TEXTO NAVIRAÍ Final
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Introdução
Esta pesquisa voltou o olhar para as especificidades da Educação Escolar Indígena
(EEI) enquanto uma modalidade da Educação Básica Nacional e para os embates na
construção do seu currículo com a promulgação da Base Nacional Comum Curricular
(BNCC). A partir da Constituição Federal de 1988, os indígenas garantiram o direito a uma
educação diferenciada com o uso de processos próprios de aprendizagem e a utilização de
suas línguas maternas, porém a imposição da BNCC tem trazido muitos desafios às escolas
indígenas. (Troquez; Nascimento, 2020)
Conforme as Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação Escolar Indígena na
Educação Básica (Brasil, 2012), a Educação Escolar Indígena, concebida como ideal, deve
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A educação é diversa! O que temos feito?
08 a 10 de agosto de 2024
ISSN: 2178-2431
acontecer em unidades educacionais inscritas em suas terras e culturas e suas práticas
educativas devem ser baseadas em sua realidade singular. Portanto, possuem uma pedagogia
própria, em respeito às suas especificidades étnico-culturais e formação específica do seu
quadro docente, observando os princípios constitucionais e os demais princípios que orientam
a Educação Básica brasileira.
A BNCC foi constituída para ser o documento nacional que normatiza e define a
construção das aprendizagens essenciais que os alunos brasileiros precisam desenvolver no
decurso das etapas e modalidades da Educação Básica, garantindo-lhes os direitos de
aprendizagem e desenvolvimento, em consonância com o Plano Nacional de Educação (PNE,
2014-2024).
Conforme discutem Troquez e Nascimento, as políticas indigenistas no país sempre
foram orientadas por uma lógica de colonialidade e “sob esta estrutura, os modos próprios de
viver, as diferentes histórias, cosmologias e/ou epistemologias, assim como os processos
próprios de ensinar e aprender foram ignorados”. (Troquez; Nascimento, 2020, p. 03)
Esta pesquisa, portanto, pretendeu responder à questão: Qual o lugar dado às línguas e
culturas indígenas no contexto da BNCC para que as Escolas Indígenas reformulem (ou não)
seus currículos? Analisamos, portanto, a presença das línguas e culturas indígenas na BNCC.
Para tais análises, problematizamos as questões partindo do conceito de currículo proposto
por Silva (1996):
[...] há escolas indígenas que fazem com que tudo aquilo que deveria fazer parte da
‘educação diferenciada’ seja colocado em momentos separados da aula; passando a
impressão de que existe um momento de descontração e um momento em que se
preocupa em ensinar e em aprender de verdade. Neste último caso, relaciona-se o
processo de ensino-aprendizagem somente com as disciplinas ‘clássicas’ da
Educação Básica. (Knapp; Martins, 2017, p. 102)
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De acordo com a questão norteadora da pesquisa, que pretende compreender o lugar
dado pelos documentos norteadores da educação brasileira às línguas e culturas indígenas, a
análise de unidade foi investigada de forma a identificar o contexto, e de que maneira se deu
esse lugar de importância dentro do normativo da BNCC. As principais unidades de análise
foram as categorias “língua” e “cultura” relacionadas aos povos indígenas.
Quanto à análise dessas categorias, concluiu-se que a BNCC não possui um lugar de
importância para as línguas e culturas indígenas. Sua apresentação não vem acompanhada de
problematização, nem mesmo de orientações ou estratégias de superação da colonialidade
imposta sobre os povos subalternos. Essa falha no documento pode causar prejuízos a EEI,
sobretudo, no que diz respeito à diversidade cultural, epistemológica, linguística e
sociocultural dos povos originários, bem como à atualidade de suas lutas e demandas no
cenário territorial, político, social e econômico brasileiro e mundial.
Com essa visão e para satisfazer interesses do mercado, a BNCC dita as habilidades e
as competências com vistas às avaliações oficiais, baseada em conhecimentos tidos como
universais, desconsiderando a diversidade cultural e desrespeitando a autonomia das redes de
ensino e de seus professores. A homogeneização desrespeita as distintas matrizes étnicas do
povo brasileiro, inclusive, suas conquistas, no âmbito da legislação educacional, as quais
parecem não ter valor na BNCC, afirma Santos (2022).
Diante de mais esse desafio, as escolas da RID tem buscado cumprir com mais essa
exigência, sem perder seus critérios e princípios enquanto escola indígena. E de acordo com
as entrevistas, os representantes das escolas relataram que o uso da BNCC é feito pelas
escolas devido a imposiçao do documento por parte da SEMED. Desde que o documento
entrou em pauta, os gestores, coordenadores e professores indígenas, buscam conhecer o
documento e retirar dele aquilo que está mais de acordo com a EEI, porém eles admitem ter
dificuldade de manter seus príncipios e critérios, visto que seus ensinamentos, de acordo com
a BNCC, deverão ocupar um tempo menor em relação aos conteúdos ditos universais.
Segundo Mignolo (2017), entendemos que o momento parece exigir das escolas
indígenas um forte posicionamento, um esforço de entendimento e de superação da
colonialidade. Há por trás da modernidade uma estrutura administrativa de controle sem
precedentes, explícito nos normativos educacionais, que esmaga toda uma ciência considerada
subalterna, atravessando até mesmo a relação do homem com a natureza, que passou de total
dependência para algo a ser dominado e explorado, totalmente contrário aos conceitos e
princípios da EEI que deve ser comunitária, específica, diferenciada, intercultural e
bilíngue/multilíngue.
Durante as entrevistas e as visitas às escolas, é possível observar que os interesses das
escolas indígenas com a educação são diferentes. O que se tenta passar, dentro das escolas
indígenas não são apenas os conteúdos, mas um formato diferenciado de ver e viver a vida em
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comunidade e em comum acordo com a natureza. “Viver em comunidade é diferente,
conviver com a natureza e com a nossa cultura, não tirar tudo dela, é viver bem com ela”.
(Gestor, Escola C, 2023). É tangível a preocupação que as escolas têm em repassar a cultura
de uma vida em harmonia uns com os outros e com a natureza. “Trazer o conhecimento é
importante, mas é importante também trazer o conhecimento da vida em si, ensinar o aluno
que ele está em um mundo difícil e que ele pode ser capaz de fazer diferente do que os outros
fazem, se ele tiver conhecimento da sua cultura”. (Gestor, Escola B, 2023). Fica firmada a
posição dessas escolas indígenas de que muitas políticas implantadas na educação não
condizem com o que eles consideram uma educação para o pleno desenvolvimento humano e
que sempre haverá uma adaptação daquilo que vem de fora da comunidade para dentro dela.
Este impasse estabelecido sobre a imposição do uso da Base nos currículos
compromete o tempo da escola até mesmo em ouvir a comunidade sobre seu uso. Segundo o
Gestor, Escola C (2023), “as demandas da escola e da comunidade são extensas e a chegada
da Base, apesar de auxiliar em algumas coisas, acabou tomando tempo dos interesses da
comunidade”. Alguns gestores, coordenadores e professores já compreendem a
homogeneidade impregnada na BNCC e concordam que ela vem dividindo a escola indígena
em duas frentes, hora atender a BNCC, hora atender aos interesses da comunidade.
A escola serve de apoio para comunidade. Nós ajudamos sempre que podemos nossa
comunidade, os pais, as crianças e não só as que tem matrícula na escola, nós somos
assim, sempre ajudamos. As crianças precisam acompanhar o mundo lá fora, o que
outras crianças estão vendo, e não podem ver só isso, tem que acompanhar nossa
cultura, aprender de nós para nós, entende professora? Tem sido um esforço juntar
tudo e não prejudicar nossas crianças nesses sentidos e atender a comunidade no que
ela precisa. (Coordenadora, Escola A, 2022)
Considerações Finais
Compreender o lugar das línguas e culturas indígenas no currículo das escolas
indígenas no contexto da BNCC foi um grande desafio e nos levou a constatar que o avanço
de um ensino diferenciado, nas escolas municipais da RID, no contexto da BNCC é inviável,
um exercício moroso, confuso e que dificulta o ensino intercultural nas escolas da reserva.
Pode-se considerar ainda que a EEI já enfrenta, há muito tempo, outros desafios e demandas
que aumentam o trabalho da escola, e que a imposição do uso da BNCC se somou a estes
percalços e vem atrasando o difícil exercício de se libertar das amarras da colonialidade.
Uma formação e orientação quanto ao grave momento que a escola indígena vive,
aderindo à BNCC, poderia levá-los a compreender de maneira mais ampla as reais intensões
dos normativos que vem surgindo. É preciso que as escolas indígenas reconheçam as
necessidades locais, se apropriem de sua cultura como método e busquem as transformações
necessárias para uma educação diferenciada e a formação pode auxiliar nesse sentido, assim
como o investimento público para tais e demais ações como infraestrutura, apoio técnico,
financeiro, pessoal e a mais importante delas, a ampliação do corpo docente indígena, outro
importante passo em busca de uma escola indígena de acordo com seus princípios.
É preciso que as escolas da RID problematizem mais a BNCC e reconheçam os
princípios que regem o documento de maneira mais ampla, e assim percebam se seu uso é
realmente necessário ou apenas o cumprimento de mais uma regulamentação. É preciso que
busquem na interculturalidade crítica meios de decolonizar o currículo para assim vivenciar
dentro de suas escolas a efetiva educação comunitária, específica, diferenciada, intercultural e
bilíngue e/ou multilíngue.
As escolas indígenas da RID, em sua maioria, realizam a construção do seu currículo
baseadas nas decisões tomadas em conjunto com a comunidade, conforme PPP das escolas,
porém a equipe escolar precisa conciliar conteúdos, impostos pela secretaria como norma e
considerados pela BNCC como superiores, aos seus currículos, sob pena desse aluno não
conseguir ser inserido na sociedade ocidental. E essa inserção é almejada para fins de luta
pela subsistência: estudos, empregos, negócios.
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Esta tensão é criada pelo regimento da modernidade que tem corrompido, através do
currículo escolar, o sistema das sociedades subalternas. Walsh e Mignolo (2006), em seus
estudos, afirmam ser a colonialidade “sucessiva e cumulativa” e esta é transmitida na
sociedade através de documentos formulados para fortalecer o sistema capitalista do nosso
país. Cabe à escola que almeja a decolonialidade de seus currículos lutar constantemente
contra esse sistema, que menospreza as experiências de sobrevivência de diversas culturas
brasileiras, impondo-se como única forma aceitável viver “dignamente”.
Quanto ao lugar dado pela BNCC às línguas e culturas indígenas, pode-se considerar
que o documento não contempla devidamente a diversidade cultural e linguística dos povos
indígenas brasileiros em suas orientações e conteúdos e não é direcionada às escolas
indígenas. As determinações hegemônicas contidas no documento são inviáveis e devem ser
repensadas pelos órgãos responsáveis, juntamente com as escolas envolvidas, para que os
currículos estejam de acordo com as línguas e culturas de cada povo/comunidade e escola,
sendo assim reformulados, decolonizados, transformados em currículos diferenciados, mais
interculturais e construídos a partir dos valores e interesses de cada comunidade indígena.
Esta pesquisa aponta para outras possibilidades de investigações sobre o lugar das
línguas e culturas nas escolas indígenas da RID no contexto da BNCC, sobretudo, no que
tange às práticas pedagógicas cotidianas, ao currículo praticado ou em ação nas escolas. É
importante buscar maiores evidências acerca da possibilidade de rompimento com o
documento (BNCC) e sobre a criação de currículos próprios pautados por uma lógica
decolonial e intercultural, que evidenciem o potencial dos atores indígenas na construção do
ensino diferenciado do qual eles tanto lutaram para alcançar legalmente.
Referências
CHIZZOTTI, Antônio. Pesquisa em ciências humanas e sociais. 4. ed. São Paulo: Cortez,
2000.
PEREIRA, Levi Marques. Imagens Kaiowá do sistema social e seu entorno. 2004.
(Doutorado em Antropologia) – FFLCH, USP, São Paulo.
SANTOS, Karla de Oliveira. Qual o lugar das relações étnico-raciais na Base Nacional
Comum Curricular? Eccos - Revista Científica, São Paulo, n. 60, p. 1-11, e21730, jan./mar.
2022. Disponível em: https://doi.org/10.5585/eccos.n60.21730. Acesso em 20 mar. 2023.