FACCHIN, K. A Imposição Biopolítica Do Gênero

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 4

Disciplina: FLF0114 Aluno: Kleber Henrique Facchin

Prof. Tessa Moura Lacerda N. USP: 11052166


Monitoria: Gustavo Ruiz da Silva

“Gênero é algo que fazemos, não algo que somos - algo que fazemos juntos. Uma relação
entre nós, não uma essência. (...) Gênero não é uma questão de propriedade individual. O
gênero nos é imposto em uma rede de relações sociais, políticas e econômicas, e é apenas
dentro dessa mesma rede que ele pode ser renegociado.” Paul B. Preciado, Transfeminismo.

Comente a citação acima a partir de pelo menos 2 autoras/es trabalhadas/os no curso.

A citação de Preciado sobre a imposição social, política e econômica do gênero


remete a diversas teses desenvolvidas na pesquisa feminista, que trazem consigo lições
fundamentais para compreender a opressão histórica sofrida pelas mulheres e pensar a
resistência. Na primeira linha de sua emblemática obra “O Segundo Sexo”, Simone de
Beauvoir assinala que “Ninguém nasce mulher: torna-se mulher. Nenhum destino biológico,
psíquico, econômico define a forma que a fêmea humana assume no seio da sociedade”1.
Com efeito, são as imposições socioculturais que definirão a mulher na alteridade do homem.
Por sua vez, Monique Wittig2 parte desse aforismo de Beauvoir e aprofunda a
argumentação em favor de sua validade, sustentando que a alegoria de uma sociedade de
lésbicas seria capaz de demonstrar a inexistência da “mulher” como uma categoria natural.
Logo, sendo “mulher” um conceito artificial, Wittig se vale da aplicação analógica de uma
ideia desenvolvido por Colette Guillaumin, na obra “Race et Nature: Systeme des marques,
idee de groupe naturel et rapports sociaux”3, para concluir que o gênero feminino é
engendrado pela sociedade para atender a uma demanda por distinção, hierarquização e
controle dos direitos reprodutivos das fêmeas humanas. Ou seja, o gênero surge para
instrumentalizar e justificar a opressão de um grupo (“homens”) sobre outro (“mulheres”).
Não por acaso, a palavra “homem”, que designa os sujeitos classificados no gênero
masculino, compartilha a mesma etimologia da palavra humano e da taxonomia latina que
designa a própria espécie “homo sapiens”, ambas aparentemente derivadas da compreensão
de igualdade (“homo”) entre os homens ou, até mesmo, da crença de que o homem seria
imagem e semelhança de Deus. Por inferência, tal igualdade não se aplicaria às mulheres.

1
BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo, vol. 2: a experiência vivida. Trad. Sérgio Milliet. 4. ed. São Paulo:
Difusão Européia do Livro, 1967, p. 8.
2
WITTIG, Monique. Não se nasce mulher. In: HOLLANDA, Heloisa Buarque de. Pensamento feminista:
conceitos fundamentais. Rio de Janeiro: Bazar do tempo, 2019.
3
Segundo Wittig, “Colette Guillaumin mostrou que, antes da realidade socioeconômica da escravidão negra, o
conceito de raça não existia, pelo menos não no seu sentido moderno, já que ele era empregado à linhagem de
famílias”, assinalando que a “raça” nasceu para justificar a opressão “racial”.
Disciplina: FLF0114 Aluno: Kleber Henrique Facchin
Prof. Tessa Moura Lacerda N. USP: 11052166
Monitoria: Gustavo Ruiz da Silva

Pois bem. As lições de Simone de Beauvoir e Monique Wittig acima citadas contêm
os fundamentos que fornecem as bases para a afirmação de Paul B. Preciado segundo a qual
“Gênero [...] não [é] algo que somos”. Todavia, para entender melhor o sentido da afirmação
de que “Gênero é algo que fazemos”, revela-se especialmente elucidativa a tese da
performatividade de gênero desenvolvida por Judith Butler4, de acordo com a qual, o gênero
se constitui por representação de normas sociais que estabelecem condições a partir das quais
os “sujeitos se tornam passíveis de reconhecimento. Reconhecer um gênero depende
fundamentalmente da existência de um modo de apresentação para aquele gênero, uma
condição para seu aparecimento” 5.
Implica-se uma condição de reconhecimento de um sujeito como “mulher” a partir de
aparências e comportamentos que são predefinidos como típicos do gênero feminino,
condição essa que, segundo Wittig, compele os corpos e as mentes dos indivíduos que
nasceram sem pênis a corresponder a aspectos ideologicamente atribuídos ao papel designado
pela categoria “mulher”, ideologicamente imposto como destino natural e predeterminado.
Ou seja, a partir da naturalização desses aspectos relativos ao gênero, fazemos com
que ele se efetive, performativamente, atribuindo às categorias “homem” e “mulher” efeitos
ilocucionários. Em função da genitália, o gênero enunciado tem o poder de definir o que uma
pessoa deve ser e fazer, implicando uma série de consequências socioculturais que
determinarão diversas circunstâncias da vida da pessoa que foi classificada dentro de um ou
de outro gênero, desde tabus e papeis socialmente postos até direitos e deveres morais,
obstáculos e privilégios diferenciados.
Aliás, é importante notar que os privilégios dos homens em detrimento das mulheres
já se encontram sedimentados estruturalmente na sociedade. Simone de Beauvoir6 observa
que, apesar da frequente negligência a respeito das graves repercussões morais da opressão
das mulheres pelos homens, é evidente a existência de discriminações sociais e de
circunstâncias estruturais que condicionam materialmente o desenvolvimento das mulheres
na atual sociedade.
Assim, a definição comunicativa de papeis sociais descritos por um gênero engendra
um universo de estereótipos e de expectativas que o sujeito classificado deverá observar.

4
BUTLER, Judith. Corpos em aliança e a política das ruas: notas para uma teoria performativa de assembleia.
Trad. Fernanda S. Miguens. Rev. técnica Carla Rodrigues. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2018.
5
BUTLER, J. Op. cit., capítulo 1: “Política de gênero e o direito de aparecer”, §18.
6
BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo, vol. 1: fatos e mitos. Trad. Sérgio Milliet. 4. ed. São Paulo: Difusão
Européia do Livro, 1970, pp. 19-20.
Disciplina: FLF0114 Aluno: Kleber Henrique Facchin
Prof. Tessa Moura Lacerda N. USP: 11052166
Monitoria: Gustavo Ruiz da Silva

Com isso, o reconhecimento de direitos fica condicionado à adequação do sujeito às


determinações contidas no gênero que a sociedade lhe atribuiu. Consequentemente, a esfera
de liberdade do indivíduo é encapsulada pelo seu gênero. Nesse sentido, assiste total razão a
Preciado no que diz respeito à imposição do gênero “em uma rede de relações sociais,
políticas e econômicas”. Adiante, resta explorar a noção que Preciado apresenta a seguir, de
acordo com a qual “é apenas dentro dessa mesma rede que ele pode ser renegociado”.
Quando Paul Preciado afirma que o gênero só pode ser renegociado dentro da mesma
rede de relações sociais, políticas e econômicas em que se dá a sua imposição, sua afirmação
ecoa toda a força política do movimento feminista e do movimento LGBTQIA+. Afinal, uma
vez identificado como aparelho ideológico de opressão, as repercussões sociais da imposição
do gênero devem ser encaradas politicamente.
Neste ponto, emerge uma importante questão que suscita controvérsias dentro do
próprio movimento feminista. Deve o gênero ser extirpado, a fim de que todos os sujeitos
humanos sejam efetivamente tratados como iguais?
Em meados do século XX, Simone de Beauvoir7 responde a essa pergunta ressaltando
os aspectos negativos dos ônus diferenciais criados pelo gênero, conclamando as mulheres à
atividade remunerada para fugir da relação de dependência que lhes fora imposta, alcançarem
sua emancipação e se tornarem sujeito da própria existência. Nesse tom conciliador, Beauvoir
brada por um futuro em que haja fraternidade entre os sexos.
De outro lado, teóricas como Judith Butler, Teresa de Lauretis, Monique Wittig e
Silvia Federici compreendem o movimento feminista como uma constante fundamental na
luta política contra a opressão das mulheres. Não se trata de defender um matriarcado no
lugar do patriarcado, mesmo porque, conforme ressalta Wittig, um matriarcado seria tão
sexista e heterossexualmente opressor quanto o patriarcado.
Conforme bem aponta Wittig8, negligenciar o papel sociopolítico da divisão dos sexos
obscurece relação de opressão entre “homens” e “mulheres” e coíbe a constituição da
“mulher” como sujeito político. Por isso, Lauretis9 aponta que a manutenção do gênero é
necessária para expor as contradições políticas e sociais existentes entre homens e mulheres,

7
BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo. Vol. 1. Trad. Sérgio Milliet. 4. ed. São Paulo: Difusão Européia do
Livro, 1970, pp. 493-494.
8
WITTIG, Monique. Não se nasce mulher. In: HOLLANDA, Heloisa Buarque de. Pensamento feminista:
conceitos fundamentais. Rio de Janeiro: Bazar do tempo, 2019.
9
LAURETIS, Teresa de. A tecnologia do gênero. Trad. de Susana Bornéo Funck. In: HOLANDA, Heloisa
Buarque de (Org.). Tendências e impasses: o feminismo como crítica cultural. Rio de Janeiro: Rocco, 1994, pp.
238.
Disciplina: FLF0114 Aluno: Kleber Henrique Facchin
Prof. Tessa Moura Lacerda N. USP: 11052166
Monitoria: Gustavo Ruiz da Silva

constituindo “tanto condição histórica da existência do feminismo quanto sua condição


teórica de possibilidade”.
Wittig proclama a força plural das mulheres enquanto classe, buscando dissociar o
termo “mulheres” do termo “mulher”, considerando que este, no singular, carrega consigo
todo o estigma ideológico, destacando a importância de suprimir as individualidades para que
as mulheres se constituam como classe, superando os prejuízos ínsitos na categoria “mulher”
através da luta coletiva pela ação política das “mulheres” no movimento feminista.
Silvia Federici10, por sua vez, identifica uma relação intrínseca de interdependência
entre a acumulação de capital e a exploração do trabalho não remunerado das mulheres na
manutenção e (re)produção da força-de-trabalho, apontando o capitalismo como um sistema
econômico essencialmente racista e sexista, de tal modo que a luta contra a opressão de
gênero passaria também pela própria luta anticapitalista, aspirando a um modelo econômico
alternativo, sem o que a opressão se reproduziria estruturalmente em função da economia.
E, indo além da percepção do gênero como categoria histórica e fator de união para a
luta política, Butler enxerga na precariedade, partilhada por todos os oprimidos, como elo
para a ação política, reconhecendo-a como um signo comum capaz de unir em assembleia,
nas ruas, todos esses atores sociais que lutam por seus direitos. Para Butler11, ao se reunirem
em assembleia nas ruas, para reivindicar direitos, sob a rubrica comum da precariedade, as
mulheres, as pessoas transgênero, os queer, e também os pobres, os apátridas, as minorias
raciais e religiosas, todos esses precários afrontam as condições de aparecimento
estabelecidas pelas normas dominantes (inclusive pelo gênero) e afirmam performativamente
o seu direito de aparecer, transformando o próprio campo do aparecimento.
Assim, a luta contra a opressão de gênero passa pelo reconhecimento da construção
das categorias “homem” e “mulher” com a finalidade de estabelecer parâmetros e justificativa
para o controle do aparelho de reprodução humana e a opressão dos homens heterossexuais
sobre os demais grupos, no contexto do desenvolvimento do sistema de acumulação de
capital, para, a partir desse reconhecimento, unir sob uma mesma bandeira todos os
precarizados pelas normas de gênero, pela emancipação social, política e econômica de todos
os oprimidos em função dos privilégios dos “homens” brancos, cis e heterossexuais.

10
FEDERICI, Silvia. Calibã e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. Trad. Coletivo Sycorax. São
Paulo: Ed. Elefante, 2017, p. 27-29.
11
BUTLER, Judith. Corpos em aliança e a política das ruas: notas para uma teoria performativa de
assembleia. Trad. Fernanda S. Miguens. Rev. técnica Carla Rodrigues. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2018, capítulo 1: “Política de gênero e o direito de aparecer”, §43-45.

Você também pode gostar