Glossario Das Desidentidades REPO.
Glossario Das Desidentidades REPO.
Glossario Das Desidentidades REPO.
Glossário de
(des)identidades
sexuais
Etnografias diversas em contextos e
temáticas deram origem às análises
reunidas neste livro mais do que oportuno.
O destaque é dado a expressões que
envolvem raça, gênero, práticas sexuais,
idades, classes sociais, estilos de vida,
historicidades, religiões, concepções de
saúde e moralidades; são conceitos sobre
as diferentes formas como as pessoas se
(des)identificam e são (des)identificadas
em distintas situações. Os verbetes
reunidos neste glossário ganham
significado em relações e interações
cotidianas e, por isso mesmo, mudam
de sentido e existem como códigos pelos
quais transitam os sujeitos não enquanto
identidades definidas, mas enquanto
condições de possibilidade que tensionam
criativamente as diferenças e as normas.
Este é um livro necessário e singular,
produto de uma excelente antropologia.
Vice-reitor
Penildon Silva Filho
Diretora
Susane Santos Barros
Conselho Editorial
Alberto Brum Novaes
Angelo Szaniecki Perret Serpa
Caiuby Alves da Costa
Charbel Niño El-Hani
Cleise Furtado Mendes
Evelina de Carvalho Sá Hoisel
Maria do Carmo Soares de Freitas
Maria Vidal de Negreiros Camargo
APOIO
Glossário de
(des)identidades
sexuais
SALVADOR
EDUFBA
2023
Revisão e normalização
Aline Silva Santos e Bianca Rodrigues de Oliveira
Imagem de capa
João Guilherme Bertholini Massaro
ISBN: 978-65-5630-525-7
EDITORA FILIADA À:
INTRODUÇÃO | 11
Guillermo Vega Sanabria e Moisés Lino e Silva
ADÉ [ADẸ̀] | 33
Claudenilson da Silva Dias e Almerson Cerqueira Passos
ARROMBADO | 45
Mylene Mizrahi
BARBIE | 53
Edward Armando González Cabrera
BICHA-BOY | 63
Moisés Lino e Silva
CAFUÇU | 69
Roberto Marques
Isadora Lins França
CAMGIRL | 79
Caroline Dal’Orto
CAVALO-MARINHO | 89
Anne Alencar Monteiro
DESCONSTRUÍDA | 101
Hildon Oliveira Santiago Carade
DO VALE | 109
George Amaral Santos
ESCORT | 123
Guilherme R. Passamani
FLEXÍVEL | 131
Maycon Lopes
GILETE | 139
Inácio dos Santos Saldanha
INDETECTÁVEL | 147
Pisci Bruja Garcia de Oliveira
IRMÃ | 155
João Victtor Gomes Varjão
MATI | 171
Gloria Wekker, Cecilia Lisa Eliceche e Leandro Nerefuh
MAVAMBIXA | 179
Igor Leonardo de Santana Torres e Raphael Cardoso Brito
MAVAMBO | 189
Lucas Moreira
PÃO-COM-OVO | 207
Murillo Nonato
PÉ-DE-MORRO | 213
Tiago Duque
POLIAMORISTA | 219
Antonio Cerdeira Pilão
PUTO | 227
Victor Hugo de Souza Barreto
SAFICRENTE | 237
Louise Tavares Oliveira do Nascimento
SWINGER | 243
Maria Silvério
TOMFEM | 251
Macarena Williamson
TRAVESTI | 257
Jinx Vilhas
POSFÁCIO | 267
Regina Facchini
Adotamos o uso de itálico para destacar um dado verbete quando ele ocorre
dentro do capítulo dedicado à definição do próprio verbete.
Quando um verbete aparece fora do capítulo correspondente, ado-
tamos o negrito para indicar que o termo destacado tem uma entrada pró-
pria na coletânea.
INTRODUÇÃO
O desafio de identificar-se pela
via da (des)identificação
1 O termo queer pode ser traduzido como estranho, excêntrico, raro, extraordinário. Original-
mente, correspondia a uma forma pejorativa, um insulto, uma palavra degradante, usada para
se referir aos homossexuais. A chamada “teoria queer” surgiu no final da década de 1980, im-
pulsionada por um conjunto de pesquisadores e ativistas bastante diversificado, especialmente
nos Estados Unidos. Dela tem se derivado, dentre outras ideias: 1) um novo significado do termo
queer, passando a designar “uma prática de vida que se coloca contra as normas socialmente
aceitas”; 2) uma crítica à “heteronormatividade homofóbica, defendida por aqueles que veem
o modelo heterossexual como o único correto e saudável”; 3) no encalço do trabalho de Judith
Butler, o caráter performativo do gênero. Isto é, baseado na repetição ritualizada de normas e
hierarquias que encarnam determinados ideais de masculinidade e feminilidade, ligados inde-
fectivelmente à heterossexualidade. Ver Colling (2007); ver também Bento (2006).
TÁTICAS DE (DES)IDENTIFICAÇÃO
2 Ver, por exemplo, o caminho trilhado por Oyèrónkẹ Oyěwùmí (1997) na discussão sobre a cate-
goria “mulheres” na África Ocidental.
3 Talal Asad (1986) usa o conceito de “tradição discursiva” ao tratar das características do islamis-
mo, notadamente sobre a importância das escrituras. Como observado por Mello (2020, p. 3),
“Asad lança mão do conceito de ‘tradição discursiva’, com o objetivo de enfocar os modos pelos
quais a linguagem direciona, justifica e permeia os sentidos de corpos vivos, por meio de ações
repetidas que articulam intenções, pensamentos e sentimentos. Uma tradição é um conjunto
de aspirações, sensibilidades e relações de sujeitos que vivem e transitam entre múltiplas tem-
poralidades (p. 92-93)”.
COMPLICANDO OS BINARISMOS
5 Narmala Halstead (2008, p. 116) argumenta que, em contexto mais amplo no Caribe, “o termo
mati foi usado durante o colonialismo para expressar a igualdade das pessoas em condições
comuns de dificuldades, onde os colonizados com várias histórias de chegada e assentamento
eram solidários entre si”.
REFERÊNCIAS
ASAD, T. The idea of an anthropology of Islam. Washington, D.C.: Center for
Contemporary Arab Studies: Georgetown University, 1986. (Occasional Paper
Series).
COLLING, L. Mais definições em trânsito: teoria queer. [S. l.: s. n.], 2007.
Disponível em: http://www.cult.ufba.br/maisdefinicoes/TEORIAQUEER.pdf.
Acesso em: 8 fev. 2022.
DEMÉTRIO, F. Pele trans, máscaras cis: eu tive que “cispassar por” para chegar até
aqui. Prefácio. In: DUQUE, T. Gêneros incríveis: um estudo sócio-antropológico
sobre o (não) passar por homem e/ou mulher. Salvador: Devires, 2019. p. 9-13.
HALSTED, N. Violence, past and present: “Mati” and “non-mati” people. History
and Anthropology, New York, v. 19, n. 2, p. 115-129, 2008. Disponível em: https://
www.tandfonline.com/doi/pdf/10.1080/02757200802320918. Acesso em: 11
maio 2020.
RUBIN, G. Pensando o sexo: notas para uma teoria radical das políticas da
sexualidade. [S. l.: s. n.], 2012.
ADÉ [ADẸ̀]
1 Por corpos dissidentes estamos nos referindo a algumas populações LGBTQIAPN+ em sua di-
versidade de gêneros e sexualidades que, a partir das normas cisheterossexuais, são compreen-
didos como abjetos e fora de uma normalidade social imposta.
2 Optamos por empregar as expressões típicas dos cultos afro-brasileiros em português, tal qual
aprende-se nas Comunidades Tradicionais de Terreiro (CTTro) e, em seguida, sua grafia em io-
rubá, com vistas à recuperação do texto fonte. Apresentamos entre colchetes sugestões gráficas
tiradas de Márcio de Jagun (2017) para a representação de termos em língua iorubá.
3 Som emitido pelo Orixá [Òrìṣà] no momento da incorporação. Dedicamos esse ilá a todas as
Adés que se colocaram em linhas de frente para que nós, hoje, possamos soltar nossos ilás ainda
com toda repressão que nos aflige. Agradecemos a Igor Leonardo que nos impulsionou para en-
frentar a escrita deste verbete. E em especial agradecemos a Fran Demétrio, essa travesti que
nos uniu em luta e seguiu ao Orun no dia 28 julho 2021. Olorun Kosi Pure, Mana! Adupé O!
4 Tomamos de empréstimo o termo de Luiz Rufino que nos orienta para pensar as encruzilhadas
como novas possibilidades de entender o mundo cotidiano com todas as dimensões coloniais
que nos circundam. Para mais ver: Pedagogias das Encruzilhadas (2019).
5 Agradecemos ao nosso colaborador e professor de língua e cultura Iorubá, Okanbi Odé Adnel-
son pelas informações aqui apresentadas, haja vista que elas anunciam uma aproximação di-
reta com as práticas sobre sexualidades no continente africano, questão muito pouco discuti-
da, como pode ser percebida também na coleção África Queer (volumes I e II), organizada pela
professora Katarina Rea – UNILAB – e publicada pela Editora Devires, compondo traduções de
textos que intentam apontar as problemáticas encontradas pelas populações queer of colour
africanas face às demandas das colonialidades do gênero.
6 Linguagem criada por travestis com termos da língua portuguesa e expressões oriundas das
religiões de matriz africana.
7 Essa é uma aproximação para a estrutura da língua iorubá sem uma correspondência direta com
uma tradução do idioma. O intuito é enfatizar a forma como o vocábulo se constituiria. O termo
encontrado em iorubá é o Adé que tem como significado a coroa, como advertido no parágrafo.
8 Os trabalhos citados criam uma fissura no campo discursivo e acadêmico das pesquisas sobre
religiões de matriz africana ao trazerem essas discussões não mais como apêndices.
9 Sugerimos que as relações coloniais estão arraigadas nas práticas cotidianas dos adeptos dos
Candomblés, haja vista que os modos de vida estão muito mais aliados com as práticas judaico-
-cristãs em relação aos ensinamentos das matrizes africanas. Dito isso, esse campo semântico
está sendo desenvolvido em tese de doutoramento de um dos autores desse texto.
10 As dissidências sexuais no continente africano são amplamente discutidas por ativistas dos
Direitos Humanos, intelectuais e outras pessoas interessadas. Nesse campo há uma profusão
de vozes que ressoam desde a emancipação das identidades sexuais e de gênero até o papel do
Estado como vetor de políticas públicas efetivas para a população LGBTQIA+. Pode-se ler mais
sobre em Rea, Paradis e Amancio (2018); e Rea, Fonseca e Silva (2020).
11 Diante disso, as considerações de Landes (2002), no entanto, não gozaram de amplo acordo,
sendo rechaçadas por intelectuais como Arthur Ramos. (BIRMAN, 2005)
12 Nesse aspecto, tomamos como premissa a utilização da categoria tirania para nos referirmos à
homofobia internalizada nas CTTro que nega a atuação prática e política de homossexuais no
movimento de ampliação das nossas comunidades religiosas.
13 Muito embora a utilização do termo “bicha” tenha se aplicado aos grupos políticos que se ocu-
param em discutir essas pautas ao longo das décadas de 1970 a 1990, ressaltamos que este não
se aplica às comunidades religiosas com sua ideia de Adé.
14 O Movimento Homossexual Brasileiro foi, durante muito tempo, o termo utilizado pelos ho-
mossexuais que iniciaram as movimentações políticas em torno das discussões sobre as iden-
tidades sexuais. Em São Paulo, nos idos dos anos 1980, o Grupo Somos foi uma das principais
articulações. Já aqui na Bahia, temos como expoente o Grupo Gay da Bahia (GGB).
15 Além dessas referências clássicas para conhecermos as narrativas fundacionais dos movimen-
tos LGBTQIAPN+, contamos aqui com a memória documental de acervos políticos dos pesqui-
sadores em questão.
16 A nossa utilização desse termo pensa o modo como a socióloga Berenice Bento apresenta as
ideias de um conjunto de ciências que estabelecem normativas para os comportamentos sociais e
de gênero, sobretudo no que tange às identidades transgênero. Para mais ver: Bento (2006, 2008).
17 Considerando que a maior ou menor presença de homens femininos que podem ou não serem
interpretados como Adés [Adẹ̀] conforma-se como parâmetro para aferição de tradicionalidade
de um Candomblé, Rios (2013) também comenta a existência de CTTro nas quais a feminilidade
de homens não configura um problema, um valor negativo, uma mácula à tradição, e que, inclu-
sive, serão pejorativamente identificados como “candomblés do veadeiro”.
REFERÊNCIAS
AZZI, R. A cristandade colonial: mito e ideologia. Petrópolis: Vozes, 1987.
BASTIDE, R. O candomblé da Bahia: rito nagô. São Paulo: Companhia das Letras,
2001.
BIRMAN, P. Fazendo estilo, criando gênero. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1995.
FRY, P. Para inglês ver: identidade e política na cultura brasileira. Rio de Janeiro:
Zahar, 1982.
LANDES, R. A cidade das mulheres. 2. ed. rev. Rio de Janeiro: EdUFRJ, 2002a.
REA, C.; FONSECA, J. B.; SILVA, A. C. (org.). Traduzindo a Áfica Queer II – figuras
da dissidência sexual e de gênero em contextos africanos. Salvador: Devires,
2020.
ARROMBADO
Mylene Mizrahi
2 Por exemplo, Moises Lino e Silva, em comunicação pessoal, nota que ser “larga”, com o empre-
go no feminino, poderia ser motivo de orgulho para alguns jovens LGBT da Rocinha. Essa co-
notação positiva pouco frequente pode ser corroborada pelo significado igualmente episódico
encontrado no Dicionário Michaelis UOL em que arrombado pode ser, além dos significados
encontrados em outros sítios, alguém “que tem muita sorte”, é “afortunado” (Ver em: https://
michaelis.uol.com.br/moderno-portugues/busca/portugues-brasileiro/arrombado).
A gente só invade
Depois que a gata pisca
Bum bum não se pede
Bum bum se conquista.
(BUM BUM..., 2009, grifo nosso)
REFERÊNCIAS
BUM BUM não se pede. Intérprete: Mr. Catra. In: BAILE funk by mr catra.
Intérprete: Mr. Catra. [S. l.]: Sagrada Família, 2009. (2 min).
BUTLER, J. Corpos que importam. São Paulo: N-1 edições: Crocodilo Edições,
2019.
ESSINGER, S. Análise: Mr. Catra foi a maior figura dos primeiros 30 anos do funk
carioca. O Globo, Rio de Janeiro, 10 set. 2018. Disponível em https://oglobo.globo.
com/cultura/musica/analise-mr-catra-foi-maior-figura-dos-primeiros-30-anos-
do-funk-carioca-23054362 Acesso em: 23 jul. 2021.
HERDT, G. Fetish and fantasy in Sambia initiation. In: HERDT, G. (org.). Rituals of
manhood: male initiation in Papua New Guinea. Oakland: University of California
Press, 1998.
RUBIN, G. O tráfico de mulheres. In: RUBIN, G. Políticas do sexo. São Paulo: Ubu
Ed., 2017. p. 8-61.
BARBIE
1 Forma socialmente valorizada de ser homem. A esse respeito, consultar a obra de Raewyng
Connell (2005).
REFERÊNCIAS
ANDREASSON, J.; JOHANSSON, T. The Fitness Revolution: Historical
Transformations in the Global Gym and Fitness Culture. Sport science
review, Bucharest, v. 23, n. 3-4, p. 91-112, 2014. Disponível em: https://www.
researchgate.net/publication/277018421_The_Fitness_Revolution_Historical_
Transformations_in_a_Global_Gym_and_Fitness_Culture. Acesso em: 20 mar.
2020.
FRY, P.; MACRAE, E. O que é homossexualidade. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1985.
KLEIN, C. ‘The ghetto is over, darling’: Emerging gay communities and gender
and sexual politics in contemporary Brazil. Culture, Health & Sexuality, London,
v. 1, n. 3, p. 239-260, 1999.
BICHA-BOY
“Você vai gostar da bicha, Moisés!”. Afirmou Natasha, olhando para mim
com empolgação. “Qual o nome dele mesmo? É Márcio?”. Confirmei,
enquanto esperávamos pelo amigo de Natasha em uma parada de ônibus
na Favela da Rocinha, Rio de Janeiro. “Sim! E o Márcio é bicha-boy igual a
você. Acho que vocês vão se dar bem!”. Eu sorri, mesmo sem entender exa-
tamente o que Natasha havia acabado de dizer. Continuei: “Isso quer dizer
que ele é gay?”. Ela balançou a cabeça negativamente: “Ele é bicha-boy!
Tipo você, usa calça jeans, camiseta, entendeu? Não é uma bicha liberada
assim como eu”. Aproveitei a oportunidade para elucidar o uso de alguns
termos: “Você é bicha ou travesti?”. Ela começou a ficar impaciente com a
conversa: “Travesti, claro! Com muito orgulho!”. Respondeu e, ao mesmo
tempo, começou a acariciar os próprios seios como prova da última afir-
mação. Calei-me e continuei a escutar: “Mas toda travesti é bicha também!
Só não sou uma bicha encubada como vocês, que ficam dando uma de boy.
Uma bicha de verdade veste assim como eu!”. Natasha mostrou o sutiã de
renda preta que estava usando e, em seguida, apontou para a minissaia pra-
teada, que mal cobria as nádegas dela naquela noite.
Morei na Favela da Rocinha nos anos de 2009 e 2010 conduzindo pes-
quisa etnográfica. Durante esse tempo, aprendi diversos novos vocábulos,
muitos deles com minhas amigas travestis. Compartilho aqui alguns signi-
ficados possíveis do verbete bicha-boy e especulo, também, sobre algumas
1 Peter Fry (1982, p. 90, grifo do autor) observa que “a categoria ‘bicha’ se define em relação à ca-
tegoria ‘homem’ em termos do comportamento social e sexual. Enquanto o ‘homem’ deveria
se comportar de uma maneira ‘masculina’, a ‘bicha’ tende a reproduzir comportamentos geral-
mente associados ao papel de gênero (gender role) feminino”.
relação ao contexto indígena amazônico,2 sugiro que, também no caso das tra-
vestis na favela, “roupas” deveriam ser entendidas não como itens supérfluos
da vida cotidiana, mas como equipamentos privilegiados para a expressão e a
afirmação de uma identidade específica. Mais do que uma camada externa ao
corpo, o cuidado e o tempo que Natasha e outras travestis dedicavam às suas
roupas e maquiagem indicam uma relação importante entre “vestimenta” e
“corpos”. Nesse contexto, “vestir-se” pode ser entendido como uma prática
corporal inscrita com significados práticos que incluem uma afirmação iden-
titária enquanto “bicha de verdade”, um marcador de liberdade sexual e de
gênero frente ao machismo, à homofobia e à transfobia.
Certamente, há outros entendimentos e discussões na literatura antro-
pológica sobre o posicionamento da categoria bicha-boy em relação às
diversas possibilidades identitárias. Contudo, elas tendem a focar mais na
demarcação do lugar da bicha-boy em uma escala simples, que varia entre
feminilidade de um lado e masculinidade de outro. Se pensarmos que o
termo boy poderia operar trazendo uma inflexão de “masculinidade” ao
termo bicha, poderíamos considerar duas possibilidades: bicha-boy pode
ser redundante (quando se espera que a bicha seja, por definição, um ente
masculino, ainda que não heterossexual) ou antitético (nos casos em que
se espera que o termo bicha expresse, por definição, uma feminilidade, no
sentido proposto por Peter Fry). No diálogo reproduzido na introdução
deste texto, quando aprendi sobre o conceito pela primeira vez, o entendi
como uma redundância. No meu entendimento, até aquele ponto, as bichas
seriam homens homossexuais. Por isso também a minha pergunta para
Natasha sobre a equação entre ser bicha e ser travesti.
Em pesquisa com moradores do Rio das Pedras, uma outra favela do
Rio de Janeiro, Silvia Aguião (2007, p. 121) encontrou um entendimento
que conecta o termo bicha-boy com uma dimensão mais feminina do “ser
bicha”, ainda que diferente da travesti. Uma interlocutora do estudo de
Aguião, chamada Priscilla, definiu: “Ai! Bicha-boy é assim: é afeminada,
mas não quer ser travesti, muito pelo contrário. Quer ser bem diferente da
travesti. Então usa calça jeans justa e blusa justa, tipo baby look [...] mas
não usa saia e não usa salto”. Após esse relato, a pesquisadora continua a
discussão trazendo considerações mais detalhadas oferecidas por Priscilla,
2 Eduardo Viveiros de Castro (1996, p. 133) argumenta: “aqui me parece haver um equívoco impor-
tante, que é o de tomar a ‘aparência’ corporal como inerte e falsa, a ‘essência’ espiritual como ativa
e verdadeira. Nada mais distante, penso, do que os índios têm em mente ao falarem dos corpos
como ‘roupas’. Trata-se menos de o corpo ser uma roupa que de uma roupa ser um corpo”.
que reafirmam a posição defendida por Natasha sobre a bicha-boy ser como
uma travesti “no armário”:
Ainda segundo ela, as “bicha-boy” são muito “pintosas”, podem fazer a
sobrancelha e até passar um gloss. Perguntei se a diferença para a travesti
seria então somente o não uso de saias e saltos. Ela então explicou que “a
travesti é bem mais sensual” e que na verdade ela tem a teoria de que toda
“bicha-boy” quer ser travesti, só não tem coragem de assumir. Os amigos
dela de Rio das Pedras que são “bicha-boy” só a aceitam porque eles já eram
amigos antes dela virar travesti, quando era uma “bicha-boy”. Seguindo em
suas explicações, Priscilla diz que a diferença da “bicha-boy” para o “gay”,
é que o segundo “dá pinta de homem mesmo”. A calça jeans é a mesma, só
que a da “bicha-boy” é justa, do tipo que fica no meio do caminho entre ser
de homem e de mulher.
Dito isso, na capital do estado de Pernambuco, Luís Fernando Rios (2019,
p. 977-988) e outros colaboradores descrevem a categoria bicha-boy como
pertencendo muito mais ao espectro masculino dentro de uma escala de
possibilidades entre o feminino e o masculino. Em uma pesquisa sobre HIV/
aids e identidades sexuais, os pesquisadores reproduzem algumas falas de
Valter, um interlocutor do estudo em Recife:
Tem o gay que é reservado, que é o mais boy. Eles geralmente são
mais fortezinhos, tentam forçar a voz. [...] eles querem aparentar ser
heterossexuais. [...] A bicha-boy, ela se veste assim: ela geralmente
bota uma calça apertada, porque geralmente ela malha, é a antiga
barbie. [...] Eles usam roupas que geralmente o público hétero gosta.
Geralmente, eles não andam com outros homossexuais que são mais
pintosos ou assumidos. Eles andam com héteros ou com gays tipo eles.
REFERÊNCIAS
AGUIÃO, S. ‘Aqui nem todo mundo é igual’: cor, mestiçagem e homossexualidades
numa favela do Rio de Janeiro. 2007. Dissertação (Mestrado em Medicina Social)
– Instituto de Medicina Social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de
Janeiro, 2007.
3 Sobre a importância do pênis na constituição da identidade travesti, ver: Don Kulick (2008).
CAFUÇU
Roberto Marques
Isadora Lins França
violência que funda o Brasil como nação.1 Neles, repulsa e desejo operam
de forma ambivalente.
Tais narrativas foram objeto de importantes releituras, realizadas por
intelectuais feministas no Brasil nas décadas de 1980 e 1990, tais como Lélia
Gonzalez (1984) e Mariza Corrêa (1996), que, cada uma a sua maneira, inter-
rogaram o lugar ocupado pelas mulheres “negras” e “mulatas” nesse reper-
tório nacional. Para Corrêa (1996, p. 50), o “mulato” seria categoria mais
fluida em termos raciais, enquanto a “mulata” se construía como um objeto
fixo, como um terceiro termo entre brancos e negros, a funcionar como
espécie de símbolo nacional – cuja encarnação do desejo masculino branco
escondia, por tabela, a rejeição à “mulher negra preta”. González (1984),
por sua vez, chamou a atenção para como a figura sexualizada da “mulata”,
a figura trabalhadora da “empregada” e a figura materna da “ama-de-leite”,
com fronteiras deslizantes entre categorias e funções, representavam os
lugares subalternizados destinados às mulheres negras em nossa socie-
dade. Mais recentemente, estudos antropológicos têm abordado como mar-
cadores de diferença social se cruzam com noções sobre nacionalidade e
erotismo, materializando-se nos corpos e estabelecendo convenções sobre
“a mulher brasileira”, “o negão” ou “a mulata”. (MOUTINHO, 2004; PINHO,
2015; PISCITELLI, 2008; SILVA; BLANCHETTE, 2010)
Interessam-nos aqui, portanto, os territórios de mistura, poluição e
indefinição, que nos parecem remeter à figura do cafuçu. Mary Louise Pratt
(1999) usa o termo “zona de contato” para descrever encontros entre sujeitos
anteriormente separados por descontinuidades históricas e geográficas e
que passam a manter contato consistente, usualmente no âmbito comer-
cial. Dimensões interativas e improvisadas dessas interações evidenciam
como “os sujeitos são constituídos nas e pelas suas relações com os outros”,
em práticas interligadas, frequentemente “dentro de relações radicalmente
assimétricas de poder”. (PRATT, 1999, p. 32) Françoise Vergès (2020) con-
tribui com o debate ao demonstrar como a presença de corpos racializados
de trabalhadoras subalternas na cidade não pode jamais ser confundida
com a democratização do espaço. Seria antes a “presença fantasmática”
que assinala suas funções subalternizantes, ao tempo que interdita outros
membros dessas comunidades supérfluas, que “devem permanecer na
porta das residências privadas e dos bairros reservados”. (VERGÈS, 2020,
p. 20) Dinâmicas e interdições na circulação de corpos e sentidos seriam,
1 Mariza Corrêa (1996) ressalta como essa literatura assimila boa parte do discurso médico da época.
classes D e E”. (FRANÇA, 2012, p. 103) Além disso, o cafuçu era frequente-
mente descrito como um tipo “moreno” e “bem brasileiro”. O emprego do
termo, aqui, diz mais sobre as fantasias de gênero e raça que atribuem a um
“Outro” o lugar de cafuçu do que sobre a existência concreta desse sujeito.
Dessa maneira, argumentamos que cafuçu não funciona como uma cate-
goria descritiva de sujeitos ou corpos específicos – nem por isso, contudo,
as dinâmicas que essa categoria sugere sobre as relações entre homens de
posições sociais desiguais no Brasil são menos reais.
No contexto da pesquisa realizada por Isadora França, impunha-
-se, por exemplo, uma pragmática interdição a respeito dos relaciona-
mentos mais duradouros entre gays e os supostos cafuçus, permanecendo
a fantasia do cafuçu na esfera de um desejo que se efetuava em trocas
sexuais temporárias, frequentemente envolvendo transações monetárias
e “ajudas”. Entre os interlocutores pernambucanos de Isadora França, que
diante dos cafuçus se autoidentificavam frequentemente como “frangos”,
o caráter muitas vezes subterrâneo desses relacionamentos era atribuído
ao conservadorismo e hipocrisia locais, com vista à manutenção das hie-
rarquias de sexualidade, classe e raça. Entretanto, evocavam também um
certo “perigo”, associado ao caráter marginal dessas relações, que operava
também como um componente erótico e que demandava um equilíbrio
bastante sutil das tensões emergentes entre sujeitos tão hierarquicamente
marcados. Para os “frangos” no Recife ou para os gays em São Paulo, a vio-
lência dos “boys” ou cafuçus era um risco sempre presente, que poderia
resultar em violência física dos últimos sobre os primeiros, sempre que
os “boys” ou cafuçus se sentissem humilhados em termos de “classe” ou
“raça”. Tal “humilhação” era descrita como as situações em que “frangos”
e gays tentavam impor todas as suas vontades numa dada interação pes-
soal com os supostos cafuçus, tratando-os como inferiores. Assim, era
importante “tratar bem” o “boy”, senão por convicção, como forma de se
proteger de eventuais reações violentas.
Embora este verbete concentre-se no manejo dessa categoria em con-
textos etnográficos bastante localizados, em que a categoria aparece muito
mais entre a acusação, a desvalorização e o desejo pelo “Outro”, é importante
mencionar que a violência implícita na ideia do cafuçu também implica os
que são designados por essa categoria. Nesse caso, há a violência da humi-
lhação na forma como sentem-se frequentemente inferiorizados e redu-
zidos como sujeitos a marcas de raça e de classe, com todas as profundas
desigualdades que elas carregam. Ainda que Isadora França não tenha se
deparado em sua pesquisa com nenhum interlocutor que se definisse como
REFERÊNCIAS
BOURDIEU, P. El baile de los solteros. La crisis de la sociedad campesina en el
Bearne. Barcelona: Anagrama, 2004.
REGO, J. L. O moleque Ricardo. 20. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1995.
CAMGIRL
Caroline Dal’Orto
O GRUPO
Em maio de 2018, conheci Angel no aplicativo Tinder. Ela era de São Paulo
e eu moradora do Rio de Janeiro. Nossa intimidade foi construída a partir
de experiências de términos recentes de outros relacionamentos. Trocamos
redes sociais e nos acompanhamos por um tempo. Em meados do mesmo
ano, Angel, fazendo referência às minhas postagens no Facebook, me con-
vidou a “experienciar” um trabalho que ela exercia há 6 anos. No mesmo
mês, inscrevi-me no Câmera Privê. Foi a partir desse contato que, dois anos
depois, passei a fazer campo com camgirls, junto ao mesmo grupo no qual
comecei como nativa.1
Em entrevista concedida por videochamada, Angel explica a razão
de participar do grupo de WhatsApp no qual estabelecemos contato.
1 Faço um recorte metodológico ao estudar mulheres cisgênero, por partir de um foco de pes-
quisa ambientado na minha experiência como camgirl e na minha participação em grupos de
conversa que foram facilitados pelo meu desempenho de gênero enquanto mulher cisgênero.
O trabalho de camming também comporta camboys, transboys, transcamgirls e sujeitos não bi-
nários que, no entanto, não serão abordados aqui.
A PRIMEIRA CAMGIRL
3 Lançado em 1972, o filme Deep Throat (Garganta Profunda), do diretor norte-americano Gerard
Damiano e estrelado por Linda Lovelace, é o primeiro filme de temática pornográfica a ser lan-
çado em salas convencionais de cinema, seguindo até hoje com a maior bilheteria da história.
Ver em: França (2015, p. 93)
4 Texto original: “JenniCam virtually unedited and uncensored ... So feel free to watch, or not, as
you see fit. I am not here to be loved or hated, I am simply here to be me”.
5 Texto original: “In an interview she gave at the height of her popularity, Jennifer Ringley told
ABC News that she wanted to ‘show people that what we see on TV – people with perfect hair,
perfect friends, perfect lives – is not reality. I’m reality’”.
6 Paul Preciado oferece uma alternativa ao conceito de “biopolítica”, de Michel Foucault, para
pensar novas formas de governabilidade, cultura e gestão do capital via “sexopolítica”. Da pers-
pectiva proposta por Preciado, a sexualidade ganha privilégio numa gestão pós-disciplinar e
molecular do corpo, a partir das indústrias pornográfica e farmacêutica. Essa nova gestão do
corpo será chamada por Preciado de farmacopornográfica. Ver em: Preciado (2013).
7 “Na nossa atualidade, no entanto, as tecnologias digitais estão dissolvendo essas pornotopias
para nos fazer vivenciar uma espécie de ‘atopia sexual’ que prescinde de um local físico (como
o bordel) ou midiático (como a revista ou o VHS) para o exercício sexual, bem como, por vezes,
da própria representação do corpo humano”. (OLIVEIRA, 2017, p. 127)
8 A preferência pelo termo em inglês se dá pela sua maior popularização. Em português, pode-
mos nos referir à camgirl como uma modelo de webcam.
9 Criptomoedas usadas nos sites de conteúdo adulto, como CâmeraPrivê, Stripchat, LiveJasmin,
WebCamModels e Cam4.
10 Pacotes de fotos comercializados contendo nudez ou conteúdo sexualmente provocativo.
11 Prática de troca de divulgação entre perfis de modelos dentro da mesma plataforma ou em pla-
taformas diferentes.
12 Sexo por mensagem de texto.
13 Para os homens, o femdommes é enxergar as mulheres como um tipo de “autoridade natural”,
nesse tipo de relação o homem gosta que a mulher tome a posição de ativa/dominadora (ela
manda mensagem, ela faz convite, manda flores). A dominatrix é uma mulher que oferece ser-
viços não necessariamente sexuais (pode ser uma simples troca de poder) e estuda para isso, é
uma profissional. Slavemoney é ter um prazer na submissão monetária. Como o dinheiro é visto
como uma troca de poder e os homens têm mais poder, geralmente eles representam mais esses
papéis, embora também existam mulheres. Aqui pode haver o envolvimento de outros fetiches
como o “ageplay” em que a pessoa performa uma outra idade. A exemplo do relato de um amigo
que disse se sentir um adolescente quando dava dinheiro para uma mulher. Aqui a pessoa está
abrindo mão de um poder que ela tem em um momento específico, é como se eu transferisse mi-
nha responsabilidade com o dinheiro (como gastar, por exemplo) para outra pessoa (nota trans-
crita a partir de um áudio enviado pela minha interlocutora Angel).
14 Uma maneira apresentada por minhas interlocutoras de trabalhar como sex worker no ambien-
te digital, fora das plataformas, é produzir conteúdo independente, articulando essa produção
com a divulgação nas mídias digitais “abertas”, o armazenamento em serviços de nuvem e o
pagamento através de plataformas que oferecem serviço de carteira digital.
15 O site oferece várias categorias diferentes em que as modelos configuraram seus perfis e passam
a transmitir de acordo com as especificidades de cada uma delas, incluindo o tipo de perfor-
mance a ser feita, o teor das conversas, a estética do cenário e a performance corporal da mo-
delo. Na categoria “hot flirt” (flerte quente) é proibido nudez ou comportamento sexualmente
provocador no bate-papo gratuito. No bate-papo privado, as modelos são livres para decidir que
tipo de programa estão dispostas a oferecer e recomenda-se que sejam “sexy, yet hard to get”.
Na categoria “soul mate” (alma gêmea) as modelos não devem fornecer ou implicar qualquer
conteúdo sexualmente explícito, seja ele escrito, imagem ou um feed de câmera ao vivo. Já a ca-
tegoria “celebrity” (celebridade) recomenda-se que as modelos “show interest in the Members,
and approach them through their minds”. Aqui não é permitido nudez, e a valorização de uma
“personalidade” e conexão “intelectual” são um imperativo. Descrito como um “territory for the
special needs”, o “fetish category” (categoria fetichista) é uma subcategoria do “nudes category”.
Aqui existem três requisitos principais: roupas, com prioridade a vestuários escuros (vermelho,
preto, látex roxo, couro, espartilho, meias, zíperes, cintos, uniformes); acessórios (correntes,
punho de pulso ou tornozelo, saltos altos, cadeira gótica, joias); cenário (relacionando mobiliá-
rio e iluminação com os acessórios acima mencionados).
e fui para o pornô para fazer frente ao pornô mainstream, para produzir
algo alternativo”.16
No seu artigo “Webcamming erótico comercial: nova face dos mer-
cados do sexo nacionais” (2021), a pesquisadora Lorena Rúbia Pereira
Caminhas discute seus estudos que se debruçam sobre o que denomina
como “universo do webcamming erótico comercial”. Em diálogo com suas
interlocutoras, a autora percorre uma constelação de termos, variando
entre striptease, prostituição e pornografia, e busca entender quais são as
intermediações, contatos, atravessamentos e rupturas que esses termos
apresentam na definição do que ela observa como um novo fenômeno do
trabalho sexual.
Baseada nessa leitura, perguntei às minhas interlocutoras como elas
se definiam e levei o artigo de Caminhas para o grupo de WhatsApp, ini-
ciando uma conversa. Em resposta, Heleonara afirmou concordar com os
termos, mas sem pretensão de “ofensa” ou de tê-los como algo “negativo”.
Perguntei por que ela os entendia dessa forma, ela seguiu: “é porque tem
gente que associa a palavra prostituição com ofensa e tal”. Angel aparece
e afirma: “striptease não, né? Ninguém diz ‘eu trabalho com striptease’”,
diz “eu trabalho com camming/programa”. Ainda, confirma: “o strip é um
galho da árvore do camming. Prostituição/pornografia virtual, sim, porque
é o que ele é”. Heleonara intervém: “tipo... sem ofender a nós todas aqui,
mas eu acho que sim... pode ser um tipo de prostituição, mas bem dife-
rente porque, no caso, não estamos sendo obrigadas a isso nem foi porque
a sociedade nos empurra para isso”.
Pergunto se há uma diferença de “necessidade” entre o camming e a
prostituição. Angel se “irrita” e afirma: “eu não acredito nessa distinção. Isso
é tentar higienizar o camming como se ele fosse ‘menos pior’ que programa”.
Heleonara interpela: “digamos que, por mais [que] tenha arrombamentos
[no camming], estamos mais seguras”. Angel confirma. O debate continuou
em relação à pornografia e Angel indagou: “mas tem diferença? A diferença
para mim é o pornô mainstream e o independente”. Já Heleonara, em tom
de discordância, sugeriu: “[...] na parte audiovisual tem essa diferença sim!”.
Insisti sobre a diferença e Angel afirmou: “eles pagam pela sensação de
exclusividade e ‘proximidade’”. Heleonara complementa: “pela sensação de
estar no controle também. Porque no mainstream eles são só expectadores”.
REFERÊNCIAS
BLEAKLEY, P. “500 Tokens to Go Private”: camgirls, cybersex and feminist
entrepreneurship. Sexuality & culture, New York, v. 18, n. 4, p. 892-910, 2014.
Disponível em: https://link.springer.com/article/10.1007/s12119-014-9228-3.
Acesso em: 4 jun. 2023.
MULVEY, L. Visual pleasure and narrative cinema. Visual and other pleasures,
London, p. 14-26, 1989.
RUBIN, G. Pensando o Sexo: Notas para uma Teoria Radical das Políticas da
Sexualidade. Cadernos Pagu, Campinas, p. 1-54, 2003. Disponível em: https://
repositorio.ufsc.br/bitstream/handle/123456789/1229/rubin_pensando_o_sexo.
pdf. Acesso em: 4 jun. 2023.
CAVALO-MARINHO
1 Nesta pesquisa anterior analisei as dinâmicas relacionais de parentesco que envolvem as trans-
formações corporais, a sexualidade e a reprodução para homens trans que passaram pela expe-
riência da gestação. Este estudo é de caráter etnográfico e para desenvolver o trabalho de campo
utilizei três estratégias metodológicas: a realização de entrevistas em profundidade e semiestru-
turadas com oito homens trans de diferentes regiões do Brasil; observação participante em espa-
ços de convivência dos homens trans na cidade de Salvador (BA); e exploração de sites e mídias
sociais on-line. Todo esse processo durou cerca de um ano e meio e ocorreu entre os meses de se-
tembro de 2016 e abril de 2018.
2 A categoria “homem trans” é utilizada aqui como um termo guarda-chuva para se referir às pessoas
que foram designadas como “mulheres” ao nascer, a partir da observação de suas genitálias, mas
que, no curso de sua constituição como sujeitos, se opuseram a essa determinação e se autoiden-
tificam enquanto “homens”. Tal experiência se caracteriza por uma diversidade de nomenclaturas
como: trans homem, transman, FTM (sigla original do inglês female-to-male), transexual masculi-
no, homem transexual, pessoa transmasculina e “boyceta”. Essa experiência é marcada por diferen-
tes formas de transformações corporais que podem incluir desde a utilização de roupas e acessó-
rios considerados masculinos até as intervenções cirúrgicas e hormonais. (ALMEIDA, 2012; ÁVILA,
2014) Recentemente, passei a encontrar em campo pessoas que se identificam enquanto pessoa
transmasculina. Esta categoria é utilizada para dar conta das pessoas que pensam e constroem suas
identidades de gênero para além das categorias binárias, uma vez que essas pessoas tendem a não
se identificar com a categoria homem, mas com as masculinidades, ou seja, enfatizam que há a pos-
sibilidade de vivenciar a masculinidade sem necessariamente ser uma vivência de homem.
Eu acho que posso dizer que nós homens trans somos que nem os cava-
los-marinhos porque, no cavalo-marinho, é o macho que engravida.
Eu engravidei duas vezes e mesmo assim ainda queria fazer a tran-
sição [de gênero]. [...] Não me sinto menos homem porque pari meus
filhos. (grifo nosso)
3 É comum entre os homens trans a utilização de diferentes fármacos a base de testosterona (por
exemplo, Deposteron, Durateston, Androgel e Nebido). Por meio do uso contínuo desses hor-
mônios, eles vivenciam mudanças significativas em seus corpos, como, por exemplo, o cresci-
mento de pelos do rosto, formando a barba e o bigode; mudança no timbre da voz, que a torna
mais grave; aumento da força muscular, aumento da libido sexual, mudanças no cheiro e espes-
sura dos fluidos corporais e a interrupção da menstruação.
4 O binder é um colete ou faixa, feito de tecido elástico, que comprime e esconde o tamanho dos
seios. É bastante utilizado pelos homens trans que ainda não realizaram a mastectomia.
5 Os packers são próteses penianas que podem ser feitas de vários tamanhos, estilos e materiais.
Eles servem para fazer volume na roupa, para urinar em pé, para ter relações sexuais e podem
ser facilmente adquiridas em lojas virtuais ou em sex shops. Alguns homens trans fazem o pa-
cker com meias emboladas e dobradas para que simulem o volume do pênis na roupa.
6 Alguns homens trans utilizam o Minoxidil, um vasodilatador que estimula o crescimento da
barba e do bigode.
7 No caso do Brasil esses parâmetros estão ligados ao chamado processo transexualizador no âm-
bito do Sistema Único de Saúde (SUS). Segundo Vergueiro (2015, p. 1), “o ‘Processo Transexuali-
zador’ é a base para a atenção específica às populações trans no sistema público de saúde (SUS),
e é significativamente fundamentado em perspectivas patologizantes sobre a diversidade de
identidades de gênero”.
maneira, muitos homens trans não são estéreis, mas o uso dos seus órgãos
reprodutivos pode significar uma transgressão ao gênero escolhido, uma
vez que a gestação pode ser vista como um ato incompatível com a sua
masculinidade, pois ser um homem pode ser compreendido como sinô-
nimo de não engravidar. (HÉRAULT, 2011) No entanto, para os homens
trans com os quais convivi, a gravidez não significou ser “menos homem”.
Nesse contexto, a reprodução não é negada, mas incorporada ao próprio
processo de transição de gênero, como é exemplificado na utilização do
termo cavalo-marinho.
Como argumentei anteriormente (MONTEIRO, 2020), ao utilizarem
a metáfora do cavalo-marinho esses homens trans buscam, no domínio
daquilo que se entende como natureza ou biologia, algo que dê sentido à
possibilidade que há em seus corpos de engravidar e parir sem deixar de
lado as suas masculinidades. Vemos que, nesse contexto, a “natureza” é
mobilizada como uma categoria capaz de tornar ainda mais inteligível a
existência de um homem grávido ou capaz de engravidar. Embora essa
referência à biologia possa ser compreendida como uma forma de essen-
cializar as experiências sociais da reprodução, essa metáfora do cavalo-
-marinho funciona como uma crítica aos paradigmas culturais vigentes,
em que gestar e parir está relacionado com o ser mulher cis8 e ser mãe.
Com isso, o cavalo-marinho é utilizado como uma forma de (des)identi-
ficação e de associação direta entre gravidez, feminilidade, maternidade
e cisgeneridade.
Ao passo em que esses homens trans mantêm seus processos de masculi-
nização junto à possibilidade de gravidez e do parto, elementos importantes
como, por exemplo, os fármacos a base de testosterona, a mastectomia,
o útero e a gestação são mobilizados estrategicamente para transformar
uma pessoa em um homem e em um pai. A questão da paternidade é apre-
sentada pelos homens trans com os quais eu convivi, principalmente por
aqueles que engravidaram antes da transição de gênero, como um processo
delicado, que requer cuidado e paciência, para se desvincular da imagem
feminina de uma mãe. Dessa maneira, eles buscam estratégias e negociam
outras formas de (re)significar essas relações.
Gustavo, um homem trans de 25 anos, que mora em São Paulo, engra-
vidou antes da transição e tem uma filha de cinco anos chamada Manu.
8 Cis ou cisgênero é um termo utilizado para se referir às pessoas que se identificam com o gênero
que lhes foi atribuído ao nascimento e que não se identificam enquanto trans.
Quando contou para sua filha sobre sua transgeneridade, Gustavo disse
que, no início, ela simplesmente dizia que “a minha mãe é menina e
menino”. Contudo, com o passar do tempo, quando as primeiras mudanças
corporais começaram a surgir como resposta ao tratamento hormonal,
Manu ficou muito triste, dizendo que não queria que Gustavo “virasse”
um menino, pois tinha muito medo de perder a mãe. Gustavo diz que foi
difícil lidar com essa fase e que sempre tentava fazê-la compreender essas
mudanças, deixando-a bem à vontade para conversar sobre a situação.
Para Gustavo, a parte mais complicada era quando Manu o chamava de
mãe em ambientes públicos. Como ele já estava adquirindo certas carac-
terísticas corporais consideradas masculinas, como barba e bigode, ser
identificado no feminino em algumas situações era constrangedor:
[...] eu gostaria muito que ela [Manu] me visse como pai, mesmo
já tendo o outro dela, mas que não fosse algo imposto. E principal-
mente por conta do constrangimento que eu passo sempre, quando
nós saímos, e ela me chama de mãe e as pessoas olham tipo, como
assim mãe?.
REFERÊNCIAS
ALMEIDA, G. ‘Homens trans’: novos matizes na aquarela das masculinidades?.
Estudos Feministas, Florianópolis, v. 20, n. 2, p. 513-523, 2012. Disponível em:
https://www.scielo.br/j/ref/a/wkWvfpf58vHyvr35KTZyvtr/?lang=pt. Acesso em:
5 out. 2021.
CRIANÇA VIADA
1 Aos leitores(as), vocês notarão que o termo criança viada irá aparecer a todo momento e se re-
petirá inúmeras vezes ao longo do texto e, é preciso dizer, isso não é por acaso (nada é por um
acaso) ou até mesmo falha na escrita. Utilizamos a repetição e a substituição de palavras gene-
ralizadas enquanto uma estratégia empregada para que a forma como escrevemos seja coerente
com o que estamos propondo em termos de crianças viadas. Crianças viadas não possuem uma
identidade de gênero, uma orientação sexual ou uma idade específica. Trata-se de um espectro
borrado e corporificado à medida que é apontado e acusado na direção de uma criança qualquer
que esteja em desacordos com as normas e imposições cisheterossexuais.
O único problema é que nem todas as pessoas a viam como uma prin-
cesa. Para muitas pessoas ela era um menino fora da norma!
Quem narra a história acima, transformada em conto, é uma professora
de ensino infantil. Segundo ela, essa foi a primeira vez que se deparou com
2 Esta entrevista, bem como os demais dados etnográficos deste texto, é oriunda de d
iferentes
interlocuções desenvolvidas no Projeto de Extensão “Mapeando a Noite: Universo T
ravesti”,
vinculado ao Grupo de Estudos Etnográficos Urbanos da Universidade Federal de Pelotas
(GEEUR/UFPEL). Desde 2018, a equipe do projeto (do qual somos integrantes) tem se empenhado
em atender demandas de professores e professoras de educação básica que buscam “instrumen-
talização” para o trato de temáticas relacionadas à diversidade de gênero e sexualidade em sala
de aula. Assim, a pesquisa foi realizada com o desenvolvimento de diversas ações de formação
docente (cursos, minicursos, palestras, oficinas), possibilitando a troca de relatos e experiências
que construíram as relações de interlocução entre docentes e pesquisadores(as).
— Eu tive uma criança viada de três anos que não aceitava o corpo
que tinha. Ela tinha muito conflito com as outras crianças porque ela
dizia que ele não era menino, ela era menina, e não aceitava que cha-
massem ela pelo nome dela [masculino].
— Como é que ela gostava de ser chamada?
— De Cinderela.
(Trecho de entrevista com professora do ensino infantil realizada
em 2020, grifo nosso)
REFERÊNCIAS
AZEVEDO, A. P. F. de; ASSUNÇÃO, D. P.; RIBEIRO, V. K. Tornar-nos Crianças:
Auto/etnografias, cuidados e reparações. REBEH – Revista Brasileira de Estudos
da Homocultura, Cuiabá, v. 3, n. 9, p.50-63, 2020. Disponível em: https://bit.
ly/3hhms75. Acesso em: 10 maio 2021.
DESCONSTRUÍDA
1 Os dados doravante apresentados foram coletados no âmbito da pesquisa “Longe da casa dos
pais: sobre a experiência dos jovens em regime de internato escolar”, aprovado pelo Comitê de
Ética do Instituto Federal da Bahia, através do Parecer Consubstanciado nº 4.328.150, de 08 de
outubro de 2020.
2 Dados obtidos nas entrevistas semiestruturadas realizadas com as adolescentes, bem como
através do exercício de observação participante do cotidiano escolar.
públicas de São Paulo. Diante deste cenário, longe da vigilância dos demais
membros da organização, as adolescentes, encerradas na esfera privada,
encontram suas próprias maneiras de socializarem-se e de divertirem-se,
o que McRobbie e Garber (2006) chamam de “cultura de quarto”. Através
de jogos e brincadeiras, as meninas passam a ensaiar e performar outras
identidades sexuais, para além do binarismo hétero-homossexual. Para
algumas internas, que mantêm uma relação conflituosa com suas famílias
por conta de suas sexualidades, o internato escolar surge como que envolto
por uma aura de liberdade, uma possibilidade para elas se descobrirem e
dar vazão aos desejos mais íntimos. Enfim, tudo se passa como se em um
ambiente onde viceja o “poder disciplinar” (FOUCAULT, 1987), em que as
alunas pudessem encontrar um caminho passível de contrariar o caráter
compulsório da heterossexualidade.
É nesse encontro entre o lúdico e o erótico que elas passam a se designar
como desconstruídas. Tudo pode começar com uma simples brincadeira.
As meninas formam um círculo ao redor de uma das camas do dormi-
tório; sobre esta superfície, uma garrafa é disposta ao centro. Uma vez
girada, temos o início do jogo “verdade ou consequência” ou, conforme
outra nomenclatura, “verdade ou desafio”.3 Ao serem miradas pelo objeto
(quem estiver com a boca da garrafa apontada para si, fará uma pergunta;
quem for apontada pelo fundo, deverá responder), as estudantes encon-
tram um pretexto para zoar as amigas e a si mesmas. As perguntas elabo-
radas, geralmente, avançam para o território da intimidade: “você ficaria
com algum professor/servidor?”, “você já beijou outra menina?”, “você
pegaria fulano do ap.[apartamento] 13?”, são alguns exemplos. A respon-
dente opta por responder ao questionamento ou por pagar uma “prenda”.
Estas quase sempre envolvem algum contato corporal: beijar uma outra
colega de quarto, por que não? Assim, sem se preocupar com rótulos e em
um clima de descontração, as garotas matam o tempo. Às vezes, maliciosa-
mente, elas entram na brincadeira já visando a “prenda” que deverão cum-
prir, pois são “desconstruídas”.
Dessa maneira, nesse ambiente, o termo desconstruída indica a fluidez
e a permissividade que as estudantes se davam em experimentar carícias
e gestos homoafetivos com suas colegas de quarto. Identificar-se com esse
termo aqui, para além do amplo guarda-chuva “não ser preconceituosa”, sig-
nificava estar aberta a beijar e até “ficar” com alguma amiga de acomodação,
REFERÊNCIAS
CASTELLS, M. Redes de indignação e esperança: movimentos sociais na era da
internet. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2013.
MCROBBIE, A.; GARBER, J. Girls and subcultures. In: HALL, S.; JEFFERSON, T.
(ed.). Resistance through rituals: youth subcultures in post-war Britain. London:
Routledge, 2006. p. 209-222.
DO VALE
como trocas de afeto entre dois homens ou entre duas mulheres e compor-
tamentos tidos como afeminados em corpos com pênis.
O termo faz referência direta ao testemunho de uma pastora evangélica
chamada Yonara de Lira, conhecida como Yonara Santo, no qual ela afirma
ter visitado o inferno por 15 vezes. Seus vídeos e depoimentos tornaram-se
virais desde as frequentes aparições que fazia em programas de televisão
na década de 2010. Em vídeos, disponíveis no YouTube, a pastora descreve
pormenorizadamente cenas de seus passeios pelo inferno, guiada pelo pró-
prio deus cristão. Um dos cenários é o “Vale dos Homossexuais”, descrito
por ela da seguinte forma:
REFERÊNCIAS
GOLDSTEIN, D. M. Laughter Out of Place: race, class, violence, and sexuality in a
Rio Shantytown. 2. ed. Berkeley: University of California Press, 2013.
TESTEMUNHO: Pastora Yonara 15 Idas ao Inferno. [S. l.: s. n.], 2016. 1 vídeo (109
min). Publicado pelo canal Zenil Pina. Disponível em: https://www.youtube.com/
watch?v=nS4qJCLYCC4. Acesso em: 30 ago. 2021.
DRAG QUEEN
MATERIALIDADE
PERFORMANCE
1 É necessário ressaltar que se montar, como debate Vencato (2002), é uma categoria nativa em
que se define as técnicas e o processo de “se produzir”.
2 É importante frisar que o movimento de Turner ocorre do ritual ao teatro, enquanto Schechner,
seu aluno, manifesta-se e localiza sua produção do teatro ao ritual. Assim, “[...] na configuração
de movimentos contrários e complementares irrompe um dos momentos originários da Antro-
pologia da performance”. (DAWSEY, 2006, p. 17)
3 Turner (2008), ao refletir sobre o tempo social, o compreende de maneira inteiramente dramá-
tica. Assim, sua metáfora e modelo são pensados a partir da estética, subjetividade e imagina-
A CIDADE E O TRABALHO
CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
ARAÚJO, B. S. Experiências e performances: o circuito de jovens homossexuais
na cidade de Sobral/CE. 2019. Dissertação (Mestrado em Antropologia) –
Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 2019.
ESCORT
Guilherme R. Passamani
categoria muito popular entre esses homens e também entre pessoas LGBT
consumidoras ou não de trabalho sexual. O continente europeu, em vista
das distâncias e das políticas de fronteira, permite trânsitos muito cons-
tantes. Há uma série de línguas nacionais diferentes. No entanto, a língua
que os aproxima tem sido o inglês. A palavra escort significa acompanhante
em língua inglesa (tradução livre). No Brasil, a palavra escort parece ter
menos conotação sexual em relação ao seu uso na Europa. Escort popula-
rizou-se no Brasil associado a um modelo de automóvel.
O termo escort “neutraliza” compreensões pejorativas naturalizadas ao
trabalho sexual quando associadas a categorias como garoto de programa
e michê. Escort comporia uma gramática estética mais “neutra”, “limpa”,
“higienizada”, inclusive para referir-se a homens que prestam serviços de
acompanhamento em diferentes espaços sociais. Com ou sem fins sexuais.
Parece que não se está apenas diante de uma simples eleição entre palavras.
Tratar-se-ia de uma tentativa de descolamento de categorias mais estig-
matizantes associadas aos homens trabalhadores sexuais. Escort, então,
produziria condições de um sujeito mais clean, sofisticado, cosmopolita,
que prestaria um serviço mais “qualificado”, “caro”, de “luxo”. Mirar-se-ia
em um público que não é afeito à contratação de garotos de programa ou
michês, mas de acompanhantes.
É possível que haja um recorte de classe na compreensão e constituição das
performances desses sujeitos. De forma geral, os escorts caracterizar-se-iam
por serem acompanhantes de luxo, destacando-se o corpo em forma, uma
idade entre 20 e 30 anos, um “dote” superior a 20 centímetros, o fato de serem
falantes de duas ou mais línguas, escolarizados, “discretos” e com aparência
de “modelo”. Eles podem oferecer serviços sexuais variados, que são acer-
tados com os clientes antes do primeiro encontro. Segundo constatamos
durante a pesquisa, o montante de dinheiro pedido/recebido é que determi-
nará o que poderá ou não ser realizado nos atendimentos.
O perfil descrito acima é um tipo ideal. Ele aparece em discursos de
diferentes trabalhadores sexuais, clientes ou outras pessoas envolvidas
nas economias sexuais quando questionadas acerca de uma possível defi-
nição de escort. Como tipo ideal, o escort efetivamente não existe. Mas estas
características, estas marcas, serviriam de balizadoras para a constituição
de um sujeito que busca aproximar-se desse lugar que, no âmbito do tra-
balho sexual, pode ser de mais prestígio em relação a outras categorias.
Os escorts em contextos transnacionais não costumam trabalhar nas ruas,
nas saunas, nos clubes de sexo. Os espaços priorizados são casas, hotéis e
motéis. Os sites de “acompanhantes” na internet, ou outras mídias digitais,
no intuito do escort obter mais clientes por ser uma “novidade” onde acaba
de chegar. Nas cidades onde os escorts acabam de chegar, geralmente
habitam (de forma temporária) “apartamentos de praça”, que são espaços
cujos quartos são alugados (de maneira informal) por preços acima do
mercado, para que eles possam realizar trabalho sexual ali durante um
período curto de tempo. Os escorts costumam deslocar-se para lugares
reconhecidos como “boas praças”, isto é, para trabalhar em cidades ou
habitar casas conhecidas por ter uma clientela numerosa, frequente e
que pagaria acima da média.
Dessa forma, não é uma tarefa fácil definir escort, esse sujeito errante
que se move de praça em praça, pois trata-se de uma categoria fluida e com-
plexa. Um jeito de olhar os escorts pode ser por meio de mobilidades por
fronteiras internacionais, por meio de processos migratórios transnacio-
nais. A categoria escort engendra uma série de marcadores sociais da dife-
rença, o que permite fugir de paradoxos já clássicos no que diz respeito
ao trabalho sexual. Assim, essa (des)identidade possibilita leituras dife-
rentes de agência, demonstrando os arranjos contextuais que os sujeitos
constituem na expectativa de tornar suas experiências mais interessantes
e viáveis.
Por fim, trânsitos e deslocamentos, físicos e simbólicos, são estabele-
cidos no âmago de diferentes processos. Os escorts se constituem como
sujeitos nesse périplo em busca de algo como um “sonho europeu”, mesmo
entre aqueles que já são europeus, mas de regiões menos prestigiadas do
continente. Escorts do chamado “Leste Europeu”, por exemplo, prosti-
tuem-se na Europa Central, sujeitos da própria Europa Central também o
fazem ali, ainda que em menor número. No entanto, os escorts mais pro-
curados (pelo menos os nossos dados indicam isso até o momento) são
aqueles que apresentam algumas marcas acentuadas de diferença, tais
como cor/raça (que não seja branca), nação (que não seja europeia), mas
parece que o estereótipo de uma lascividade e malemolência associado
a homens latino-americanos e africanos impõe-se como especialmente
potente neste mercado.
Assim, os movimentos empreendidos pelos escorts em um contexto cir-
cunscrito por noções relacionadas às performances (e performatividades)
de gênero e sexualidade inserem-se em um panorama maior das relações de
poder existente entre sujeitos de distintas nacionalidades. Atravessar fron-
teiras não é uma exigência para que um homem atue como escort. No entanto,
mobilidade, trânsito, circulação têm sido estratégias muito relevantes nesse
mercado. Algumas vezes, tais movimentos implicam atravessar fronteiras.
E quem o faz parece auferir ganhos mais significativos. Desse modo, é pos-
sível vislumbrar uma miríade de configurações, entre relações e brechas,
que manipulam signos, constituem imaginários e promovem a dinâmica
da performance dos escorts em suas recorrentes perambulações.
REFERÊNCIAS
AGUSTÍN, L. La industria del sexo, los migrantes y la familia europea. Cadernos
Pagu, Campinas, n. 25, p. 107-128, 2005. Disponível em: https://www.scielo.br/j/
cpa/a/NfL3ckb3fV8xLcnjQGLfK3P/?format=pdf&lang=es. Acesso em: 27 maio
2023.
MAI, N. Surfing liquid modernity: Albanian and Romanian male sex workers
in Europe. In: AGGLÉTON, P.; PARKER, R. (ed.). Men Who Sell Sex: global
perspectives, 2014. p. 27-41.
FLEXÍVEL
Maycon Lopes
1 É possível que em outros contextos e cenas o termo “flexível” encontre-se associado à atividade
sexual, seja conotando bissexualidade, seja como sinônimo da categoria versátil (sujeitos que
praticam sexo anal insertivo e receptivo). Embora pareça considerável que as acepções diversas
que o termo pode ganhar indiquem, também nesse ponto, uma situação de “abertura”, esses
outros usos não serão englobados nesta análise.
2 Posição que consiste em afastar as pernas uma da outra, de modo que, paralelas ao solo, for-
mem um ângulo de 180º.
REFERÊNCIAS
LINO E SILVA, M. Minoritarian Liberalism: a travesti life in a Brazilian favela.
Chicago: University of Chicago Press, 2022.
LOPES, M. Learning body techniques: dance and body flexibility among gay black
teens in Salvador de Bahia, Brazil. Social Sciences, [Basel], v. 10, n. 2, p. 72-91,
2021. Disponível em: https://www.mdpi.com/2076-0760/10/2/72. Acesso em: 28
maio 2021.
GILETE
— Ele é gilete
— Como assim?
— Corta dos dois lados! (grifo nosso)
1 Citado por Fry (1982), o termo possivelmente tem relação com “panaché”, algo composto por
elementos diferentes entre si.
2 Herbert Daniel e Richard Parker dedicam seu inspirado livro AIDS, a terceira epidemia: ensaios
e tentativas (1991) aos gays, transexuais, michês, travestis e, dentre outros, aos giletes. Em con-
traste, as pesquisas realizadas na esteira da epidemia, inclusive por Parker, estavam mais volta-
das para a categoria bissexual, muito mais em um sentido de “práticas” do que de “identidade”
inicialmente preocupadas em saber se esses homens realmente existiam e como sua sexualida-
de poderia influenciar na dispersão da doença. (MIGOT; RISSON; MARTINS, 1996)
REFERÊNCIAS
DANIEL H.; PARKER, R. AIDS, a terceira epidemia: ensaios e tentativas.
São Paulo: Iglu, 1991.
FRY, P. Para inglês ver: identidade e política na cultura brasileira. Rio de Janeiro:
Zahar, 1982.
INDETECTÁVEL
“Sou indetectável” é um termo que tem sido cada vez mais utilizado por
Pessoas Vivendo com HIV/aids1 (PVHA) e que fazem uso de antirretrovirais.
Tecnicamente, estar indetectável no Brasil significa que há uma quantidade
igual ou inferior a 40 cópias de HIV por milímetro cúbico, o que também é
equivalente a uma gota de sangue.2 Já em relação aos padrões internacio-
nais, o número de cópias virais que caracterizam a indetectabilidade são
quantidades iguais ou inferiores a 200 cópias por milímetro cúbico de san-
gue.3 A indetectabilidade é demarcada, portanto, quando a carga viral está
1 Escolho manter a sigla “aids” em “Pessoas Vivendo com HIV/aids”, pois compreendo que esta
pandemia não pode ser reduzida a um controle biomédico, sendo o estigma construído em tor-
no dela um fator importante nos aspectos cotidianos, moldando experiências sociais, afetivo-
-sexuais, políticas e econômicas. Em AIDS: A terceira epidemia, ensaios e tentativas (2018),
Herbert Daniel e Richard Parker vão definir a epidemia de aids em três perspectivas. A primeira
epidemia refere-se ao próprio vírus, ao HIV, que passa a adentrar na sociedade. A segunda epi-
demia já é a materialização deste vírus nos corpos, isto é, o adoecimento por aids. Já a terceira
epidemia é referente às representações culturais ou “às reações sociais, culturais, econômicas e
políticas à AIDS”. (DANIEL; PARKER, 2018, p. 14) É dentro desta perspectiva socioantropológica
que penso a pandemia de aids.
2 Ver em: http://saude.sp.gov.br/centro-de-referencia-e-treinamento-dstaids-sp/homepage/des-
taques/carga-viral-indetectavel-torna-infeccao-por-hiv-intransmissivel#:~:text=A%20nota%20
informa%20gestores%2C%20profissionais,o%20v%C3%ADrus%20pela%20via%20sexual.
3 Ver em: https://www.health.ny.gov/diseases/aids/ending_the_epidemic/faq.htm.
REFERÊNCIAS
BOMFIM, D. População negra é a que mais morre em decorrência da aids em
São Paulo, afirmam especialistas. Agência de Notícias da Aids, São Paulo, 29 out.
2016. Disponível em: http://agenciaaids.com.br/home/noticias/volta_item/25523.
Acesso em: 1 out. 2016.
5 É exatamente por este contexto de violência estrutural e de negação de direitos que a população
negra se configura como a mais afetada pela aids no Brasil, sendo as mulheres cisgêneras ne-
gras as que mais morrem: cerca de três vezes mais do que a população branca. (BOMFIM, 2016)
COHEN, M.; CHEN, Y. Q.; MCCAULEY, M. et al. Prevention of HIV-1 infection with
early antiretroviral therapy. The New England Journal of Medicine, Boston, v. 365,
n. 6, p. 493-505, 2011. Disponível em: https://www.nejm.org/doi/full/10.1056/
nejmoa1105243. Acesso em: 4 jul. 2021.
RACE, K. ‘Party and Play’: Online hook-up devices and the emergence of PNP
practices among gay men. Sexualities, [Sexualities] v. 18, n. 3, p. 253-275, 2015.
Disponível em: https://journals.sagepub.com/doi/10.1177/1363460714550913.
Acesso em: 11 maio 2021.
IRMÃ
1 Esse trabalho de campo foi realizado ao longo do ano de 2020 para construção da dissertação
de mestrado (VARJÃO, 2021) do Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade
Federal da Bahia, financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia.
2 Adoto a maneira pela qual eles costumam se “identificar” na nomenclatura sexual. Embora
“racha” seja por vezes associado a um adjetivo pejorativo, no contexto da Companhia Drama,
seu uso era constante e comum, sendo realizado mesmo pelas mulheres.
3 Recorro ao conceito de “diversidade” para identificar um contexto em que sujeitos são atraves-
sados por um conjunto de marcadores sociais da diferença que não se adequam ao padrão hete-
rossexual, cisgênero, normativo e branco.
4 Recorro, neste texto, à definição de minoria e maioria a partir da obra de Deleuze e Guattari
(2015) que pensam essas categorias analíticas não a partir de quantidade, mas relações de po-
der e eixos de diferenciação não normativos. “As maiorias e as minorias não se distinguem pelo
número. Uma minoria pode ser mais numerosa que uma maioria. O que define a maioria é um
modelo ao qual é preciso estar conforme”. (DELEUZE, 2013, p. 218)
5 Utilizo o conceito de “substância” elaborado por Janet Carsten (2000): a “substância” para a
antropóloga é uma matéria compartilhada que dá corpo às relações de parentesco. Atentar-se
ao compartilhamento dessas substâncias – que podem variar de campo para campo – permite
observar a maneira pela qual as pessoas estão relacionadas umas às outras e como intensificam
seus laços no cotidiano.
6 Discuto de maneira mais aprofundada sobre essas sexualidades não normativas no contexto do
teatro em outro texto. (VARJÃO, 2022) Embora dê uma ênfase maior ao território do Centro de
Cultura João Gilberto, analiso como a sociabilidade relacionada à diversidade de sexualidade,
gênero e raça é mais intensa nos contextos de produção artística em Juazeiro da Bahia.
ele não pertence à “mesma espécie”, assim como outros “ativos” que não
fazem parte da mesma relacionalidade e não compartilham da “passivi-
dade” das irmãs. O “ser ativo”, assim, é o outro, perigoso e ameaçador, para
a relacionalidade das irmãs e, apesar disso, continua sendo desejado –
o cônjuge prescrito nas relações das irmãs, por isso, seu caráter disruptivo.
Nessas relações de parentesco, o tabu não consiste necessariamente no
incesto, como na teoria clássica de Lévi-Strauss (1982),7 mas no tabu da pas-
sividade. As irmãs, compartilhando a possibilidade de serem passivas, não
devem se relacionar com outras passivas. Como no exemplo de Roberto e
José, a presença de outra passiva (José) fez com que Roberto mudasse sua
forma de agir com as irmãs – diminuísse seus trejeitos, adquirisse uma pos-
tura mais “masculina” e exercesse o papel de “ativo” durante o ato sexual.
O perigo de ter uma “passiva” em jogo consiste justamente na possibilidade
de a passividade não ser mais uma linguagem comum, coletiva, como acon-
tecia antes do relacionamento. Por conta de José, outra passiva, Roberto
mudou sua postura, servindo de constante chacota no grupo.
Nesse sentido as “pegações” (com os “boys”, como elas dizem) são
geralmente com pessoas fora da irmandade. Os boys, na maioria das vezes,
faziam parte da rede de sociabilidade da Companhia Drama. Eram amigos
de amigos, visitantes convidados, atores novatos. Raramente, havia uma
relação com pessoas muito externas da rede, salvo para o namorado de
Ingrid, Danilo. A Companhia Drama era um dos espaços em potencial para
estabelecer essas relações, sobretudo, quando apareciam novas pessoas.
Com os boys, expressa-se o desejo mais intensamente, porque os boys em
geral são “ativos”.
Os boys permitem que as irmãs estejam mais alinhadas em um lado
– afinal, a linha divisória entre o “ativo” e o “passivo” é importante para
esses laços de relacionalidade. Essa linha divisória é resultado de uma
REFERÊNCIAS
BUTLER, J. Problemas de Gênero: Feminismo e subversão da identidade. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2017.
DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Kafka: por uma literatura menor. Belo Horizonte:
Autêntica, 2015.
MARICONA LOUCA
Bruno Puccinelli
1 Texto original: “El sexo de las locas, que hemos usado de sueñuelo para este delirio, sería entonces
la sexualidad loca, la sexualidad que es una fuga de la normalidad, que la desafía y la subvierte”.
2 A pesquisa, intitulada O Shopping Frei Caneca e a rua gay de São Paulo: uma abordagem etno-
gráfica, foi realizada entre 2008 e 2009 como iniciação científica na Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP), sob orientação do prof.
dr. Heitor Frúgoli Jr. e com bolsa PIBIC/CNPq.
3 Ao longo do texto as palavras utilizadas por interlocutores serão grafadas entre aspas.
5 Segundo Arruda (2017), o termo “fechação”, de ampla utilização entre jovens gays, se refere à
acentuação da expressividade corporal de forma intencional, com gestos, palavras e andares,
para que suas homossexualidades sejam percebidas. Segundo o autor, a “fechação” possui um
caráter de ação e “preserva essa dimensão de um ser que afeta, provocativamente, o outro, atra-
vés de sua expressividade corporal”. (ARRUDA, 2017, p. 23)
6 As placas foram afixadas em 2011, sem qualquer tipo de resistência dos frequentadores, e di-
ziam o seguinte: “A prática de ato obsceno em lugar público, ou aberto, ou exposto ao público, é
passível de pena de detenção de três meses a um ano” (BRASIL, 1940, p. 23911), mencionando o
artigo nº 233 do Código Penal que data de 1940 e ainda está em vigor. (BRASIL, 1940)
7 Rubin (2017, p. 86) propõe um modelo analítico sobre o sexo formado por dois círculos con-
cêntricos divididos em 12 fatias no qual o círculo central, intitulado “o círculo mágico”, possui
as qualificações de uma sexualidade socialmente “boa, normal, natural, sagrada”, enquanto o
círculo externo, intitulado “os limites externos”, apresentaria os elementos formadores de uma
sexualidade “má, anormal, antinatural, maldita”. As fatias de cada círculo possuem, cada uma,
seu par de oposição entre o círculo central e o externo, permitindo pensar tanto numa lógica
de centro x periferia, donde se imagina a má sexualidade como fora do ideal normativo, mas
também como algo que existe como limite opositor na reafirmação do discurso do bom sexo, ou
seja, numa lógica complementar.
(1997, p. 32, tradução nossa): “A censura mantém viva a ilusão de que ‘tem
alguma coisa’ na perversão e essa ‘alguma coisa’ é um horror”.8
A maricona louca, portanto, traduz possibilidades de fuga em cruza-
mentos depreciativos que são ficcionais e concretos ao mesmo tempo.
Ficcionais por manejarem imaginários repulsivos criadores de sujeitos a
serem extirpados e, portanto, que não representam a quem fala, mas, por
estarem em um mesmo campo semântico (das homossexualidades mas-
culinas) têm o poder de macular a imagem positiva que é cuidadosamente
construída por outros, neste caso, especialmente outros homossexuais.
E concretas, pois são acopladas em sujeitos reais e têm consequências.
A “bicha velha”, “pintosa”, “louca”, congregando uma ideia de maricona
louca, é produzida como autômato que, ao se movimentar, precisa ser con-
vertida em bode expiatório.
REFERÊNCIAS
ARRUDA, M. S. O corpo e o gênero fechativo pelas ruas de Salvador. 2017. Tese
(Doutorado em Ciências Sociais) – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas,
Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2017.
8 Texto original: “La censura mantiene viva la ilusión de que con la perversión ‘pasa algo’, y que
ese ‘algo’ es un horror”.
RUBIN, G. Pensando o sexo. In: RUBIN, G. Políticas do Sexo. São Paulo: UBU Ed.,
2017. p. 62-128.
MATI
Gloria Wekker
Cecilia Lisa Eliceche
Leandro Nerefuh
1 O livro da professora Gloria Wekker foi publicado em inglês, com partes em holandês e partes
em sranan tongo, língua crioula do Suriname. No inglês, muitas palavras não têm gênero mas-
culino ou feminino. Na tradução para o português usamos o masculino e o feminino quando e
conforme aparecem no livro original. Com a permissão da professora Wekker, nós, tradutores,
decidimos usar o “e” para palavras em que o masculino é naturalizado como “neutro universal”
no português. Por exemplo, “human beings” seria traduzido como “seres humanos” no portu-
INTRODUÇÃO
“Sortu syen, Meisje, un kon mit´ a wroko dya. A no un´ mek´ en”.
Mis’Juliette
[“O que você quer dizer com vergonha? Garota, nós encontramos o tra-
balho mati quando chegamos aqui. Não fomos nós que o inventamos”].2
O trabalho mati é uma instituição antiga, mencionada pela primeira
vez na literatura colonial holandesa, em 1912. Nela, as mulheres mantêm
relações sexuais com homens e com mulheres, simultânea ou consecutiva-
mente. A prevalência da instituição na população afro-surinamesa aponta
para um repertório cultural de base mais ampla. O trabalho mati é expres-
sivo do repertório de subjetividades sexuais oriundo da África Ocidental,
com o qual pessoas escravizadas engajaram-se sob circunstâncias demo-
gráficas e político-coloniais específicas na ex-colônia holandesa. Dentre as
continuidades africanas, há uma noção de pessoa (personhood) em que o
sexual e o espiritual estão entrelaçados.
guês normativo. Nós traduzimos para “seres humanes”. Para nós, tradutores, o “e” inclui os gê-
neros feminino e masculino, assim como todas as possibilidades entre e além deles. Atendendo
ao pedido dos editores desta publicação, adicionamos o masculino e feminino a/o, além de “e”;
resultando em e/a/o na tradução final. Na América luso-hispano falante, o uso da chamada “lin-
guagem inclusiva” (em suas variantes: “e”, “x”, “i”, “@”...) é cada vez mais frequente e até mesmo
adotado por lei em alguns países, como Argentina (Lei n° 27635). Algumas universidades já acei-
tam teses de doutorado escritas numa linguagem não binária, assim como há editoras que fa-
zem uso desse conceito em suas publicações. Nós, tradutores, acreditamos que as línguas mu-
dam com as sociedades que as usam. Agradecemos e nos alinhamos com as comunidades LGBT
que lutam por inclusão na sociedade civil através da mudança das línguas, postos de trabalho,
cotas nas instituições acadêmicas e culturais. Acreditamos que este glossário de desidentida-
des é parte da mesma luta pela liberdade de viver plenamente. Esperamos que este texto seja
lido não só por mulheres e homens, mas também por pessoas que não se identifiquem com o
binarismo de gênero. Usando o e/a/o queremos reconhecer, honrar e agradecer a todes(as)(os)
(es)(as)(os) leitores(as) por investir nessas palavras.
2 Grifo nosso.
3 É a escolha des tradutores escrever Winti com W maiúscula, Candomblé com C maiúscula, Vo-
dou com V maiúscula e Santeria com S maiúscula. Mesmo que esses termos sejam popularmen-
te identificados como religiões, consideramos que identificam complexos civilizatórios, ciên-
cias milenares, formas ancestrais de habitar o mundo. Em reconhecimento à grandeza dessas
ciências altamente tecnológicas e, em agradecimento ao labor que elas cumprem no balanço da
ordem telúrica e cósmica, escrevemos com maiúscula. Ayibobo!
Mi ik, mi ikke Eu
MATI WROKO
4 No marco da presente publicação em português, poderia se dizer que a categoria mati refere-se
mais a uma prática (trabalho) de desidentificação sexual do que a uma identidade estável.
com mulheres que amam mulheres de várias partes do Caribe, St. Kitts,
Dominica, St. Lucia e Jamaica. Dados históricos afro-norte-americanos
sobre o fenômeno das mulheres que amam mulheres podem ser extraídos
do blues e da poesia e, hoje em dia, cada vez mais, de livros de ficção e tra-
balhos acadêmicos. Assim, pode-se dizer que o termo mati, e muitos outros
semelhantes, possuem reverberações amplas na diáspora africana em todo
o continente americano, de sul a norte.
REFERÊNCIAS
ALEXANDER, M. J.; MOHANTY, C. T. (ed.). Feminist Genealogies, Colonial
Legacies, Democratic Futures. New York: Routledge, 1997.
RUBIN, L. Worlds of Pain: life in the working-class family. New York: Basic, 1976.
MAVAMBIXA
1 Adotamos o substantivo “pessoa” como termo neutro para nos referir a um grupo, deixando
incluída a menção a toda e qualquer expressão de gênero, sem a distinção binária masculino/
feminino. Por isso adotamos a forma feminina para nos referir a nossas “interlocutoras”.
2 Todas as nossas interlocutoras são pessoas negras de camadas populares. Três são estudantes
universitárias, uma trabalha como vendedora e a outra também como artista independente.
Suas idades variam entre 20 e 28 anos. Os seus nomes são fictícios neste texto.
comumente usada por homens gays negros. Esse verbete não pode ser
entendido fora do quadro léxico-social do pajubá, uma vez que se con-
forma a partir de um termo muito específico desse conjunto linguístico.
Mantendo uma profunda relação com vocábulos oriundos das religiões
afro-brasileiras e sendo constituído inicialmente como elemento caracte-
rístico da sociabilidade entre travestis e mulheres trans, o pajubá/bajubá
pode ser compreendido como um conjunto linguístico de pessoas LGBT
no Brasil. (LIMA, 2016)
Mavambixa forma-se a partir da combinação de dois termos: mavambo
e bixa. O primeiro, mavambo, no Candomblé Congo-Angola, designa a
divindade que rege os caminhos, o mensageiro responsável pela comuni-
cação, comumente associado a Èṣù no Candomblé Ketu. (MOTTA, 2013)
Na sua reapropriação pelo pajubá/bajubá, significa “marginal, ladrão,
meliante”. Existe, ainda, uma relação do mavambo com outro termo:
cafuçu,3 mais uma categoria que reforça e ganha sentido mediante as asso-
ciações entre masculinidade e periculosidade (ver também os verbetes nesta
coletânea). O segundo, bixa, faz uma torção da palavra “bicha” por meio do
seu sufixo, grafando-o de forma distinta, ao trocar o “ch” pelo “x” para pro-
duzir uma rasura e um deslocamento ao mesmo tempo estilístico e iden-
titário. Nesse sentido, a troca das letras reflete ainda uma marcação social
que muito comumente se observa no uso de expressões como “bixa preta”,
“bixa estranha”. O “x” é utilizado também como alternativa à normativi-
dade linguística, além de funcionar como um marcador de diferenciação
social, geográfico e racial das pessoas LGBT das periferias. Mavambo,
por sua vez, se estabelece como significante atrelado a uma estética peri-
férica hipermasculinizada, representação dos entrelaçamentos e das ten-
sões entre prazer e perigo.
Há ao menos duas aplicações bem definidas para o termo mavambixa.
Seu uso denota uma ambiguidade semântica. De um lado, há quem posi-
cione mavambixa como um movimento de reprodução da masculinidade
hegemônica e, de outro, quem a interprete como uma reabordagem femi-
nina da masculinidade periférica. Em conversa com Breno, que se autoa-
firma como mavambixa, ao interpelá-lo com interesse em entender melhor
essa categoria, a resposta dada sobre o significado do termo foi muito direta:
“um cara que não é másculo demais, p[a]ra não parecer tão hétero, mas
3 Enquanto mavambo nomeia o marginal, cafuçu descreve alguém desqualificado, sem forma-
ção, grosseiro, mas também aquela pessoa que “se parece ou se veste como bandido”.
4 Tranças longas geralmente obtidas com o uso de extensões capilares, como as chamadas fibras
ou box braids.
5 “Enganar a boneca” significa ser engambelada. Expressão comum entre a população LGBT.
O termo “boneca” historicamente vem sendo utilizado como uma forma de se referir a mulhe-
res trans e travestis.
6 Ainda que o uso corrente grafe a expressão com “x”, esta interlocutora a trouxe com “ch”, tra-
tando-se mais de uma questão linguística pontual. Como será possível acompanhar, o sentido
estará consoante aos argumentos do texto.
7 Termo êmico também utilizado por algumas pessoas para fazer referência a bichas jovens, afe-
minadas e/ou pobres. Já foi usado como sinônimo de “pão-com-ovo”, embora haja divergên-
cias sobre se as expressões possuem equivalência. Se outrora teve uma conotação pejorativa,
hoje passou por uma ressignificação, sendo utilizada como identificação por muitas pessoas da
comunidade LGBT, sobretudo as mais jovens, como um marcador não da sexualidade, mas de
uma expressão de gênero feminina (a afeminação).
8 Em acordo com Colling, Arruda e Nonato (2019), empregamos o termo “performance” para
assinalar a ideia de que há uma agentividade, intencionalidade, na produção da identidade
mavambixa. Compreendemos esta como uma performance de gênero na medida em que as
relações entre feminilidade e masculinidade suscitadas por essa identificação inserem-se no
âmbito da expressão do gênero.
9 Preconceito em relação a pessoas bissexuais que se manifesta geralmente em discursos que as
colocam como promíscuas, indecisas, ou mesmo tendem a apagar o desejo por mais de um gê-
nero pelo insistente reforço à dicotomia hétero-homossexual.
ele também assinala a tendência a alguém definir sua posição sexual pela
aparência: “o que mais ocorria nos meus tempos de ouro era da maioria achar
que eu era somente passiva por eu usar mais roupas ditas femininas, chama-
tivas e ser mais soltinha nas festas sem medo de dançar nas rodinhas. Além
da estética, o comportamento também é julgado”.
Alguns discursos deixam implícito que, na ambivalência, o dado imagé-
tico que predomina é o do mavambo. Como ele evoca toda uma aparência
máscula, heterossexual, torna-se comum pressupor uma predominância
dessa sensibilidade sobre a da bixa. Marcos (16/6/2021) diz: “não reco-
nheço essa categoria [mavambixa], nunca tinha ouvido falar. Mas acho que
usaria pra designar um gay/viado heteronormativo, sem analogia direta
com posição sexual”. O ponto de vista sobre uma categoria da qual des-
conhece as nuances, reverbera como a antítese de uma posição menos
normalizada:10 uma expressão que reforça os estereótipos de gênero e per-
formance sexual e, em alguns casos, entendida como uma adição de com-
ponentes, entre os quais se sobressaem os aspectos tidos como negativos
– mavambo + heterossexualidade compulsória. Estes seriam expressivos
o suficiente para ignorar a sexualidade dissidente como uma clivagem que
opere alguma diferença.11
Para outras pessoas, no entanto, mavambixa representa também uma
ação política “que é muito mais sobre ressignificar a estética e reafirmar sobre
a comunidade e cultura de vestimenta do local de que vieram e onde vivem”.
(Vagner, 16/6/2021) O uso do radical “mavambo” amalgamado com “bixa”
na criação dessa categoria de identificação exprime um deslocamento/
desapropriação do primeiro termo e, ipso facto, da heterossexualidade e
virilidade como domínio da estética periférica, dos signos que comumente
correm para a associação entre mavambo, heterossexualidade, virilidade
14 O conceito de “dobra” está sendo empregado nos marcos do pensamento deleuziano. No senti-
do de as pessoas atuarem sobre eles e ressignificá-los, produzindo subjetividades.
15 Esses são insights oferecidos pela discussão que apresentamos aqui, mas que, reconhecemos,
precisam ser melhor aprofundados. Infelizmente, o espaço não nos permite um esquadrinha-
mento dessas questões, mas gostaríamos de lançar mão desta observação para amadurecê-la e
desenvolvê-la de forma mais pormenorizada em pesquisas futuras.
REFERÊNCIAS
BUTLER, J. Problemas de gênero: feminismo e subversão de identidade. 2. ed. Rio
de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008.
ORTNER, S. Poder e projeto: reflexões sobre agência. In: GROSSI, M. P.; ECKERT,
C.; FRY, P. H. (org.). Conferências e diálogos: saberes e práticas antropológicas.
Blumenau: Nova Letra, 2007a. p. 45-80.
ORTNER, S. Uma atualização da teoria da prática. In: GROSSI, M. P.; ECKERT, C.;
FRY, P. H. (org.). Conferências e diálogos: saberes e práticas antropológicas.
Blumenau: Nova Letra, 2007b. p. 19-44.
MAVAMBO
Lucas Moreira
uso assíduo nos ambientes da socialidade gay neste trecho da Orla Atlântica
soteropolitana, aparece em frases como “adoro esses mavambos assim, com
cara de pivete violento!” ou “olha a ginga perigosa desse mavambo!”, frases
proferidas durante conversas informais que tive junto aos admiradores cos-
tumazes destes rapazes.
No léxico do “pajubá”, forma linguística corrente no universo das tra-
vestis brasileiras (BENEDETTI, 2005; PELÚCIO, 2009), – também conhe-
cida como “bajupá” ou ainda, como “bate-bate” em algumas regiões do
país3 – há reservado um lugar ao termo mavambo, sinônimo de “marginal”,
“bofe com pinta de ladrão” e “traficante”, junto a outros sentidos classifica-
tórios similares. Para além dessa relação lexical de origem no quimbundu,
Mavambo, Exu-Mavambo e Jiramavambo correspondem a entidades do
Candomblé de origem angola, no qual representam “o barro”, “o caminho”,
sendo sua imagem “um bordão terminado em duas faces opostas e juntas
que representam o bem e o mal respectivamente”. (CASTRO, 2001, p. 261)
A categoria mavambo transita entre diversos contextos sociais, gêneros
narrativos e suportes midiáticos, como na pornografia e na literatura eró-
tica LGBT, e, embora exalte formas e valores da macheza tradicional, encon-
tra-se, simultaneamente, numa interface com identidades performadas,
por vezes, nos limites das normas sexuais e de gênero – residiria nesse fato
ao mesmo tempo sua potência e sua contradição. Desse modo, o termo
mavambo ocupa um espaço no imaginário popular, sobretudo quando o
termo serve para classificar sujeitos a partir de sua idade, estética, perfor-
mance de gênero, raça e classe social.
Na sua acepção mais contemporânea, mavambo tem assumido um
caráter de identidade autointitulada, construída em torno de símbolos das
classes sociais populares e da negritude, copiosamente difundidos nas redes
sociais. A asserção é que a identificação do jovem com o termo apresenta a
construção de uma identidade baseada na transformação e apropriação de
valores estéticos e corporais tidos como abjetos, estigmatizados ou amea-
çadores, que são agenciados pelos sujeitos como capital corporal na pro-
dução de distinção social. (BOURDIEU, 2011)
A expressão mavambo refere-se à performance estética do rapaz jovem,
geralmente negro, identificado como portador de um capital de formas cor-
porais e posturas associadas à juventude periférica. Nesse sentido a classe
3 Entre os itens lexicais que conformam o pajubá encontram-se combinados dentro do português
termos principalmente do iorubá, embora relações semânticas sejam tecidas com outras lín-
guas da afro-diáspora.
4 Com o objetivo de proteger a identidade dos interlocutores, que gentilmente cederam entrevistas
para a construção deste verbete, substitui seus nomes, quando aparecem, por nomes fictícios.
5 Ver em: https://www.casadoscontos.com.br/tema/mavambo.
6 Nessa literatura homoerótica, assim como nos filmes pornográficos, o termo cafuçu geralmen-
te é usado como sinônimo de mavambo, embora eles se diferenciem nestas mesmas represen-
tações. Sendo o aspecto geracional a principal entre as diferenças; o cafuçu tende a ser repre-
sentado como um homem mais maduro, e o mavambo como um jovem rapaz.
7 Ver em: https://www.xvideos.com/amateur-channels/mavamboys. Conteúdo não permitido
para menores de 18 anos.
11 Adjetivo geralmente empregado pelos interlocutores para definir um sujeito cuja autoestima
elevada e estilo são ostentados de maneira imperativa.
12 O brau, na Salvador dos anos 1970 e 1980, foi estilo, moda e comportamento incorporado pela ju-
ventude periférica que assimilava positivamente as dimensões estéticas do funk afro-americano
embora fosse estigmatizada pela classe média, que transformara o termo em conceito pejorativo.
13 Múltiplas etnografias descreveram práticas corporais e estéticas ligadas à juventude dos bairros
populares soteropolitanos e, por sua vez, a relação entre estigmatização sociorracial e o tema do
prestígio e autoestima no universo masculino. Destacam-se formas de organização, estilos esté-
ticos e musicais que, como sugere Michel Agier (1991), atuavam na transformação do racismo em
sujeito político da etnicidade. Jeferson Bacelar (1989), no mesmo sentido, ressalta na expressão
estética dos blocos afros no carnaval de Salvador a ascensão política e cultural da vaidade étnica
do jovem negro. Simultaneamente, essas práticas estéticas e corporais acionavam estereótipos
sexuais e raciais. No entanto, como sugere Mara Vigoya (2018), estereótipos sociorraciais, comuns
em manifestações culturais na América Latina, agem nos limites entre a transformação da objeti-
ficação em positividade e a cumplicidade com o modelo hegemônico de masculinidade.
REFERÊNCIAS
AGIER, M. Introdução. Caderno CRH, Salvador, p. 5-16, 1991. Suplemento.
Disponível em: https://periodicos.ufba.br/index.php/crh/article/
view/18840/12210. Acesso em: 2 jun. 2023.
MARTINS, A. “Vai sentar pro traficante filho da puta”. [S. l.]: Casa dos Contos,
2018. Conto erótico, proibido para menores de 18 anos. Disponível em: https://
www.casadoscontos.com.br/texto/20170836. Acesso em: 2 jun. 2023.
MUJTAMAʿ AL-MĪM/ʿAYN
Antoine Badaoui
ETIMOLOGIA
1 “Substantivo verbal” é a tradução do termo árabe maṣdar, melhor entendido como infinitivo,
embora maṣdar não seja verbo.
3 Texto original: “represses same-sex desires and practices that refuse to be assimilated into its
sexual epistemology”.
4 Texto original: “pure homosexual identity”.
REFERÊNCIAS
ABUKHALIL, A. A note on the study of homosexuality in the Arab/Islamic
civilization. The Arab Studies Journal, [s. l.], v. 1, n. 2, p. 32-48, 1993.
IBN KHATER. The story of Lut (Lot). [S. l.: s. n.], [2023]. Disponível em: http://
sunnahonline.com/library/stories-of-the-prophets/297-story-of-prophet-lut.
Acesso em: 1 ago. 2018.
PÃO-COM-OVO
Murillo Nonato
1 A cisheteronorma é compreendida aqui através da definição proposta por Vergueiro (2015), que
a define como um conjunto de normas que operam com o intuito de coagir os corpos a se enqua-
drarem dentro dos paradigmas da matriz cultural do gênero analisada por Butler (2012). Nes-
se sentido, se espera, por exemplo, que o sujeito que nasce com um pênis se identifique como
homem, seja viril e heterossexual respeitando a linearidade entre sexo-gênero-desejo-práticas
sexuais que está contida na referida matriz.
2 A ideia de performance de gênero está aqui sendo utilizada a partir de Butler (2012). A autora
argumenta que gênero e sexualidade não são categorias fixas e naturais, sendo constituídas no
tempo-espaço, ou seja, são performances de gênero. Essas performances materializam em nos-
sos corpos as nossas ideias de gênero e sexualidade.
3 PAFYC é a junção da inicial do nome dos membros que compõem o grupo.
como bermudões, blusas largas, bermuda surfista, boné e óculos de sol espe-
lhado. A partir da presença ou ausência desses elementos se desenvolve a
performance de gênero desses sujeitos, possibilitando a constituição de
várias corporalidades e formas de ser uma bicha pão-com-ovo.
A partir dessa constituição de gênero conflituosa com as expectativas das
normas para um “corpo de homem”, as bichas pão-com-ovo nos provocam a
realizar uma reflexão acerca da constituição de identidades binárias e crista-
lizadas como a do homem/mulher ou dos padrões estereotipados como o do
masculino/feminino já que passeiam entre ambas as noções sem repousar/
fixar-se em nenhuma delas, aproximando-se por vezes mais de uma do
que da outra e vice-versa. A constituição dessa aparência e desse “eu” per-
mite-nos observar um certo movimento, indo na contramão da fantasia da
estabilidade do gênero pressuposta nas concepções binárias e normativas.
Por caminharem na contramão da expectativa da masculinidade hege-
mônica, apresentando ao outro uma forma subalterna de ser homem, as
bichas pão-com-ovo são rejeitadas no mercado sexual-afetivo. Em espaços
de sociabilidade e pegação, seus corpos são, no geral, negados como objeto
de desejo ou são levados a mimetizar uma masculinidade viril para con-
quistar parceiros sexuais. Há ainda, sobre as bichas pão-com-ovo pretas,
a expectativa de que elas reproduzam a estereotipada performance do
“negão”, uma espécie de constituição de masculinidade negra, como aponta
Caetano e demais autores (2020), valorizados nesses espaços de pegação
por conta da sua virilidade, exibição dos músculos, força e do imaginário
da existência de uma performance sexual extraordinária e de um pênis
supostamente avantajado.
A bicha pão-com-ovo preta é compreendia, então, como demasiada-
mente feminina para ser “negão” ou mesmo um gay respeitável. Vale res-
saltar que, dentro dessa conjuntura, as bichas pão-com-ovo e o “negão” estão
dentro de um contexto de precarização das possibilidades de consumo, de
relações de trabalho, sendo a valorização do “negão” e a rejeição da bicha
constituída, principalmente, por meio das aproximações e distanciamento
das normas do gênero/sexualidade.
A bicha pão-com-ovo é vista frequentemente como escandalosa, indis-
creta e seu comportamento em público é classificado pelos outros como
indecente ou indecoroso. Ela é descrita, como sinalizado acima, também
em oposição à categoria do gay, sujeito aqui compreendido como homos-
sexual (deseja sujeitos do mesmo gênero), sendo que esse sujeito não entra
em conflito com as normas prescritas para a masculinidade. O gay, por
meio de um comportamento discreto e respeitável, busca gozar de um
REFERÊNCIAS
BUTLER, J. Problemas de Gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2012.
PÉ-DE-MORRO
Tiago Duque
moradores(as) nos mais variados espaços da cidade. Não é à toa que existe a
interpretação de que em Corumbá é “todo mundo junto e misturado”, con-
forme foi-me dito em diferentes situações. Isso, contudo, não significa que
essas interações não se deem a partir de estigmas em torno das diferenças
e de complexos processos de hierarquização. (COSTA, 2013)
A “mistura” se refere às diferenças de classe, raça e etnia, mas, princi-
palmente, de gênero e sexualidade. Sob o olhar das bichas, por exemplo,
o modo como elas se envolvem em diferentes eventos na cidade e são
“prestigiadas” é um indicador não apenas dessa “mistura”, mas também
do quanto a cidade seria “sem preconceito”. A suposta identidade não pre-
conceituosa do lugar, quando o assunto é diversidade sexual, é uma das
características também apontadas em campo por diferentes interlocu-
toras(es). (DUQUE, 2019) O uso da categoria pé-de-morro, portanto, asso-
ciada às bichas, ajuda-me a pensar sobre esse modo de tornar-se visível na
região, especialmente quando o foco são os eventos que elas, muitas apon-
tadas como pé-de-morro, estão envolvidas.
Esses eventos podem ser classificados em dois grupos. Aqueles em que a
visibilidade acontece em termos mais identitários, no que se refere à diver-
sidade sexual, como os concursos de “Miss Gay Corumbá”, “Musa Gay do
Carnaval”, “Parada da Cidadania LGBT” e o “Amistoso da Diversidade” –
partida de futebol que reúne bichas de Corumbá contra as de Ladário. Mas,
também, aqueles eventos em que a presença das bichas é igualmente mar-
cante no seu planejamento, na sua organização e na sua execução, como o
concurso de quadrilhas juninas, as apresentações e concurso de fanfarras
escolares, o carnaval e a “Louvação de Iemanjá” – festa religiosa às margens
do Rio Paraguai. Em qualquer um desses eventos, pode-se perceber, con-
forme dito por uma das bichas da pesquisa, que “em Corumbá os eventos
são feitos por gays, mas não para gays”, isto é, o público em geral comparece
e “prestigia” as bichas, independentemente do tipo do evento. Nas palavras
de outra interlocutora: “todo mundo vai aplaudir as bichas”.
O reconhecimento das bichas na cidade pelo “prestígio” que recebem
nos eventos não se diferencia em termos identitários por elas serem gays
ou travestis/mulheres transexuais. Isso não significa que o tratamento na
cidade seja sempre o mesmo para gays e trans, mas, diante do regime aqui
caracterizado, a análise para a sua compreensão não se dá via um “cistema”.
(JESUS, 2016) Isto é, o reconhecimento da visibilidade das bichas não se
explica pela existência de uma produção de corpos tidos como “naturais”
(“cis”) e outros como “não naturais” (trans). A “cisgeneridade”, enquanto
uma categoria analítica usada “para questionar os privilégios dos corpos
REFERÊNCIAS
COSTA, G. V. L. da. O muro invisível: A nacionalidade como discurso
reificado na fronteira Brasil-Bolívia. Tempo Social, São Paulo, v. 25,
n. 2, p. 141-56, 2013. Disponível em: https://www.scielo.br/j/ts/a/
LTWhzRQFrxjRtJ9HMrdyRdh/?format=pdf&lang=pt . Acesso em: 1 jul. 2022.
DEMÉTRIO, F. Pele trans, máscaras cis: eu tive que “cispassar por” para chegar até
aqui. Prefácio. In: DUQUE, T. Gêneros incríveis: um estudo sócio-antropológico
sobre o (não) passar por homem e/ou mulher. Salvador: Devires, 2019. p. 9-13.
POLIAMORISTA
1 Por ser tratada como categoria nativa opto sempre por manter essa estrutura, privilegiando o
emprego mais corrente entre os meus interlocutores de pesquisa em detrimento da norma culta
da língua.
REFERÊNCIAS
BARBOSA, M. Movimentos de resistência à monogamia compulsória. A luta
por direitos sexuais e afetivos no século XXI. 2011. Dissertação (Mestrado em
Desenvolvimento e Gestão social) – Escola de Administração. Universidade
Federal da Bahia, Salvador. 2011.
PUTO
1 Em Barreto (2017a), explico que analisei as práticas sexuais coletivas masculinas a partir daqui-
lo que eu chamei de “princípios”, ou seja, dos pontos nodais com os quais meus interlocutores
organizavam esses eventos, tanto em sua ética local quanto em roteiros sexuais corresponden-
tes. São três: o “princípio da masculinidade” (no qual se demonstra toda a importância de va-
lorização de uma determinada performance de gênero, a de uma “masculinidade exagerada”);
o “princípio da discrição” (em que se explicitam práticas e formas de se relacionar que valori-
zam o segredo, o anonimato, a escuridão e a desidentificação); e o “princípio da putaria” que
destaco no presente verbete. Estes princípios são os responsáveis pela produção subjetiva valo-
rizada nesses espaços: a do “macho”, “discreto” e “puto”. Sendo este último, também perceptí-
vel nos outros cenários etnográficos estudados.
escondem em algum canto do dark para ter uma interação “fechada” a dois,
ou quando um grupo pequeno decide que vai interagir sexualmente apenas
entre eles, não desejando a observação ou participação alheia. “Ficar de
romance” é o comportamento mais indesejado em uma “putaria” porque
fere a ética local.
Mas ser puto não é só estar à deriva por esses territórios se mostrando
disponível para as interações, é também preciso ter e mostrar “disposição”.
A “putaria”, além de pautar e qualificar as práticas, os participantes e
o ambiente, é uma potência oriunda das vontades e impulsos dos partici-
pantes dos encontros, como uma “disposição”. O elemento da “disposição”
é sempre acionado nas falas de meus interlocutores como o elemento vari-
ável e individual, ou seja, da competência de cada um e que faz variar a
intensidade da potência da “putaria”. Ainda que não seja encarado numa
chave essencialista (poderíamos parafrasear a famosa frase beauvoiriana:
“não se nasce puto, torna-se puto”).
“Disposição”, no contexto da “putaria”, é uma escala variável do tamanho
da “vontade de fazer sexo” ou da quantidade de desejo para as interações.
Ao mesmo tempo, a “disposição” também se aproxima de uma variação
qualitativa e mais performática. Ter “disposição” não é só sentir muita von-
tade de fazer sexo, mas também saber bem como fazê-lo nesse contexto,
destacar-se através dela. É algo que se percebe na prática, na performance.
É aquele cara que não fica escolhendo muito os parceiros, que não é “exi-
gente”, que não fica “de frescura” ou “de nojinho”.
O corpo e como ele age/reage à “putaria” é, portanto, fundamental para
a definição do status dos agentes nesse contexto de interação sexual cole-
tiva e, consequentemente, como veículo privilegiado para as estratégias de
distinção, sendo, simultaneamente, por elas condicionado.
E é aqui que se encontra o potencial de “disrupção” do “princípio da
putaria”, na medida em que os participantes se “jogam” nas experiências
intensivas das interações, há a possibilidade de torções de normas de gênero,
de suspensão momentânea ou borramento das hierarquias normativas dos
corpos e o aparecimento de “fissuras” nas relações. (DÍAZ-BENÍTEZ, 2015)
A chave para entender o desejo e o prazer na prática da “putaria”, dessa
forma, se encontra na pergunta de inspiração spinozista e também deleu-
ziana: “o que pode o corpo?” Essa pergunta não é minha no sentido de que
não sou eu que a está trazendo de fora. Ela é colocada a todo momento
por esses homens em prática a cada ida nesses eventos, cada interação é
uma oportunidade para se testar: “quais os meus limites? o que eu posso
fazer? o que o outro pode fazer? até quanto eu ou ele aguenta?”. Seja numa
2 Falta-me espaço neste verbete para descrever em detalhes as técnicas que conformam uma cer-
ta “ciência do concreto” de meus interlocutores em suas práticas sexuais e na maneira como
criam uma bricolage entre conhecimentos vindos da medicina e outras ciências e saberes in-
corporados vindos de suas percepções sensoriais. Essa “ciência do concreto” está na base de
suas concepções de “doença” – enquanto um processo que se constrói numa prática, relacional
e contextualmente – e ser “saudável”, aqui, é cuidar-se e proteger-se não dentro de uma lógica
ou discurso estatal necessariamente, mas sim a partir de uma hierarquia de riscos própria ten-
sionada constantemente por uma valorização do prazer. Para mais detalhes, conferir Barreto
(2017b, 2019b, 2020).
REFERÊNCIAS
BARRETO, V. H. de S. Festas de orgia para homens: territórios de intensidade e
socialidade masculina. Salvador: Ed. Devires, 2017a.
SAFICRENTE
A Igreja Vale das Bênçãos é um grupo virtual formado por mulheres lésbicas,
bissexuais e pansexuais, tendo em torno de 60 membros das mais variadas
regiões do Brasil e também do exterior. O início do grupo deu-se durante a
pandemia do novo coronavírus, em meados de maio de 2020, e teve como
intuito central promover cultos virtuais (webcultos) mensais, com destaque
para as Santa-Ceias. Desse modo, a congregação Igreja Vale das Bênçãos
busca ser um espaço de acolhimento de vivências sapatonas cristãs. Por isso,
o que é tratado no cotidiano do grupo relaciona-se com questões impor-
tantes na vivência de mulheres LBT, principalmente, em práticas como a
“saída do armário” e as relações com os familiares e a igreja. Logo, o grupo
surgiu como uma alternativa para que essas mulheres vivessem a religio-
sidade cristã, em sua maioria evangélica e católica, de forma considerada
“inclusiva” ou “afirmativa”.
Fátima Weiss de Jesus (2012) coloca em sua tese que a internet tem sido
a forma em que muitos grupos de cristãos LGBT estão encontrando espaços
de luta e acolhimento. A (des)identidade discutida aqui surge a partir do
meu trabalho de campo para uma pesquisa de mestrado. De forma resu-
mida, minhas explorações iniciaram-se em maio de 2021. Por meio do con-
tato diário nas conversas em redes sociais, venho familiarizando-me com
o campo. Desenvolvo uma netnografia, ou seja, um trabalho de campo que
3 Metáfora utilizada em um dos cultos do grupo em que a passagem bíblica sobre o diálogo entre
a mulher cananéia e Jesus é reapropriada para se dizer que há uma mesa no Reino do Céus para
as mulheres sáficas. (BÍBLIA, N.T., Mateus) – Ver nas referências: Almeida (1864).
com essa nova identidade. Para ela, o importante seria pensar sobre como
expandir os usos dessa palavra, como ampliar sua circulação para além do
grupo. Com esse intuito, e como aliada dessa congregação, escrevo este ver-
bete como um ato acadêmico e político, na esperança de que o neologismo
saficrente possa circular para muito além da congregação Igreja Vale das
Bênçãos. Assim, penso nos sentidos de troca e aproximação envolvidos em
trabalhos antropológicos, já que a partilha e a coletividade são razões da
própria existência do grupo de saficrentes.
REFERÊNCIAS
ALMEIDA, João Ferreira de. A Bíblia Sagrada, contendo o Velho e o Novo
Testamento. [Barueri]: Sociedade Bíblica do Brasil, 1864.
RUBIN, G. Pensando o sexo. In: RUBIN, G. Políticas do sexo. São Paulo: Ubu Ed.,
2017. p. 62-128. Publicado originalmente na obra ‘Thinking sex: notes for a
radical theory of the politics of sexuality’.
TAVARES, L. [O que seria saficrente?]. WhatsApp: Igreja Vale das Bênçãos. 12 maio
2021. 12:06. 49 mensagens WhatsApp.
SWINGER
Maria Silvério
O swing, também conhecido como troca de casais, pode ser definido como
uma prática em que casais heterossexuais mantêm relações sexuais com
outros casais na companhia da pessoa amada. (SILVÉRIO, 2014a, 2014b,
2014c, 2018) Uma das premissas é que o casal esteja junto durante o envol-
vimento sexual. Com o tempo, porém, esse aspecto muitas vezes é deixado
de lado, mas continua sendo importante que a pessoa amada participe da
escolha e concorde com quem a outra irá fazer sexo. (VON DER WEID, 2008)
Trata-se de uma prática entre casais heterossexuais, já que as casas
e festas de swing são voltadas para este público. Um casal de lésbicas,
por exemplo, poderia facilmente entrar como duas mulheres solteiras.
Lá dentro, encontrariam com quem se relacionar, pois a incidência da
bissexualidade feminina é alta. Apesar disso, as lésbicas esbarrariam no
fato das outras mulheres estarem com seus parceiros heterossexuais, que
provavelmente fetichizariam o ato sexual e tentariam dele participar.
Já um casal de homens tem o acesso dificultado ou mesmo impedido.
Tentar entrar como dois solteiros não vale a pena, pois o valor cobrado
costuma ser o dobro ou o triplo do preço do casal e o acesso é limitado
em dias e quantidade de homens solteiros. Além disso, a homossexua-
lidade masculina é um tabu no universo swinger e eles, muito provavel-
mente, não conseguiriam se envolver com outros homens. (NOGUEIRA,
2014; SILVÉRIO, 2014c)
De acordo com Nogueira (2014, p. 56): “É um meio que usa caminhos hete-
rodoxos para preservar uma instituição que ele considera sagrada: o casa-
mento monogâmico entre um homem e uma mulher”.
Quem é swinger geralmente considera a prática um estilo de vida, mas
há quem a enxergue como uma filosofia de vida ou uma forma de estar.
Algumas pessoas rejeitam o rótulo por não se considerarem totalmente per-
tencentes à comunidade e outras entendem como swing somente a troca
completa e excluem da categoria quem se envolve apenas em determinados
atos sexuais ou frequenta as casas e orgias somente ocasionalmente, sendo
estas reconhecidas como “pessoas liberais”.
No Brasil, algumas se intitulam “swingueiras”, às vezes grafado “suin-
gueiras”. De acordo com Fernandes (2009), é muito difícil identificar uma
pessoa swinger fora dos ambientes onde se reúnem, pois, exceto pela não
monogamia sexual, ela costuma ser extraordinariamente comum nos
demais aspectos de sua vida.
O swing permite uma variedade de práticas e fetiches sexuais que, entre-
tanto, não são exclusivos a este universo. Durante minha pesquisa de campo
e bibliográfica, observei que a troca completa (que envolve penetração com
alguém do outro casal e representa o que normalmente é chamado de swing)
não acontece com tanta frequência. Muitos casais preferem o voyeurismo
(prazer em assistir outras pessoas se envolverem sexualmente), exibicio-
nismo (prazer em ser observada durante o ato sexual), ménage feminino
(sexo a três envolvendo duas mulheres e um homem) ou troca leve (carí-
cias, beijos ou sexo oral entre os casais, sem ocorrer penetração com alguém
do outro casal).
Muitos casais vão juntos para um quarto, mas não se envolvem entre
si. O fato de estarem no mesmo ambiente já é estimulante para eles. Há
ainda aqueles que afirmam que a libido é consideravelmente despertada
com o simples fato de estarem em uma casa de swing, melhorando a inte-
ração entre o casal. Um aspecto notório é a ausência quase total de homens
que fazem sexo oral ou masturbam as mulheres. Esses atos geralmente são
praticados por outras mulheres. Uma single (termo que designa as pessoas
que frequentam o swing sem ser como casal) narra o seguinte: “os caras
acham que, se te chuparem, vão estar chupando um pênis por tabela. Olha
que caretice! Ouvi isso do marido da minha amiga. Um dia lá eu disse que
ia subir para transar com outros. Aí ele disse isso e que se eu quisesse eles,
tinha que ser só com eles. Foi assim que a transa acabou”. Muitos homens
também resistem ao ménage masculino mesmo quando a parceira deixa
claro que tem essa fantasia.
3 Modelo de relações livres surgido no Rio Grande do Sul em 2001. Para mais informações sobre
cada tipo de não monogamia consensual, ver: Silvério (2018).
REFERÊNCIAS
BARKER, M.; LANGDRIDGE, D. Whatever happened to non-monogamies?
Critical reflections on recent research and theory. Sexualities, New York, v.
13, n. 6, p. 748-772, 2010. Disponível em: https://www.researchgate.net/
publication/48990318_Whatever_happened_to_non-monogamies_Critical_
reflections_on_recent_research_and_theory. Acesso em: 6 out. 2021.
MATSICK, J.; CONLEY, T. D.; ZIEGLER, A. et al. Love and sex: polyamorous
relationships are perceived more favorably than swinging and open relationships.
Psychology and Sexuality, [s. l.], v. 5, n. 4, p. 339-348, 2014. Disponível em:
https://www.tandfonline.com/doi/full/10.1080/19419899.2013.832934.
Acesso em:6 out. 2021.
TOMFEM
Macarena Williamson
Tomfem é uma (des)identidade sexual que será explorada por meio da expe-
riência de Avril, migrante venezuelana, morena,1 lésbica, residente recen-
temente em São Paulo, Brasil. Por meio das narrativas de Avril, pretende-se
indagar como os deslocamentos e circulações transnacionais atravessam as
sexualidades oferecendo, ou não, segundo o contorno geopolítico, possibili-
dades para viver uma sexualidade não normativa em diferentes territórios.
É que tomfem vem sendo esse tipo de mulher masculina, mas não cem
por cento, sabe? Por exemplo, eu gosto de me vestir como homem, mas
não cem por cento vestir como homem. O que eu gosto é que fique bem,
sabe? Eu visto o que eu sei que vai ficar bem, vou na loja, experimento
e o que gosto como fica, eu uso. Daí tomboy como a palavra mesmo diz,
‘boy’ é cem por cento essa menina que já gosta de vestir como menino e
não tem isso de tomfem. Uma tomfem acho que até pode se maquiar,
mas sendo mais masculina, sabe? E minha personalidade tampouco
é dessa pessoa ‘tipo, sou homem’, não. Assim como você me vê, assim
1 Nas palavras de Avril, morena é uma categoria de autoidentificação popular relativa à raça. Vá-
rios relatos de migrantes venezuelanos no Brasil coincidem em que as categorias de negro, par-
do ou branco não são recorrentes na Venezuela. Dessa maneira, Avril se reconhece como mo-
rena, esta categoria racial popular, demonstrando diferenças na gramática racial entre Brasil e
Venezuela que se tornam evidentes a partir da experiência de deslocamento.
sou. Mas eu gosto de vestir mais masculina, não tão feminina, nem
saias. (grifo nosso)2
2 Todos os trechos de entrevista reproduzidos neste verbete têm a mesma fonte. Entrevista reali-
zada em 25 de abril de 2021, com tradução da autora.
3 Para Regina Facchini (2005, p. 181), as categorias das sexualidades não normativas estão rela-
cionadas às múltiplas identidades sexuais que se transformam na globalização e na era das in-
formações “a especificação de categorias como lésbicas, travestis e transexuais podem ser com-
preendidos como escolhas, feitas a partir de um leque de possibilidades – que, com incentivo
da globalização e da grande circulação de informações, passam a trazer referências criadas em
outros contextos culturais. Há um processo de re-significação e um contexto político-cultural
local que permitam a demanda por novas categorias ou estilos e que influenciam a apropriação
de determinada categoria ou estilo e não outra”.
Eu não sou uma mulher que vai gostar de mulheres masculinas. A ves-
timenta, as outras lésbicas já fazem saber que tipo de pessoa é, o que
ela gosta, é uma forma de atração às lésbicas. Então elas já veem se
querem ou não querem, é uma forma de se comunicar com as outras
lésbicas sem a necessidade de ter que dizer essa é passiva, essa é ativa.
Quando indago como ela se deu conta de que era uma tomfem ou quem
havia lhe mostrado esse conceito, Avril acrescenta:
Bom, porque isso foi algo que começou a sair na Venezuela faz três
ou quatro anos e eu meio que me senti identificada. Eu disse ‘não, eu
sou ativa’. Mas, as pessoas já estão se identificando com sua forma de
vestir, então eu dizia: ‘bom, entre tudo isso, me encaixo aqui’. Porque
tomboy, cem por cento, não sou. Quer dizer, eu não chego até lá, não é
que não possa, mas é que eu não me veria falando assim como homem,
não. Tem pessoas que até me perguntam, ou seja, que não sabem que
sou gay e dizem: ‘você é lésbica?’ E tem outras pessoas que sim, se dão
conta, porque é lógico. Algumas pessoas se dão conta rápido e outras
não. (grifo nosso)
...a tomfem pode ser algo de moda, pode ser algo de personalidade.
Por que eu gosto de ser tomfem? Porque eu gosto de vestir bem. Pode
ser algo estético, algo de personalidade, de comodidade, algo que você
quer atrair. Tomfem tem um grau de masculinidade, por exemplo,
eu poderia dizer que, em mim, essa masculinidade pode ser uns 70%
e uns 30% feminino, ou seja, quase nada. (grifo nosso)
4 Como sugerem West e Zimmerman (1987, p. 126, tradução nossa): “Fazer gênero envolve uma
complexa guia social de atividades perceptivas, interacionais e micropolíticas particulares
como expressões ‘naturais’ de masculino e feminino”.
REFERÊNCIAS
FACCHINI, R. Sopa de letrinhas? Movimento homossexual e produção de
identidades coletivas nos anos 90’. Rio de Janeiro: Garamond, 2005.
TABATABAI, A. Protecting the lesbian border: the tension between individual and
communal authenticity. Sex, Gender, and Sexuality. The New Basics. New York:
Oxford University Press, 2013.
TRAVESTI1
Jinx Vilhas
1 Este texto, em versões anteriores, recebeu valiosas sugestões de pessoas que são, ao mesmo
tempo, colegas e amigas. Agradeço aos editores deste livro, os professores Moisés Lino e Silva e
Guillermo Vega Sanabria, por sua leitura atenta e seus preciosos apontamentos, assim como a
Caia Maria Coelho, Inácio dos Santos Saldanha e Raphael Cardoso Brito por sua generosidade,
amizade e companhia.
2 São as categorias que surgem a partir dos interlocutores das antropólogas e antropólogos, e não
a partir de um processo de classificação externo.
3 Naquela época, pessoas que estudavam as travestis referiam-se a elas principalmente no mas-
culino, em virtude tanto do fato da palavra “travesti” ser tratada como substantivo masculino
quanto do fato das próprias travestis se referirem no masculino. Ao longo do tempo, o uso do gê-
nero gramatical feminino passou a ser mais comum. Quando o uso do masculino for feito nesse
contexto, usarei o itálico.
4 Também chamada de “cirurgia de mudança de sexo” ou “cirurgia de redesignação sexual”, con-
siste numa intervenção cirúrgica que possibilita a construção de um pênis (faloplastia) ou vagi-
na (vaginoplastia), a depender de cada caso.
5 Uma tradução, “Travesti: prostituição, sexo, gênero e cultura no Brasil” foi publicada em portu-
guês em 2008, pela Editora Fiocruz. Nessa tradução, o autor passou a se referir às travestis no
feminino, seguindo a tendência já indicada aqui.
o entendimento de que ‘dois’ pode não ser tão simples e careta como
se pensa. Enfim, o terceiro nos impede de ver que pessoas como as
travestis não caem fora do sistema binário, absolutamente. Ao con-
trário, as travestis nos permitem sugerir que o binário configura-se
de um modo radicalmente diferente do que estamos condicionados
a pensar. (KULICK, 2008, p. 239-240, grifo nosso)
Esses apontamentos feitos por Kulick, ainda que não possam ser uni-
versalizados para todos os grupos de travestis, fornecem-nos um caminho
interessante para pensar as identidades sexuais no Brasil, especialmente
quando consideramos o caráter ativo/passivo6 das relações (FRY; CARRARA,
2016) e suas respectivas imbricações com as (des)identidades de gênero.
Esse paradigma tem origem no processo de transição que Peter Fry (1982)
analisou em relação à sociedade brasileira, em que esta, a partir do fim
dos anos 1960, passou de um modelo de sexualidade “hierárquico” para
um “igualitário”. A questão, aqui, é a maneira como ser ativo ou passivo é
traduzido em posturas mais masculinas ou mais femininas: homens hete-
rossexuais não estariam tão distantes assim de homossexuais preferen-
cialmente ativos, já que, nesse imaginário, ambos se disporiam a sempre
penetrar ou dominar, mas nunca a serem submissos ou penetrados – ati-
tude passiva, feminina. Desse paradigma deriva diretamente a constatação,
portanto, de que o masculino e o feminino não são expressões de qualquer
realidade biológica que precede nossa realidade social (BUTLER, 2018), e
sim, defende Kulick (2008, p. 242), “signos ou processos que são trazidos à
baila ou acionados através de certas práticas específicas”.
A travesti, nesse caso, define-se precisamente por um conjunto de prá-
ticas compartilhadas, de uma experiência eminentemente urbana e de
marginalização, ligadas entre si principalmente por sua vinculação à femini-
lidade e à atração sexual por homens. Veremos, porém, que se essas caracte-
rísticas constituem um panorama da (des)identidade travesti, ela se espraia
de forma muito mais dinâmica no cotidiano, principalmente quando levado
em conta o próprio processo de emergência da “travesti” enquanto cate-
goria identitária. As travestis fazem parte da realidade latino-americana,
e, ainda que o termo encontre falsos cognatos em outros idiomas, como no
inglês tranvestite ou no francês travesti, essas palavras não se referem ao
6 Quem penetra na relação sexual e quem é penetrado, respectivamente, grosso modo. Pode tam-
bém não ter relação somente com penetração, mas com posturas relativamente mais domina-
doras ou mais submissas nas relações sexuais ou na convivência cotidiana.
11 Ver: Luanna Barbosa (2010), Mário Carvalho (2011, 2015) e Moisés Lino e Silva (2022)
12 Inclusive aquelas de cunho pejorativo, como “traveco”.
13 Na cidade de São Paulo, as investidas mais violentas aconteceram sob o nome de “Operação
Limpeza”, levada a cabo pelo delegado Richetti, do começo para o meio dos anos 1980, mas não
cessaram após esse período. Fernández (2004) também narra situação semelhante no contexto
argentino, com foco nos ordenamentos legais instituídos para reprimir aqueles e aquelas consi-
deradas anormais e abjetas pelo Estado.
14 Também chamado de bajubá, dependendo da região do Brasil. Para saber mais sobre o bajubá/
pajubá, ver: Joavanna Baby Cardoso da Silva (2021).
REFERÊNCIAS
BARBOSA, L. M. de S. Localidade ou metrópole?: demonstrando a capacidade
de atuação política das travestis no mundo-comunidade. 2010. Dissertação
(Mestrado em Antropologia) – Universidade de Brasília, Brasília, DF, 2010.
Disponível em: https://repositorio.unb.br/handle/10482/7121. Acesso em: 4 out.
2021.
FRY, P. Para inglês ver: identidade e política na cultura brasileira. Rio de Janeiro:
Zahar, 1982.
FRY, P.; CARRARA, S. “Se oriente, rapaz!”: onde ficam os antropólogos em relação
a pastores, geneticistas e tantos “outros” na controvérsia sobre as causas da
homossexualidade?. Revista de Antropologia, São Paulo, v. 59, n. 1, p. 258-280,
2016. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/ra/article/view/116920. Acesso
em: 4 out. 2021.
LEITE JÚNIOR, J. “Nossos corpos também mudam”: sexo, gênero e a invenção das
categorias “travesti” e “transexual” no discurso científico. 2008. Tese (Doutorado
em Ciências Sociais) – Faculdade de Ciências Sociais, Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo, São Paulo, 2008. Disponível em: https://sapientia.pucsp.br/
handle/handle/3992. Acesso em: 4 out. 2021.
POSFÁCIO
Classificações, diferença e normatividades
em experimentos com a vida
Regina Facchini
Tudo isso tem delineado um campo vibrante, que renova e tensiona pro-
cessos de produção de enquadramentos para a luta e de modos de atuar.
A pluralidade de referências e perspectivas e os modos variados e con-
tundentes de se colocar no debate público têm reacendido temores que
invocam categorias como “fragmentação” e “identitarismo”. Esta última
categoria, em especial, tem sido mobilizada por atores em diferentes posi-
ções no espectro político. De ambos os lados, à direita ou à esquerda, fun-
ciona como uma categoria de acusação, evocando sentidos que apontam na
direção de risco, equívoco político e prejuízo a diferentes ideias de coletivi-
dade. Evoca maiorias compostas por “cidadãos de bem” e projetos políticos
“consistentes”, com bandeiras de luta e estratégias claras e consensuadas.
Ao “perigo” anunciado direcionam-se ataques. De um lado, o ataque ao
“outro” diverso e a mobilização de pânicos morais intentam fazer crescer a
coletividade que já se autoclassifica sem nenhum pudor como “de direita”
e “conservadora” e tem como alvo o “mi-mi-mi” das “minorias”. Do outro,
o alvo é a “fragmentação” da capacidade de enfrentamento político, que,
embora se revista de objetivos nobres, também opera muitas vezes com
a desinformação, com a negação da alteridade e com a hierarquização de
enquadramentos e de repertórios de ação.
As ações coletivas, identidades e classificações relacionadas ao gênero
e à sexualidade são um dos pontos mais visíveis de tensão. Com as ações e
perspectivas antirracistas, têm ocupado, embora de modos distintos e mobi-
lizando diferentes pânicos morais, os debates públicos. Relações sociais de
poder baseadas em raça, gênero e sexualidade atravessam de diferentes
maneiras os efeitos das acusações de “mi-mi-mi” ou “fragmentação iden-
titária”. O significante “identitarismo”, contudo, tem sido partilhado por
forças políticas das mais reacionárias às mais progressistas.
Daí vem o interesse desta obra no atual contexto. A mobilização da
noção de (des)identidades e a reunião de uma série de verbetes relacio-
nados a classificações sobre sexualidade não deixa de ser uma maneira de
colocar em suspensão, para operações analíticas e críticas, os gestos e pro-
cessos implicados em atos cotidianos de classificação, diferenciação, hie-
rarquização ou autoclassificação. Desloca, assim, um fluxo no qual somos
postos a pensar em acrônimos e em oposições entre formas de enumeração
de sujeitos que clamam por visibilidade ou representatividade e outras cate-
gorias mais amplas – que teriam o poder de acolher a grande variedade de
manifestações do que Gayle Rubin (2017) identificou como o “mau sexo”,
situadas em posições de “desempoderamento” e “não-normatividade”.
Ao nos mostrar o além da oposição entre acrônimos e categorias como
CLASSIFICAÇÕES, IDENTIDADES,
DIFERENÇA E DIFERENCIAÇÃO
sexualidade em que eles ainda não estavam disponíveis. Por meio do então
Encontro Nacional Universitário da Diversidade Sexual (ENUDS) mais de
uma geração de estudantes se formou articulando trocas intelectuais e
uma formação via vivência. (LIMA, 2016) Essa nova geração de docentes
e de estudantes interessadas(os) em gênero e sexualidade se encontrou
também com a popularização dos Estudos Queer, que se intensificou com
a chegada da tradução de Problemas de Gênero de Judith Butler, em 2003.
Nesse contexto, tornou-se comum ouvir críticas contundentes a iden-
tidades e ao “identitarismo”. “Identitário” tornou-se uma categoria de acu-
sação tão forte que o simples fato de mencionar a categoria identidade podia
macular a imagem de alguém frente a determinadas audiências. Naquele
momento, o fato de ter estudado processos de produção de identidades
coletivas no movimento (FACCHINI, 2005), mesmo que sob a perspectiva
crítica de Butler (2003) aos apagamentos, tensões e exclusões e ao risco de
tomar identidades como descritivas, era o suficiente para me colocar no
lugar de uma representante das identidades. Não importava que a própria
Butler (1998) houvesse sublinhado a importância das identidades coletivas
para o fazer político feminista e a necessidade de manter uma postura crí-
tica em relação a seus processos de produção.
Em certo momento, tornou-se frequente ver “queers” – como identidade
coletiva não necessariamente ativista num sentido estrito – se insurgirem
contra “identitários” – categoria de acusação. Tratava-se de um processo
político não muito diferente de outros que analisamos frequentemente na
antropologia que se debruça sobre o conflito ou a política: diferenciações,
identificações, acusações. Falar em identidade podia ter o poder de conta-
minar pessoas e espaços e de delimitar fronteiras, com o risco de inibir a
reflexão crítica ao essencialismo estratégico que tomasse em conta o coti-
diano e os desafios de quem se lançava a produzir políticas públicas. Risco
que não se concretizou: alguns excelentes trabalhos sobre os processos polí-
ticos e a ação de movimentos sociais no contexto da produção de políticas
públicas para mulheres, combate ao racismo, LGBT, jovens e outros “seg-
mentos” foram produzidos. Tais trabalhos registraram memórias, impasses
e estratégias desse período e podem servir para alimentar a reflexão aca-
dêmica e ativista num futuro, que espero não muito longínquo, em que se
possa novamente produzir políticas públicas, retomar processos de cida-
danização e pensar criticamente a partir de experiências anteriores.
Hoje, estamos em outro momento, e antes de falar dele, penso que é impor-
tante ter em conta o contexto brasileiro. Aqui nunca tivemos estudos de gênero
e sexualidade implicados com direitos que tenham se conformado como
(DES)IDENTIDADES E ALGUMAS
POSSIBILIDADES DE REFLEXÃO
considera política. Parte dessas atividades é muito fugaz, tem objetivos pon-
tuais. Outras se dão exclusivamente na dimensão on-line. Algumas organi-
zações ativistas mais tradicionais, cujo formato é institucionalizado, seguem
existindo. Esses vários tipos de atividades considerados políticos coexistem,
e as pessoas eventualmente transitam por mais de um.
A multiplicidade e coexistência de várias formas de ativismo e sua
diversificação a ponto de se falar de uma “diluição da forma movimento”
(BRINGEL, 2018) tornam mais evidentes as diferentes lógicas quando
olhamos para acrônimos como LGBT, e suas variantes LGBTI ou LGBTI+,
e para outros, como LGBTQIAP+ e suas inúmeras variantes. A partir de
um olhar exterior, podemos argumentar que em ambos os casos se trata
de uma lógica enumerativa. Contudo, meu argumento é que há aí dife-
renças importantes nos modos de composição, finalidades e contextos em
que esses diferentes tipos de acrônimos circulam. Não se trata apenas de
siglas mais ou menos consolidadas ou de ausência de reconhecimento ou
obliteração da visibilidade.
O primeiro conjunto de acrônimos – LGBT e suas variantes LGBTI, que
em alguns contextos ou ocasiões incluem o sinal de +, embora isso possa
se tornar controverso – estaria relacionado a uma lógica política pragmá-
tica, que procura expressar denominadores comuns, visando a disputa por
direitos que podem alcançar outros sujeitos, que não necessariamente se
reconhecem a partir das categorias explicitamente citadas. Tais acrônimos
têm circulado em redes em que as iniciativas ativistas se organizam pre-
dominantemente a partir de formas institucionalizadas, em cenários em
que estão presentes atores estatais ligados aos diversos poderes e níveis
de governo.
Acrônimos como LGBTQIAP+ e suas inúmeras variantes seriam, para
dialogar com os organizadores desta coletânea, mais próximos de uma
forma enumerativa, embora procurando expressar a diversidade, a com-
plexidade e a fluidez. Nesse sentido, estariam mais próximos do que se
pretendeu alcançar internacionalmente como a mobilização da categoria
queer ou do que tentamos expressar quando usamos expressões amplas,
como diversidade sexual e de gênero. Seu uso mais frequente se dá em redes
sociais, em meios de comunicação, em iniciativas ativistas mais distantes
de formatos institucionalizados. Estão predominantemente mais presentes
entre atores mais jovens, sobretudo em iniciativas que lançam mão de reper-
tórios fundados na expressão artística, disputas culturais, muitas das quais
têm no cerne categorias como “representatividade”, e na ideia de “hackear
o sistema”. Trata-se de reconhecimento, mas nem sempre há demandas por
REFERÊNCIAS
BRAH, A. Diferença, diversidade, diferenciação. Cadernos Pagu, Campinas, n. 26,
p. 329-376, 2006. Disponível em: https://www.scielo.br/j/cpa/a/B33FqnvYyTPDG
wK8SxCPmhy/?format=pdf&lang=pt. Acesso em: 2 maio 2022.
LIMA, S. P. As bi, as gay, as trava, as sapatão tão tudo organizada pra fazer
revolução! Uma análise socioantropológica do Encontro Nacional Universitário de
Diversidade Sexual (ENUDS). 2016. Dissertação (Mestrado em Medicina Social)
– Instituto de Medicina Social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de
Janeiro, 2016.
SOBRE AS AUTORAS
E OS AUTORES