Texto
Texto
Texto
78
Empoderamento: questões conceituais e metodológicas
idioma oficial da Alemanha- possibilitou a leitura dos "textos sagrados" entre a
comunidade, a qual, por conseguinte, passa a realizar sua leitura e sua
hermenêutica, tornando-se sujeito de sua religiosidade.
O resultado desse movimento religioso precisa, portanto, ser entendido no contexto
do efeito multiplicador iniciado pela invenção da imprensa por Gutemberg: a Bíblia,
traduzida nas línguas e dialetos locais, torna-se acessível a cada um.
Anteriormente ao século XVI, a Bíblia era um manuscrito em latim - língua dominada
por uma minoria - do qual havia poucas cópias, que se encontravam fechadas nos
conventos e nas igrejas, lidas por uma elite eclesiástica.
Na segunda metade do século XX, a categoria empowerment passa a ser utilizada, nos
EUA, nos movimentos emancipatórios, relacionados ao exercício da cidadania
(movimento dos negros, das mulheres, homossexuais), visando a construir a auto-
estima de seus integrantes na igualdade de relações, através de atividades
culturais, artísticas e no exercício de sua vida profissional.
Trata-se dos novos movimentos sociais contra o sistema de opressão, fazendo eclodir
movimentos de libertação e de contracultura, também conhecidos, conforme Pinto
(1998), como movimentos de cidadania, sendo que os principais foram:
• Movimento pelos direitos cívicos e Poder Negro nos EUA - Movimento pela
emancipação e pelo poder social, econômico, cultural e político da população negra,
afirmando a crença na sua própria capacidade de se libertar de condições opressoras
e liderar o processo da sua libertação, e de se redefinir e reencontrar a sua
identidade, integrada na prática e na teoria do empowerment.
• Feminismo - Diferentes correntes de pensamento feminista, fundadas na
análise das raízes da opressão e subalternização da mulher nas várias instituições
sociais e nos vários contextos da vida social, econômica e cultural (na família, no
trabalho, nos sistemas educativos e de saúde, na religião, nos relacionamentos
interpessoais, na auto-imagem), envolvendo o desenvolvimento e a aplicação de
metodologias de intervenção no trabalho com mulheres, visa ao "acordar" da
consciência feminina perante a sua subalternidade e alienação. Visa também à
construção de redes de auto-ajuda e iniciativas de base comunitária com as quais
objetiva proporcionaras mulheres melhor educação e cuidados de saúde, qualificação
profissional e oportunidades de trabalho, independência econômica e proteção contra
a violência doméstica e sexual.
• Movimento de emancipação homossexual - Movimento de luta pela obtenção
e defesa de direitos de cidadania e pela aceitação de populações marginalizadas, e
mesmo criminalizadas, pela sociedade em geral.
• Movimento pelos direitos da pessoa deficiente - Movimento pelo
reconhecimento da pessoa deficiente como cidadã, com direitos e deveres, e contra a
imagem preconceituosa do deficiente, buscando o reconhecimento das
Redes, Santa Cruz do Sul, v. 11, n. 2, p. 77-93, maio/ago. 2006
82
Empoderamento: questões conceituais e metodológicas
Segundo Laverack e Wallerstein (2001), a discussão a respeito da categoria
empoderamento comunitário tem sido obscurecida, desde a metade dos anos 90, pelos
debates sobre os conceitos de capacidade comunitária (GOODMAN et al., 1998),
competência comunitária (ENG; PARKER, 1994), coesão comunitária (GEYER, 1997) e
capital social (PUTNAM, 1995).
Embora tais categorias sejam cada vez mais consideradas como críticas para a
promoção da melhoria do padrão de vida e como mediação dos efeitos da pobreza e das
iniqüidades em diferentes campos de ação (saúde, justiça, educação, habitação...),
por parte de grupos discriminados da população (mulheres, negros, índios...), em
geral está ausente a dimensão da influência social e da transformação das relações
de poder
(LAVERACK; WALLERSTEIN, 2001).
O empoderamento comunitário envolve um processo de capacitação de grupos
desfavorecidos para a articulação de interesses e participação comunitária, visando
à conquista plena dos direitos de cidadania, defesa de seus direitos e a
influenciar ações do Estado. Embora o empoderamento comunitário envolva um
coletivo, sua incidência pode ainda ser direcionada à capacitação de um ator
individual.
Por exemplo, no campo da saúde, é possível melhorar os níveis da saúde da
população, desenvolvendo programas de cuidados com a saúde, em nível individual, ou
trabalhando com grupos de risco, no âmbito comunitário, sem alterar as relações de
poder na sociedade.
Segundo Gohn (2004), o termo empoderamento da comunidade vem sendo utilizado no
âmbito das políticas públicas, neste novo milênio, enfatizando seu protagonismo, de
forma vinculada a processos de capacitação para a geração de desenvolvimento auto-
sustentável, com a mediação de agentes externos - os novos educadores sociais.
A mesma autora refere que a categoria empowerment apresenta duplo significado: ora
é utilizada para referir-se a processos de mobilizações e práticas direcionadas a
promover e impulsionar grupos e comunidades em termos de crescimento, autonomia e
melhora gradual e progressiva de suas vidas; ora é empregada para referir-se a
ações destinadas a promover a integração de excluídos em sistemas que não
contribuem para organizá-los, face às características do atendimento oferecido em
programas de natureza individual e assistencialista (GOHN, 2004).
O Quadro I, abaixo, explicita possíveis indicadores para desenvolvimento de um
processo de avaliação referente a diferentes tipos de empoderamento.
Quadro I - EMPODERAMENTO: INDICADORES
TIPOS DE
EMPODERAMENTO INDICADORES FOCO
EMPODERAMENTO
INDIVIDUAL Nível de auto-estima
Nível de autoconfiança
Nível de auto-afirmação Melhoria da condição de vida da pessoa
continua...
Redes, Santa Cruz do Sul, v. 11, n. 2, p. 77-93, maio/ago. 2006
84
Empoderamento: questões conceituais e metodológicas
O autor vai salientar que não acredita na autolibertação; para Freire (1986), a
libertação é um ato social. Referindo sua descrença na auto emancipação pessoal,
argumenta, em diálogo com Ira Shor, em Medo e Ousadia - o cotidiano do professor,
que
Mesmo quando você se sente, individualmente, mais livre, se esse sentimento não é
um sentimento social, se você não é capaz de usar sua liberdade recente para ajudar
os outros a se libertarem através da transformação da sociedade, então você só está
exercitando uma atitude individualista no sentido do empowerment ou da liberdade
(p. 135).
Isso faz do empowerment muito mais do que invento individual ou psicológico,
configurando-se como um processo de ação coletiva que se dá na interação entre
indivíduos, o qual envolve, necessariamente, um desequilíbrio nas relações de poder
na sociedade.
Na perspectiva freireana, o empoderamento individual, fundado numa percepção
crítica sobre a realidade social, é fundamental, mas tal aprendizagem precisa ter
relação com a transformação mais ampla da sociedade. A pergunta que se coloca,
segundo Freire
(2003), é: "a favor de quem e contra quem eles usam sua nova liberdade na
aprendizagem e como é que essa se relaciona com os outros esforços para transformar
a sociedade" (p. 136).
No entanto, o autor vai destacar a importância do empoderamento individual como
condição necessária, mas não suficiente, para o processo de transformação social:
A questão do empowerment da classe social envolve a questão de como a classe
trabalhadora, através de suas próprias experiências, na sua própria construção de
cultura, se empenha na obtenção do poder político. [...] Indica um processo
político das classes dominadas que buscam a própria liberdade da dominação, um
longo processo histórico de que a educação é uma frente de luta (FREIRE, 1986, p.
138).
Nessa perspectiva, o empoderamento, como processo e resultado, pode ser concebido
como emergindo de um processo de ação social no qual os indivíduos tomam posse de
suas próprias vidas pela interação com outros indivíduos, gerando pensamento
crítico em relação à realidade, favorecendo a construção da capacidade pessoal e
social e possibilitando a transformação de relações sociais de poder.
Face aisso, as questões que devem ser respondidas são: Que processo é este? Quais
são suas características? O que envolve? Sob que princípios se apóiam?
O empoderamento envolve um processo de conscientização, a passagem, de um
pensamento ingênuo para uma consciência crítica. Mas isto não se dá no vazio, numa
posição idealista, segundo a qual, a consciência muda dentro de si mesma, através
de um jogo de palavras num seminário. A conscientização é um processo de
conhecimento que se dá na relação dialética homem-mundo, num ato de ação-reflexão,
isto é, se dá na práxis (FREIRE, 1979). Conscientizar não significa manipular,
conduzir o outro a pensar como eu penso; conscientizar é "tomar posse do real",
constituindo-se o olhar mais crítico possível
Redes, Santa Cruz do Sul, v. 11, n. 2, p. 77-93, maio/ago. 2006
86
Empoderamento: questões conceituais e metodológicas
estabelecem entresi, mediados pelo mundo.
Freire (1981) entende a educação como um processo relacional, em que ninguém educa
ninguém, ninguém educa a si mesmo, os homens se educam entre si mediatizados pelo
mundo. Dessa forma, em Pedagogia do Oprimido, Freire (1981) é enfático, ao afirmar
que "Ninguém liberta ninguém, ninguém se liberta sozinho: os homens se libertam em
comunhão" (p.27).
Nessa perspectiva, o homem é concebido, não como objeto, mas como sujeito da ação
educativa, sendo fundamental a participação dos sujeitos no processo de
problematização da realidade e da ação. Assim, uma educação problematizadora
implica um "momento de reflexão que parte de uma realidade concreta e onde se
organiza um projeto de ação, que deverá converter-se em ação efetiva sobre a
realidade" (ANNUZZI, 1979, p.31); implica também o respeito e a consideração
relativamente ao conhecimento e experiência dos sujeitos envolvidos no processo.
A partir da análise das diferentes formas em que empoderamento tem sido abordado, é
importante destacar que essa categoria é mais do que um construto de natureza
psicológica, estando intimamente implicada nas relações de poder na sociedade.
De acordo com Estudos Interdisciplinares de Comunidades e Ecologia Social (EICOS
(b), [s.d.], (s.p]), Empowerment não é apenas a construção de uma consciência
crítica, pelo sujeito, de seu contexto natural, social, cultural e político de
vida. Não se resume também a simples capacitação para atuar pela melhoria de
padrões em diferentes âmbitos da vida; mas envolve aquisição de poder, isto é,
"supõe o vivenciar um processo artic lado que integre a construção de uma
consciência crítica com a ação, ou o desenvolvimento de capacidade real de
intervenção e transformação da realidade".
É nessa perspectiva que se situa a conceituação de empoderamento pr: posta pela
Organização Mundial da Saúde-OMS, que, destacando as diferentes dimensões
envolvidas no processo de empoderamento, ressalta o aspecto da atuação socio-
política-cultural.
O empoderamento pode ser um processo social, cultural, psicológico ou político,
através do qual indivíduos e grupos sociais tornam-se capazes de expressar suas
necessidades, explicitar suas preocupações, perceber estratégias de envolvimento na
tomada de decisões, e atuar política, social e culturalmente para satisfazer suas
necessidades (OMS, 1997) (EICOS (b), [s.d.], [s.p])-
Destaque-se também que sua utilização em diferentes campos profissionais -
antropologia, educação, política, economia, psicologia...-, sob diferentes
perspectivas, não se reduz ao seu entendimento como um processo de emancipação
individual. Ele envolve a aquisição de uma consciência coletiva, conforma refere
EICOS (a).
No entanto, independente do tipo de empoderamento que se aborde, a educação exerce
um papel fundamental, uma vez que viabiliza a construção do sujeito social.
PROCESSOS E ESTRATÉGIAS DE EMPODERAMENTO
Empoderamento, enquanto categoria, perpassa noções de democracia, direitos
Redes, Santa Cruz do Sul, v. 11, n. 2, p. 77-93, maio/ago. 2006
88
Empoderamento: questões conceituais e metodológicas
aos objetivos de empoderamento e emancipação social. A formação de facilitadores
capazes de constituírem nós das redes, dando sustentabilidade ao tecido que
constitui a rede, é um desafio. Sua ação é fundamental na desconcentração de poder,
na insubordinação, na multiliderança, na conectividade e no fluxo permanente de
informação e na participação e cooperação, aspectos essenciais das estruturas em
rede.
EMPODERAMENTO E CAPITAL SOCIAL
De acordo com EICOS (a), a categoria empoderamento possibilita traçar uma ponte
entre o local e o global, ampliando o contexto de inserção dos indivíduos, para
além de suas famílias e comunidades, articulando-os a noções mais amplas, em nível
macro, e a uma possível ação.
A categoria capital social, por sua vez, contribui para o empoderamento de pessoas
e comunidades, integrando setores sociais e aproximando as oportunidades entre os
atores sociais. Segundo Durston (200 i),
El empoderamiento ha sido definido como el proceso por el cual la autoridad y la
habilidad se ganan, se desarrollan, se toman o se facilitan (STAPLES, 1990).
Alternativamente, el énfasis está en que el grupo y las personas protagonizan su
propio empoderamiento, no en una entidad superior que les da poder (SEN,
1998). Es la antitesis del paternalismo, y la esencia de la autogestión mediante la
pedagogía constructivista, que construye sobre las fuerzas existentes de una
persona o grupo social - sus capacidades - para «potenciarlas», es decir, aumentar
y realizar esas fuerzas potenciales preexistentes (p. 187).
Esta inter-relação entre capital social e empowerment pode contribuir para superar
problemas como a situação de pobreza de pessoas e comunidades, transformando as
relações de poder em favor daqueles que tenham pouca autoridade para que exerçam
controle sobre os recursos- físicos, humanos, intelectuais, financeiros e de seu
próprio ser
- e sobre a ideologia - crenças, valores e atitudes. Segundo Durston (2001, p.
187), os grupos e comunidade que têm considerável reserva de capital social em suas
variadas manifestações podem cumprir melhor e mais rapidamente com as condições de
empoderamento. O acesso às redes que transcendem os círculos fechados da comunidade
pobre e o capital social comunitário manifestado em diferentes formas de
associativismo são elementos importantes para o empowerment das pessoas e das
comunidades.
Capital social, para Atria (2003), apresenta uma ampla gama de definições e
aplicabilidades. A partir de diversos trabalhos sobre o "estado da arte", o autor
delineia duas dimensões ou eixos distintos para abordar o conceito capital social:
a primeira, entendida como "una capacidad específica de movilización de
determinados recursos por parte de ungrupo" (p.582), e a segunda, "se remite a la
disponibilidad de redes de relaciones sociales" (p.582). Atria (2003) ressalta que,
em torno da capacidade de mobilização, convergem duas noções especialmente
importantes: "el liderazgo y su contrapartida, el empoderamiento" (p.582). A partir
disso, afirma que o capital social de um determinado
Redes, Santa Cruz do Sul, v. 11, n. 2, p. 77-93, maio/ago. 2006
90
Empoderamento: questões conceituais e metodológicas
A combinação desses eixos dá lugar a quatro quadrantes que permitem localizar os
tipos de participação e a ingerência dos sujeitos nos programas.
A participação como "habilitação social e empoderamento" contemplam a combinação
entre participação na tomada de decisões e acumulação de capital social. Os
sujeitos adquirem certas capacidades e habilidades, fortalecem seus espaços e
organizações e atuam com sentido de identidade e comunidade. Além disso,
incrementam sua capacidade de negociação e interlocução com o setor público.
A participação "gestionária" combina a participação na tomada de decisões com a
satisfação de necessidades. Os destinatários são considerados como gestores de
programas públicos, dando respostas a programas locais ou setoriais. Este tipo de
participação gera, na comunidade, a capacidade para gestionar e supõe informação
para atuar como interlocutor junto às agências estatais.
A participação "instrumental" tem a ver com a satisfação de necessidades a partir
da oferta de determinados programas.
A participação "consultiva", por sua vez, é aquela que utiliza a oferta dos
programas, mas tem, no entanto, capacidade para acumulação de capital social. Diz
respeito a um tipo de participação em que os programas efetuariam uma espécie de
consulta à população.
À GUISA DE CONCLUSÃO
A categoria empoderamento vem sendo utilizada junto a outros conceitos, tais como
capital social e competência comunitária, entre outros, de forma pouco rigorosa e,
muitas vezes, ambígua, em diferentes campos de conhecimento e práticas sociais.
Conforme esse texto apontou, diferentes são os conceitos e as práticas de
empoderamento que têm orientado trabalhos nas diferentes áreas - educação,
política, serviço social, administração, saúde comunitária, economia, psicologia,
antropologia...
Face às características do mundo globalizado em que vivemos, discutir a questão do
empoderamento, enquanto estratégia de ação, pode contribuir para a luta dos
desempoderados em nossa sociedade. Denunciar a utilização de estratégias
aparentemente emancipatórias, que vestem uma nova roupagem de participação e
democracia, serve para reafirmar as relações de poder vigentes em vez de contribuir
para a emancipação das pessoas, das comunidades e das sociedades.
Empowerment: conceptual and metodological issues
ABSTRACT
The objective of this article is to discuss the way in which the category of
empowerment has been used in the literature. Initially, it discusses the origin of
the concept, as well as the empowerment strategies related to the individual,
psychological and
Redes, Santa Cruz do Sul, v. 11, n. 2, p. 77-93, maio/ago. 2006