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16º Congresso Brasileiro de Assistentes Sociais

Tema: “40 anos da “Virada” do Serviço Social”


Brasília (DF, Brasil), 30 de outubro a 3 de novembro de 2019

Eixo: Serviço Social, Relações de Exploração/Opressão de Gênero, Raça/Etnia, Sexualidades.


Sub-eixo: Ênfase em Gênero.

EMPODERAMENTO: UMA CATEGORIA ÚTIL COMO ESTRATÉGIA


ESTRITAMENTE DEMOCRÁTICA

Débora Elita de Sousa Silva1


Resumo: Neste artigo, por meio da pesquisa bibliográfica, versamos sobre o conceito
“empoderamento”, explicitando sua origem e significado. Apresentamos as divergências e
convergências entre os movimentos feministas e a perspectiva de “empoderamento”. Relacionamos o
debate à discussão sobre emancipação política e emancipação humana. E problematizamos a ação
“empoderadora”: uma prática não revolucionária.
Palavras-chave: Empoderamento; Opressão; Poder; Relações desiguais entre os sexos; Sociedade
capitalista.

Abstract: In this bibliographical paper, we discuss about the term “empowerment”, explaining its origin
and meaning. Divergences and convergences between the feminist moviments and the perspective of
“empowerment” are presented. We relate the debate to the discussion about political emancipation
and human emancipation. We also problematize the “empowering” action: an anti-revolutional
practice.
Keywords: Empowerment; Opression; Power; Inequal relations between sex; Capitalist society.

1. INTRODUÇÃO

A articulação entre patriarcado e capitalismo traz implicações sobre a vida dos


homens e principalmente das mulheres, as quais vivenciam processos de exploração e
dominação que as subjugam e as subalternizam aos homens. As relações de desigualdade
entre os sexos manifestam-se na vivência da sexualidade, no mercado de trabalho, e
noutros espaços da vida cotidiana.

As desigualdades expressas nas relações entre homens e mulheres possuem um


contexto que as situa, e esse contexto não se restringe à sociedade patriarcal capitalista,
machista, exploratória e heterossexista2. A questão cultural, dentre outros fatores, contribui
para particularizar as opressões-dominações-explorações às quais as mulheres são

1 Estudante de Pós-Graduação. Universidade Federal do Rio Grande do Norte. E-mail:


<deboraelita@hotmail.com>.
2
De forma sintética, o heterossexismo pode ser definido como a imposição da heterossexualidade
nas relações sociais. Optamos pela utilização deste termo em substituição ao termo
“heteronormatividade”, por compreendermos que nesse segundo caso é como se a norma
determinasse as relações sociais, ao passo que quando falamos em heterossexismo estamos
recuperando a ideia de que a imposição da heterossexualidade não ocorre sobre a norma, mas sobre
as relações sociais (CISNE; SANTOS, 2018).
2

submetidas. São desigualdades construídas, sustentadas sob a naturalização das


diferenças transformadas em justificativas para a condição de subalternização das mulheres
aos homens.

Camurça e Gouveia (2004), com base em Scott (1995), explicitam que a vivência
entre homens e mulheres é determinada e mantém-se socialmente mediante símbolos,
normas e regras, instituições, e até mesmo, por meio da subjetividade, sustentadas pelas
representações de gênero. Nessa perspectiva, “[...] O papel das doutrinas religiosas,
educativas e jurídicas, sempre foi o de afirmar o sentido do masculino e do feminino,
construído no interior das relações de poder” (SAFFIOTI, 1992, p.188, apud SILVA, 2011,
p.5).

Tais representações, como já mencionamos, são fruto de construção social e dizem


respeito a comportamentos a serem assumidos pelos indivíduos, a partir das diferenças
biológicas e físicas utilizadas para distinguir homem e mulher (CAMURÇA; GOUVEIA,
2004). Com base nessas diferenças e, consequentemente, nas representações, homens e
mulheres vivenciam relações díspares entre si, nos espaços públicos e privados. As
disparidades revelam que entre os dois sujeitos há, sobretudo, desigualdade de poder; e
uma vez que esse é atribuído apenas ao homem, restaria à mulher submeter-se.

A política é considerada uma atividade pública, realizada no espaço público, de


todos, ou, pelo menos, de todos os homens. As mulheres, no entanto, têm ocupado o
espaço público, a fim de que seja o espaço de todos e todas. Para tanto, apresentam no
espaço público os problemas relacionados à vida privada: como por exemplo, a violência
doméstica e sexual, e a divisão do trabalho (CAMURÇA; GOUVEIA, 2004).

Assim, fazem atividade política, ao transformarem um problema privado em algo do


interesse público, a ser debatido e modificado; e ao fazerem política, contribuem para
transformar as relações estabelecidas entre os de sexos, afinal a ocupação do espaço
público é algo que tradicionalmente não se espera que seja feita por mulheres (CAMURÇA;
GOUVEIA, 2004). Nessa direção e frente às desigualdades dessas relações, bem como lhes
propondo alternativas e direcionamentos distintos, há duas concepções possíveis:
empoderamento ou emancipação.

Especialmente na conjuntura atual, em que estamos passando por processos de


reprodução do conservadorismo no Brasil, há quem defenda que a construção de outra
sociabilidade é utopia, e que, portanto, o que nos resta é adequar o modelo capitalista de
produção e reprodução social às necessidades particulares de cada indivíduo. Nesse
modelo de sociabilidade, a vivência da nossa plena liberdade e autonomia enquanto sujeitos

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de direitos tem sido restringida e circunscrita à manutenção e ampliação do capital. O que


impede a movimentação nossa, enquanto sujeitos coletivos, e é consoante aos interesses
desse sistema que nos explora e oprime diariamente.

Mas se a luta não for traçada por nós, mulheres e homens, vítimas de um sistema
que nos domina – e que no caso das mulheres domina de modo particular – quem o fará?

Nessa perspectiva, qual a origem e o significado do termo “empoderamento”? Qual a


relação entre essa categoria e o debate sobre emancipação política e emancipação
humana? Quais interesses estão postos “por trás” e sustentando essa categoria que tem se
destacado mundialmente e na conjuntura brasileira neoliberal?

A fim de identificarmos respostas a essas questões, faremos uma breve análise


sobre “empoderamento”, feminismo, emancipação política e emancipação humana. A partir
da pesquisa bibliográfica sobre o tema, e compreendendo que os resultados apresentados
consistem numa aproximação à complexidade da realidade social, dada a sua dinamicidade
e historicidade.

2. ORIGEM E SIGNIFICADO DO TERMO “EMPODERAMENTO”

O debate sobre empoderamento, especificamente “empoderamento das mulheres”,


inicia-se na década de 1970, com maior ênfase em 1990, e apresenta-se como tema central
em políticas, acordos e orientações direcionados às mulheres na discussão acerca da
promoção da participação política, e da defesa dos seus direitos (ALMEIDA, 2017).

Na discussão sobre o que é empoderamento, Berth (2018) aponta quais concepções


de “poder” podem ser relacionadas ao termo “empoderamento”, cuja origem está situada
nos Estados Unidos, a partir da expressão empowerment, cunhada pelo sociólogo
estadunidense Julian Rapport, em 1977. Trata-se, tanto no caso norte-americano, quanto na
sua versão brasileira, de um neologismo criado para evidenciar a necessidade de “[...]
instrumentalizar certos grupos oprimidos para que eles pudessem ter autonomia” (BERTH,
2018, p.19) (grifo nosso).

Berth (2018) apresenta ainda as contribuições de outros autores na direção de


esclarecer o que é a Teoria do Empoderamento e desmistificar o que considera “[...] um
conceito complexo, muito distorcido e incompreendido na atualidade” (BERTH, 2018, p.20).
Dentre tais autores destaca a professora Rute Baquero, conforme a qual o conceito
“empoderamento” já era evidente na Reforma Protestante realizada na Europa no século

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XVI por Martinho Lutero. Isso porque além de elaborar suas 95 (noventa e cinco) teses
traçando críticas à Igreja Católica – considerada até então um poder inquestionável – Lutero
também traduziu os escritos bíblicos para a língua alemã, possibilitando às classes
subalternizadas o acesso aos textos bíblicos, bem como abrindo margem, com isso, para
que o próprio povo dispusesse de condições para confrontar a Igreja.

À época, o poder de informação era utilizado como estratégia de manipulação e meio


de manutenção da hierarquia social. Portanto, a ação desencadeada por Lutero oportunizou,
ainda que com limitações3, o empoderamento por parte das pessoas daquela conjuntura
social. Nessa perspectiva, a informação como instrumento para libertação se constitui numa
das principais dimensões da Teoria do Empoderamento.

Todavia, a própria Berth (2018) explicita que há diversas literaturas que apontam o
educador Paulo Freire como o precursor da Teoria do Empoderamento, uma vez que, em
1960, Freire pensou da Teoria da Conscientização como prática e estratégia para a
libertação dos oprimidos, e ressaltou que para toda compreensão sobre algo deve
corresponder uma ação transformadora.

Diante dessas problematizações, o termo empowerment poderia ser traduzido como


“dar poder ou habilidade a algo ou alguém” (BERTH, 2018, p.18), considerando que o
substantivo inglês power, significa, de forma sucinta: “habilidade ou permissão para que
alguém realize alguma coisa” (BERTH, 2018, p.18).

São muitas as literaturas que falam sobre o tema, mas é possível destacarmos cinco
principais pontos comuns: I) Há a discussão semântica sobre “empoderamento” e há quem
credite a Paulo Freire a criação do termo; II) Se, para Julian Rapport “empoderamento” é dar
aos oprimidos os instrumentos para que possam se fortalecer; para Freire, corresponde ao
“empoderar a si mesmos” dos grupos oprimidos, os quais não podem nem devem confiar na
benevolência das classes dominantes; III) O pensamento da assistente social e intelectual
negra americana Bryant Solomon, apresentando o “empoderamento” como perspectiva
metodológica para o Serviço Social, e o pensamento do educador e filósofo brasileiro Paulo
Freire sobre “empoderamento” e conscientização crítica dos indivíduos, exerceram influência
na compreensão de que é possível aos grupos oprimidos o acesso a uma vida mais digna,
bem como a alteração de suas condições degradantes, respectivamente; IV) O
empoderamento como teoria está vinculado ao desenvolvimento estratégico e à
recuperação das potencialidades dos grupos “desfavorecidos”, objetivando de forma central

3 Berth (2018) não explicita quais limitações são essas. Consideramos que a própria possibilidade da leitura
consistia numa dessas limitações, afinal, o acesso à alfabetização costumava ser restrito aos que tivessem poder
econômico e ocupassem cargos de relevância pública.

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a libertação social do grupo oprimido. Nessas estratégias está inclusa a emancipação


intelectual. Sendo que para Solomon, o “empoderamento” deveria ser aplicado aos
profissionais do Serviço Social e nas comunidades oprimidas. E a Teoria do
Empoderamento, na concepção de Paulo Freire surge a partir da Teoria da Conscientização
Crítica; V) O “empoderamento” possui quatro dimensões: Cognitiva (visão crítica da
realidade), Psicológica (sentimento de autoestima), Política (consciência das desigualdades
de poder e capacidade para organizar-se e mobilizar-se), e Econômica (capacidade de gerar
renda independente) (BERTH, 2018).

Antagonismos políticos e não meramente teórico-metodológicos colocam em


situação oposta as concepções de “empoderamento” encabeçadas pelos movimentos
feministas e pelas agências e organismos internacionais. Inclusive, para muitas dessas
agências que tratam do empoderamento das mulheres, a questão é considerada um meio
para erradicar a pobreza e gerar desenvolvimento, por exemplo, e não um fim em si próprio.

2.1 Empoderamento e Feminismo: contradições e convergências

“[...] o feminismo surge nos marcos da democracia burguesa, tendo como objetivo o
acesso a direitos civis, políticos e sociais das mulheres no interior da sociedade capitalista,
portanto, uma conquista no campo da emancipação política” (INÁCIO, 2013, p.36). A partir
da tomada de consciência acerca de uma opressão específica: a realização, pelas mulheres,
do trabalho não pago; um trabalho invisibilizado; feito em detrimento do “outro” em nome da
natureza, do amor e do dever maternal (KERGOAT, 2009).

Nomeado feminismo burguês ou liberal, não aprofundou a percepção dos


fundamentos que provocam a opressão das mulheres, ao contrário, compreendia e defendia
que essa opressão era fruto exclusivo do não acesso das mulheres aos direitos sociais, civis
e políticos (INÁCIO, 2013).

Antes mesmo das décadas de 1960-1970, porém, algumas conquistas foram


alcançadas em torno das particularidades da questão da mulher. Exemplo disso aconteceu
na Rússia em 1917, com “[...] o direito ao aborto, ao divórcio, a terra, educação, creche para
os filhos e a legislação igualitária” (LÊNIN, 1980, apud INÁCIO, 2013, p.59), no entanto tais
conquistas são insuficientes à plena emancipação das mulheres, que depende também da
transformação da sociedade capitalista noutro modelo de produção e reprodução social: o
modelo socialista, que precisa estar acompanhado por transformações nas dimensões da
cultura e dos valores presentes na sociedade da ordem do capital.

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Conforme a feminista Sardenberg (2006), o empoderamento para as feministas


corresponde ao mesmo tempo a um instrumento/meio e fim em si próprio, tendo como
objetivo último à destruição da ordem patriarcal vigente. Nesse aspecto, podemos identificar
uma primeira divergência: enquanto, sob o ponto de vista de Sardenberg (2006), as
feministas colocam a ênfase das conceituações de “empoderamento” nas ações coletivas,
nos discursos sobre desenvolvimento, por sua vez, a ênfase recai sobre os aspectos
individuais, circunscrito aos sentidos que os próprios indivíduos autoconferem.

Outro aspecto que nos chama a atenção é que aparece como necessidade a
superação do patriarcado, mas não se discute um elemento central: a necessidade de pôr
abaixo o sistema capitalista, o qual, embora não tenha sido o responsável pelo surgimento
do patriarcado, utiliza-se dele para manter-se e reproduzir-se. Assim, é possível que o
patriarcado reproduza-se sem a sociedade capitalista, no entanto, a recíproca não é
verdadeira.

Embora no seio dos movimentos feministas haja divergências sobre o conceito


“empoderamento”, algumas convergências na compreensão do termo podem ser
identificadas: a) Para se empoderar é preciso antes se desempoderar, ou seja, a busca pela
obtenção do “poder” parte do fato de não tê-lo; b) O empoderamento é um ato auto-reflexivo
(o processo pode ser “facilitado” por outrem e por algumas circunstâncias, no entanto, diz
respeito a uma ação realizada e sofrida pelos próprios sujeitos); c) Empoderar-se tem a ver
com construir autonomia, exercer controle sobre a própria vida; d) Empoderamento é um
processo. As pessoas são empoderadas ou não em relação aos outros e a si próprias
anteriormente (SARDENBERG, 2006).

A questão do “poder” também é central mesmo em meio às divergências sobre


“empoderamento” nos movimentos feministas. Todavia, se trata de distintas concepções de
“poder”: I) Poder sobre: Quando se relaciona à subordinação, dominação/resistência de um
sujeito em relação a outro. II) Poder por dentro: Que diz respeito à autoestima e
autoconfiança. III) Poder para: Corresponde à capacidade para fazer algo. IV) Poder com: O
poder compartilhado nas ações coletivas (SARDENBERG, 2006).

Com base nessas explicitações, o “empoderamento” aparece como um


instrumento/meio para alcançar um objetivo fim em si mesmo: a autonomia dos sujeitos (no
caso das vertentes feministas que a ele aderem: a autonomia das mulheres), para que
tomem o poder para si, na direção de romper com a sociedade patriarcal, identificada como
a responsável pela não distribuição equitativa desse poder, que, portanto, precisa ser
conquistado pelos “grupos oprimidos”. Esse processo teria como ponto de partida a tomada

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de consciência individual, – por isso mesmo, o “empoderamento” se caracteriza como uma


ação autônoma (em que não é possível que o “outro” me “empodere”) – dado esse ponto de
partida, a coletividade também seria “empoderada”.

Será que a realidade deve ser compreendida de forma mecânica, de tal modo que
possamos afirmar sem mediações: “processos individuais se tornam coletivos”? Existe ação
revolucionária na prática “empoderadora”?

3. EMPODERAMENTO, EMANCIPAÇÃO POLÍTICA E EMANCIPAÇÃO HUMANA

A estratégia de empoderamento não propõe a superação das bases que mantém e


reproduzem as desigualdades vivenciadas nas relações entre os sexos, uma vez que está
restrita aos limites de mudanças imediatas, que embora apresentem caráter democrático,
encontram-se voltadas ao fortalecimento meramente individual, atribuindo aos próprios
sujeitos a principal responsabilidade pelo enfrentamento das formas opressivas as quais
estão submetidos.

No tocante à emancipação das mulheres, essa pode ser compreendida sob a


perspectiva liberal, restrita à conquista de direitos permitidos pela democracia burguesa
(emancipação política); ou sob a perspectiva emancipatória como parte do processo de
emancipação humana, de acordo com o referencial marxista.

Compreendida sob a perspectiva emancipatória, implica na eliminação da


propriedade privada, das contradições de classe social, de exploração e alienação do
trabalho, que constituem a sociedade capitalista, e no fim da opressão sofrida
particularmente pelas mulheres (INÁCIO, 2013). Essa última perspectiva foi apresentada ao
debate pelo feminismo e pela tradição marxista e socialista entre os séculos XIX e XX, e
permanece como bandeira de luta atual, dada a opressão vivenciada no contexto vigente, da
sociedade capitalista.

Para tanto, o feminismo materialista marxista reafirma que a transformação social


não pode restringir-se à transformação do mundo público. Daí a construção da máxima “O
privado é público”. Utilizando-se das relações estabelecidas entre os sexos como base para
a transformação da sociedade, essa prática teórico-política exige a coerência entre a vida
pública e privada. Assim, associa a luta particular das mulheres à luta anticapitalista,
compreendendo a necessidade de romper com todas as formas de desigualdade social e de
opressão (GODINHO, 2008).

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Apreender o patriarcado analisando as variações consequentes das dimensões de


classe, raça, etnia, orientação sexual e nacionalidade das mulheres, ou seja, perceber o
patriarcado como um fenômeno variável, possibilita-nos “capturar a profundidade, a
onipresença e a interconectividade de diferentes aspectos da subordinação das mulheres
[...]” (INÁCIO, 2013, p.90).

A opressão feminina, ainda que útil ao sistema capitalista para a obtenção de mais-
valia sobre a dupla exploração da mulher (oprimida no espaço privado e público), não é
central a sua manutenção. Afinal, essa centralidade está na exploração da força de trabalho
assalariada, seja ela masculina ou feminina.

4. EMPODERAMENTO: UMA PRÁTICA NÃO REVOLUCIONÁRIA

As diretrizes políticas e econômicas que norteiam o projeto de empoderamento são


traçadas por um de seus principais propagadores: o Banco Mundial, cujo interesse é
transferir para a população a responsabilidade em torno do combate às expressões da
“questão social” – que caberia ao Estado – sob o discurso do exercício do empoderamento
dos cidadãos.

Por meio do empoderamento, passa-se a defender como estratégia de combate à


pobreza (fenômeno vivenciado majoritariamente4 por mulheres) e à desigualdade social, a
ampliação da capacitação das mulheres (como o investimento em cursos de artesanato e de
cabelereira) e o acesso ao mercado de trabalho (que enquanto ambiente público é também
espaço de poder).

Um dos limites que visualizamos é o fato de que o desenvolvimento do potencial das


mulheres está bem mais além do que o incentivo à ampliação de suas capacidades,
assim como o acesso aos considerados espaços de poder não garante mudanças
significativas na vida das mulheres. Segundo, as conquistas das mulheres são frutos
de suas lutas históricas por meio de suas articulações políticas e não apenas pelo
empoderamento individual do conjunto delas (ALMEIDA, 2017, p.219).

Com a promoção de ações sob essa perspectiva, a questão central sobre a


desigualdade das relações entre os sexos é deixada de lado, ou, ainda, ocultada: a
exploração e dominação capitalista que incidem de modo diferenciado sobre a vida das
mulheres, e cuja manutenção e reprodução permanecem ocorrendo nos espaços de poder
ocupados por mulheres, independentemente da capacidade formativa delas.

4 “As mulheres estão submetidas a empregos precários, terceirizados, subcontratos, em tempo parcial,
realizando tarefas minuciosas e polivalentes, e ainda com baixos salários e inferiores ao salário masculino,
cenário que tem evidenciado o fenômeno da feminização da pobreza em nível mundial e na particularidade
brasileira” (INÁCIO, 2013, p.104).

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A apreensão da questão da desigualdade entre os sexos implica, pois, numa


compreensão dialética e contínua da realidade que propicie a ampliação do conhecimento
individual, atrelado à consciência militante feminista e à formação de um sujeito coletivo, em
prol da transformação das bases que sustentam a sociabilidade capitalista.

[...] A garantia de direitos para as mulheres, como postos nos documentos dos
Organismos Internacionais, não traz ameaças à configuração estrutural do
patriarcado e capitalismo. A garantia dos direitos sobre uma perspectiva liberal é
totalmente compatível com a chamada sociedade democrática (ALMEIDA, 2017,
p.224).

Quando Joice Berth (2018) propôs-se a elucidar o que é empoderamento e de que


poder estava tratando, embora tenha reconhecido que o termo vem sendo muito criticado,
defende que as críticas são feitas não ao significado do termo, mas por sua utilização
esvaziada; o que o distanciaria de suas raízes enquanto teoria proposta como meio para a
ampliação da participação política e da democracia. Todavia, o termo “empoderamento”
apresenta em sua estrutura e utilização prática um vazio de sentido, caracterizando-se como
uma proposição meio para a superação da opressão dos “desfavorecidos”, sem situar os
aspectos fundamentais à caracterização desses sujeitos e ao desvelamento dessas
opressões: a exploração da força de trabalho e a divisão social e técnica do trabalho, bem
como a constituição da sociedade de classes na sociedade capitalista.

Afirma-se a necessidade de “[...] pensar em caminhos de reconstrução das bases


sociopolíticas rompendo concomitantemente com o que está posto, entendendo ser esta a
formação de todas as vertentes opressoras que temos visto ao longo da história” (BERTH,
2018, p.16), mas esquece-se de identificar quais bases sociopolíticas são essas e de que
vertente opressora se está falando. Situa a importância de definir estratégias para o
“enfrentamento das práticas do sistema machista e racista” (BERTH, 2018, p.17), mas não
evidencia que a base estruturante é o capitalismo.

A origem mesma da construção da expressão empowerment, remete ao substantivo


inglês power, que corresponde à “habilidade ou permissão para que alguém realize alguma
coisa” (BERTH, 2018, p.18), todavia não explica: Quem permite? Trata-se de pedir
permissão ao sistema capitalista? Se sim, que concessões serão dadas e com quais
interesses? Se não, será concedida por quem?

O significado do termo empowerment, como afirma Berth (2018) – com base no


Dicionário da Universidade de Cambridge – corresponde ao “processo de ganhar liberdade e
poder fazer o que você quer e controlar o que acontece com você” (BERTH, 2018, p.19).
Entretanto, na sociabilidade capitalista a liberdade é restrita, afinal os interesses do capital
não têm como centralidade a realização do ser humano enquanto agente criador,

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desprezando, portanto, a plena expansão e emancipação humana. Além disso, são as


demandas do capital que ao invadir todos os espaços da vida cotidiana se impõem como
forma determinante na vida dos sujeitos.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Considerando que o termo “empoderamento” vem sendo supostamente utilizado de


forma desvirtuada pelas organizações econômicas e não governamentais, mas as origens,
as “raízes” do conceito, trazem consigo uma carência de explicitação sobre de que forma
esse “poder” será concedido, e mais: centraliza a problemática da opressão das minoras nas
relações de poder, como podemos negar ao conceito e à utilização dele o esvaziamento que
o caracteriza e o constitui? (grifo nosso).

A proposição de um “ajuste” frente às opressões estruturais parece indicar e reforçar


as limitações que a perspectiva do “empoderamento” carrega em si: um caráter reformista,
“palatável” e facilmente introjetado pelos organismos financeiros e não governamentais de
acordo com seus interesses.

A defesa da perspectiva do empoderamento, realizada por uma corrente do


movimento feminista aliada ao feminismo liberal, tem atribuído centralidade à
5
interseccionalidade como possibilidade de ampliação da compreensão da categoria mulher,
em detrimento do feminismo materialista consubstancial6.

Algumas categorias conceituais apresentadas no debate sobre empoderamento


evidenciam concordância com o modelo neoliberal em vigor. Prioriza-se o termo “lugares
sociais” em detrimento de “classes sociais”. Compreende-se a coletividade como um
processo sem mediações, resultante da mera junção dos indivíduos, numa adesão

5 Conforme apreendido durante a disciplina “Direitos, Lutas e Movimentos Sociais”, ministrada pelas professoras
Andréa Lima e Silvana Mara, do curso de Pós-Graduação em Serviço Social da UFRN (2019.1), a
interseccionalidade tem origem norte-americana e constitui o feminismo liberal norte-americano. Compreende as
relações sociais e as opressões de forma somatória, de forma que nem sempre considera raça, classe e gênero,
uma vez que ora prioriza raça e classe, ora gênero e classe, e atualmente tem priorizado raça e gênero.
Caracteriza-se como uma articulação meramente discursiva, e parte das concepções “pós-modernas” de
fragmentação da realidade social. Corresponde ainda a uma visão gnosiológica, não ontológica. Não discute as
concepções estruturantes daquilo que apresenta como discurso.
6 Conforme apreendido durante a disciplina “Direitos, Lutas e Movimentos Sociais”, ministrada pelas professoras

Andréa Lima e Silvana Mara, do curso de Pós-Graduação em Serviço Social da UFRN (2019.1), a
consubstancialidade tem origem francesa. Pode ser resumidamente explicitada pelo “nó” apresentado por Saffioti
(2004) na compreensão de que as relações de classe, raça e gênero não são somatórias nem separáveis. Tem
como central a complexidade dinâmica da realidade social e traça uma análise ontológica para discutir a
estrutura dessas relações, explicitando seus fundamentos (modo de produção capitalista e a divisão social do
trabalho).

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mecanicista que se assemelha ao discurso liberal de que basta o mercado ser livre para que
os sujeitos disputem livremente por sua liberdade nele.

E mais, afirma-se que empoderamento individual e coletivo são indissociáveis, de


forma tal que o empoderamento individual estaria fadado ao empoderamento coletivo. Uma
defesa congruente com o propósito de “empoderamento” propagado pelo Banco Mundial,
numa perspectiva de responsabilização dos sujeitos pela superação autônoma de suas
condições de opressão.

Embora a perspectiva “empoderadora” reconheça que um sujeito pertencente a um


grupo oprimido, ao desenvolver o pensamento crítico acerca da realidade não significa que
findará a situação degradante a qual está submetido enquanto integrante do grupo,
caracteriza o “empoderamento” como “um trabalho essencialmente político”. Entretanto,
reafirma-o como revolucionário. Ora, a emancipação política é a única passível de
realização pela sociabilidade capitalista, de tal modo que sua efetivação não é
revolucionária.

Outra falha: não é apresentado o debate sobre classe, consciência de classe,


consciência em si e para si, essencial nessa discussão sobre a emancipação política com
vistas ao desenvolvimento de ações da coletividade. Ademais, os grupos oprimidos são
situados como “grupos minoritários”. Uma identificação que não corresponde de forma
quantitativa nem qualitativa às condições de vida dessa população, que no caso brasileiro
nem é minoria em número, nem é desprovida de capacidade de ação.

Mais um fator preocupante é a “parceria” estabelecida entre “empoderamento” e


“lugar de fala”, que caracteriza o primeiro como continuidade do processo que garantirá o
direito de existir pleiteado pelo lugar de fala. Para que se esse último seja desenvolvido de
modo eficiente dentro da “emancipação possível”. Que emancipação possível é essa? A
emancipação política circunscrita e permitida pelo capital? A quem interessa a busca pela
ampliação das bases estritamente democráticas? E a quem interessa o discurso não
revolucionário?

REFERÊNCIAS

ALMEIDA, Janaiky Pereira. Empoderamento X Consciência militante feminista: contribuições


ao debate. In: ALMEIDA, J.P. Organismos Internacionais e enfrentamento à
precarização do trabalho das mulheres na América Latina. Tese (Doutorado - Doutorado
em Política Social) – Universidade de Brasília, Brasília, 2017.p.217-220.

BERTH, Joice. O que é empoderamento? Belo Horizonte (MG): Letramento, 2018.

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CAMURÇA, Sílvia; GOUVEIA, Taciana. O que é gênero. 4.ed. Recife: SOS Corpo - Instituto
Feminista para a Democracia, 2004. 40p. - (Cadernos SOS Corpo; v.1).

CISNE; SANTOS. Feminismo, diversidade sexual e Serviço Social. São Paulo: Cortez
Editora, 2018. (Biblioteca Básica do Serviço Social, v.8).

GODINHO, Tatau. Feminismo, prática política e luta social. In: PAPA; JORGE (orgs.). O
feminismo é uma prática: reflexões com mulheres jovens do PT. São Paulo: Fundação
Friedrich Ebert, 2008.p.17-22. Disponível em: < http://library.fes.de/pdf-
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Anais do 16º Congresso Brasileiro de Assistentes Sociais  ISSN 2675-1054

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