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XVI JORNADA NACIONAL DE EDUCAÇÃO

A educação é diversa! O que temos feito?


08 a 10 de agosto de 2024
ISSN: 2178-2431

O LUGAR DAS LÍNGUAS E CULTURAS NAS ESCOLAS MUNICIPAIS


INDÍGENAS DE DOURADOS/MS NO CONTEXTO DA BNCC

Daftali Jefferson Sobral Carneiro


(UFGD - daftalisobra@hotmail.com)
Marta Coelho Castro Troquez
(UFGD - martatroquez@gmail.com)

Resumo: A partir da Constituição Federal de 1988, os indígenas garantiram o direito a uma


educação diferenciada com o uso de processos próprios de aprendizagem e a utilização de
suas línguas maternas, porém a imposição da BNCC tem trazido muitos desafios às escolas
indígenas. Pretendeu-se, portanto, responder à questão: Qual o lugar dado às línguas e
culturas indígenas no contexto da BNCC para que as Escolas Indígenas reformulem (ou não)
seus currículos? Para tal, utilizamos a pesquisa qualitativa com recurso à análise documental e
entrevistas semiestruturadas. Quanto aos resultados, foi possível verificar, que a imposição da
BNCC na reformulação curricular das escolas indígenas municipais da Reserva Indígena de
Dourados/MS (RID) tem provocado mudanças na prática educacional dessas escolas no
sentido oposto ao da “descolonização/decolonização curricular”, proposto nesta pesquisa pela
via da “Interculturalidade Crítica”. A pesquisa contribuiu para a inquietação dos
representantes da EEI da RID quanto a um produção de currículos próprios e decoloniais.

Palavras-chave: Educação Escolar Indígena. BNCC. Línguas e Culturas Indígenas.

Introdução
Esta pesquisa voltou o olhar para as especificidades da Educação Escolar Indígena
(EEI) enquanto uma modalidade da Educação Básica Nacional e para os embates na
construção do seu currículo com a promulgação da Base Nacional Comum Curricular
(BNCC). A partir da Constituição Federal de 1988, os indígenas garantiram o direito a uma
educação diferenciada com o uso de processos próprios de aprendizagem e a utilização de
suas línguas maternas, porém a imposição da BNCC tem trazido muitos desafios às escolas
indígenas. (Troquez; Nascimento, 2020)
Conforme as Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação Escolar Indígena na
Educação Básica (Brasil, 2012), a Educação Escolar Indígena, concebida como ideal, deve
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acontecer em unidades educacionais inscritas em suas terras e culturas e suas práticas
educativas devem ser baseadas em sua realidade singular. Portanto, possuem uma pedagogia
própria, em respeito às suas especificidades étnico-culturais e formação específica do seu
quadro docente, observando os princípios constitucionais e os demais princípios que orientam
a Educação Básica brasileira.
A BNCC foi constituída para ser o documento nacional que normatiza e define a
construção das aprendizagens essenciais que os alunos brasileiros precisam desenvolver no
decurso das etapas e modalidades da Educação Básica, garantindo-lhes os direitos de
aprendizagem e desenvolvimento, em consonância com o Plano Nacional de Educação (PNE,
2014-2024).
Conforme discutem Troquez e Nascimento, as políticas indigenistas no país sempre
foram orientadas por uma lógica de colonialidade e “sob esta estrutura, os modos próprios de
viver, as diferentes histórias, cosmologias e/ou epistemologias, assim como os processos
próprios de ensinar e aprender foram ignorados”. (Troquez; Nascimento, 2020, p. 03)
Esta pesquisa, portanto, pretendeu responder à questão: Qual o lugar dado às línguas e
culturas indígenas no contexto da BNCC para que as Escolas Indígenas reformulem (ou não)
seus currículos? Analisamos, portanto, a presença das línguas e culturas indígenas na BNCC.
Para tais análises, problematizamos as questões partindo do conceito de currículo proposto
por Silva (1996):

O currículo é um dos locais privilegiados onde se entrecruzam saber e poder,


representação e domínio, discurso e regulação. É também no currículo que se
condensam relações de poder que são cruciais para o processo de formação de
subjetividades sociais. Em suma, currículo, poder e identidades sociais estão
mutuamente implicados. O currículo corporifica relações sociais. (Silva, 1996, p.
23).

O objetivo principal da pesquisa foi compreender o lugar das línguas e culturas


indígenas e as possibilidades de seu fortalecimento no currículo das escolas indígenas no
contexto da Base Nacional Comum Curricular (BNCC).

Metodologia: da pesquisa qualitativa com análise documental e entrevistas


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A pesquisa realizou-se no âmbito das escolas indígenas, da rede municipal de ensino
da cidade de Dourados/MS. No estado do Mato Grosso do Sul, na região da grande Dourados,
há uma diversidade de comunidades indígenas que ofertam seu ensino intercultural nas
diferentes áreas e/ou reservas indígenas.
Como caminho metodológico, optou-se pelas análises documentais, pois as
informações contidas nos documentos podem ampliar a compreensão do objeto que necessita
de contextualização histórica e sociocultural, como aponta Sá-Silva, Almeida, Guindani
(2009).
A análise de conteúdos, também utilizada nessa pesquisa, está contida na análise de
documentos e é uma forma de interpretar o conteúdo de um texto “adotando normas
sistemáticas de extrair significados temáticos ou os significantes lexicais, por meio dos
elementos mais simples do texto”, conforme Sá-Silva, Almeida, Guindani (2009, p. 11).
As principais unidades de análise dessa pesquisa foram as categorias “língua” e
“cultura”, as quais foram analisadas na BNCC, baseado em seu contexto de construção e em
diálogo com os autores e/ou conceitos teóricos adotados.
Partindo da análise documental e análise das categorias nos documentos, através das
unidades selecionadas, a pesquisa prossegue com uma abordagem qualitativa, que conforme
Chizzotti (2000, p. 78) se dedica a “análise dos significados que os indivíduos dão às suas
ações, no meio ecológico em que constroem suas vidas e suas relações, a compreensão do
sentido dos atos e das decisões dos atores sociais”
Para atender aos objetivos da pesquisa e como instrumento de produção de dados,
além da análise documental e a pesquisa qualitativa, utilizou-se a entrevista semiestruturada.
Para tal, foi elaborado um roteiro prévio para as entrevistas, que foram realizadas
individualmente e gravadas, totalizando 7 (sete) entrevistas com profissionais atuantes na EEI,
sendo eles Agentes da SEMED da cidade de Dourados /MS, responsáveis pela gestão
específica das políticas educacionais da EEI, professores indígenas e coordenadores e gestores
das escolas municipais indígenas da RID.
Para a elaboração do roteiro de entrevista, foram definidos temas de acordo com os
objetivos específicos da pesquisa, como: o lugar das línguas e culturas no currículo das
escolas indígenas; como se deu o processo de implantação da BNCC nas escolas da RID;
quais os limites e possibilidades para o ensino e fortalecimento das línguas e culturas
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indígenas no contexto da BNCC e como a BNCC está sendo recebida pelos professores e
gestores das escolas indígenas de Dourados.
Após esses passos, a pesquisa seguiu com a sistematização entre as perguntas
principais, a realidade e o contexto dos entrevistados, destas com a redação e leitura crítica
dos dados obtidos, e destas com os conceitos e teorias dos autores escolhidos para
compreensão do objeto.

Aporte teóricos: Dos estudos decoloniais e da interculturaldade crítica


O entendimento de decolonialidade como meio de luta, denúncia, conceito e categoria,
surgiu no final do Século XX, dentro de um grupo de estudiosos que percebeu a necessidade
de estudar o colonialismo na América Latina com conceituações próprias, formando então, o
grupo Modernidade/Colonialidade (M/C), que fundamentam seus estudos no pensamento
descolonial/decolonial.
Segundo Catherine Walsh, integrante do grupo, a principal diferença dos termos
“descolonial/decolonial” deve estar no entendimento de que decolonizar é investir na
possibilidade de desfazer o colonialismo e retirar o S, segundo Walsh (2009) é se posicionar,
desarmar, reverter o colonial.
O pensar decolonial visa soltar-se das amarras da colonização, que seria, conforme
Walsh e Mignolo (2006), opor-se à atitude colonial, da modernidade e seu grande mal, a
colonialidade. Conscientizar-se da colonização como parte da modernidade é o primeiro passo
para mudança, e o espanto com os desdobramentos da colonização, como a pobreza e a
opressão que sofreram os colonizados formam a atitude decolonial.
Através de processos de subalternização, que inclui a pobreza e a opressão, a
modernidade produz os “subalternos” e controla pela colonialidade e por meio da narração
eurocêntrica o saber e o ser dos colonizados. Esse controle vem do padrão de poder colonial e
mantem uma lógica capitalista que funciona pela/através da dominação do ser, do saber, e da
natureza, conforme Mignolo (2017).
Esse padrão, agora segundo Quijano (2009), ambos integrantes do M/C, utiliza a
colonialidade e seus níveis de controle para estabelecer sua soberania em cada um dos
“planos, meios, dimensões materiais ou subjetivas da vida cotidiana”, sustentando a
“imposição de uma classificação racial/étnica da população do mundo”. Esse autor, considera
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a colonialidade um dos “elementos constitutivos e específicos do padrão mundial de poder
capitalista”. (Quijano, 2009, p. 73).
Já a interculturalidade, base teórica que também sustentou a pesquisa, se constrói a
partir “do particular lugar político de enunciação do movimento indígena” e “de outros grupos
subalternos”, pratica a diversidade e mantém a união na diversidade (Walsh, 2019, p. 20). A
interculturalidade é o acesso para se pensar com a diferença e utilizando a decolonialidade na
construção e formação de uma sociedade justa para todos. Segundo Walsh (2019, p. 27), “a
interculturalidade é um paradigma ‘outro’, que questiona e modifica a colonialidade do poder,
enquanto, ao mesmo tempo, torna visível a diferença colonial”. Trazendo à luz da sociedade
que até agora nada foi feito de fato, para uma mudança que devolva a voz e a vez daqueles
que por décadas foram oprimidos e subalternizados.

Análise dos Dados: Base Nacional Comum Curricular (BNCC)


A colonialidade persiste em nossos dias e demonstra sua força nos normativos e utiliza
a educação como veículo para se propagar e manter sua hierarquia política e sociocultural. A
BNCC, enquanto base da construção curricular de todas as escolas brasileiras de Educação
Básica, ao negligenciar de diversas formas as demais culturas brasileiras em seu texto, parece
perpetuar um sistema que subalterniza saberes seculares oriundos das culturas dos povos
originários e basilares do nosso país.
Militão (2022) refuta a “BNCC por fragmentar o currículo ao definir que, no mínimo,
60% do tempo escolar deve ser dedicado à Base Comum e 40% aos saberes específicos ou
diversificados”. Confirmando que a linha de pensamento da BNCC reforça a ideia de
existência de conhecimentos superiores há outros, interferindo no tempo em que a escola de
ensino diferenciado deve se dedicar à propagação da sua cultura.

[...] há escolas indígenas que fazem com que tudo aquilo que deveria fazer parte da
‘educação diferenciada’ seja colocado em momentos separados da aula; passando a
impressão de que existe um momento de descontração e um momento em que se
preocupa em ensinar e em aprender de verdade. Neste último caso, relaciona-se o
processo de ensino-aprendizagem somente com as disciplinas ‘clássicas’ da
Educação Básica. (Knapp; Martins, 2017, p. 102)
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De acordo com a questão norteadora da pesquisa, que pretende compreender o lugar
dado pelos documentos norteadores da educação brasileira às línguas e culturas indígenas, a
análise de unidade foi investigada de forma a identificar o contexto, e de que maneira se deu
esse lugar de importância dentro do normativo da BNCC. As principais unidades de análise
foram as categorias “língua” e “cultura” relacionadas aos povos indígenas.
Quanto à análise dessas categorias, concluiu-se que a BNCC não possui um lugar de
importância para as línguas e culturas indígenas. Sua apresentação não vem acompanhada de
problematização, nem mesmo de orientações ou estratégias de superação da colonialidade
imposta sobre os povos subalternos. Essa falha no documento pode causar prejuízos a EEI,
sobretudo, no que diz respeito à diversidade cultural, epistemológica, linguística e
sociocultural dos povos originários, bem como à atualidade de suas lutas e demandas no
cenário territorial, político, social e econômico brasileiro e mundial.
Com essa visão e para satisfazer interesses do mercado, a BNCC dita as habilidades e
as competências com vistas às avaliações oficiais, baseada em conhecimentos tidos como
universais, desconsiderando a diversidade cultural e desrespeitando a autonomia das redes de
ensino e de seus professores. A homogeneização desrespeita as distintas matrizes étnicas do
povo brasileiro, inclusive, suas conquistas, no âmbito da legislação educacional, as quais
parecem não ter valor na BNCC, afirma Santos (2022).

Análise dos dados: Entrevistas


Faz-se importante contextualizar o campo onde a pesquisa foi realizada, visto que a
EEI possui características específicas, assim como o lugar onde ela ocorre. A Reserva
Indígena de Dourados (RID), composta de três etnias: Kaiowá, Guarani e Terena é
considerada um território ‘atípico’ devido a sua constituição multiétnica. Conforme Troquez
(2019, p. 46), “o intercâmbio entre os indígenas das diferentes etnias e, também, entre
indígenas e não-indígenas é constante na área indígena de Dourados/MS e fora dela,
caracterizando a existência de um ‘sistema multiétnico’ de relações”. Pereira (2004) define o
sistema multiétnico como sendo um sistema de relações em rede “sociais, materiais e
simbólicas” onde as sociedades que compõem o sistema “tornam permeáveis as fronteiras
étnicas” entre si (Pereira, 2004, p. 274).
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As escolas municipais indígenas da RID de Dourados/MS têm aderido à implantação
da BNCC, que nos traz os desafios já mencionados anteriormente e que levantaram grandes
questionamentos dentro dos órgãos responsáveis pela modalidade da Educação Escolar
Indígena de Dourados/MS (SEMED e REME), principalmente no sentido de assegurar os
direitos adquiridos da comunidade indígena e de fazer cumprir a legislação exigida pela LDB
de 1996. Os currículos das Escolas Indígenas do município de Dourados/MS, possuem ainda,
pela Lei Municipal nº 3.619 de 2012, no seu art.10, assegurado

[...] a cultura como constitutiva do processo de desenvolvimento da aprendizagem,


apropriação do conhecimento de forma gradual e o seu critério de escolha é o da
explicitação da realidade do seu movimento histórico e no desvelamento das leis da
natureza. (Dourados, 2012, p. 2)

Diante de mais esse desafio, as escolas da RID tem buscado cumprir com mais essa
exigência, sem perder seus critérios e princípios enquanto escola indígena. E de acordo com
as entrevistas, os representantes das escolas relataram que o uso da BNCC é feito pelas
escolas devido a imposiçao do documento por parte da SEMED. Desde que o documento
entrou em pauta, os gestores, coordenadores e professores indígenas, buscam conhecer o
documento e retirar dele aquilo que está mais de acordo com a EEI, porém eles admitem ter
dificuldade de manter seus príncipios e critérios, visto que seus ensinamentos, de acordo com
a BNCC, deverão ocupar um tempo menor em relação aos conteúdos ditos universais.
Segundo Mignolo (2017), entendemos que o momento parece exigir das escolas
indígenas um forte posicionamento, um esforço de entendimento e de superação da
colonialidade. Há por trás da modernidade uma estrutura administrativa de controle sem
precedentes, explícito nos normativos educacionais, que esmaga toda uma ciência considerada
subalterna, atravessando até mesmo a relação do homem com a natureza, que passou de total
dependência para algo a ser dominado e explorado, totalmente contrário aos conceitos e
princípios da EEI que deve ser comunitária, específica, diferenciada, intercultural e
bilíngue/multilíngue.
Durante as entrevistas e as visitas às escolas, é possível observar que os interesses das
escolas indígenas com a educação são diferentes. O que se tenta passar, dentro das escolas
indígenas não são apenas os conteúdos, mas um formato diferenciado de ver e viver a vida em
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comunidade e em comum acordo com a natureza. “Viver em comunidade é diferente,
conviver com a natureza e com a nossa cultura, não tirar tudo dela, é viver bem com ela”.
(Gestor, Escola C, 2023). É tangível a preocupação que as escolas têm em repassar a cultura
de uma vida em harmonia uns com os outros e com a natureza. “Trazer o conhecimento é
importante, mas é importante também trazer o conhecimento da vida em si, ensinar o aluno
que ele está em um mundo difícil e que ele pode ser capaz de fazer diferente do que os outros
fazem, se ele tiver conhecimento da sua cultura”. (Gestor, Escola B, 2023). Fica firmada a
posição dessas escolas indígenas de que muitas políticas implantadas na educação não
condizem com o que eles consideram uma educação para o pleno desenvolvimento humano e
que sempre haverá uma adaptação daquilo que vem de fora da comunidade para dentro dela.
Este impasse estabelecido sobre a imposição do uso da Base nos currículos
compromete o tempo da escola até mesmo em ouvir a comunidade sobre seu uso. Segundo o
Gestor, Escola C (2023), “as demandas da escola e da comunidade são extensas e a chegada
da Base, apesar de auxiliar em algumas coisas, acabou tomando tempo dos interesses da
comunidade”. Alguns gestores, coordenadores e professores já compreendem a
homogeneidade impregnada na BNCC e concordam que ela vem dividindo a escola indígena
em duas frentes, hora atender a BNCC, hora atender aos interesses da comunidade.

A escola serve de apoio para comunidade. Nós ajudamos sempre que podemos nossa
comunidade, os pais, as crianças e não só as que tem matrícula na escola, nós somos
assim, sempre ajudamos. As crianças precisam acompanhar o mundo lá fora, o que
outras crianças estão vendo, e não podem ver só isso, tem que acompanhar nossa
cultura, aprender de nós para nós, entende professora? Tem sido um esforço juntar
tudo e não prejudicar nossas crianças nesses sentidos e atender a comunidade no que
ela precisa. (Coordenadora, Escola A, 2022)

O que deveria possibilitar andar em conjunto, dado o caráter do documento que o


documento prega, separa as demandas da escola. É possível observar nessa fala a divisão de
demanda advinda da imposição, da subalternização. Para Mignolo (2017), a subalternização e
a colonialidade, produzidas pela modernidade, andam juntas e podemos perceber como são
norteadoras da BNCC. O fato de precisarem contemplar conteúdos, princípios, habilidades e
competências, que não correspondem aos seus conceitos de vida em comunidade, levam os
seus conceitos e princípios ao status de “sulbaternos”. A BNCC imposta ocupa tempo valioso
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das escolas indígenas e de seu currículo e não se relaciona com o que almejam para suas
gerações futuras.

Considerações Finais
Compreender o lugar das línguas e culturas indígenas no currículo das escolas
indígenas no contexto da BNCC foi um grande desafio e nos levou a constatar que o avanço
de um ensino diferenciado, nas escolas municipais da RID, no contexto da BNCC é inviável,
um exercício moroso, confuso e que dificulta o ensino intercultural nas escolas da reserva.
Pode-se considerar ainda que a EEI já enfrenta, há muito tempo, outros desafios e demandas
que aumentam o trabalho da escola, e que a imposição do uso da BNCC se somou a estes
percalços e vem atrasando o difícil exercício de se libertar das amarras da colonialidade.
Uma formação e orientação quanto ao grave momento que a escola indígena vive,
aderindo à BNCC, poderia levá-los a compreender de maneira mais ampla as reais intensões
dos normativos que vem surgindo. É preciso que as escolas indígenas reconheçam as
necessidades locais, se apropriem de sua cultura como método e busquem as transformações
necessárias para uma educação diferenciada e a formação pode auxiliar nesse sentido, assim
como o investimento público para tais e demais ações como infraestrutura, apoio técnico,
financeiro, pessoal e a mais importante delas, a ampliação do corpo docente indígena, outro
importante passo em busca de uma escola indígena de acordo com seus princípios.
É preciso que as escolas da RID problematizem mais a BNCC e reconheçam os
princípios que regem o documento de maneira mais ampla, e assim percebam se seu uso é
realmente necessário ou apenas o cumprimento de mais uma regulamentação. É preciso que
busquem na interculturalidade crítica meios de decolonizar o currículo para assim vivenciar
dentro de suas escolas a efetiva educação comunitária, específica, diferenciada, intercultural e
bilíngue e/ou multilíngue.
As escolas indígenas da RID, em sua maioria, realizam a construção do seu currículo
baseadas nas decisões tomadas em conjunto com a comunidade, conforme PPP das escolas,
porém a equipe escolar precisa conciliar conteúdos, impostos pela secretaria como norma e
considerados pela BNCC como superiores, aos seus currículos, sob pena desse aluno não
conseguir ser inserido na sociedade ocidental. E essa inserção é almejada para fins de luta
pela subsistência: estudos, empregos, negócios.
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Esta tensão é criada pelo regimento da modernidade que tem corrompido, através do
currículo escolar, o sistema das sociedades subalternas. Walsh e Mignolo (2006), em seus
estudos, afirmam ser a colonialidade “sucessiva e cumulativa” e esta é transmitida na
sociedade através de documentos formulados para fortalecer o sistema capitalista do nosso
país. Cabe à escola que almeja a decolonialidade de seus currículos lutar constantemente
contra esse sistema, que menospreza as experiências de sobrevivência de diversas culturas
brasileiras, impondo-se como única forma aceitável viver “dignamente”.
Quanto ao lugar dado pela BNCC às línguas e culturas indígenas, pode-se considerar
que o documento não contempla devidamente a diversidade cultural e linguística dos povos
indígenas brasileiros em suas orientações e conteúdos e não é direcionada às escolas
indígenas. As determinações hegemônicas contidas no documento são inviáveis e devem ser
repensadas pelos órgãos responsáveis, juntamente com as escolas envolvidas, para que os
currículos estejam de acordo com as línguas e culturas de cada povo/comunidade e escola,
sendo assim reformulados, decolonizados, transformados em currículos diferenciados, mais
interculturais e construídos a partir dos valores e interesses de cada comunidade indígena.
Esta pesquisa aponta para outras possibilidades de investigações sobre o lugar das
línguas e culturas nas escolas indígenas da RID no contexto da BNCC, sobretudo, no que
tange às práticas pedagógicas cotidianas, ao currículo praticado ou em ação nas escolas. É
importante buscar maiores evidências acerca da possibilidade de rompimento com o
documento (BNCC) e sobre a criação de currículos próprios pautados por uma lógica
decolonial e intercultural, que evidenciem o potencial dos atores indígenas na construção do
ensino diferenciado do qual eles tanto lutaram para alcançar legalmente.

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