Essa busca por melhorar a qualidade da educação pública,
assegurando a aprendizagem a todos os alunos, tem sido um grande
desafio, mesmo três décadas após firmado esse acordo. Houve avan-
ços na universalização do acesso à educação, contudo ainda há um
longo caminho para que todos, com equidade, possam desenvolver
suas habilidades.

199
Esse direito é estabelecido também na Declaração de Salamanca
(ONU, 1994), que proclama que toda criança tem direito à educação e
devem ser dadas oportunidades de manter o nível adequado de apren-
dizagem. Nesse sentido, os sistemas educacionais devem implementar
programas educacionais que considerem a vasta diversidade de carac-
terísticas, interesses, habilidades e necessidades de aprendizagem de
cada indivíduo.
Essa declaração afirma, ainda, que os alunos com necessidades
educacionais especiais devem ter acesso à escola regular, que precisa
trabalhar com metodologias centradas na criança, capazes de satisfazer
tais necessidades, uma vez que as escolas que possuem “[...] orientação
inclusiva constituem os meios mais eficazes de combater atitudes dis-
criminatórias, criando-se comunidades acolhedoras, construindo uma
sociedade inclusiva e alcançando educação para todos” (ONU, 1994).
Desse modo, é preciso pensar em como esses educandos têm sido aco-
lhidos e estimulados nos ambientes educativos da Educação Básica.
Analisando o percurso histórico da educação brasileira, pode-se
perceber que “a escola não é, pela sua história, valores e práticas, uma
estrutura inclusiva” (Brizolla, 2015, p. 35); mas, segundo as Diretrizes
Nacionais para Educação Especial na Educação Básica (Brasil, 2001),
o Brasil optou por um sistema educacional inclusivo ao concordar com
a Declaração Mundial de Educação para Todos (Unicef, 1990) e com
ideias apresentadas na Declaração de Salamanca (ONU, 1994). Par-
tindo disso, é reafirmada a proposta de oferecer a todas as crianças
educação e oportunidades de desenvolvimento, considerando suas
individualidades. Para tal, as escolas, em seus processos educacionais,
devem criar comunidades acolhedoras e buscar estratégias para um

200 Marlize Petrykovski Pretto | Eliane Menegotti


trabalho pedagógico que possibilite educar todos com sucesso, sem
qualquer tipo de discriminação.
Nesse intuito, o PNE, Lei nº. 10.172/2001 (Brasil, 2001), destaca
que “o grande avanço que a década da educação deveria produzir se-
ria a construção de uma escola inclusiva que garanta o atendimento à
diversidade humana”. Esse é um avanço necessário para romper com a
segregação e a discriminação dentro das salas de aula.
A Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Edu-
cação Inclusiva (PNEEPEI), de 2008, apresenta que “as dificuldades
enfrentadas nos sistemas de ensino evidenciam a necessidade de con-
frontar as práticas discriminatórias e criar alternativas para superá-las”
(Brasil, 2008); desse modo, começam a ser pensados e organizados sis-
temas educacionais inclusivos, o que implica uma mudança na organiza-
ção do espaço educativo e na cultura, a fim de acolher todos os alunos,
atendendo às suas especificidades.
Diante dessas circunstâncias, a PNEEPEI (Brasil, 2008) propõe
que as escolas assegurem o Atendimento Educacional Especializado
(AEE) no espaço escolar como um serviço de apoio para potencializar
as aprendizagens dos alunos com deficiências, com transtornos glo-
bais do desenvolvimento e com altas habilidades/superdotação. Esse
atendimento deve integrar o PPP das escolas, bem como promover a
articulação com o ensino regular às famílias e demais profissionais que
atendem o aluno público-alvo do AEE. Assim, os alunos de educação
especial – definida na LDBEN, em seu cap. V, artigo 58, como “a mo-
dalidade de educação escolar, oferecida preferencialmente na rede
regular de ensino, para educandos portadores de necessidades espe-
ciais” (Brasil, 1996) – têm assegurados serviços de apoio especializado,

201
realizados por profissionais com formação adequada, na escola regular,
além de currículos, métodos, técnicas, recursos educativos e organiza-
ção específicos.
O AEE é garantido por lei e deve ser oferecido na própria escola ou
em centros especializados, de forma a complementar ou suplementar
a escolarização regular. Nessa perspectiva, a Resolução nº. 4 do CNE/
CEB (Brasil, 2010), em seu artigo 29, inciso I, que define as Diretrizes
Curriculares Nacionais para a Educação Básica, afirma que:

Os sistemas de ensino devem matricular os estudantes com


deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas
habilidades/superdotação nas classes comuns do ensino re-
gular e no Atendimento Educacional Especializado (AEE),
complementar ou suplementar à escolarização, ofertado em
salas de recursos multifuncionais ou em centros de AEE da
rede pública ou de instituições comunitárias, confessionais
ou filantrópicas sem fins lucrativos (Brasil, 2010).

Contudo, além de garantir a matrícula e o acesso aos atendimentos


especializados, pensar numa escola verdadeiramente inclusiva requer
uma soma de ações, esforços e parcerias para que se efetive uma edu-
cação com aprendizagem para todos. Faz-se necessário desenvolver
processos educacionais inclusivos, com uma prática pedagógica em que
as peculiaridades, individualidades e dificuldades de cada criança sejam
consideradas e analisadas pelo professor, no intuito de propor ativida-
des que instiguem a criança a se desenvolver. Esse olhar não é destinado
somente ao aluno do AEE, mas a todos, garantindo a cada um seu direito
à aprendizagem. Isso faz com que as escolas busquem em seus PPPs or-
ganizar o tempo e o espaço escolares tendo como foco a aprendizagem

202 Marlize Petrykovski Pretto | Eliane Menegotti


efetiva de todos os seus alunos. Desse modo, o documento deve propor
alternativas e ações que possibilitem a eliminação de barreiras para a
aprendizagem, através da formação continuada dos educadores e de
propostas metodológicas que favoreçam a participação ativa dos estu-
dantes. Nesse intuito, o trabalho deve estar centrado no ensino e nas
condições de aprendizagem do aluno, buscando estratégias e apoios
para que ele possa se desenvolver, por meio de práticas com intenciona-
lidade pedagógica, heterogêneas e inclusivas, num processo que requer
protagonismo e empenho do professor.
A elaboração e a execução dos PPPs estão previstas na LDBEN em
seus artigos 12 e 13 (Brasil, 1996), o que incumbe, ainda, os docentes
de elaborar e cumprir seu plano de trabalho de acordo com o Projeto
Político-Pedagógico da escola. Assim, o PPP norteia o funcionamento
da escola, bem como seus processos de ensino-aprendizagem e a ges-
tão pedagógica e administrativa de pessoas, contribuindo para que to-
dos na escola participem democraticamente, de forma a assegurar uma
educação de qualidade para todos.
De acordo com a Resolução nº. 4 do Conselho Nacional de Edu-
cação, que define as Diretrizes Curriculares Nacionais Gerais para a
Educação Básica, em seu artigo 43: “O projeto político-pedagógico,
interdependentemente da autonomia pedagógica, administrativa e de
gestão financeira da instituição educacional, representa mais do que um
documento, sendo um dos meios de viabilizar a escola democrática para
todos e de qualidade social” (Brasil, 2010).
Logo, para que esse documento possa contribuir com a construção
de uma escola democrática, é necessário o envolvimento de todos os
sujeitos que dela fazem parte em sua elaboração. Segundo Cury (2007,

203
p. 489), “a gestão do projeto pedagógico é tarefa coletiva do corpo do-
cente, liderado pelo gestor responsável, e se volta para a obtenção de
um outro princípio constitucional da educação nacional que é a garantia
do padrão de qualidade”.
Nessa perspectiva, a construção de um PPP requer uma reflexão
inicial sobre seu significado e sua importância, para que ele seja a ex-
pressão da cultura da escola com sua (re)criação e desenvolvimento, im-
pregnada de crenças, valores, significados e modos de pensar e agir das
pessoas que participaram da sua elaboração.
Para que a efetivação dos processos educacionais inclusivos
ocorra, também é preciso consolidar a Gestão Democrática da Educa-
ção. O artigo 206 da CF de 1988, em seu inciso VI, traz entre seus prin-
cípios a “Gestão Democrática da Educação” (Brasil, [2016]), que supõe
o deslocamento do olhar das unidades escolares dos seus problemas
corriqueiros para uma dimensão que repense o seu papel enquanto
instituição. No que se refere a essa necessidade, o Plano Municipal de
Educação de Nova Prata, em sua meta 19, afirma que:

A gestão democrática só se efetiva a partir do envolvimento


da comunidade escolar, familiares dos alunos, funcionários
das escolas, estudantes e gestores através dos Conselhos Es-
colares, que não são apenas uma célula, mas um componente
do sistema que está na escola, tendo em seu cerne a Proposta
Político-Pedagógica (Nova Prata, 2015).

Assim, a gestão escolar tem por objetivo fazer nascer, gerar um


processo “[...] dialogal, participativo com que a comunidade educacional
se capacita para levar a termo um projeto pedagógico de qualidade e do

204 Marlize Petrykovski Pretto | Eliane Menegotti


qual nasçam ‘cidadãos ativos’ participantes da sociedade como profis-
sionais compromissados” (Cury, 2007, p. 489).
Desse modo, os sujeitos envolvidos no processo de ensino e apren-
dizagem tomam as decisões coletivamente, são ouvidos, participam e
têm poder de decisão, contribuindo para a melhoria da qualidade da
educação e articulando ações que conduzam a uma gestão coletiva dos
processos educacionais inclusivos no intuito de garantir o desenvolvi-
mento de todos os alunos e crianças, sem distinção.
Com base nos documentos legais, pode-se perceber que, para pro-
mover a inclusão de todos e assegurar o direito à educação, é preciso
envolver toda a comunidade na construção de uma nova cultura escolar
em que incluir é mais do que organizar planos e requisitos burocráticos
e oferecer serviços profissionais de apoio pedagógico. A inclusão esco-
lar deve ocorrer na relação de ensino e aprendizagem, nas vivências e
nas trocas dentro da sala regular, visto que “a sala de aula, espaço pri-
vilegiado do ambiente institucional da escola e do fazer docente, é o lu-
gar apropriado do direito de aprender do discente” (Cury, 2007, p. 483);
assim, é nela que devem ocorrer práticas com equidade, que valorizem
a diversidade para desenvolver as habilidades e competências de todos
os estudantes.
Além disso, a inclusão deve garantir não apenas espaços acessíveis
para os sujeitos, mas também que todas as pessoas tenham acesso à
educação, respeitando suas características e habilidades individuais e
aprimorando-as. É imprescindível ressaltar que todos, e não só os alu-
nos com Necessidades Educacionais Especiais (NEEs), são beneficiados
cognitiva e socialmente com esse processo.

205
CAMINHOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS

Para ser possível analisar as práticas escolares desenvolvidas nas


escolas da Rede Municipal de Nova Prata (RS), tendo em vista a garantia
da diversidade e do direito à educação aos alunos e crianças, utilizou-se
uma pesquisa de cunho qualitativo. Para Minayo (1997, p. 22), “o con-
junto de dados qualitativos e quantitativos não se opõe. Ao contrário,
eles se complementam, pois a realidade abrangida por eles interage di-
namicamente, excluindo qualquer dicotomia”. Assim, serão analisados
também dados da realidade educacional do município.
Além disso, trabalhar um projeto de pesquisa e intervenção den-
tro da escola pública, cuja proposta organizacional é ser participativa
e democrática, requer a escolha de uma metodologia que permita o
diálogo, a construção e a análise crítica para promover uma mudança
de realidade e o alcance dos objetivos estabelecidos. Desse modo, o
presente trabalho foi desenvolvido segundo a metodologia da pesqui-
sa-ação, um tipo de pesquisa social com base empírica que é concebida
e realizada em estreita associação com uma ação ou com a resolução
de um problema coletivo, no qual os pesquisadores e os participantes
representativos da situação ou do problema estão envolvidos de modo
cooperativo ou participativo (Thiollent, 1998).
A pesquisa-ação permite ao pesquisador analisar a realidade em
que se insere em conjunto com seus pares, buscando coletivamente
identificar o problema de pesquisa, o objetivo e o público-alvo e fazer
escolhas a fim de que o método escolhido auxilie em todo o percurso
da pesquisa, desde o diagnóstico, a coleta de dados e a interpretação
de resultados até as estratégias de ação/intervenção para resolver um

206 Marlize Petrykovski Pretto | Eliane Menegotti


problema comum (Thiollent, 1998). Com essa metodologia, é possível
promover a participação do pesquisador e dos pesquisados em todas as
etapas, alcançando maior engajamento e interação entre todos os sujei-
tos que fazem parte do processo, tendo em vista a melhoria da prática
dos participantes, a reflexão sobre esse fazer e a situação analisada.
A pesquisa-ação requer que os sujeitos envolvidos desempenhem
um papel ativo no equacionamento do problema e no acompanhamento
e avaliação das ações. Nessa perspectiva, foram realizados encontros
com grupos focais, análise qualitativa e quantitativa da realidade e pes-
quisa bibliográfica buscando fundamentação teórica e embasamento
legal para envolver todos na construção de uma escola efetivamente
inclusiva a partir do despertar da consciência dos envolvidos quanto
aos problemas que enfrentam e da discussão de possíveis soluções
(Thiollent, 1998).

O lócus da pesquisa

Ao analisar a realidade educacional da Rede Municipal de Nova


Prata por meio de indicadores como reprovação, distorção idade/sé-
rie, resultados das avaliações de desempenho e alunos encaminhados
para atendimentos especializados, observou-se que, em muitos casos,
os estudantes não estavam tendo o aprendizado adequado para o ano
escolar, evidenciando inúmeras dificuldades. Assim, fez-se necessário
envolver equipes diretivas, coordenações pedagógicas, professores
da sala de aula regular e professores do AEE no intuito de identificar,
quantificar, analisar e instigar um processo de reflexão e transforma-
ção da forma como são trabalhados o processo de ensino-aprendiza-

207
gem e os modelos de avaliação, a fim de que seja garantido o direito à
educação com aprendizagem para todos os alunos, resultando em uma
escola inclusiva.
Este trabalho de intervenção foi realizado ao longo de 2019 e no
primeiro semestre de 2020, na Rede Municipal de Ensino de Nova Prata
(RS), desenvolvido pela coordenação pedagógica da Secretaria Muni-
cipal de Educação em parceria com gestores, equipes pedagógicas e
professoras de AEE da rede, que foram os elos da pesquisa nas escolas,
garantindo a escuta e a coparticipação de todos os envolvidos.

Os primeiros passos da pesquisa

Inicialmente, realizou-se a fase exploratória. Foram organizados


três encontros com grupos focais na Secretaria de Educação – o pri-
meiro com os diretores de escolas, o segundo com as coordenadoras pe-
dagógicas e o terceiro com os professores do serviço de AEE – no intuito
de captar informações de cada segmento a respeito das dinâmicas de
inclusão nas escolas pesquisadas. Nos três encontros, foram destaca-
dos os pontos fortes dos processos educacionais inclusivos nas escolas,
as fragilidades e as sugestões de ações que pudessem ser desenvolvidas
para trazer melhorias.
Numa segunda etapa, as equipes gestoras das escolas realizaram
encontros com professores, funcionários, estagiários e monitores que
acompanham os alunos de AEEs de cada escola da rede. Ao longo des-
ses encontros, realizados nas escolas, todos os profissionais refletiram
sobre a garantia à educação para todos e analisaram a realidade de cada

208 Marlize Petrykovski Pretto | Eliane Menegotti


instituição, com suas potencialidades e fragilidades, e ações de melhoria
com relação à inclusão e à aprendizagem de todos.
Como ferramenta de coleta de dados, também foi utilizado um
questionário concomitante a esses encontros dos grupos focais de cada
escola, o qual foi respondido pela gestão escolar. Ele continha questões
abertas e fechadas para um levantamento sobre estrutura física, for-
mação docente, número de alunos, aprovações, distorção idade/série,
serviços de apoio pedagógico e outros indicadores de qualidade da edu-
cação de cada educandário.
Com o levantamento e a sistematização das ideias elaboradas em
cada escola, foi organizado um encontro para aprofundamento do as-
sunto – um seminário com representações de todas as escolas da Rede
(diretores, coordenadores, professores de AEE e equipe pedagógica da
SME) no qual foram socializadas as construções de cada grupo focal e
analisados os dados, de modo a identificar o problema e as possibilida-
des de intervenção, planejar ações para resolução e definir os objetivos
a serem alcançados e a função de cada sujeito nesse processo.
Além disso, foi elaborado coletivamente um plano de ação da Rede
com propostas a serem implementadas, a fim de aprimorar o trabalho
desenvolvido e promover a inclusão de todos.

A continuidade e os encaminhamentos do processo

Ao analisar a realidade das salas de aulas, constatou-se haver mui-


tos alunos que não conseguem atingir os objetivos estabelecidos para
a turma: alunos com dificuldades de aprendizagem, problemas emocio-
nais e/ou sociais, deficiências, transtornos globais de desenvolvimento,

209
transtornos de aprendizagem, entre outros, que interferem no desem-
penho escolar.
Essa diversidade inquieta gestores e professores, que se sentem
angustiados por não conseguirem fazer com que todos os educandos
se integrem ao processo de ensino-aprendizagem; desse modo, não po-
dem assegurar a todos o direito à aprendizagem, que consiste no desen-
volvimento das habilidades e competências indicadas para a série/ano
que caracterizam o aprendizado adequado, levando em consideração
as individualidades.
Os pais também expuseram, em relatos para os profissionais dos
serviços de apoio e gestão escolar, sua preocupação e a necessidade de
que os filhos possam ser incluídos sem qualquer tipo de preconceito e
discriminação nas escolas, tendo respeitadas as suas necessidades e ca-
pacidades, para que possam se desenvolver.
Diante desse cenário, surgem questionamentos: como é possível
potencializar a aprendizagem em turmas tão heterogêneas? Como fa-
zer com que os alunos com necessidades educacionais especiais sejam
realmente incluídos no processo de construção do conhecimento? O
que fazer com os outros alunos que possuem dificuldades de aprendi-
zagem, de comportamento e não atingem os objetivos estabelecidos?
Como acolhê-los e fazê-los se desenvolver? Como promover na escola
a inclusão de todos?
Partindo desses questionamentos e dos dados construídos a partir
dos encontros realizados com os grupos focais na SME e nas escolas,
fez-se necessário analisar quais práticas escolares desenvolvidas na
Rede Municipal de Nova Prata (RS) têm contribuído para a garantia da

210 Marlize Petrykovski Pretto | Eliane Menegotti


diversidade e do direito à educação às crianças de Educação Infantil e
aos alunos do Ensino Fundamental matriculados nas escolas.
Assim, construiu-se coletivamente, em seminário com todos os
envolvidos, um fluxo de trabalho para o professor do AEE, para o coor-
denador pedagógico e para o diretor escolar na perspectiva da gestão
educacional inclusiva, que foi posteriormente discutido com as equipes
escolares, definindo, em cada escola, estratégias para o trabalho dos
professores de sala de aula regular e dos monitores, fazendo com que
todos estivessem engajados com a garantia do aprendizado para todos
os alunos.
Foram reorganizados os documentos da Sala de Recursos Multi-
funcionais (SRM) com foco na aprendizagem, buscando torná-los me-
nos burocráticos e mais vivos na prática pedagógica. Nessa perspectiva,
também foi reorganizada e regularizada a flexibilização das atividades
para os alunos público-alvo do AEE com dificuldades de aprendizagem
nas salas regulares, adequando-se à legislação vigente.
Além disso, partindo das intervenções, ações e reflexões realiza-
das, cada escola reconstruiu, de forma democrática e participativa, o
seu Projeto Político-Pedagógico, considerando as temáticas da diversi-
dade e a busca da educação para todos.

211
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Breve contextualização da Rede Municipal de Ensino de
Nova Prata

Nova Prata é um município da Serra Gaúcha situado na encosta su-


perior do Nordeste do estado do Rio Grande do Sul, Brasil. Possui uma
área territorial de 259 km² e uma população, segundo estimativas do
IBGE (2020), de 27.648 habitantes em 2020.
A Rede Municipal de Ensino de Nova Prata é composta por 12 es-
colas – cinco que atendem alunos de Educação Infantil (0 a 3 anos); cinco
de Educação Infantil (4 a 5 anos) e Ensino Fundamental (anos iniciais e
finais); uma de Educação Infantil para alunos entre 4 e 5 anos e uma de
Ensino Fundamental (anos finais) –, que foram autorizadas a funcionar
a partir do início do ano letivo de 2020 pelo Conselho Municipal de
Educação (CME), órgão normativo e fiscalizador do Sistema Municipal
de Ensino.
Para atender a esse público, a Rede conta com o seguinte quadro
de Recursos Humanos: 217 cargos efetivos de professores; 34 profes-
sores de contrato emergencial; oito monitores de alunos especiais; qua-
tro secretários de escola; sete cargos em comissão; 135 atendentes de
creche; e 54 estagiários CIEE.4
Os professores efetivos atuam em turmas regulares de Educação
Infantil e Ensino Fundamental, Salas de Recursos Multifuncionais, La-
boratórios de Aprendizagem ou na gestão escolar (direção e coordena-
ção pedagógica). Para a designação de um professor para um cargo ou
função específica, são analisados a formação e o perfil do profissional.

4 Dados fornecidos pelas escolas, pela Secretaria de Educação e pela Secretaria de Administração
e Recursos Humanos de Nova Prata (2020).

212 Marlize Petrykovski Pretto | Eliane Menegotti


Com relação à formação e qualificação docente, necessárias
para garantia da qualidade da aprendizagem, observa-se que, dos
professores da Rede Municipal, 0,5 % possui apenas magistério, 7 %
possuem graduação, 90,5 % são especialistas, e 2 % possuem mestrado
em educação.
Esses dados demonstram que os profissionais possuem a formação
adequada, o que pode contribuir para a qualificação da prática pedagó-
gica e para a qualidade das interações e vivências que possibilitam a for-
mação integral de todos, assegurando os direitos de aprendizagem para
as crianças da Educação Infantil e o desenvolvimento de habilidades e
competências necessárias para resolver situações complexas na escola
e na vida para os alunos do Ensino Fundamental, já que, segundo Cury
(2007), a qualidade supõe profissionais do ensino com sólida formação
básica, aí compreendidos o domínio dos métodos e técnicas de ensino,
além de um processo de formação continuada.
A formação continuada é oferecida pela SME, que busca ouvir as
necessidades e os anseios dos educadores e realiza processos formati-
vos voltados aos interesses destes, de forma coletiva ou nas escolas, por
meio de oficinas, assessorias, palestras e seminários num processo de
formação-ação, para que o embasamento teórico contribua para uma
prática fundamentada e com intencionalidade pedagógica.

213
Conversando com a realidade/indicadores de qualidade
do ensino

Ao analisar a realidade educacional de Nova Prata, percebe-se que


a taxa de escolarização da população de 6 a 14 anos, em 2017, era de
99,3 % (Nova Prata, 2017). Contudo, o percentual da população de 16
anos com pelo menos o Ensino Fundamental concluído cai para 73,9, o
que indica que ainda há necessidade de buscar melhorias na educação
a fim de garantir a todos o acesso, a permanência na escola e o aprendi-
zado. Desse modo, é preciso pensar em estratégias de ensino e aprendi-
zagem que possibilitem aos educandos o aprendizado adequado ao ano
escolar, utilizando metodologias ativas, considerando o contexto histó-
rico e social do aluno e buscando alternativas para desenvolver suas ha-
bilidades, dentro de suas possibilidades.

Gráfico 1 – Reprovações na Rede Municipal, 2017-2019.

Fonte: Adaptado de Inep (2020).

Legenda descritiva: Gráfico em linhas nas cores azul claro, laranja, cinza, amarela, azul escuro e verde, que apresentam o
ano e os índices de reprovação na Rede Municipal entre os anos de 2017 e 2019.

214 Marlize Petrykovski Pretto | Eliane Menegotti


Ao analisar os dados de reprovações de cada escola, percebe-se
que, mesmo que esse número tenha diminuído no último ano, quando
as escolas já estavam realizando um processo de revisão de sua prática
para atender a diversidade, ainda há um número elevado de alunos que
não conseguem garantir o aprendizado adequado na idade certa, prin-
cipalmente nos anos finais do Ensino Fundamental, sendo este um dos
principais indicadores de que ainda há um longo caminho para que a
educação com aprendizado seja garantida a todos.
O elevado índice de reprovações reflete no aumento dos índices de
distorção idade/série, que varia entre 21 % e 41,9 % em 2019 nos anos
finais do Ensino Fundamental da Rede Municipal de Ensino.

Gráfico 2 – Índices de distorção idade/ano na Rede Municipal de Ensino.

Fonte: Adaptado de Inep (2020).

Legenda descritiva: Gráfico em linhas nas cores azul claro, laranja, cinza e amarela, que apresenta o índice de distorção
idade/série nos anos iniciais e finais no período de 2018 e 2019.

215
A distorção idade/série ocorre em razão da reprovação e da eva-
são. Observa-se, pelos dados apresentados, que os maiores índices de
reprovação e abandono se concentram nos anos finais do Ensino Fun-
damental. Assim, é necessário promover o envolvimento de todos os
segmentos a fim de melhorar esses índices e, acima de tudo, garantir
que crianças, adolescentes e jovens que estão matriculados nas escolas
desenvolvam as habilidades e competências necessárias em cada etapa
de ensino.
O Plano Municipal de Educação (PME) apresenta como meta 2 cor-
rigir o fluxo escolar, garantindo a permanência e a conclusão na idade
certa dos alunos matriculados no Ensino Fundamental, e reafirma que o
atingimento desse objetivo depende do trabalho de todos os envolvidos
(aluno, família, escola, redes de apoio), sendo dever do Poder Público
garantir esse processo para assegurar a todos os estudantes o direito à
educação. Além disso, a meta 4 do PME prevê:

Universalizar, para a população de 4 (quatro) a 17 (dezessete)


anos com deficiência, transtornos globais do desenvolvimen-
to e altas habilidades ou superdotação, o acesso à Educação
Básica e ao Atendimento Educacional Especializado, prefe-
rencialmente na Rede Regular de Ensino, com a garantia de
Sistema Educacional Inclusivo, de Salas de Recursos Multi-
funcionais, classes, escolas ou serviços especializados, pú-
blicos ou conveniados, resguardadas as responsabilidades
(Nova Prata, 2015).

Ao analisar os dados das matrículas na Educação Especial no mu-


nicípio, percebe-se um aumento gradativo: de acordo com o relatório
de monitoramento do PME, o número de alunos público-alvo de AEE

216 Marlize Petrykovski Pretto | Eliane Menegotti


matriculados nas escolas passou de 62,1 em 2014 para 74,7 em 2017, em
virtude do movimento de inclusão com a oferta do Atendimento Edu-
cacional Especializado e dos esforços da Rede em buscar alternativas
para potencializar a aprendizagem de todos os alunos, respeitando suas
capacidades. A matrícula de alunos de educação especial na Rede Regu-
lar de Ensino é um direito garantido a todas as crianças e adolescentes,
sendo que, na classificação das vagas oferecidas em escolas de Educação
Infantil, as crianças público-alvo do AEE têm prioridade.
Além disso, o PME, em sua meta 4, também propõe que, para melho-
rar a qualidade da educação, é preciso considerar diversos fatores, como

[...] os diferentes atores, a dinâmica pedagógica, o desenvolvi-


mento das potencialidades individuais e coletivas, os proces-
sos de ensino e aprendizagem, os currículos, as expectativas
de aprendizagem, bem como os diferentes fatores extraesco-
lares, que interferem direta ou indiretamente nos resultados
educativos (Nova Prata, 2015).

Com relação aos indicadores de qualidade da educação, como ín-


dices do IDEB, observa-se que, nos anos iniciais, a Rede Municipal atin-
giu a meta, cresceu e alcançou 6,6. Nos anos finais, em 2019, a média
de IDEB das escolas da Rede Municipal de Ensino foi de 5,2 – apesar de
não ter atingido a meta para o período, aumentou em 0,3 ponto. Assim,
percebe-se que as ações na Rede com foco na aprendizagem de todos
vêm tendo alguns progressos, mesmo que ainda haja um longo caminho
a ser trilhado para que essa inclusão e o desenvolvimento de todos se
efetivem.

217
Ao analisar os dados relativos a aprendizado adequado nos anos
finais do Ensino Fundamental em 2018, observa-se que, a cada 10 alu-
nos, 5,6 estariam com a aprendizagem necessária no final do Ensino
Fundamental e que o fluxo escolar foi de 0,88; ou seja, a cada 100 alu-
nos, 12 reprovaram (Qedu, 2020). Esses dados apontam a necessidade
de transformar a realidade educacional para que mais alunos atinjam
a aprendizagem adequada, num processo em que sejam respeitadas as
individualidades, buscando o desenvolvimento de cada um a partir de si
mesmo, para que as sucessivas reprovações não resultem em evasão e
abandono escolar.

Serviços de apoio à aprendizagem

O crescente número de alunos com dificuldades de aprendizagem


(provindas de fatores físicos, biológicos, sociais e/ou, emocionais) ma-
triculados na Rede Municipal de Ensino levou a Secretaria Municipal de
Educação a buscar alternativas para apoiar o trabalho das escolas na
busca da aprendizagem efetiva para todos, já que tais alunos precisam
de maior estímulo para desenvolver suas habilidades.
A Secretaria Municipal de Educação (SME) implantou no ano de
2018, nas escolas de Ensino Fundamental, laboratórios de aprendiza-
gem (LA) para atender os alunos com dificuldades, principalmente no
ciclo de alfabetização. Busca-se, assim, fortalecer e potencializar a base
do processo de aprendizagem e garantir que os alunos possam consoli-
dar o seu processo de alfabetização até o final do 3º ano do Ensino Fun-
damental, com melhores condições de ter um desempenho satisfatório
nas séries subsequentes.

218 Marlize Petrykovski Pretto | Eliane Menegotti


Gráfico 3 – Número de alunos atendidos no laboratório de aprendizagem.

Fonte: Dados fornecidos pelas escolas (2020).

Legenda descritiva: Gráfico em colunas nas cores azul claro, laranja e cinza que apresenta o número de alunos atendidos
nos Laboratórios de Aprendizagem da Rede Municipal de ensino no período de 2018 a 2020.

O número de atendimentos varia de acordo com a quantidade de


alunos matriculados em cada escola; contudo, em torno de 10 % dos es-
tudantes são beneficiados com esse atendimento, que é realizado em
pequenos grupos, no contraturno escolar. O atendimento do LA é de-
senvolvido por profissional nomeado com formação e experiência em
alfabetização, designado pela SME para essa função. Esses professores
têm assessoria e acompanhamento e recebem formação continuada
para contribuir no acolhimento, no conhecimento dos alunos e em suas
necessidades, identificando possibilidades de intervenção.

219
Quando as dificuldades de aprendizagem persistem, mesmo após
um período de estimulação na escola, os alunos são encaminhados ao
Centro Multidisciplinar (CM). Esse espaço foi criado a partir das metas
4 e 7 do PME, o qual, em sua estratégia 7.2.26, propõe:

Criar o Centro Multidisciplinar de apoio, integrado por pro-


fissionais das áreas de Saúde, Assistência Social, Psicope-
dagogia, Pedagogia e Psicologia, para apoiar o trabalho dos
professores da educação básica e atender os alunos com di-
ficuldades de aprendizagem e alunos com deficiência, trans-
tornos globais do desenvolvimento e altas habilidades ou
superdotação das escolas do município (Nova Prata, 2015).

Esse espaço conta com acompanhamento social às famílias e aten-


dimento psicológico e psicopedagógico. O CM é um órgão da SME,
criado pela Lei Municipal nº. 10.149, de 30 de agosto de 2018 (Nova
Prata, 2018), e disponibiliza atendimentos psicológicos e psicopedagó-
gicos aos alunos encaminhados, bem como acompanhamento social das
famílias. Desde sua criação, acolhe os encaminhamentos de alunos de
AEE e com dificuldades de aprendizagem identificados pelas professo-
ras das escolas.
De acordo com os dados fornecidos pela Secretaria Municipal de
Educação de Nova Prata (2020), o CM atendia e acompanhava 191 alu-
nos matriculados nas escolas municipais e 11 alunos de escolas estaduais.
No ano de 2020, ocorreu uma diminuição no número de atendimentos:
estavam vinculados ao serviço 124 alunos e crianças da Rede Municipal
e 12 da Rede Estadual. Isso decorre de alguns fatores: alunos encaminha-
dos em 2018 permaneceram em atendimento em 2019; vários alunos
tiveram alta dos atendimentos no final de 2019, observando-se avanços

220 Marlize Petrykovski Pretto | Eliane Menegotti


em seu processo de aprendizagem; em 2020, em razão da suspensão das
aulas presenciais, em decorrência da pandemia do coronavírus, o CM
recebeu menos encaminhamentos para atendimentos e atuou de forma
conjunta com a SME e as escolas na busca ativa dos alunos para garantir
o acesso às atividades remotas e a continuidade do processo de apren-
dizagem. Observa-se que muitos alunos aos quais foi oferecido o atendi-
mento evoluíram em diferentes áreas, de acordo com suas necessidades
e capacidades. Na perspectiva de Jesus et al. (2015, p. 61),

A organização desses núcleos e centros de atendimentos


educacionais especializados aponta para o atendimento das
especificidades dos alunos no turno contrário ao da escola
comum, buscando garantir ao aluno a vivência das salas de
aula e, também, o atendimento voltado para sua especificida-
de como apoio à sua escolarização.

Esses serviços atuam de forma complementar à escolarização re-


gular e auxiliam no desenvolvimento de habilidades fundamentais para
a aprendizagem. Além dos alunos com dificuldades de aprendizagem, há
ainda vários alunos que são público-alvo do AEE e recebem atendimen-
tos nas SRM das escolas, já que

[...] a sala multifuncional configura-se como um programa a


ser desenvolvido dentro do processo de inclusão escolar
que trará recursos que não são disponibilizados na escola
comum. No entanto, a sala multifuncional não pode estar
desvinculada da classe comum, pois a orientação é para que a
sala multifuncional contribua para o fortalecimento da inclu-
são escolar (Jesus et al., 2015, p. 63).

221
Esse serviço é muito importante e permite a interlocução en-
tre os diferentes educadores que compõem a rede de apoio do aluno
com NEE, buscando estratégias que auxiliam em seu desenvolvimento.
Nesse sentido, as Diretrizes Nacionais para Educação Especial (Brasil,
2001), em seu artigo 8º, inciso V, afirmam que, nas escolas de ensino re-
gular, devem ser previstos serviços de apoio pedagógico especializado
em salas de recursos, nas quais o professor com formação em educa-
ção especial realize a complementação ou suplementação curricular,
utilizando procedimentos, equipamentos e materiais específicos. Assim,
além de garantir a matrícula no ensino regular, quatro escolas de Ensino
Fundamental possuem espaços de salas de recursos, com professores
designados para essa função. Nas demais escolas, os alunos são enca-
minhados para atendimento nas salas de AEE mais próximas e podem
ainda receber AEE no CM ou na Escola de Educação Especial Morada
da Ternura (APAE).

Tabela 1 – Alunos atendidos no AEE das escolas.

2018 2019 2020

Total de alunos no AEE 56 51 54

Fonte: Adaptada de Inep (2020).

O AEE é oferecido no contraturno escolar, de modo a assegurar o


estímulo e a inclusão na sala regular e o atendimento das especificida-
des de cada aluno por meio do plano de atendimento individualizado,
organizado pelo professor do serviço de AEE.

222 Marlize Petrykovski Pretto | Eliane Menegotti


De acordo com o fluxo de trabalho, construído ao longo do pro-
cesso de intervenção e implementado no início de 2020, o professor
de AEE assume o papel de articulador com o professor de sala de aula
regular, com o monitor do AEE ou estagiário que desempenha essa fun-
ção, com a família e com os profissionais especializados que atendem
o aluno com deficiência, transtorno global do desenvolvimento, super-
dotação ou outros transtornos que requeiram o serviço do AEE. Dessa
interlocução com os diferentes sujeitos que atendem o aluno (familia-
res, monitor, professor da sala regular), surgem apontamentos e um co-
nhecimento da realidade do aluno e de suas necessidades que permitem
a elaboração de estratégias para promover o seu desenvolvimento. Do
mesmo modo, essa articulação abre “espaço para a discussão curricular
necessária nos processos inclusivos. O que devemos ensinar? Como de-
vem estar organizadas nossas práticas? Que características devem ter
nossos procedimentos avaliativos? E tantas outras questões” (Brizolla,
2015, p. 26) tão necessárias para a inclusão de todos os alunos.
Além disso, a acolhida e o fortalecimento do vínculo com as famílias,
apontados como um ponto de melhoria pelos grupos focais, deverão ser
conduzidos pela gestão da escola e pelo professor do AEE, para traba-
lhar com os responsáveis a aceitação das individualidades da criança e
construir juntos estratégias para o desenvolvimento das habilidades e a
manutenção dos atendimentos e serviços de apoio que podem contri-
buir para o desenvolvimento do aluno do AEE.

223
A construção coletiva de uma escola inclusiva

Mais do que nos serviços de apoio, a inclusão de todos os alu-


nos deve ocorrer na sala de aula. O aluno público-alvo da Educação
Especial ou que possui dificuldades de aprendizagem precisa ser aco-
lhido e estimulado pelo professor da sala de aula regular, a fim de que
ele possa crescer e desenvolver suas habilidades, sentindo-se perten-
cente ao grupo, à escola. Assim, os questionamentos quanto ao currí-
culo, à metodologia e às formas de avaliação precisam ser pensados
coletivamente no processo de elaboração do PPP das escolas. As es-
colas possuem autonomia para elaborar seu PPP, definindo seus rumos
e planejando suas atividades de modo a responder às demandas da so-
ciedade, ou seja, atendendo ao que a sociedade espera delas. A autono-
mia permite à escola a construção de sua identidade e à equipe escolar
uma atuação que a torna sujeito histórico de sua própria prática. Esse
processo iniciou-se no segundo semestre de 2019, com diagnóstico de
realidade e construção das concepções de referência – em consonân-
cia com o Referencial Curricular Municipal (RCM) –, e foi finalizado em
2020, já em período de suspensão das atividades presenciais em decor-
rência da pandemia da covid-19. Assim, as escolas organizaram encon-
tros on-line para apreciação do PPP com equipes escolares e conselhos
representativos e disponibilizaram o texto do documento para leitura e
apontamentos nos grupos. O documento finalizado foi entregue à SME
no mês de maio de 2020.
Os PPPs das escolas analisadas são definidos como o documento
que norteia o funcionamento da escola e contempla todos os aspectos
que fazem parte de seu cotidiano: seus processos de ensino-aprendiza-

224 Marlize Petrykovski Pretto | Eliane Menegotti


gem, a gestão pedagógica, a administrativa, a de clima e a patrimonial,
contribuindo para que todos na escola participem democraticamente
de forma a assegurar uma educação de qualidade para todos.
Nos PPPs, é apresentada a concepção de diversidade. A escola da
diversidade busca “promover o bem de todos, sem preconceitos de ori-
gem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”
(Brasil, [2016]). Assim, as escolas propõem-se a trabalhar com a plurali-
dade, num processo em que as diferenças devem ser respeitadas e con-
sideradas no fazer pedagógico das instituições. Nesse sentido, segundo
Jesus et al. (2015, p. 70), convém pensar em um

[...] projeto pedagógico inclusivo, em outras/novas possibili-


dades de ação, em práticas pedagógicas comprometidas com
os diferentes percursos de aprendizagens dos alunos, em
avaliação como dispositivo de retroalimentação da prática e
do desenvolvimento dos educandos, possibilitando a toda a
escola lançar olhares prospectivos sobre desafios que pare-
cem intransponíveis, pois, a partir dos saberes-fazeres des-
ses profissionais, engendramos novas/outras possibilidades
para lidar com a diversidade humana e com a realidade esco-
lar que cada vez mais se faz desafiante e presente no dia a dia
da sala de aula.

Desse modo, é importante acolher todos, valorizando e reconhe-


cendo cada um de acordo com suas individualidades. Nessa perspectiva,
com a reelaboração dos PPPs, as escolas assumem o propósito de ga-
rantir a todos o direito de aprender, considerado um direito fundamen-
tal assegurado pela CF de 1988 que precisa ser construído a partir de
experiências significativas em todos os âmbitos da formação humana.

225
Com a construção do RCM no ano de 2019, reafirmou-se a ne-
cessidade de desenvolver os objetivos de aprendizagem, habilidades e
competências nos estudantes; para isso, é preciso organizar a prática
pedagógica para, com intencionalidade educativa, alcançar os objeti-
vos pretendidos. Nesse intuito, é necessário adotar metodologias em
que os alunos “se envolvam em atividades cada vez mais complexas,
sejam desafiados a tomar decisões, avaliar os resultados e experimen-
tar novas possibilidades de mostrar sua iniciativa” (Escola Municipal de
Ensino Fundamental Prefeito Nagib Stela Elias, 2020, p. 23), pois se en-
tende que é

[...] no espaço da escola que se potencializa o desenvolvimen-


to das habilidades cognitivas, sociais, motoras e emocionais
dos estudantes através da participação, mediação, das in-
terações, do diálogo, da problematização e da construção
do conhecimento (Escola Municipal de Ensino Fundamental
Reinaldo Cherubini, 2020, p. 18).

Para que esse desenvolvimento se efetive, nesse documento,


orientador da prática pedagógica da escola, está definida a metodologia
a ser adotada a fim de dinamizar o processo de ensino-aprendizagem,
considerando o aluno como o centro desse processo. Para isso,

Os projetos são uma forma de trabalho que facilita o desen-


volvimento das metodologias ativas cujo objetivo é incenti-
var que a comunidade acadêmica desenvolva a capacidade
de absorção dos conteúdos de maneira autônoma e parti-
cipativa (Escola Municipal de Ensino Fundamental Caetano
Polesello, 2020, p. 45).

226 Marlize Petrykovski Pretto | Eliane Menegotti


As metodologias ativas são pontos de partida para avançar para
processos de reflexão, de integração cognitiva, de generalização e de
reelaboração de novas práticas. Com base nisso, os projetos de trabalho
elaborados pelo professor, considerando as necessidades da turma e as
habilidades e competências estabelecidas nos diferentes componentes
curriculares para cada ano escolar, devem “estar em consonância com o
PPP da escola, com o Referencial Curricular Municipal e ser a base para o
planejamento diário do professor” (Nova Prata, 2020). Esse documento,
elaborado trimestralmente e aprimorado e avaliado ao longo do ano le-
tivo, apresenta o projeto a ser desenvolvido nas turmas, as habilidades a
serem trabalhadas, segundo o RCM, os procedimentos metodológicos e
de avaliação, além da flexibilização curricular para os alunos de AEE ou
com dificuldades de aprendizagem.
O professor da sala de aula regular deve promover a flexibilização
curricular, considerando objetivos, metodologia, o tempo de aprendi-
zagem e as possibilidades de avaliação. “A flexibilização do currículo é
necessária e não representa outro currículo, mas sim a busca de estraté-
gias que garantam a aprendizagem de todos os alunos” (Escola Munici-
pal de Ensino Fundamental Padre Josué Bardin, 2020, p. 198), devendo
ser registrada no caderno de chamada do professor diariamente.
Além disso, o aluno do AEE tem assegurado um Plano de Atendi-
mento Individualizado (PAI) elaborado pelo professor da SRM. Esse
profissional deve mapear as matrículas de alunos público-alvo do AEE,
realizar entrevista com a família, observar o aluno em sala de aula regu-
lar e conversar com o professor referência e com o profissional de apoio
pedagógico, quando for o caso, a fim de conhecer o aluno, suas necessi-
dades e capacidades. Cabe ao professor do AEE também

227
organizar relatórios sobre o aluno para socializar com o
professor da sala de aula regular e fazer a articulação com
outros profissionais que atendam o aluno, com a família e
com a escola, buscando alternativas para o seu desenvolvi-
mento, a partir de suas necessidades e capacidades (Escola
Municipal de Ensino Fundamental Ângela Pellegrini Paludo,
2020, p. 100).

Contudo, a responsabilidade da aprendizagem do aluno de AEE


não é só do professor do AEE; por isso,

o processo de escolarização dos alunos público-alvo da edu-


cação especial deve ser desenvolvido de modo colaborativo
entre os professores da classe regular e sala de recursos a
fim de desenvolver ações pedagógicas que visam a promo-
ção da aprendizagem destes alunos. Essa articulação entre
classe regular e sala de AEE é necessária e deve ser garantida
e promovida pela direção e coordenação pedagógica da es-
cola (Escola Municipal de Ensino Fundamental Padre Josué
Bardin, 2020, p. 198).

Essa articulação e esse envolvimento de todos contribuem para o


desenvolvimento e a aprendizagem dos alunos com NEEs e facilitam a
sua inclusão no ambiente educativo.
Outro aspecto importante na garantia da educação para todos é a
avaliação, que perpassa todo o percurso educativo e é necessária para
a prática docente, para a aprendizagem dos alunos e para a instituição,
sempre na busca por uma análise crítica que norteie um replanejamento
e por ações e estratégias mais assertivas para contribuir com a aprendi-
zagem e o desenvolvimento dos alunos. A avaliação é entendida como

228 Marlize Petrykovski Pretto | Eliane Menegotti


[...] parte integrante do processo de ensino-aprendizagem,
como um meio que permite ao professor e ao aluno recolher
e interpretar informações, utilizando-as para desenvolver
habilidades e competências que possam ser aplicadas na es-
cola e em situações complexas da vida diária (Escola Munici-
pal de Ensino Fundamental Guerino Somavilla, 2020, p. 23).

Os PPPs das escolas apresentam todos os passos para a efetivação


de uma escola inclusiva; cabe, agora, a todos os educadores tornar esse
documento vivo no fazer diário da escola. Assim, será garantida uma
educação para todos, tendo ciência de que o direito à educação é um
dos direitos fundamentais dos seres humanos e que, para sua efetiva-
ção, mais do que garantir uma vaga e o acesso à escola, é preciso que
ocorra o aprendizado adequado e no tempo previsto. Assegurar esse di-
reito é promover o desenvolvimento individual dos sujeitos, a aprendi-
zagem de diferentes habilidades e o desenvolvimento de competências
necessárias para resolver os problemas escolares e da vida, com uma
formação cidadã.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este artigo foi desenvolvido a partir de um trabalho de pesquisa e


intervenção realizado nos anos de 2019 e 2020 na Rede Municipal de
Educação de Nova Prata (RS), com o objetivo de identificar quais práti-
cas escolares desenvolvidas nas escolas municipais contribuíam para a
garantia da diversidade e do direito à educação aos alunos e às crianças.
Buscou-se, por meio de indicadores e dados e encontros com grupos

229
focais, analisar a realidade educacional das escolas e, a partir disso, seus
pontos fortes com relação à inclusão de todos, bem como os aspectos
que necessitavam ser melhorados e repensados.
Nessa perspectiva, observou-se que os textos político-normativos
da legislação brasileira e os documentos que servem como embasa-
mento legal de Nova Prata (PME, PPPs) asseguram que as escolas de-
vem ser organizadas de forma inclusiva, garantindo a diversidade e o
direito à educação.
Identificou-se com a pesquisa-ação que, apesar de ser garantida a
matrícula e o direito ao ingresso no ensino regular, muitos alunos não
atingem o aprendizado adequado para o ano escolar em que estão ma-
triculados; assim, ocorrem reprovações, aumento da distorção idade/
série e diminuição nos indicadores de qualidade da educação oferecida
nas escolas da rede.
Diante disso, foram levantadas ações que contribuíssem para a di-
versidade e possibilidades de melhorias a serem implementadas com
vistas a garantir a educação para todos. Constatou-se que há serviços
oferecidos aos alunos com dificuldades de aprendizagem, deficiência e
transtornos globais do desenvolvimento que os auxiliam em seu pro-
cesso de aprender e se desenvolver. O município conta com LA, SRM/
AEE e um CM, serviços de apoio que realizam atendimentos individua-
lizados ou em pequenos grupos, buscando atender às necessidades de
cada criança e aluno para potencializar a sua aprendizagem. Os atendi-
mentos são realizados por professores com formação específica ou por
profissionais especializados que atuam de forma articulada, servindo de
apoio às escolas e aos docentes da sala de aula regular. Contudo, esses
serviços não conseguem garantir a inclusão.

230 Marlize Petrykovski Pretto | Eliane Menegotti


A pesquisa-ação realizada aponta que a verdadeira inclusão ocorre
dentro da sala de aula; dessa forma, faz-se necessário que as escolas se-
jam espaços inclusivos e que, mais do que serviços de apoio, esses alunos
possam receber um olhar diferenciado e a flexibilização curricular do
professor da sala de aula regular, pois eles são atores muito importan-
tes nesse processo. É de uma prática pedagógica mediadora, com me-
todologias ativas e intencionalidade educativa, que surgem processos
de aprendizagem inclusivos capazes de acolher a diversidade humana.
Nesse intuito, os PPPs, construídos democraticamente pelas es-
colas da Rede Municipal de Nova Prata, contemplam a necessidade de
trabalhar a diversidade como forma de cumprir a função social da es-
cola e de garantir a todos os alunos o direito à educação com aprendi-
zagem. Porém, convém que essas concepções presentes no documento
que norteia a prática pedagógica escolar se efetivem, traduzam-se em
ações, metodologias, formas de intervenção, acolhida, interação e
avaliação e assegurem o respeito às individualidades e ao desenvolvi-
mento de cada um.
O acompanhamento da prática e dos resultados foi dificultado
em razão da suspensão das atividades presenciais durante o período
da pandemia da covid-19, evidenciando o limite da pesquisa-ação, que
requer a participação ativa de todos, num contexto real de interação,
por meio da análise crítica, que permite mudar a realidade. Contudo,
mesmo com a suspensão das aulas presenciais, na prática pedagógica
já se observam alguns avanços: os professores têm tido um olhar mais
acolhedor para os alunos com dificuldades e AEE e têm realizado a fle-
xibilização curricular, buscando estratégias para promover a aprendiza-
gem com respeito à diversidade. Entretanto, ainda há um longo caminho

231
a ser trilhado a fim de que todos os alunos tenham garantido, mais do
que acesso e permanência, um ensino de qualidade nas escolas da Rede
Municipal de Nova Prata. Assim, faz-se necessário garantir uma Gestão
Democrática dos processos educacionais, de modo que todos se sintam
parte do processo e possam construir juntos a escola da diversidade
para todos.

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234 Marlize Petrykovski Pretto | Eliane Menegotti


7
Bullying: do
entendimento ao
papel do Estado

Emerson Roberto de Oliveira1


Alexandre José Rossi2

1 Pós-graduado em Gestão Escolar pela Universidade Federal do Rio Gran-


de do Sul. Pós-graduando em Aperfeiçoamento em Educação para as Rela-
ções Étnico-raciais na Educação Básica pela Universidade Federal do Rio
Grande do Sul.
E-mail: robertodeoliveira.e74@gmail.com

2 Doutor e Mestre em Educação pela Universidade Federal do Rio Gran-


de do Sul. Professor Adjunto do Departamento de Estudos Especializados,
Área de Políticas e Gestão da Educação, Faculdade de Educação, da Univer-
sidade Federal do Rio Grande do Sul. Orientador.
E-mail: ajrossi.rossi@gmail.com
INTRODUÇÃO

Este trabalho tem como objetivo analisar e entender o bullying en-


quanto um fenômeno psicossocial inerente à escola, considerando a
Lei nº. 13.185, de 6 de novembro de 2015, que institui o Programa de
Combate à Intimidação Sistemática, destacando em seu artigo 5º que “é
dever do estabelecimento de ensino, dos clubes e das agremiações re-
creativas assegurar medidas de conscientização, prevenção, diagnose e
combate à violência e à intimidação sistemática (bullying)” (Brasil, 2015).
Do mesmo modo, temos a alteração da Lei de Diretrizes e Bases
da Educação (LDB) – Lei nº. 9.394 (Brasil, 1996) – pela Lei nº. 13.663,
de 14 de maio de 2018, em seu artigo 12, inciso IX (a chamada Lei an-
tibullying), nas instituições escolares públicas. É preciso compreender
que a intimidação, os maus-tratos e a humilhação entre os estudantes,
de forma premeditada, hostil, constante e repetitiva, são sinais claros e
evidentes desse fenômeno e estão cada vez mais presentes em nossas
escolas (Brasil, 2018a).
O objeto de análise deste artigo está ligado ao fato de ter ocorrido,
no ano de 2017, um caso de suicídio na escola em que um dos pesquisa-
dores trabalha. A estudante deixou um bilhete dizendo que havia muito
tempo que sofria bullying de colegas e que esse seria um dos motivos
que a teria levado a tirar a própria vida. No entanto, ela nunca relatou
o fato de estar sofrendo bullying a alguém competente da escola, assim
como a direção e o corpo docente nunca perceberam essa violência
dentro da escola.

236 Emerson Roberto de Oliveira | Alexandre José Rossi


Diante do ocorrido, percebeu-se que a temática não era traba-
lhada dentro do contexto escolar e que os profissionais da área da
educação, sejam eles da esfera municipal, estadual ou federal, não pos-
suem, ou possuem pouquíssima qualificação, ou não lhes é oferecido
tal suporte ou qualificação pelas mantenedoras, mesmo existindo uma
lei que determina que os espaços escolares identifiquem e combatam
esse problema. Assim, compreende-se que o bullying é um fenômeno
que deve ser prevenido e combatido dentro das instituições escolares,
uma vez que as consequências, conforme Silva (2010a), “[...] podem
ser desastrosas, desde repetência e evasão escolar até o isolamento,
depressão e, em casos extremos, suicídio e homicídio”. Acreditamos
que a identificação e o combate ao bullying dentro dos espaços escola-
res também se fazem dentro da perspectiva da Gestão Democrática da
Educação (GDE), visto que o tema precisa ser abordado em toda a sua
complexidade, envolvendo toda a comunidade escolar, para fortalecer
os laços entre ela e a escola.
O intuito inicial era realizar na escola um projeto de qualificação
para identificar e combater o bullying, direcionado não somente aos
profissionais da área da educação, mas também aos estudantes e toda a
comunidade escolar. Todavia, com a declaração de pandemia pela Orga-
nização Mundial da Saúde (OMS) em 11 de março de 2020, os encontros
que já estavam programados e agendados precisaram ser cancelados.
A partir desse contexto, podemos afirmar que todos os atores so-
ciais das instituições escolares têm sua parcela de responsabilidade no
enfrentamento e combate ao fenômeno bullying, desde funcionários,
professores, equipe diretiva, gestores públicos, até os próprios estu-
dantes e suas famílias e responsáveis legais.

Bullying: do entendimento ao papel do Estado 237


Para que ocorra esse enfrentamento, é preciso primeiramente en-
tender o que é o bullying e quais são suas dimensões, dialogar e debater
sobre ele, assim como capacitar todos os atores sociais da comunidade
escolar para que possa haver a possibilidade de combate a essa prática.
Sem o devido enfrentamento, a prática do bullying pode se tornar, no
futuro, um grande problema socioemocional para ambos os envolvidos,
tanto para quem sofre como para quem pratica, e também para a insti-
tuição escolar.
Diante do exposto, para buscar analisar e obter subsídios referen-
tes ao fenômeno bullying e suas dimensões, destaca-se um conjunto de
documentos de distintos autores, estudiosos e pesquisadores para a
revisão bibliográfica e a análise documental sobre a temática, os quais
colaboraram para o entendimento desse problema enfrentado por
muitos estudantes brasileiros. Desse modo, elegeu-se a metodologia
de pesquisa e análise bibliográfica documental, com base em alguns au-
tores que materializam a fundamentação investigativa deste trabalho.
Dentre os autores, estudiosos e pesquisadores estudados, estão Cleo
Fante (2005), em Fenômeno bullying, a maior expoente da temática no
Brasil, juntamente com Ana Beatriz Barbosa Silva (2010b), com sua
obra Bullying – mentes perigosas nas escolas, e Dan Olweus (1999), que
discorre sobre as intimidações e a violência ocorridas nas escolas e é um
dos maiores estudiosos do mundo no assunto. Em um nível mais pró-
ximo estão Grossi e Santos (2008), em Fenômeno Bullying: desvendando
esta violência nas escolas públicas de Porto Alegre, que abordam a violên-
cia nas escolas de Porto Alegre, e, ainda, Marilena Ristum (2010), em
Bullying escolar, que faz uma análise detalhada da conceituação e da ti-
pagem de bullying.

238 Emerson Roberto de Oliveira | Alexandre José Rossi


Além desses autores, documentos oficiais do Ministério da Edu-
cação (MEC), como o documento da LDB, cartilhas e programas de en-
frentamento ao bullying, também foram consultados. Igualmente, foram
pesquisadas publicações sobre a temática no Portal do MEC, além do
Estatuto da Criança e do Adolescente, da Lei nº. 8.069, de 1990, que dis-
põe de medidas eficazes para o enfrentamento ao bullying (Brasil, 1990),
e da Lei nº. 13.663, de 2018, que altera a LDB em seu artigo 12, inciso IX,
para enfrentar o bullying (Brasil, 2018a).
Este artigo está estruturado em seções. Na primeira seção, vamos
apresentar o fenômeno psicossocial denominado bullying, desde o sig-
nificado de sua terminologia até os primeiros estudiosos do assunto no
mundo e no Brasil, bem como os tipos de bullying. Na segunda seção,
identificaremos os atores sociais do bullying, o que ele é e a importância
da resiliência. Na terceira seção, faremos um resumo de alguns dados
recentes sobre o bullying na América Latina e no Brasil. Na quarta se-
ção, vamos discutir o papel do Estado no enfrentamento ao bullying. Já
na quinta seção, apresentaremos o Programa Comissões Internas de
Prevenção a Acidentes e Violência Escolar (Cipave+),3 da Secretaria de
Educação do Estado do Rio Grande do Sul, com seus jogos Baneville e As
Aventuras da Cipave4 enquanto estratégias de combate ao bullying. Por
fim, na sexta seção, traremos nossas considerações sobre o trabalho.

3 O Cipave+ (Comissões Internas de Prevenção de Acidentes e Violência Escolar) é um programa


criado e gerenciado pela Secretaria da Educação do Estado do Rio Grande Sul em parceria com as
demais secretarias de governo que busca orientar a comunidade escolar sobre as mais diversas
situações que podem ocorrer no ambiente escolar.

4 As aventuras da Cipave tem a proposta principal de proporcionar aos estudantes da rede estadual
de ensino do Rio Grande do Sul mais informações em uma nova forma de abordagem sobre a
prevenção de acidentes, o bullying e a cidadania de dentro do espaço escolar, mas de forma lúdica,
divertida e educativa. No jogo, existem várias fases com muitos desafios e armadilhas que preci-
sam ser superados pelos gamers.

Bullying: do entendimento ao papel do Estado 239


BULLYING: UM FENÔMENO RECENTE A SER
ENTENDIDO

O termo bullying é originário da língua inglesa e é utilizado em


diversos países para conceitualizar e classificar uma infinidade de
comportamentos agressivos e antissociais, principalmente aqueles
que ocorrem dentro do ambiente escolar. Não existe, na língua portu-
guesa, uma tradução exata e fiel para o termo anglicista bullying. Po-
rém, em inglês, bully é o termo que designa “valentão” ou “intimidador”
(Bully, 2020). Nesse contexto, bullying pode ser traduzido como “in-
timidação”, o que leva o fenômeno à diversidade das suas complexas
formas de manifestação, ou seja, uma situação de ameaças e intimida-
ções, coação ou assédio.
Nos principais dicionários on-line de português brasileiro pesqui-
sados (Michaelis, Dicio e Priberam), não existe uma palavra que sirva
de tradução fiel e exata para o termo bullying, o que favorece o uso de
outros termos (Bullying, 2020a, 2020b, 2020c). Já na língua espanhola,
que também não possui uma expressão de tradução fiel e exata, encon-
tra-se no Diccionario de la Lengua Española da Real Academia Española a
definição de bullying como acoso escolar, com um sentido de “persegui-
ção”, sem dar trégua nem repouso, a um animal ou pessoa, ou ainda de
“maus-tratos” entre iguais (Acoso escolar, 2014).
No Brasil, a maior expoente da pesquisa sobre o bullying é Cleo
Fante, que desde a virada do milênio se dedica aos estudos desse com-
portamento agressivo e antissocial. Segundo Fante (2005, p. 21), o fe-
nômeno bullying desencadeia-se de forma implícita, quase oculta, por
meio “de um conjunto de comportamentos cruéis, intimidadores e repe-

240 Emerson Roberto de Oliveira | Alexandre José Rossi


titivos, prolongadamente contra uma mesma vítima”, e tem um imenso
poder devastador, já que agride a “área mais preciosa, íntima e inviolável
do ser – a alma”.
Fante (2005, p. 28) traz a sua concepção e tradução para a expres-
são bullying:

Bullying é um conjunto de atitudes agressivas, intencionais e


repetitivas que ocorrem sem motivação evidente, adotado
por um ou mais alunos contra outro(s), causando dor,
angústia e sofrimento. Insultos, intimidações, apelidos cruéis,
gozações que magoam profundamente, acusações injustas,
atuação de grupos que hostilizam, ridicularizam e infernizam
a vida de outros alunos levando-os à exclusão, além de danos
físicos, morais e materiais, são algumas das manifestações do
comportamento bullying.

Já para Silva (2010b, p. 13),

As brincadeiras acontecem de forma natural e espontânea


entre alunos. Eles brincam, “zoam”, colocam apelidos um nos
outros, tiram “sarros” dos demais e se divertem. No entanto,
quando as “brincadeiras são realizadas” repletas de “segun-
das intenções” e de perversidade, elas se tornam verdadeiros
atos de violência que ultrapassam os limites suportáveis de
qualquer um.

Diante dessas perspectivas, o bullying pode ser definido como uma


forma de maus-tratos, intencional e constante, de um ou vários estu-
dantes frente a outro indivíduo igual ao primeiro, mas que contém uma
série de características físicas ou psicológicas que lhe definiriam como
frágil ou fraco, podendo se converter em uma vítima habitual, sem que

Bullying: do entendimento ao papel do Estado 241


seja capaz de se defender ou sair da situação, provocando seu isola-
mento frente ao grupo de iguais.
Olweus (1999), pesquisador norueguês da Universidade de
Bergen, foi o primeiro a pesquisar a temática do bullying e o classificou de
forma distinta do restante dos problemas que pode haver entre os estu-
dantes, estipulando uma série de parâmetros que demonstram o que se
relaciona com o bullying e o que é apenas uma situação de atos agressi-
vos isolados. Diante disso, o bullying deixa a perspectiva de uma simples
brincadeira infantil/adolescente e passa a ser percebido com a seriedade
que o problema requer. Ainda para o autor, o bullying vem a ser um com-
portamento prolongado de insulto verbal, isolamento social, intimidação
psicológica e/ou agressão física de crianças e adolescentes a outros que
se convertem, dessa forma, em vítimas de seus companheiros.
Conforme Fante (2005) e Silva (2010a, 2010b), o bullying ocorre no
espaço escolar, porém não somente nele, pois pode acontecer dentro
do convívio familiar ou em qualquer outro ambiente.
Dessa forma, esta investigação se fez nas perspectivas de Fante
(2005) e Silva (2010a, 2010b), segundo as quais o bullying é um fenômeno
inerente à escola. Tais autoras nos ajudam a pensar o objeto de estudo
relacionando-o com as Leis nº. 13.185, de 6 de novembro de 2015, e nº.
13.663, de 14 de maio de 2018, que implicam diretamente o trabalho
das escolas.
Assim como está na Lei nº. 13.185, de 2015, a intimidação sistemá-
tica, ou bullying, pode ser considerada toda ação de conduta que conte-
nha ameaça à integridade emocional, física, mental, sexual ou social de
um indivíduo para outro ou outros. Segundo os pesquisadores brasilei-

242 Emerson Roberto de Oliveira | Alexandre José Rossi


ros da temática, há oito tipos de bullying, quais sejam: verbal, psicológico,
físico, material, social, moral, sexual e cyberbullying (Bergamo, 2018).
Os estudos sobre o fenômeno bullying são recentes no mundo,
principalmente no Brasil, onde ainda não existe um termo específico
e direto para designá-lo na língua portuguesa. Ainda que existam
divergências sobre o local onde o ato pode ser considerado bullying,
ambas as pesquisadoras mencionadas concordam que os oito tipos de
bullying podem ocorrer na escola e que é também nela que estão pre-
sentes todos os atores sociais do fenômeno.

OS ATORES SOCIAIS DO BULLYING

Segundo os pesquisadores Joel Conceição Bressa da Cunha, Lú-


cia Cavalcanti de Albuquerque Williams, Maria Isabel da Silva Leme e
Cleo Fante, tanto o protagonista ou o autor quanto as vítimas do bullying
podem desenvolver problemas psicológicos ao longo de suas vidas, e
mesmo quem não participa ativamente no ato do bullying, mas o assiste,
como o espectador que se omite, reforça que essa situação continue
ocorrendo (Bergamo, 2018).
Na prática do bullying, o protagonista compreende que seus atos
poderão machucar a vítima, física ou psicologicamente, porém os pra-
tica da mesma maneira, sem analisar os possíveis danos a outrem. As-
sim como a vítima de bullying, o protagonista ou autor também pode
representar um risco aparente de desenvolver problemas psicológicos.
É muito relevante obter respostas sobre o que originou o comporta-

Bullying: do entendimento ao papel do Estado 243


mento agressivo do indivíduo, pois depressão e baixa autoestima po-
dem ser consideradas causa ou efeito do bullying.
A vítima do bullying pode carregar pelo resto de sua vida as marcas
dos traumas sofridos. Normalmente, frente a uma situação de bullying
criada pelo protagonista, a vítima não se defende das agressões, mos-
trando a sua insegurança perante o agressor. Já outras vítimas, de cará-
ter mais inflamado, conseguem revidar as agressões. Há indivíduos que
se sentem responsáveis pelo próprio sofrimento, ao mesmo tempo que
outros descontam as suas decepções nos demais estudantes.
Omissão, risadas ou mesmo o silêncio daqueles que estão à volta do
ato do bullying fortalecem, mesmo que sem intencionalidade, as agres-
sões físicas ou verbais. Segundo os especialistas, esse comportamento
se deve ao medo de se tornarem a próxima vítima. Eles são chamados
de espectadores. A situação de insegurança se aplica também a quem
está assistindo, mas a intervenção pelo espectador não garante que o
ato seja impedido ou reprimido. Em síntese, quando os indivíduos que
assistem às agressões param de apoiar o bullying, mesmo sem que te-
nham essa intenção, o protagonista ou autor normalmente fica sozinho
e para de agredir as vítimas (Bergamo, 2018).
Para os especialistas, mesmo quem não participa ativamente do
ato agressivo e fica de fora, ainda que somente observando o bullying
ocorrer, tem a sua parcela de culpa na situação. Outra importante ques-
tão que os especialistas apontam no enfrentamento ao bullying é a re-
siliência. O conceito de resiliência utilizado na psicologia se enquadra
muito bem no enfrentamento ao bullying, conforme a definição da So-
ciedade Norte-Americana de Psicologia:

244 Emerson Roberto de Oliveira | Alexandre José Rossi


A resiliência é definida como a capacidade psicológica de
se adaptar às circunstâncias estressantes e se recuperar
de eventos adversos. Na Física, resiliência é compreendida
como a propriedade de um corpo de recuperar a sua forma
original, após sofrer algum choque ou deformação. A palavra
deriva do latim resilio, que significa saltar para trás, reduzir-se
e afastar-se (D’Agostini, 2019).

Nesse sentido, é importante que professores e gestores escolares


e públicos das três esferas conheçam e desenvolvam em seus estudan-
tes a resiliência principalmente no enfrentamento ao bullying.
Para Gaxiola et al. (2011), a resiliência se compõe de pelo menos 10
características que, associadas, permitem que o sujeito supere as situa-
ções de risco que enfrenta. As características são:

1) Enfrentamento: tendência a enfrentar as situações proble-


máticas e a procura dos apoios necessários se o caso deman-
dar; [...] 2) Atitude positiva: visão positiva da vida, procurar
pessoas positivas, que estejam à disposição para ensinar fren-
te aos problemas e ser feliz apesar das contrariedades que se
enfrentam cotidianamente; [...] 3) Ter humor: disposição para
sorrir inclusive diante dos problemas ou situações difíceis;
[...] 4) Empatia: compreender e compartilhar os seus estados
emocionais e os contextos das outras pessoas; [...] 5) Flexibi-
lidade: aceitar os problemas como parte normal da vida e a
possibilidade de se adaptar às perdas; [...] 6) Perseverança:
ter persistência de esforço para conseguir atingir as metas,
mesmo diante das dificuldades e a habilidade para corrigir o
rumo, aprendendo com as dificuldades, e reconhecer o valor
da adversidade; 7) Religiosidade: tendência a conceituar os

Bullying: do entendimento ao papel do Estado 245


problemas que se enfrentam de acordo com as crenças re-
ligiosas que se tenham; [...] 8) Autoestima: acreditar na pró-
pria capacidade para organizar e executar a correção dos
rumos que sejam necessários para produzirem determina-
dos resultados; [...] 9) Otimismo: pessoas com otimismo têm
a tendência a terem resultados positivos em suas vidas; e [...]
10) Ter metas na vida: ter metas e aspirações na vida e fazer
o necessário para alcançá-las5 (Gaxiola et al., 2011 p. 75-77,
tradução nossa).

De acordo também com essas 10 características da resiliência, a fa-


mília, a rede de amizades saudáveis e a escola se fazem muito importan-
tes para que o indivíduo saiba lidar com as dificuldades em sua vida: ainda
que se saiba que a responsabilidade não é exclusivamente do sujeito,
quem sofre bullying precisa do apoio de tais entidades para que consiga
construir a sua resiliência. Para Galdino e Nascimento (2013, p. 16),

[...] resiliência não é um traço da personalidade ou atributo


pessoal, mas é uma capacidade que pode ser desenvolvida
por qualquer pessoa e de modo processual; todo sujeito tem
essa possibilidade e o aspecto biológico, subjetivo, social e
cultural influenciam na promoção da resiliência.

5 Afrontamiento. Abarca la tendencia a enfrentar los problemas y la búsqueda de los apoyos necesa-
rios en caso de requerirse. [...] Actitud positiva. Esta disposición abarca el enfoque positivo de la vida, la
búsqueda de personas positivas, la disposición para el aprendizaje ante los problemas y el tratar de ser
feliz a pesar de las contrariedades que se enfrentan cotidianamente. [...] Sentido del humor. Es la disposi-
ción a sonreír incluso ante los problemas o situaciones difíciles. [...] Empatía. Se define como el entender
y compartir los estados emocionales o los contextos de las demás personas [...] Flexibilidad. Incluye la
aceptación de los problemas como parte normal de la vida y la posibilidad de adaptarse a las perdidas [...]
Perseverancia. Es la persistencia del esfuerzo para lograr metas a pesar de las dificultades y la habilidad
para reajustarlas, aprender de las dificultades y reconocer el valor de la adversidade. [...] Religiosidad. Es
la tendencia a conceptuar los problemas que se enfrentan de acuerdo a las creencias religiosas que se
tengan. [...] Autoeficacia. ‘creencias en las propias capacidades para organizar y ejecutar los cursos de
acción requeridos que producirán determinados logros o resultados’ [...] Optimismo. Es la tendencia de
las personas a esperar resultados positivos y favorables en sus vidas, [...] Orientación a la meta. Consiste
en tener metas y aspiraciones en la vida y hacer lo necesario para lograrlas.

246 Emerson Roberto de Oliveira | Alexandre José Rossi


Assim, a resiliência nada mais é que a transformação, de maneira
saudável, das adversidades sofridas e a adaptação às situações estres-
santes vivenciadas em determinado período; com ela, o sujeito aprende
pelas situações de modo a superá-las, para que elas não voltem a inter-
ferir negativamente em sua vida.
Paro (2002) considera a participação da comunidade escolar na
gestão da escola como uma prática social. Desse modo, percebemos o
espaço escolar como o local onde o fenômeno bullying ocorre, mas tam-
bém onde ele deve ser enfrentado e combatido, uma vez que os atores
sociais estão presentes. Consequentemente, a resiliência deve ser esti-
mulada, por meio da Gestão Escolar, para que todos consigam enfrentar
seus problemas de modo sadio. Para tanto, é necessário realizar pes-
quisas constantes sobre o tema de modo a criar subsídios para auxiliar
todos os envolvidos no fenômeno bullying.

ALGUNS DADOS RECENTES SOBRE O BULLYING NA


AMÉRICA LATINA E NO BRASIL

Em 2017, a Organização das Nações Unidas (ONU) apresentou um


relatório no Simpósio Internacional sobre Violência Escolar e Bullying:
das evidências à ação, em Seul, República da Coreia, que ocorreu entre
17 e 19 de janeiro. O relatório apresentado buscava divulgar ao setor da
educação um referencial na ação para o planejamento e a prática de pro-
gramas concretos de atenção e combate à violência escolar e ao bullying.
Intitulado Relatório sobre a situação global da violência escolar e bullying,
o documento utilizou importantes dados que foram retirados de várias

Bullying: do entendimento ao papel do Estado 247


fontes, principalmente do relatório Protecting children from bullying, do
secretário-geral da ONU (2016), que foi produzido pela Organização
das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) e
pelo Instituto de Prevenção à Violência Escolar da Universidade de Mu-
lheres Ewha.
O estudo elaborado pela Unesco no ano de 2016 contou com 100
mil indivíduos, entre crianças e jovens de 18 países, e revelou que, em
média, 50 % deles sofreram algum tipo de bullying em razão da sua apa-
rência física, orientação sexual, gênero, etnia ou país de origem. Esse
índice no Brasil é de 43 %, taxa similar a alguns países da região (como
Argentina, com 47,8 %, Colômbia, com 43,5 %, Chile, com 33,2 %, e
Uruguai, com 36,7 %) e a países desenvolvidos (como Alemanha, com
35,7 %, Espanha, com 39,8 %, e Noruega, com 40,4 %).
Segundo o relatório, “O bullying é uma experiência danosa, apesar
de evitável, para muitas crianças no mundo. Não importa como seja de-
finida, as pesquisas internacionais recentes com crianças relatam uma
taxa entre 29 % e 46 % de crianças alvo de bullying nos países estuda-
dos” (Unesco, 2019).
Outros números sobre o bullying aparecem na Pesquisa Internacio-
nal sobre Ensino e Aprendizagem (Talis), versão de Teaching and Learning
International Survey, que é elaborada a cada cinco anos pela Organiza-
ção para Cooperação e Desenvolvimento Econômico, do inglês Organi-
sation for Economic Co-operation and Development (OECD). A pesquisa é
fundamentada na perspectiva de diretores e professores, por meio da
aplicação de questionários com temas relacionados a clima escolar, li-
derança escolar, desenvolvimento profissional, gestão, entre outros. No
Brasil, o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio

248 Emerson Roberto de Oliveira | Alexandre José Rossi


Teixeira (Inep) é o responsável pela execução e pela coleta dos dados
(Inep, 2018).
No que diz respeito ao bullying, 28 % dos diretores brasileiros ex-
põem que ele acontece regularmente entre seus estudantes. Esse ín-
dice, nas escolas brasileiras, é o dobro da média de 14 % que a pesquisa
da OECD revelou ser no geral. Ainda, 87 % dos professores brasileiros
informaram que precisam acalmar os ânimos dos estudantes para que
situações não acabem evoluindo para o bullying e outras violências,
sendo que a média na pesquisa da OECD (2019) é de 65 %.
Já o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em con-
junto com o Ministério da Educação (MEC), divulgou em 2015 a Pes-
quisa Nacional de Saúde do Escolar (PeNSE 2015), que contém um
capítulo especial sobre o bullying. A pesquisa é pioneira no país após a
Lei nº. 13.185, de 2015, primeira lei nacional que pretende prevenir e
enfrentar a prática da intimidação sistemática (bullying), sendo conside-
rada um marco jurídico de combate a esses atos.
Para a pesquisa, foram utilizadas duas amostragens. A amostra 1 é
constituída por estudantes do 9º ano dos anos finais do Ensino Funda-
mental, matriculados no ano letivo de 2015 em instituições escolares
públicas e privadas do país. Já a amostra 2 é formada por estudantes do
6º ao 9º ano dos anos finais do Ensino Fundamental e do 1º ao 3º ano do
Ensino Médio dos turnos matutino, vespertino e noturno, inseridos no
Ensino Médio Não Seriado, no Ensino Médio Integrado e no Ensino Mé-
dio Normal/Magistério, matriculados no ano letivo de 2015, igualmente
em escolas públicas e privadas do país. A pesquisa tem um intervalo de
confiança de 5 % para mais ou para menos.

Bullying: do entendimento ao papel do Estado 249


A pesquisa revela que 88,9 % dos estudantes frequentam escolas
nas quais o bullying é proibido. Nessas escolas, 20,1 % dos estudantes
entrevistados confirmaram que já praticaram algum tipo de ato como
esculachar, intimidar, caçoar, magoar ou zombar de algum de seus co-
legas da escola de tal maneira que este tenha ficado aborrecido, humi-
lhado, magoado ou ofendido. Entretanto, para as instituições escolares
em que não há regras de proibição ao bullying, o índice para as mesmas
práticas fica em 17,1 %.
O percentual de 7,4 % corresponde aos estudantes que responde-
ram que, na maior parte do tempo ou sempre, se sentiram humilhados
por provocações, dentro dos 30 dias anteriores à pesquisa, dos colegas
da escola que os esculacharam, intimidaram ou caçoaram a ponto de fi-
carem humilhados, magoados ou ofendidos.
As taxas percentuais foram semelhantes para ambos os sexos de
estudantes, ficando em 7,6 % para o público masculino e em 7,2 % para o
feminino. Quanto aos percentuais entre as escolas das redes públicas, a
taxa ficou em 7,6 %, enquanto a das escolas da Rede Privada foi de 6,5 %.
Do público escolar pesquisado, 53,4 % responderam que nenhuma
vez, e 39,2 %, que raramente ou às vezes se sentiram humilhados por
provocações realizadas por colegas de escola nos 30 dias que antece-
deram a pesquisa. A região brasileira que revelou ter a maior taxa de
alunos que declararam sofrer constrangimento ou humilhação na maior
parte do tempo ou sempre, com 8,3 %, foi a Sudeste, impulsionada pelo
estado de São Paulo, que obteve a maior taxa nacional, com 9,0 %.
Ao serem questionados se haviam caçoado, esculachado, intimi-
dado, magoado ou zombado de algum de seus colegas de escola nos 30
dias que antecederam a pesquisa, 19,8 % assumiram que sim. A taxa foi

250 Emerson Roberto de Oliveira | Alexandre José Rossi


maior entre o público masculino, com 24,2 %, enquanto para o público
feminino, ela ficou em 15,6 %. Para esse item do questionário, as esco-
las privadas ficaram com a taxa de 21,2 %, superior à taxa das escolas
públicas, que ficou em 19,5 %. Igualmente, a região Sudeste possui as
maiores taxas entre as regiões brasileiras, com 22,2 %, da mesma forma
que o estado de São Paulo possui as maiores taxas entre as unidades
federativas, com 24,2 %.
Segundo os estudantes que se sentiram humilhados por provoca-
ções de colegas, o principal motivo de se sentirem dessa forma foi por
ouvirem comentários sobre a aparência do seu corpo, com a taxa de
15,6 %, e do seu rosto, com 10,9 %.
De fato, existem algumas pesquisas de entidades e organizações
confiáveis e de abrangência regional, nacional ou mundial sobre o fenô-
meno bullying comprovando que ele existe em uma taxa considerável.
Entretanto, pensamos que não há como fazer comparações com uma
e outra, pois as metodologias e as questões pesquisadas são distintas.
Desse modo, as pesquisas precisam ter o mesmo foco, com as mesmas
questões e metodologias, para serem comparadas entre si. Já que é
comprovado que o fenômeno ocorre dentro de instituições públicas de
ensino, o Estado tem o dever de pesquisar, compilar e divulgar os dados,
além de formular políticas públicas para o seu enfrentamento.

Bullying: do entendimento ao papel do Estado 251


O PAPEL DO ESTADO NO ENFRENTAMENTO AO
BULLYING

O papel do Estado é garantir que os direitos dos cidadãos sejam


respeitados. Para tanto, é preciso desenvolver políticas públicas que
consigam promover a percepção dessa igualdade por todos. E para en-
frentar o bullying, nada mais adequado que uma política pública direcio-
nada aos estudantes por meio das próprias instituições de ensino, pois
são o espaço geográfico de sua ocorrência.
Corroborando Rossi (2016), compreende-se que o Estado deve ga-
rantir as políticas públicas, pois ele é a entidade mantenedora do espaço
escolar público – onde elas serão empregadas. Assim, é fundamental ga-
rantir o direito aos estudos a todos os estudantes com equidade, e isso
passa pelo enfrentamento ao bullying, mesmo que seja pela força impe-
rativa da lei. Para Rossi (2016, p. 33-34),

[...] o Estado deve ser o lugar essencial da produção de políti-


cas, pois, desse modo, ele encontra-se em constante disputa,
a qual expressa muitas vezes interesses antagônicos. A legi-
timidade dos direitos sociais de uma classe ou um grupo so-
cial só existe perante o Estado, pois é ele quem garante, atra-
vés do imperativo da lei, esses direitos que se materializam
em políticas.

Nessa perspectiva, como fonte de pesquisa foi utilizado o portal do


Ministério da Educação (MEC), no qual há várias referências ao bullying
e ao seu enfrentamento. Certamente há mais publicações no portal,
mas para este trabalho foram selecionadas as 20 primeiras referên-
cias de bullying que apareceram quando utilizada a pesquisa de busca

252 Emerson Roberto de Oliveira | Alexandre José Rossi


rápida no próprio portal. Algumas publicações apenas fazem referên-
cia ao bullying ou apresentam projetos que foram utilizados em deter-
minadas localidades para enfrentar o fenômeno em nível local. Outras
publicações apresentam projetos, porém voltados principalmente para
as Instituições Superiores Federais de Ensino, que podem ou não aderir
aos projetos, contrastando com a Lei nº. 13.185, de 2015, que determina
que todas as instituições de ensino do país ofertem programas de en-
frentamento ao bullying. Apenas um projeto dos que foram analisados
no portal do MEC é apresentado como um programa estadual, do Go-
verno do Estado do Rio Grande do Sul, que pode servir de base para um
programa em nível nacional.
As primeiras referências encontradas sobre o tema iniciam em 5
de janeiro de 2010. A publicação no Portal do MEC Pesquisadora aponta
a prevenção como forma de reduzir a violência traz as considerações da
então doutoranda em Ciências da Educação Cleo Fante, pioneira nos
estudos do fenômeno bullying no Brasil. Naquele momento, a pesqui-
sadora, já com 10 anos de experiência no assunto, iniciou o programa
Educar para a Paz, que foi implementado em várias escolas do Brasil
e de Portugal. Ela já dizia em 2010 que, diante dos resultados de seus
estudos, podia “[...] afirmar que o bullying é um fenômeno que cresce
assustadoramente” (Schenini, 2010b).
No dia posterior, a publicação Escola e famílias atuam unidas em muni-
cípio de Mato Grosso do Sul, de 6 de janeiro de 2010, trouxe o exemplo da
escola e das famílias no projeto Unidos no Combate à Prática do Bullying.
O projeto foi desenvolvido em 2008 e 2009 com os estudantes do pri-
meiro ano do Ensino Fundamental da EMEF Neil Fioravanti. Em seguida,
o projeto interdisciplinar uniu toda a escola, as famílias dos estudantes e

Bullying: do entendimento ao papel do Estado 253


a comunidade escolar (Schenini, 2010a). No caso dessa publicação espe-
cífica, o MEC apenas dá visibilidade ao fato de que houve um projeto de
combate ao bullying, mas, em nenhum momento, relata algum projeto do
próprio Ministério de combate à intimidação sistemática.
Na publicação Especialistas indicam formas de combate a atos de in-
timidação, de 20 de abril de 2017, a professora de psicologia Ciomara
Schneider afirma que a melhor forma de combate é o diálogo. Como ex-
plica a psicóloga, “o diálogo continua a ser a melhor arma contra esse
tipo de violência, que pode causar efeitos devastadores em crianças e
adolescentes” (Brasil, 2017a); porém, não se explica como isso deve ser
feito ou se os professores terão alguma formação.
No mesmo dia, na publicação Pacto pretende promover ações contra
a violência nas escolas, o MEC, em conjunto com o Ministério da Justiça,
apresenta o programa Pacto Universitário pela Promoção do Respeito
à Diversidade, da Cultura da Paz e dos Direitos Humanos. Esse projeto
objetiva “promover ações de respeito às diferenças e de enfrentamento
ao preconceito, à discriminação e à violência no ambiente universitário,
bem como de gestão e convivência” (Brasil, 2017b). Segundo a publi-
cação, “as instituições têm autonomia para planejar e desenvolver as
ações, e terão 90 dias a partir da adesão para apresentar seu plano de
trabalho. As práticas de cada instituição devem ser planejadas levando-
-se em consideração os objetivos do Pacto” (Brasil, 2017b).
A publicação também faz referência ao fato de que “[...] o MEC tra-
balha na construção de um portal voltado para a promoção dos direitos
humanos dentro das escolas e para a comunidade escolar. As escolas
terão acesso a diversos materiais atualizados para consulta e para utili-
zação em sala de aula” (Brasil, 2017b).

254 Emerson Roberto de Oliveira | Alexandre José Rossi


Porém, mais de três anos depois da publicação, e após exaustivas
pesquisas na Internet, não se encontrou o portal supracitado.
Em 6 de abril de 2018, a publicação MEC apoia enfrentamento ao
bullying e violência nas escolas trouxe alguns dados de pesquisa sobre o
bullying e sua gravidade. Segundo a secretária de Educação Continuada,
Alfabetização, Diversidade e Inclusão (Secadi), Ivana de Siqueira, citada
na publicação,

Para combater o bullying, o MEC tem apoiado projetos de


formação continuada para profissionais da educação (docen-
tes e gestores) por meio do Pacto Universitário de Educação
em Direitos Humanos. O Pacto é uma iniciativa conjunta do
MEC e do Ministério da Justiça e Cidadania para a promo-
ção da educação em direitos humanos no ensino superior
(Brasil, 2018b).

E ela complementa: “O MEC tem atuado na formação de profes-


sores para que eles saibam trabalhar com a cultura da paz, o respeito à
diferença e à diversidade dentro das escolas, e a evitar essas situações
de forma que nem as crianças vítimas ou agressoras possam ser afeta-
das” (Brasil, 2018b).
Entretanto, essas ações são isoladas e voltadas para as instituições
superiores, como a Universidade Federal do Paraná (UFPR) e a Univer-
sidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), citadas na publicação. Ao que
parece, o MEC somente tem a proposta do Pacto, mas é a instituição
quem deve aderir ou não ao programa.
De 14 de junho de 2018, a publicação intitulada Professora usa poe-
sia como arma para combater prática de bullying em escola do Distrito Fe-
deral traz o relato da professora Raquel Alves sobre a iniciativa que lhe

Bullying: do entendimento ao papel do Estado 255


rendeu o Prêmio Professores do Brasil 2017. A professora argumenta
que as instituições escolares não podem se omitir frente às práticas do
bullying e opina que essa é uma das maiores dificuldades das escolas
brasileiras. Ela destaca: “Eu acredito que nós, professores, precisamos
desenvolver algum tipo de projeto que incentive o respeito e a solida-
riedade. Trabalhar com valores vai nos permitir combater o bullying nas
escolas” (Brasil, 2018c). Porém, mesmo que o Portal do MEC relacione
a redução do bullying no Centro Educacional Gesner Teixeira, de Pla-
naltina (DF), no qual a professora trabalha, ao trabalho realizado, ainda
assim não apresenta nenhuma estatística de antes ou depois do projeto.
Já em 8 de agosto de 2018, há a publicação no Portal do MEC inti-
tulada Secretário do RS apresenta ao MEC projetos contra bullying, que faz
referência à visita do Secretário de Educação do Estado do Rio Grande
do Sul, Ronald Krummenauer, ao Ministro Rossieli Soares e outros téc-
nicos do MEC na sede do Ministério da Educação, em Brasília. O projeto
apresentado por Krummenauer usa games e ferramentas de diálogo
entre escola e comunidade. Ele foi idealizado pela Cipave+ e procura
propiciar um ambiente para combater a violência, física ou verbal, entre
estudantes, professores e/ou funcionários (Brasil, 2018d).
Segundo o secretário, ocorreu uma diminuição na maior parte
dos tipos de casos de violência dentro do espaço escolar no primeiro
semestre de 2018, em comparação com o segundo semestre de 2017
(Brasil, 2018d).

Por isso esses resultados começaram a acontecer, e essas


ações preventivas são trabalhadas tanto com organismos do
próprio governo, principalmente com secretaria de seguran-

256 Emerson Roberto de Oliveira | Alexandre José Rossi


ça, polícia civil, bombeiros, quanto com entidades externas
de controle à drogatização ou mesmo de combate à violência
(Brasil, 2018d).

A publicação ainda destaca os números dessa redução:

No caso dos relatos de violência física, foram 165 no segundo


semestre de 2017 e 135 no primeiro semestre de 2018. Em
relação às agressões verbais, houve o registro de 3.121 casos
no segundo semestre do ano passado e 2.321 no primeiro se-
mestre de 2018. Outro índice que chama bastante atenção
em ambiente escolar é o bullying. Foram 4.978 casos, sendo
2.860 no segundo semestre de 2017 e 2.118 no último se-
mestre. Em relação ao racismo, os números indicam que hou-
ve 1.194 casos no segundo semestre do ano passado e 175
neste ano (Brasil, 2018d).

Em 1º de abril de 2019, o programa Cipave+ foi novamente tema de


publicação no Portal do MEC: Rio Grande do Sul reduz em 65 % a violência
nas escolas do estado. A publicação traz vários depoimentos, e cabe ex-
por alguns, como o de Claudia Campos, diretora da Escola Estadual de
Ensino Fundamental Matias de Albuquerque, em Porto Alegre (RS), que
destaca que os impactos foram muito positivos a partir do momento
que a comunidade abraçou o projeto:

Nós estamos dentro de uma comunidade onde a vulnerabili-


dade social é muito grande. Então com esse projeto aprende-
mos e começamos a trazer para as crianças uma nova visão
de mundo. A importância das pessoas, a importância do estu-
do, almejar um futuro melhor, e a partir disso nós começamos

Bullying: do entendimento ao papel do Estado 257


com meditação dentro da escola, o trabalho com atividades
relacionadas a valores, cuidado com o outro, cuidado com o
meio ambiente (Brasil, 2019b).

Claudia Campos realça ainda que temas como bullying, Estatuto da


Criança e do Adolescente (ECA) e a Lei Maria da Penha estão presentes
no cotidiano da instituição escolar por meio de dinâmicas, apresenta-
ções e teatro. Para ela, essas atividades vão além de envolver profes-
sores e estudantes, pois compreendem também os pais (Brasil, 2019b).
Em relação às estatísticas de sua instituição de ensino, ela avalia:

Há dois anos, nós tínhamos 174 alunos e hoje temos 224. Nós
não tivemos nenhum caso de violência na escola. Já tivemos
casos grandes de bullying, discriminação racial, mas quando
nós entramos com o projeto do Cipave, conseguimos zerar
esse índice. Nosso Ideb era 4.9, agora foi para 5.7, com a inte-
gração da família e instituição pública (Brasil, 2019b).

Outro depoimento é do estudante Maurício Pimentel, de 10 anos,


que admite ter modificado o seu comportamento após a sua escola
abraçar a nova abordagem baseada no programa Cipave+. “Eu era muito
brigão e estava toda hora aqui na direção. Agora não brigo mais e não
tenho nenhuma reclamação”, confessa ele (Brasil, 2019b).
A publicação ainda traz, em números, a redução dos casos de vio-
lência nas escolas estaduais do estado do Rio Grande do Sul, exposta
pela coordenadora do projeto, Luciane Manfro. A seguir, a Tabela 1
apresenta a comparação dos números de violências nas escolas esta-
duais do Rio Grande do Sul entre o segundo semestre de 2017 e o se-
gundo semestre de 2018, conforme levantamento do próprio Cipave+:

258 Emerson Roberto de Oliveira | Alexandre José Rossi


Tabela 1 – Números da violência nas escolas estaduais do RS entre o segundo semestre de
2017 e o segundo semestre de 2018.

TIPO DE OCORRÊNCIA 2017 2018 VARIAÇÃO


Bullying 2452 1192 -52 %
Depredações, pichações e vandalismo 869 345 -60 %
Assaltos na entrada ou saída das escolas 166 80 -62 %
Arrombamentos e/ou furtos 242 136 -64 %
Agressão física a professores e/ou fun-
139 113 -4 %
cionários
Racismo 955 47 -95 %
Violência física entre alunos 3257 2168 -34 %
Tráfico, posse ou uso de drogas 284 112 -61 %
Indisciplina 9569 6475 -32 %

Fonte: Adaptada de Brasil (2019b).

De acordo com a Tabela 1, o tipo de ocorrência que mais teve


queda foi o racismo, e o que menos teve alteração foi o de agressão fí-
sica a professores e/ou funcionários, evidenciando que o respeito a es-
ses profissionais pouco mudou, o que deixa claro que é necessário fazer
um trabalho ainda mais forte a esse respeito, visto que a sociedade, de
modo geral, não valoriza a figura de professores e funcionários.
Já a publicação de 7 de abril de 2019 (dia de combate ao bullying e
à violência nas escolas), intitulada MEC tem medidas para enfrentar ações
de violências nas escolas, traz as considerações do secretário da Secre-
taria de Modalidades Especializadas de Educação (Semesp), Bernardo
de Goytacazes, sobre as ações de combate ao bullying. De acordo com
a publicação, o MEC possui “uma grande proposta de enfrentamento
que vem sendo feita para ajudar os sistemas das redes municipal e
estadual para combater esse mal que afeta a todos” (Brasil, 2019a).
O secretário explica:

Bullying: do entendimento ao papel do Estado 259


A nossa intenção é, dentro da educação básica, das moda-
lidades especiais e também dentro do ensino superior, aju-
dar a combater isso. Primeiro a entender que nessa questão
dos direitos humanos ninguém é igual a ninguém. Não va-
mos ter pessoas que vão ter tratos e nem costumes iguais
(Brasil, 2019a).

Conforme o secretário do MEC, dentro da Secretaria de Educação


Básica (SEB), existem programas para ajudar estados e municípios, e há
na escola uma rede de tolerância:

Isso vem sendo ensinado desde a questão da escola, dentro


da Secretaria de Educação Básica (SEB), que vem com pro-
gramas em função de ajudar estados e municípios a criar
nessa escola uma rede de tolerância, de diálogo e de respei-
to. Também no livro didático nós já temos textos que abor-
dam o assunto e ainda nas temáticas dos projetos dos nossos
programas. Precisamos acertar e aumentar essa questão da
tolerância e do respeito dentro de sala de aula. A Semesp
também tem trabalhos em função dessa área com respeito às
relações étnico raciais, porque temos esse bullying com ques-
tões raciais e deficiência física (Brasil, 2019a).

Continuando na mesma publicação, o secretário ainda acrescenta


que existe outra ação para o enfrentamento ao bullying, que está nos
cursos de “formação de professores, formação especializada, escola da
terra ou em cursos em parceria com as universidades, que trabalham
com professores de toda a rede” (Brasil, 2019a). Ele ainda comenta:

260 Emerson Roberto de Oliveira | Alexandre José Rossi


Essas temáticas estão presentes sobre a questão do respeito
e de saber fazer com que o professor seja um incentivador
dessa política de tolerância em sala de aula. O professor de-
sempenha um papel fundamental e os cursos que nós ofe-
recemos, que trazem essas temáticas nos ajudam a discutir
esses assuntos com os professores. Até mesmo várias de
nossas provas já vêm com relatos sobre esse assunto ou que
tangenciam esse tema (Brasil, 2019a).

De modo geral, o portal do MEC não traz propostas para o enfren-


tamento ao bullying em nível nacional. Apresenta, sim, algumas propos-
tas isoladas que estão sendo desenvolvidas a partir do interesse dos
próprios professores e que, segundo eles, resultaram na melhora dos
índices. A única grande proposta à qual o portal do MEC faz referência
é a do estado do Rio Grande do Sul, com o projeto da Cipave+, que, se-
gundo a publicação no mesmo portal, diminuiu sensivelmente a maioria
dos tipos de ocorrência dentro dos estabelecimentos de ensino da Rede
Estadual (Brasil, 2019b).
Dessa forma, podemos perceber em pesquisas no portal do MEC
que o Estado ainda não conseguiu apresentar uma proposta governa-
mental de abrangência nacional como política pública para o enfren-
tamento ao bullying. Existem apenas alguns projetos e programas de
professores e/ou escolas que tentam combater o fenômeno de forma
local; porém, é necessário que o governo se encarregue de buscar uma
medida mais eficaz para a solução do problema ou, pelo menos, para a
diminuição da sua ocorrência dentro das escolas.

Bullying: do entendimento ao papel do Estado 261


Em nossa pesquisa, foi possível identificar uma proposta mais
abrangente, que poderia ser transformada numa política nacional, a
qual foi apresentada ao MEC pela Secretaria de Educação do Estado do
Rio Grande do Sul: o projeto Cipave+, que utiliza, entre outras propos-
tas, jogos digitais como estratégias de combate ao bullying.

O CIPAVE+, AS AVENTURAS DA CIPAVE


E O BANEVILLE ENQUANTO ESTRATÉGIAS
DE COMBATE AO BULLYING

O Cipave+ é um programa criado e gerenciado pela Secretaria de


Educação do Estado do Rio Grande do Sul (Seduc). Seu funcionamento
ocorre por meio de parcerias de distintas secretarias, tanto de Estado
como de Segurança Pública, Meio Ambiente, Esportes, Saúde, além de
ONGs e universidades. Conforme encontrado em seu portal, o Cipave+
tem como objetivos:

• Identificar situações de violência, de acidentes, bem como


suas causas;

• Definir a frequência e a gravidade com que ocorrem;

• Averiguar a circunstância em que ocorrem estas situações;

• Planejar e recomendar formas de prevenção;

• Formar parcerias com entidades públicas e privadas para auxiliar


no trabalho preventivo;

262 Emerson Roberto de Oliveira | Alexandre José Rossi


• Estimular a fiscalização por parte da própria comunidade escolar,
fazendo com que zele pelo ambiente escolar;

• Realizar estudos, coletar dados e mapear os casos ocorridos que


envolvam violência e acidentes, para que sejam apresentados à
comunidade e às autoridades, proporcionando que estas parcerias
auxiliem no trabalho de combate e prevenção dos acidentes e vio-
lência na escola (Rio Grande do Sul, 2020a).

Nesse portal, há dois jogos (Baneville e As aventuras da Cipave) que


os estudantes podem jogar on-line nos computadores dos laboratórios
das escolas. Os dois jogos também podem ser baixados e jogados nos
celulares e em computadores pessoais (Rio Grande do Sul, 2020b).
O Baneville ambienta-se em uma cidade pacata e distante, cujos
munícipes estão muito preocupados com os problemas e os mistérios
que estão ocorrendo. O estudante, após fazer o seu cadastro, pode es-
colher o seu avatar e, inclusive, mudar as características físicas dele,
como sexo, cor da pele e dos olhos, tipo de cabelo, nariz, sobrancelhas
e até as roupas. A partir de então, o usuário é convidado a resolver os
problemas e mistérios, transformando a cidade de Baneville em um lo-
cal mais seguro e acolhedor. O Baneville é um jogo pedagógico por meio
do qual o professor vai lançando desafios para que os estudantes resol-
vam; é voltado para um público mais infantil.
As aventuras da Cipave é outro jogo eletrônico criado para crianças
e adolescentes, instigando-os a combater o bullying. No dia 12 de de-
zembro de 2018, o portal do Governo do Estado do Rio Grande do Sul
publicou: “Novo game Aventuras da Cipave incentiva jovens a combater
violência nas escolas” (Costa, 2018) em texto de Diego da Costa (Seduc),

Bullying: do entendimento ao papel do Estado 263


editado por Gonçalo Valduga (Secom). No jogo, que foi elaborado em
conjunto com a empresa MSTech, o estudante deve ajudar a centopeia,
símbolo do programa, a passar de fase em fase no ambiente virtual para
vencer o bullying.
A publicação também faz referência ao fato de que o game pode
ser jogado no computador ou no aplicativo e estaria disponível no
Google Play e na App Store. Porém, atualmente não está mais disponí-
vel, e o Baneville foi encontrado somente nessas duas plataformas que
disponibilizam aplicativos.
A publicação ainda traz as considerações de Luciane Man-
fro, coordenadora estadual do programa, que confirma que o jogo
Baneville é importante como apoio pedagógico e que As Aventuras da
Cipave é um jogo desenvolvido para os adolescentes que os mantém
conectados com palavras-chave que abrangem a prevenção à vio-
lência e ao bullying. Nas palavras dela, “Dentro dos cenários surgem
diversos desafios. A ideia é trabalhar menos em missões e mais em mo-
vimentos de ação” (Costa, 2018).
Sem dúvida alguma, esse programa de cunho estadual da Secreta-
ria de Educação do Rio Grande do Sul pode servir de modelo para um
programa de abrangência nacional, organizado pelo MEC ou parceiros.
Porém, antes de submetê-lo a isso, entendemos que seja necessário es-
tudá-lo de forma mais aprofundada e que se comprovem os dados apre-
sentados para construir uma opinião mais fundamentada a respeito do
programa, gerando então um embrião para um programa de abrangên-
cia nacional.

264 Emerson Roberto de Oliveira | Alexandre José Rossi


CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante de tudo o que foi exposto, percebemos a dimensão do fenô-


meno bullying e sua real importância, concluindo que ele pode ser muito
prejudicial não somente para quem sofre, mas também para quem o
realiza e para toda a sociedade. Ele precisa ser pesquisado, analisado
e combatido no espaço escolar, pois alguém que sofre bullying repeti-
damente sem pedir ou receber ajuda especializada, ou mesmo que não
conseguiu se tornar resiliente frente às adversidades enfrentadas du-
rante a vida escolar pode, no futuro, ter sua saúde mental prejudicada,
desencadeando inúmeros problemas, desde complicações restritas a
poucos sujeitos do seu círculo de convívio até aquelas que envolvem
toda a sociedade por meio de inúmeros efeitos, inclusive homicídios e/
ou suicídios.
As pesquisas demonstram que, no Brasil, cerca da metade dos es-
tudantes já presenciou atos de bullying, que abrangem agressões físicas
e psicológicas. Diante desse universo de estudantes, foi sancionada, so-
mente em 2015, a Lei antibullying (Lei nº. 13.185), que institui em todo o
país o Programa de Combate à Intimidação Sistemática (Brasil, 2015).
Quanto às pesquisas sobre o bullying da ONU, da OECD e do IBGE,
elas comprovam que o fenômeno ocorre em todo o mundo, com índi-
ces que têm certa variabilidade, mas que são aproximados em todos os
países pesquisados. As pesquisas ainda são bastante recentes e, princi-
palmente a do IBGE (2015), não são específicas sobre o bullying. O tema
entra no contexto de saúde dos estudantes brasileiros, dentro da Pes-
quisa Nacional de Saúde do Escolar (PeNSE 2015), um trabalho que foi
realizado em conjunto com o Ministério da Saúde.

Bullying: do entendimento ao papel do Estado 265


Colaborando para o incentivo à pesquisa sobre o tema, Fante
(2005) e Silva (2010a, 2010b) relatam que o bullying existe em todas as
escolas e sob várias formas. A maior diferença é a postura que todos as-
sumem diante de um caso desse tipo de violência. Incrivelmente, a pes-
quisa mostrou que as escolas públicas vêm adotando uma postura mais
eficaz contra o bullying, pois têm estabelecido um posicionamento mais
padronizado dos casos (acionamento dos Conselhos Tutelares, Delega-
cias da Criança e do Adolescente etc.).
Desse modo, acreditamos que a Gestão Democrática da educação
pode ser uma grande ferramenta a serviço do combate ao bullying no
Brasil, uma vez que cabe aos gestores, principalmente das instituições
de ensino, ter a postura de enfrentamento perante o fenômeno. Para
tanto, é necessário que esse modelo de gestão articule as ações para
prevenir e combater o bullying em todas as suas formas, inspirando to-
dos os atores envolvidos a se engajarem nessa luta, para que o ambiente
escolar seja o mais salutar possível.
Portanto, ainda se faz necessário realizar pesquisas específicas so-
bre o fenômeno bullying e que estas sejam constantes, em especial no
Brasil, com dados atualizados sobre a temática que devem ser utilizados
como subsídios para que se elabore um programa, em nível nacional,
de formação de docentes e gestores da educação e de ferramentas ca-
pazes de atrair os atores sociais do fenômeno a uma reflexão e, conse-
quentemente, a uma mudança de postura. Igualmente, esses subsídios
poderão dialogar com a análise do processo sócio-histórico da institu-
cionalização da escola como espaço da vida e convivência de uma socie-
dade desigual.

266 Emerson Roberto de Oliveira | Alexandre José Rossi


Contudo, a partir da criação de programas e ferramentas para a
prevenção e o combate ao bullying, para todos os atores sociais envol-
vidos no contexto escolar, professores e gestores da educação poderão
efetivamente cumprir a determinação da Lei nº. 13.663, de 14 de maio
de 2018, que estabelece que as instituições escolares necessitam com-
bater o bullying, contribuindo para um ambiente escolar mais saudável e,
por fim, para uma sociedade mais humana.

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Bullying: do entendimento ao papel do Estado 271


272
8
Base Nacional
Comum Curricular:
da teoria à prática

Jéssica Boaventura dos Santos Ferraz1


Mariângela Silveira Bairros2

1 Mestre em Educação pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande


do Sul. Pós-graduada no Curso de Especialização em Gestão da Educação na
Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
E-mail: jeboaventuraster@gmail.com

2 Doutora em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul.


Mestre em Ciência Política pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
Orientadora e professora da Faculdade de Educação na Universidade Fede-
ral do Rio Grande do Sul.
E-mail: mmbairros@gmail.com
INTRODUÇÃO

Oportunizar uma educação com qualidade e equidade deve ser o


objetivo de todo o sistema educacional, de escola pública ou privada. A
formação integral dos estudantes e o acesso a uma escola inclusiva e a
um currículo qualificado são de suma importância para a formação dos
sujeitos. Garantir esses direitos é um dever de todos, bem como lutar
por eles caso não sejam respeitados.
A Base Nacional Comum Curricular (BNCC) foi construída como
promessa equitativa e qualitativa educacional, tendo em vista que um
currículo igual a todos os estudantes brasileiros seria uma maneira de
garantir que aprenderiam os mesmos conteúdos independentemente
da sua localização. Todavia, o que foi refletido ao longo da construção
da BNCC, mas não implementado na sua versão final, é que a aplicação
de um currículo unificado às mais diferentes realidades não é necessa-
riamente justo, inclusivo e capaz de manter a qualidade esperada. As
especificidades de cada localidade precisam ser consideradas. Dentro
de um mesmo município, temos realidades distintas: a realidade rural
não é a mesma da urbana, nem a urbana elitizada é a mesma da urbana
periférica. Como algo comum poderá ser equitativo e qualitativo a reali-
dades incomuns? Ao unificar sem pensar nas especificidades, realmente
trazemos a qualidade para as escolas públicas?
Além dos desafios já listados, a BNCC traz novamente às escolas
uma perspectiva de trabalho em que é necessária a ruptura com o ensino
tradicional, no qual o professor é o único transmissor de informações e
conteúdo. Ela reafirma que o professor precisa identificar maneiras que
levem seus alunos a interagir e participar ativamente do seu processo

274 Jéssica Boaventura dos Santos Ferraz | Mariângela Silveira Bairros


de aprendizagem, sendo atores dele. Nesse sentido, a partir da Gestão
Democrática, a escola também contribui com a autonomia, a socializa-
ção e a integração dos alunos. Pela prática da Gestão Democrática, a
escola compreende que não é apenas um local de construção de conhe-
cimento formal, de ensino e de aprendizagem, mas que é também um
espaço de prática da cidadania, de solidariedade, de reflexão e de for-
mação de sujeitos críticos e conscientes sobre seu papel na sociedade.
Colocar em prática a BNCC nas ações didáticas da escola e nos pla-
nos de estudos das instituições por meio das atividades, dos projetos
que propusessem e da metodologia escolhida por cada instituição era
um dos objetivos que as escolas tinham para o ano de 2020; ou seja, a
implementação desse documento no dia a dia, no fazer escolar, acon-
teceria no decorrer daquele ano. Porém, não se esperava uma crise
pandêmica mundial no ano da implementação da BNCC nas escolas de
Ensino Fundamental, muito menos como aconteceu: escolas fechadas
antes de completar um mês letivo em muitas localidades brasileiras, sem
o mínimo de planejamento, sem o conhecimento de como implementar
a BNCC presencialmente e, ainda, com aulas remotas e com todas as
adaptações e os desafios que a pandemia trouxe para escolas, famílias,
secretarias e demais órgãos responsáveis pela educação em nosso país.
A conclusão deste trabalho também foi um desafio, tendo em vista
que o planejamento dele e o da escola não foram os mesmos estabele-
cidos quando o ano letivo começou. A cada início de ano letivo, há uma
organização com o grupo da escola por meio de um planejamento: co-
meça-se a pensar em possíveis temáticas a serem desenvolvidas nos
projetos do ano.

Base Nacional Comum Curricular: da teoria à prática 275


Outro desafio que a escola precisou enfrentar e superar, tendo
vista que está localizada em uma região rural e de periferia, em uma
realidade com inúmeros problemas sociais, envolveu a tecnologia: ela
precisou suprir necessidades básicas da comunidade, inclusive de ali-
mentação das famílias que sofrem com a precariedade local e com a po-
breza, para só assim reestabelecer o vínculo pedagógico com os alunos
e poder, quiçá, pensar na BNCC.
A instituição, junto do seu grupo de professores, precisou fazer
ajustes, e assim foi possível estabelecer estratégias para implementar,
de certa maneira, a BNCC na escola, refletindo sobre os objetivos do
documento e os desafios e dificuldades que ele trouxe à escola, princi-
palmente pelas burocracias apresentadas por ele e pelas barreiras da
pandemia, que acabaram nos afastando.
Este artigo denuncia as dificuldades enfrentadas por uma escola
pública rural ao tentar implementar a BNCC, explicitando os meios bu-
rocráticos pelos quais ela e seus professores passaram. Também anun-
cia as possibilidades encontradas ao longo dessa trajetória, durante a
qual o diálogo foi essencial para que elas ocorressem.

CONTEXTUALIZANDO: DE ONDE FALAMOS?

Conhecer a realidade pesquisada nos aproxima e auxilia a com-


preender suas características, necessidades, possibilidades e desafios.
A Escola Municipal de Ensino Fundamental Costa do Ipiranga é uma
escola rural localizada no bairro Costa do Ipiranga, região periférica do
município de Gravataí, na região metropolitana de Porto Alegre. Em ou-
tubro de 2021, completou 29 anos.

276 Jéssica Boaventura dos Santos Ferraz | Mariângela Silveira Bairros


A pequena escola atende ao público da Educação Infantil (Pré-es-
cola) até o 5º ano do Ensino Fundamental. Atualmente, tem 123 alunos
distribuídos em seis turmas, sendo três em cada turno: manhã (Pré, 4º e
5º anos) e tarde (1º, 2º e 3º anos).
A organização do quadro de profissionais dessa Rede Municipal é
feita a partir do número de alunos em cada escola. Por essa em razão, a
escola possui apenas diretora, vigia e funcionárias da empresa terceiri-
zada (cozinheira, auxiliar de cozinha e auxiliar de serviços gerais) com 40
horas semanais; os demais profissionais cumprem jornada de 20 horas,
regra estabelecida pelo município. Entre os profissionais com carga ho-
rária de 20 horas, a instituição tem um total de seis professoras em sala
de aula, um auxiliar de biblioteca, uma supervisora, uma orientadora,
uma vice-diretora, uma substituta (apesar de a escola não ter direito a
essa profissional, por não possuir seis turmas por turno, que é uma regra
do município) e um secretário, totalizando 17 profissionais.
Vulnerabilidade social e carência são características marcantes
dessa comunidade escolar. Há algumas famílias que lidam com agricul-
tura familiar, e outras que tiram seu sustento do trabalho com recicla-
gem no Aterro Sanitário Municipal localizado no bairro da escola.
A maioria dos membros valoriza o trabalho desenvolvido pela ins-
tituição, apesar de sua baixa escolaridade, e tem um grande carinho por
ela, já que muitos pais e/ou avós também estudaram ali. Eles costumam
participar das atividades propostas pela escola, como reuniões, festivi-
dades, sábados integradores e encontros com o Conselho Tutelar e o
Posto de Saúde. Respeitam e valorizam os profissionais da escola, por-
que ainda acreditam que a educação pode oportunizar às crianças uma
realidade diferente daquela na qual estão inseridos.

Base Nacional Comum Curricular: da teoria à prática 277


MATERIALIZANDO A BNCC

A necessidade de padronizar um currículo comum a todos já vem


sendo manifestada desde a Constituição Federal de 1988, e a Lei de
Diretrizes e Bases da Educação Nacional de 1996, artigo 9º, inciso IV,
afirma que um dos objetivos da União é:

[...] estabelecer, em colaboração com os Estados, o Distrito


Federal e os Municípios, competências e diretrizes para a
educação infantil, o ensino fundamental e o ensino médio,
que nortearão os currículos e seus conteúdos mínimos, de
modo a assegurar formação básica comum (Brasil, 1996).

Os primeiros diálogos sobre a necessidade de uma BNCC


ocorreram em 2010, na Conferência Nacional de Educação. A criação
de um novo Plano Nacional de Educação, com a “indicação das bases
epistemológicas que garantam a configuração de um currículo que
contemple, ao mesmo tempo, uma base nacional demandada pelo
sistema nacional de educação e as especificidades regionais e locais”
(Brasil, 2013, p. 38), foi uma das novas diretrizes estabelecidas no
documento final da conferência.

278 Jéssica Boaventura dos Santos Ferraz | Mariângela Silveira Bairros


Em 2014, o novo Plano Nacional de Educação (PNE) foi regulamen-
tado com prazo de 10 anos. Nele, a BNCC é abordada, e aparecem em
suas estratégias as metas 3,3 74 e 15.5 Todavia, até ser aprovado, houve
muitas discussões e diálogos que permearam o PNE, principalmente no
que tange aos processos democráticos das instituições de ensino no
respeito à diversidade educacional do país e de um currículo que é cons-
truído de acordo com a realidade de cada localidade (Micarello, 2016).
Ainda em 2014, a nova Conferência Nacional pela Educação teve como
resultado um documento que, junto das reflexões obtidas sobre o PNE,
se torna “[...] referencial para o processo de mobilização para a Base Na-
cional Comum Curricular” (Brasil, [2019]).
O ano de 2015 é um marco, pois a primeira versão da BNCC foi
criada. Nesse mesmo ano, escolas de todo o país reuniram-se para co-
nhecer e discutir o documento e dar suas contribuições.
Em meio a um cenário um tanto instável gerado por uma crise po-
lítica nacional, a segunda versão da BNCC foi disponibilizada em 2016.
Ocorreram em todos os estados e no Distrito Federal seminários para
discuti-la, e um terceiro documento foi apresentado (Neira; Alviano
Júnior; Almeida, 2016). Efetivamente, a BNCC entra em um cenário de

3 3.3) pactuar entre União, Estados, Distrito Federal e Municípios, no âmbito da instância perma-
nente de que trata o § 5º do art. 7º desta Lei, a implantação dos direitos e objetivos de aprendiza-
gem e desenvolvimento que configurarão a base nacional comum curricular do ensino médio.

4 7.1) estabelecer e implantar, mediante pactuação interfederativa, diretrizes pedagógicas para a


educação básica e a base nacional comum dos currículos, com direitos e objetivos de aprendiza-
gem e desenvolvimento dos (as) alunos (as) para cada ano do ensino fundamental e médio, respei-
tada a diversidade regional, estadual e local.

5 15.6) promover a reforma curricular dos cursos de licenciatura e estimular a renovação peda-
gógica, de forma a assegurar o foco no aprendizado do (a) aluno (a), dividindo a carga horária em
formação geral, formação na área do saber e didática específica e incorporando as modernas tec-
nologias de informação e comunicação, em articulação com a base nacional comum dos currículos
da educação básica, de que tratam as estratégias 2.1, 2.2, 3.2 e 3.3 deste PNE (Brasil, 2014).

Base Nacional Comum Curricular: da teoria à prática 279


desconstituição de um debate coletivo em relação aos rumos desses
conteúdos comuns. Não houve um amplo debate com os segmentos
educacionais e não foi possível problematizar o conjunto de questões
aqui apresentadas. Outro debate que não aprofundaremos neste capí-
tulo, mas que consideramos importante registrar, diz respeito à separa-
ção entre a BNCC de Educação Infantil e Ensino Fundamental da BNCC
do Ensino Médio.
Quando o governo opta por uma forma autoritária, promove
uma ruptura na concepção de Educação Básica inaugurada na Lei nº.
9.394/96.

O atual mandatário do país representa, objetivamente, uma


tentativa de se impor uma profunda reforma institucional
e educacional no Brasil. Desprovido de quaisquer legitimi-
dades, políticas e sociais, mas provido de interesses incon-
fessáveis, o governo Temer rompe deliberadamente com o
percurso dos debates, encontros e audiências públicas sobre
as questões educacionais que vem sendo percorrido desde
1988, com a aprovação da Constituição do país (Severino;
Bauer, 2016, p. 11).

Antidemocraticamente, o presidente aprovou a Medida Provisória


nº. 746/2016, modificando o currículo da última etapa da educação bá-
sica, o Ensino Médio, e ultrapassando todos os meios dialógicos, críticos
e reflexivos constituídos até a ocasião na construção da BNCC (Neira;
Alviano Júnior; Almeida, 2016).
Dessa maneira obscura, a versão final da BNCC foi concluída em
2017, sem se terminarem os debates ainda instaurados, sob olhares
críticos, desapontados e desrespeitados, porque “aceitar que haja uma

280 Jéssica Boaventura dos Santos Ferraz | Mariângela Silveira Bairros


política curricular é distinto de traduzi-la em um documento extenso,
enumerando competências, listagem de objetivos e conteúdos” padrão
a todo território brasileiro (Selles, 2018, p. 238).
Entre outros objetivos, a BNCC visa que todos os estudantes do
país tenham acesso a um conjunto mínimo e comum de conteúdos,
ou melhor, a objetos de conhecimento, respeitando a diversidade de
cada região.

A BNCC é um documento de caráter normativo que define o


conjunto orgânico e progressivo de aprendizagens essenciais
que todos os alunos devem desenvolver ao longo das etapas
e modalidades da Educação Básica de modo a que tenham as-
segurados seus direitos de aprendizagem e desenvolvimento
(Brasil, 2018).

Ela estabelece

[...] conhecimentos, competências6 e habilidades que se espe-


ra que todos os estudantes desenvolvam ao longo da esco-
laridade básica. Orientada pelos princípios éticos, políticos e
estéticos traçados pelas Diretrizes Curriculares Nacionais da
Educação Básica, a Base soma-se aos propósitos que direcio-
nam a educação brasileira para a formação humana integral
e para a construção de uma sociedade justa, democrática e
inclusiva (Brasil, 2018).

6 Mobilização de conhecimentos (conceitos e procedimentos), habilidades (práticas, cognitivas


e socioemocionais), atitudes e valores para resolver demandas complexas da vida cotidiana, do
pleno exercício da cidadania e do mundo do trabalho (Brasil, 2018).

Base Nacional Comum Curricular: da teoria à prática 281


Estados e, posteriormente, municípios precisaram estudar, refor-
mular e adaptar seus currículos, suleados7 pela BNCC, estabelecendo
objetos de conhecimento, objetivos de aprendizagem e habilidades su-
plementares, além da sua parte diversificada.
Consoante a isso, em 2019, os profissionais da Escola Costa do
Ipiranga estudaram a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e o Re-
ferencial Curricular Gaúcho (RCG).8 Esse estudo teve como objetivo a
construção do documento sobre a parte diversificada do município de
Gravataí e da escola, o Referencial do Território de Gravataí (RTG):

[...] documento que acompanha a BNCC, na recuperação do


verdadeiro sentido de educar, ou seja, precisa-se de indiví-
duos competentes para viver numa era cujos mecanismos de
busca de informações já não dependem apenas da escola. No
entanto, saber usar tais informações com consciência, ética e
empatia, tornaram-se necessidades urgentes do processo de
aprendizagem e cabe ao currículo ser redesenhado para for-
mar e não mais apenas informar (Santos; Braun, 2019, p. 34).

7 A expressão “sulear” é entendida como direção, como meio de orientação (Campos, 1999). Pau-
lo Freire emprega essa expressão a partir de Márcio D’Olne Campos, segundo Ana Maria Freire,
nas notas explicativas do livro Pedagogia da Esperança. Ela salienta “a conotação ideológica dos
termos nortear, norteá-lo, nortear-se, orientação, orientar-se e outras derivações”, destacando
a ideia de Campos de que o Hemisfério Norte é o “criador”, e o Sul, o “imitador” (Freire, 2003, p.
218): “criador” tendo em vista que, no Hemisfério Norte, o guia estelar é a Ursa Maior/Ursa Polar;
já no Hemisfério Sul, nossa constelação-guia é o Cruzeiro do Sul. Por que então usar “nortear” no
Hemisfério Sul? O autor ainda afirma que, ao importarmos termos do Norte do planeta sem refle-
tirmos, estamos contribuindo com a ideologia de superioridade e dominância do Norte.

8 Após a contribuição de mais de 120 mil pessoas e a realização de diversas mobilizações ao


longo de 2018, o Referencial Curricular Gaúcho foi homologado na manhã de 12 de dezembro
de 2018 pelo Conselho Estadual de Educação e pela União Nacional dos Conselhos Municipais
de Educação. O documento, elaborado em regime de colaboração entre a Secretaria Estadual
da Educação (Seduc), a União Nacional dos Dirigentes Municipais da Educação e o Sindicato
do Ensino Privado no Rio Grande do Sul, será o norteador dos currículos das escolas gaúchas a
partir de 2019. As mudanças, que seguem as diretrizes da nova Base Nacional Comum Curricular,
valerão para a Educação Infantil e o Ensino Fundamental (Rio Grande do Sul, 2018).

282 Jéssica Boaventura dos Santos Ferraz | Mariângela Silveira Bairros


Foi necessário atualizar os planos de estudo de todas as etapas
atendidas pela escola (Educação Infantil e Ensino Fundamental). Eles
foram reconstruídos e fundamentados nos documentos: “BNCC, RCG
– Referencial Curricular Gaúcho e RTG, considerando a trajetória peda-
gógica da escola e as especificidades locais” (Santos; Braun, 2019, p. 36).
Na Educação Infantil, foram incluídos campos temáticos com seus
respectivos objetivos de aprendizagem. Já no Ensino Fundamental anos
iniciais, as disciplinas tornaram-se áreas do conhecimento divididas em
componentes curriculares. Cada componente curricular tem suas habi-
lidades e seus objetos de conhecimento a serem desenvolvidos.
Os planos de estudo foram aprovados pela Secretaria de Educação
(SMED) no início do ano de 2020 como suleadores dos processos de en-
sino e aprendizagem da instituição.

BNCC: um desafio à Gestão Democrática

No Brasil, a democracia foi conquistada por meio de mobilização


da sociedade ao longo de sua história. Para nossa educação e escolas
públicas não foi diferente: para se tornarem um direito de todos, foi ne-
cessário percorrer um longo caminho.
O Manifesto dos Pioneiros da Educação Brasileira, de 1932, es-
crito por estudiosos (entre eles Anísio Teixeira e Lourenço Filho), foi
um documento que vislumbrava a participação de vários segmentos da
sociedade na educação (Marinho, 2018). Nele, “a educação era vista
como instrumento de reconstrução da democracia, permitindo a inte-
gração dos diversos grupos sociais” (Menezes, 2001, p. 1). Porém, esse

Base Nacional Comum Curricular: da teoria à prática 283


Manifesto não possibilitou a democratização do ensino e a educação
para todos.
Em 1988, no artigo 205 da Constituição Federal do Brasil, a educa-
ção se tornou “direito de todos e dever do Estado e da família”; no artigo
206, que trata dos princípios em que o ensino será ministrado, o sexto
estabelece “VI - Gestão Democrática do ensino público, na forma da lei;
[...]” (Brasil, [2016]).
A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), Lei nº.
9.394, de 1996, vem corroborar o direito de acesso à educação para
todos, bem como a Gestão Democrática. No artigo 14, parágrafos I e
II, reafirma que a Gestão Democrática deve envolver a participação de
toda a comunidade escolar: “I - participação dos profissionais da educa-
ção na elaboração do projeto pedagógico da escola; II - participação das
comunidades escolar e local em conselhos escolares ou equivalentes”
(Brasil, 1996).
Do Manifesto dos Pioneiros à LDB, passaram-se 64 anos para que
a conquista de processos democráticos na educação e na sociedade
brasileira realmente começasse a ser praticada. Nesse período, houve
inúmeros movimentos, entre eles as Diretas Já, as quais garantiram o
direito ao voto para eleição presidencial.
Nas escolas, tínhamos modelos de gestão gerencialista, em que o
diretor administrava a instituição, fazia planos e projetos e tomava de-
cisões sem a participação da comunidade. A gestão gerencialista surgiu
nas escolas brasileiras em um período no qual nosso país procurou ado-
tar regras que o adequassem a modelos internacionais de educação. A
comunidade não participava ativamente dos processos decisórios ad-
ministrativos, financeiros e pedagógicos. O diretor era escolhido por

284 Jéssica Boaventura dos Santos Ferraz | Mariângela Silveira Bairros


avaliação técnica e por princípios de liderança, com vasta experiência
em funções administrativas. E a experiência administrativa era mais im-
portante que a pedagógica (Drabach; Souza, 2014).
Todavia, com o advento da LBD de 1996, envolvemos democracia
na gestão escolar, deixamos de lado o individualismo, a presunção e o
autoritarismo e passamos a pensar e adotar um

[...] processo de construção social da escola e realização de


seu trabalho, mediante a organização de seu projeto políti-
co-pedagógico, o compartilhamento do poder realizado pela
tomada de decisões de forma coletiva, a compreensão da
questão dinâmica e conflitiva e contraditória das relações
interpessoais da organização, o entendimento dessa organi-
zação como uma entidade viva e dinâmica, demandando uma
atuação especial de liderança e articulação, a compreensão
de que a mudança de processos educacionais envolve mu-
danças nas relações sociais praticadas na escola e nos siste-
mas de ensino (Lück, 2000, p. 16).

A gestão escolar democrática fica aberta ao diálogo crítico, à par-


ticipação efetiva dos sujeitos na construção dos processos pedagógicos
e administrativos e às sugestões e críticas vindas de todos os membros
que constituem a comunidade. Nesse modelo de gestão, há consciência
de que “a colaboração, como característica da ação dialógica, que não
pode dar-se a não ser entre sujeitos, ainda que tenham níveis distintos
de função, portanto, de responsabilidade, somente pode realizar-se na
comunicação” (Freire, 2010a, p. 93).

Base Nacional Comum Curricular: da teoria à prática 285


Contudo, com a aprovação da BNCC, de maneira um tanto obs-
cura, retrógrada e autoritária, os processos democráticos na educação
foram afetados. Considerando que diálogos e reflexões de estudiosos
sobre a educação, que permearam a construção do documento por
anos, foram ignorados na publicação do texto final, subtende-se que
a democracia não está sendo praticada. Se atitudes como essa vêm de
esferas superiores do campo administrativo educacional brasileiro e go-
vernamental, o que esperar da implementação da BNCC nas escolas?
Um processo que começa antidemocrático, possivelmente, chegará à
escola dessa maneira. Como ela, que aplica o documento, que o coloca
na prática, desburocratiza, democratiza e o humaniza, poderá agir? Ou
será mais uma finalidade da BNCC retroceder e trazer de volta a gestão
gerencialista às escolas?

SULEANDO OS CAMINHOS METODOLÓGICOS

Esta pesquisa, de cunho qualitativo,

[...] considera que há uma relação dinâmica entre o mundo


real e o sujeito, isto é, um vínculo indissociável entre o mundo
objetivo e a subjetividade do sujeito que não pode ser tradu-
zido em números. [...] Não requer o uso de métodos e técni-
cas estatísticas. O ambiente natural é a fonte direta para co-
leta de dados e o pesquisador é o instrumento-chave (Silva;
Menezes, 2005, p. 20).

286 Jéssica Boaventura dos Santos Ferraz | Mariângela Silveira Bairros


Como estudamos um local e um público específicos, a metodologia
utilizada foi o estudo de caso, pois “é uma investigação empírica que in-
vestiga um fenômeno contemporâneo dentro de seu contexto da vida
real” (Yin, 2005, p. 32). Contudo, é importante ratificar que não deve-
mos generalizar os resultados obtidos a partir deste estudo de caso,
apenas considerá-los dentro desta pesquisa.
Participaram deste trabalho seis professoras: uma da Educação
Infantil (Pré II) e cinco dos anos iniciais (1º ao 5º ano) do Ensino Funda-
mental, além da supervisora e da vice-diretora. Todas foram convidadas
a responder um questionário9 criado no Google Forms e encaminhado
ao e-mail pessoal delas, garantindo que seu anonimato seria respeitado.
Aleatoriamente,10 cada participante recebeu o codinome de uma flor
(Rosa, Orquídea, Tulipa, Gérbera, Cravo, Margarida, Jasmim e Hortên-
sia), os quais aparecem na transcrição da análise de dados.
As respostas11 foram analisadas por meio da Análise Textual Dis-
cursiva (ATD), sendo categorizadas conforme a semelhança e interpre-
tadas discursivamente pela pesquisadora. A ATD é

[...] o processo de desconstrução, seguido de reconstrução, de


um conjunto de materiais linguísticos e discursivos, produzin-
do-se a partir disso novos entendimentos sobre os fenômenos
e discursos investigados. Envolve identificar e isolar enuncia-

9 Com questões de múltipla escolha e abertas.

10 Os codinomes não respeitam a ordem apresentada no parágrafo para que o anonimato real-
mente seja respeitado.

11 Foram transcritas conforme cada uma das pesquisadas as escreveu no questionário.

Base Nacional Comum Curricular: da teoria à prática 287


dos e produzir textos, integrando nestes descrição e interpre-
tação, utilizando como base de sua construção o sistema de
categorias construído (Moraes; Galiazzi, 2007, p. 112).

O primeiro procedimento realizado foi a leitura exploratória das


respostas dos questionários coletados, que Moraes e Galiazzi (2007, p.
113) chamam de corpus, o que “representa uma multiplicidade de vozes
se manifestando nos discursos investigados”.
Ao se realizar a leitura dos questionários, foram grifadas as respos-
tas consideradas relevantes ao estudo para que pudessem ser analisa-
das com maior criticidade e atenção no decorrer da análise dos dados.
Esses dados destacados foram separados e relidos num processo cha-
mado “unitarização”.

O pesquisador, no processo de unitarização, precisa estar


constantemente atento à validade das unidades que pro-
duz. Os objetivos da investigação, o problema e as questões
de pesquisa ajudam a construir essa validade. Serão unida-
des válidas para uma pesquisa aquelas que afirmem algo em
relação ao objeto da investigação. Somente necessitam ser
unitarização informações dos textos do “corpus” que se-
jam válidas ou pertinentes ao objeto de pesquisa (Moraes;
Galiazzi, 2007, p. 15).

Os fragmentos foram agrupados de acordo com a similaridade,


formando categorias que receberam nomes de acordo o cerne de
sua composição.

Assim, categorias podem ser concebidas como aspectos ou


dimensões importantes de um fenômeno que o pesquisa-
dor decide destacar quando trabalha esse fenômeno. São

288 Jéssica Boaventura dos Santos Ferraz | Mariângela Silveira Bairros


opções e construções do pesquisador, valorizando determi-
nados aspectos em detrimento de outros (Moraes; Galiazzi,
2007, p. 117).

Essa análise de dados possibilitou uma nova produção a partir de


um olhar crítico e reflexivo sobre os dados coletados. Essa produção é
chamada de metatexto, tendo em vista que comunica e teoriza as inter-
pretações dos dados coletados.
Assim, com embasamento na teoria dialética de Freire (2000),
“da denúncia e do anúncio”, este artigo traz a denúncia dos desafios
que complicaram a implementação da BNCC e anuncia as possibili-
dades encontradas para que ela cumpra o papel pedagógico e social a
que se dispõe.

A burocracia da BNCC: as dificuldades geradas com o uso


dos códigos

Denunciar as dificuldades e os desafios enfrentados pelos pro-


fissionais da escola na implementação da BNCC é um meio de refletir,
também, sobre a burocratização de algumas tarefas do professor. Bu-
rocracia, para que fique claro, significa, segundo o Dicionário Escolar da
Língua Portuguesa,

[...] um procedimento administrativo que consiste na organi-


zação de muitas pessoas que precisam atuar em conjunto [...],
modelo que se distingue pela clara hierarquia de autoridade,
a rígida divisão do trabalho, bem como regras, regulamentos
e procedimentos inflexíveis (Burocracia, 2016, p. 27).

Base Nacional Comum Curricular: da teoria à prática 289


A BNCC não foi construída para ser um meio burocrático, a priori.
Todavia, tem sido implementada por algumas mantenedoras dentro das
escolas de maneira tão criteriosa e com um excesso de exigências que a
tornam ainda mais complicada.
Competência e habilidade12 são dois conceitos que embasam
a BNCC, pois se acredita que, por meio deles, haverá a garantia dos
direitos de aprendizagem e desenvolvimento dos educandos. Cada ob-
jeto de conhecimento tem uma ou mais habilidades a serem desenvol-
vidas, de acordo com a BNCC. Todas as habilidades possuem códigos
específicos antes de sua parte descritiva – por exemplo, EF15LP01: EF
refere-se à etapa da educação básica (Ensino Fundamental), 15 diz res-
peito aos anos nos quais essa habilidade precisa ser desenvolvida (1º
ao 5º ano), LP é o componente curricular (Língua Portuguesa), e 01 é
correspondente à primeira habilidade. Ao lado do código, vai a descrição
da habilidade a ser desenvolvida:

Identificar a função social de textos que circulam em campos


da vida social dos quais participa cotidianamente (a casa, a
rua, a comunidade, a escola) e nas mídias impressa, de massa
e digital, reconhecendo para que foram produzidos, onde cir-
culam, quem os produziu e a quem se destinam (Brasil, 2018).

Na realidade deste estudo, as supervisoras escolares, já no final


de 2019, foram orientadas que tanto no preenchimento do Caderno de
Chamada (registro de atividades diárias) quanto no planejamento de-
veriam aparecer códigos e habilidades; ou seja, o trabalho do professor

12 Definida como a mobilização de conhecimentos (conceitos e procedimentos), habilidades (prá-


ticas, cognitivas e socioemocionais), atitudes e valores para resolver demandas complexas da vida
cotidiana, do pleno exercício da cidadania e do mundo do trabalho.

290 Jéssica Boaventura dos Santos Ferraz | Mariângela Silveira Bairros


estava sendo aumentado e dificultado, além de todas as adaptações pe-
dagógicas que a BNCC já traria ao unificar currículos (Hortênsia).
Para piorar ainda mais a situação do preenchimento de documen-
tações, com a chegada da pandemia, mais planilhas e planos surgiram
para que as professoras preenchessem, e a codificação da BNCC tam-
bém precisaria aparecer neles. Isso gerou muito desconforto às profis-
sionais, porque, além de estarem se adaptando às aulas remotas, ainda
teriam mais trabalho burocrático para realizar. Além disso, o ensino re-
moto13 trouxe outras demandas às professoras, que tiveram que rea-
prender a lecionar e desenvolver um trabalho prazeroso em meio a todo
o caos e o distanciamento instaurados.
Como dar conta de tantas demandas? Havia necessidade real das
burocracias cobradas? De que maneira a escola poderia ajudar?

BNCC: codificar para quê?

Os códigos da BNCC, em vez das habilidades e do planeja-


mento das ações, começaram a ser o foco e o investimento do tempo
das professoras.
Em certa oportunidade, a professora Rosa entrou em contato com
a diretora da escola muito incomodada e um tanto cansada porque tinha
passado o dia inteiro realizando o planejamento para as aulas remotas,
sem a execução das atividades, apenas o plano. Todavia, ainda não ti-
nha conseguido terminá-lo, pois ele abrangia alguns objetos de conhe-

13 O ensino remoto preconiza a transmissão em tempo real das aulas. A ideia é que professor e
alunos de uma turma tenham interações nos mesmos horários em que as aulas da disciplina ocor-
reriam no modelo presencial. Grosso modo, isso significa manter a rotina da sala de aula em um
ambiente virtual acessado por cada um de diferentes localidades.

Base Nacional Comum Curricular: da teoria à prática 291


cimento e várias habilidades e códigos que precisavam ser descritos na
estrutura do documento, e isso havia consumido todo o seu tempo.
Quando um profissional comprometido, criativo e responsável
chega à exaustão e, até mesmo, a um grande nível de estresse em razão
das exigências de seu trabalho, é hora de parar e repensar se aquilo é
realmente necessário.
As professoras e a equipe pedagógica da escola foram convidadas
a responder um questionário que serviu como base para a construção
deste artigo. Nele, ficou evidente a preocupação delas com os códigos
da BNCC. Na questão relacionada às dificuldades enfrentadas com o
planejamento durante a pandemia, aparecem: “Identificar os códigos
e os componentes curriculares e habilidades das atividades desenvol-
vidas” (Orquídea), “Relacionar os códigos ao objeto do conhecimento”
e “Dificuldade de planejar algumas aulas em relação às normas da
BNCC” (Tulipa).
As professoras, ao se dedicarem ao planejamento, momento im-
portantíssimo de preparo das aulas, tendo em vista que “planejar é ação
fundamental da ação didática” (Melo; Urbanetz, 2008, p. 76), de como
será a melhor maneira de desenvolver cada objeto de conhecimento e
habilidade e da escolha da metodologia, das estratégias e dos recursos
para suas aulas, estão preocupadas e se desgastando em procurar e
descrever códigos.
Rosa ainda expõe, em relação às dificuldades encontradas ao reali-
zar seu planejamento: “creio que a dificuldade seja de encaixar um tema
escolhido dentro da BNCC. Não estou me adaptando e nem gostando
da BNCC, pra mim, só encheu linguiça com mil floreios ao invés de ir
direto ao ponto dos conteúdos escolares”.

292 Jéssica Boaventura dos Santos Ferraz | Mariângela Silveira Bairros


Além das dificuldades que as professoras estão encontrando com
as burocracias que lhes foram impostas e que aumentaram suas deman-
das, a BNCC também começa a ser, em certa medida, rejeitada como
um documento suleador. Ao dificultar, trazer mais obstáculos e tarefas,
como pode ser um facilitador do trabalho do professor? Por que buro-
cratizar o uso de um documento que foi pensado, no princípio, como
meio de qualificar a educação brasileira e garantir um acesso mínimo a
objetos de conhecimento a todas as etapas da educação básica? Qual é
a finalidade dos códigos quando o que realmente interessa ao aluno é a
compreensão das habilidades que o professor vai desenvolver por meio
do seu planejamento?
Ficam ainda mais questionamentos, porque precisamos pensar
criticamente sobre o que é mais relevante: o código ou a habilidade?
Desenvolver essa habilidade e descrevê-la no planejamento/caderno
de chamada tal e qual na BNCC? Desenvolver essa habilidade, descre-
vendo-a nos registros pedagógicos de maneira mais simples, porém que
abranja seus objetivos?
Repensar e refletir sobre os porquês da criação da BNCC nunca foi
tão importante para que esse problema enfrentado pelas professoras
possa ser solucionado. Um meio de avaliar a implementação das políti-
cas públicas é

[...] de baixo para cima (bottom-up), ou seja, da base de imple-


mentação para o topo, possibilitando ver o papel dos imple-
mentadores no cotidiano da execução. Casanova et al. (2017)
mostram que os problemas encontrados na linha de frente

Base Nacional Comum Curricular: da teoria à prática 293


são identificados de modo mais rápido do que em uma im-
plementação avaliada de cima para baixo (top-down) (Novato;
Najberg; Lotta, 2020, p. 424).

Portanto, ouvir os professores, implementadores da BNCC na


prática, é essencial. São eles que atuam no dia a dia, encontram as
dificuldades e fazem as adaptações necessárias para que as ações
pedagógicas ocorram.

BNCC e metodologia de projetos: desafio a ser superado

A metodologia de projetos é uma possibilidade de tornar os alu-


nos ativos e participantes do processo educativo, tendo em vista que
essa prática metodológica parte de um problema e que o desdobra-
mento dela envolve a participação de todos os sujeitos (professores,
alunos, profissionais da escola e demais membros da comunidade em
muitas situações).

O trabalho com a Metodologia de Projetos é baseado na


problematização. O aluno deve ser envolvido no problema,
ele tem que investigar, registrar dados, formular hipóteses,
tomar decisões, resolver o problema, tornando-se sujeito de
seu próprio conhecimento. O professor deixa de ser o único
responsável pela aprendizagem do aluno e torna-se um pes-
quisador, o orientador do interesse de seus alunos. Levanta
questões e se torna um parceiro na procura de soluções dos
problemas, gerencia todo o processo de desenvolvimento do

294 Jéssica Boaventura dos Santos Ferraz | Mariângela Silveira Bairros


projeto, coordena os conhecimentos específicos de sua área
de formação com as necessidades dos alunos de construir co-
nhecimentos específicos (Oliveira, 2006, p. 13).

Por consequência, a construção do conhecimento se dá a partir da


partilha de informações, do diálogo, da escuta e do registro. O profes-
sor tem papel fundamental nesse processo, pois vai orientar e instigar
seus alunos a procurar as respostas de que precisam, sendo mediador
do processo de ensino e aprendizagem.
A instituição estudada, em seu Projeto Político-Pedagógico, ado-
tou a metodologia por projetos. Assim, eles deveriam ser engajados
à BNCC em 2020. Todavia, os projetos14 que tiveram seu esboço ini-
ciado nas primeiras formações pedagógicas do ano, em fevereiro, não
foram concretizados.
No questionário aplicado às profissionais da escola, quando indaga-
das se estão realizando projetos no desenvolvimento das aulas remotas
com os seus alunos, não há unanimidade nas respostas: três professoras
dizem que não (Rosa, Orquídea e Tulipa). Margarida diz que “na sua in-
tegralidade não”. A professora Cravo, apesar de dar resposta afirmativa
ao dizer que os projetos estão sendo realizados, expõe que não há uma
unidade enquanto projetos de escola: “sim, mas de uma maneira dife-
rente, pois cada profissional está desenvolvendo seu projeto”. Gérbera
expõe que os projetos estão sendo realizados em parte, porque, em de-
corrência da situação não conhecida, a escola está se adaptando. E Hor-

14 Projetos em torno de 25 a 30 dias: vida, alimentação saudável e higiene; diversidade cultural;


folclore e ruralidades; meio ambiente e seres vivos; leitura, escrita e tecnologias; praticando saú-
de: crescer saudável (Hortênsia).

Base Nacional Comum Curricular: da teoria à prática 295


tênsia relata: “estamos adequando, mas fugiu um pouco do planejado.
Estamos encaminhando atividades escolares por ano”.
Com a pandemia, veio o distanciamento social. Mesmo com for-
mações on-line oferecidas pela mantenedora, contatos via grupo de
WhatsApp e até encontros virtuais entre os profissionais da escola,
observa-se que a colocação de projetos em prática foi impactada. Os
projetos construídos não foram colocados em prática nem alinhados à
BNCC; cada professor procurou adaptar seus objetos de conhecimento
da melhor maneira. A escola teve que procurar a melhor maneira de
alcançar os alunos diante de tantas mudanças, porque há a limitação
tecnológica na comunidade. Os projetos, diante de toda a situação ins-
taurada, acabaram em segundo plano, tendo em vista que o alcance de
todos às atividades propostas pelos educadores era o objetivo principal.
Quando questionadas sobre quais são as dificuldades em colo-
car os projetos escolares em prática junto à BNCC, uma situação cha-
mou atenção: a falta de conhecimento e de compreensão sobre como
a BNCC deveria ser colocada em prática no dia a dia das profissionais
ficou evidente.
A falta de domínio e conhecimento para trabalhar com a BNCC
ainda é um grande desafio, porque a escola e suas profissionais, mesmo
tendo boas intenções e vontade, demonstraram limitações para colo-
cá-la na prática de suas rotinas. Apesar de a instituição, em 2019, ter
propiciado formações pedagógicas a respeito da BNCC com o objetivo
de explicá-la para montar o RTG e os planos de estudo, esse movimento
não foi suficiente para implementá-la. Implementação precisa de com-
preensão. Nem sempre o exercício de explicar levará ao ato de com-

296 Jéssica Boaventura dos Santos Ferraz | Mariângela Silveira Bairros


preender, pois “a compreensão exige envolvimento, sentimento, relação
humana” (Hoffmann, 2013, p. 54).
De acordo com a professora Hortênsia, “adaptar-se às competên-
cias [e ter] mais referências e experiência com a BNCC” foram algu-
mas das dificuldades que a escola encontrou para realizar os projetos
escolares. Ratificando Hortênsia, a professora Jasmim afirma que não
conseguiu fazer “a construção de um currículo contextualizado”. Já a
professora Orquídea diz que teve dificuldades com a “parte teórica da
BNCC, [em] identificar os códigos e os componentes curriculares e ha-
bilidades das atividades desenvolvidas no projeto”.
Percebemos claramente que a falta de experiência e de estudos
sobre como desenvolver esse documento de forma prática e articulá-lo
à realidade escolar foi um empecilho, fato resumido na resposta da pro-
fessora Cravo, que afirma faltar “estudo”. É possível ressaltar que for-
mação continuada seria relevante para atenuar ou até mesmo resolver
as impossibilidades relatadas, tendo em vista que “não há docência sem
discência” (Freire, 2000, p. 25). Oportunizar formações ao professor é
uma maneira de ajudá-lo a superar as dificuldades que encontra no seu
fazer pedagógico; nesse caso, possivelmente os projetos da escola po-
deriam ter sido realizados em certa medida.

BNCC e diálogo: uma via de mão dupla

Dialogar é estabelecer com outros sujeitos a partilha de opiniões,


aprendizados, decisões, questionamentos, interatividade. Com o diá-
logo, é possível problematizar a realidade, identificando quais são as

Base Nacional Comum Curricular: da teoria à prática 297


barreiras que precisam ser ultrapassadas, ouvindo nossos semelhantes
e construindo saberes junto a eles.

O diálogo de saberes é um diálogo entre seres marcados pela


diversidade do ser e do saber, por uma outridade que não é
absorvida na condição humana genérica [...] mas que vive e se
fertiliza no encontro de seres culturalmente diferenciados:
de seres constituídos por saberes que não se reduzem ao co-
nhecimento objetivo, mas que remetem à justiça para o outro
(Freire, 2010b, p. 123).

Aprendemos com a e na diversidade, a partir de práticas democrá-


ticas, da convivência, da vivência. No exato momento em que encontra-
mos uma opinião diversa à nossa e que precisamos entrar em consenso,
estamos aprendendo, nos construindo e reconstruindo como humanos.
Na convivência diária, temos possibilidades riquíssimas de aprendizado
com os nossos semelhantes. O diálogo e a convivência foram as possibi-
lidades emergentes deste estudo, as quais foram compreendidas como
algo possível de se realizar, de ser colocado em ação para modificar algo
que não estava contribuindo com o grupo.
Para Bloch (2005, p. 229), as possibilidades significam “o poder-ser-
-diferente, [que] “divide-se em poder-fazer-diferente e poder-tornar-se-
-diferente”. Não são ideias, mas meios com a finalidade de alterar aquilo
que se quer transformar.

A possibilidade como potencialidade objetiva constitui o po-


der-tornar-se-diferente, não o anulável, mas o direcionável, o
re-determinável em todas as determinações. [...] Logo a cate-
goria objetal “possibilidade” revela-se também predominan-
temente como aquilo que ela não pode ser por si mesma, mas

298 Jéssica Boaventura dos Santos Ferraz | Mariângela Silveira Bairros


sim pela intervenção promotora dos seres humanos naquilo
que ainda pode ser mudado: como possível conceito de salva-
ção (Bloch, 2005, p. 230, grifo do autor).

A possibilidade encontrada é realizada cotidianamente no am-


biente escolar. Possivelmente, algumas profissionais da educação
nem sempre refletem sobre a importância que tem cada diálogo
instaurado na sala dos professores, nos corredores, no pátio, no re-
feitório, na biblioteca e na sala de aula para a construção dos seus sa-
beres pedagógicos. O distanciamento social levou-as a refletir sobre a
importância dele.
Quando foram questionadas sobre as sugestões que dariam para
facilitar a construção de projetos integrados à BNCC, muitas delas trou-
xeram às respostas do questionário de pesquisa que o diálogo, as reu-
niões (muitas vezes criticadas) e a troca de ideias seriam um meio que
facilitaria: “com a pandemia não podemos nos reunir, mas acredito ser
uma das maneiras mais eficazes, trocando ideias” (Cravo).
A troca de ideias, sugerida pela professora, nada mais é do que um
diálogo problematizador, um pensar crítico sobre as necessidades que
estão sendo enfrentadas. Nesse caso, a dificuldade seria integrar os
projetos escolares à BNCC. Então, de que maneira, durante o período
pandêmico, o planejamento pensado no início do ano letivo poderia ser
adaptado e colocado em prática, seguindo os preceitos que a BNCC
nos trazia?
“Intensificar em reuniões pedagógicas o estudo da BNCC e apro-
fundar conhecimentos” foi a sugestão da professora Hortênsia. O ato de
reunir é por si só dialógico, pois, quando reúno, uno duas ou mais pes-

Base Nacional Comum Curricular: da teoria à prática 299


soas que têm a possibilidade de conversar e chegar a um senso comum.
Ao chegarmos a uma unidade de opinião, fica mais fácil agir como grupo,
porque todos participaram e chegaram àquele consenso.
Gérbera indicou como possibilidade a “união entre supervisão, di-
reção e professores para a construção do projeto a ser trabalhado”. No-
vamente, unir no sentido de reunir, de estar, pensar, refletir e construir
juntos. Tudo isso é possível com diálogo. Mas não um diálogo qualquer,
e sim um diálogo “que provoca a interação e a partilha de mundos dife-
rentes, mas que comungam do sonho e da esperança de juntos construí-
rem” (Zitkoski, 2010, p. 118). A ideia de conjunto também é trazida pela
professora Orquídea: “realizar em conjunto com todos os professores
e equipe diretiva o tema e planejar cada habilidade e conteúdo a serem
trabalhados para a série”. Isso ratifica a importância da união, da reu-
nião, da troca de ideias, do estar/planejar e construir juntos.
É possível visualizar o quanto esse grupo de profissionais acredita
que o diálogo pode ser o suleador para a superação das impossibilidades
e a construção dos inéditos-viáveis, compreendendo que o inédito-
viável pode vir a ser “o sonho possível realizando-se” (Freire, 2010a, p.
225) ou sendo alcançado pelas possibilidades construídas, refletidas e
praticadas coletivamente. Pensar e refletir sobre como vamos tornar as
impossibilidades algo possível pode realmente contribuir para que os
problemas possam ser solucionados, e isso fica mais fácil quando reali-
zado na coletividade.
Mediante o diálogo problematizador com a mantenedora, também
foi possível negociar que o preenchimento dos códigos no caderno de
chamada das professoras não fosse realizado. Alterações no sistema

300 Jéssica Boaventura dos Santos Ferraz | Mariângela Silveira Bairros


operacional da escola foram sugeridas para que esse processo, que au-
mentou a demanda de trabalho das profissionais, pudesse ser extinguido.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As políticas públicas deveriam ser construídas com a finalidade


de auxiliar e garantir os interesses e os direitos da população a que se
destinam. Todavia, nem sempre são criadas para o bem de todos. Além
disso, os meios burocráticos de administrá-las e interpretá-las podem
impedir que elas sejam implementadas, ou seja, que saiam realmente do
papel e cumpram seus deveres.
A educação brasileira, ao longo da sua história e a partir de emba-
tes, tem conquistado direitos benéficos à população, inclusos na Consti-
tuição Federal, na LDB e em outros documentos legais. Acesso gratuito
a todos e inclusão na escola regular são algumas das conquistas. Porém,
qualidade e equidade ainda precisam ser discutidas, refletidas e cobra-
das por todos no âmbito da educação pública.
A BNCC, como um instrumento articulador de conteúdos comuns,
deveria constituir-se como um sul à educação brasileira. Sua aprovação,
para grande maioria de estudiosos sobre a educação brasileira, foi pre-
coce. Sua homologação talvez tenha ignorado que ainda era preciso es-
tudá-la, analisá-la e construí-la de maneira mais dialogada, participativa
e includente, pensando nas diferentes brasilidades e concebendo que
talvez um currículo comum a todos nem sempre é melhor e mais capaz
de cumprir sua função social.

Base Nacional Comum Curricular: da teoria à prática 301


Tendo em vista sua historicidade e finalização um tanto turbulenta,
talvez consigamos compreender os entraves burocráticos que acompa-
nharam a BNCC até sua chegada à escola. Possivelmente, ela também
não foi suficientemente dialogada com estados e municípios, pulando
passos importantíssimos e chegando ao seu universo de aplicação sem
ser conduzida e implementada com facilidade. Além disso, a instituição
também precisa lidar com uma pandemia que assola o mundo, modifi-
cando o jeito rotineiro de fazer educação.
Identificamos neste estudo que os encontros diários, em que há
partilha de informações e experiências, são importantes para a cons-
trução de conhecimento e para o planejamento de ações coletivas. Isso
foi afetado pela pandemia e refletiu em alguns processos e planejamen-
tos da escola, inclusive na implementação eficaz da BNCC. Além disso,
também vimos como é importante resolver conflitos por meio de uma
conversa crítica, reflexiva e ponderada, expondo o ponto de vista e o
excesso de trabalho que o professor acumula.
O diálogo problematizador, que de certa maneira tem calor hu-
mano, olho no olho (nem tanto durante a pandemia), talvez nunca tenha
sido tão valorizado como possibilidade, superação e resolução de pro-
blemas. A pandemia, de alguma maneira, nos fez parar e refletir sobre as
pequenas coisas da vida, a importância do outro, sobre como não somos
nada e como dialogar é importante para crescermos como grupo, nos
fortificarmos, nos (re)construirmos e nos (trans)formarmos.

302 Jéssica Boaventura dos Santos Ferraz | Mariângela Silveira Bairros


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118

Base Nacional Comum Curricular: da teoria à prática 305


306 Jéssica Boaventura dos Santos Ferraz | Mariângela Silveira Bairros
9
A Gestão
Democrática na
Educação Infantil:
manutenção de
vínculos em tempos
de pandemia

Graziela Iochims Spolavori1


Maria Luiza Rodrigues Flores2

1 Graduada em Pedagogia e em Psicologia pela Universidade Porto Alegren-


se. Especialista em Psicopedagogia pela Universidade LaSalle, em Educação
Especial na Educação Infantil pela Pontifícia Universidade Católica do Rio
Grande do Sul e em Psicoterapias Cognitivas e Psicologia da Infância e Famí-
lia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Professora de Educação
Infantil e Anos Iniciais. Orientadora Educacional e Coordenadora Pedagógi-
ca na EMEI da Vila Elizabeth, em Porto Alegre. Psicóloga Clínica.
E-mail: graziochims@gmail.com

2 Doutora e Mestre em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande


do Sul. Professora Associada da Faculdade de Educação da Universidade
Federal do Rio Grande do Sul. Integrante do Núcleo de Estudos de Política e
Gestão da Educação. Coordenadora do Grupo de Estudos e Pesquisa sobre
Políticas Públicas de Educação Infantil e do Programa de Extensão Educa-
ção Infantil na Roda. Foi orientadora do Trabalho de Conclusão do Curso
de Especialização em Gestão da Educação, do qual se origina este artigo.
E-mail: malurflores@gmail.com
INTRODUÇÃO

Este artigo deriva do Trabalho de Conclusão do Curso de Especia-


lização em Gestão da Educação da Universidade Federal do Rio Grande
do Sul (UFRGS) campus Litoral Norte. O recorte aqui apresentado traz
reflexões acerca da importância da manutenção de vínculos na Educa-
ção Infantil e aborda estratégias de intervenção possíveis, em tempos
de pandemia, desde uma perspectiva de Gestão Democrática da escola
pública, um dos princípios constitucionais fundamentais para sua oferta
com qualidade. O texto apresenta os primeiros movimentos de uma
Escola Municipal de Educação Infantil (EMEI) de Porto Alegre, no Rio
Grande do Sul, realizados entre os meses de fevereiro e agosto de 2020,
cuja equipe, tal qual um bebê ensaiando seus primeiros passos, tentava
compreender o período inicial da pandemia de covid-19, tateando novas
possibilidades de interação com crianças e famílias, dado o imperativo
de distanciamento social que levou à interrupção das atividades presen-
ciais nas instituições escolares.
Entende-se que a Gestão Democrática, conforme definido no Pro-
jeto Político-Pedagógico (PPP) do Curso de Especialização da UFRGS,
demanda a participação efetiva de todos os segmentos da Comunidade
Escolar no processo e na tomada de decisões, com compromisso político
e social, inserindo e engajando a Comunidade no planejamento escolar.
Em consonância com essa concepção, foram desenvolvidas estratégias
formativas no decorrer do Curso, as quais serviram de fio condutor para
as ações no projeto de intervenção realizado na EMEI.

308 Graziela Iochims Spolavori | Maria Luiza Rodrigues Flores


O Projeto de Intervenção (PI) desenvolvido na Escola Municipal de
Educação Infantil da Vila Elizabeth (EMEI da Vila Elizabeth) foi elabo-
rado na perspectiva de incentivar a gestão escolar democrática, contri-
buindo para uma escola cada vez mais plural e participativa, acolhendo
as demandas de acesso e efetiva participação das famílias e de suas
crianças para a tomada de decisões e o levantamento das necessidades
em um exercício de valores, como responsabilidade, empatia e solidarie-
dade. A partir da compreensão de que a escola é um espaço público por
onde passam diferentes histórias de vida, é possível tornar a educação
mais aberta a novas e desafiadoras possibilidades, inclusive a necessi-
dade de se adaptar a realidades impostas, como é o caso da pandemia
da covid-19. A pandemia que assolou o Brasil e o mundo trouxe a neces-
sidade de adaptações a partir do afastamento social, necessário para a
contenção da contaminação pelo novo coronavírus, e a pesquisa-ação,
originalmente planejada como metodologia, de acordo com o Projeto
do Curso, serviu de inspiração para o desenvolvimento da intervenção,
com as adaptações necessárias.331.
Anteriormente à situação que se estabeleceu a partir da pandemia,
era urgente implementar um processo de reflexão sobre a Gestão De-
mocrática e sobre o envolvimento das famílias, favorecendo a consti-
tuição de uma cultura de participação na escola e na comunidade que
contribuísse para qualificar os processos educativos e a reformulação

3 A autora principal, Graziela Iochims, no período de realização do Projeto de Intervenção, de-


sempenhava a função de Coordenadora Pedagógica na EMEI da Vila Elizabeth. A partir de sua
formação acadêmica em Pedagogia e Psicologia, apontou a necessidade, diante da urgência que se
estabeleceu com o afastamento social, de instituir um processo de manutenção de vínculos, desde
uma perspectiva de compromisso ético e político com a educação pública de qualidade e com sua
formação em Saúde Mental. Importante destacar que, à época, a expressão manutenção de víncu-
los ainda não havia se consolidado como referência entre os objetivos indicados para a ação das
instituições de Educação Infantil.

A Gestão Democrática na Educação Infantil:


manutenção de vínculos em tempos de pandemia 309
dos documentos pedagógicos da instituição. Assim, este trabalho, que
tinha como objetivo inicial ampliar a participação de toda a comunidade
escolar em busca da consolidação da Gestão Democrática em uma es-
cola pública que se deseja ser de qualidade, precisou traçar uma nova
meta: a busca pela manutenção de vínculos com as crianças, as famí-
lias e os grupos de educadores, somando-se à sua justificativa inicial a
preocupação em garantir acolhimento às pessoas.
É fundamental para a implementação de um projeto de Gestão
Democrática atentar para os sentidos evidenciados pelas famílias
na interação com a escola, e não na mera suposição, observando-se
nas atitudes não verbais indícios que forneçam pistas sobre a sua
participação nesse processo, a partir da escuta e da ressignificação dos
espaços de diálogo, que agora incluem os recursos virtuais como ferra-
mentas de comunicação e interação.
Segundo Thiollent (1986, p. 73), a pesquisa-ação

[...] é voltada para diversificadas aplicações em diferentes áreas


de atuação [e] opera principalmente como pesquisa aplicada

em suas áreas prediletas que são educação, comunicação so-


cial, serviço social, organização, tecnologia (em particular no
meio rural) e práticas políticas e sindicais.

Trata-se de um instrumento de trabalho e de investigação com gru-


pos, instituições e coletividades de pequeno ou médio porte; assim, “a
pesquisa-ação não trata de psicologia individual e, também, não é ade-
quada ao enfoque macrossocial” (Thiollent, 1986, p. 8).
A partir do desenvolvimento das exigências metodológicas perti-
nentes, as propostas de pesquisa alternativa (participante e ação) po-
dem desempenhar um papel cada vez mais importante nos estudos e

310 Graziela Iochims Spolavori | Maria Luiza Rodrigues Flores


na aprendizagem dos pesquisadores e de todas as pessoas ou grupos.
Thiollent (1986, p. 14) afirma que “a pesquisa-ação é um tipo de pes-
quisa social com base empírica, [...] na qual os pesquisadores e os parti-
cipantes representativos da situação ou do problema estão envolvidos
de modo cooperativo ou participativo”. O autor também destaca que,
“do ponto de vista sociológico, a proposta de pesquisa-ação dá ênfase à
análise das diferentes formas de ação. Os aspectos estruturais da reali-
dade social não podem ficar desconhecidos, a ação só se manifesta num
conjunto de relações sociais estruturalmente determinadas” (Thiollent,
1986, p. 9).
Ainda segundo Thiollent (1986, p. 15), a pesquisa-ação exige uma
estrutura de relação entre os pesquisadores e as pessoas da situação
investigada que seja do tipo participativo, pois “os pesquisadores de-
sempenham um papel ativo no equacionamento dos problemas encon-
trados, no acompanhamento e na avaliação das ações desencadeadas
em função dos problemas”. Em Educação, a pesquisa-ação

[...] promove a participação dos usuários do sistema escolar


na busca de soluções aos seus problemas. Este processo su-
põe que os pesquisadores adotem uma linguagem apropria-
da. Os objetivos teóricos da pesquisa são constantemente
reafirmados e afinados no contato com as diferentes situa-
ções (Thiollent, 1986, p. 75).

Nesse sentido, “prefere-se, na maioria dos casos, pesquisar e agir


com o conjunto da população implicada na situação-problema, quando
isto é factível, ou com uma amostra intencional, cuja representatividade
é, sobretudo, de ordem qualitativa” (Thiollent, 1986, p. 97).

A Gestão Democrática na Educação Infantil:


manutenção de vínculos em tempos de pandemia 311
A circunstância da pandemia exigiu a reelaboração do PI inicial, e
os temas escolhidos passaram a ser tratados em encontros virtuais com
teor mais emocional; em substituição à presença física, um aceno pela
tela, uma palavra de carinho, a escuta cuidadosa fizeram-se necessários,
mas a ação-intervenção manteve-se inspirada no Projeto de Pesquisa-
-ação e desenvolveu-se considerando as condições dadas.4
A partir das possibilidades de readequação discutidas nos encon-
tros de orientação, o objetivo geral do projeto ficou assim definido: con-
tribuir para a manutenção de vínculos entre integrantes da comunidade
escolar da EMEI da Vila Elizabeth durante o contexto da pandemia. Para
alcançar esse objetivo, elaboramos os objetivos específicos a serem al-
cançados pelo projeto, adaptados à metodologia dos encontros virtuais:

• criar estratégias para que a escola apoie as famílias no manejo com


as crianças e na preservação da saúde mental durante a pandemia;

• efetivar estratégias de resgate e fortalecimento de vínculos profis-


sionais em relação à equipe da escola;

• diagnosticar alguns elementos das condições de vida das famílias,


visando encaminhar e efetivar auxílio do ponto de vista social;

• revisar a literatura sobre Direito à Educação Infantil e Gestão De-


mocrática em Educação.

4 Inicialmente, este PI tinha como objetivo geral aproximar a escola e as famílias a partir de um
processo de atualização do Projeto Político-Pedagógico (PPP), de forma a efetivar uma gestão
mais democrática na EMEI da Vila Elizabeth. Para tanto, pretendia-se problematizar os processos
de participação dos pais a partir das práticas vivenciadas no campo empírico, identificar o que os
professores e a equipe diretiva da Escola relatavam quanto às práticas e desafios da participação
da comunidade escolar e provocar discussões acerca do PPP da escola mobilizando a comunidade
escolar para a reestruturação deste.

312 Graziela Iochims Spolavori | Maria Luiza Rodrigues Flores


A seguir, apresentamos o desenvolvimento do trabalho, dividido
em quatro seções. São trazidas, respectivamente, uma breve contex-
tualização da EMEI da Vila Elizabeth, onde se desenvolveu o trabalho
empírico; uma revisão da literatura, apoiada no PPP do Curso de Espe-
cialização e nos eixos que ele sustenta sobre o direito à educação pública
de qualidade e a Gestão Democrática e sobre a relevância da Coorde-
nação Pedagógica como parte da equipe diretiva; um breve histórico da
Educação Infantil, seus avanços e alguns desafios atuais no contexto da
pandemia e para a manutenção de vínculos; a apresentação dos dados,
com a descrição das ações realizadas e a análise teórica dos resultados.
Ao final, encontram-se as considerações relevantes a respeito do es-
tudo e possíveis contribuições ao trabalho da Escola.

Breve contextualização da EMEI da Vila Elizabeth

A Escola Municipal de Educação Infantil da Vila Elizabeth está lo-


calizada na Rua Paulo Gomes de Oliveira, nº. 120, no Bairro Sarandi, em
Porto Alegre (RS). Foi estabelecida pelo Ato de Criação – Lei nº. 6978,
do Diário Oficial do Estado, em 23 de dezembro de 1991. Em virtude da
alteração de denominação de escolas da Secretaria Municipal de Edu-
cação, em razão do inciso VIII do artigo 2º do Decreto nº. 9391/89, a
escola passou a se chamar Escola Municipal Infantil Vila Elizabeth. Pos-
teriormente, a denominação da escola sofreu nova alteração, pelo De-
creto nº. 13.886, de 23 de setembro de 2002, e ela passou a se chamar
Escola Municipal de Educação Infantil da Vila Elizabeth.

A Gestão Democrática na Educação Infantil:


manutenção de vínculos em tempos de pandemia 313
A EMEI possui 106 vagas, que são totalmente preenchidas por
crianças matriculadas, com idades de um ano a cinco anos e onze meses,
separadas de acordo com a faixa etária e atendidas de segunda a sex-
ta-feira, em turno integral (das 7h às 19h). O quadro docente da escola
possui nove professores concursados, nove monitores e sete funcioná-
rios. A equipe diretiva é composta por uma diretora, uma vice-diretora e
uma coordenadora pedagógica que auxilia a equipe em suas atividades
educacionais, atuando na organização da escola com apoio às reflexões
e práticas pedagógicas do seu corpo docente.
Os alunos com necessidades educacionais especiais (NEEs) são
atendidos em turmas regulares e contam com acompanhamento de
estagiário de inclusão e do Educador Especial, que faz atendimentos
periódicos em várias escolas da Rede Municipal, onde haja necessidade
específica desse serviço. As aulas especializadas de Educação Musical
e Educação Física acontecem em dois períodos por semana para cada
turma, buscando integrar todos os alunos nas atividades artísticas e lú-
dicas desenvolvidas, de acordo com suas habilidades.
Antes do isolamento social, a escola já buscava incentivar o envol-
vimento das famílias por meio de ações pontuais de chamamento e, no
cotidiano, oportunizando espaços para ouvir e dialogar com elas. Além
da abertura diária ao diálogo, havia ações que buscavam promover en-
contros periódicos com as famílias (mensais ou bimestrais) organizados
pela Coordenação Pedagógica por meio do Projeto de Parceria Escola
e Família “Tecendo Laços de Cuidado”.553Desses encontros participa-
vam as famílias dos alunos, os professores, monitores, estagiários e

5 “Tecendo Laços de Cuidado” é um projeto de 2018 elaborado e executado pela Coordenação


Pedagógica da EMEI da Vila Elizabeth que desenvolve um trabalho de aproximação da escola com
as famílias a partir de seu ingresso na EMEI.

314 Graziela Iochims Spolavori | Maria Luiza Rodrigues Flores


funcionários, estabelecendo diálogos com temáticas relevantes para
as famílias e para a escola. Seu principal objetivo era estreitar o con-
tato com as famílias em momentos que fortalecessem sua parceria, por
meio da promoção do acompanhamento permanente das crianças e da
manutenção de ações preventivas à evasão e à violência no ambiente
familiar e escolar, reforçando as relações e a comunicação direta com as
famílias, acolhendo suas demandas e buscando a qualidade nas relações
interpessoais. Tais encontros foram interrompidos, da forma como
eram, durante a pandemia e deram origem ao projeto aqui apresentado,
voltado à manutenção de vínculos entre a comunidade escolar.
O Conselho Escolar da EMEI da Vila Elizabeth foi criado a partir
da Lei nº. 292/1993, Lei Complementar Municipal, de 15 de janeiro de
1993. O Conselho Escolar é, na estrutura organizacional dessa Rede
Municipal, o órgão máximo da escola, com as funções consultiva, delibe-
rativa e fiscalizadora, inserindo-se nestas a responsabilidade de organi-
zar a comunidade escolar a partir de seus segmentos, tendo em vista a
tomada de decisões referentes às políticas administrativas, pedagógicas
e culturais, bem como o planejamento e a aplicação dos recursos finan-
ceiros oriundos das esferas públicas federal, estadual e municipal, cum-
prindo as leis vigentes e as normas exigidas pela fonte de financiamento.
Segundo o Regimento Interno do Conselho Escolar da Escola Municipal
de Educação Infantil da Vila Elizabeth (2016c), entende-se por comuni-
dade escolar o conjunto de alunos, pais ou responsáveis pelos alunos,
membros do magistério e demais servidores públicos em efetivo exer-
cício na escola.

A Gestão Democrática na Educação Infantil:


manutenção de vínculos em tempos de pandemia 315
O Conselho Escolar (CE) tem sido de extrema relevância para a es-
cola. Seu caráter democrático e paritário garante transparência e con-
fiabilidade, atribuindo ao órgão um papel de destaque na comunidade
escolar, a qual o valoriza para as decisões prioritárias. Ele é constituído
pela direção da escola, com membros eméritos, e por representantes
da comunidade escolar. Todos os segmentos existentes na comunidade
escolar deverão estar representados no Conselho Escolar, assegurada a
proporcionalidade de 50 % para pais e alunos e 50 % para membros do
magistério e servidores. Na escola, fica determinada a sua composição
com três pais, dois professores, um funcionário e seus respectivos su-
plentes. O mandato de cada membro terá a duração de dois anos, sendo
permitida apenas uma recondução consecutiva.
O CE tem participação importante na realidade cotidiana da EMEI
da Vila Elizabeth. Seus membros são convocados para reuniões mensais
e eventuais reuniões extraordinárias; as principais pautas são a desti-
nação do orçamento recebido e a execução das verbas e das decisões
quanto a alunos a serem desligados da escola por infrequência (depois
de esgotadas as tentativas de contato e resgate desses alunos pelas ins-
tâncias competentes). Diante dessa realidade, era urgente que se garan-
tisse a Gestão Democrática e, nessa perspectiva, tendo em vista a escola
ser de Educação Infantil, que se incentivasse a participação efetiva do
Conselho Escolar em busca de proporcionar às famílias momentos de
reflexão sobre a realidade atual e sua história de conquistas democráti-
cas, que devem ser exaltadas, preservadas, perpetuadas e aprimoradas.
Nessa proposta, seus membros teriam uma representatividade mais
atuante, inclusive nos tensionamentos junto à Secretaria Municipal de
Educação (SMED), reivindicando recursos humanos, materiais e con-

316 Graziela Iochims Spolavori | Maria Luiza Rodrigues Flores


dições importantes observadas pela comunidade em assembleias que
pudessem deliberar sobre demandas, por exemplo, na reestruturação
dos documentos oficiais da escola, como o Projeto Político-Pedagógico
(PPP) e o Regimento Escolar, que aguardam avaliação da SMED desde
2016 (Escola Municipal de Educação Infantil da Vila Elizabeth, 2016b).
A escola atende às comunidades das Vilas Elizabeth, União, Brasí-
lia, Farroupilha e Asa Branca, região predominantemente residencial,
com comércios de pequeno e médio portes (padarias, farmácias, mini-
mercados, lojas de confecções, tecidos e aviamentos, bares e pontos de
comércio informal). A instituição se localiza em uma quadra onde são
ofertados diversos serviços municipais; entre eles a Unidade Básica
de Saúde da Vila Elizabeth, a Escola Municipal de Ensino Fundamental
Presidente João Belchior Marques Goulart, o Centro de Referência de
Assistência Social (CRAS), o Centro de Referência Especializado em
Assistência Social (CREAS) e o Centro Comunitário da Vila Elizabeth
(Cecove), com quadras de futebol de campo, ginásio de esportes e,
atualmente, o Conselho Tutelar (CT) da Microrregião 2 – Eixo Baltazar,
que efetuou mudança para sua nova sede, em 2020, o que possibilitou
uma coesão maior entre os serviços.
A partir dos dados do Censo 2000, das observações realizadas e
do trabalho direto com a comunidade, no acompanhamento de suas de-
mandas e necessidades junto ao Conselho Tutelar e demais serviços às
famílias residentes nas redondezas da escola e, principalmente, na re-
gião localizada atrás da escola, conclui-se que são famílias de classe mé-
dia baixa, algumas em situação de bastante vulnerabilidade social, com
alto índice de desemprego e baixa escolaridade, dedicando-se ao traba-
lho informal ou subemprego (IBGE, 2002). Nesses locais, a infraestru-

A Gestão Democrática na Educação Infantil:


manutenção de vínculos em tempos de pandemia 317
tura é precária: algumas ruas não possuem pavimentação, água/esgoto
e energia elétrica regularizadas, o transporte público é deficitário, algu-
mas áreas foram ocupadas por meio de invasão e há pontos propensos a
inundações, em razão da existência de diversos arroios na região (Porto
Alegre, 2000).
As famílias se candidatam a uma vaga nessa EMEI preenchendo
uma ficha cadastral, e a SMED realiza uma seleção que atende, basi-
camente, as famílias mais necessitadas, contemplando-as para a efe-
tivação da matrícula. Nesse contexto, destaca-se a procura por vagas
para crianças de famílias estrangeiras, observadas em maior número
no período de 2019 para 2020, quando foram realizadas inscrições de
10 crianças, sendo duas de nacionalidade da República do Haiti, três
da Venezuela (em situação de “solicitação de refúgio por extensão”)
e cinco filhos de pais haitianos. Contudo, apenas duas crianças de fa-
mílias haitianas e um venezuelano conseguiram vaga na escola para o
ano de 2020.6
O Projeto Político-Pedagógico vigente na EMEI da Vila Elizabeth
foi construído no ano de 2016, a partir da bagagem pedagógica, social e
cultural da comunidade escolar, tendo como foco principal a valorização
da infância em sua diversidade (Escola Municipal de Educação Infantil
da Vila Elizabeth, 2016a). Para que o projeto fosse legítimo, foi neces-
sária a constante avaliação de todos os envolvidos no que se refere

6 No primeiro semestre de 2021, passado mais de um ano de pandemia, observa-se que o objetivo
de alcance a essas famílias estrangeiras colocado pela EMEI tem fracassado, permanecendo como
um desafio. À época, já havia uma preocupação com relação à comunicação com as famílias estran-
geiras e com as questões socioculturais e afetivas de seus países de origem, visto que o objetivo
principal da Educação Pública é acolher com qualidade as demandas e dialogar com a comunidade
em sua diversidade. As famílias estrangeiras não aderiram aos encontros virtuais e apresentaram
resistência no retorno ao atendimento presencial adaptado à nova realidade, em 2021, com tur-
nos menores e/ou semanas intercaladas.

318 Graziela Iochims Spolavori | Maria Luiza Rodrigues Flores


às concepções e aos fundamentos referentes à educação da infância;
para isso, foram realizadas reuniões do Conselho Escolar e do grupo de
educadores e direção. As escolhas e os posicionamentos expressos no
PPP vigente objetivaram proporcionar um atendimento de qualidade às
crianças, às famílias e à comunidade na qual a escola está inserida, por
ocasião de sua elaboração. Contudo, a concepção político-pedagógica
desse PPP já não expressa a realidade atual diante das mudanças sociais
e de compreensão do grupo, somadas às práticas escolares e ao perfil
atual da comunidade escolar, e ele acaba se mostrando defasado diante
da acelerada evolução tecnológica observada nesses últimos anos.
Entendemos que algumas famílias que compõem a comunidade es-
colar se viam como participativas, dentro da sua concepção de partici-
pação, não reconhecendo a dimensão e a importância da sua presença
atuante nas decisões dentro da escola, o que demonstra sua baixa fami-
liaridade com a participação cidadã, aquela que soma esforços nas deci-
sões mais importantes da sociedade.
As ações planejadas anteriormente à pandemia contemplavam
discussões sobre a implementação efetiva e transparente da Gestão
Democrática, a partir da compreensão dos significados atribuídos aos
espaços de participação, às possibilidades de intervenção e aos proces-
sos decisórios que lhes são disponibilizados, considerando a importân-
cia de aprimorar a participação ativa das famílias. Contudo, as ações
executadas, replanejadas em um curto período, estiveram a serviço de
manter uma conexão e demonstrar apoio e empatia para com essas fa-
mílias que, em sua maioria, mantinham com a escola uma boa relação,
que vinha sendo consolidada e fortalecida nos últimos anos.

A Gestão Democrática na Educação Infantil:


manutenção de vínculos em tempos de pandemia 319
A partir do afastamento social e da suspensão das atividades esco-
lares no final de março de 2020, determinados pelo Decreto nº. 20.534,
de 31 de março de 2020, publicado no Diário Oficial de Porto Alegre
em 1º de abril de 2020 declarando estado de calamidade pública, con-
solidaram-se as medidas para enfrentamento da emergência de saúde
pública de importância internacional, decorrente do novo coronavírus
(covid-19), no município de Porto Alegre.
Iniciou-se, então, um período de incertezas e adaptações diante
da inusitada realidade. Alunos, famílias e toda a comunidade escolar
passaram por um processo no qual era difícil, mas necessário, encarar
a necessidade do afastamento e compreender como tudo aconteceria
a partir de então. A insegurança tomou conta da sociedade, pois não se
sabia quanto tempo duraria nem como seria esse período, quais eram
os riscos decorrentes e quais seriam as consequências dessa comoção
social gerada pela emergência sanitária. Nesse processo de adaptação
que se sucedeu por algumas semanas, buscamos, em nossas reflexões,
alternativas que nos aproximassem de algo conhecido, porque toda mu-
dança brusca gera insegurança.
Segundo Santos (2020), qualquer quarentena é sempre discrimina-
tória e mais difícil para alguns grupos sociais, principalmente para aque-
les que têm em comum padecerem de uma especial vulnerabilidade,
que precede a quarentena e se agrava com ela – entre eles, as mulheres.
Entre outros grupos, o autor considera como vulneráveis os trabalha-
dores precários, informais, autônomos, que possuem poucas garantias
de manutenção de seus empregos, o que atinge frontalmente também a
realidade social de nossas famílias.

320 Graziela Iochims Spolavori | Maria Luiza Rodrigues Flores


O Projeto desenvolvido junto à EMEI da Vila Elizabeth, conside-
rando o contexto das famílias brevemente apresentado, justifica-se
dialogando com esse alerta trazido por Santos (2020) sobre os grupos
vulneráveis. As questões socioeconômicas decorrentes desse período,
que ficarão como consequência da pandemia, ainda são desconhecidas;
apesar das projeções do autor citado e de outros estudiosos, somente o
tempo trará a exata dimensão.
Na próxima seção, abordaremos a Gestão Democrática, a educa-
ção pública de qualidade e o papel da Coordenação Pedagógica, assun-
tos que dialogam e emprestam sentido para a compreensão da dinâmica
da intervenção desenvolvida na EMEI e suas adaptações para o con-
texto da pandemia.

GESTÃO DEMOCRÁTICA, EDUCAÇÃO PÚBLICA


DE QUALIDADE E O PAPEL DA COORDENAÇÃO
PEDAGÓGICA NO ENTRELAÇAMENTO FAMÍLIA-
ESCOLA

A Gestão Democrática é entendida, em larga escala, por estudiosos


e leigos, como a participação dos vários segmentos da comunidade es-
colar – pais, professores, estudantes e funcionários – na organização da
escola. Contudo, a Gestão Democrática genuína atribui aos seus mem-
bros a verdadeira construção e avaliação dos projetos pedagógicos, a
administração dos recursos da escola e, em suma, todos os processos
decisórios da escola. Destacamos que a efetiva participação exige uma

A Gestão Democrática na Educação Infantil:


manutenção de vínculos em tempos de pandemia 321
comunhão de esforços para que todos assumam a responsabilidade das
decisões, conhecendo-as e colocando-se como protagonistas.
Há mecanismos específicos pelos quais se pode construir e conso-
lidar um projeto de Gestão Democrática na escola. Nesse sentido, Oli-
veira, Moraes e Dourado (2012) citam o Plano Nacional de Educação
da Sociedade Brasileira (PNE 2014), que afirma que a gestão deve estar
inserida no processo de relação da instituição educacional com a socie-
dade de tal forma a possibilitar aos seus agentes a utilização de meca-
nismos de construção e de conquista da qualidade social na educação.
Artigos ou quaisquer outras formas de estudos que abordem a
Gestão Democrática na educação precisam necessariamente discutir
sobre democracia, cidadania e participação social para contextualizar
a realidade educacional, pois a escola está inserida em um mundo so-
cial, político, econômico e cultural; mais atualmente, a esfera sanitária
também ganhou destaque e enorme relevância. A prática diária na es-
cola pública nos leva a acreditar na potência da participação das famí-
lias como usuários de um serviço que conseguem enxergar pelo ângulo
de quem está “recebendo” esse serviço e refletir sobre como poderiam
exercer seu poder, movimentando-se no sentido de exigir seus direitos
para que estes estejam constantemente evoluindo, tornando-se mais
compatíveis às suas necessidades e, com isso, ganhando em qualidade e
avançando em suas perspectivas educacionais e sociais.
Embora a participação dos pais seja garantida legalmente a partir
da necessidade de se constituírem os Conselhos Escolares, os trabalha-
dores da educação pública devem estar sempre atentos para que sua
prática seja efetivada na busca das transformações necessárias à escola,
garantindo que ela seja realmente um local de igualdade e equidade.

322 Graziela Iochims Spolavori | Maria Luiza Rodrigues Flores


Nessa perspectiva de participação família-escola, encontra-se o impor-
tante elo que se estabelece a partir da Coordenação Pedagógica e que,
sobretudo, torna a escola um local aberto, onde as pessoas podem, de
fato, dialogar, permitindo o acesso a ela e o trânsito entre os membros
da comunidade escolar, como uma ponte. Para também discutir essas e
outras questões acerca da instituição familiar e suas implicações com a
vida escolar, visando melhor preparo dos educadores para atuar frente
às situações com que se deparam em seu trabalho, fundamenta-se o tra-
balho de intervenção do coordenador pedagógico na escola.
Segundo Venâncio (2012, p. 6),

O coordenador precisa estar sempre atento ao cenário que


se apresenta a sua volta, valorizando os profissionais da sua
equipe e acompanhando movimentos e os resultados. [...]
Cabe ao coordenador refletir sobre sua própria prática para
superar os obstáculos e aperfeiçoar o processo escolar.

Nesse sentido, podemos entender que, diante de uma situação de


pandemia, é dever do coordenador estar atento e articular ações que
se adequem à realidade e possam trazer reflexões e ações pertinentes.
Na perspectiva de aperfeiçoar o trabalho pedagógico, há uma
preocupação recente e que ainda não possui respostas: quais serão
os novos paradigmas da vivência do pedagógico na Educação Infantil
a partir da pandemia? Tudo está em constante transformação, assim
como o conceito do Coordenador Pedagógico, que buscará ressignifi-
car as práticas incorporando as orientações sanitárias e mediando o dia
a dia escolar. Para Libâneo (2001, p. 183), “o Coordenador Pedagógico

A Gestão Democrática na Educação Infantil:


manutenção de vínculos em tempos de pandemia 323
é aquele que responde pela viabilização, integração e articulação do
trabalho pedagógico”.
Segundo Batista et al. (2018, p. 290),

[...] no Brasil, a formulação de uma concepção sobre o papel


do Coordenador Pedagógico vem sendo repensada como
consequência de uma reestruturação da gestão escolar asso-
ciada ao que é dito no ordenamento legal brasileiro e desdo-
bramentos das políticas e sistemas de ensino.

Analisando o surgimento da função da Coordenação Pedagógica


em 1920, quando se evidencia, nos primórdios, um caráter fiscalizador
apresentado pelos autores supracitados, que fazem uma retomada his-
tórica e trazem a denominação de inspetor pedagógico, nota-se que ele
“[...] tinha como principal função coordenar um currículo único, centrali-
zado e homogeneizador, afastando qualquer possibilidade de uma prá-
tica mais reflexiva e crítica” (Batista et al., 2018, p. 291). Cinquenta anos
mais tarde, “na década de 1970, dentro de uma concepção tecnicista,
criou-se a função de supervisor pedagógico, e, dentre as atribuições a
ele conferidas, estavam definir metodologias e apostilas, bem como fis-
calizar a sua aplicação com o intuito de controlar a escola” (Batista et al.,
2018, p. 292).
Partindo de um modelo mais tradicional e conservador de organi-
zação do trabalho escolar, com o passar dos anos e o aperfeiçoamento
das relações, acompanhando os avanços históricos e legais em direção
à conquista da democracia, o Coordenador Pedagógico recebeu des-
taque na LDBEN/96, “que ressignificou seu papel, colocando-o como
responsável por organizar um trabalho em conjunto com a Comunidade

324 Graziela Iochims Spolavori | Maria Luiza Rodrigues Flores


Escolar, corroborando com a Gestão Democrática” (Batista et al., 2018,
p. 292). Contudo, verifica-se que, em muitas escolas, ainda podemos
encontrar várias marcas dessa fiscalização desempenhada por muitos
anos pelos profissionais que atuavam na Coordenação Pedagógica,
mesmo sabendo que esse papel já não lhe diz respeito e é parte impor-
tante dos avanços. Segundo Freire (1982, p. 69), na democracia, como
base para todos os processos sociais, a Coordenação Pedagógica é con-
cebida como articuladora dos processos entre os agentes da educação:
“o Coordenador Pedagógico é, primeiramente, um educador, e como tal
deve estar atento ao caráter pedagógico das relações de aprendizagem
no interior da escola”.
O Coordenador Pedagógico precisa estar presente: ele circula
e circunda todos os espaços escolares, transitando e mediando as re-
lações; segundo Batista et al. (2018, p. 295), “ele precisa construir, na
escola, o espaço de formação, de interação, de interlocução e de cons-
trução de alternativas capazes de aproximar o cotidiano escolar do ideal
de escola definido no PPP”. No contexto da Educação Infantil, o Coorde-
nador Pedagógico precisa manter-se em processo de formação e trans-
formação constante, acompanhando os movimentos históricos, sociais,
econômicos, políticos e sanitários, bem como toda sua influência nos
modos de ser e estar em sociedade. Os acontecimentos de 2020, que
surpreenderam a todos, trouxeram incertezas e convocaram, sem aviso
prévio, uma situação desafiante de ressignificação dos papéis exercidos
por todos nós. Diante de um futuro incerto, como ser ponte no contexto
da pandemia?

A Gestão Democrática na Educação Infantil:


manutenção de vínculos em tempos de pandemia 325
Construir uma Gestão Democrática de qualidade passa por rees-
truturar o PPP de maneira participativa, como uma forma de efetivação
da Gestão Democrática, segundo as concepções do Curso de Especia-
lização em Gestão da Educação da UFRGS campus Litoral 2019/2020,
descritas em seu PPP, que se insere no desenvolvimento de uma polí-
tica pública de educação continuada de educadores. Seu currículo se
propõe a “propiciar o desenvolvimento da capacidade de refletir, ofe-
recendo perspectivas de análise para que os gestores escolares com-
preendam os contextos históricos, sociais, culturais, organizacionais e
de si próprios como profissionais” (Universidade Federal do Rio Grande
do Sul, 2019, p. 19).
Ao refletirmos sobre a função do Coordenador Pedagógico, que
sofreu diversas mudanças de paradigma e que possui a necessidade
de estar sempre em transformação, buscando atualizar-se, estamos
diante de um exemplo dessa necessidade na vida prática, para além das
teorias; testemunhamos a adaptação rápida e necessária diante de um
contexto de emergência, no qual o projeto planejado anteriormente ga-
nhou contornos que absorveram tais adaptações, utilizando como fio
condutor o PPP do Curso de Especialização (2019) e toda sua gama de
conhecimentos, somando-se à incessante busca por uma escola pública
democrática e de qualidade que atenda as demandas da nova realidade,
diante da pandemia e do contexto socioeconômico da escola.
Santos (2020, p. 27) discorre sobre os problemas impostos pela
pandemia às classes mais vulneráveis econômica e socialmente, afir-
mando que “quando o surto ocorre, a vulnerabilidade aumenta, por-
que estão mais expostos à propagação do vírus e se encontram onde
os cuidados de saúde nunca chegam: favelas e periferias pobres da

326 Graziela Iochims Spolavori | Maria Luiza Rodrigues Flores


cidade, aldeias remotas, campos de refugiados, prisões etc.”. Se antes
tínhamos uma situação social, econômica e política importante, pas-
samos a lidar com um anunciado agravamento das dificuldades; nesse
sentido, precisamos considerar que, no que diz respeito à educação das
crianças na Educação Infantil, ao tratarem da função dos professores
em relação às famílias, os autores Bassedas, Hughet e Solé (1999) tecem
algumas considerações de interesse, como o fato de que o desenvolvi-
mento das crianças é um processo mediado social e culturalmente que
deve considerar a importância dos contextos em que esse crescimento
pessoal acontece.
Nesse entrelaçamento entre família e Escola, tomou-se conheci-
mento das realidades com as quais as famílias estavam lidando enquanto
buscavam alternativas em meio à pandemia, inclusive para o cuidado
das crianças, frente a suas demandas de trabalho. Situação semelhante
foi diagnosticada e retratada no relatório do Movimento Interfóruns de
Educação Infantil do Brasil (2020), que reuniu dados do território na-
cional e constatou que, como decorrência das medidas preventivas de
distanciamento social, a suspensão do atendimento de bebês e de crian-
ças bem pequenas e pequenas em instituições de Educação Infantil
abriu caminho para o avanço de espaços do tipo “cuida-se de crianças”,
propostas de atendimento de qualidade questionável, mas que fizeram
parte da realidade de muitas famílias da EMEI da Vila Elizabeth.
Nesse contexto, a equipe diretiva, a coordenação pedagógica e o
corpo docente da escola passaram a se preocupar com a comunidade
– carente de diversos recursos, de informações, de assistência e de
amparo – e a pensar em formas de prestar apoio e carinho às famílias,
informando e mantendo contato, justificando-se a necessidade do de-

A Gestão Democrática na Educação Infantil:


manutenção de vínculos em tempos de pandemia 327
senvolvimento de ações visando à manutenção de vínculos, as quais se-
rão apresentadas nas próximas seções.

EDUCAÇÃO INFANTIL: BREVE HISTÓRICO,


AVANÇOS LEGAIS E DESAFIOS NO CONTEXTO DA
PANDEMIA

A educação da infância no Brasil vem assumindo maior relevância


ao longo dos anos, com destaque nas décadas que sucederam a Consti-
tuição Federal (CF) de 1988, constituindo-se como objeto de investiga-
ção mais sistemático. A educação da infância, institucionalmente, surgiu
e se expandiu, entre outros fatores, fomentada pelas modificações do
papel da mulher na sociedade, com sua inserção no mercado de trabalho.
A trajetória de tais conquistas legais da Educação Infantil sempre
esteve embasada nos mais diversos aspectos da vida e do desenvolvi-
mento das crianças e teve a colaboração decisiva da compreensão do
desenvolvimento emocional da criança, estando presentes os estudos
de diferentes áreas, em especial da Psicologia da infância, que oferece
suporte para a compreensão dos processos emocionais internos para o
pleno e saudável crescimento da criança e das relações estabelecidas,
especialmente na escola. Sobre as etapas decisivas da infância, Dolto
(2004, p. 6) considera que “são suas experiências assistidas que lhe de-
senvolvem a motricidade. É o amor, a ternura consoladora que lhe per-
mitem superar seus fracassos, não é nunca fazer tudo para ela e em seu
lugar e irritar-se assim que faça algo de errado”.

328 Graziela Iochims Spolavori | Maria Luiza Rodrigues Flores


Assim, as tarefas de cuidar e educar, que antes eram da esfera pri-
vada, passaram para o setor público, pois a CF de 1988 estabeleceu que
o atendimento às crianças de zero a cinco anos é dever do Estado e deve
ser ofertado para as crianças em creches (de zero a três anos e onze
meses) e pré-escolas (de quatro a cinco anos e onze meses), conforme
artigo 208, inciso IV (Brasil, [2016]). O Conselho Nacional de Educação
(CNE), em sua Resolução nº. 5/2009, fixa as Diretrizes Curriculares Na-
cionais para a Educação Infantil estabelecendo o seu funcionamento
no período diurno, em jornada de tempo integral ou parcial, podendo
ocorrer em espaços públicos ou privados caracterizados como esta-
belecimentos educacionais e submetidos a múltiplos mecanismos de
acompanhamento e controle social (Brasil, 2009).
Segundo Silveira e Araújo (2015), tais modificações se inserem no
conjunto de fatores complexos e contraditórios presentes na organiza-
ção social, com suas características econômicas, sociais e políticas. Para
a Educação Infantil ter a importância que possui hoje, foram necessárias
organizações de movimentos sociais e educacionais que buscaram o re-
conhecimento legal da educação de crianças de zero a seis anos. Esse
princípio da educação da infância no Brasil foi marcado pelas trajetórias
do assistencialismo e da escolarização.
A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB nº. 9.394/96),
alterada pela Lei nº. 12.796/2013, estabelece no artigo 4º que o dever
do Estado com a educação escolar pública será efetivado mediante a
garantia de oferta obrigatória e gratuita de Educação Básica a partir dos
quatro anos de idade, restando a creche, ainda, como uma opção da fa-
mília (Brasil, 1996).

A Gestão Democrática na Educação Infantil:


manutenção de vínculos em tempos de pandemia 329
Analisando a cronologia dos fatos, percebemos que há um avanço
em direção a uma situação que pretende valorizar a democracia, a
igualdade e a equidade, oportunizando o acesso à escolarização de qua-
lidade. Embora mais lentamente do que almejamos, há uma sucessiva
publicação de leis e estudos que apresentam essa intenção; contudo,
ela arrasta-se, e as leis não se fazem cumprir. A história da Educação
Infantil no Brasil contribui para compreender o que a Base Nacional
Comum Curricular (BNCC) representa em termos de direito da criança
para essa etapa da educação. Como desdobramento desse processo de
discussões e estudos que resultou na BNCC, são trazidos como premis-
sas o binômio educar e cuidar, as interações e brincadeiras e a garantia
dos direitos de aprendizagem e desenvolvimento das crianças (conviver,
brincar, participar, explorar, expressar e conhecer-se) contemplados na
BNCC (Brasil, 2017).
Sendo a BNCC o documento que tem a intenção de ser fruto de um
trabalho de construção coletiva, agregando e compilando toda a legisla-
ção e os avanços legais construídos ao longo dos anos para a Educação
Infantil no país, ela reforça o educar e o cuidar, os direitos de aprendiza-
gem e as interações e brincadeiras, valorizando a criança como sujeito
histórico, sem perder de vista o Estatuto da Criança e do Adolescente
e a importância da Educação Infantil como etapa da Educação Básica,
com seus objetivos e relevância destacados, garantindo as aprendiza-
gens essenciais e respeitando a história familiar construída e a comuni-
dade em que a criança vive (Brasil, 1990).
Há diversas críticas quanto à elaboração da BNCC, principalmente
no que diz respeito à contradição de sua intenção inicial de ser um
documento de construção coletiva e seu produto final, pois, com o pas-

330 Graziela Iochims Spolavori | Maria Luiza Rodrigues Flores


sar dos anos, desde sua elaboração até sua publicação (2014 a 2017),
as forças políticas e ideológicas exerceram pressões, modificando to-
talmente o texto final publicado em dezembro de 2017, ignorando as
versões anteriores construídas coletivamente por diversos atores da
sociedade e imprimindo uma característica diferente do documento ori-
ginal, com um texto redigido sob a influência de uma iniciativa privada.
Segundo Tarlau e Moeller (2020, p. 3), “[...] a força política por trás da
BNCC não era o movimento Todos pela Educação (TPE), como pensáva-
mos, mas sim a Fundação Lemann [...] através do Movimento pela Base
Nacional Comum ou simplesmente Movimento pela Base”.
A influência exercida pela iniciativa privada ganhou forças e teve
seu alcance expandido com a redução dos recursos destinados à educa-
ção pública. Segundo Tarlau e Moeller (2020, p. 4), essa influência

[...] ocorreu no contexto da redução do investimento do Esta-


do na educação pública [...] e dos ataques ideológicos à edu-
cação pública em diferentes contextos globais. Como resul-
tado, a educação tornou-se um espaço para expandir a lógica
de mercado e aumentar os lucros corporativos.

A seguir, será apresentada uma figura, em forma de linha de tempo,


de algumas políticas de Educação Infantil no Brasil, constando, resu-
midamente, a trajetória dos principais documentos legais da etapa no
período que compreende desde a Constituição Federal de 1988 até o
primeiro semestre de 2020. A Figura 1 representa esses diversos avan-

A Gestão Democrática na Educação Infantil:


manutenção de vínculos em tempos de pandemia 331
ços legais, metodológicos, conceituais e históricos que constituíram a
Educação Infantil no Brasil ao longo dos últimos 32 anos.775.
Na Figura 1, é possível observarmos um número significativo de
leis e documentos normativos que trazem importantes concepções e
argumentos; contudo, tais avanços legais ainda não se traduzem ple-
namente na realidade do atendimento às crianças. O texto permite
a colocação de sonhos e de palavras de uma Educação Infantil que se
pretende como ideal, mas as políticas públicas não conseguem promo-
ver o mesmo alcance para todas as crianças: permanecemos em débito
com as infâncias e, principalmente, com as classes mais necessitadas,
as quais dependem de investimentos em políticas públicas, que é justa-
mente o setor que mais tem sofrido com a tendência da desvalorização
dos serviços públicos e do enaltecimento das organizações privadas. No
contexto da pandemia, sabemos que algumas famílias que já viviam em
situação adversa se tornaram ainda mais vulneráveis.

APRESENTAÇÃO E ANÁLISE DOS DADOS

A EMEI da Vila Elizabeth manteve, desde o início da suspensão


das aulas, o diálogo entre equipe diretiva, educadores e famílias, bus-
cando acompanhar a evolução diária da situação da comunidade, sendo
a maior preocupação dos profissionais que atuam na instituição a ob-
tenção de informações sobre como as famílias estavam passando por

7 A Figura 1 foi inspirada nos seguintes materiais: Revista Nova Escola (2019) e vídeo Desafios e
conquistas da Educação Infantil: reflexões no contexto da pandemia, da painelista Maria Luiza Rodri-
gues Flores (Frare et al., 2020).

332 Graziela Iochims Spolavori | Maria Luiza Rodrigues Flores


Figura 1 – Algumas legislações e normas com desdobramentos para a Educação Infantil
(1988-2020).

Fonte: Elaborada pelos autores.

A Gestão Democrática na Educação Infantil:


manutenção de vínculos em tempos de pandemia 333
esse momento de crise, colocando-se solidariamente em parceria e bus-
cando a manutenção dos vínculos entre as crianças e a escola.
Diante da situação que se impôs nesse momento de pandemia, fo-
ram exigidos novos meios de acesso e comunicação. No início, a forma
de comunicação mais utilizada foi o contato telefônico, por meio do qual,
uma a uma, todas as famílias foram contempladas com ligações que bus-
cavam levar uma palavra de conforto e buscar informações sobre a si-
tuação socioeconômica, de saúde e afetiva das famílias e crianças. Os
contatos nem sempre foram fáceis, visto que os números de telefone
sofrem alterações constantemente em algumas famílias; dessa forma,
buscaram-se informações por intermédio de vizinhos, parentes e ou-
tros contatos.
Ao longo desse período de afastamento, a escola esteve à frente
de ações solidárias que buscavam dar algum alento por meio da distri-
buição, em um primeiro momento, dos alimentos que se encontravam
armazenados para as refeições da escola, as quais não estavam sendo
servidas. Posteriormente, também foram distribuídas cestas básicas
oferecidas por voluntários e, depois, mantimentos destinados às famí-
lias, oriundos da Prefeitura Municipal de Porto Alegre.
A partir desses movimentos, as famílias foram também comparti-
lhando suas vivências, e reuniões virtuais foram agendadas como uma
iniciativa a ser testada, pois não se sabia qual seria a adesão. A priori-
dade foi a manutenção e o fortalecimento dos vínculos, tão necessários
naquele momento de incertezas e desafios.
A convivência em grupos é essencial para qualquer pessoa, desde
o primeiro grupo de sua vida até a ampliação deles com o passar dos
anos. Zimerman (2010) enfatiza o papel dos grupos na vida humana,

334 Graziela Iochims Spolavori | Maria Luiza Rodrigues Flores


destacando desde o primeiro grupo da vida, que é a inserção do bebê
recém-nascido em seu meio familiar, no qual ele não é unicamente pas-
sivo, mas também muito ativo no processo de transformações dessa
família a partir de sua inclusão, passando por adaptações dinâmicas e
tão necessárias na construção da nossa identidade. Nessa perspectiva,
estávamos distanciados de nossos grupos, e as reuniões virtuais cum-
priam, em alguma medida, esse importante contato social.
Partindo da concepção de que os vínculos afetivos fazem parte da
nossa formação, buscou-se demonstrar para as famílias o acolhimento
às suas demandas e, para as crianças, que estávamos aguardando o mo-
mento para retomarmos com segurança e que a escola não havia desa-
parecido de suas vidas. Então, os grupos de reuniões virtuais passaram
a ter periodicidade definida, para oferecer esse momento de contato e
de apoio às famílias, estabelecendo esse elo com as crianças por meio
dos pais.
Essa ideia de acolhimento às demandas contempla o significado
atribuído por Staccioli (2013, p. 25): “o acolhimento é um método de
trabalho complexo, um modo de ser do adulto, uma ideia chave no pro-
cesso educativo”. O autor segue afirmando que “situações acolhedoras
produzem ações significativas e facilmente recuperáveis do ponto de
vista da organização dos conhecimentos e da potencialização de todas
as dimensões do desenvolvimento” (Staccioli, 2013, p. 27).
Acreditando na importância dos vínculos e do acolhimento ne-
cessário ao ambiente escolar, especialmente para a Educação Infan-
til, somando-se à postura de escola que acredita nos pressupostos de
educação de Paulo Freire, não há como esquecer o conceito de amo-
rosidade na educação. O renomado educador afirma que a relação pe-

A Gestão Democrática na Educação Infantil:


manutenção de vínculos em tempos de pandemia 335
dagógica marcada pela amorosidade possibilita a vivência do respeito e
oportuniza práticas que promovem o desenvolvimento da autonomia.
Inspiradas por Freire (1996), entendemos que a capacidade amo-
rosa se constitui como elemento fundamental no processo educativo.
Amorosidade implica vínculo afetivo entre as pessoas e demanda a
capacidade de respeitar e de cuidar do outro. Educar exige uma amo-
rosidade competente: consiste no compromisso e no afeto, envolve
respeito, compreensão, inter-relações e retribuições; do contrário,
fica-se na mera boa intenção. “É preciso [...] reinsistir em que não se
pense que a prática educativa vivida com afetividade e alegria pres-
cinda da formação científica séria e da clareza política dos educadores
ou educadoras” (Freire, 1996, p. 37). Para o autor, o docente não deve
se fechar para o novo, mas deve ir além, ensinar a pensar e, sobretudo,
não estar demasiado certo de suas certezas. Pode-se dizer que, nesse
contexto, a pandemia desacomodou e desafiou profissionais da educa-
ção a exercerem o compromisso com a educação com amorosidade e
abertura ao inusitado.
Diante de circunstâncias “normais”, já acreditávamos e pontuáva-
mos tais pressupostos nas reuniões de formação com os educadores
e buscamos efetivar em nossas práticas os vínculos afetivos, o acolhi-
mento e a amorosidade competente como posturas importantes a se-
rem perseguidas. A partir de uma postura afetiva entre os educadores,
as crianças e toda a comunidade escolar, a aproximação entre a escola e
a família foi incentivada com projetos desenvolvidos pela coordenação
pedagógica com a direção, convidando as famílias a construírem uma
escola mais democrática, na qual os pais estivessem mais adaptados ao
ambiente da instituição.

336 Graziela Iochims Spolavori | Maria Luiza Rodrigues Flores


Naquele momento inicial de pandemia, o desafio tornou-se ainda
maior no que se refere a encurtar distâncias buscando ferramentas de
aproximação que fossem acessíveis para a maioria das famílias. Pereira,
Pereira e Alves (2015) citam uma publicação da Unesco que reconhece
a presença cada vez mais maciça dos telefones celulares. A instituição
afirma que é “[...] facilmente perceptível que cada vez mais as tecno-
logias móveis atualmente estão presentes até mesmo em áreas onde
escolas, livros e computadores são escassos” (Pereira; Pereira; Alves,
2015, p. 31). Pellanda (2009, p. 11) alerta para o paradoxo que ocorre
no Brasil, onde “parte da população vive em condições socioeconô-
micas muito baixas, mas é uma das nações a adotar mais fortemente
novas tecnologias”.
Contudo, a situação precisava ser analisada pensando-se também
no impacto futuro das mídias: com a criação de grupos de WhatsApp,
por exemplo, era preciso avaliar se poderiam ser gerados problemas
para a escola, inclusive com o grupo de professores que se manifesta-
ram contrários a essa ferramenta, trazendo situações de experiências
em contextos escolares nos quais havia acontecido conflitos entre gru-
pos de pais envolvendo professores e instituições. São situações que
fazem parte de uma realidade cada vez mais atual e que não podem
ser ignoradas.
O relatório do Movimento Interfóruns de Educação Infantil do
Brasil (2020) traz, em seus achados quantitativos, dados referentes
ao conjunto do país, apontando que recursos como e-mail, WhatsApp,
Messenger e SMS foram a opção da maioria dos municípios como fer-
ramentas para apoio da relação entre as instituições e as famílias no
período da pandemia e também a opção utilizada por 93,4 % das Secre-

A Gestão Democrática na Educação Infantil:


manutenção de vínculos em tempos de pandemia 337
tarias de Educação respondentes à pesquisa. Da mesma forma, a EMEI
da Vila Elizabeth buscou os e-mails dos familiares a partir de contatos
telefônicos e, principalmente, durante a distribuição das cestas básicas
de doações particulares e de outras oferecidas pelos órgãos públicos e
a distribuição de kits de materiais, visando agendar reuniões virtuais em
salas disponíveis na internet, de acesso fácil e gratuito.
O atendimento pedagógico aos alunos estava interrompido pela
pandemia, pois a Educação Infantil não é compatível com atividades re-
motas para as crianças nessa etapa marcada pelo brincar e educar, na
qual a criança aprende com base nas interações e brincadeiras. O en-
vio de “atividades” para casa ou a obrigatoriedade de atividades on-line
não fazia sentido por razões conceituais de caráter educacional e por
orientação da área médica, que desencoraja o incentivo ao uso de telas
pelas crianças, especialmente nessa faixa etária (Sociedade Brasileira
de Pediatria, 2020).
Houve momentos presenciais nos quais foi realizada a coleta de
dados, por meio da atualização de telefones e e-mails, e foi possível
fazer contato visual com as pessoas, mantendo-se o distanciamento
recomendado para a segurança de todos, com uso de Equipamen-
tos de Proteção Individual (EPIs). Alguns educadores que se volun-
tariaram compareceram à escola, e as famílias que se apresentaram
naquele período, algumas trazendo as crianças, em sua maioria estavam
utilizando máscaras.
A partir dessa dinâmica, que se efetivou ao longo dos meses de
abril a agosto do ano de 2020, destacamos a seguir aquilo que entende-
mos como as contribuições mais relevantes ao trabalho da escola:

338 Graziela Iochims Spolavori | Maria Luiza Rodrigues Flores


• interesse na manutenção das formas de contato virtual estabeleci-
das com as famílias durante a pandemia para além desse período,
como mais um recurso relacional;

• legado do processo desenvolvido, sensibilizando a equipe da es-


cola para “um novo olhar” em relação às condições das famílias da
comunidade: quem são, como vivem e quais são suas dificuldades,
potências, possibilidades de intervenções e ações afirmativas;

• prover elementos de diagnóstico das condições de vida das famílias


para a equipe da escola, visando contribuir para a sensibilização e
a promoção de um melhor entendimento acerca de “quem são as
famílias da EMEI da Vila Elizabeth”, de forma a incidir na futura
reescrita do PPP;

• criação de um blog da EMEI da Vila Elizabeth para estreitar


vínculos entre o grupo de profissionais da escola e servir como su-
porte/repositório de eventos (lives) para a formação continuada.

Torna-se evidente que o principal resultado desta intervenção


com a comunidade escolar foi a humanização das relações com uma
aproximação empática, possibilitando a interação e o engajamento das
pessoas concomitantemente à ampliação do significado que atribuem à
participação democrática, inaugurando novos meios de contato e enga-
jamento e deixando como legado o estreitamento dos vínculos.
Na seção seguinte, são apresentadas as considerações finais do es-
tudo, com uma breve avaliação sobre seu alcance, dado o contexto de
isolamento social que foi mantido até o final de 2020.

A Gestão Democrática na Educação Infantil:


manutenção de vínculos em tempos de pandemia 339
CONSIDERAÇÕES FINAIS

O projeto de intervenção que originou este artigo teve como ob-


jetivo geral contribuir para a manutenção de vínculos entre integrantes
da comunidade escolar da EMEI da Vila Elizabeth durante o contexto
da pandemia, garantindo acolhimento às pessoas. Ao findar o período
previsto para o desenvolvimento do projeto, avaliamos de forma muito
positiva as ações a que nos propusemos inicialmente, reconhecendo
que identificamos elementos das condições de vida das famílias, con-
tribuindo, dentro do possível, para auxiliá-las do ponto de vista social.
Além disso, efetivamos estratégias de resgate e fortalecimento de
vínculos profissionais em relação à equipe da escola, pautando nossas
ações nas teorias estudadas sobre o Direito à Educação Infantil e a Ges-
tão Democrática em Educação.
Assim, esperamos ter contribuído com aqueles que conseguimos
alcançar, demonstrando nosso afeto, solidariedade e vontade de en-
gajamento, sensibilizando para a aproximação e participação de forma
institucional, buscando desenvolver e renovar a escola, flexibilizando a
atuação, mantendo e fidelizando os vínculos com as famílias, as crianças
e demais membros da comunidade escolar e buscando novas referên-
cias teóricas para os novos tempos aos quais precisamos nos adaptar a
partir da pandemia. Esperançando, inspirados em Paulo Freire (1992),
mantemos o propósito de não desistir ou renunciar aos avanços obtidos
até aqui, bem como de, a partir da experiência vivida, construir novos
caminhos, aliados à esperança necessária para a resistência.

340 Graziela Iochims Spolavori | Maria Luiza Rodrigues Flores


Neste momento, passados oito meses do desenvolvimento do PI,
podemos olhar para trás e ver como o conhecimento sobre a própria
pandemia e sobre as ações possíveis para instituições de Educação
Infantil nesse contexto avançou. Inúmeras reflexões ganharam as pá-
ginas de artigos, dossiês, livros, relatórios, entre outros documentos,
contendo estudos publicados a partir do primeiro semestre de 2021.
Quando este trabalho estava sendo desenvolvido na EMEI, no primeiro
semestre de 2020, as conversas eram incipientes, e tateavam-se os ca-
minhos a seguir, sem se fazer ideia de por quanto tempo se estenderia a
pandemia. Anjos e Pereira (2021) compilam e trazem reflexões sobre a
Educação Infantil em tempos de pandemia, apresentando diversos des-
ses estudos que surgiram recentemente, convidando à leitura e à supe-
ração de novos desafios.
Os desafios permanecem ou se recriam: não bastasse o contexto
devastador que a pandemia impôs à sociedade brasileira, com sérios
efeitos sobre a educação, o relatório do Movimento Interfóruns de
Educação Infantil do Brasil (2020) destaca que vivemos um momento
de instabilidade política ocasionado pela inoperância e incapacidade de
gestão do executivo nacional, que coleciona retrocessos no campo das
ideias, da cultura e das práticas pedagógicas.
Avaliando a situação, percebemos que ainda faltam muitos aspec-
tos para podermos alcançar em plenitude uma escola pública de qua-
lidade, dentro de uma proposta de Gestão Democrática que atenda à
participação efetiva, ainda mais em tempos de pandemia. Assim, reco-
nhecemos que há necessidade de maiores estudos para contribuir com
a compreensão do momento atual.

A Gestão Democrática na Educação Infantil:


manutenção de vínculos em tempos de pandemia 341
No ano de 2021, nossos desafios diante da pandemia permanecem
com a morosidade das autoridades nacionais em garantir para todos a
vacinação contra o vírus da covid-19, sendo o Brasil até então um país
referência, com vasto histórico em termos de distribuição de vacinas.
Faltou-nos, porém, a devida importância e o empenho para providen-
ciar soluções, de forma responsável, pelo Governo Federal. Ainda esta-
mos aprendendo com a urgência dos novos tempos, oferecendo, desde
maio de 2021, o atendimento presencial para pequenos grupos em tur-
nos e semanas alternados, seguindo as orientações dos protocolos sa-
nitários, a disponibilidade de profissionais e a organização das turmas.
Além disso, continuamos enviando algumas propostas de atividades, di-
versificando e ampliando as vivências dos pequenos que permanecem
em casa, seguindo determinações da SMED/POA. Nosso blog8 tem de-
sempenhado um papel importante nessa aproximação, gerando cone-
xões com as crianças pequenas à medida que a parceria com as famílias
foi sendo construída e formas alternativas de manter os vínculos foram
se estabelecendo.

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8 O blog pode ser acessado em: https://emeidavilaelizabeth.blogspot.com/?zx=cc37a79af757416d


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Regimento Escolar da EMEI da Vila Elizabeth. Porto Alegre: [s. n.], 2016b.
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A Gestão Democrática na Educação Infantil:


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346 Graziela Iochims Spolavori | Maria Luiza Rodrigues Flores
10
Gestão Democrática
na Educação
Infantil: olhares e
leituras de mundo
das gestoras das
escolas municipais de
Educação Infantil de
Capão da Canoa (RS)

Vanessa Silva Bernardes1


Fabiana de Amorim Marcello2

1 Licenciada em Pedagogia pela Faculdade Cenecista de Osório. Especialis-


ta em Psicopedagogia pelo Centro Universitário Univinte. Especialista em
Educação para Diversidade e em Gestão da Educação pela Universidade Fe-
deral do Rio Grande do Sul. Mestranda do Programa de Pós-graduação em
Educação na Universidade Estadual do Rio Grande do Sul.
E-mail: nebernardes28@gmail.com

2 Doutora e Mestre em Educação pela Universidade Federal do Rio Gran-


de do Sul. Professora do Departamento de Estudos Especializados, na área
de Educação Infantil, e do Programa de Pós-graduação em Educação da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Bolsista de Produtividade em
Pesquisa do CNPq.
E-mail: famarcello@gmail.com
INTRODUÇÃO

Este artigo discute os desafios enfrentados pelas gestoras de Edu-


cação Infantil das escolas municipais de Capão da Canoa, no estado do
Rio Grande do Sul, na implantação do processo de Gestão Democrática.
Assim, mais precisamente, tem como objetivo analisar os processos de
gestão no âmbito da Educação Infantil por meio das narrativas das ges-
toras, sobretudo na medida em que elas dizem respeito aos processos
de implantação de uma gestão nesses moldes.
Dar lugar à Gestão Educacional Democrática no contexto da Edu-
cação Infantil requer, fundamentalmente, reflexões sobre as especifi-
cidades de tal etapa, partindo, já de início, da compreensão de criança
enquanto sujeito de direitos – o que compreende, nesse caso, o direito
à educação e à participação. A essa conquista fundamental, prevista
na Constituição Federal de 1988, soma-se outra, garantida pela Lei de
Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei nº. 9.394/1996), quase 10
anos depois: a LDB estabelece como primeira etapa da educação bá-
sica a Educação Infantil, bem como determina a participação da comu-
nidade dentro dos espaços educativos de ensino público por meio da
Gestão Democrática. Diante de tais avanços, apostamos em um espaço
de experiência democrática na instituição de Educação Infantil e na pro-
moção da escuta e da voz infantis (ainda tão pouco presentes), o que
constitui um grande desafio, mas também nos oferece um leque de no-
vas possibilidades para o caminho da transformação da escola.
O estudo que aqui é compartilhado parte justamente dessas
premissas. Como trabalho investigativo, apresenta, de forma analítica,
elementos da narrativa de oito gestoras do município de Capão da

348 Vanessa Silva Bernardes | Fabiana de Amorim Marcello


Canoa (RS) como forma de conhecer suas experiências na gestão em
instituições municipais de Educação Infantil. Em termos metodológicos,
a pesquisa pauta-se em uma abordagem qualitativa (Neves, 1996), cuja
problemática vem se desenhando a partir do pressuposto da pesquisa
narrativa (Chaves, 2000) devidamente atrelada a um processo mais
amplo, ligado à pesquisa-ação. Para discutir esses aspectos, digamos,
de ordem mais teórica, e pensarmos nas singularidades que compõem a
gestão em Educação Infantil, buscamos não apenas as bases legais que
preconizam práticas e desenham horizontes no campo, mas também
alguns aportes teóricos específicos – entre eles, os recentes trabalhos de
Galdino e Côco (2018), Fernandes e Campos (2015) e Borges e Pandini-
Simiano (2019) – visto que, cada um a seu modo, buscam discutir aspectos
a serem considerados na gestão dessa etapa da educação básica, bem
como, e sobretudo, os desafios que compreendem a construção de uma
gestão que se efetive de forma democrática (sem perder de vista as
concepções que envolvem as políticas destinadas à gestão e também
aquelas destinadas à infância e sua educação, de forma mais ampla).
Para dar conta dessas discussões, apresentamos, numa primeira
seção, uma revisão bibliográfica sobre abordagens em gestão educacio-
nal e escolar, para, junto a isso, articularmos essas abordagens àquelas
práticas singulares da Educação Infantil. Nessa seção, de modo espe-
cial, buscamos focalizar a articulação entre esses conceitos, ressaltando
as especificidades dessa etapa da educação, sem deixar de situar tais
singularidades ao contexto do debate contemporâneo sobre as políti-
cas educacionais. Na segunda seção, por sua vez, descrevemos os per-
cursos metodológicos da pesquisa, entendidos aqui como caminhos
necessários para articulação entre saberes e fazeres da gestão; mais

Gestão Democrática na Educação Infantil: olhares e leituras de mundo das gestoras das escolas
municipais de Educação Infantil de Capão da Canoa (RS) 349
precisamente, trazemos considerações acerca da pesquisa narrativa,
bem como da pesquisa-ação (na qualidade de processo organizador e
condutor do trabalho de campo). Além disso, indicamos como o corpus
de análise foi organizado, no caso, a partir da elaboração de questioná-
rios aplicados com professoras gestoras da Educação Infantil do muni-
cípio. Finalmente, na terceira seção, pontuamos e discutimos, com base
nas narrativas trazidas pelos questionários, os olhares e as leituras de
mundo das gestoras das escolas municipais de Educação Infantil de Ca-
pão da Canoa (RS), tendo como foco suas concepções empírica e teórica
no que tange à efetividade e à importância de suas práticas.

GESTÃO NA EDUCAÇÃO INFANTIL

Primeiramente, cabe destacar que, ao explorar a literatura em


relação à gestão na Educação Infantil, constata-se um aspecto que nos
toca de modo bastante particular, senão preocupante. Como alertam
Fernandes e Campos (2015, p. 152) em relação ao tema da gestão
em Educação Infantil, “[...] as publicações são relativamente escassas,
quando comparadas à literatura sobre o mesmo tema, focalizada nas
etapas posteriores da educação e baseadas na maioria das vezes, em
estudos de caso, reflexões sobre experiências localizadas com pouca
abrangência”; mais do que isso, mesmo aquelas publicações existentes
parecem manter “[...] uma interlocução limitada com as discussões mais
gerais, que vêm acompanhando a introdução das reformas educacionais,
ocorridas nas últimas décadas, que impactam de perto a gestão dos
sistemas e unidades de ensino” (Fernandes; Campos, 2015, p. 152).

350 Vanessa Silva Bernardes | Fabiana de Amorim Marcello


As conclusões das autoras nos colocam não apenas um desa-
fio, mas, sobremaneira, frente a uma urgência especialmente política
quanto às formas de organização que a escola infantil assume e vem as-
sumindo. Assim, entendemos que, para melhor compreender o processo
de gestão na Educação Infantil, faz-se necessário conceituar, ainda que
de modo mais amplo, aspectos relativos à gestão educacional e escolar
para, em seguida, podermos traçar relações sobre as singularidades (e
mesmo estranhamentos) desses aspectos com a gestão na Educação In-
fantil, em suas demandas e compromissos.
Nessa perspectiva, salientamos de início a importância de consi-
derar a década de 1990 como o período no qual são preconizados os
conceitos e as propostas ligados à maior eficiência do Estado e os prin-
cípios de gestão da educação. De modo geral, tais princípios são encon-
trados na Constituição Federal (Brasil, [2016]) e na Lei de Diretrizes e
Bases (Brasil, 1996), as quais, juntas, acabaram por impactar decisiva-
mente no modo como a educação brasileira foi por décadas conduzida.
Os princípios a que nos referimos dizem respeito, de modo bastante
especial, às diferentes compreensões sobre o processo de descentra-
lização da educação e até mesmo sobre as concepções de gestão edu-
cacional e escolar.
Na bibliografia mais tradicional sobre o campo da gestão educacio-
nal e escolar, observa-se muitas vezes que autoras e autores fazem a
contraposição entre os termos administração e gestão, relacionando o
primeiro com a transposição de teorias e modelos de organização e ad-
ministração empresariais e burocráticos para a escola e o segundo, com
algo ligado prioritariamente a processos democráticos (Lück, 2000).

Gestão Democrática na Educação Infantil: olhares e leituras de mundo das gestoras das escolas
municipais de Educação Infantil de Capão da Canoa (RS) 351
Com efeito, chega-se, mais do que isso, a uma espécie de dicotomia
na qual parece haver uma predisposição a conceituar a administração
no interior de uma perspectiva técnica e a gestão sob uma perspectiva
política, constituindo-se aí, de formas diferentes (se não sugestivamente
apartadas), as responsabilidades dos gestores, a tomada de decisões, as
ferramentas de lideranças e o papel do órgão colegiado.
Em contraposição a esses pressupostos, Bordignon e Gracindo
(2000 apud Fernandes; Campos, 2015, p. 147) analisam a gestão edu-
cacional e escolar e afirmam que “a Gestão Democrática da educação
é uma possibilidade para que a organização escolar se fortaleça como
um espaço de participação e coordenação de ações para o alcance dos
objetivos da instituição e não como uma organização burocrática”.
Com base nisso, os autores defendem a superação dessa dicotomia
(ou, mais decisivamente, a mútua dependência entre os termos), e não
o seu fortalecimento.
No caso específico da Educação Infantil e seus padrões de gestão,
foco central deste texto, parte da literatura acaba por trazer inúmeras
interrogações e também tensionamentos entre práticas que se voltam
para fins distintos, já que são oriundas de campos epistemológicos tam-
bém distintos. Mais precisamente, Fernandes e Campos (2015, p. 151)
mostram que, quanto a isso, as condições de funcionamento de creches
e pré-escolas são atravessadas por

[...] desencontros e [...] conflitos crescentes entre as aborda-


gens adotadas por especialistas tradicionais da área da Edu-
cação Infantil e as perspectivas que se originam no campo da
economia, em que a Educação Infantil é vista de forma instru-

352 Vanessa Silva Bernardes | Fabiana de Amorim Marcello


mental, focalizando seu papel positivo em relação à escolari-
dade futura das crianças e até mesmo em relação à sua maior
empregabilidade quando adultos.

Face ao exposto, já pensando na superação descrita, é necessário


compreender que, a partir da Constituição Federal de 1988, ao incor-
porar a Educação Infantil (uma etapa até então nova no sistema edu-
cacional) como primeira etapa da Educação Básica, consequentemente
se incorpora nela o princípio da Gestão Democrática no Ensino Público,
algo garantido por meio do artigo 206, além de se conferir a ela a des-
centralização quanto aos aspectos administrativo, financeiro e peda-
gógico. Esse último princípio é reforçado na Lei de Diretrizes e Bases
da Educação Nacional (LDBEN nº. 9.394/1996), que estabelece em seu
artigo 15 que “os sistemas de ensino assegurarão às unidades escolares
públicas de educação básica que os integram progressivos graus de au-
tonomia pedagógica e administrativa e de gestão financeira, observa-
das as normas gerais de direito financeiro público” (Brasil, 1996).
Nesse processo histórico e social, a Educação Infantil, por meio
dos diversos documentos legais – como a Política Nacional de Educa-
ção Infantil (Brasil, 2006), as Diretrizes Curriculares Nacionais para a
Educação Infantil (DCNEI) (Brasil, 2009) e os Parâmetros Nacionais de
Qualidade para a Educação Infantil (Brasil, 2018) –, vem reafirmando a
necessidade de garantia de processos de Gestão Democrática dentro
das instituições de Educação Infantil, pois se entende que a ação peda-
gógica deve ter como referência a participação da família, das crianças
e da comunidade nos processos decisórios da instituição. Cabe ressal-
tar, quanto a esse último aspecto, o parâmetro 1.2.18 dos Parâmetros

Gestão Democrática na Educação Infantil: olhares e leituras de mundo das gestoras das escolas
municipais de Educação Infantil de Capão da Canoa (RS) 353
Nacionais de Qualidade para a Educação Infantil, no qual se afirma
que o gestor de Educação Infantil deve “adotar práticas de abordagem
participativa e democrática, envolvendo a comunidade escolar, por
meio de suas organizações representativas: os profissionais da Educa-
ção Infantil, os pais, os responsáveis e as crianças”; ainda, de modo com-
plementar ao parâmetro citado, constitui-se o parâmetro 1.2.19, que
refere “considerar a participação da família ou dos responsáveis como
condição necessária da avaliação das políticas educacionais para a Edu-
cação Infantil” (Brasil, 2018, p. 30). Entendemos, obviamente, que, junto
à “letra da lei”, tais determinações preconizam e demarcam espaços po-
líticos de extrema relevância para o fortalecimento e, cada vez mais, o
reconhecimento da centralidade dessa etapa da Educação Básica.
No entanto, ainda que tais diretrizes e prerrogativas venham sendo
asseguradas legalmente, Borges e Pandini-Simiano (2019, p. 545) afir-
mam que:

Se a letra da lei registra avanços importantes, no curso das


instituições educativas há um descompasso diante da tradu-
ção em ações concretas no campo da educação infantil, que
possui características próprias que a diferenciam de outras
modalidades da educação básica. A educação infantil, tendo
como fins a educação e cuidado de modo indissociável e com-
plementar à educação da família, interroga as tradicionais
formas de gestão nas instituições educativas.

Nesse desalinho entre a lei e o cotidiano, encontramos, de modo


muito contundente, um excesso de procedimentos técnico-burocrá-
ticos na rotina da gestão da Educação Infantil, regidos por uma lógica
administrativa e gerencial de maneira que, muitas vezes, e com efeito,

354 Vanessa Silva Bernardes | Fabiana de Amorim Marcello


é a dimensão pedagógica da gestão que acaba sendo ignorada (sobre-
tudo porque é concebida como inteiramente apartada dos processos
tão múltiplos como completos que constituem a escola).
Assim, no contexto dos desafios presentes no campo da gestão
educacional, em especial na Educação Infantil, ainda com reflexo da
gestão do Ensino Fundamental, apresentam-se as complexidades dos
desenhos organizacionais das instituições de Educação Infantil. Galdino
e Côco (2018), a partir dos estudos desenvolvidos em 2015 em torno
do trabalho dos gestores na Educação Infantil, advindos da Nova Ges-
tão Pública (NGP) em um município da região metropolitana da Grande
Vitória (ES), apontam que o compartilhamento coletivo das ações reúne
exigências e implica responsabilização e novas imposições à gestão edu-
cacional – isso, inseparavelmente, nas dimensões pedagógicas, adminis-
trativas e financeiras.
Nessa perspectiva, pode-se dizer que a gestão em instituições edu-
cativas está atrelada a processos que exigem favorecer a participação
coletiva na tomada de decisões, tendo em vista também as finalidades
sociais de tais instituições. Assim, a participação efetiva de todos os
membros da comunidade educativa é a base para a democratização da
creche e da pré-escola e sua gestão (Borges; Pandini-Simiano, 2019),
sobretudo, repetimos, considerando as funções complementares entre
educação e cuidado da Educação Infantil junto à família.

Gestão Democrática na Educação Infantil: olhares e leituras de mundo das gestoras das escolas
municipais de Educação Infantil de Capão da Canoa (RS) 355
ESPAÇO METODOLÓGICO DA PESQUISA:
NO DESENHO DAS NARRATIVAS DAS GESTORAS,
OS DESAFIOS DA GESTÃO DEMOCRÁTICA
EM EDUCAÇÃO INFANTIL

Considerando que a pesquisa aqui proposta se ancora, em seus


fundamentos, em uma abordagem qualitativa, indicamos que o desenho
metodológico busca relacionar o trabalho de uma pesquisa-ação àque-
les empiricamente mais específicos da pesquisa narrativa. Nessa condi-
ção, como proposto por Neves (1996), entendemos acima de tudo que,
com uma pesquisa qualitativa, não buscamos meramente enumerar
ou medir eventos; antes disso, nossa ideia é partir de dados (cuidado-
samente) descritivos de modo a ver neles como se expressam os sen-
tidos dos fenômenos (Neves, 1996). A combinação dessas abordagens
(pesquisa-ação e pesquisa narrativa) foi escolhida por se tratar de um
encaminhamento potente para analisar as alterações de desafios edu-
cacionais particulares que, necessariamente, envolveram subjetividade
e análise contextual e, especialmente, busca partilhada e coletiva de su-
peração de desafios de um universo escolar específico – e que, por isso,
não se via coerente com um esquema único.
Assim, indicamos que o campo empírico que compõe este artigo
se refere a um recorte de uma pesquisa-ação como atividade proposta
pelo Curso de Especialização em Gestão da Educação ofertado pela
Universidade Federal do Rio Grande do Sul entre os anos de 2019 e
2020. Mais precisamente, buscou-se, durante esse percurso, conhecer
com mais profundidade o processo de gestão empregado nas institui-
ções de Ensino Infantil do município de Capão da Canoa (RS), levando

356 Vanessa Silva Bernardes | Fabiana de Amorim Marcello


as gestoras a um processo de imersão contínua e profunda no que se re-
fere a uma temática especial: sua atuação e sua contribuição na gestão
das escolas infantis, bem como nos desafios em implantar ali, junto a um
coletivo mais amplo, uma Gestão Democrática irrevogavelmente ba-
seada na participação de todos os segmentos envolvidos na educação.
Para que se possa compreender de modo mais preciso o processo
metodológico, salientamos que a pesquisa-ação é um tipo de pesquisa
social concebida e realizada em estreita associação com uma ação ou
com a resolução de um problema coletivo no qual os pesquisadores e os
atores representativos da situação da realidade a ser investigada estão
envolvidos de modo cooperativo e participativo (Thiollent, 2011). Con-
siderando o contexto escolar, essa proposta metodológica possibilita a
todos aqueles que estão imersos no processo a possibilidade de verem
a si próprios mas também, evidentemente, aos colegas e às crianças (ou
jovens) numa prática reflexiva que percorre de maneira determinante
questões coletivas cotidianas. Nesse sentido, as ideias são comparti-
lhadas, contribuindo para a construção de pensamentos e práticas que
priorizem a dimensão criativa da profissão e a possibilidade de sua re-
construção dialética (Ibiapina, 2008).
Ademais, essa modalidade de pesquisa contribui, por exemplo, com
a formação de professores de modo a provocar mudanças e atitudes en-
tre seus partícipes, em especial no que se refere aos enfrentamentos
das problemáticas inerentes à sala de aula; ou seja:

[...] pesquisadores e colaboradores [partícipes] partilham ta-


refas comuns de investigação da realidade educativa, tanto
na tomada de decisões quanto na execução da investigação.
Nesse movimento, surge a parceria entre os envolvidos no

Gestão Democrática na Educação Infantil: olhares e leituras de mundo das gestoras das escolas
municipais de Educação Infantil de Capão da Canoa (RS) 357
estudo que têm a reflexividade e a colaboração como ele-
mentos centrais dos processos de investigação e formação
[...]. É uma alternativa gradual de elaboração de outros cami-
nhos a serem percorridos na prática docente [e da formação
inicial de professores]. É esse exercício de colaboração crítico
reflexivo que autoriza superar os conhecimentos consolidados
e elaborar novos conhecimentos coletivos pautados em re-
lações que incluem interesses pessoais e sociais comuns no
sentido de mudança (Ferreira, 2012, p. 360-361, grifo nosso).

Explicitando agora o processo específico desta investigação, po-


demos dizer que, nesse caminho, delineamos como campo de pesquisa
oito instituições de Educação Infantil da Rede Pública Municipal de Ca-
pão da Canoa, litoral gaúcho, durante o ano de 2020. São sujeitos deste
estudo oito gestoras que atuam nas instituições referidas.
Na primeira etapa da pesquisa, traçamos o perfil das gestoras, as-
sumindo esse processo como indicador inicial de contextualização dos
atores e também do espaço em que este estudo se insere. Assim, apre-
sentamos os sujeitos da pesquisa:

• gestora A: 34 anos, formação em Ciências Biológicas e Pedagogia,


com especialização em Educação Especial; atua há 12 anos na
Educação Infantil, sendo um ano na vice-direção e três anos na
gestão; tem carga horária de 20 horas no município e 20 horas em
regime suplementar;

• gestora B: 42 anos, formação em Pedagogia, com especialização em


Orientação, Gestão Escolar e Supervisão; atua há 17 anos na Edu-
cação Infantil, sendo destes, três anos na gestão; tem carga horária
de 20 horas no município e 20 horas em regime suplementar;

358 Vanessa Silva Bernardes | Fabiana de Amorim Marcello


• gestora C: 45 anos, formação em História, com especialização em
Educação Infantil; atua há 19 anos na Educação Infantil, sendo três
anos na vice-direção e cinco anos na gestão; tem carga horária de
40 horas no município;

• gestora D: 49 anos, formação e especialização em Supervisão Esco-


lar; atua há 21 anos na Educação Infantil, sendo destes, dois anos
na gestão; tem carga horária de 20 horas no município e 20 horas
em regime suplementar;

• gestora E: 50 anos, formação em Pedagogia, com especialização em


Educação Especial; atua há 15 anos na Educação Infantil, sendo
destes, 10 anos na gestão; tem carga horária de 20 horas no muni-
cípio e 20 horas em regime de permuta;

• gestora F: 39 anos, formação em Pedagogia, com especialização em


Psicopedagogia Clínica e Institucional e em Educação para Diversi-
dade; atua há 12 anos na Educação Infantil, sendo destes, um ano
na vice-direção e dois anos na gestão; tem carga horária de 40 ho-
ras no município;

• gestora G: 39 anos, formação em Pedagogia; atua há 14 anos na


Educação Infantil; destes, atuou dois anos na vice-direção e dois
anos na gestão; tem carga horária de 20 horas no município e 20
horas em regime de permuta;

• gestora H: 42 anos, formação em Pedagogia, com especialização em


Administração e Supervisão Escolar; atua há 12 anos na Educação
Infantil, sendo destes, cinco anos na gestão; tem carga horária de
40 horas no município.

Gestão Democrática na Educação Infantil: olhares e leituras de mundo das gestoras das escolas
municipais de Educação Infantil de Capão da Canoa (RS) 359
Na segunda etapa, com vistas a abordar o trabalho das gestoras que
atuam no contexto da Educação Infantil, foi aplicado um questionário
contendo nove questões que versavam sobre as concepções das
gestoras a respeito do próprio conceito de gestão na Educação Infantil
(e seus pressupostos) a partir de suas práticas. Empiricamente, então, a
análise concentrou-se nas narrativas dos próprios sujeitos que assumem
essa função. Assim, o processo de fazer sentido, de dar sentido/
significado por meio da narrativa, pode ser visto como emancipatório,
pois oferece uma forma de dar expressão à experiência pessoal
(Chaves, 2000). Assumimos aqui que essa etapa foi inteiramente
pensada coletivamente, como demanda das escolas e das comunidades
no que diz respeito aos desafios a serem enfrentados por um trabalho
efetivo de pesquisa-ação. Em suma, nosso alvo de análise se deu sobre
o que emergia na narrativa das gestoras como, muitas vezes, alvos de
tensionamentos, confrontos e mesmo de indeterminações pouco claras
por parte de toda a comunidade entre os limites, as demandas e as
exigências dos papéis exercidos pelos atores e pelos espaços.
Nesse movimento, dado o escopo da problematização proposto
para este artigo, qual seja, a especificidade das dimensões próprias
da gestão na Educação Infantil, foram organizadas em conjunto com
o grupo de gestoras e docentes quatro questões (que acreditávamos
serem sucintas, mas eficientemente precisas para efetuarmos, possi-
velmente, encaminhamentos sólidos em direção a mudanças de nos-
sas práticas e daquilo que se impunha como obstáculo ou, pelo menos,
adversidade). São elas: 1) Como gestor, como você define a Gestão Demo-
crática na escola pública? 2) Qual é o papel do gestor escolar na Educação
Infantil? 3) Quais são as características que um gestor democrático precisa

360 Vanessa Silva Bernardes | Fabiana de Amorim Marcello


apresentar? 4) Quais são os principais desafios encontrados para consolidar
a Gestão Democrática em ambientes de Educação Infantil?
Ainda no que se refere ao processo de análise, indicamos que as-
sumimos as respostas sistematizadas pelas gestoras como narrativas,
traçando com elas, junto a elas, um diálogo com as discussões teóricas
relativas à temática e à realidade vivenciada e descrita em seu fazer co-
tidiano. Mais do que isso, tomamos as respostas não de maneira isolada
e estanque, mas como um processo inseparável daquele que se mani-
festa no próprio cotidiano, ou seja, na delicada (e, por vezes, também
tensa) tessitura do compartilhamento de narrativas.
Como já mencionado, podemos dizer então que se trata de uma
pesquisa narrativa, na medida em que, por meio dela, pretendemos
compreender como as gestoras concebem suas atribuições do cenário
educativo. Borges e Pandini-Simiano (2019) mencionam que, segundo
Walter Benjamim, a narrativa remete a uma experiência e produz sig-
nificações sobre aquilo que foi compartilhado. O conceito remete, por-
tanto, a uma expressão de intercâmbio e de troca de experiências, como
uma forma artesanal de comunicação, na qual memórias, palavras e prá-
ticas sociais são compartilhadas, havendo ali, de modo especial, a com-
posição do conhecimento.
Entendemos que a narrativa, produzida no risco do tempo, com-
bina aquilo que singularmente é produzido na relação entre gestoras,
professoras, profissionais, crianças e suas famílias com o que se constrói
em termos sociais e políticos. Assim, avançamos para abordar, na seção
que segue, os olhares e as leituras de mundo das gestoras nas institui-
ções de Educação Infantil do município de Capão da Canoa (RS).

Gestão Democrática na Educação Infantil: olhares e leituras de mundo das gestoras das escolas
municipais de Educação Infantil de Capão da Canoa (RS) 361
OLHARES E LEITURAS DE MUNDO DAS GESTORAS
DAS ESCOLAS MUNICIPAIS DE EDUCAÇÃO
INFANTIL DE CAPÃO DA CANOA

No cenário que vem se desenhando entre o inseparável contexto


teórico e empírico, encontramos nas narrativas das gestoras visibilidade
e significado para análise das questões propostas por nosso questioná-
rio, que, nessa condição, permitiram compreender os desafios enfren-
tados pelas gestoras de Educação Infantil na implantação da Gestão
Democrática no município de Capão da Canoa (RS).
Tomamos as experiências dessas profissionais e sistematizamos
suas narrativas em dois eixos de análise, por sua vez, elaborados a partir
das recorrências das respostas em sua relação com os elementos que
sustentam uma prática de gestão efetivamente voltada para a escola in-
fantil (guardando aí o que nos parece mais decisivo e original para este
artigo: as singularidades e especificidades dessa etapa da educação bá-
sica). O primeiro eixo vai ao encontro das Concepções e desafios encon-
trados para consolidar a Gestão Democrática na Educação Infantil, como
narrado pelas gestoras, tendo aqui como princípio que,

[...] na lógica de que também a educação infantil é afetada por


mudanças que se efetivam no conjunto contexto educacio-
nal, ainda que seja necessário reconhecer também que, em
função da sua especificidade, os impactos e as respostas às
mudanças estarão, provavelmente, marcados por sua espe-
cificidade (Galdino; Côco, 2018, p. 291-292).

362 Vanessa Silva Bernardes | Fabiana de Amorim Marcello


Já no segundo eixo, abordamos O que narram as gestoras sobre o
perfil e as características do gestor de Educação Infantil, na tentativa de
explorar as questões de Gestão Democrática do ensino público susten-
tadas no arcabouço legal, porém também avançando para os contex-
tos das instituições e observando, com mais vagar, a institucionalização
do cargo/função do gestor nas singularidades da Educação Infantil. A
partir desses dois eixos, entendemos que nosso objetivo se materializa,
complementarmente, na direção de um e mesmo fundamento: a “pro-
gressiva afirmação da importância do gestor nas instituições de edu-
cação infantil, observando que, gradativamente, os sistemas de ensino
têm buscado promover a sua inserção no quadro de profissionais da
educação infantil” (Côco; Galdino, 2016, p. 311). Ao mesmo tempo, as-
sumimos na análise os desafios que envolvem a Gestão Democrática na
Educação Infantil e em como isso nos aponta para outros (por exemplo,
a participação e as vozes dos infantes).

Concepções e desafios encontrados para consolidar a


Gestão Democrática na Educação Infantil

“A Gestão Democrática na escola pública dá direito à participação


por igual de pais, professores, funcionários, alunos, comunidade em ge-
ral, onde todos estão democraticamente comprometidos na construção
coletiva da escola” (Gestora A., junho 2020).
A partir da narrativa da Gestora A, podemos, já de início, propor
uma indagação central à pesquisa e mesmo às discussões mais amplas
que sustentam este trabalho: afinal, como as gestoras definem o que
de fato implica a Gestão Democrática na escola pública? Quais são os

Gestão Democrática na Educação Infantil: olhares e leituras de mundo das gestoras das escolas
municipais de Educação Infantil de Capão da Canoa (RS) 363
principais desafios encontrados para consolidar a Gestão Democrática
no âmbito da Educação Infantil?
Em primeiro lugar, vale destacar que, uma vez que entendemos a
“educação como bem público, a descentralização do poder pode pos-
sibilitar compartilhar aquilo que constitui prerrogativa de uma cole-
tividade, pressupondo exercícios de envolvimento e pertencimento,
instando à participação nas problemáticas próprias de cada instituição”
(Galdino; Côco, 2018, p. 295). Ou seja, compreendemos que a descen-
tralização do poder, como garantia de uma Gestão Democrática, per-
mite o significativo incremento da autonomia das instituições (e, claro,
isso inclui as de Educação Infantil).
No cenário de pressupostos que se colocam como partilhados,
os sujeitos participantes parecem não ter dúvida de que o conceito
de Gestão Democrática demanda pensar a participação de todos os
segmentos na gestão das escolas de Educação Infantil. Tem-se claro,
nas narrativas das gestoras, como se dá efetivamente essa descentra-
lização do poder de que falamos, algo bem exemplificado pela Gestora
B: “As ações sociais propostas que são partilhadas com a comunidade
escolar tornando cada agente de segmento, que está inserido no pro-
cesso, ativo e participativo em todas as construções e tomadas de de-
cisões que beneficiem a escola” (junho 2020). Isso também emerge
nas palavras da Gestora C: “Defino a Gestão Democrática na escola
pública como a participação efetiva dos segmentos da comunidade es-
colar: pais, professores, alunos e funcionários, em todos os aspectos da
organização da escola” (junho 2020).

364 Vanessa Silva Bernardes | Fabiana de Amorim Marcello


Ouvir, falar, respeitar, partilhar, delegar, decidir e, sobretudo, pra-
ticar o que Freire (1997) refere como exercer o direito de “pronúncia
do mundo”: é isso, pois, que parece atravessar as falas das gestoras.
Borges e Pandini-Simiano (2019, p. 550), ao discorrerem sobre a partici-
pação da comunidade educativa na gestão de instituições de Educação
Infantil, destacam:

Pensar uma gestão democrática implica uma busca de con-


dições de “alargamento” das possibilidades de se estar com o
outro, fato que requer uma gestão atenta ao encontro, às re-
lações que se estabelecem entre professores, profissionais,
crianças e familiares na instituição educativa.

No entanto, ainda que tais princípios, como se pode perceber,


percorram as narrativas das gestoras, eles não ocorrem sem tensiona-
mentos; ao contrário, eles só podem emergir como princípios efetivos
de uma Gestão Democrática na medida em que convocam a um inse-
parável e constante movimento de pensar e repensar, discutir e reto-
mar percursos e processos. Assim, deve-se destacar – e é algo que se
faz bastante visível na narrativa da Gestora E, como veremos a seguir –
que, de algum modo, esse processo tão exaltado como (aparentemente)
incontestável acaba também por esbarrar em um elemento em nada
desprezível nos termos de efetivação de práticas: uma morosidade
(ainda que, saibamos, necessária e constitutiva) na construção da Ges-
tão Democrática. Ao argumentar sobre isso, a Gestora E afirma que a
Gestão Democrática “é um objetivo porque trata de uma meta a ser sempre
aprimorada e é um percurso, porque se revela como um processo que a cada
dia se reavalia e se reorganiza” (junho 2020). Essa morosidade é reafir-

Gestão Democrática na Educação Infantil: olhares e leituras de mundo das gestoras das escolas
municipais de Educação Infantil de Capão da Canoa (RS) 365
mada na narrativa da Gestora H, quando ela diz: “A Gestão Democrática
é uma grande meta que todos nós buscamos, é um movimento diário,
por vezes demorado, de avaliações e reorganização dos objetivos pro-
postos” (junho 2020, grifo nosso).
Paralelamente, e também não sem tensionamentos, parece con-
sensual entre as narrativas das gestoras o entendimento de que a par-
ticipação no contexto da Educação Infantil tem se visto em profundo
conflito com vários entraves, principalmente no que diz respeito ao
processo centralizador da tomada de decisões, o que se materializa, em
alguma medida, na figura de um gestor centralizador quanto às tomadas
de decisão ou mesmo na figura de um diretor condutor da participação,
como afirma a Gestora D: “O gestor escolar é o principal sujeito na im-
plantação de uma gestão democrática, pois [são] os seus supostos ‘po-
deres’ de decisões que entram em jogo” (junho 2020).
Pormenorizando elementos legais que aqui interessam de modo
singular, haja vista a narrativa da Gestora D, permitimo-nos trazer um
importante excerto da LDB que, em seu artigo 14, determina:

Aos sistemas de ensino cabe a definição das normas de ges-


tão democrática para o ensino público na educação básica,
de acordo com suas peculiaridades e princípios:

I. Participação dos profissionais da educação na elaboração


do projeto pedagógico da escola;

II. Participação das comunidades escolar e local em conse-


lhos escolares ou equivalentes (Brasil, 1996).

366 Vanessa Silva Bernardes | Fabiana de Amorim Marcello


Ora, como viemos defendendo, a Gestão Democrática (e na Educa-
ção Infantil não seria uma exceção) implica um trabalho que, por sua vez,
pressupõe, inequivocamente, a participação da comunidade educativa,
bem como a necessidade de respeitar e procurar a participação de to-
dos os sujeitos que compõem o contexto educativo. Trata-se, portanto,
do envolvimento de todos (gestores, crianças, famílias, professores e
funcionários) na dinâmica e na organização do trabalho em sua totali-
dade, tanto nos processos administrativos e financeiros como na cons-
trução coletiva da proposta educativa (Borges; Pandini-Simiano, 2019).
A partir de tais concepções de Gestão Democrática, questionamos
justamente a respeito dos desafios encontrados para sua consolidação
na Educação Infantil em Capão da Canoa, considerando os elementos
que até aqui sistematizamos. De todo modo, parece-nos que os desafios
presentes no cenário da Educação Infantil pressupõem certa resistên-
cia na participação, em especial quando associados às relações inter-
pessoais entre os mais diferentes atores que se estabelecem e quando
associada a própria compreensão da complexidade do processo e da
participação. Como afirmam as gestoras:

Uma Gestão Democrática exige muito além do que uma sim-


ples participação das pessoas da comunidade na reunião de pais.
Para consolidar, é necessário garantir que todos os sujeitos
e suas diferenças sociais e culturais tenham voz no ambiente
de educação infantil (Gestora C., junho 2020, grifo nosso).

Acredito que a dificuldade ainda está no comprometimen-


to da comunidade escolar com o ensino. Percebemos a re-
sistência das famílias em participar de reuniões, entrega de

Gestão Democrática na Educação Infantil: olhares e leituras de mundo das gestoras das escolas
municipais de Educação Infantil de Capão da Canoa (RS) 367
avaliações, por exemplo. A escola tem total autonomia para
desenvolver os aspectos pedagógicos, administrativos e fi-
nanceiros, porém ainda sente a falta de pais mais comprome-
tidos em participar da vida escolar de seus filhos (Gestora A.,
junho 2020).

Alguns elementos aqui merecem destaque, especialmente por


algumas dimensões de incongruência que nos convidam a pensar. Ve-
jamos: observamos nas narrativas apresentadas que as famílias ainda
não participam de forma ativa nas instituições, ainda que as gestoras te-
nham clareza de que esse seja, mais do que um desejo, um alicerce para a
construção de uma gestão efetivamente democrática. Esse ponto vai ao
encontro de importantes conclusões apontadas na pesquisa de Borges
e Pandini-Simiano (2019), quando, no contexto de sua pesquisa sobre os
(desa)fios da Gestão Democrática na Educação Infantil, destacam que
as famílias ainda participam de forma marginal, isto é, à margem do sis-
tema organizado nas instituições.
No entanto, e esse é ponto que queremos enfatizar, parece-nos que
há ainda uma espécie de “descompasso” na compreensão do que é par-
ticipar, do que significa ser parte da escola ou do processo educativo (e isso
não só por parte das gestoras). Outro fator a se pensar é até que ponto
a participação dos pais e alunos na definição e na avaliação dos rumos
da escola (ainda que enunciada como constitutiva de uma gestão que se
pretende democrática) é bem aceita por professores e dirigentes. Con-
tudo, se tomarmos o conceito de Gestão Democrática, seja pelo que
preconiza a legislação, seja por aquilo que vem se discutindo há décadas
no campo, veremos que a gestão das instituições públicas de ensino é
algo que ultrapassa indiscutivelmente o mero fato de tomar decisões.

368 Vanessa Silva Bernardes | Fabiana de Amorim Marcello


Isso significa que entender esse elemento exige pensar que a partici-
pação só é efetiva quando as pessoas chamadas a participar são colo-
cadas em condições adequadas e compatíveis para tanto, pois não nos
parece possível um sujeito participante avaliar o trabalho desenvolvido
na escola se não tem acesso às informações que lhe permitem produzir,
ele mesmo, uma análise, ou seja, se ele não está, pois, instrumentalizado
para tanto. Dizendo de outra forma, e articulando essas discussões com
as narrativas das gestoras expostas anteriormente, as considerações
acerca da “resistência das famílias em participar” ou mesmo a garantia
de que “os sujeitos participantes tenham voz” devem ir de par com o mo-
vimento de nos perguntarmos, no espaço escolar, quais condições con-
cretas e efetivas temos conseguido criar e fomentar para uma participação
ativa, efetiva e consistente dos diferentes atores?
Outro elemento desafiador presente na narrativa das gestoras, e
que aqui também nos interessa de modo singular, refere-se à participa-
ção da criança na gestão, uma vez que se assumem, sem grandes difi-
culdades, as crianças como “sujeitos competentes, ativos e capazes, por
isso a necessidade de reconhecê-las, ouvi-las, respeitá-las como sujeitos
de direitos a partir de suas especificidades” (Borges; Pandini-Simiano,
2019, p. 553).
No entanto, por mais que nos pareçam tão claras as concepções de
criança como sujeito de direitos e a quem a participação deve ser garan-
tida, essas mesmas concepções se encontram dificultadas (senão inviabi-
lizadas) por demandas até mesmo cotidianas, algo que por vezes parece
ainda se colocar na ordem de um projeto futuro, a ser ainda implemen-
tado (mesmo que, como referido, se trate de concepções e de pressupos-
tos irrevogáveis que atravessam a Educação Infantil já há 30 anos).

Gestão Democrática na Educação Infantil: olhares e leituras de mundo das gestoras das escolas
municipais de Educação Infantil de Capão da Canoa (RS) 369
No que concerne à participação das crianças, uma das
gestoras narra:

Penso que há muitos desafios, visto que a própria educação


infantil é um campo em construção. O desafio em superar
algumas concepções, fazer provocações que levem a refle-
tir e compreender o papel da educação infantil na atualida-
de, perceber a criança como alguém que é capaz de partici-
par. Penso que mais que um desafio é uma oportunidade de
transformação e qualificação de ambientes e de práticas na
educação infantil. A comunidade ainda é omissa ao processo e
ainda sendo vista por muitos como “perda de tempo” (Gestora F.,
junho 2020, grifo nosso).

Encontramos uma importante convergência entre a fala da Ges-


tora F e algumas sistematizações sobre o mesmo tema elaboradas por
Borges e Pandimi-Simiano (2019) quando, em sua pesquisa, pontuam e
discorrem a respeito da participação das crianças na gestão. Nas narra-
tivas e no contexto de pesquisa das autoras, a ausência da participação
das crianças nos processos de gestão emerge como unânime. Mais pre-
cisamente, em nenhum momento as gestoras mencionaram a participa-
ção da criança, algo que se aponta como um grande desafio, sobretudo
se entendemos que se trata da garantia daquilo que lhe é de direito.
Isso se torna particularmente curioso, na medida em que não são
escassos os estudos e os investimentos no campo da infância, no século
XXI, que apontam para a necessidade de valorizar e acolher a voz e a
participação das crianças nos espaços cotidianos em que estejam inse-
ridas. Assim, de acordo com as narrativas que pudemos reunir, verifi-
camos que a defesa pelo protagonismo infantil entra em choque com

370 Vanessa Silva Bernardes | Fabiana de Amorim Marcello


as ações sociais colocadas em prática na construção de uma Gestão
Democrática, como já evidenciado por outros autores (Borges; Pandini-
Simiano, 2019, p. 555):

Ainda em condições infans “incapaz[es] de falar”, os bebês


utilizam-se de diferentes modos de comunicação para inte-
ragirem com as crianças, adultos e o meio onde vivem. As
crianças têm muito o que nos falar e, por isso, a necessida-
de de terem voz dentro das instituições de educação infan-
til. As crianças bem pequenas têm suas particularidades que
devem ser respeitadas [...] nessa concepção, há necessidade
da busca de uma gestão que considere essa ideia de criança,
trazendo-a para o centro do fazer gestor.

Temos, portanto, narrativas recorrentes (não apenas nas respostas


das gestoras, mas também em outros conjuntos de pesquisas sobre os
mesmos sujeitos) que indicam elementos que obstaculizam o reconhe-
cimento efetivo da importância de uma Gestão Democrática e partici-
pativa na Educação Infantil, considerando seus mais diversos atores. É
importante ponderar que, diante dos avanços registrados na legislação
brasileira, no âmbito da gestão em instituições de Educação Infantil,
essa permanece sendo uma lacuna preocupante, revelando a precarie-
dade da experiência democrática nesses espaços específicos.

Gestão Democrática na Educação Infantil: olhares e leituras de mundo das gestoras das escolas
municipais de Educação Infantil de Capão da Canoa (RS) 371
O que narram as gestoras sobre o perfil do gestor
de Educação Infantil

A Educação Infantil vem passando por intenso processo de reor-


denamento, em razão das exigências impostas pela legislação e pelos
documentos complementares. Nesse processo, ressaltamos a integra-
ção das creches e das pré-escolas aos sistemas de ensino, o que implica
uma demanda pela recomposição de seus quadros profissionais, sobre-
tudo em relação ao magistério. Assim, inicia-se um processo de inser-
ção da figura do gestor para atuar nessas instituições, considerando
algumas incumbências a ele atribuídas por meio do ordenamento legal
(Côco; Galdino, 2016).
Considerando esses pontos específicos da legislação que agora
levantamos, gostaríamos de pormenorizar um segundo eixo de aná-
lise, qual seja, aquele que concerne ao modo como os próprios atores
desta pesquisa se defrontam com suas atribuições, responsabilidades e
incumbências. Tal eixo pode ser engendrado a partir das narrativas de
duas questões precisas já mencionadas e que aqui, de modo especial,
“formam uma estrutura dentro da qual nossos discursos sobre o pen-
samento evolvem e possibilitam o esqueleto funcional para explanação
muito específica desta ou daquela prática educacional” (Chaves, 2000,
p. 90). Pergunta-se aqui: qual é o papel do gestor escolar na Educação
Infantil? Quais são as características que um gestor democrático pre-
cisa apresentar?
Inicialmente, antes de adentrarmos o contexto diverso (até diver-
gente) quanto ao perfil do gestor de Educação Infantil no contexto de
Capão da Canoa na perspectiva da implantação de uma Gestão Demo-

372 Vanessa Silva Bernardes | Fabiana de Amorim Marcello


crática, convém desenhar o perfil das gestoras de modo particular. Para
fazer isso, valemo-nos dos estudos desenvolvidos por Côco e Galdino
(2016) em aspectos que compreendem desde sexo, idade, escolaridade,
carga horária de trabalho, tempo de atuação no campo da Educação In-
fantil até aqueles relativos ao próprio processo de gestão das institui-
ções e às formas de provimento para o cargo.
A partir dos dados já apresentados no percurso metodológico que
compõe este estudo, analisamos que o cargo de direção nas instituições
de Educação Infantil é ocupado predominantemente por mulheres, com
idade entre 34 e 50 anos. No que tange à formação inicial, todas as di-
retoras das instituições municipais possuem curso de graduação em
nível superior em licenciaturas em Pedagogia, História, Ciências Bioló-
gicas e Supervisão Escolar; a maioria delas (oito) cursou pós-graduação
na área da Educação. A carga de trabalho dessas profissionais é de 40
horas semanais, e todas ocupam o quadro de professoras do município.
Ademais, é possível assinalar que a organização do trabalho visa ao
apoio aos dois turnos de funcionamento da instituição, algo que, por sua
vez, indica a demanda por uma presença cotidiana nos dois turnos de
funcionamento das instituições. Essas gestoras atuam há um período de
12 a 21 anos na Educação Infantil e, mais especificamente, entre dois e
cinco anos como gestoras.
Quanto ao próprio papel que exercem e ao cargo de gestão nas
instituições municipais, declaram ter assumido por meio de indicação
do prefeito municipal, o que Côco e Galdino (2016) caracterizam como
uma espécie de fragilidade da função e descaracterização de constitui-
ção da escola democrática, já preconizada pela lei. Acrescenta-se nesse
desenho contextual uma espécie de retrocesso, uma vez que a história

Gestão Democrática na Educação Infantil: olhares e leituras de mundo das gestoras das escolas
municipais de Educação Infantil de Capão da Canoa (RS) 373
do município foi marcada, até meados de 2017, pela eleição para provi-
mento do cargo de gestor. Entendemos, nesse perfil, em especial quanto
ao último aspecto mencionado, que a constituição do quadro de profis-
sionais ligados à gestão na Educação Infantil corrobora as conclusões de
Côco e Galdino (2016), sobretudo quando indicam a ausência marcante
dos processos participativos no que se refere às formas de nomeação
profissional. Com isso, revelam-se os desafios que se apresentam como
persistentes na efetivação de uma Gestão Democrática pautada na par-
ticipação coletiva, na dialogicidade com a comunidade e no comparti-
lhamento das decisões.
Posto isso, ao engendrar as narrativas das gestoras nas questões
que norteiam esse eixo de análise (qual seja, o desempenho de suas fun-
ções), faz-se necessário evidenciar que, na gestão da Educação Infantil,
as questões administrativas, os procedimentos organizacionais, cadas-
trais, patrimoniais, bem como aqueles de manutenção das instalações
educativas parecem fazer parte do trabalho de gestor (pelo menos com
base na fala das gestoras vinculadas ao município de Capão da Canoa).
No entanto, em nossa discussão, atentamos para que a separação de
todas essas demandas de uma dimensão organizacional e daquela de
ordem pedagógica não seja de modo algum fortalecida; diríamos, além
disso, que elas deveriam ser assumidas como dimensões mutuamente
constitutivas. Quanto a esse aspecto específico, a Gestora H oferece
uma importante contribuição, que muito agrega àquela concepção re-
lativa à inseparabilidade de funções: “O papel do gestor é fundamen-
tal, é ele quem dá o suporte para o fazer pedagógico e o fazer de todos os
outros segmentos de forma incentivadora e colaborativa” (junho 2020,
grifo nosso). Acrescenta-se a essa fala a da Gestora E: “O papel do ges-

374 Vanessa Silva Bernardes | Fabiana de Amorim Marcello


tor escolar não se resume meramente àquele de administração do estabe-
lecimento de ensino, mas ao de um agente responsável por mudanças e
evoluções” (junho 2020, grifo nosso).
Assim, repetimos: reconhecemos essas dimensões em seu movi-
mento de articulação no conjunto das ações (administrativa, pedagó-
gica e financeira) no que tange à prática desenvolvida pelas gestoras.
Ainda, identificamos nas narrativas aspectos dessa dimensão relacio-
nal, ou seja, aspectos que convergem para a caracterização do estudo
realizado por Galdino e Côco (2018), no qual, em seu recorte de análise,
as autoras sustentam aportes consistentes sobre o trabalho do gestor
e da gestora nas dimensões pedagógicas, administrativas e financeiras
de modo complementar e constitutivo, ressaltando como isso se mos-
tra e se caracteriza como aspectos de uma dimensão relacional, em que
as práticas, ações e decisões estão irremediavelmente relacionadas a
questões pedagógicas.
Diante de perfis tão distintos, ora do gestor meramente “adminis-
trativo-financeiro”, ora do gestor das “múltiplas funções” (pedagógica,
relacional, administrativa e financeira), cada um a seu modo indicando
diferentes desafios para a participação coletiva, são desenvolvidas as
práticas recorrentes da Educação Infantil narradas pelas gestoras, que
acabam sendo compreendidas como partes de suas funções. Assim, no
processo de distribuição das ações escolares, e mesmo naquele ligado
à omissão de alguns agentes das comunidades educativas no que se re-
fere ao exercício de suas próprias funções, observamos que se constitui
o perfil de um gestor que assume um acúmulo de suas atribuições, algo
que vai além do cotidiano burocratizado (pelas ações administrativas e

Gestão Democrática na Educação Infantil: olhares e leituras de mundo das gestoras das escolas
municipais de Educação Infantil de Capão da Canoa (RS) 375
financeiras) e das dimensões pedagógicas e relacional, manifestadas nas
mais diversas possibilidades do movimento diário da Educação Infantil.
Nesse sentido, Souza e Ribeiro (2017), ao abordarem o perfil do
gestor contemporâneo nas suas dimensões teórica e prática, colabo-
ram para a ideia dessas incompatibilidades que percorrem de formas
distintas os igualmente distintos perfis que caracterizam os gestores.
Para os autores, tais perfis são denominados contemporâneos, inaca-
bados e complexos, e percebemos que são eles que atravessam as nar-
rativas das gestoras desta pesquisa. Ao analisar essas questões, Santos
(2008, p. 14 apud Souza; Ribeiro, 2017, p. 109) afirma algo que, para ele,
parece “insolúvel”:

[...] as atribuições previstas nas normas estatutárias e regi-


mentais, embora exijam do gestor escolar maior ênfase no
trabalho pedagógico (atividade-fim), acabam por dar mar-
gem, na prática, à predominância do administrativo-burocrá-
tico (atividade-meio), por força das tarefas rotineiras; [...]

Isso acaba revelando o dilema sobre as atribuições que temos


afirmado quanto ao perfil da gestora nos espaços infantis também em
Capão da Canoa (RS). No entanto, e esse é o ponto que destacamos, pa-
rece-nos ainda um desafio compreender os desdobramentos das ações
e as relações do gestor; no centro dessa problemática, o gestor assume
a figura que supostamente pode potencializar práticas que indiquem a
melhoria das ações e que vão direcionar as mudanças.
No que concerne à figura do gestor contemporâneo, inacabado e
incompleto, já mencionado, Souza e Ribeiro (2017) advertem para os
possíveis problemas provenientes da falta de condições de trabalho,

376 Vanessa Silva Bernardes | Fabiana de Amorim Marcello


da deficiência na formação inicial, da precária rede de recursos hu-
manos para apoio e de toda complexidade que envolve o ato de gerir
uma escola na atualidade. No entanto, por todas essas problemáticas
levantadas pelos autores, encontramos evidentes incongruências que
atravessam a evolução legislativa no sentido de regulamentação e lega-
lidade, no qual gestores e gestoras tramitam dentro e fora dos espaços
escolares. Esse aspecto talvez soe contraditório, uma vez que, visto o
processo de tentativa de implementação para democratização das insti-
tuições infantis (tentativas visivelmente evidenciadas nas narrativas das
gestoras), bem como a autonomia escolar frente aos ajustes específicos
de suas atividades e acesso à escola com qualidade para todos, acentua-
-se o paradoxo: insegurança nos limites e possibilidades de ação, con-
forme explicitado por Souza e Ribeiro (2017, p. 110):

A integração entre técnica administrativa, sensibilidade pe-


dagógica, habilidade com resolução de problemáticas no
processo das relações humanas, e a iniciativa em possibilitar
ideias que direcionem ações e integração de grupos, muitas
vezes aparecem como características desejadas à configura-
ção de um gestor escolar ideal, porém a realidade, verifica-
da por estudiosos da gestão escolar, implica que a formação
profissional dos gestores tem sido insuficiente para auxiliar
as funções destinadas, na contemporaneidade, a este cargo,
incluindo, assim, na carreira desses profissionais novas ma-
neiras de solidarizar as angústias e desafios, situação esta
verificada no compartilhamento de experiências e apoio em
auxílio de instituições hierárquicas acima da escola.

Gestão Democrática na Educação Infantil: olhares e leituras de mundo das gestoras das escolas
municipais de Educação Infantil de Capão da Canoa (RS) 377
Frente a esses descaminhos legais, ao paradoxo da contempora-
neidade e à gama de atividades elencadas pelas gestoras da pesquisa,
destacam-se os seguintes termos: “mediar”, “articular”, “assegurar o
cumprimento dos direitos” e “responsável por mudanças e evoluções”.
Trata-se de termos e expressões que se evidenciam em suas narrativas
e que assim convergem para um reconhecimento da complexidade do
papel da gestora da Educação Infantil, conforme sintetizado na narra-
tiva a seguir:

Mais que gestor, seu papel é o de mediador sem jamais per-


der a essência do ser professor de sala de aula. O gestor é
um articulador que não se limita somente à organização ad-
ministrativa e burocrática, sua ação vai além de construir
política efetiva pedagógica. O gestor deve assegurar o cumpri-
mento tanto dos direitos e deveres de todos os agentes envol-
vidos na Educação Infantil pelo bem-estar do aluno, sempre
procurando promover em articulação um ambiente rela-
cional saudável e de troca. Poderia enumerar vários dentre
tantos, mas acredito que o gestor é o grande responsável por
mudanças e evoluções (Gestora B., junho 2020, grifo nosso).

Na fala aqui destacada, verificam-se exigências que estão além da


formação dos professores/gestores e que, de fato, ultrapassam atribui-
ções e saberes vinculados à sua formação mais estrita. E justamente por
isso cabe questionar, como consequência, as implicações relativas às ló-
gicas de eficiência e aos propósitos de garantia do direito à educação
envolvidos com a demanda pela execução de novas tarefas e novas for-
mas de responsabilização que o contemporâneo impõe – as narrativas
dos sujeitos da pesquisa mostram isso e, mais ainda, apontam para “a

378 Vanessa Silva Bernardes | Fabiana de Amorim Marcello


constatação da complexidade da função” (Galdino; Côco, 2018, p. 296).
Isso pode ser visto de maneira clara por meio da seguinte resposta: “Um
gestor democrático tem que ter noção que o cargo é muito complexo,
pois abrange dimensões que estão além da nossa formação – pedagógica,
financeira, administrativa” (Gestora F., junho 2020, grifo nosso); ainda,
na afirmação da Gestora G: “Dialogar, escutar, delegar” (junho 2020).
Repetimos: em conjunto, essas falas apontam para aspectos específicos
e singulares dos espaços infantis que estão além da esfera administra-
tiva e pedagógica (ainda que dela também façam parte hoje).
Como temos insistido, considerando todo o universo de práticas
que percorre a escola de Educação Infantil em seu cotidiano, elas não
podem nem devem ser exclusivas do gestor ou da gestora, mas, antes,
devem ser assumidas pela comunidade educativa; isso desde que sejam
garantidos mecanismos que promovam a participação, por exemplo (e,
diríamos, especialmente), da criança pequena nas deliberações sobre a
dinâmica institucional. Esses elementos dão ênfase, portanto, à respon-
sividade e aos desafios postos sobre o papel do gestor na amplitude da
Educação Infantil.
A partir do tópico que dá título a esta seção, como forma de apro-
priação e recontextualização em contextos de ação efetiva, gostaríamos
agora de apresentar aquelas narrativas que apontam para uma ideia de
gestão como um processo de trabalho contínuo e nunca concluído em de-
finitivo; como um processo que envolve aprofundamento e vivência de
constituição dos atores da comunidade. Sobre isso, afirma a Gestora A:

O gestor articulado com sua equipe tem o papel de promover


condições necessárias para que as aprendizagens aconte-
çam, além de cuidar e administrar a estrutura física da escola,

Gestão Democrática na Educação Infantil: olhares e leituras de mundo das gestoras das escolas
municipais de Educação Infantil de Capão da Canoa (RS) 379
seus espaços, recursos humanos e financeiros, além das rela-
ções interpessoais com todos os segmentos da comunidade,
revisitando o PPP constantemente e cumprindo com sua efe-
tivação (junho 2020, grifo nosso).

No propósito de discutir com maior detalhamento aspectos relati-


vos a questões produzidas na narrativa da Gestora A trazida anterior-
mente, salientamos as concepções apresentadas por Palmén (2014, p.
174 apud Borges; Pandini-Simiano, 2019, p. 549) sobre a Gestão, espe-
cialmente quando refere que

[...] a ênfase dada ora ao burocrático ora ao pedagógico, con-


forme a posição ocupada pelos gestores deve fazer parte de
uma reflexão coletiva do grupo de trabalho que constitui as
unidades de educação infantil, de forma a romper com as
contradições presentes nessa forma de conceber e promo-
ver a organização da unidade escolar, entendendo o trabalho
realizado em seu interior de forma integrada, como um pro-
cesso indissociável assim como o educar e o cuidar são com-
preendidos na educação infantil.

Percebemos, assim, que a articulação entre essas duas dimensões


está implicada numa gestão colegiada (no que compreende os recursos
materiais e humanos), no planejamento das atividades, na distribuição
de funções e atribuições, na partilha do poder e na relação interpessoal
de trabalho, sobremaneira, nas práticas gestoras em consonância com
suas peculiaridades e princípios.
Na análise das narrativas das gestoras, os dados parecem indicar
que muitas ressonâncias conceituais advindas do campo da legislação
não dialogam com as vivências do cotidiano nas instituições de Educa-

380 Vanessa Silva Bernardes | Fabiana de Amorim Marcello


ção Infantil e suas múltiplas demandas. A narrativa produzida pela Ges-
tora A expressa, de modo exemplar, o tensionamento referido:

O gestor deve exercer uma gestão democrática solidária


e descentralizada, dando oportunidade de todos atuarem
de forma ativa, expressando suas opiniões e necessidades.
Precisa estar atento ao desempenho pedagógico dos alu-
nos, dialogamos com a comunidade e decidimos os melhores
caminhos a serem trilhados. São inúmeras características
também que nos sobrecarregam, a responsabilidade de abrir
e fechar a escola, as questões administrativas financeiras (sem
ter noção mínima de contabilidade). O gestor precisa promover
uma gestão que haja reflexão crítica, buscando discutir ideias
em grupo e também autocrítica sobre a sua gestão (junho,
2020, grifo nosso).

Considerando uma gestão marcada por imperativos (“devem”,


“precisam”), Galdino e Côco (2018, p. 300) observam “o investimento
dos gestores em executar as ações ligadas à mobilização do trabalho
coletivo, às demandas organizativas da instituição (elaboração de ho-
rários, da organização curricular e de calendário letivo, supervisão das
entradas e saídas) e à interação com as famílias”. No bojo da observação
sobre a preocupação das autoras, assinalamos, mais intensamente, a
responsabilidade em responder a expectativas de “eficiência” das insti-
tuições. A multiplicidade das narrativas parece assinalar, considerando
uma visão panorâmica sobre as mais variadas práticas em curso nas ins-
tituições, as preocupações dessas gestoras em ter que responder pelo
que fazem, como fazem e para que o fazem, de maneira a percebermos,
de fato, o quanto isso fortalece a ideia de uma “gestão eficiente”.

Gestão Democrática na Educação Infantil: olhares e leituras de mundo das gestoras das escolas
municipais de Educação Infantil de Capão da Canoa (RS) 381
Sem desconsiderar os significativos avanços no campo da Educação
Infantil apresentados no decorrer deste texto por meio dos dados anali-
sados, indicamos que se fazem ainda marcantes: a ausência de processos
participativos no que se refere às formas de provimento da profissional
gestora; a sobrecarga dos múltiplos papéis atribuídos às atividades de
responsabilidade das gestoras (ultrapassando, inclusive, dimensões ad-
ministrativas e pedagógicas); e, ainda, as atividades atribuídas às ges-
toras na contemporaneidade, que percorrem sua operacionalização até
sua autonomia no processo de gestão. Todas essas questões e comple-
xidades (constituídas nos olhares e na leitura de mundo das práticas
gestoras) envoltas pelo ato de ser gestor/gestora, em especial em ins-
tituições de Educação Infantil, permitiram que lançássemos um olhar
mais sensível e crítico ao modo como vem sendo projetada a construção
desse perfil contemporâneo (repetimos: complexo e inacabado) que re-
presenta, dada sua importância, um componente entre muitos outros
que constroem as características e identidades de uma instituição. Ao
enfatizar tais aspectos na análise, gostaríamos de destacar o quanto o
trabalho do gestor e da gestora ainda revela fragilidades; justamente
por isso, aponta e sugere a necessidade de investimentos para o seu
fortalecimento na busca por se implantarem as premissas contidas na
legislação e nos documentos legais complementares mencionados ini-
cialmente na discussão desse eixo.

382 Vanessa Silva Bernardes | Fabiana de Amorim Marcello


CONSIDERAÇÕES PARA NÃO FINALIZAR

Como forma de apontar para aspectos que indiquem o fechamento


(ainda que provisório) de nossas discussões, afirmamos, primeiramente,
que este texto emergiu das várias necessidades empíricas e teóricas
que vinham e vêm se apresentando em nosso cotidiano. As principais
delas decorrem do reconhecimento de que a pesquisa no campo da
gestão escolar/educacional nas instituições de Educação Infantil carece
de discussão conceitual mais aprofundada sobre Gestão Democrática.
Assim, no cotejo entre a realidade das escolas pesquisadas e o conceito
de Gestão Democrática, percebemos aspectos ainda frágeis ligados à
participação, como elementos contraditórios no que diz respeito a for-
mas mais coletivas de gestão. Entendemos, assim, que é a partir desse
conjunto de conclusões (somente possíveis porque partem justamente
das narrativas das gestoras) que podemos ampliar as possibilidades de
olhares e leituras de mundo concretas e voltadas à democratização da
organização e da gestão escolar/educacional.
Fernandes e Campos (2015), ao analisarem a bibliografia sobre
gestão da Educação Infantil no Brasil, destacam a importância do apro-
fundamento de um processo de discussão que tenha por horizonte in-
vestigar a forma como as políticas são recebidas pelas unidades e qual é
o impacto delas na rotina das instituições (particularmente daquelas de
Educação Infantil) mediante o estabelecimento de diretrizes, normas,
instruções e programas de criação de demandas para os gestores e pro-
fissionais que atuam na unidade.

Gestão Democrática na Educação Infantil: olhares e leituras de mundo das gestoras das escolas
municipais de Educação Infantil de Capão da Canoa (RS) 383
Com isso, ao assumir a Gestão Democrática na Educação Infantil
como tema norteador deste artigo, consideramos, de modo bastante
especial, os desafios enfrentados pelas gestoras de Educação Infantil
das escolas municipais de Capão da Canoa, no Estado do Rio Grande do
Sul, na implantação da Gestão Democrática, e de que forma podemos
ali reconhecer as singularidades e especificidades dessa etapa da Edu-
cação Básica.
Para tanto, como pode ser visto, indicamos as premissas da Ges-
tão Democrática explicitadas na legislação atual e nos aportes teóricos
específicos do campo, tendo como horizonte as narrativas das gestoras
das instituições de Educação Infantil do município de Capão da Canoa.
Por meio dessa articulação, buscamos enfatizar questões referentes à
implantação da Gestão Democrática, entendida como parte da prática
das gestoras de Educação Infantil, e como ali se compõe um conjunto ar-
ticulado de conquistas, mas também de desafios vivenciados no cenário
atual da Educação Infantil.
Nesse sentido, podemos dizer que a Gestão Democrática na Edu-
cação Infantil não é apenas uma questão organizacional e de gestão (ad-
ministrativa e pedagógica), mas, antes, uma questão mais ampla, ligada
ao processo mesmo de democratização da educação, de expansão e
realização do direito à educação, de possibilidade de educar para e pela
democracia e de participação.
De todo modo, reconhecemos que o campo da Educação Infan-
til vem se fortalecendo de diferentes formas nos últimos anos e, com
isso, fortalecendo também as atribuições das gestoras e, consequente-
mente, suas concepções em relação a seu próprio trabalho (dentro de
toda especificidade e singularidade do campo). Nas narrativas, reve-

384 Vanessa Silva Bernardes | Fabiana de Amorim Marcello


la-se, sem dúvida, o compromisso do trabalho das gestoras em meio a
desafios persistentes no campo; ao mesmo tempo, na incursão sobre as
produções da área, evidencia-se a escassez dessa discussão no trabalho
de gestor/gestora na Educação Infantil.

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386 Vanessa Silva Bernardes | Fabiana de Amorim Marcello


11
Reformulação
do Projeto Político-
Pedagógico: sob os
princípios da Gestão
Democrática voltada
à Educação Infantil

Fabiani Gedtel Erhart1


Rudinei Müller2

1 Especialista em Gestão da Educação pela Universidade Federal do Rio


Grande do Sul. Graduada em Educação pela Universidade Federal do Rio
Grande do Sul. Professora da Rede Municipal de Lindolfo Collor.
E-mail: fabianigedtel@hotmail.com

2 Pós-doutor em Filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul.


Doutor e Mestre em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio
Grande do Sul. Professor de Filosofia no Intituto Federal de Educação, Ciên-
cia e Tecnologia do Rio Grande do Sul campus Restinga.
E-mail: muller.rudinei@gmail.com
INTRODUÇÃO

O presente artigo evidencia uma reflexão sobre a reestrutura-


ção do Projeto Político-Pedagógico (PPP) de uma escola municipal de
Educação Infantil situada na região metropolitana do Rio Grande do
Sul, sua consonância com a Base Nacional Comum Curricular (BNCC)
e as etapas do processo de reformulação, baseando-se nos princípios
da Gestão Democrática. O PPP é tratado sob a ótica da sua importân-
cia e da real necessidade para a escola como instrumento democrá-
tico de construção da cidadania e da superação da lógica documental,
teórica e burocrática.
Desse modo, este artigo tem foco na reformulação do Projeto
Político-Pedagógico, constatando nesse processo os movimentos da
participação democrática, que envolve comunidade escolar, pais, pro-
fessores e funcionários da instituição municipal de ensino. De acordo
com a LDB, a comunidade escolar deve “participar” da elaboração desse
planejamento ou dessa “proposta”, fazendo com que as escolas passem
a se preocupar com o que pensam professores, funcionários, equipe di-
retiva, pais e alunos sobre a educação (Brasil, 1996). O desafio que se
coloca, por meio dos espaços escolares, é a potencialização da partici-
pação, promovendo diálogo e reflexões sobre a prática pedagógica.
Nesse sentido, a pesquisa foi conduzida tendo por objetivo central
analisar o processo de reformulação do PPP de uma instituição muni-
cipal de Educação Infantil. Especificamente, pretende-se verificar se
a escola tem um Projeto Político-Pedagógico e conhecer em que me-
dida todos os membros dos diferentes segmentos da comunidade es-
colar estão envolvidos na sua reelaboração, bem como verificar se os

388 Fabiani Gedtel Erhart | Rudinei Müller


professores utilizam esse documento como referência e subsídio para
o seu trabalho.
Desenvolveu-se uma pesquisa bibliográfica que permeou o refe-
rencial teórico do tema, partindo de uma abordagem descritiva e refle-
xiva a respeito dos elementos conceituais que constituem e dialogam
entre a teoria e a prática da Gestão Democrática. Estruturalmente, este
artigo está organizado em quatro seções, além desta introdução e das
considerações finais.
Na primeira seção, intitulada Construção dos caminhos da pes-
quisa, apresentamos o direcionamento e as delimitações da pesquisa
escolhida, evidenciando os caminhos teórico-metodológicos e os pro-
cedimentos de investigação para a coleta e a apresentação de dados.
Destaca-se como foco principal da pesquisa o processo de reelabora-
ção do Projeto Político-Pedagógico de uma escola municipal, com base
nos princípios da Gestão Democrática. Trazemos também a nossa tra-
jetória e caminhada como profissionais na educação, por meio da qual
tivemos a possibilidade de atuar na coordenação pedagógica e, pos-
teriormente, na direção de uma escola municipal de Educação Infan-
til, fatos que contribuíram na escolha do tema deste artigo, além das
discussões, reflexões e contribuições que o curso da Universidade Fe-
deral do Rio Grande do Sul proporcionou.
Na segunda seção, apresentamos Definições do espaço da pesquisa,
trazendo o marco histórico desde o surgimento da instituição, a organi-
zação curricular, o número de profissionais e o funcionamento da insti-
tuição de ensino pesquisada.

Reformulação do Projeto Político-Pedagógico:


sob os princípios da Gestão Democrática voltada à Educação Infantil 389
Na terceira seção, trazemos Marcos legais da história da Gestão De-
mocrática na educação, contextualizando o Projeto Político-Pedagógico
e a gestão escolar democrática. Destacam-se os mecanismos e as con-
dições para a autonomia pedagógica e a vivência do exercício de par-
ticipação e corresponsabilidade na construção e na reelaboração do
PPP. Nesse sentido, discute-se como um planejamento participativo e
democrático deve ter o envolvimento dos diferentes atores escolares.
Apresentamos os fundamentos legais e normativos da gestão escolar
democrática expressos na Constituição da República Federativa do
Brasil de 1988 (Brasil, [2016]) e na Lei de Diretrizes e Bases da Edu-
cação (LDB nº. 9.394) (Brasil, 1996), com ênfase nos desdobramentos
a partir do projeto de intervenção da experiência vivenciada na re-
visão do PPP, dialogando com as bases teóricas explicitadas e com os
resultados obtidos.
Em seguida, na quarta seção, intitulada O Projeto Político-Pedagó-
gico: um documento fruto do processo de discussão e tomada de decisões
do coletivo e da escola, apresentamos uma entrevista realizada com a
equipe gestora da escola referente ao planejamento de cada etapa do
processo de reelaboração e estruturação do PPP e também uma aná-
lise de questionários realizados com os profissionais da instituição de
ensino (professores e monitores concursados e estagiários). Consta-
tam-se as etapas e a participação desses profissionais no processo de
reelaboração do Projeto Político-Pedagógico, com base nos princípios
da Gestão Democrática, e apontam-se os resultados obtidos, alicerça-
dos em análises e reflexões descritas. Temos como objetivo principal
enfatizar a importância da participação da comunidade escolar na Ges-
tão Democrática dos estabelecimentos de ensino, especificamente na

390 Fabiani Gedtel Erhart | Rudinei Müller


escola pública. Além disso, ressaltamos a importância da participação
de todos os interessados pela educação, ao destacarmos a relevância da
gestão participativa e, portanto, democrática.
Finalizando, com as Considerações finais, são retomados os princi-
pais aspectos do estudo e os objetivos enunciados, no intuito de refletir
sobre as constatações que surgiram no decorrer da pesquisa.

CONSTRUÇÃO DOS CAMINHOS DA PESQUISA

O foco desta pesquisa é contribuir no processo de discussão no


interior da escola, com a intenção de realizar uma intervenção. A Ges-
tão Democrática é concebida na perspectiva da participação de todos
os envolvidos no processo educacional dentro do espaço escolar. A
concretização de uma prática de Gestão Democrática, participativa e
coletiva exige uma ruptura com a cultura autoritária e burocrática do
sistema de ensino.
Dessa forma, este artigo problematiza o planejamento e as ações
na construção de processos democráticos de planejamento, reflexões e
discussões no coletivo. Assim, desenvolveu-se, a partir dessa perspec-
tiva, a ideia de demonstrar as possibilidades entre os diferentes con-
ceitos e entrelaçamentos decorrentes do sistema educacional. Serão
apresentados elementos que oportunizem a reflexão acerca da com-
plexidade e da amplitude das temáticas que dizem respeito ao Projeto
Político-Pedagógico e à Gestão Democrática.

Reformulação do Projeto Político-Pedagógico:


sob os princípios da Gestão Democrática voltada à Educação Infantil 391
Processo de descoberta

Iniciamos nossa trajetória no magistério no ano de 2004, atuando


na Educação Infantil. No ano de 2010, recebemos um convite para
atuar na Coordenação Pedagógica de duas escolas municipais de Edu-
cação Infantil, alternando os dias. Ocupamos essa função durante
cinco anos. Posteriormente, no ano de 2015, assumimos a direção de
uma escola municipal de Educação Infantil, em cuja gestão estivemos
durante três anos. Em 2019, retornamos para a sala de aula atuando
como docentes. A experiência de oito anos na gestão, em três escolas
da Rede Municipal, sinalizou uma pluralidade de possibilidades acerca
de uma Gestão Democrática. Dessa forma, escolhemos esse tema para
produzir este artigo.
Revisitar a trajetória e as experiências profissionais e acadêmicas
considerando todo o percurso vivido requer lançar olhares para os di-
versos momentos que carregamos conosco. Recorrer a essa memória
vivida e viva é algo que mantém o entrelaçamento do profissional e do
acadêmico com o pessoal, do passado e do presente. Segundo Teixeira
(2003, p. 82), por meio de um recorte da realidade, delimitamos o objeto
de estudo, que se refere

[...] à própria vida dos pesquisadores, que dá origem a interro-


gações, observações, comparações e questionamentos. Enraí-
za-se em suas histórias individuais e coletivas, colocando-lhes
problemas, questões, perguntas. Por essa razão, geralmente
estudamos o que está em nossa história, nos desafios de nos-
sa vida cotidiana ou de nosso estar no mundo, problemas e
fatos nos quais estamos existencialmente implicados.

392 Fabiani Gedtel Erhart | Rudinei Müller


Diante das experiências vividas e de inquietações, discussões, re-
flexões e contribuições que o curso da UFRGS proporcionou – fatores
que estão alicerçados pela escolha e pela identificação com a Gestão
Democrática –, trazemos neste artigo elementos que podem colaborar
para uma reflexão da complexidade e da amplitude das temáticas que
estão diretamente ligadas entre o Projeto Político-Pedagógico e a Ges-
tão Democrática.

DEFINIÇÕES DO ESPAÇO DE PESQUISA

A escola municipal de Educação Infantil está localizada em um mu-


nicípio situado na região metropolitana que foi originada por imigran-
tes alemães. Na escola, atendem-se ao total 67 crianças, com idades de
quatro meses até três anos e nove meses.
O currículo é organizado por turmas, conforme a faixa etária. Na
turma do Berçário, as crianças têm de quatro a, aproximadamente, 11
meses de idade, podendo haver até 11 crianças na turma. No Berçário
II, as crianças têm em torno de 11 meses completos até um ano e cinco
meses de idade, podendo haver até 16 crianças na turma. No Mater-
nal I, as crianças têm, aproximadamente, de um ano e seis meses a dois
anos e dois meses de idade, e pode haver até 16 crianças na turma. No
Maternal II, as crianças têm por volta de dois anos e três meses a três
anos, podendo haver até 16 alunos na turma. E no Maternal III, as crian-
ças têm, aproximadamente, de três a quatro anos, e pode haver até 16
alunos na turma.

Reformulação do Projeto Político-Pedagógico:


sob os princípios da Gestão Democrática voltada à Educação Infantil 393
Na instituição, atuam oito professoras concursadas, cinco moni-
toras concursadas, seis estagiárias contratadas, uma coordenadora
pedagógica, um diretor, três serventes merendeiras e um estagiário
de música.
A escola foi construída no ano de 2003 e iniciou suas atividades no
ano seguinte. Em 2008, houve ampliação do espaço físico, com três no-
vos espaços (sala de professores, depósito e banheiro de professores).
Em 2012, ocorreu a ampliação do refeitório, proporcionando, assim, um
espaço mais amplo e arejado.
O funcionamento ocorre em turno integral, havendo uma porcen-
tagem baixa de crianças que frequentam a escola em apenas um turno.

O Projeto Político-Pedagógico na escola pesquisada

Buscamos conhecer e perceber os caminhos já percorridos no


processo de reelaboração do Projeto Político-Pedagógico da escola em
pesquisa, instituição de cujo quadro docente fizemos parte desde o ano
de 2019.
O atual Projeto Político-Pedagógico encontrava-se bastante desa-
tualizado, tendo em vista que sua última alteração aconteceu em 2012.
As discussões sobre a reformulação desse documento começaram
durante o segundo semestre do ano de 2019, tiveram continuidade e
foram concluídas no ano de 2020.
O projeto de intervenção analisado neste artigo teve como funda-
mento metodológico a pesquisa-ação, considerando a necessidade do en-
volvimento do pesquisador e a ação por parte dos grupos envolvidos no
contexto escolar. Lewin (1946 apud Pereira, 1998, p. 162) concebia a pes-

394 Fabiani Gedtel Erhart | Rudinei Müller


quisa-ação como “um posicionamento realista da ação sempre seguida
por uma reflexão autocrítica objetiva e uma avaliação de resultados”.
Para isso, foram utilizadas abordagens quantitativas e qualitativas,
ambas como forma de atingir o objetivo de uma investigação. O estudo
teórico realizado acerca da reelaboração do Projeto Político-Pedagó-
gico e sua relação com a Gestão Democrática resultou nas reflexões
constantes que serão apresentadas no decorrer deste artigo. A pes-
quisa foi realizada em uma escola municipal de Educação Infantil per-
tencente a um município da região metropolitana do Rio Grande do Sul.

MARCOS LEGAIS DA HISTÓRIA DA GESTÃO


DEMOCRÁTICA NA EDUCAÇÃO

Atualmente, a Gestão Democrática tem sido bastante discutida,


uma vez que ela é um processo que oportuniza a participação tanto das
pessoas que fazem parte da escola quanto das que estão a sua volta nas
decisões administrativas. Mas, de fato, qual é a definição da expres-
são Gestão Democrática no âmbito da escola pública? Para um melhor
entendimento da definição de Gestão Democrática, apresentamos a
etimologia dessas palavras. Cury (2002) define o termo gestão, que pro-
vém do verbo latino gero, gerere e tem o significado de “executar, exercer,
gerar, gestar”, o que implica uma ação do sujeito na construção de algo
novo, “fazer nascer o novo”. Nessa perspectiva, é necessário que haja o
envolvimento e a participação das pessoas e que se estabeleça diálogo.
Cury (2002, p. 165) afirma que gestão “é a geração de um novo modo
de administrar uma realidade e é em si mesma democrática, já que se

Reformulação do Projeto Político-Pedagógico:


sob os princípios da Gestão Democrática voltada à Educação Infantil 395
traduz pela comunicação, pelo envolvimento coletivo e pelo diálogo”.
Assim, a gestão utiliza o diálogo como forma de encontro das pessoas
e solução de conflitos. Nesse sentido, a gestão está alicerçada num
processo de participação, transparência, competência, coletividade,
liderança e autonomia, assegurando, assim, que a escola seja um espaço
capaz de gerar e construir ideias que permitam melhorar e replanejar
tudo aquilo que é próprio dela.
A palavra democrática é uma derivação de democracia, que tem
origem no termo grego antigo demokratía, em que dêmos significa povo e
kratía, governo. Trazendo a questão da democracia para o âmbito esco-
lar, pode-se dizer que uma escola não é democrática só por sua prática
administrativa. Ela torna-se democrática por suas ações pedagógicas e
essencialmente educativas (Fonseca, 1994). Nesse sentido, a gestão es-
colar exige novos modos de fazer e pensar a educação, novos espaços
sociais de diálogo e manifestações de opiniões, pensamentos e reivin-
dicações, a fim de possibilitar uma formação política que contemple o
novo modo de agir da comunidade escolar.
A partir da Constituição Federal de 1988, que até determinado
ponto avança na garantia dos direitos e propõe a Gestão Democrá-
tica como um princípio a ser utilizado na gestão das escolas, a Lei de
Diretrizes e Bases (Lei nº. 9.394/96) também assegura, nos artigos 14 e
15, as normas da Gestão Democrática do Ensino Público, especialmente
por meio da participação dos profissionais e da comunidade escolar na
gestão da escola.
Essa época foi marcada por diversos movimentos em favor da rede-
mocratização social, política e educacional. “A partir desses movimen-
tos começaram a surgir as bases legais para uma gestão voltada para

396 Fabiani Gedtel Erhart | Rudinei Müller


os princípios de participação e autonomia” (Gadotti, 1995, p. 9). Nesse
sentido, a Gestão Democrática da educação passa a representar a luta
pelo reconhecimento da escola como espaço de política e trabalho, o
que possibilita a discussão que contrapõe “[...] a organização burocrática
e hierárquica da administração escolar” (Luce; Medeiros, 2006, p. 15).
Na Gestão Democrática, consideram-se alguns fatores tidos como
princípios democráticos, entre os quais se destacam a participação, a
autonomia, a transparência e o pluralismo. A democracia deve ser o
princípio condutor da prática pedagógica, caracterizando-se como o
fundamento de todas as ações no espaço escolar. O desenvolvimento
de práticas democráticas é parte da construção de um sistema que res-
peita os direitos individuais e coletivos. Para que a Gestão Democrá-
tica se concretize, é necessário o desenvolvimento de ações baseadas
em alguns princípios essenciais para a construção de uma sociedade
justa e igualitária. Dessa forma, é possível que ocorra uma educação de
qualidade, na qual haja o desejo de construir a partir de princípios ver-
dadeiramente democráticos, considerando a necessidade de resgatar,
salientar e exaltar a qualidade do ser humano como sujeito.
Existem diversos elementos que contribuem para a consolidação
da Gestão Democrática na escola. Um deles é a construção e reelabo-
ração do Projeto Político-Pedagógico, um documento que precisa ser
elaborado por todos os membros da comunidade escolar, sejam eles
professores, gestores, funcionários da escola ou comunidade local, com
o propósito de organizar todo o trabalho da escola, como atividades ad-
ministrativas, pedagógicas e didáticas. Dessa forma:

Reformulação do Projeto Político-Pedagógico:


sob os princípios da Gestão Democrática voltada à Educação Infantil 397
O Projeto Político-Pedagógico é o plano global da insti-
tuição. Pode ser entendido como a sistematização, nunca
definitiva, de um processo de planejamento participativo,
que se aperfeiçoa e se concretiza na caminhada, que define
claramente o tipo de ação educativa que se quer realizar. É
um instrumento teórico-metodológico para a intervenção e
mudança da realidade. É um elemento de organização e inte-
gração da atividade prática da instituição neste processo de
transformação (Vasconcelos, 2004, p. 169).

Assim, havendo o envolvimento de todos nesse processo de cons-


trução, o PPP realmente será um dever e um direito, uma vez que é pre-
ciso que todos estejam cientes de que fazem parte dele, acreditando na
sua importância. Dessa forma, ele não será um mero documento, e sim
um documento de referência que relaciona a teoria com a prática.
Acreditamos que a Gestão Democrática da educação só é possível,
de fato, por meio da participação e do envolvimento de todos os sujei-
tos que compõem os diferentes segmentos escolares, não como um pro-
duto final, mas como algo pertencente à relação processual e dialógica
da comunidade escolar como um todo, respeitando seus pensamentos
e as singularidades étnicas, sociais, políticas, culturais e econômicas da
realidade local. Assim, a participação é um exercício processual e per-
manente de sujeitos pertencentes ao contexto escolar, construída por
relações dialógicas, implicando, assim, a participação de todos os sujei-
tos envolvidos no processo educativo.
A Gestão Democrática da escola pública vem sendo muito
discutida atualmente, e ela pressupõe a criação de mecanismos concre-
tos de participação e de autonomia da escola. Considerando a Gestão

398 Fabiani Gedtel Erhart | Rudinei Müller


Democrática como uma prática participativa, Paro (2006) afirma que,
para que a escola se faça realmente pública, é imprescindível a criação
de mecanismos que a tornem democrática; somente dessa forma po-
derá se tornar de fato o que deve ser: instrumento para construção e
defesa da cidadania. Portanto, discutir Gestão Democrática implica
refletir sobre questões específicas da realidade, dos problemas e dos
desafios que surgem diariamente na escola, considerando esses movi-
mentos de organização e planejamento do trabalho pedagógico como
contribuintes no desenvolvimento de uma prática participativa.
Partindo do conceito de Gestão Democrática como uma prática
participativa e de tomada de decisão, é possível relacioná-lo com a ati-
vidade de impulsionar uma organização a atingir seus objetivos, cum-
prir sua função, desempenhar seu papel (Ferreira; Aguiar, 2006). Dessa
forma, acredita-se na relação direta e entrelaçada entre a Gestão De-
mocrática e o Projeto Político-Pedagógico, na qual, por meio da Gestão
Democrática, constrói-se um projeto participativo num processo contí-
nuo e permanente.
Essa construção do PPP é essencial, pois se sabe que é ele que de-
fine todas as ações pedagógicas e serve como referencial para guiar o
trabalho dos profissionais da educação. Dessa forma,

O projeto político-pedagógico é o documento da identida-


de educativa da escola que regulariza e orienta as ações
pedagógicas. Como proposta identitária, o projeto político-
-pedagógico constitui-se em uma tarefa comum do corpo
diretivo e da equipe escolar e, mais especificamente, dos
serviços pedagógicos (coordenação pedagógica, orientação

Reformulação do Projeto Político-Pedagógico:


sob os princípios da Gestão Democrática voltada à Educação Infantil 399
educacional). A estes cabe o papel de liberar o processo de
construção, execução e avaliação do projeto, contando com
a valiosa participação de todos (Veiga, 2013, p. 85).

A partir desse contexto, um dos problemas apresentados nas ins-


tituições de ensino é o de que as escolas, como estão organizadas hoje,
estão sistematicamente desprovidas de espaço coletivo e democrá-
tico. Por essa razão, é necessário rever essa organização para permitir
a prática da democracia. Desse modo, as escolas precisam mudar sua
organização de trabalho e seu espaço de ação para a construção e reela-
boração de um Projeto Político-Pedagógico coletivo. Mas como mudar a
organização do trabalho na escola? Uma alternativa é partir da reflexão
sobre os problemas que têm dificultado ou impossibilitado uma Gestão
Democrática, como as normas do sistema, por intermédio da legislação
vigente e das políticas educacionais, que requerem a participação como
o caminho para a resolução dos problemas da escola.
Analisada a questão da Gestão Democrática como prática partici-
pativa, é necessário buscar os caminhos possíveis para essa concreti-
zação. Gadotti (2004) salienta que a Gestão Democrática não deve ser
entendida como a resolução de todos os problemas do ensino ou da edu-
cação, mas como a mobilização da sociedade em torno de uma proposta
de Gestão Democrática, que, assim como os diversos processos, é
apenas o início da transformação de um processo educativo. A partir do
momento que a escola fomenta a construção do Projeto Político-Peda-
gógico coletivamente, surge uma ferramenta grandiosa de democrati-
zação entre instituição de ensino e comunidade escolar.

400 Fabiani Gedtel Erhart | Rudinei Müller


A participação é um mecanismo de representação e participação
política. Mais que um simples documento, o Projeto Político-Pedagógico
é um documento de referência que tem o objetivo de guiar o contexto
em que a escola está inserida. Nesse sentido, todos os profissionais, jun-
tamente com a comunidade escolar, devem caminhar em uma mesma
direção, articulando ideias e ações para que, juntos, possam construir
um documento significativo a todos os que dela participem.
O envolvimento da comunidade escolar na participação do plane-
jamento da escola, bem como em seus aspectos educativos, traz a ideia
de construção coletiva na busca por uma educação de qualidade. Tais
ações podem ser motivadoras para propor diálogos, trocas e constru-
ções de ideias com todos os sujeitos da educação. Para tanto, a gestão
da educação, por intermédio de tais ações, fortalecerá os segmentos da
escola, favorecendo, dessa forma, as vivências democráticas. Assim:

Entende-se, nesta perspectiva, a democracia como forma de


aperfeiçoamento da convivência humana, construída históri-
ca e culturalmente, que deve reconhecer e lidar com as dife-
renças, ser inclusiva das minorias e das múltiplas identidades,
implica ruptura com as tradições e busca a instituição de no-
vas determinações (Luce; Medeiros, 2006, p. 16).

Nesse sentido, refletimos sobre a necessidade da colaboração


dos sujeitos de todos os segmentos da escola, sejam eles funcioná-
rios, docentes, crianças, coordenadora pedagógica, diretor ou famílias.
Cada um deles contribuirá por meio da sua visão de escola e pensando
em agregar o seu segmento como participante na busca por uma
escola transformadora.

Reformulação do Projeto Político-Pedagógico:


sob os princípios da Gestão Democrática voltada à Educação Infantil 401
O gestor tem um papel fundamental: discute junto com a comuni-
dade e toma decisões em conjunto, assumindo a responsabilidade pelas
propostas da escola, dialogando e exercendo, dessa forma, o exercício
da cidadania.
A Gestão Democrática da escola, contemplada como exigência no
seu Projeto Político-Pedagógico na Constituição Federal e na Lei de
Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei nº. 9.394/96), presume
que as relações de poder dentro das instituições de ensino devam ge-
rar integração, cooperação e participação e que, para isso, as propostas
precisam ser construídas e reconstruídas pelas próprias pessoas envol-
vidas com a escolarização.
O gestor, quando acredita e potencializa a participação da comuni-
dade nas tomadas de decisão da escola, remete seus esforços para criar
um processo de transformação e aprendizagem na comunidade na qual
está inserido. A construção, a execução e a avaliação do projeto são prá-
ticas sociais coletivas, fruto da reflexão e da consistência de propósitos
e intencionalidades. Para que a escola seja espaço e tempo de inovação
e investigação e se torne autônoma, é fundamental a opção por um re-
ferencial teórico-metodológico que permita a construção de sua identi-
dade e exerça seu direito à diferença, à singularidade, à transparência, à
solidariedade e à participação.
De acordo com Lück (2014), o gestor escolar tem a responsabili-
dade máxima quanto à execução da política educacional na organi-
zação, na dinamização e na coordenação das diligências das ações a
serem desenvolvidas para a concretização da educação; contudo, tal
característica não o coloca como eminente em relação às decisões
a serem tomadas, mas sim como a responsabilidade máxima de que

402 Fabiani Gedtel Erhart | Rudinei Müller


valores e concepções sistêmicas sejam considerados em seu processo
de gestão, possibilitando margens para que o espaço escolar seja social
e politicamente propício para que todos os envolvidos com a escola pos-
sam contribuir para a real efetivação do fazer pedagógico.
O Projeto Político-Pedagógico, como algo construído e recons-
truído coletivamente, é um dos elementos mais importantes para a
Gestão Democrática. Considerado o eixo central da organização do tra-
balho na escola, ele deve articular os aspectos administrativos (plano
de ação do diretor/escola e regimento escolar) aos aspectos pedagógi-
cos (currículo, métodos, avaliação, formação continuada) e ao objetivo,
assegurando a unidade teórica e metodológica no trabalho didático e
pedagógico, a unidade na organização do trabalho escolar e a coerência
entre o planejado e o executado nas práticas escolares.
A Gestão Democrática deve ser compreendida não apenas como
um princípio, mas também como um objetivo a ser atingido, para con-
figurar-se como uma prática educativa inserida no contexto da escola.

O PROJETO POLÍTICO-PEDAGÓGICO:
UM DOCUMENTO FRUTO DO PROCESSO
DE DISCUSSÃO E TOMADA DE DECISÕES
DO COLETIVO DA ESCOLA

O Projeto Político-Pedagógico mostra a visão macro do que a insti-


tuição escolar pretende ou idealiza fazer: objetivos, metas e estratégias
pensadas tanto no que se refere às suas atividades pedagógicas quanto
às funções administrativas. Assim, o PPP faz parte do planejamento e da

Reformulação do Projeto Político-Pedagógico:


sob os princípios da Gestão Democrática voltada à Educação Infantil 403
gestão escolar. A questão principal do planejamento é expressar a capa-
cidade de transferir o planejado para a ação. A existência de um PPP é
imprescindível para que a escola conquiste a sua autonomia. De acordo
com Veiga (2009), o Projeto Político-Pedagógico é um instrumento que
aponta para aquilo que vai ser feito, quando, de que maneira e por quem;
para chegar aos resultados, ele implica a valorização da identidade da
escola, dando responsabilidade a todos os seus agentes.
Dessa forma, o primeiro passo para a realização da pesquisa foi
conhecer o PPP da escola. A leitura dele surpreendeu, uma vez que o
referido documento havia sido revisto pela última vez no ano de 2012,
ou seja, estava há sete anos sem nenhuma alteração. A partir dessa ob-
servação, já é possível constatar que ele provavelmente não contempla
as reais necessidades da comunidade escolar e local, além de não con-
siderar a significativa mudança nos últimos anos que foi surgindo por
meio de discussões sobre a Base Nacional Comum Curricular (BNCC)
(Brasil, 2016).
Revisar e fazer alterações no Projeto Político-Pedagógico já exis-
tente parte do pressuposto de sua própria dinamicidade, do desejo e da
necessidade de não se conformar e de não conceber a educação como
estática. Alterar se torna tão audacioso quanto o fato de criar. “A elabo-
ração participativa do projeto político-pedagógico é uma oportunidade
ímpar de a comunidade definir em conjunto a Escola que deseja cons-
truir, avaliar a distância que se encontra do horizonte almejado e definir
os passos a serem dados para diminuir esta distância” (Vasconcellos,
2006, p. 27).

404 Fabiani Gedtel Erhart | Rudinei Müller


O PPP é um instrumento dinâmico. Embora seja elaborado com
objetivos definidos, em determinado tempo poderá e deverá sofrer
alterações, visto que está inserido em uma sociedade também di-
nâmica. Vasconcellos (2004, p. 20) cita diversas finalidades do PPP;
entre elas, destaca:

O resgate da intencionalidade da ação para assim possibilitar


a (re)significação do trabalho; o fato de ser um instrumento
de transformação da realidade; o envolvimento do conjunto
de pessoas em torno de uma mesma causa; o fortalecimento
do grupo para enfrentar conflitos; a colaboração na forma-
ção pessoal dos participantes e a construção da unidade su-
perando a fragmentação das práticas educacionais e possi-
bilitando a continuidade da linha de trabalho na instituição.

O Projeto Político-Pedagógico não é um fim, mas um instrumento


teórico-metodológico que exige sistematização e elaboração, não po-
dendo se reduzir à simples confecção de um documento. O PPP deve ser
disponibilizado, construído e reconstruído por todos aqueles que parti-
cipam da comunidade escolar e querem efetivamente uma mudança.
A escola não deve reelaborar o PPP apenas em razão de sua exi-
gência legal, mas sim a partir da necessidade de inovar as ações de-
senvolvidas no seu cotidiano, fazendo uma análise do que foi feito e do
que se pode vir a fazer por meio da interação de toda a comunidade
escolar, objetivando buscar sempre a melhoria da qualidade do ensino
e a criação de um ambiente propício à formação de cidadãos críticos
e participativos.

Reformulação do Projeto Político-Pedagógico:


sob os princípios da Gestão Democrática voltada à Educação Infantil 405
O Projeto Político-Pedagógico, portanto, deve ser um documento
que explica a intencionalidade da escola como instituição, indicando a
direção que se deseja tomar. Ao ser reelaborado, permite que os vários
atores envolvidos (comunidade escolar) expressem suas concepções e
seus pontos de vista acerca do seu cotidiano, tendo como base a defini-
ção dos objetivos comuns das ações partilhadas por eles.
No segundo momento, a busca pelos dados ocorreu a partir de uma
entrevista com a equipe gestora da escola referente ao planejamento de
cada etapa do processo de reelaboração e estruturação do Projeto Po-
lítico-Pedagógico. Esses profissionais logo relataram que o PPP da es-
cola se encontrava bastante desatualizado e que estavam em processo
de fazer sua reformulação. Salienta-se que a equipe gestora da escola
em questão demonstrou compreender a necessidade da escola de re-
visar e estruturar seu PPP e de adequá-lo à nova BNCC, contando com
a participação da comunidade escolar nesse processo. Longhi e Bento
(2006, p. 10) afirmam que, “ao propor a construção coletiva do PPP, a
instituição revela que está aberta a discussões e à reorganização das
suas ações a fim de atender às necessidades dos seus alunos e da comu-
nidade escolar em relação à educação proporcionada”.
A equipe gestora havia elaborado um cronograma com diversas
datas previstas de reuniões pedagógicas nas quais a reformulação do
PPP estava em pauta. Na primeira reunião, a coordenadora pedagógica
trouxe um texto que tratava da importância do PPP, o que ele representa
na escola e o que nele precisa constar. Realizou-se um levantamento dos
saberes da equipe escolar sobre o que é esse documento, e houve um
momento de discussão e conversa a respeito do assunto, analisando e

406 Fabiani Gedtel Erhart | Rudinei Müller


refletindo sobre o PPP já existente a fim de se fazerem os ajustes às no-
vas propostas pedagógicas para a Educação Infantil, incluindo a BNCC.
Vasconcellos (1999, p. 175) afirma que “antes de se iniciar a elabo-
ração do projeto político-pedagógico, é preciso uma etapa de sensibili-
zação, de motivação, de mobilização para com a proposta de trabalho,
a fim de que a tarefa seja assumida, tenha significado para a comuni-
dade”. Assim, fica reforçada a necessidade da participação efetiva dos
docentes na reelaboração do PPP como participantes do processo de
mudança, buscando, junto com a equipe, a qualidade do ensino.
Em conjunto, os profissionais elaboraram um questionário poste-
riormente encaminhado para as famílias, a fim de constatar as caracte-
rísticas específicas da realidade e o que pensam sobre a educação dos
seus filhos. Dessa forma, todos tiveram a oportunidade de expressar
seus anseios, ideias e contribuições a respeito da escolarização dos fi-
lhos. Longhi e Bento (2006) relatam que os pais podem até não possuir
embasamento teórico em suas ideias e pensamentos sobre o Projeto
Político-Pedagógico, mas conseguirão revelar suas dúvidas e anseios re-
ferentes à vida escolar dos seus filhos. Quando participam das questões
que envolvem a escola, eles começam a se enxergar como parte dela,
pertencentes a esse espaço coletivo. Os pais, ao se envolverem no pro-
cesso de reelaboração do PPP da escola, conseguirão ter uma dimensão
bem maior das intenções da escola para com seus filhos e das ações que
são realizadas dentro dela para o alcance das metas almejadas, sentin-
do-se participantes nesse processo.
No terceiro momento, após o retorno dos questionários, os profis-
sionais (professores e monitoras concursadas que participam dos mo-
mentos de reunião pedagógica) foram divididos em pequenos grupos, a

Reformulação do Projeto Político-Pedagógico:


sob os princípios da Gestão Democrática voltada à Educação Infantil 407
fim de realizarem uma análise dos dados coletados. Cada grupo analisou
e posteriormente compartilhou com os demais colegas os resultados
obtidos. Nessa etapa, porém, pôde-se constatar que os estagiários, as
serventes merendeiras e o estagiário de música que atuam na institui-
ção de ensino não estavam sendo envolvidos nos debates, discussões e
reflexões sobre a reestruturação do PPP.
Esse momento de reconstrução deve ser uma oportunidade de
toda a equipe pedagógica e demais funcionários que observam o pro-
cesso de ensino de perto demonstrarem suas inquietações e sugerirem
mudanças, estratégias e ações capazes de melhorar não apenas a gestão
da instituição, mas todo o trabalho realizado em prol da aprendizagem.

A participação é o principal meio de assegurar a Gestão De-


mocrática da escola, possibilitando o envolvimento de profis-
sionais e usuários no processo de tomada de decisões e no
funcionamento da organização escolar. Além disso, propor-
ciona um melhor conhecimento dos objetivos e metas, estru-
tura e organização e de sua dinâmica, das relações da escola
com a comunidade, e favorece uma aproximação (Libâneo,
2004, p. 102).

A democracia também consiste em integrar os agentes envolvidos


diretamente na execução do projeto. Os anseios e as dúvidas da equipe
de trabalho da escola devem ser ouvidos e compreendidos. Nesse mo-
mento, tanto os que contribuirão embasados em teorias quanto os que
contribuirão com base em suas experiências devem se sentir integra-
dos à proposta de construção e de revisão e, não menos importante, à
execução do projeto (Diniz, 2013).

408 Fabiani Gedtel Erhart | Rudinei Müller


No quarto momento, planejava-se realizar uma entrevista com os
profissionais da instituição de ensino; porém, em razão da pandemia,
que fez com que nos afastássemos do espaço escolar, isso não foi possí-
vel. Repensando a proposta, optou-se por desenvolver um questionário,
enviado por e-mail, que foi apresentado aos profissionais da escola em
uma reunião pedagógica realizada de forma virtual pelo Google Meet.
Durante esse período de pandemia, com as reuniões acontecendo de
forma virtual, ocorreu também a participação dos estagiários, fato que
anteriormente não acontecia, mas que deveria continuar ocorrendo,
pois a participação e o envolvimento deles são de suma importância.
O questionário foi enviado para professores, monitores concursa-
dos e estagiários. Obtivemos o retorno de todos os questionários e, a
partir deles, realizamos um levantamento e uma reflexão sobre os da-
dos coletados.
Os questionários compostos de perguntas abertas caracterizam-
-se por serem preenchidos pelos sujeitos da pesquisa, os quais respon-
dem como querem, utilizando seu próprio vocabulário, fornecendo os
pormenores e fazendo os comentários que consideram certos, pos-
sibilitando investigações mais profundas e precisas (Freixo, 2009). Os
colaboradores dessa investigação foram oito professoras concursadas,
cinco monitoras concursadas e seis estagiárias contratadas que atuam
na instituição de ensino. Após a leitura dos questionários, foram feitas
as respectivas análises e constatações em torno de uma questão princi-
pal, que é o processo de reelaboração do Projeto Político-Pedagógico da
escola na concepção e na perspectiva democráticas. Segundo Gil (1999,
p. 168), essa etapa “tem como objetivo organizar e sumariar os dados

Reformulação do Projeto Político-Pedagógico:


sob os princípios da Gestão Democrática voltada à Educação Infantil 409
de tal forma que possibilitem o fornecimento de respostas ao problema
proposto para investigação”.
Conforme se observa no Gráfico 1, os professores, em sua maioria,
têm atuado na função docente pelo período entre um e cinco anos e, na
sua minoria, há menos de um ano. Esse é um aspecto relevante, isto é,
o professor já possuir vínculo com a comunidade local, o que vem a ser
imprescindível no sentido de criar estratégias e ações que possibilitem
uma educação de qualidade.

Gráfico 1 – Tempo de atuação dos profissionais na educação.

Fonte: Elaborado pelos autores.

Em relação à participação no processo de reformulação do PPP, a


maioria participou desse processo.

Gráfico 2 – Participação dos profissionais no processo de reelaboração do PPP.

Fonte: Elaborado pelos autores.

410 Fabiani Gedtel Erhart | Rudinei Müller


Percebe-se que não houve o envolvimento e a participação de to-
dos. Um dos prováveis motivos é o fato de as discussões terem ocorrido
apenas em momentos de reuniões pedagógicas, das quais os estagiários
não participam, mas apenas os professores e monitores concursados e a
equipe gestora. Apesar desse dado, todos relatam ter conhecimento do
documento, o Projeto Político-Pedagógico, conforme mostra o Gráfico 3.

Gráfico 3 – Conhecimento dos profissionais sobre o PPP da instituição de ensino.

Fonte: Elaborado pelos autores.

Em relação ao processo de reformulação do PPP, os profissionais


confirmam que há muito envolvimento e participação dos professores
e da equipe diretiva. Uma profissional enfatiza: “Participam pais e pro-
fessores. Acontecem reuniões pedagógicas, com discussões, leituras e
entrevistas com os pais” (Professor A). Outra profissional relata: “Nós,
os professores, nos reunimos e debatemos o documento de acordo com
a faixa etária, damos sugestão, mudamos ao discordamos, entre outras
coisas” (Professor B).
Percebe-se que as discussões são fomentadas basicamente nos
momentos das reuniões pedagógicas. E nota-se que há um processo
de sensibilização que permite o envolvimento e o compromisso dos do-

Reformulação do Projeto Político-Pedagógico:


sob os princípios da Gestão Democrática voltada à Educação Infantil 411
centes (professores e monitores concursados) da escola a participarem
desse processo de reformulação.
A reelaboração do Projeto Político-Pedagógico traduz a vontade
de mudar, repensar o que já se tem de concreto, permitindo avaliar o
que foi feito, além de projetar mudanças com foco sempre na aprendi-
zagem dos educandos. Assim, ele é o resultado de um processo com-
plexo de discussão, planejamento, estudo, reflexão e aprendizagem
de trabalho coletivo. A reflexão em torno do PPP exige a identificação
da filosofia político-pedagógica da comunidade, que significará todo o
planejamento e a organização escolar. Nesse processo, a escola atua
como um espaço de construção coletiva no qual o poder de decisão e as
responsabilidades são compartilhados, objetivando difundir no âmbito
escolar uma nova postura pertinente a um ensino de qualidade. Dessa
forma, a Gestão Democrática só se faz pelo exercício da interação, da
reflexão e da ação coletiva.
A revisão do PPP envolve questões que vão além do simples fato
de se modificar algo. É complexa: envolve esforço e vontade de fazer
e permitir que outros façam. Ela parte de uma visão que precisa ser
descentralizadora para ser democrática e eficaz no meio em que se
quer atuar.
Quanto à participação envolvendo todos os segmentos da escola,
constata-se uma carência nesse aspecto, pois nesse processo o en-
volvimento de todos é fundamental e imprescindível. Libâneo (2004)
defende que a participação é o principal meio de assegurar a Gestão
Democrática, possibilitando o envolvimento de todos os integrantes da
escola no processo de tomada de decisões e no funcionamento da orga-
nização escolar.

412 Fabiani Gedtel Erhart | Rudinei Müller


Novamente, um dos possíveis motivos pelos quais não houve o en-
volvimento e a participação de todos é o fato de as discussões terem
sido fomentadas apenas em reuniões pedagógicas, como destacam os
docentes. E, também, em nenhum momento é mencionada a realização
de reuniões e discussões com os membros do Conselho Escolar e a As-
sociação de Pais e Mestres (APM). Pimenta (1991, p. 79) acredita que o
Projeto Político-Pedagógico “[...] resulta da construção coletiva dos ato-
res da educação escolar. Ele é a tradução que a escola faz de suas finali-
dades, a partir das necessidades que lhe estão colocadas, com o pessoal
– professores/alunos/equipe pedagógica/pais – e com os recursos de
que dispõe”.
Dessa forma, não é possível construir um Projeto Político-Peda-
gógico coletivo sem a efetivação de uma Gestão Democrática; ao con-
trário, é por meio dela que se constrói um projeto participativo. Deve
haver o comprometimento de toda a equipe escolar, envolvendo as
ideias e propostas sugeridas, pois é nesse documento que devem estar
os princípios e as diretrizes para o funcionamento eficaz das atividades
a serem desempenhadas.
Quando questionados se consideram o PPP um documento essen-
cial, na totalidade, os participantes responderam que sim. Uma profis-
sional relata:

Certamente, o PPP é um guia para a comunidade escolar.


Aliás, já que se refere a todos que fazem parte do corpo es-
colar, deveria ser do conhecimento de todos também. O que
acontece, por vezes, é que o documento fica limitado apenas

Reformulação do Projeto Político-Pedagógico:


sob os princípios da Gestão Democrática voltada à Educação Infantil 413
à gestão e professores. Em síntese, o Projeto Político-Peda-
gógico é um norte para a organização e processos escolares,
por isso, essencial (Professor C).

Percebe-se que o processo de reformulação do PPP fornece sub-


sídios para uma Gestão Democrática, que ainda não é contemplada
plenamente. Deveriam ocorrer outros momentos de discussão que não
somente nas reuniões pedagógicas, promovendo, dessa forma, debates
e discussões envolvendo todos os segmentos da escola (equipe gestora,
professores, monitores, estagiários, demais funcionários, famílias e co-
munidade escolar). Somente assim seria possível a participação de to-
dos os envolvidos, permitindo a articulação entre os diferentes autores
do processo educativo e promovendo um diálogo com todos, por meio
de discussões e reflexões que contribuíssem em todo o processo. O PPP
é, para Veiga (2004, p. 56), “o resultado de um processo complexo de
debate, cuja concepção demanda não só tempo, mas também estudo,
reflexão e aprendizagem de trabalho coletivo”.
Nos processos educacionais, para a garantia de mecanismos e
condições para que espaços de participação e descentralização de
poder possam ocorrer, a Gestão Democrática deve assumir feições
particulares, tornando fundamental o que dispõe o artigo 14 da LDB :

Os sistemas de ensino definirão as normas da Gestão Demo-


crática do ensino público na educação básica, de acordo com
as suas peculiaridades e conforme os seguintes princípios: I -
participação dos profissionais da educação na elaboração do
projeto pedagógico da escola; II - participação das comunida-
des escolar e local em conselhos escolares ou equivalentes
(Brasil, 1996, p. 15).

414 Fabiani Gedtel Erhart | Rudinei Müller


Essa potencialidade deve fazer parte das atividades desenvolvi-
das nas escolas cotidianamente para buscar, na esteira da participa-
ção, ganhar relevo no fortalecimento do vínculo e da parceria entre
todos os envolvidos.
Quando questionados sobre a importância e a finalidade do PPP,
os profissionais expõem em sua totalidade que ele é um documento
fundamental e de extrema importância. E isso pode ser observado no
relato de dois profissionais:

O PPP tem muita importância e finalidade, pois é a identida-


de da escola, reflete em suas páginas a realidade escolar da
comunidade em que está inserida. E é acerca dessa realidade
que ele tem valores, objetivos, metas e ideais a serem alcan-
çados, a curto e longo prazo, por todos os envolvidos no pro-
cesso de ensino e aprendizagem e por todos os membros da
escola (Professor D).

O PPP indica quais são os objetivos da escola e o que ela vai


fazer para alcançá-los, ou seja, é um importante guia para
toda a comunidade escolar, por isso, é tão relevante para a
instituição (Professor E).

Em suas respostas, nota-se que esses profissionais utilizam o Pro-


jeto Político-Pedagógico como referência para a elaboração do plane-
jamento diário em sala de aula. Vamos destacar os apontamentos de
outras duas profissionais:

Ele dá suporte ao professor em seu planejamento, pois orien-


ta, tem objetivos, metas e dá o caminho ao que é necessário
atingir com os alunos, os quais, através desse olhar e compro-

Reformulação do Projeto Político-Pedagógico:


sob os princípios da Gestão Democrática voltada à Educação Infantil 415
metimento do professor, conseguem caminhar junto, se de-
senvolvendo, realizando aprendizados e adquirindo conheci-
mentos com significância (Professor F).

É um excelente parâmetro e uma ferramenta fundamental


para o planejamento do professor. Baseando-se no PPP para
a elaboração do planejamento, o docente assegura coerên-
cia com a proposta da escola e garante que a aprendizagem
das crianças seja baseada nesses princípios, alcançando seu
potencial máximo (Professor G).

Diante disso, destaca-se um aspecto positivo, pois os professores


conseguem entender a função e as possibilidades que o PPP oferece
para uma prática objetiva e focada, visando ao aprendizado, conside-
rando seu caráter de agente transformador.
Em um último momento, realizou-se uma reunião virtual pelo
Google Meet, na qual a equipe gestora compartilhou com o grupo de
profissionais da escola os dados coletados, as reflexões e as estraté-
gias para colocar em ação o documento que foi construído por todos,
concluindo-se, dessa forma, todo o processo de reestruturação do PPP.
Nesse sentido,

É preciso e até urgente que a escola vá se tornando em espa-


ço escolar acolhedor e multiplicador de certos gostos demo-
cráticos como o de ouvir os outros, não por puro favor, mas
por dever, o de respeitá-los, o da tolerância, o do acatamen-
to às decisões tomadas pela maioria a que não falte contu-
do o direito de quem diverge de exprimir sua contrariedade
(Freire, 1995, p. 91).

416 Fabiani Gedtel Erhart | Rudinei Müller


Nesse contexto, é importante o trabalho participativo e a valori-
zação de ideias novas trazidas pela comunidade escolar para que todos
se sintam integrantes do processo educativo. E é essencial implementar
projetos que visem à melhoria do processo de ensino-aprendizagem por
meio de ações que priorizem o desenvolvimento integral do aluno e a
participação efetiva de todos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nesta pesquisa, buscou-se conhecer as etapas do processo de re-


formulação do PPP com base nos princípios da Gestão Democrática e
sua consonância com a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) no
contexto da educação pública. Como resultado desta investigação,
pode-se aferir que houve momentos de leitura, estudo e reflexão, in-
cluindo-se no currículo estratégias e ações que contemplam a BNCC.
Porém, notou-se que não houve a participação de todos os envolvidos
nesse processo. Os estagiários, as merendeiras, os membros dos conse-
lhos escolares e a APM em nenhum momento foram citados como par-
ticipantes nas discussões e reuniões realizadas. Dessa forma, podemos
afirmar que a Gestão Democrática não é contemplada plenamente, pois
ela tem como objetivo principal assegurar e promover a participação de
todos os membros da instituição na tomada de decisões.
A efetiva participação dos integrantes do ambiente escolar – a
sua atuação consciente de fato – contribui para construir ou modifi-
car a realidade na qual estão inseridos, de modo que acabam atuando
como sujeitos ativos nas tomadas de decisões coletivas, envolvendo-se

Reformulação do Projeto Político-Pedagógico:


sob os princípios da Gestão Democrática voltada à Educação Infantil 417
nos assuntos pertinentes à escola e ao processo de ensino-aprendiza-
gem como um todo. Desse modo, acredita-se que seja necessário bus-
car a participação e o envolvimento de todos, sejam pais, professores,
monitores, auxiliares, equipe gestora, conselho escolar e APM, nas
questões relacionadas ao processo de reformulação do PPP, possibili-
tando assim uma Gestão Democrática, com o planejamento participa-
tivo do contexto escolar. Nesse sentido, é preciso que compreendam o
agir coletivo e participativo em favor da formação de uma Gestão De-
mocrática, observando a importância do PPP para a qualidade do pro-
cesso de ensino-aprendizagem das crianças.
Pela pesquisa, foi possível constatar que a escola possuía um PPP,
mas que ele se encontrava bastante desatualizado, não correspondendo
ao perfil atual da instituição. Isso nos leva à compreensão de que a escola
não se baseia nesse documento para a realização de suas atividades pe-
dagógicas. A falta de um PPP atualizado pode gerar várias falhas no en-
sino, pois ele é um instrumento que precisa estar sempre passando por
revisões e atualizações, no sentido de se adequar à realidade da escola.
Ademais, constatou-se a participação dos estagiários nas reuniões
pedagógicas durante o período da pandemia (embora não anterior-
mente, durante o processo de reformulação do PPP). Acreditamos que
isso precisa continuar acontecendo, pois esses profissionais devem estar
envolvidos e ser ouvidos a respeito do que pensam e no que acreditam.
A construção e a reelaboração de um Projeto Político-Pedagógico
e sua vivência não são processos fáceis, pois os acontecimentos esco-
lares são dinâmicos, fazendo-nos, a cada dia e a cada momento, definir
prioridades de funcionamento com aquilo que percebemos mais ur-
gente; mesmo que saibamos o quanto o processo de construção do PPP

418 Fabiani Gedtel Erhart | Rudinei Müller


na escola é importante e necessário para direcionar nossas ações, aca-
bamos por deixá-lo em segundo plano. Isso dificulta ainda mais nosso
trabalho, pois não discutimos adequadamente os caminhos que quere-
mos e podemos seguir na solução dos problemas e nos desarticulamos,
enfraquecendo assim nossas ações, pois a construção coletiva do PPP
articula e compromete a todos, respaldando o trabalho pedagógico.
A partir dessa vivência sobre a reformulação do PPP, que é sem-
pre inacabada, mas que, nesse caso, avançou menos do que o planejado
e o desejado, prosseguimos com os estudos de elaboração por enten-
dermos que, mesmo lentamente, é de suma importância chegarmos
à finalização de um documento que, com certeza, não será fechado,
mas indicará os caminhos que a escola quer seguir para o desenvolvi-
mento de alunos autônomos capazes de conviver em uma sociedade
repleta de diversidades.
A construção e a reelaboração do Projeto Político-Pedagógico
são condições nas quais se afirma a identidade da escola como espaço
pedagógico propício à construção do conhecimento e da cidadania
para a transformação individual, institucional e da comunidade local.
Dessa forma, o PPP precisa estar em permanente avaliação, em todas
as suas etapas e durante todo o processo, a fim de garantir que seja
um documento transformador institucional e socialmente, que pode
resultar em melhoria das instituições de ensino e da aprendizagem
das crianças.

Reformulação do Projeto Político-Pedagógico:


sob os princípios da Gestão Democrática voltada à Educação Infantil 419
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Reformulação do Projeto Político-Pedagógico:


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422
12
Projeto
Político-Pedagógico:
uma vivência coletiva
para a transformação
do cotidiano na
escola da infância,
para além da
pandemia
da covid-19

Eliana Regina Cardoso de Rosa1


Fabiana Soares Mathias2

1 Especialista em Gestão da Educação pela Universidade Federal do Rio


Grande do Sul, Polo Santo Antônio da Patrulha.
E-mail: ercr59@gmail.com

2 Mestre em Políticas e Gestão de Processos Educacionais pela Universida-


de Federal do Rio Grande do Sul. Professora na Rede Municipal de Ensino de
Porto Alegre (RS).
E-mail: fabianasmathias@gmail.com
INTRODUÇÃO

O presente artigo tem por finalidade apresentar a síntese do pro-


jeto de intervenção do Curso de Especialização em Gestão da Educação
da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Polo Santo An-
tônio da Patrulha (RS).
A experiência vivenciada trata do estudo realizado pela autora na
participação in loco da reavaliação do Projeto Político-Pedagógico (PPP)
da Escola Municipal de Educação Infantil Somos Todos Amigos da Na-
tureza (EMEI STAN), localizada no município de Torres (RS), cujo pro-
cesso se iniciou em fevereiro de 2019, com discussões que objetivaram
compreender de que forma o PPP era vivenciado na prática docente co-
tidiana da escola, baseando-se na perspectiva democrática da partici-
pação através do envolvimento da comunidade escolar. Tal reavaliação
é um processo que acontece a cada dois anos ou sempre que a comuni-
dade indica novas necessidades. Assim, com base na participação dos
envolvidos nas discussões e reflexões acerca da “escola que temos” e da
“escola que queremos construir”, o resultado da ação foi apresentado ao
Conselho Municipal de Educação (CME) em novembro do mesmo ano.
A revisão do PPP dessa escola foi motivada pelas inquietações
emergentes advindas da gestão, dos docentes, dos pais e das crianças
na busca da compreensão sobre o fazer pedagógico da escola, que insti-
garam as seguintes questões: o que pensam as pessoas da comunidade
sobre o PPP e as práticas pedagógicas da escola? O que pensam os pro-
fessores de bebês sobre suas práticas à luz desse documento? O que é
o projeto pedagógico para os pais dos bebês? E para os pais das crianças
que frequentam a escola como um todo? Diante das indagações, per-

424 Eliana Regina Cardoso de Rosa | Fabiana Soares Mathias


cebeu-se a necessidade de reflexão sobre as práticas desenvolvidas na
escola e a organização da reavaliação do PPP, com base no aprofunda-
mento das leituras e dos estudos empreendidos no curso de especiali-
zação supracitado, do qual a autora participou, trazendo a possibilidade
de uma contribuição efetiva para o estabelecimento de uma forma mais
real e próxima do PPP com as práticas na escola.
O movimento da reavaliação desse instrumento surgiu a partir de
abordagens realizadas com pais, funcionários e professores na entrada
da escola e no refeitório e, principalmente, com as crianças nos espaços
internos da instituição e nos encontros e desencontros da própria prá-
tica na rotina do educandário. Aqui, aflora a intenção de situar o pro-
blema que o desencadeou: de que modo acontece a relação do PPP com
a prática docente da escola em questão na perspectiva da participação?
Nesse contexto, o objetivo central foi compreender a relação do
PPP com a prática dos docentes da escola, buscando especificamente:

• verificar como o pedagógico se apresenta no PPP e como é refe-


rendado na prática docente cotidiana da escola;

• identificar como as indicações da legislação vigente (Brasil, 2009a)


contribuem para a transformação da prática pedagógica;

• reconhecer ações básicas da equipe gestora e dos docentes rela-


cionadas ao PPP que apresentam melhoras no processo de ensino
e aprendizagem;

• comparar o saber e o fazer do documento (PPP) com o saber e o


fazer da equipe gestora e dos docentes da escola.

Projeto Político-Pedagógico: uma vivência coletiva para a transformação


do cotidiano na escola da infância, para além da pandemia da covid-19 425
Para atender os objetivos propostos, foi utilizada a metodologia
inspirada na pesquisa-ação pautada por Michel Thiollent (2011), através
de análise documental, entrevistas, encontros, reuniões, assembleias e
manejo de técnicas de coleta de dados, resumos de reuniões pedagógi-
cas, entrevistas e levantamento de pesquisa com a comunidade.
No intuito de efetivar a análise, utilizou-se o referencial de base
para a investigação dos assuntos indicados, nos subsídios teóricos de
Veiga (2013), Rocha e Kramer (2013), Libâneo (2018), Oliveira et al.
(2019) e Ball e Mainardes (2011), cujas contribuições são pertinentes
ao campo deste trabalho. Também se manteve diálogo constante com
outros autores visitados para a manutenção da proposta.
Para tanto, o artigo está organizado em seções, começando com
uma breve apresentação do município – cenário da história – que,
desde 2013, diante da necessidade urgente de implementação das Di-
retrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil (DCNEI), ini-
ciou um processo de reconhecimento da Educação Infantil enquanto
campo de estudo, pesquisa e parte integrante da Educação Básica,
legitimando o direito das crianças a uma educação de qualidade. Essa
caminhada durou cinco anos e oportunizou a discussão e a elaboração
dos PPPs das escolas da Rede de Ensino Municipal, num processo que
foi internalizado pela comunidade escolar e permitiu, no ano seguinte,
a reavaliação desse documento. Importa dizer que as diretrizes já esta-
vam em vigor desde 2009, mas não estavam vigorando efetivamente
na cidade, o que permitiu o início dos estudos das DCNEI, a datar do
comprometimento da gestão municipal daquele ano para uma nova
proposta de Educação Infantil.

426 Eliana Regina Cardoso de Rosa | Fabiana Soares Mathias


Em continuidade, na segunda seção, apresentamos a EMEI STAN,
uma das unidades da Rede do município, e sua organização na reavalia-
ção do PPP, com a intenção de trazer uma visão panorâmica do contexto
deste trabalho em relação à participação de todos, a partir da inser-
ção da autora em um novo campo de atuação – enquanto professora,
orientadora educacional e participante da coordenação pedagógica
da escola –, a qual, com a direção da instituição, iniciou um trabalho de
envolvimento de toda a comunidade escolar como partícipe integrada
e incorporada à escola, em processo de participação democrática que
inspirou a reavaliação do PPP. Desse modo, a escola assumiu o desejo,
já anunciado, de uma proposta pedagógica real que atingisse o maior
número de pessoas, garantindo as indicações do coletivo.
A terceira seção apresenta alguns registros da participação da co-
munidade escolar, produzidos no diálogo constante com os teóricos que
fundamentaram as ações e reflexões. Também se apresentam as elabo-
rações construídas pelo desvio da rota. Inusitadamente, vivenciou-se
uma ruptura da continuidade, já elaborada em 2019, porém não encer-
rada, com a interrupção das aulas presenciais no dia 19 de março de
2020 pela ameaça da covid-19. Por conseguinte, houve a necessidade
de estruturar um novo plano de trabalho, denominado Plano de Ação
Flexível (PAF),3 que foi tomando forma no decorrer do processo, diante
da reflexão necessária sobre o papel da escola na nova configuração
que emergia.

3 PAF é um plano da escola com características do momento, pois a cada semana preparamos es-
tudos e ações para as necessidades que surgiam no contexto atual.

Projeto Político-Pedagógico: uma vivência coletiva para a transformação


do cotidiano na escola da infância, para além da pandemia da covid-19 427
Por fim, foram tecidas algumas considerações, não no sentido de
finalização, mas de condição provisória para a manutenção de um PPP
construído em determinado momento e por determinado grupo, pois,
ao se elaborar um trabalho coletivo, há que se ter consciência do en-
volvimento desses sujeitos enquanto seres provisórios diante da sua
própria incompletude (Freire, 1996).

UM RECORTE DO CONTEXTO HISTÓRICO DA


EDUCAÇÃO INFANTIL DO MUNICÍPIO DE TORRES
(RS)

O município de Torres, localizado no Litoral Norte do Rio Grande


do Sul, divisa com o estado de Santa Catarina, possui população resi-
dente de 34.656 habitantes, conforme os dados do Instituto Brasileiro
de Geografia e Estatística (IBGE, 2010). A economia da cidade está cen-
trada em comércio, indústria, construção civil, artesanato e turismo,
sendo a pesca a atividade principal das populações de baixa renda e ri-
beirinha.4 A água é a maior riqueza do município.
As famílias têm uma dinâmica característica das cidades litorâneas
– chegam à cidade no período de alta temporada em busca de trabalho
e, no período de baixa temporada, migram para as cidades mais próxi-
mas, ocasionando alta rotatividade. Essa dinâmica não garante a perma-
nência dessas pessoas, visto que o mercado é escasso na oferta de labor
em decorrência da falta de postos de trabalho, fazendo com que muitas
crianças não permaneçam na escola e acabem por não completar o ano
letivo. A esse contexto, integra-se a Rede de Educação Municipal, que

4 População da beira dos rios.

428 Eliana Regina Cardoso de Rosa | Fabiana Soares Mathias


é formada por oito escolas de Ensino Fundamental e nove escolas de
Educação Infantil.
Em janeiro de 2013, pós-processo eleitoral que resultou na posse
da candidata da Frente Popular, estabeleceu-se, conforme plano de
governo, uma política de diálogo com a comunidade torrense com a
meta de conseguir sua participação para uma educação de qualidade
e igualitária.
No esforço de compreender a realidade encontrada, a Secretaria
Municipal de Educação (SME) elaborou um diagnóstico da Rede de Edu-
cação Infantil do município, juntamente com as escolas, para a constru-
ção de uma gestão participativa na primeira etapa da Educação Básica,
cuja operacionalização das Diretrizes Curriculares Nacionais para a
Educação Infantil objetivou atender, de forma qualitativa, as crianças.
Surge, nesse momento, a necessidade de uma reorganização, tanto da
proposta pedagógica da SME para a Educação Infantil quanto das estru-
turas das unidades escolares e seus projetos pedagógicos na totalidade.
Para essa configuração, a primeira condição estava ligada à ação
das diretoras no processo de ingresso e matrícula das crianças nas es-
colas da rede. Na época, as diretoras recebiam nas suas unidades a so-
licitação de vaga e matrícula, o que gerava um problema para mapear a
matrícula das crianças, em virtude da solicitação de vagas pelas famílias
em várias escolas, resultando em um número de crianças maior do que
a quantidade real; nesse contexto se sobressai a falta de clareza quanto
aos critérios desse acesso às vagas. Para atender essa primeira ques-
tão, foi realizada a triagem de todas as famílias juntamente com as es-
colas, e a solicitação de vagas ficou centralizada na SME; criou-se um
mapeamento família-escola-residência que permitiu a estruturação e a

Projeto Político-Pedagógico: uma vivência coletiva para a transformação


do cotidiano na escola da infância, para além da pandemia da covid-19 429
vinculação da Central de Vagas (CV) na SME, com o objetivo de organi-
zar a “fila”,5 a transparência do ingresso, a permanência e o acompanha-
mento das matrículas das crianças. Essa ação estimulou o conhecimento
de demandas da comunidade do entorno das escolas, bem como supriu
o atendimento imediato das necessidades emergenciais via visita social;
ao mesmo tempo, imprimiu transparência ao processo, com a publica-
ção da lista de cadastro e espera no site oficial da Prefeitura Municipal
de Torres, com acesso das famílias.
Uma contribuição importante discutida com escolas, gestores, do-
centes e pais estava ligada aos projetos de ampliação e investimentos
das escolas a partir da CV e das contribuições de cada comunidade. O
reforço dessa ação ficou alinhado, estrategicamente, às crianças oriun-
das das famílias de baixa renda e vulnerabilidade social que recebiam
orientações e eram encaminhadas, quando necessário, à Assistência
Social. Importa mencionar que a estrutura física das unidades não ab-
sorvia toda a demanda devido ao aumento significativo de solicitações
de vagas na Rede Municipal. Essa circunstância foi ocasionada pela
falta de projeção estruturada pelo município, em médio e longo prazo,
de acompanhamento e de estudos sobre a demanda das vagas. A com-
plexidade estava em atender imediatamente as condições dos espaços
dessas escolas para as crianças.
Ainda, nesse início de diagnóstico, convém pontuar que as escolas
de Educação Infantil torrenses apresentavam estrutura física precária,
pois os espaços não tiveram manutenção adequada; inclusive, mesmo
nas novas escolas a infraestrutura não comportava a demanda. O que

5 A fila acaba por ser uma estratégia de garantir o acesso a todas as crianças sem escolhas ou
prioridades de interesses políticos particularizados.

430 Eliana Regina Cardoso de Rosa | Fabiana Soares Mathias


parecia ser um fator de amenização do quadro, quando a educação local
foi contemplada com uma unidade escolar Proinfância (modelo padrão
do Governo Federal, construída desde 2009 e autorizada somente em
2014), ela não se consumou. Esse cenário demonstrava possível desin-
teresse e falta de comprometimento com a primeira etapa da Educação
Básica. Outra condição que dificultava o atendimento qualitativo às
crianças estava ligada ao número excessivo de alunos, com idades dis-
tintas, em pequenos espaços e ao movimento intenso de matrículas.
As DCNEI estabeleciam orientações que não eram aderidas pela
Educação Infantil do município. Dentre elas, podemos citar a data corte
(31 de março), fixada através da Resolução nº. 5, de 17 de dezembro de
2009 (Brasil, 2009). Somado a isso, os docentes desse nível de ensino
sentiam-se diferentes em relação aos educadores do Ensino Funda-
mental, pelo fato de não existir um calendário previsto para o funcio-
namento do ano letivo das escolas infantis, não havendo uma referência
única para a rede. Tal fator encorajou os docentes efetivos do quadro
de pessoal a optar pelo Ensino Fundamental, com o intuito de garantir
o direito a férias no período de janeiro, recesso para acompanhar seus
filhos e parentes, bem como os feriados, visto que nas EMEIs a contem-
plação dos direitos ocorria somente no mês de março de cada ano, co-
letivamente, sem oportunizar às famílias dos servidores o convívio com
os seus. Essas razões facilitaram o assistencialismo, sobrepondo-se aos
aspectos educacionais em todas as instituições, sem a participação dos
envolvidos nos processos decisórios da escola.
A partir do exposto, o planejamento da SME com o coletivo das esco-
las iniciou um movimento para a participação efetiva das pessoas envol-
vidas diretamente com a Educação Infantil: a comunidade escolar como

Projeto Político-Pedagógico: uma vivência coletiva para a transformação


do cotidiano na escola da infância, para além da pandemia da covid-19 431
um todo. Dessa forma, percebeu-se que a linha pedagógica apresentada
até então estava desarticulada das referências indicadas nas DCNEI e,
consequentemente, das propostas de trabalho para com as crianças e os
princípios da Gestão Democrática. Do mesmo modo, os educadores de-
monstravam um sentimento de não pertencimento à rede, pois os inves-
timentos e prestígios, segundo depoimentos dos envolvidos, estavam
ligados ao Ensino Fundamental. Para tanto, a indicação da proposta do
calendário, em 2013, torna-se realidade e uma construção coletiva que
se propõe a atender o plano pedagógico dos profissionais da Educação
Infantil e cumprir o que preconiza a legislação.
A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN) (Bra-
sil, 1996, p. 12), que regulamenta a Educação Infantil e a define como a
primeira etapa da educação básica, no artigo 29, afirma que essas ins-
tituições têm por “finalidade o desenvolvimento integral da criança até
5 (cinco) anos, em seus aspectos físico, psicológico, intelectual e social,
complementando a ação da família e da comunidade”. Dessa forma, a
Educação Infantil é reconhecida como integrante da educação básica,
no sentido da importância que essa etapa tem nos primeiros anos da
vida das crianças; também contempla a continuidade do processo es-
colar, como afirma o artigo 22: “a educação básica tem por finalidades
desenvolver o educando, assegurar-lhe a formação comum indispensá-
vel para o exercício da cidadania e fornecer-lhe meios para progredir no
trabalho e em estudos posteriores” (Brasil, 1996, p. 17).
A escola, nessa etapa, está centrada no desenvolvimento integral
das crianças, com fundamentos pedagógicos que possibilitem o campo
de atuação dos educadores e a participação das crianças e suas famílias
na construção da qualidade das vivências, experiências e decisões. Aqui,

432 Eliana Regina Cardoso de Rosa | Fabiana Soares Mathias


primeiramente, é necessário entender que a creche e a pré-escola têm
uma função de complementação, e não de substituição da família, como
muitas vezes se entende; assistir as crianças e as necessidades das famí-
lias trabalhadoras do município se apresentava, até então, como única
função da Educação Infantil. Desse modo, o desafio se coloca na divul-
gação e no estudo da legislação e de conceitos que envolvem a prática
com crianças da faixa etária citada.
Essas ideias remetem à importância da existência de profissionais
qualificados nessa fase da educação básica, como menciona o artigo 62
da LDBEN, que estabelece a formação dos educadores para essa etapa
da educação básica da seguinte forma:

Art. 62. A formação de docentes para atuar na educação bá-


sica far-se-á em nível superior, em curso de licenciatura, de
graduação plena, em universidades e institutos superiores de
educação, admitida, como formação mínima para o exercício
do magistério na educação infantil e nos cinco (cinco) primei-
ros anos do ensino fundamental, a oferecida em nível médio
na modalidade normal (Redação dada pela Lei nº 12.796,
de 2013).

§ 1º A União, o Distrito Federal, os Estados e os Municípios,


em regime de colaboração, deverão promover a formação
inicial, a continuada e a capacitação dos profissionais de
magistério (Incluído pela Lei nº 12.056, de 2009) (BRASIL,
1996, p. 34).

Projeto Político-Pedagógico: uma vivência coletiva para a transformação


do cotidiano na escola da infância, para além da pandemia da covid-19 433
Nesse sentido, a formação dos professores da Educação Infantil
perpassa essa base inicial e se funda na prática constante da pesquisa
crítica e reflexiva desses educadores no cotidiano escolar. Dessa ma-
neira, garante-se efetivamente que o profissional possa se adequar às
regulamentações a serem contempladas no ano letivo em vigência.
Ao encontro dessa concepção está a redação da Lei n. 12.796, de
4 de abril de 2013, que altera a LDBEN e passa a definir que a carga ho-
rária mínima anual deve ser de 800 horas, distribuídas por um mínimo
de 200 dias de trabalho educacional (Brasil, 2013). Porém, segundo a
Resolução n. 5, de dezembro de 2009 (DCNEI), o atendimento far-se-á
de zero a três anos, em creches com proposta pedagógica própria, ob-
servando os princípios do cuidar e do educar. Para as crianças de pré-
-escola, quatro a cinco anos são previstos como forma de garantir a
continuidade no processo de aprendizagem; ou seja, o eixo do cuidar e
educar na Educação Infantil definido em linhas gerais na LDBEN (Brasil,
1996) não contribuía efetivamente para uma mudança significativa da
prática escolar do município. De todo modo, a Constituição da Repú-
blica Brasileira de 1988 (Brasil, [2016]), o Estatuto da Criança e Adoles-
cente (Brasil, 1991), a LDBEN (Brasil, 1996) e as Diretrizes Curriculares
Nacionais para a Educação Infantil (Brasil, 2009a) são documentos que
sustentam as reflexões e as argumentações dos encaminhamentos para
uma nova perspectiva da Educação Infantil do município.
Convém pontuar também outros instrumentos, como o Plano
Nacional de Educação (PNE), Lei n. 13.005 (Brasil, 2014), que traz no
seu texto-base 20 metas a serem cumpridas nos próximos 10 anos. En-
tre as finalidades estabelecidas estão o aumento de vagas em creches
e a universalização do atendimento escolar para crianças de quatro e

434 Eliana Regina Cardoso de Rosa | Fabiana Soares Mathias


cinco anos, bem como a oferta de ensino em tempo integral para pelo
menos 25 % dos alunos da educação básica. O Plano destina também
10 % do Produto Interno Bruto (PIB) para a educação (atualmente são
investidos 5,3 % do PIB). Assim, diante da aprovação do novo Fundeb,
garantir investimentos para a Educação Infantil passa a ficar claro nas
direções governamentais do município. Por conseguinte, destaca-se
que a problemática que emerge está entre o que a lei ordena e a reali-
dade encontrada. Além disso, há o Plano Municipal de Educação (Lei n.
4.804/2015), que reitera essas indicações e a importância da Educação
Infantil na qualidade almejada pelo município (Torres, 2015).
Nessa conjuntura, no que se refere ao objeto de estudo deste tra-
balho, buscou-se o significado da Educação Infantil para a criança, os
pais, as pessoas da comunidade, os educadores, os governantes e a pró-
pria SME, com vistas a priorizar a Educação Infantil enquanto dever po-
lítico e coletivo da sociedade. Trata-se aqui de situar a Educação Infantil
no processo de construção de identidade, de direito, legitimada pela lei
e diante da dívida para com as crianças das classes trabalhadoras. Ao
mesmo tempo, todos os sujeitos são envolvidos no processo de corpo-
rificação dessa identidade. A participação aparece como meio, e não
como fim desse processo de pensar a educação principalmente para e
com as crianças. Por isso, o diálogo sobre a participação, a observação
e o papel da gestão se iniciou com diretores, supervisores e orientado-
res, que, na época, constituíam um grupo de sete diretoras, quatro su-
pervisoras, uma orientadora e uma auxiliar de creche com habilitação
em Supervisão Escolar que atuou em uma das unidades conveniadas na
coordenação pedagógica (escolhida pela diretora dessa época como re-
presentante da direção e da coordenação pedagógica).

Projeto Político-Pedagógico: uma vivência coletiva para a transformação


do cotidiano na escola da infância, para além da pandemia da covid-19 435
Os encontros de estudos, reflexões e tensões tinham como foco
a elaboração do PPP de forma participativa, a fim de romper com o
vínculo administrativo mandatório e com as práticas pedagógicas re-
produtivistas que ainda perduravam nas relações da Educação Infantil.
Uma nova lógica se apresentava para a reconstrução dos projetos pe-
dagógicos das escolas e das práticas vivenciadas; e para atender essa
proposição, era preciso instaurar uma linha de ação na abordagem re-
flexiva sobre organização dos tempos e espaços das crianças nas esco-
las e instituições. Nesse sentido, este trabalho se constitui pelo viés do
planejamento participativo com os profissionais dessa etapa, bem como
do investimento na formação dos professores no cotidiano da escola.
Diante do exposto, a SME elaborou ações que se desenvolveram
a partir das condições apresentadas pelo diagnóstico e pelo perfil das
unidades escolares nas constantes discussões e reflexões com os ato-
res dessa história. Nos anos desse período (2013 a 2018), foram eleitas
as principais ações que se articulavam. Desse modo, importa desta-
carmos as ações prioritárias que se constituíram: elaboração do PPP
de cada unidade com suas comunidades, garantindo a participação de
todos; formação permanente nas unidades e formação continuada na
escola; garantia de um calendário de 200 dias letivos discutido com a
comunidade; projeto de Verão Inclusivo às crianças de famílias que
apresentavam vulnerabilidade social e baixa renda; período de férias
aos educadores da Educação Infantil juntamente com os professores do
Ensino Fundamental; e busca pela intersetorialidade das políticas públi-
cas no atendimento às crianças, tendo ciência de que a educação das
crianças das creches e pré-escolas apresenta uma estrutura curricular
que se fundamenta no planejamento de propostas ligadas ao cotidiano,

436 Eliana Regina Cardoso de Rosa | Fabiana Soares Mathias


experimentações, vivências e processos de acompanhamento especí-
fico das crianças.
A Educação Infantil construiu um processo de participação e de
luta na busca pelos significados do cuidar e do educar das crianças do
município, com o propósito de contribuir com a continuidade dos estu-
dos na Rede Escolar do território e, especificamente, das escolas muni-
cipais. Diante dessa organização inicial e da qualificação do atendimento
da Educação Infantil, organizou-se um acompanhamento sistemático
das matrículas dos últimos anos, para que os gestores conseguissem
visualizar a necessidade, a projeção de investimentos, as ampliações e
o atendimento adequado. Também, em longo prazo, apontava-se a ne-
cessidade de ampliação da Rede do Ensino Fundamental para garantir
espaços e tempos qualificados e próprios para cada etapa. A marca do
crescimento dessas necessidades de planejamento ocorreu em 2014,
conforme o controle de matrículas apresentado no Gráfico 1.

Gráfico 1 – Demonstrativo do desenvolvimento de matrículas da Educação Infantil, no período


de 10 anos, no município de Torres (RS).

Fonte: Elaborado pelos autores a partir de dados do Boletim Estatístico, Censo Escolar e Central de Vagas fornecidos pela
SME. Acrescentado o ano de 2019 para acompanhamento.

Legenda descritiva: Gráfico de colunas com a quantidade de matrículas na Educação Infantil da Rede Municipal de ensino
de Torres (RS) efetuadas entre 2009 e 2019, por ano, que mostra um crescimento progressivo e intenso dessas matrículas,

Projeto Político-Pedagógico: uma vivência coletiva para a transformação


do cotidiano na escola da infância, para além da pandemia da covid-19 437
apresentando o dobro de inscritos na lista no período indicado.

Além da organização da CV, a elaboração do PPP pelas comunida-


des escolares, o calendário escolar, a formação continuada e o trabalho
coletivo junto às equipes aproximaram a Coordenação da Educação In-
fantil da SME das reflexões dos tempos e espaços da creche (0-3 anos)
e da pré-escola (4-5 anos).
Ao final de 2018, seguindo as mudanças brasileiras e as necessida-
des locais da SME, a então coordenadora da Educação Infantil (autora
deste estudo) passou a atuar na EMEI STAN. Isso aconteceu pela neces-
sidade de cumprir o tempo de três anos de estágio probatório, tempo
de efetivação como servidora do município, e ocupar o cargo de orien-
tadora educacional, bem como pelas circunstâncias contrárias ao sig-
nificado do trabalho coletivo e participativo da Rede Educacional, não
contemplado para o processo de participação, no sentido de pertenci-
mento, na nova formatação dos gestores empossados da SME.

ESCOLA STAN: FOCO NA MUDANÇA


E NA REALIDADE

A Escola Municipal de Educação Infantil Somos Todos Amigos da


Natureza (EMEI STAN) é uma das nove unidades da Rede Municipal de
ensino de zero a cinco anos da cidade onde está localizada. Contextuali-
zando, de acordo com os registros arquivados da escola, a instituição se
originou a partir de uma reunião de empresários locais, nos anos 1960,
com a finalidade de atender a crianças e indigentes que transitavam por
Torres. Em 24 de agosto de 1964, a materialização da associação fundou

438 Eliana Regina Cardoso de Rosa | Fabiana Soares Mathias


a escola, conforme registro oficial da entidade Sociedade Torrense de
Amparo aos Necessitados (STAN). No ano de 2009, a Prefeitura Munici-
pal, através da Secretaria de Educação, com o Círculo de Pais e Mestres
(CPM) da instituição, assumiu a unidade. Em 2015, a comunidade sentiu
necessidade de ressignificar a sigla nominal da escola, que passou a ser
reconhecida como EMEI STAN, de modo a desvincular a ideia assisten-
cialista que ainda persistia no nome e na comunidade.
Atualmente, a escola está localizada na Avenida José Maia Filho,
1865, Centro, município de Torres (RS). Atende 413 crianças de zero
a seis anos incompletos, divididas entre 25 turmas – berçários I e II,
maternais I e II e pré-escolas I e II – de acordo com a data corte (31 de
março) estabelecida na legislação. O atendimento acontece nos turnos
da manhã e da tarde, das 8h às 12h e das 13h15min às 17h15min. A es-
cola apresenta vasto espaço interno e externo, com salas de aula, na sua
maioria, amplas e ventiladas.
No início de 2019, uma das autoras participou da coordenação pe-
dagógica, a fim de intensificar a proposta da participação de todos os
envolvidos nos processos decisórios da escola.
Os objetivos eram aflorar o desejo de avaliar o Projeto Político-
-Pedagógico (PPP) na condição da realidade institucional, compreen-
der a organização e as práticas desenvolvidas na escola e dar sentido
às “ações educativas” (Libâneo, 2018, p. 21), com o propósito de opera-
cionalizar a participação de todos e, em especial, dos professores que,
diante da compreensão dos estudos da legislação e de referenciais teó-
ricos, posicionaram-se e participaram efetivamente do processo que
se estava desenhando. Durante o ano, nos dois primeiros trimestres, a
escola se ocupou do processo de reavaliação da proposta pedagógica.

Projeto Político-Pedagógico: uma vivência coletiva para a transformação


do cotidiano na escola da infância, para além da pandemia da covid-19 439
As reflexões e os tensionamentos, preceitos necessários a uma Gestão
Democrática, trouxeram a análise ao desenvolvimento de estudos so-
bre a prática da escola, por meio de constantes reuniões pedagógicas
durante o processo.
Além disso, objetivando conduzir a proposta do PPP das escolas da
Rede Municipal, chegou à entidade o Documento Orientador do Terri-
tório de Torres (RS) (Torres, 2019a), enviado pelo Conselho Municipal
de Educação (CME) e pela Secretaria Municipal de Educação (SME) em
julho de 2019. Nele, apresentavam-se normativas reguladoras, eixos
teóricos, recortes da legislação e prazos para a elaboração do instru-
mento. Percebeu-se, segundo análise dos envolvidos, que essa condi-
ção não favorecia a realidade da escola, pois o processo de participação
estava acontecendo junto à comunidade escolar, e os prazos previstos
eram mínimos e demonstravam o desconhecimento do processo de
construção proposto para o PPP, bem como da realidade local e, em es-
pecial, das singularidades das escolas.
A EMEI STAN compreende a participação como princípio da Ges-
tão Democrática, buscando a valorização do coletivo, das concordân-
cias e das discordâncias que fazem parte das relações da/na realidade
escolar. Essa perspectiva contribui para que todos tenham uma tomada
de consciência sobre as “condições concretas” (Paro, 2016, p. 13) e, ao
mesmo tempo, fortalece as decisões tomadas pela comunidade. Com-
preende-se que a ruptura do processo está na centralização das deci-
sões que, no cenário atual brasileiro, escancaram as formas de controle
e poder.

440 Eliana Regina Cardoso de Rosa | Fabiana Soares Mathias


Para Ball e Mainardes (2011, p. 12), as participações, no sentido
do pertencimento, “caracterizam-se por enfocar relações de classe, a
reprodução de desigualdades sociais, as relações entre política e jus-
tiça social e têm a preocupação de estabelecer a interconexões entre
perspectivas macro e microcontextuais”. Essa abordagem social se de-
monstra como complexa e carregada de nuances a serem discutidas e
reconhecidas pela escola para dar sentido aos processos de organiza-
ção almejados. Tal reflexão é inspirada em Resende (2013, p. 56), que
aborda a questão como “paradigma das relações de poder e as dimen-
sões indissociáveis da prática docente”. Segundo a autora, a relação do
homem com a cotidianidade é direta e, portanto, é preciso que “as deci-
sões, para se efetivarem, partam da prática cotidiana” (Resende, 2013,
p. 56). Nessa lógica, torna-se perceptível o envolvimento da comuni-
dade nas decisões da escola, onde se entende essa participação como
contraponto aos modelos mandatórios, contrários à participação que se
pretende construir.
As diferentes formas de participação estão ligadas a uma con-
cepção epistemológica que não está desvinculada do cenário so-
cial, cultural, econômico e político. A educação deve compreender
essas formas de organização das políticas da educação. Para Ball e
Mainardes (2011, p. 34), o

[...] desenvolvimento epistemológico nas ciências humanas,


como a educação, funciona politicamente e é intimamente
imbricado no gerenciamento prático dos problemas sociais
e políticos. [...] A ideia de que as ciências humanas, como es-
tudos educacionais, permaneçam fora ou acima da agenda

Projeto Político-Pedagógico: uma vivência coletiva para a transformação


do cotidiano na escola da infância, para além da pandemia da covid-19 441
política de gerenciamento da população ou, de algum modo,
tenham status neutro incorporado a um racionalismo pro-
gressivo flutuante é um pensamento débil e perigoso.

Trazer esse campo de pesquisa e de envolvimento para a Educa-


ção Infantil é uma forma de atribuir consciência crítica à sociedade. Há
momentos em que a direção de uma escola fica atrelada às condições
de “[...] um sistema hierárquico que pretensamente coloca todo o poder
nas mãos do diretor” (Paro, 2016, p. 15) e subjuga a compreensão dos
problemas sociais e políticos pela comunidade educativa.
De acordo com Libâneo (2018, p. 89), “a participação é o principal
meio de se assegurar a Gestão Democrática da escola”. O referido autor
afirma ainda que “o conceito de participação se fundamenta no de auto-
nomia”, pois esta se opõe às “formas autoritárias de tomada de decisão”.
Nesse sentido, entende-se que o planejamento participativo na escola é
um campo de prioridade democrática.
O PPP tornou-se um instrumento importante para a organização
das práticas do cotidiano da escola. Diante dessa condição, Veiga (2013,
p. 15) esclarece que:

Se a escola nutre-se da vivência cotidiana de cada um de seus


membros, coparticipantes de sua organização do trabalho
pedagógico à administração central seja do Ministério da
Educação, a Secretaria de Educação do Estado ou Municipal,
não compete a eles definir um modelo pronto e acabado, mas
sim estimular inovações e coordenar as ações pedagógicas
planejadas e organizadas pela própria escola. Em outras pa-

442 Eliana Regina Cardoso de Rosa | Fabiana Soares Mathias


lavras, as escolas necessitam receber assistência técnica e
financeira decidida em conjunto com as instâncias superiores
do sistema de ensino.

Nesse sentido, a EMEI STAN assumiu a responsabilidade de ga-


rantir aos educadores da escola encontros de estudos e espaços para
pesquisa e formação. Todo o movimento iniciado em fevereiro esteve
pautado pelos registros das reuniões, com a participação da comuni-
dade escolar, fotografias dos momentos de discussão, fichas de regis-
tros, algumas entrevistas e relatos. Contudo, não foi possível realizar a
última assembleia geral deliberativa, e o desejo da comunidade em dar
continuidade às práticas de participação e de decisão na escola perma-
nece. O PPP construído é resultado desse movimento coletivo, e não
de normativas prescritivas. Desse modo, Resende (2013, p. 89) destaca
que “os autoritarismos, os improvisos, as mesmices, os comodismos, os
imobilismos e as resistências infundadas são ingredientes perfeitos para
que uma escola voltada para a maioria da população não se concretize”.
A participação é uma forma de resistência.
O PPP da EMEI STAN está alicerçado nos princípios de liberdade,
solidariedade humana, direito social, dever, gratuidade e qualidade
preconizados na Constituição Federal (Brasil, [2016]). Entende-se por
qualidade a base do trabalho humano e os recursos previstos para o
atendimento qualitativo das crianças. Também estão estabelecidas as
metas construídas na coletividade e no princípio democrático da par-
ticipação efetiva da comunidade local. Para atender tais princípios, o
planejamento tem o intuito de aprofundar as referências teóricas que
inspiraram as práticas docentes indicadas no projeto pedagógico. Dessa

Projeto Político-Pedagógico: uma vivência coletiva para a transformação


do cotidiano na escola da infância, para além da pandemia da covid-19 443
forma, o instrumento é um documento não só de referência, mas de ex-
periência vivenciada do agir e do pensar na e da escola, delineando sua
identidade e seu compromisso social. Cientes de que “a escola é consti-
tuída por uma dinâmica desafiadora e complexa”, (Torres, 2019b, p. 5),
o Projeto Político-Pedagógico da escola prevê a reavaliação anual ou
sempre que se fizer necessária, além do atendimento às necessidades
da comunidade escolar.
Assim, entende-se a educação como direito social e firma-se o com-
promisso, indiscutível, com uma Educação Infantil pública de qualidade
às crianças e suas famílias, rompendo com as amarras assistencialistas
e os ideários colonialistas. Para tanto, na Gestão Democrática partici-
pativa, apresenta-se a intenção de dar voz e vez à realidade da escola
e a seus atores de fato: professores, funcionários, pais, responsáveis,
crianças e núcleos representativos, como o CPM e o Conselho Escolar,
colaboradores e comunidade em geral.

Redimensionando a rota da prática

A proposta de construir o trabalho em coletivo estava ligada à con-


cepção política e social que foi assumida com a EMEI STAN. No início do
ano de 2020, a ideia era organizar e aprofundar reflexões sobre o pro-
cesso de construção da identidade e, ao mesmo tempo, avaliar as rela-
ções e compreensões sobre a gestão da escola. Desse modo, as famílias
participaram da discussão sobre a estrutura legal da Educação Infantil e
a organização do trabalho escolar, pontos de referência dessa comuni-
dade, que resultou no documento inicial da reavaliação do PPP.

444 Eliana Regina Cardoso de Rosa | Fabiana Soares Mathias


Na possibilidade de se constituir uma escola democrática partici-
pativa, que valoriza seus profissionais a partir do processo de ensino
e aprendizagem possível, partiu-se às formações. Por outro lado, essa
ação implica a resistência ao movimento hegemônico que vem se desen-
rolando desde a década de 1990 e que se instalou na região litorânea e,
consequentemente, no município. Segundo Shiroma, Garcia e Campos
(2011, p. 225), os documentos que promovem a educação brasileira
pertencem a uma articulação entre níveis macro e micro quando “os em-
presários se antecipam e pautam a agenda governamental: reafirmam
o papel do Estado redefinindo, no entanto, o sentido e o significado da
educação pública”. Esse fato é confirmado pela ampla divulgação dos
sistemas de educação, em suas promessas articuladas à venda dos
livros didáticos.
A EMEI STAN organizou um amplo debate sobre a construção da
escola democrática e os arranjos sociais e políticos que promovem ou
não os atores dessa história, pois é importante pensar que “buscar uma
nova organização para a escola constitui uma ousadia para os educado-
res, pais, alunos e funcionários” (Veiga, 2013, p. 14), principalmente na
Educação Infantil. Entender essa “ousadia” é pensar que o PPP da escola
é o fio condutor da possibilidade construída coletivamente que trans-
forma e qualifica o trabalho escolar. Esse fato propõe uma nova prática
docente no cotidiano escolar enquanto lugar de ensino e aprendizagem
no/do coletivo. Segundo a autora (Veiga, 2013, p. 30), “para alterar a
qualidade do trabalho pedagógico torna-se necessário que a escola re-
formule seu tempo, estabelecendo períodos de estudo e reflexões de
equipes de educadores”. Dessa forma, as reuniões de estudos fortale-
ceram a qualidade do trabalho pedagógico.

Projeto Político-Pedagógico: uma vivência coletiva para a transformação


do cotidiano na escola da infância, para além da pandemia da covid-19 445
Na continuidade, as reuniões de estudos e, consequentemente, a
avaliação do PPP foram realizadas por níveis: grupos de berçários I e
II; maternais I e II; e pré-escola I e II. Isso ocorreu pelo grande número
de famílias da escola. As perguntas sempre moveram novos pensamen-
tos; dentre elas, a que mobilizou a discussão em pauta: o que pensam as
pessoas da comunidade escolar sobre o PPP e as práticas pedagógicas
da escola?
A reestruturação do PPP da escola vislumbrou as normatizações
da legislação vigente para reafirmar as metas e os compromissos com
o desenvolvimento das crianças nas dimensões do cuidar e do educar.
Para Oliveira et al. (2019, p. 38), “ter clareza sobre os direitos das crian-
ças e uma concepção de infância, bem como de Educação Infantil, é
ponto de partida para a construção de um trabalho pedagógico consis-
tente que se inicia no planejamento inicial do professor”. Além disso, a
Resolução n. 5 das DCNEI estabelece conceitos fundamentais ao definir
a criança como “sujeito histórico e de direitos” e, portanto, ao contem-
plar a criança e o coletivo pedagógico. Ainda nessas diretrizes, o “Projeto
Político-Pedagógico é o plano orientador das ações da instituição e de-
fine as metas que se pretende para a aprendizagem e desenvolvimento
das crianças que nela são educadas e cuidadas, com a participação da
direção, dos professores e da comunidade escolar” (Brasil, 2009b). Já
o Parecer CNE/CEB n. 20/2009 apresenta uma revisão do processo
histórico da Educação Infantil (Brasil, 2009a). Além dos documentos
normativos dos estudos do PPP, foram apresentados e discutidos fun-
damentos pedagógicos que possibilitaram uma compreensão sobre a
complexidade dessa etapa da educação.

446 Eliana Regina Cardoso de Rosa | Fabiana Soares Mathias


A Base Nacional Curricular Comum (Brasil, 2017) foi fator mobili-
zante dos estudos para aprofundamento das questões curriculares da
escola. A concepção que vincula educar e cuidar traz novas compreen-
sões sobre a Educação Infantil, e os eixos de aprendizagens, interações
e brincadeiras estão conectados aos Campos de Experiência como nor-
teadores das práticas. Aqui se estabeleceu uma interlocução entre o
que pensamos e o que fazemos. Um novo olhar se apresentou na escola
para atender a demanda do pedagógico, resultado da discussão do PPP.
Além disso, segundo Oliveira et al. (2019, p. 294), o compromisso

[...] é com a construção de ambientes que garantam


aprendizagens que ampliem a vivência dos direitos
estabelecidos conviver, brincar participar, explorar,
expressar e conhecer, assumindo o compromisso e
assegurando a integralidade do desenvolvimento dos bebês
e das crianças com qualidade e a Educação Infantil enquanto
espaço de pertencimento e convivência social e de novas e
significativas aprendizagens.

A LDBEN, de 1996, avança no aspecto de compromisso e validação


da Educação Infantil ao afirmar, no artigo 29, que a Educação Infantil é
a “primeira etapa da educação básica”, valorizando o entendimento de
que a educação não é só um lugar de cuidado; do mesmo modo, ela re-
força a finalidade de garantir o “desenvolvimento integral da criança de
até 5 (cinco) anos, em seus aspectos físico, psicológico, intelectual e so-
cial, complementando a ação da família e da comunidade” (Brasil, 1996,
p. 22) – entendimento ainda novo para a comunidade escolar. Por outro
lado, o contato com a legislação trouxe a compreensão sobre a dimen-
são da prática no contexto da escola para toda a comunidade escolar, o

Projeto Político-Pedagógico: uma vivência coletiva para a transformação


do cotidiano na escola da infância, para além da pandemia da covid-19 447
que possibilitou aos gestores um compromisso com a questão adminis-
trativa e pedagógica ao qualificar o trabalho docente. Igualmente, ficou
claro que é dever da escola revisitar as indicações legais e os direitos e
deveres que a sucedem.
Dentre essas compreensões sobre o PPP, foram estabelecidas
algumas superações da prática educativa com relação ao currículo na
escola. A exemplo, citamos a retirada da lista de conteúdos, por se per-
ceber que o currículo não pode ser conduzido pelo calendário de datas
comemorativas, a partir da participação das crianças em pesquisa por
meio de produção de novos conhecimentos. O trabalho teórico relativo
ao estudo da infância manteve-se presente em vários campos do conhe-
cimento (Rocha; Kramer, 2013). Todavia, não havia uma compreensão
na sua totalidade, e ainda se apresentavam na prática ações de ativi-
dades prescritivas, muitas vezes em razão da chegada de novos educa-
dores, de contratos temporários, de ajustes no quadro de pessoal pela
SME e de outros movimentos pertinentes à escola.
Concomitantemente a essa reorganização do PPP, com sistemati-
zações dos estudos com a equipe gestora e professores, deu-se conti-
nuidade à promoção de reflexões e descobertas sobre o significado do
ensino e da aprendizagem para a(s) infância(s) na escola. Muitas ques-
tões foram expressas na sistematização dos anseios da comunidade;
entre elas, a ideia de criança, infância, currículo e prática pedagógica, o
que demonstrou a tomada de decisão e consciência dos participantes da
construção. Rocha e Kramer (2013, p. 36) convidam

448 Eliana Regina Cardoso de Rosa | Fabiana Soares Mathias


[...] os educadores a dedicar um considerável esforço na bus-
ca por ampliar a compreensão sobre essa fase inicial da vida
e estabelecer, em consequência, propostas educativas que
considerem a especificidade das crianças no âmbito de uma
infância historicamente determinada.

O processo de participação durante a reavaliação do PPP trouxe


inquietações no que se refere à prática. Constatou-se que persiste a
preocupação com o controle do corpo das crianças, as relações de po-
der, a prescrição das propostas e a centralidade do professor. Contudo,
é preciso considerar os avanços apresentados, pois os estudos e as
discussões contribuíram com a compreensão dos saberes das crianças
e suas interações. Assim, timidamente, surgem na escola experiências
sobre cada sujeito, articuladas aos processos de ensino e aprendizagem
para atender uma concepção política6 e pedagógica7 das experiências e
dos saberes das crianças.
A ampliação e a participação das crianças e das famílias reforçam o
avanço da proposta da escola. Freire (1996, p. 22) diz que:

Por isso é que, na formação permanente dos professores, o


momento fundamental é o da reflexão crítica sobre a prática.
É pensando criticamente a prática de hoje ou de ontem que se
pode melhorar a próxima prática. O próprio discurso teórico,
necessário à reflexão crítica, tem de ser tal modo concreto
que quase se confunde com a prática. O seu “distanciamento”
epistemológico da prática enquanto objeto de sua análise e

6 Entendida a concepção de política como posição de compromisso para com as crianças e sua
comunidade.

7 A concepção pedagógica é compreendida como ação consciente das proposições do trabalho


docente para o desenvolvimento das crianças e suas singularidades.

Projeto Político-Pedagógico: uma vivência coletiva para a transformação


do cotidiano na escola da infância, para além da pandemia da covid-19 449
maior comunicabilidade exercer em torno da superação da
ingenuidade pela rigorosidade. Por outro lado, que quanto
mais me assumo como estou assim, mais me torno capaz de
mudar, de promover-me, no caso, do estado de curiosidade
ingênua para o de curiosidade epistemológica.

É nesse sentido que os educadores da escola começam a rever


suas práticas e, do mesmo modo, percebem que a aprendizagem não se
limita a uma lista de conteúdos ou tarefas. Aqui, o saber da criança e
a observação do adulto, mediados pelo conjunto de conhecimentos da
cultura humana, oportunizaram novas experimentações e vivências. A
proposta para e com as crianças não é um programa preestabelecido,
mas uma transição de saberes diferentes que se complementam e se
modificam. Nos registros elaborados, nas reuniões de estudo coletivas
e no diálogo entre todos os envolvidos, os desafios estavam ligados aos
processos de cada um, a cada dia.
Nessa perspectiva dialógica, a comunidade foi delimitando e reafir-
mando a importância de determinadas práticas, como o portfólio. O re-
ferido documento tem múltiplos registros, tendo sido construído pelos
educadores com as crianças e as famílias com o objetivo de reunir, arqui-
var e expor as construções, os projetos e as hipóteses para oportunizar
a interpretação e a reflexão das práticas desenvolvidas na escola. Outro
ponto de discussão está na interpretação, um tanto equivocada, de que
a Educação Infantil é o primeiro passo para o futuro ou uma formação
escolar preparatória.
Diante do exposto, e de forma sintetizada, a história apresentada
retrata uma construção na defesa da Gestão Democrática Participa-
tiva. Muitas condições contraditórias da/na escola se fazem presentes

450 Eliana Regina Cardoso de Rosa | Fabiana Soares Mathias


no cotidiano e são problematizadas no percurso do PPP. Por isso, enten-
de-se a escola como espaço de elaboração da consciência crítica para a
promoção da transformação da própria realidade.
A participação e a valorização da escola pública estão, segundo Li-
bâneo (2018), na perspectiva sociocrítica e significam valorizar as ações
concretas dos profissionais na escola decorrentes de sua iniciativa, de
seus interesses e de sua participação, dentro do contexto sociocultural
da escola, de modo a garantir o avanço da educação e dos processos que
envolvem a escola.
O trabalho, como já apresentado, iniciou em 2019 e continuou em
2020. A primeira ação do ano foi a assembleia de apresentação da es-
cola e do CPM, com a constatação da necessidade de reorganização do
Conselho Escolar. O momento em questão foi marcado pela apresenta-
ção dos indicadores de avanços e aspectos que precisavam melhorar,
elencados no final de 2019 no PPP da escola. O CPM, sempre presente
nas decisões, trazia ao momento a organização para nova eleição e
apresentou a necessidade de reativar o Conselho Escolar; contudo, a
história foi interrompida.
Inevitavelmente, no dia 19 de março de 2020, houve a interrupção
dos encontros presenciais na escola, com a suspensão das aulas pelo
Decreto Municipal n. 41/2020 (Torres, 2020). Diante desse momento
ímpar que a humanidade atravessava, novos rumos foram estabeleci-
dos para o percurso do projeto em construção. Ao percorrer uma nova
rota, muitas questões permeavam as ideias e as incertezas: como ser
escola nesse momento tão diverso? Como estar com as famílias e as
crianças sem estar presente? Que desafios se instauravam?

Projeto Político-Pedagógico: uma vivência coletiva para a transformação


do cotidiano na escola da infância, para além da pandemia da covid-19 451
Diante de tudo que havíamos preparado e experimentado no ano
anterior, nada se comparava a esse “tempo estranho”. A condição hu-
mana e sua fragilidade não estavam escritas nos documentos que, até
então, eram guias. Uma obscuridade se firmou. Na última semana de
março, a direção da escola e a coordenação pedagógica realizaram reu-
nião virtual para pensar sobre o momento e trazer à escola uma sinaliza-
ção de esperança. Iniciou-se o contato por meios remotos – um grande
desafio – e houve o acolhimento das angústias e ansiedades da equipe.
No decorrer dos encontros, foram tomadas as seguintes decisões com
o grupo de professores: o tempo de isolamento seria aproveitado para
formação/estudo/pesquisa, e o planejamento utilizaria como referência
a possibilidade de nutrir vínculos com a comunidade e preservar a Edu-
cação Infantil no contexto atual.
O Plano de Ação Flexível (PAF) já era uma realidade, pois a escola
sempre trata de situações novas, inovadoras e desafiadoras no seu co-
tidiano. Naquele momento, em cada semana se vivia uma conquista e
uma superação, com a condição de cuidado extremo pela vida e, conse-
quentemente, a formulação de posicionamento pela escola no processo.
A primeira grande mobilização foi o cuidado para com as pes-
soas, principalmente as crianças da comunidade escolar da instituição.
Cientes de que a travessia é um movimento do mundo e da fragilidade
humana, experimentamos ansiedades e incertezas. Contudo, acredi-
távamos ser preciso contemplar ensinamentos dessa situação. Assim,
uma reestruturação do plano de trabalho com a gestão da escola e a
coordenação pedagógica emergiu para atender, em primeiro lugar, as
crianças e as famílias em vulnerabilidade social e para preservar a vida
e a segurança de todos.

452 Eliana Regina Cardoso de Rosa | Fabiana Soares Mathias


Inicialmente, as ações centravam-se na busca de informações e na
acolhida da comunidade, sem ser um indicativo de escola infantil virtual
ou de um projeto pedagógico mecânico desvinculado da humanização.
Estabeleceram-se os contatos com professores e famílias da comu-
nidade, diante de uma problemática carregada de sentimentos sobre
como poder nutrir as relações entre família e escola. A partir de algu-
mas organizações e contatos com a comunidade, as ações foram criando
formas, significados, comunicações e apoio.
Foi estruturado um grupo de estudos com os docentes para uma
imersão na formação pedagógica dos professores e funcionários da es-
cola. Assim, os conceitos apresentados no PPP em 2019 foram revisita-
dos, na busca da prática de forma consistente diante das possibilidades
que o momento impunha. Além disso, era fundamental perceber como
as crianças estavam interagindo. A proposta ressoou junto aos profes-
sores e famílias. Para Resende (2013, p. 89), “a primeira condição para se
pensar a mudança é aquela que contempla a figura do educador, esteja
ele na função que estiver”.
Os contextos de contato e interação iniciaram em abril, e uma nova
caminhada estava sendo proposta. Em conjunto com os educadores e
os pais, foram organizados encontros virtuais; com os docentes, os en-
contros de estudos sobre as práticas e seus significados eram semanais.
O planejamento aconteceu a cada semana, com a perspectiva de um
olhar atento dos professores, que contribuíram com suas reflexões e in-
quietações. Em seguida, foram preparados os primeiros contatos para
acolhida das famílias e crianças, bem como a elaboração de propostas
semanais de experimentações e descobertas com as crianças, nas salas
virtuais privadas criadas na plataforma Facebook, com o propósito de

Projeto Político-Pedagógico: uma vivência coletiva para a transformação


do cotidiano na escola da infância, para além da pandemia da covid-19 453
garantir a privacidade das crianças e famílias. Além disso, outros meios
de comunicação foram acionados para o contato mais direto com toda a
comunidade escolar.
No início, a preocupação estava centrada na condição de sobrevi-
vência (a alimentação), mas vimos que a situação de apoio e acolhimento
poderia ter ocorrido em primeiro lugar para atender a condição dessa
nova realidade. Alguns encontros foram agendados virtualmente com
as famílias, que demostraram satisfação em seus relatos e contribuíram
com alternativas e sugestões. A escola se manteve aberta nesse tempo,
com distanciamento, para acolher, sempre que possível, as ansiedades e
situações da comunidade.
O PPP estava presente no cotidiano da escola, nos espaços de par-
ticipação e na acolhida da comunidade e criava outros modos de relação
entre as pessoas. Os docentes iniciaram contatos com outras possibili-
dades de formação na modalidade virtual. No tempo dito “normal”, mui-
tas vezes não se investia na formação pessoal em razão da distância pela
exigência da presença ou pelas condições econômicas.
As formações divulgadas pela coordenação pedagógica da escola,
pelos contatos dos próprios professores e por estudos de textos e livros
enriqueceram as discussões e práticas experimentadas com as crianças
na modalidade virtual. Os professores atuaram em formações constan-
tes de diferentes maneiras, nos encontros de estudos, lives, cursos e lei-
turas, bem como na produção escrita do diário de bordo para registro
da travessia do momento vivenciado.

454 Eliana Regina Cardoso de Rosa | Fabiana Soares Mathias


CONSIDERAÇÕES FINAIS

O artigo apresentou a síntese do projeto de intervenção e vivên-


cia, resultado do projeto de intervenção do Curso de Especialização de
Gestão da Educação realizado pela UFRGS. A investigação buscou com-
preender como os professores vivenciavam o PPP na prática da escola,
no período 2019-2020, na Escola Municipal de Educação Infantil Somos
Todos Amigos da Natureza (EMEI STAN), do município de Torres (RS).
A EMEI STAN participou da implementação das DCNEI (Brasil,
2009b) no período de 2013 a 2018 com as escolas da Rede Infantil. Na
oportunidade, as diretrizes pautaram as discussões e elaborações dos
projetos político-pedagógicos, uma construção coletiva. A participação
das comunidades foi o fio condutor. As problematizações e os tensiona-
mentos criaram possibilidades às escolas. Nesse momento, já se desta-
cavam mudanças no processo de compreensão sobre as práticas, e as
famílias e as comunidades já reconheciam a legislação e as novas con-
dições de trabalho na Educação Infantil. Esse fato exigiu estudos e for-
mações para o campo dos conceitos anunciados como infância, criança
e participação. Identificou-se que a legislação, especificamente as dire-
trizes, contribuiu com o investimento de formação mais específica dos
professores que trabalhavam com crianças. Sua participação significa-
tiva foi fundamental no processo de reconhecimento da prática e de
suas limitações e possibilidades.
Ao analisar o PPP da EMEI STAN, escola foco deste trabalho, iden-
tificou-se um distanciamento entre o que o documento anunciava e
as práticas docentes realizadas no cotidiano da escola. Além disso, as
ações dos gestores estavam voltadas ao caráter administrativo e às prá-

Projeto Político-Pedagógico: uma vivência coletiva para a transformação


do cotidiano na escola da infância, para além da pandemia da covid-19 455
ticas burocráticas, envolvidas nas tarefas de organização e na melhoria
da infraestrutura da escola. A posição política dos gestores transitava
entre a Gestão Democrática liberal e a Gestão Democrática com con-
trole sobre os processos. No decorrer da reavaliação do PPP em 2019,
foi possível observar que, de acordo com os registros de participação, o
funcionalismo da gestão passou a vislumbrar um caráter de gestão par-
ticipativa ao se envolver nos estudos pedagógicos, mediando as rela-
ções com professores, funcionários e pais. Dessa forma, estabeleceu-se
um diálogo constante com as necessidades de cada momento. Contudo,
a gestão ainda se apresenta na dinâmica de tarefas específicas de cunho
burocrático e administrativo e de ordem operacional.
Outro ponto significativo foram os avanços e as conquistas sobre
as relações e a comunicação na escola, o que possibilitou a ampliação do
diálogo entre os pares. Esse fato problematizou e fortaleceu os momen-
tos de estudos e a revisão das práticas pelos próprios professores, o que
configura a escola como “lugar” de ensino e aprendizagem na dinâmica
da participação para todos os envolvidos. Contudo, as entrevistas finais
não se concretizaram, e observou-se a importância da compreensão do
papel do PPP para a formação dos professores na sua cotidianidade.
Em decorrência da pandemia de covid-19, a comunicação passou a
ser virtual, com encontros semanais da equipe gestora e da coordena-
ção pedagógica para refletir sobre cada momento. Dessa forma, a jor-
nada passou a ser circular, envolvendo os professores com análise de
suas práticas, estudos e pesquisas juntamente com a equipe gestora, a
coordenação pedagógica, as famílias e as crianças.

456 Eliana Regina Cardoso de Rosa | Fabiana Soares Mathias


O grupo de professores, equipe gestora, coordenação pedagógica
e famílias construiu uma relação dialógica horizontal para oportunizar
a avaliação do processo das práticas e dos avanços das proposições de-
sencadeadoras de ensino-aprendizagem, a partir da escuta das crianças
e das situações que se apresentavam no ano letivo e na sua continui-
dade. A participação da comunidade escolar na reavaliação do PPP foi
significativa para esses avanços. Certamente, as indicações da legislação
contribuíram para a compreensão do trabalho desenvolvido na escola.
Pais e professores iniciaram um diálogo constante sobre as experiências
das crianças e seu desenvolvimento. Em 2020, novas propostas foram
apresentadas na definição denominada “desvio da rota”.8
O PPP da escola apresenta na sua filosofia “Educar, Cuidar e Brin-
car como garantia da infância, como direito e dever comprometida com
sua função sociopolítica e pedagógica” (Torres, 2019b, p. 8). Essa é a
condição para as práticas dos docentes, que, na avaliação, conseguiram
confrontar o que representa essa filosofia em relação à prática. O PPP
atende aos princípios éticos, estéticos e políticos preconizados pelas
DCNEI e os desmembra especificando a participação das crianças em
todos os momentos. Os princípios apresentados estabelecem que “os
processos de aprendizagens estão vinculados às experiências e experi-
mentações culturais e sociais vivenciadas por cada sujeito que compõe
a escola, portanto, não há modelos e sim reflexões pertinentes” (Torres,
2019b, p. 10), o que corrobora as práticas pensadas para o momento
de distanciamento social. As concepções de infância também retratam a

8 A rota é entendida por caminho traçado pelo planejamento, já flexível e elástico; contudo, o ad-
vento da covid-19 exigiu um novo planejamento, e reorganizamos as formas de encontros e da
própria participação.

Projeto Político-Pedagógico: uma vivência coletiva para a transformação


do cotidiano na escola da infância, para além da pandemia da covid-19 457
centralidade das crianças para a escola, pois consideram a(s) “infância(s)
como uma fase plural”.
Nesse momento ímpar da pandemia de covid-19, a EMEI STAN
ainda busca encaminhamentos, reflexões, estudos e trocas para a or-
ganização da Educação Infantil do município, de modo a fortalecer as
propostas para essa travessia.
A relevância deste artigo está constituída na consonância entre a
realidade vivenciada e a proposta pedagógica da Educação Infantil na
perspectiva da participação em tempos de pandemia de covid-19. Esse
fato promoveu um estudo e um trabalho colaborativo entre todos na es-
cola, de modo a contribuir com a formação e as práticas desenvolvidas.
Essas considerações não apresentam uma terminalidade, mas sig-
nificam as experiências e vivências construídas no coletivo, na prática
cotidiana de homens, mulheres, jovens e crianças que buscam na escola
um encontro com múltiplas aprendizagens, tendo em vista que, con-
forme Freire (1996), ao ensinar aprendo e ao aprender também ensino.

REFERÊNCIAS
BALL, S. J.; MAINARDES, J. (org.). Políticas educacionais: questões e dilemas. São
Paulo: Cortez, 2011.

BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil.


Brasília, DF: Presidência da República, [2016].

BRASIL. Conselho Nacional de Educação. Câmara de Educação Básica. Parecer


CNE/CEB n. 20. Revisão das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação
Infantil. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 9 dez. 2009a. Disponível em: http://
portal.mec.gov.br/dmdocuments/pceb020_09.pdf. Acesso em: 16 set. 2020.

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460 Eliana Regina Cardoso de Rosa | Fabiana Soares Mathias


13
Reflexões sobre
a oferta do curso de
Especialização em
Gestão da Educação
(EAD) na Região
Metropolitana de
Porto Alegre e do
Litoral Norte do RS
Luciani Paz Comerlatto1
Sinthia Cristina Batista2

1 Doutora em Educação, na Linha de Políticas e Gestão de Processo Educa-


cionais, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Mestre em Educação
pela Pontíficia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Coordenadora do
Curso de Especialização em Gestão da Educação da Universidade Federal do
Rio Grande do Sul. Professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
E-mail: lucianipaz@ufrgs.br

2 Doutora em Geografia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul.


Mestre em Geografia pela Universidade de São Paulo. Coordenadora Ad-
junta do Curso de Especialização em Gestão da Educação da Universidade
Federal do Rio Grande do Sul. Professora da Universidade Federal do Rio
Grande do Sul.
E-mail: sinthia.batista@ufrgs.br
Fotografia 1 – Seminário da especialização em Gestão da Educação.

Fonte: Elaborada pelos autores (Porto Alegre, FACED/UFRGS, 07 dez. 2019).

INTRODUÇÃO

O presente artigo versa sobre reflexões do curso de especialização


em Gestão da Educação, 1ª edição, na modalidade a distância, ofertado
pela UFRGS campus Litoral Norte (UFRGS/CLN) em parceria com a Uni-
versidade Aberta do Brasil (UAB) para os gestores das escolas públicas
da Educação Básica da Região Metropolitana de Porto Alegre e do Lito-
ral Norte. Apresenta-se como objetivo geral expor a trajetória do curso,
seus limites, possibilidades e contradições na busca pela expansão do
exercício da Gestão Democrática da Educação, tanto em nível de for-
mação continuada quanto no movimento do real das suas respectivas
instituições educacionais.

462 Luciani Paz Comerlatto | Sinthia Cristina Batista


Buscamos, através de esforço coletivo, pensar a gestão educacio-
nal como parte constitutiva do exercício da democracia. É sob esse con-
texto que apresentamos as partes constitutivas da nossa reflexão sobre
o curso: 1) o conteúdo da proposta e a metodologia do curso e 2) o curso
na sua materialidade: limites, possibilidades e contradições.

O CONTEÚDO DA PROPOSTA E A METODOLOGIA


DO CURSO

A proposta do curso fundamentou-se teórica e metodologica-


mente na Gestão Democrática da educação, que, além de ser um prin-
cípio constitucional, é condição essencial para que a educação possa
realizar o seu papel de contribuição no exercício da democracia, aqui
entendida como “o governo pelo povo ou pelo poder do povo” (Wood,
2006, p. 7), na constituição integral do sujeito histórico-social. Dourado
(apud Ferreira, 1998, p. 79) define a Gestão Democrática da educação
como um:

[...] processo de aprendizado e de luta política que não se


circunscreve aos limites da prática educativa, mas vislumbra,
nas especificidades dessa prática social e de sua relativa
autonomia, a possibilidade de criação de canais de efetiva
participação e de aprendizado do “jogo” democrático e,
consequentemente, do repensar das estruturas de poder
autoritário que permeiam as relações sociais e, no seio
dessas, as práticas educativas.

Reflexões sobre a oferta do curso de Especialização em Gestão da Educação (EAD)


na Região Metropolitana de Porto Alegre e do Litoral Norte do RS 463
Nesse sentido, desde a construção do Projeto Político-Pedagógico
até o processo de ensino-aprendizagem do curso, buscamos evidenciar
a importância do reconhecimento da Gestão Democrática da Educação
a partir do princípio legal, assim como a educação enquanto um direito
humano e inalienável, parte constituinte e estruturante do sujeito his-
tórico-social, que, no entendimento de Comerlatto (2013), significa o
ser humano na sua condição individual e coletiva, o qual, independente-
mente da sua consciência, é um ser que contribui no processo histórico,
por ser dotado da capacidade de pensar, criar, criticar e decidir; ou seja,
é um agente de transformação social.
Iniciamos o processo de ensino-aprendizagem do curso por meio
de uma aula inaugural presencial na sede do polo de Porto Alegre. Na
ocasião, apresentamos o conteúdo da proposta do curso e o caminho
teórico-metodológico pretendido. Escolhemos iniciar com a fundamen-
tação legal que alicerça o princípio fundante da necessidade de pensar-
mos a educação no contexto da democracia. Nesse sentido, indicamos
o artigo 206 da Constituição Federal, que aponta o princípio da gestão
democrática e a garantia de qualidade na educação.

Art. 206. (*) O ensino será ministrado com base nos


seguintes princípios:

I — igualdade de condições para o acesso e permanência


na escola;

II — liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o


pensamento, a arte e o saber;

464 Luciani Paz Comerlatto | Sinthia Cristina Batista


III — pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas, e
coexistência de instituições públicas e privadas de ensino;

IV — gratuidade do ensino público em estabelecimentos


oficiais;

V — valorização dos profissionais do ensino, garantido, na


forma da lei, plano de carreira para o magistério público,
com piso salarial profissional e ingresso exclusivamente por
concurso público de provas e títulos, assegurado regime
jurídico único para todas as instituições mantidas pela União;

VI — gestão democrática do ensino público, na forma da lei;

VII — garantia de padrão de qualidade (Brasil, [2016]).

Reforçamos a ideia de que a Constituição Federal de 1988 foi


fundamental para o fortalecimento da educação brasileira enquanto
direito social garantido pelo Estado. Antes disso, ele não tinha a obriga-
ção formal de garantir educação de qualidade para todos. Entendemos
que esse direito constitucional não é um mero formalismo, mas resul-
tado da correlação de forças entre trabalhadores e reacionários, ma-
terializada na contradição do próprio texto constitucional, que indica o
exercício da democracia na educação, mas contraditoriamente reserva
espaços para a intervenção dos interesses imperialistas do capital.
A pauta da democracia no campo da educação também entra na
agenda da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN) de
1996. De acordo com o artigo 14,

Reflexões sobre a oferta do curso de Especialização em Gestão da Educação (EAD)


na Região Metropolitana de Porto Alegre e do Litoral Norte do RS 465
Os sistemas de ensino definirão as normas da gestão demo-
crática do ensino público na educação básica, de acordo com
as suas peculiaridades e conforme os seguintes princípios:

I — participação dos profissionais da educação na elaboração


do projeto pedagógico da escola;

II — participação das comunidades escolar e local em


conselhos escolares ou equivalentes (Brasil, 1996).

Concordamos que os princípios legais são fundamentais na luta


pela aquisição do direito, mas no movimento do real da educação bra-
sileira ainda temos muito a construir, pois, entre outras coisas, não está
contido nessas leis nenhum dispositivo que assegure os objetivos da de-
mocracia. É por isso que, segundo Vieira (1992, p. 12), a luta social se
torna decisiva:

Tal Estado de Direito não se realiza apenas com a garantia


jurídico-formal desses direitos e liberdades, expressa em
documento solene. Quanto a eles, o Estado de Direito deter-
mina a sua proteção formalizada e institucionalizada na ordem
jurídica e, principalmente, reclama a presença de mecanismos
socioeconômicos dirigidos e planificados com a finalidade de
atingir a concretização desses direitos. Muitas razões de Esta-
do têm conduzido a contradições entre a simples declaração
dos direitos e liberdades e a sua real efetivação.

É sob essa conjuntura que buscamos, ao longo do curso, expor a


Gestão Democrática para além dos princípios legais. Trabalhamos a sua
esfera teórica e metodológica por compreendermos que ela é a mola
propulsora do exercício da democracia no campo da educação e que

466 Luciani Paz Comerlatto | Sinthia Cristina Batista


é através da autonomia pedagógica e administrativa, da participação
efetiva de todos no processo de discussão e tomada de decisões, bem
como da formação de colegiados enquanto representação de todos os
segmentos que a educação contribui para a constituição do sujeito his-
tórico na integralidade. Este, de acordo com Paro (2008, p. 27),

[...] jamais pode ser concebido isoladamente, posto que o ho-


mem só se realiza, só pode produzir sua materialidade, a partir
do contato com os demais seres humanos, ou seja, a produção
de sua existência não se dá diretamente, mas mediada
pela divisão social do trabalho. Disso resulta a condição de
pluralidade do próprio conceito de homem histórico, que
não pode ser pensado isolado, mas relacionando-se com
outros sujeitos que, como ele, são portadores de vontade,
característica intrínseca à condição de sujeito. Dessa situação
contraditória do homem como sujeito (detentor de vontades,
aspirações, anseios, [...] interesses, expectativas) que precisa,
para realizar-se historicamente, relacionar-se com outros
homens também portadores dessa condição de sujeito, é que
deriva a necessidade do conceito geral de política. Este se
refere à atividade humano-social com o propósito de tornar
possível a convivência entre grupos e pessoas, na produção
da própria existência em sociedade.

Assim, a oferta do curso partiu da necessidade de fortalecer e


valorizar a prática profissional como momento de ampliação do co-
nhecimento, por meio da reflexão, da análise e da problematização do
próprio trabalho, fazendo emergir o conhecimento tácito presente nos
caminhos e nas soluções que os profissionais encontram, tendo em vista
a promoção de uma escola de qualidade para todos, que, sob o enten-

Reflexões sobre a oferta do curso de Especialização em Gestão da Educação (EAD)


na Região Metropolitana de Porto Alegre e do Litoral Norte do RS 467
dimento de Dourado, Oliveira e Santos (2007), requer um aprofunda-
mento em relação ao espaço que a escola ocupa na sociedade e às suas
múltiplas relações.
O Projeto Político-Pedagógico do curso foi fruto do diálogo entre
os professores proponentes envolvidos na proposta. Para isso, foram
realizadas reuniões pedagógicas de estudos teórico-metodológicos a
fim de sistematizar conteúdo, método e metodologia da proposta. Pau-
tamos os nossos diálogos na certeza de que:

Gestar é produzir o novo e gestar é crescer junto. Gestar é um


ato pelo qual se traz em si e dentro de si algo novo, diferente:
um novo ente. Isso significa que o gestor não pode ter um
contrato com a desesperança. A gestão implica um ou mais
interlocutores com os quais se dialoga pela arte de interrogar
e pela paciência em buscar respostas que possam auxiliar no
governo da educação segundo a justiça. Nesta perspectiva,
a gestão implica o diálogo como forma superior de encontro
das pessoas e solução dos conflitos (Cury, 2007, p. 9).

Desde 2017, o curso em questão vem sendo gestado. Sua proposi-


ção nasceu de um desejo e de uma necessidade: o desejo de fortalecer
o entendimento social de que a educação é parte constitutiva do pro-
cesso histórico e a necessidade histórica de trabalhar as contradições
que evidenciam os conflitos que insistem em escamotear as condições
concretas para a realização desse desejo. Alcançamos, assim, ao longo
da proposição e da oferta do curso, um horizonte de lutas e também
muita esperança a partir do compromisso social e político de nossas
pesquisas, provindas da universidade pública, com a escola pública e
com a educação no Brasil.

468 Luciani Paz Comerlatto | Sinthia Cristina Batista


O currículo do curso intensificou o desenvolvimento da capacidade
de refletir, oferecendo perspectivas de análise para que os gestores
escolares compreendessem os contextos históricos, sociais, culturais,
organizacionais e de si próprios como profissionais. Buscamos desen-
volver um ensino pautado na formação continuada reflexiva, crítica e
promotora da identidade coletiva na luta por uma educação de quali-
dade social, que, para Comerlatto (2013, p. 19), significa “[...] a condição
de respeito às diferenças étnicas, sexuais, sociais, políticas e econômicas
com fins a uma formação para além da inserção no mercado de trabalho,
para a constituição do sujeito histórico-social”.
O curso foi baseado na concepção da educação e da formação
continuada dos profissionais da educação como um direito e da es-
cola como espaço público, lugar de debate e de diálogo, com base na
reflexão individual e coletiva que conduz a articulação entre teoria e
prática no sentido de ampliação de capacidades para analisar e resolver
problemas, elaborar e desenvolver projetos e atividades na área de
gestão educacional, desenvolver uma compreensão pedagógica de
gestão escolar situada nos contextos do sistema e da escola, ampliando
a concepção de trabalho pedagógico, estimular o desenvolvimento de
práticas de Gestão Democrática e de organização do trabalho peda-
gógico, a fim de que contribuam para a qualidade social da educação,
e valorizar a experiência investigativa do cursista e o aperfeiçoamento
da prática.
Entende-se com isso que os conteúdos não se esgotaram na carga
horária atribuída a cada disciplina, mas que esse foi apenas o ponto de
partida para o aprofundamento das temáticas propostas pelo curso,
que apresentou como objetivo geral contribuir na formação de gestores

Reflexões sobre a oferta do curso de Especialização em Gestão da Educação (EAD)


na Região Metropolitana de Porto Alegre e do Litoral Norte do RS 469
das escolas públicas da Educação Básica na perspectiva da Gestão De-
mocrática e da efetivação do direito à educação com qualidade social.
O currículo foi estruturado em quatro momentos que se articula-
ram entre si ao longo do curso:

• a produção de condições às gestoras e aos gestores para reali-


zar o curso com disciplinas que envolveram a aproximação aos
ambientes virtuais e a retomada dos processos de investigação e
escrita acadêmica;

• a fundamentação teórica e metodológica trabalhada a partir do


acúmulo das pesquisas sobre a educação no Brasil, trazendo ao
debate a compreensão política e social sobre o Estado, os Direitos
Sociais, a Educação e a Gestão Democrática;

• o conhecimento da realidade da estrutura legal, política e admi-


nistrativa da educação do Brasil, apresentando a realidade do fi-
nanciamento da educação, das políticas e da gestão dos processos
educacionais, do planejamento e dos enfoques necessários dos di-
ferentes contextos da educação no Brasil;

• a movimentação da relação entre o reconhecimento da realidade


da escola e do próprio trabalho, a produção coletiva dos projetos
de intervenção e a elaboração do trabalho de monografia final do
curso com base nesse movimento.

Os conteúdos trabalhados não foram restritos às cargas horárias


das disciplinas, mas se movimentavam no reconhecimento das bases
concretas do cotidiano da gestão e aprofundavam-se ao ampliar a ca-
pacidade de reflexão, oferecendo perspectivas de análise para que os
gestores compreendessem os contextos históricos, sociais, culturais,

470 Luciani Paz Comerlatto | Sinthia Cristina Batista


organizacionais e de si próprios enquanto trabalhadores da educação,
na contradição da democracia no capitalismo, cujo alicerce se estrutura
na divisão de classes. Conforme Thompson (2012, p. 260),

Classe não é categoria estática, é uma categoria histórica


descritiva de pessoas numa relação no decurso do tempo
e das maneiras pelas quais se tornam conscientes das suas
relações, como se separam, unem, entram em conflito,
formam instituições e transmitem valores de modo classista.
Neste sentido, classe é uma formação tão “econômica”
quanto “cultural”, é impossível favorecer um aspecto em
detrimento do outro.

Evidenciamos ao longo do curso a importância de os gestores se


reconhecerem enquanto classe trabalhadora, a fim de mediarem a ela-
boração de um projeto educacional, fruto do diálogo coletivo, no qual
todos são sujeitos de vez e de voz, independentemente do segmento
ao qual pertencem. Essa identidade de classe é condição essencial para
o reconhecimento do direito à participação de toda a comunidade no
processo de discussão e na tomada de decisões, tendo em vista o pleno
desenvolvimento da autonomia e o exercício da democracia.

O CURSO NA SUA MATERIALIDADE: LIMITES,


POSSIBILIDADES E CONTRADIÇÕES

Ao longo de dois anos de curso, produzimos diferentes espaços de


formação, debates e projetos de ação na educação que se coadunam
aos objetivos propostos pelo curso. Para discutir esses espaços de diá-

Reflexões sobre a oferta do curso de Especialização em Gestão da Educação (EAD)


na Região Metropolitana de Porto Alegre e do Litoral Norte do RS 471
logo da Gestão Democrática da educação, traremos dois elementos: o
alcance do curso de especialização ofertado pelo campus Litoral Norte
da UFRGS e os conteúdos apresentados nas monografias de conclusão
de curso.
Aprendemos que, neste momento histórico, reconhecendo
suas contradições, a educação a distância se coloca como uma pos-
sibilidade de ampliação da universidade pública, ainda concentrada
espacialmente nos grandes centros e com algum avanço territorial
fruto do contraditório processo de expansão universitária nos governos
democráticos brasileiros da segunda década do século XXI – processo
do qual nós do campus Litoral Norte da UFRGS somos fruto. Carre-
gamos, portanto, o compromisso de ampliar cada vez mais o alcance
e consolidar um processo de expansão referenciado na qualidade
da educação.
Concretamente, construímos coletiva e cotidianamente uma
estrutura político-administrativa e pedagógica para a realização dos
cursos de especialização com referência ao próprio Projeto Político-
Pedagógico do curso: com princípios claros na Gestão Democrática da
educação. Para pensar a demanda da formação de gestoras e gestores,
o projeto do curso considerou:

De acordo com informações disponibilizadas pelo site da


Secretaria de Educação do estado do Rio Grande do Sul, a
oferta de ensino público da Educação Básica (11 CREA), do
Ensino Técnico profissionalizante e do Ensino Superior no Li-
toral Norte é composta de cento e quatro (104) escolas esta-
duais, duzentos e quarenta e uma (241) escolas municipais e

472 Luciani Paz Comerlatto | Sinthia Cristina Batista


duas (2) federais. Além da oferta de ensino público gratuito, o
litoral norte conta com sessenta e sete escolas particulares,
principalmente na etapa da educação infantil.

Com base nos dados acima, identificamos um grande público


alvo [sic] para formar em nível de especialização (lato sensu):
Gestores Educacionais (Diretores, Vice-Diretores, Coorde-
nadores Pedagógicos, Supervisores Escolares, Orientadores
Educacionais) efetivos das escolas públicas da Educação Bási-
ca e das secretarias municipais de educação, incluídos aqueles
de educação de jovens e adultos, de educação especial e de
educação profissional. Com esse curso, almejamos contribuir
com a qualificação dos gestores escolares na perspectiva da
gestão democrática e da efetivação do direito à educação
escolar com qualidade social (Universidade Federal do Rio
Grande do Sul, 2018, p. 17).

A partir dessa referência e da experiência de ensino e pesquisa do


coletivo de docentes proponente do curso, indicou-se no Projeto Polí-
tico-Pedagógico que a região do Litoral Norte do Rio Grande do Sul e a
Região Metropolitana de Porto Alegre carecem de ampliação da oferta
de especialização pública e gratuita em Gestão Educacional. Portanto,
ofertamos o curso nos polos da Universidade Aberta do Brasil, traba-
lhando em parceria com a UFRGS Litoral: Imbé, Santo Antônio da Patru-
lha, Porto Alegre, Sapucaia e Sapiranga.
Constatamos na prática essa necessidade ao enfrentar o processo
de seleção de cursistas, pois da oferta de 150 vagas obtivemos inscri-
ções de 356 professores gestores de escolas públicas. Notificamos que
os inscritos vinham de fora das regiões de abrangência direta dos polos:

Reflexões sobre a oferta do curso de Especialização em Gestão da Educação (EAD)


na Região Metropolitana de Porto Alegre e do Litoral Norte do RS 473
de Santa Catarina, São Paulo, Rio de Janeiro e até do Pará. No entanto,
não pudemos atender toda a demanda com o limite de 30 vagas em cada
polo (150 no total). Esse processo seletivo assegura a escolha acertada
da presença da UFRGS na região do Litoral Norte e o compromisso com
a educação pública da região, sinalizando ainda o reconhecimento de
sua qualidade no país; mais do que isso, significa que há muito trabalho
a ser feito nessa direção.
O campus Litoral Norte da UFRGS assume o compromisso de ofer-
tar um curso na modalidade a distância, de qualidade social, que visa
contribuir para a melhoria da gestão da educação nos sistemas da edu-
cação, nas escolas e nas salas de aula, no estado do Rio Grande do Sul e
no Brasil, em consonância com a legislação vigente, e garante a forma-
ção continuada para gestores da educação básica.
Compreende-se que a especialização assume importância seminal
na formação continuada de muitos trabalhadores, sobretudo professo-
res da escola pública que não estão sendo atendidos plenamente pela
presença direta do Estado na área da gestão, garantindo a qualificação
do trabalho e da educação pública.
O Mapa 1 permite observar a abrangência do curso a partir dos
polos de oferta, considerando que, até a realização dos projetos de in-
tervenção, foram atendidas 203 escolas e, em parte delas (aproximada-
mente 10 escolas), mais de uma gestora ou gestor foram cursistas. Esse
mapa foi gerado com base nas informações dos projetos de intervenção
em colaboração com as tutoras do curso, no processo de organização
do seminário realizado no dia 7 de dezembro de 2019.

474 Luciani Paz Comerlatto | Sinthia Cristina Batista


Mapa 1 – Escolas atendidas no Curso de Especialização em Gestão da Educação (UFRGS
Litoral).

Fonte: Elaborado pelos autores. Desenho de Isaac Goulart da Silva.

A maior parte das escolas atendidas está na Região Metropolitana


de Porto Alegre (165 escolas), certamente constituída por maior nú-
mero de escolas e maior população em relação às outras regiões. Nos
polos da região do Litoral Norte foram atendidas 38 escolas. No entanto,
ao observar a distribuição espacial, nota-se que nem todos os cursistas
matriculados nos polos trabalham em escolas na região de abrangência
direta dos polos, havendo um forte intercâmbio entre os municípios de
moradia, os polos nos quais estão matriculados e os municípios de tra-
balho na gestão da educação.

Reflexões sobre a oferta do curso de Especialização em Gestão da Educação (EAD)


na Região Metropolitana de Porto Alegre e do Litoral Norte do RS 475
Foi possível ampliar essa discussão durante o seminário reali-
zado presencialmente no dia 7 de dezembro de 2019 na Faculdade de
Educação da UFRGS, a partir da apresentação e do debate dos proje-
tos de intervenção dos cursistas, objetivando problematizar a Gestão
Democrática da Educação em diferentes municípios da Região Metro-
politana de Porto Alegre e do Litoral Norte com base em diagnósticos
preliminares da gestão das escolas trabalhadas pelos estudantes do
curso de especialização.
Esse seminário surgiu a partir da necessidade da interlocução pre-
sencial com os gestores das escolas da Rede Pública de ensino da Região
Metropolitana de Porto Alegre e do Litoral Norte, a fim de dialogar so-
bre o cenário atual da Gestão da Educação e constituir estratégias so-
bre os desafios do atual momento histórico.
Realizaram-se, por meio de quatro momentos importantes:

• uma problematização da gestão da educação e uma avaliação geral


do contexto das políticas educacionais no Estado do Rio Grande do
Sul e no Brasil;

• a formação de grupos de trabalho por municípios, de acordo com


as escolas trabalhadas pelos gestores das escolas (estudantes do
curso de especialização);

• a partilha dos debates a partir dos relatos dos grupos de trabalho


por municípios;

• a sistematização de encaminhamentos de pesquisa e ações.

476 Luciani Paz Comerlatto | Sinthia Cristina Batista


Registrado como ação de extensão, o seminário atingiu seu obje-
tivo ao articular os debates ocorridos nas disciplinas durante o ano de
2019 à realidade das diferentes escolas do Litoral Norte e da Região
Metropolitana de Porto Alegre. Discutiu-se amplamente o processo de
aprofundamento da precarização da educação pública e as ameaças de
retrocesso à Gestão Democrática da Educação no Brasil, especialmente
no Estado do Rio Grande do Sul.
O encontro contou com 79 estudantes inscritos e 59 participantes,
além da presença de sete professores do curso de especialização em
Gestão da Educação. O debate atingiu cerca de 45 escolas presentes,
problematizando a realidade de diferentes municípios. Essa presença
de parte significativa dos cursistas permitiu tecer algumas considera-
ções interessantes sobre o alcance do curso.
Observamos que o curso atingiu diferentes regiões geográficas,
considerando a região do Litoral Norte do RS, a Região Metropolitana
de Porto Alegre (com destaque para o Vale do Rio dos Sinos), alguns mu-
nicípios da Serra Gaúcha e até um município de Santa Catarina.
Refinando a análise dos dados do seminário, complementados aos
dados dos projetos de intervenção, observa-se que foram alcançadas
168 instituições de educação localizadas na Região Metropolitana de
Porto Alegre e Serra, conforme Gráfico 1 e Tabela 1, assim distribuídas
por etapa ou Instituição de Ensino:

Reflexões sobre a oferta do curso de Especialização em Gestão da Educação (EAD)


na Região Metropolitana de Porto Alegre e do Litoral Norte do RS 477
Gráfico 1 – Instituições de educação atendidas na Região Metropolitana de Porto Alegre e
Serra.

Fonte: Elaborado pelos autores.

Tabela 1 – Instituições de educação atendidas na Região Metropolitana de Porto Alegre e


Serra.

Ensino Fundamental Ensino Educação Instituição Secreta-


(Municipal ou Estadual) Médio Infantil de Ensino ria/Centro
(Estadual) (Munici- Federal Municipal
pal) de Educa-
ção
92 11 54 4 7

Fonte: Elaborada pelos autores.

É interessante destacar uma presença significativa de cursistas


gestoras e gestores da Educação Infantil, o que levou ao curso a
discussão sobre trazer nas próximas edições um espaço de formação
que abordasse mais elementos para o trabalho na gestão da Educação
Infantil. Ainda, é importante dizer que nessa edição também foram al-
cançadas instituições de ensino em nível federal, com institutos de edu-

478 Luciani Paz Comerlatto | Sinthia Cristina Batista


cação e universidades nas quais estão instalados polos da UAB, assim
como gestores ligados às secretarias de educação municipal e centros
de educação.

Mapa 2 – Escolas atendidas na Região Metropolitana de Porto Alegre.

Fonte: Elaborado pelos autores. Desenho de Isaac Goulart da Silva.

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na Região Metropolitana de Porto Alegre e do Litoral Norte do RS 479
É preciso refletir, para além da quantidade, sobre a distribuição
dessas escolas, observando aquelas vinculadas por polos nos quais
os cursistas estavam matriculados. Na leitura das cartas imagem, é
destacado o atendimento de escolas em Porto Alegre, mas sobretudo
de escolas nas bordas da mancha urbana da cidade de Porto Alegre, com
pouco alcance de escolas no campo, na área rural da Região Metropoli-
tana e em municípios circunvizinhos.
Os dados apresentados na inscrição dos seminários trouxeram
uma amostragem da relação de deslocamentos que envolvem moradia,
estudo e trabalho dos cursistas que são gestores da educação. Observa-
mos que, das 79 gestoras e gestores inscritos, 21 não residem no mesmo
município em que trabalham, sendo mais forte a mobilidade no Litoral e
na Região Metropolitana de Porto Alegre. Um destaque interessante é
a identificação da mobilidade de professores no eixo da BR-101, resi-
dindo, trabalhando e estudando em municípios no trajeto Porto Alegre-
-Litoral Norte do Rio Grande do Sul. Como exemplo, há um cursista que
estudou no Polo Santo Antônio da Patrulha, trabalha no mesmo municí-
pio e mora em Gravataí, bem como cursistas que estão matriculadas no
Polo Imbé, trabalham em Porto Alegre e moram em Alvorada ou outros
municípios da Região Metropolitana.
Na região do Litoral Norte do Rio Grande do Sul, com base nos
dados do seminário complementados aos dados dos projetos de inter-
venção, observa-se que foram alcançadas 35 instituições de educação,
conforme Tabela 2 e Gráfico 2, assim distribuídas por etapa e instituição
de ensino:

480 Luciani Paz Comerlatto | Sinthia Cristina Batista


Tabela 2 – Instituições de educação atendidas na região do Litoral Norte do Rio Grande do Sul.

Ensino Fundamental (Muni- Ensino Médio Educação Instituição Secretaria


cipal ou Estadual) (Estadual) Infantil de Ensino Municipal de
(Municipal) Federal Educação
16 9 9 1 2

Fonte: Elaborada pelos autores.

Gráfico 2 – Instituições de educação atendidas na região do Litoral Norte do Rio Grande do Sul.

Fonte: Elaborado pelos autores.

Na observação da distribuição das escolas atendidas pelo Lito-


ral, destaca-se a concentração entre Imbé, Tramandaí e Osório, so-
bretudo no tecido urbano. Há escolas nas quais gestoras e gestores
estão vinculados aos polos do Litoral, mas estão localizados na Região
Metropolitana de Porto Alegre.

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na Região Metropolitana de Porto Alegre e do Litoral Norte do RS 481
Mapa 3 – Escolas atendidas no Litoral Norte.

Fonte: Elaborado pelos autores. Desenho de Isaac Goulart da Silva.

No total, foram abrangidas escolas de 25 municípios do Estado do


Rio Grande do Sul: Alvorada, Balneário Pinhal, Cachoeirinha, Caiçara,
Canoas, Capão da Canoa, Charqueadas, Dois Irmãos, Esteio, Gravataí,
Ibirubá, Imbé, Lindolfo Collor, Novo Hamburgo, Nova Prata, Osório,
Portão, Porto Alegre, Santo Antônio da Patrulha, Sapiranga, Sapucaia
do Sul, Terra de Areia, Torres, Tramandaí e Viamão. O projeto envolveu

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escolas das áreas de 11 Coordenadorias Regionais de Educação: CRE 01
– Porto Alegre, CRE 02 – São Leopoldo, CRE 04 – Caxias do Sul, CRE 09
– Cruz Alta, CRE 11 – Osório, CRE 16 – Bento Gonçalves, CRE 21 – Três
Passos, CRE 24 – Cachoeira do Sul, CRE 27 – Canoas, CRE 28 – Gravataí
e CRE 39 – Carazinho.
Essa breve análise espacial indica a necessidade da continuidade
desse trabalho por diferentes instituições públicas de educação e da
aproximação das diferentes coordenadorias regionais de educação e
secretarias municipais de educação dos municípios supracitados.
A materialização dessa abrangência se realiza em quantidade e
qualidade, expressas sobretudo pela possibilidade de reflexão e prática
a respeito das questões levantadas ao longo do curso via projetos de
intervenção e trabalhos de conclusão de curso.
Foram apresentados 97 projetos de intervenção, que indicaram
16 temáticas amplas a serem trabalhadas nas escolas: Projeto Políti-
co-Pedagógico (17 projetos); Educação Infantil (11 projetos); Grêmio
Estudantil (10 projetos); BNCC (oito projetos); Planejamento Partici-
pativo (oito projetos); Evasão Escolar (sete projetos); Aprendizagem
(sete projetos); Violência (sete projetos); Participação da Família (cinco
projetos); Formação Continuada (cinco projetos); Educação Especial
(quatro projetos); Conselho Municipal de Educação (três projetos); Re-
gimento Escolar (dois projetos); Coordenador Pedagógico (dois pro-
jetos); Ensino Superior (um projeto); e Parceria Público-Privada (um
projeto). Dos 97 projetos, foram finalizados 86 trabalhos de conclusão
de curso.

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na Região Metropolitana de Porto Alegre e do Litoral Norte do RS 483
Esmiuçando os conteúdos desses trabalhos, podemos compreen-
dê-los em alguns eixos centrais que dizem respeito à gestão da educa-
ção, considerando a necessidade de forjar a gestão democrática.
No que se refere às estruturas políticas da gestão escolar, os pro-
jetos consideraram diferentes momentos da realização política dos
espaços da gestão; nesse sentido, foram propostos projetos que se
debruçaram sobre a articulação dos grêmios estudantis (10 projetos),
o regimento escolar (dois projetos), a importância de debater a com-
posição e a organização dos conselhos municipais de educação (três
projetos) e o necessário debate acerca das parcerias público-privadas
(um projeto).
É interessante destacar que, no período pré-pandêmico, muitos
projetos carregaram uma proposta emergente das escolas apon-
tando para a construção coletiva dos instrumentos da gestão sob a
necessidade da organização política. Foram sinalizadas a fusão dos
projetos político-pedagógicos às organizações de regimentos esco-
lares e a mobilização à implantação dos espaços de pais e mestres
e grêmios estudantis. Os trabalhos indicaram que a organização dos
espaços políticos, seja de seus resgates (para o ressurgimento desses
espaços nas escolas em que foram rompidos espaços democráticos),
seja de seu nascimento, é fundamental para a constituição da auto-
nomia das escolas.
Portanto, os trabalhos discutiram a importância da pesquisa e
da reflexão sobre os impactos na autonomia das escolas pelos pró-
prios sujeitos da escola, considerando os projetos e programas go-
vernamentais que buscam implementar as Parcerias Público-Privadas
e indicando a necessidade de ampliar a pesquisa e a participação so-

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bre os diferentes espaços da gestão, como os conselhos municipais
de educação.
Sobre as reestruturações curriculares e a organização do trabalho do-
cente, desde a promulgação da Lei de Diretrizes e Bases da Educa-
ção em 1996, temos sido atravessados pelos reiterados processos de
formulação e reformulação curricular, que implicam a reestruturação
do trabalho docente e da gestão da educação. O envolvimento de
todos os professores e professoras nesses processos nem sempre se
realizou democraticamente, mas alterou profundamente o trabalho
cotidiano. Observamos a contradição expressa pelas práticas democrá-
ticas que têm avançado no mesmo ritmo da desarticulação destas pelos
programas e projetos de governos que não asseguram as políticas de
Estado. Portanto, é evidente a preocupação com mais uma reforma
expressa pela BNCC (oito projetos) e a necessidade de discuti-la com
todos os sujeitos envolvidos no espaço escolar, bem como de se
apropriar das elaborações dos projetos político-pedagógicos (17 pro-
jetos) e problematizar a Educação Infantil (11 projetos), a Educação
Especial (quatro projetos) e os processos de aprendizagem (sete pro-
jetos). Os trabalhos desenvolvidos evidenciaram a amarração entre a
formação de professores no Ensino Superior (um projeto), a forma-
ção continuada (cinco projetos) e a realização do trabalho a partir de
dois projetos que discutiram o trabalho da coordenação pedagógica
(dois projetos).
Evidentemente, esse eixo é o de maior número de trabalhos,
pois abarca diferentes contextos da estrutura da vida da escola. A
preocupação com a formação continuada foi expressa por meio de
projetos que situam essa formação no exercício da democracia e da

Reflexões sobre a oferta do curso de Especialização em Gestão da Educação (EAD)


na Região Metropolitana de Porto Alegre e do Litoral Norte do RS 485
necessidade de fortalecimento dos conhecimentos docentes desen-
volvidos ao longo de sua carreira, mas que exigem momentos de
reflexão para que haja saltos qualitativos no trabalho docente. Assim,
destaca-se o debate em torno do tempo de trabalho e da impor-
tância de criar espaços e tempos para a participação nos processos
coletivos, uma vez que o trabalho docente não pode ser reduzido ao
tempo de sala de aula.
Portanto, para a apropriação plena dos projetos político-pedagó-
gicos, os trabalhos refletem a vivência coletiva dos diferentes sujeitos
nos processos de elaboração e execução dos PPPs, considerando uma
série de obstáculos e intervenções heterônomas à própria escola. Isso
reafirma que os projetos devem ser construídos coletivamente, e não
assumidos como modelos de ensino que desconsideram o processo
democrático e as singularidades dos diferentes espaços da educação.
Observa-se nessa gama de questões uma preocupação e uma
ação contundente nos processos de ampliação da participação da
comunidade escolar nos processos democráticos da gestão da Edu-
cação Infantil, salvaguardando o direito universal da educação na in-
fância com base em propostas pedagógicas comprometidas com a
sociabilidade, o brincar e o desenvolvimento pleno das crianças, al-
cançando o debate da educação inclusiva e dos conflitos vividos pelas
condições, muitas vezes, insuficientes para o desenvolvimento desse
trabalho nas escolas públicas. Ressalta-se que o direito à educação
inclusiva foi também discutido em diferentes momentos do ensino e
do processo de formação.

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Em linhas gerais, os trabalhos se debruçaram sobre os desafios
em reestruturar os Projetos Político-Pedagógicos à luz da legislação e,
ao mesmo tempo, estabelecer, a partir da referência crítica da educa-
ção como um direito social, os caminhos para propostas curriculares
alicerçadas na realidade escolar, nas necessidades da comunidade e
nos projetos coletivos de uma educação de qualidade. Os trabalhos
alcançaram os diferentes sujeitos sociais da comunidade escolar: o
trabalho da coordenação pedagógica, da orientação, da direção, dos
docentes, dos estudantes e da família.
No eixo da relação entre a escola e a sociedade, os projetos de inter-
venção e, posteriormente, os trabalhos de conclusão compartilharam
os conflitos e as possibilidades forjadas nas contradições do direito à
educação e da impossibilidade da permanência nos espaços da edu-
cação, seja na escola como estudante, seja nos espaços políticos da
gestão como gestores e comunidade escolar.
Apesar dos diferentes enfoques, os trabalhos permitiram pro-
blematizar as possibilidades de participação da família na gestão e
explicitar a contradição entre a apropriação da escola e o estranha-
mento com a educação. As famílias, num processo histórico regres-
sivo-progressivo, aproximam-se e distanciam-se da escola: quando
da necessidade de defender a escola como um direito individual,
aproximam-se; quando da defesa da escola como um direito cole-
tivo, distanciam-se. Muitas famílias compreendem que é preciso se
aproximar, mas indicam a impossibilidade da vida cotidiana para a
participação política. O trabalho, o não trabalho, a educação negada
ao longo da vida, a violência e a miséria mostram-se como obstáculos
concretos que precisam ser superados.

Reflexões sobre a oferta do curso de Especialização em Gestão da Educação (EAD)


na Região Metropolitana de Porto Alegre e do Litoral Norte do RS 487
A evasão escolar e a violência (dentro e fora da escola) coloca-
ram-se como questões prementes para a realização concreta da edu-
cação como um direito a se alcançar na escola e nela permanecer. Os
trabalhos apontam que, sem o fortalecimento da relação escola-so-
ciedade, tais obstáculos são intransponíveis. É preciso democratizar
e redemocratizar a escola, do modo mais amplo que essa afirmação
possa se colocar.
Dentro dos eixos, algumas preocupações são latentes entre as
gestoras e os gestores cursistas da primeira edição do curso que
se realizou entre os anos de 2019 e 2020, em meio à pandemia
da covid-19:

• a ampliação dos projetos e programas que envolvem Parcerias


Público-Privadas que atingem a formação de professores; a for-
mação continuada de professores com projetos de formação e
acompanhamento durante todo o ano, elaborados por empre-
sas; a oferta de vagas, sobretudo na Educação Infantil, com as
escolas de administração privada e a compra de vagas para a
oferta pública;

• a alteração dos processos de escolha da equipe diretiva das es-


colas, com a publicação de decretos municipais que ferem a le-
gislação vigente, o que implica a perda de autonomia da Gestão
Democrática e o aprisionamento das escolas às gestões dos go-
vernos municipais eleitos;

• as recorrentes tentativas de desarticulação dos diferentes espa-


ços políticos da gestão escolar a partir da precarização do traba-
lho docente; o confisco de espaços da organização estudantil; a
inviabilidade de espaço de organização do trabalho político nas

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escolas e o domínio político de instituições heterônomas à edu-
cação em seus conselhos e outros órgãos de gestão coletiva;

• o aumento da preocupação, sobretudo no processo da pande-


mia, com a saúde das professoras e dos professores, especial-
mente a saúde mental;

• a transferência das responsabilidades da formação continuada


de professores para eles e a ampliação dos projetos de formação
privados articulados às plataformas digitais;

• a naturalização de entidades não governamentais e entidades


privadas para trabalhar pedagogicamente nas escolas.

Chegamos ao final do curso com 87 gestoras e gestores das escolas


públicas compartilhando suas experiências e os desafios da realidade
enfrentada pela educação pública. Como universidade, contribuímos
ativamente no debate teórico e prático da pesquisa, referenciada es-
pecialmente na pesquisa-ação, compreendida como possibilidade efe-
tiva de movimentação da realidade no chão da escola e potência para
a transformação efetiva das condições impostas pelas múltiplas deter-
minações do modo de produção capitalista, que busca apenas garantir
um espaço escolar depositário, de treinamento da classe trabalhadora.

ALGUMAS CONSIDERAÇÕES

O debate apresentado nos permite afirmar que, historicamente, a


educação brasileira tem sido constituída nos processos da luta pela qua-
lidade e pela universalização da educação. Cabe ao Estado brasileiro

Reflexões sobre a oferta do curso de Especialização em Gestão da Educação (EAD)


na Região Metropolitana de Porto Alegre e do Litoral Norte do RS 489
garantir a formação inicial e continuada dos profissionais da educação
e produzir nesse movimento uma gestão da educação coletiva que ma-
terialize as necessidades reais das escolas da educação básica e de dife-
rentes instituições de educação.
Compartilhamos não apenas um desejo, como o apresentado no
ponto de partida deste texto, mas a luta por um espaço escolar forjado
pela comunidade, para a comunidade e com a comunidade; um espaço
imbuído da capacidade de produzir conhecimento a partir do reconhe-
cimento histórico dos saberes socialmente construídos por toda a hu-
manidade, de propor um saber popular que seja capaz de discernir as
contradições opressoras da reprodução do conhecimento, para que se
supere uma educação que apenas formata e não emancipa.
Nessa partilha, aprendemos também que o processo de redemo-
cratização do Brasil é contínuo, constante, porque a democracia neste
país também se faz na luta. O fato é que o professor da escola se torna
gestor porque assume a escola como espaço pensado e produzido por
seus próprios sujeitos sociais, assim como na universidade somos pro-
fessores e, em muitos momentos, gestores, porque tomamos a insti-
tuição para gestar em luta pela autonomia universitária; esse direito,
portanto, não nasce da benevolência do Estado.
Conflituosamente, trabalhamos na perspectiva do reconhecimento
de que nem a democracia nem a tomada de conhecimento podem ser
dadas a ninguém: é preciso problematizar arduamente as contradições
vividas por todos nós, professores/gestores da educação. Para tanto,
é fundamental avançar criticamente sobre: a introjeção crescente de
pensadores neoliberais nos Projetos Político-Pedagógicos, respaldada
pelas organizações internacionais; as parcerias público-privadas nos

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diferentes projetos demandados pela comunidade e no avanço sobre a
própria gestão escolar; a retirada de direitos políticos das escolas, que
vai desde a imposição heterônoma de Projetos Político-Pedagógicos
provenientes como modelos pelas mantenedoras até a indicação de di-
retores, vice-diretores e orientadores pedagógicos; e a implantação de
uma educação de treinamento imposta pelas plataformas digitais com
pacotes tecnológicos.
Considerando o trabalho realizado por mais de 20 anos no pro-
cesso de formação de gestoras e gestores a partir da ação de institui-
ções públicas, como a escola de gestores da UFRGS, e a análise sobre a
abrangência e os conteúdos apresentados nos projetos de intervenção
e nos trabalhos de conclusão do curso de especialização de Gestão da
Educação ofertado pelo campus Litoral Norte da UFRGS, reiteram-se a
importância e a necessidade de continuidade do trabalho de formação
de gestoras e gestores no Estado do Rio Grande do Sul por meio de cur-
sos de especialização. Os mapas indicam que a oferta do curso em polos
da Região Metropolitana de Porto Alegre e na região do Litoral Norte
não apenas foi acertada, mas continua sendo necessária. Destaca-se a
abrangência pelo Vale do Rio dos Sinos e pela Serra Gaúcha, alcançan-
do-se, inclusive, outros estados da federação.
É prerrogativa do Estado a salvaguarda da formação continuada
de professoras e professores; portanto, o trabalho deve ser mantido no
seio das instituições públicas de educação. Mais do que isso, a oferta
desse processo de formação, fundamentado na Gestão Democrática da
Educação e na prática da pesquisa realizada pelo professorado a partir
de sua própria realidade, é potente e fundamental.

Reflexões sobre a oferta do curso de Especialização em Gestão da Educação (EAD)


na Região Metropolitana de Porto Alegre e do Litoral Norte do RS 491
É parte da luta pela qualidade da educação e pelo processo radi-
cal de transformação social que os professores tomem para si o reco-
nhecimento das condições de sua própria realidade e sejam capazes
tanto de compreender em diferentes escalas as relações econômicas,
políticas, culturais e sociais enquanto processo histórico que deter-
mina contraditoriamente a vida cotidiana da escola quanto de discer-
nir de que modo, coletivamente, podemos alterá-la, transformando a
escola e, com isso, a realidade social em sua totalidade.
Para concluir, o curso em questão se coloca contra qualquer tipo
de intervenção na educação, contra o aparelhamento ideológico do
Estado representado fortemente pela “escola sem partido” e contra o
avanço das escolas militarizadas e das escolas privatizadas. Orientamo-
-nos pelo compromisso da defesa da educação pública, socialmente re-
ferenciada, laica e de qualidade, e pela consolidação do campus Litoral
Norte da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

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1988. Brasília, DF: Presidência da República, [2016].

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492 Luciani Paz Comerlatto | Sinthia Cristina Batista


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