O Gênio Da Espécie
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ESTUDOS FILOSÓFICOS
“O GÊNIO DA ESPÉCIE”:
CONSCIÊNCIA E CONHECIMENTO EM NIETZSCHE
© Lindsay Harvest
RESUMO: Este artigo analisa a crítica de Nietzsche à noção de consciência e suas conseqüências
epistemológicas, por meio do estudo do papel desempenhado pela linguagem na constituição da
consciência e do conhecimento. Para Nietzsche, a consciência, antes de ser uma marca da
superioridade humana, é um produto da natureza. Assim, a consciência desempenha um papel
fundamental no conhecimento justamente porque este, como atividade consciente, realiza
procedimentos que caracterizam a própria consciência.
PALAVRAS-CHAVE: Consciência; Conhecimento; Linguagem.
ABSTRACT: This paper analyses Nietzsche’s critique of the notion of consciousness and its
epistemological consequences. In order to achieve this aim, it investigates the role played by
language in the formation of consciousness and knowledge. According to Nietzsche, consciousness
is not a mark of human superiority, but a product of nature. Consciousness plays a fundamental
role in the knowledge simply because knowledge, as a conscious activity, performs procedures
that characterize the consciousness itself.
KEYWORDS: Consciousness; Knowledge; Language.
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ANDRÉ LUÍS MOTA ITAPARICA
A
noção de consciência, marco do
pensamento moderno iniciado por conceber em que medida poderíamos passar
Descartes, solo primeiro a partir do sem ela: e é nesse começo do conceber que
qual o filósofo francês erige seu nos coloca a fisiologia e a zoologia, as quais,
empreendimento, inicia uma longa tradição portanto, precisaram de dois séculos para
e permanece sendo um dos temas mais alcançar a premonição de Leibniz, que voava
atuais não apenas do pensamento filosófico na sua dianteira” (NIETZSCHE, 1991a, p. 172).
como também do científico. A idéia da Desse modo, antes de tudo Nietzsche
conscientia, ou seja, de uma autoconsciência sublinha o caráter reflexivo da noção de
de que determinado conteúdo mental consciência. Encontrar a origem e sentido
pertence a um ego, seja esse conteúdo da consciência, diz o filósofo, não será
epistêmico, volitivo, imaginário ou sensível, considerá-la como uma instância superior ao
cria uma noção de subjetividade que se torna sensível, mas compreendê-la como um
parte integrante e determinante do resultado ou capacidade de uma determinada
conhecimento. espécie.
A partir de então, a consciência é como Nietzsche nunca deixará de frisar a
um meio entre as coisas e as representações necessidade de reconduzir o homem ao seu
que delas temos, que será capaz de aferir e texto natural, o que significa estudar como
determinar, por meio de critérios aspectos instintivos, pulsionais e
estabelecidos, quais de nossas inconscientes foram decisivos para a
representações correspondem de fato a formação e compreensão dos aspectos
objetos exteriores, quais delas são conscientes. Por isso a referência a Leibniz
verdadeiras e quais são falsas. A partir de como um de seus precursores, sobre o qual
então, a consciência passa a ser uma noção comenta Erwin Schlingen: “Segundo Leibniz
epistêmica central, e a realidade passa a ser nós mesmos podemos ter uma percepção
secionada entre o mundo exterior, objetivo, sensível (perzepiren), que, sem apreensão
das coisas extensas, e o mundo interior, identificadora (consciente) do percebido, é
subjetivo, da coisa pensante.1 contudo efetiva na alma” (SCHLINGEN, 1999,
Para Nietzsche, a consciência não p. 9). De fato, como atesta Nietzsche, não é
possui esse caráter metafísico. Antes de ser de modo algum necessário ter a
uma marca da superioridade humana, ela autoconsciência de grande parte de nossos
se mostra como um produto da natureza. A estados mentais, para a realização de nossas
esse respeito, em um aforismo intitulado “O atividades vitais: “Poderíamos, com efeito,
gênio da espécie”, Nietzsche afirma: “O pensar, sentir, querer, recordar-nos,
problema do ter-consciência (mais poderíamos igualmente ‘agir’ em todo sentido
corretamente: do tomar-consciência-de-si) da palavra: e, a despeito disso, não seria
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ANDRÉ LUÍS MOTA ITAPARICA
O homem, por ser uma criatura estabelecimento de uma linguagem que sirva
comparativamente mais frágil do que outras, de ponte. Com isso, Nietzsche sublinha a
precisou, para sua adaptação ao meio estreita relação entre linguagem e
ambiente, do estabelecimento de códigos de consciência: “O homem, como toda criatura
comunicação sofisticados, para que assim viva, pensa continuamente, mas não sabe
pudesse sobreviver, ao criar uma rede de disso; o pensamento que se torna consciente
proteção e auxílio recíproco com seus é apenas a mínima parte dele, e nós dizemos:
semelhantes. Uma imposição externa, assim, a parte mais superficial, a parte pior: – pois
foi responsável pelo surgimento do mundo somente esse pensamento ocorre em
interno da consciência: “Que nossas ações, palavras, isto é, em signos de comunicação”
pensamentos, sentimentos e mesmo (NIETZSCHE, 1991a, p. 173).
movimentos, nos cheguem à consciência – A consciência, enquanto resultado de
pelo menos uma parte deles –, é a uma necessidade de comunicação, só pôde
conseqüência de um terrível, de um longo ‘é surgir graças à linguagem. Não que antes
preciso’” (NIETZSCHE, 1991a, p. 173). da linguagem o homem não pensasse, não
A consciência surge, desse modo, para sentisse, não quisesse: ele apenas não era
comunicar, de forma inteligível, as situações consciente disso, pois não precisava
de perigo, de carência, de dificuldade. Ora, compreender esses estados para em seguida
para que eu me comunique com outro, é expressá-los. Graças ao surgimento de um
necessário que eu saiba e compreenda o que código, de um vocabulário e de uma sintaxe,
se passa em minha mente, para então depois o homem pôde se compreender e se
expressá-lo, origem do caráter reflexivo da comunicar com seus semelhantes. As
consciência: “(...) para tudo isso ele [o palavras, no entanto, nada mais são que
homem] necessitava, em primeiro lugar, de generalizações lingüísticas, nas quais
‘consciência’, portanto ‘saber’ ele mesmo o submetemos uma coleção de particulares a
que lhe falta, de ‘saber’ como se sente, de uma denominação geral, subtraindo deles
‘saber’ o que pensa” ( NIETZSCHE , 1991 a, p. tudo aquilo que os singulariza e mantendo
173). A consciência surge, nas palavras de apenas as marcas comuns: “O que é, afinal,
Nietzsche, como uma “rede de ligação” entre a vulgaridade (Gemeinheit)? — Palavras são
os homens. Para essa rede se constituir, por sinais sonoros para conceitos; mas conceitos
sua vez, é preciso que haja um código comum, são sinais-imagens mais ou menos
que permita o entendimento mútuo, ou seja, determinados, para sensações recorrentes
uma linguagem. O pensamento consciente, e associadas, para grupos de sensações. Não
reflexivo, desse modo, já pressupõe o basta utilizar as mesmas palavras para
© Ralf Wolter
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compreendermos uns aos outros; é preciso Ora, aquilo que seria o campo principal
utilizar as mesmas palavras para a mesma da subjetividade, o que é próprio a cada
espécie de vivências interiores, é preciso, indivíduo, é justamente o que não pode ser
enfim, ter a experiência em comum (gemein) comunicado. A consciência significa apenas
com o outro” (NIETZSCHE, 1996, p. 182). a autocompreensão e comunicação daquilo
As palavras, ao traduzirem o conteúdo que não singulariza ninguém. Surgida como
mental de cada indivíduo, não são capazes meio de sobrevivência, ela serve à
de dar conta de suas especificidades. Ao comunidade, ao “rebanho”, como diz
contrário, para entender esta dinâmica é Nietzsche, ao que é comum e vulgar, ao
necessário que as palavras expressem o que mediano e ao medíocre: “Não nos estimamos
há de comum, vulgar, de tal modo que assim mais o bastante, quando nos comunicamos.
entendamos porque a consciência, ao Nossas vivências mais próximas não são nada
contrário de ser fruto de uma introspecção tagarelas. Não poderiam comunicar-se, se
íntima e individual, é expressão de uma quisessem. É que lhes falta a palavra. (...) A
comunidade. É a vivência comum que fala, ao que parece, só foi inventada para o
determina os signos que definirão, de mediano (Durchschnittliches), médio,
maneira indiscernível, o mesmo conjunto de comunicativo. Com a fala já se vulgariza o
sentimentos, pensamentos e volições. A falante” (NIETZSCHE, 1991b, p. 118).
subjetividade, poderíamos dizer, é sempre Esse processo de “conscientização” de
intersubjetiva. É o que Nietzsche deixa claro nossos impulsos, assim, caracteriza-se
na seguinte passagem: “Meu pensamento é, sobretudo como um processo de
como se vê: que a consciência não faz parte simplificação, ajustamento e generalização.
propriamente da existência individual do Feita para a comunicação, a conscientização
homem, mas daquilo que nele é da natureza reduz os estados interiores a traços gerais,
de comunidade e do rebanho (...) e que, elimina particularidades, sublinha apenas
conseqüentemente, cada um de nós, com a alguns aspectos, empobrece o multifário
melhor vontade de entender a si mesmo, tão complexo de impulsos que distingue o pensar,
individualmente quanto possível, de o sentir, o querer. O “mundo interior”, antes
‘conhecer a si mesmo’, sempre trará à de um lugar privilegiado para o conhecimento
consciência, precisamente, apenas o não- do “mundo exterior”, sofre o mesmo processo
individual em si, seu ‘mediano’ de “falsificação” que Nietzsche identifica na
(Durchschnittliches)” ( NIETZSCHE , 1991 a, p. nossa apreensão da realidade. Nas palavras
173).2 de Nietzsche, o processo de conscientização
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ANDRÉ LUÍS MOTA ITAPARICA
© Gareth Soutwell
e um fenomenalismo: “Isto é propriamente o
fenomenalismo e perspectivismo, assim como
eu o entendo: a natureza da consciência
animal acarreta que o mundo, de que
podemos tomar consciência, é apenas um
mundo de superfícies e de signos, um mundo
generalizado, vulgarizado (eine vergemeinerte
Welt)” ( NIETZSCHE , 1991 a, p. 173). Com
fenomenalismo, Nietzsche quer mostrar
como não apenas o “mundo externo” pode ser
considerado “fenomênico”, como também o
“mundo interno” da consciência. Com
perspectivismo, Nietzsche quer dizer que
esse processo de apreensão consciente é um
processo que possui um “ponto de vista”
determinado, o que significa um recorte
daquilo que é apreendido.
Não é à toa que esses dois conceitos
serão fundamentais na teoria do
conhecimento de Nietzsche. Se, por um lado,
assim como a tradição moderna, Nietzsche
continua a colocar no centro a noção de
consciência para o conhecimento, por outro
lado, os dois casos não seguem, contudo, os
mesmos motivos. Se a tradição via na
consciência o ponto arquimediano
fundamental para compreender uma
realidade cognoscível, seja no ego cartesiano
ou na kantiana “representação que
acompanha todas as minhas
representações”, em Nietzsche a consciência
tem papel fundamental no que ele chama de
conhecimento justamente porque o
conhecimento, como atividade consciente,
realiza procedimentos que caracterizam a
própria consciência.
Assim como a consciência, o
conhecimento é mais um meio adaptativo do
homem, por meio do qual ele procura não
apenas sobreviver, mas também exercer
controle da natureza: “não ‘conhecer’, mas
esquematizar, fornecer ao caos tanta
regularidade e forma quanto satisfaça nossa
necessidade prática. Na formação da razão,
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Conhecimento objetivo, para Nietzsche, é nesse sentido uma contradição nos termos.
Não há, para o filósofo alemão, um ponto de vista exterior a todas as perspectivas que
pudesse fornecer uma visão pura do objeto; não há, também, nenhum de tipo de certeza
imediata ou intuição que garanta a clareza e distinção de nossas representações para
estabelecer um critério de verdade. A clareza e distinção das idéias, ao contrário, já é um
critério antes de tudo lógico de aferição, e portanto um fruto do fenomenalismo e
perspectivismo que fundam a lógica. Se há uma objetividade para Nietzsche, esta é uma
objetividade que se constitui paulatinamente pelo acúmulo das mais variadas perspectivas:
“Existe apenas um olhar perspectivo, apenas um ‘conhecer’ perspectivo; e quanto mais afetos
permitirmos falar sobre uma coisa, quanto mais olhos, diferentes olhos, soubermos utilizar
para essa coisa, tanto mais completo será nosso ‘conceito’ dela, nossa ‘objetividade’”
(NIETZSCHE, 2003, p. 109).
Consciência e conhecimento estão intimamente ligados pelo fato de que ambos
dependem da linguagem. É a linguagem que permite a expressão e a comunicação do
pensamento consciente; é ela, portanto, que encerra o campo do que pode ser conhecido.
Nosso conhecimento, assim, está limitado àquilo que nosso léxico e nossa gramática
permitem, que é também aquilo que nos vem à consciência: “A linguagem pertence, segundo
seu surgimento, ao tempo da mais rudimentar forma de psicologia: entramos em um grosso
fetichismo quando trazemos à consciência os pressupostos fundamentais da metafísica da
linguagem, ou, em alemão: da razão. A consciência vê em todo lugar o agente e a ação: crê
em geral na vontade como causa; crê no ‘eu’, no eu como ser, no eu como substância, e
projeta a crença no eu-substância em todas as coisas” (NIETZSCHE, 1988c, p. 77).
© Louis Viertel
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T & M
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SOBRE O AUTOR
André Luís Mota Itaparica é Doutor em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP). Professor Adjunto da
Universidade do Estado da Bahia (UNEB). Endereço eletrônico: itapa@usp.br.
NOTAS
1. Na Alemanha, o termo conscientia ganha, com Christian Wollf, uma tradução: Bewuβt sein, entendido tanto como o
estar consciente de que os conteúdos mentais referem-se a objetos (sentido intencional) quando o de que eu sou o
autor desses conteúdos mentais (sentido reflexivo). Sobre o termo consciência, ver: Schlingen, 1999: 10-18. Sobre a
questão da consciência em Nietzsche, ver também: Marton, 2000: 135-46; Giacoia Junior, 2001: 30-46.
REFERÊNCIAS
GIACOIA JUNIOR, Oswaldo. Nietzsche como psicólogo. São Leopoldo: Unisinos, 2001.
M ARTON , Scarlett. “Nietzsche: consciência e inconsciente”. In: ---. Extravagâncias: ensaios sobre a
filosofia de Nietzsche. São Paulo; Ijuí: Discurso; Unijuí, 2000.
NIETZSCHE, Friedrich. Sämtliche Werke: Kritische Studienausgabe. Vol. 11. Berlim; Munique: Walter de
Gruyter; DTV, 1988a.
---. Sämtliche Werke: Kritische Studienausgabe. Vol. 13. Berlim; Munique: Walter de Gruyter; DTV,
1988b.
---. Sämtliche Werke: Kritische Studienausgabe. Vol. 6. Berlim; Munique: Walter de Gruyter; dtv, 1988c.
---. Obras incompletas. Vol. I. Trad. Rubens Rodrigues Torres Filho. São Paulo: Nova Cultural, 1991a.
---. Obras incompletas. Vol. II. Trad. Rubens Rodrigues Torres Filho. São Paulo: Nova Cultural, 1991b.
---. Além do bem e do mal. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
---. Genealogia da moral. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
SCHLINGEN, Erwin. Nietzsches Theorie des Bewuβtseins. Berlim: Walter de Gruyter, 1999.
UNIOESTE
Universidade Estadual do Oeste do Paraná
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