Glossario Das Desidentidades REPO.

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moisés lino e silva

guillermo vega sanabria


organizadores

Glossário de
(des)identidades
sexuais
Etnografias diversas em contextos e
temáticas deram origem às análises
reunidas neste livro mais do que oportuno.
O destaque é dado a expressões que
envolvem raça, gênero, práticas sexuais,
idades, classes sociais, estilos de vida,
historicidades, religiões, concepções de
saúde e moralidades; são conceitos sobre
as diferentes formas como as pessoas se
(des)identificam e são (des)identificadas
em distintas situações. Os verbetes
reunidos neste glossário ganham
significado em relações e interações
cotidianas e, por isso mesmo, mudam
de sentido e existem como códigos pelos
quais transitam os sujeitos não enquanto
identidades definidas, mas enquanto
condições de possibilidade que tensionam
criativamente as diferenças e as normas.
Este é um livro necessário e singular,
produto de uma excelente antropologia.

María Elvira Díaz-Benítez

Docente do Programa de Pós-Graduação


em Antropologia Social do Museu
Nacional/UFRJ
Glossário de
(des)identidades
sexuais

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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA
Reitor
Paulo Cesar Miguez de Oliveira

Vice-reitor
Penildon Silva Filho

EDITORA DA UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

Diretora
Susane Santos Barros

Conselho Editorial
Alberto Brum Novaes
Angelo Szaniecki Perret Serpa
Caiuby Alves da Costa
Charbel Niño El-Hani
Cleise Furtado Mendes
Evelina de Carvalho Sá Hoisel
Maria do Carmo Soares de Freitas
Maria Vidal de Negreiros Camargo

APOIO

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moisés lino e silva
guillermo vega sanabria
organizadores

Glossário de
(des)identidades
sexuais

SALVADOR
EDUFBA
2023

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2023, autores.
Direitos para esta edição cedidos à Edufba.
Feito o Depósito Legal.

Grafia atualizada conforme o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de


1990, em vigor no Brasil desde 2009.

Analista editorial Coordenação gráfica


Mariana Rios Edson Nascimento Sales

Coordenação de produção Capa e projeto gráfico


Gabriela Nascimento Gabriel Cayres

Revisão e normalização
Aline Silva Santos e Bianca Rodrigues de Oliveira

Imagem de capa
João Guilherme Bertholini Massaro

Sistema Universitário de Bibliotecas – UFBA

G563 Glossário de (des)identidades sexuais / Moisés Lino e Silva,


Guillermo Vega Sanabria, organizadores. – Salvador : Edufba,
2023.
295 p.

ISBN: 978-65-5630-525-7

1. Minorias sexuais – Linguagem (Neologismos, gírias, etc.).


2. Minorias sexuais – Identidade. 3. Minorias sexuais – Livros de
referência. I. Lino e Silva, Moisés. II. Vega Sanabria, Guillermo.
CDU – 305(038)

Elaborada por Geovana Soares Lira CRB-5: BA-001975/O

EDITORA FILIADA À:

edufba Rua Barão de Jeremoabo, s/n – Campus de Ondina,


Salvador – Bahia CEP: 40170 115 / Tel: (71) 3283-6164
www.edufba.ufba.br / edufba@ufba.br

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SUMÁRIO

NOTA SOBRE CONVENÇÕES GRÁFICAS | 9

INTRODUÇÃO | 11
Guillermo Vega Sanabria e Moisés Lino e Silva

ADÉ [ADẸ̀] | 33
Claudenilson da Silva Dias e Almerson Cerqueira Passos

ARROMBADO | 45
Mylene Mizrahi

BARBIE | 53
Edward Armando González Cabrera

BICHA-BOY | 63
Moisés Lino e Silva

CAFUÇU | 69
Roberto Marques
Isadora Lins França

CAMGIRL | 79
Caroline Dal’Orto

CAVALO-MARINHO | 89
Anne Alencar Monteiro

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CRIANÇA VIADA | 95
Felipe Aurélio Euzébio
Nina Acacio

DESCONSTRUÍDA | 101
Hildon Oliveira Santiago Carade

DO VALE | 109
George Amaral Santos

DRAG QUEEN | 115


Bruna Silva Araújo

ESCORT | 123
Guilherme R. Passamani

FLEXÍVEL | 131
Maycon Lopes

GILETE | 139
Inácio dos Santos Saldanha

INDETECTÁVEL | 147
Pisci Bruja Garcia de Oliveira

IRMÃ | 155
João Victtor Gomes Varjão

MARICONA LOUCA | 163


Bruno Puccinelli

MATI | 171
Gloria Wekker, Cecilia Lisa Eliceche e Leandro Nerefuh

MAVAMBIXA | 179
Igor Leonardo de Santana Torres e Raphael Cardoso Brito

MAVAMBO | 189
Lucas Moreira

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MUJTAMAʿ AL-MĪM/ʿAYN | 199
Antoine Badaoui

PÃO-COM-OVO | 207
Murillo Nonato

PÉ-DE-MORRO | 213
Tiago Duque

POLIAMORISTA | 219
Antonio Cerdeira Pilão

PUTO | 227
Victor Hugo de Souza Barreto

SAFICRENTE | 237
Louise Tavares Oliveira do Nascimento

SWINGER | 243
Maria Silvério

TOMFEM | 251
Macarena Williamson

TRAVESTI | 257
Jinx Vilhas

POSFÁCIO | 267
Regina Facchini

SOBRE AS AUTORAS E OS AUTORES | 287

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NOTA SOBRE
CONVENÇÕES GRÁFICAS

Adotamos o uso de itálico para destacar um dado verbete quando ele ocorre
dentro do capítulo dedicado à definição do próprio verbete.
Quando um verbete aparece fora do capítulo correspondente, ado-
tamos o negrito para indicar que o termo destacado tem uma entrada pró-
pria na coletânea.

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11

INTRODUÇÃO
O desafio de identificar-se pela
via da (des)identificação

Guillermo Vega Sanabria


Moisés Lino e Silva

Se houve um momento, longínquo, em que a mera divisão entre heteros-


sexuais e homossexuais parecia ser suficiente para distinguir as pessoas
no que tange à sexualidade, hoje, nem mesmo o mais extenso dos acrô-
nimos é o bastante para abarcar todas as identidades sexuais não norma-
tivas que emergem. A partir da homossexualidade, passou-se a distinções
como Lésbicas e Gays (LG), mesmo que, como advertira Kauffman (1974
apud NIETZSCHE, 1974, p. 2), a expressão gay, agora tão popular, nem
sempre se referiu à homossexualidade e “era bastante incomum” até o
início da década de 1960. Depois, passou-se a distinguir Lésbicas, Gays,
Bissexuais e Transexuais (LGBT) e, recentemente, vemos emergirem siglas
como LGBTQIAPN+ (Lésbicas, Gays, Bi, Trans, Queer, Intersexo, Assexuais/
Arromânticas/Agênero, Pan/Poli, Não binárias e mais). Chegamos ao ponto

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12 Guillermo Vega Sanabria e Moisés Lino e Silva

em que a pulverização das possibilidades de identificação não normativas


está sob ataque não só de críticos mais reacionários, mas também de aliados
(ou aliados críticos) das populações minoritárias. Dentro do que poderia ser
considerado “fogo amigo”, há uma constante insatisfação com pesquisas
produzidas na área de gênero, sexualidade e Estudos Queer que decorre do
fato de que mesmo o mais geral dos acordos sobre como referir-se às iden-
tidades das pessoas parece ser impossível.
A solução “guarda-chuva” de abarcar todas as possíveis identidades não
normativas usando simplesmente a categoria queer1 também não esteve
livre de críticas. Muitas indagações partiram dos próprios estudiosos de
gênero e sexualidade, que apontam para o apagamento que o termo queer
produz das diferenças existentes entre os diversos grupos representados em
siglas como LGBTQIAPN+. Em resposta a algumas dessas críticas, autores,
como Tom Boellstorff (2007, p. 25), argumentam que objeções quanto ao uso
do termo queer pelo simples temor de homogeneização poderia levar essa
área de estudos a outra posição insustentável: “uma lógica enumerativa cuja
consequência extrema seria a necessidade de identificar as pessoas uma a
uma, forma de pensar que combinaria com os tempos de atomismo indi-
vidualista”. Entre a lógica individualista e aditiva dos acrônimos e o risco
de homogeneização das diferenças internas entre identidades não norma-
tivas surge, ainda, o fato de que denominações como gay e queer seriam
categorias “importadas” e implicadas em processos de dominação colo-
nial, principalmente, por parte dos Estados Unidos da América e Europa.
Ou seja, se por um lado o uso do termo queer poderia simplificar o problema
da nomenclatura, por outro, o custo de tal solução seria sucumbirmos ao
uso de categorias que não são nativas nos campos de estudo dos autores e
das autoras que contribuem para esta coletânea.

1 O termo queer pode ser traduzido como estranho, excêntrico, raro, extraordinário. Original-
mente, correspondia a uma forma pejorativa, um insulto, uma palavra degradante, usada para
se referir aos homossexuais. A chamada “teoria queer” surgiu no final da década de 1980, im-
pulsionada por um conjunto de pesquisadores e ativistas bastante diversificado, especialmente
nos Estados Unidos. Dela tem se derivado, dentre outras ideias: 1) um novo significado do termo
queer, passando a designar “uma prática de vida que se coloca contra as normas socialmente
aceitas”; 2) uma crítica à “heteronormatividade homofóbica, defendida por aqueles que veem
o modelo heterossexual como o único correto e saudável”; 3) no encalço do trabalho de Judith
Butler, o caráter performativo do gênero. Isto é, baseado na repetição ritualizada de normas e
hierarquias que encarnam determinados ideais de masculinidade e feminilidade, ligados inde-
fectivelmente à heterossexualidade. Ver Colling (2007); ver também Bento (2006).

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introdução 13

Diante de desafios analíticos, políticos e metodológicos como esses,


o esforço que aqui empreendemos implica em um movimento duplo.
Por um lado, responde à lógica aditiva empregada em acrônimos (como
LGBTQIAPN+) com uma proposta de radicalização ad absurdum. Se existe
uma necessidade de reconhecimento das particularidades de cada uma das
identidades sexuais não normativas, que sejam então analisadas a partir
da lógica de um glossário e não de uma sigla. Por outro lado, respondendo
aos críticos que apontam que termos como gay e queer não são “nativos o
suficiente”, argumentamos que todas as categorias normalmente aceitas
em siglas identitárias também deveriam ser questionadas em termos de
suas políticas de representação. Do ponto de vista aqui adotado, a rigor,
todas as categorias de identificação baseadas no gênero e na sexualidade
exprimem, a seu modo, a idiossincrasia de um determinado coletivo, uma
época ou um contexto social. Salvo, é claro, quando se pretende alçar qual-
quer uma dessas categorias ao estatuto de “natural”, “normal”, “correta”.
Assim, procuramos reunir neste livro a maior variedade de identifica-
ções não normativas, chamadas de “(des)identidades”. Em comum, têm o
fato de que elas estão para além de identidades já mais consolidadas: tanto
daquelas heteronormativas quanto de outras não normativas que se tor-
naram tradicionais (como as representadas na sigla LGBT, por exemplo).
As (des)identidades aqui apresentadas derivam do trabalho de nossos cola-
boradores em suas pesquisas de campo, valorizando os termos empre-
gados por seus interlocutores e interlocutoras. Ao mesmo tempo, estamos
cientes do problema relacionado ao “individualismo atomístico”. O resul-
tado de nosso esforço não poderá ser simplesmente concebido de maneira
equivalente à criação de uma lista expandida de individualidades sexuais
não normativas. Nesse sentido, mais do que um glossário, esta coletânea
propõe uma investigação sobre um conjunto de palavras, frases e sentidos
compartilhados por diversos sujeitos, sobre práticas e identidades sexuais.
Um objetivo destacado aqui é evidenciar a existência de uma coletividade
“(des)identificada” com a lógica das siglas, uma coletividade para além das
siglas e, concomitantemente, não homogeneizada.
Em larga medida, este trabalho é oriundo de colaborações em um grupo
de pesquisa baseado na Universidade Federal da Bahia (UFBA), dedicado a
refletir sobre a ética, o poder e a abjeção, conhecido como EPA. Apesar de
contar majoritariamente com participantes filiados ao Programa de Pós-
Graduação em Antropologia da UFBA (PPGA), cujo novo ciclo de publicações
inaugura-se com este livro, o grupo tem também a contribuição de pesqui-
sadores atuando em outros campos disciplinares (como a Enfermagem,

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14 Guillermo Vega Sanabria e Moisés Lino e Silva

a História e a Psicologia), sempre em diálogo com colegas em outras insti-


tuições brasileiras e do exterior. A compilação e publicação dos verbetes a
seguir reflete parte desse esforço colaborativo amplo. A chamada pública
que resultou nesta coletânea não restringiu a área ou nível de formação,
reunindo, assim, contribuições derivadas de pesquisas em andamento, de
estudantes de mestrado e doutorado, junto às colaborações de professores
e pesquisadores com trajetórias consolidadas. Tampouco houve qualquer
restrição quanto à área de atuação ou aos temas de pesquisa dos potenciais
colaboradores. O requisito básico era reunir textos contendo reflexões sobre
categorias “nativas” de (des)identificação sexual derivadas de pesquisas
etnográficas. Portanto, os conectores mais amplos dos verbetes, tão diversos
em abordagens e localizações geográficas, foram a rede do EPA e uma pre-
ocupação em compreender categorias emergentes, derivadas de experiên-
cias vividas sob várias formas de alteridade, e não apenas autocentradas
ou exclusivamente baseadas em material bibliográfico.

TÁTICAS DE (DES)IDENTIFICAÇÃO

A importância do conceito de (des)identificação, manifesta nos argumentos


deste livro, frequentemente flexionado na forma do substantivo (des)iden-
tidade, deriva da obra do teórico queer José Esteban Muñoz (1999). De
acordo com Muñoz (1999, p. 31), processos de (des)identificação podem
ser entendidos como estratégias criativas por meio das quais populações
consideradas minoritárias (ou seja, em posições menos privilegiadas em
termos de poder e sem aspirações universalistas) lidam com forças domi-
nantes para produzir suas próprias verdades. Atos de (des)identificação,
assim como as próprias (des)identidades por eles produzidas, oferecem as
condições de possibilidade para “uma política ou posicionalidade ‘desem-
poderada’ que se tornou impensável pela cultura dominante”. Em outras
palavras, (des)identificações não têm por objetivo criar ou impor novas iden-
tidades universais, mas oferecem linhas de fuga para populações minori-
tárias não sucumbirem a poderes normativos. Isso inclui tanto instâncias
de normatividade per se, como a heteronormatividade, quanto o poder de
algumas siglas mais estabelecidas e formalizadas no contexto “não hetero”
do gênero e da sexualidade. (Des)identidades emergentes não aspiram a
produzir ortodoxias ou universalismos.
Pela heterogeneidade das práticas descritas nos verbetes, mas também
pela heterogeneidade das abordagens propostas pelos autores nesta obra,

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introdução 15

nos deparamos, de início, com vários problemas interessantes. Por exemplo,


de que maneira podem o sexo ou a sexualidade definir identidades? Dito
de outra forma, por que a sexualidade se tornaria a linguagem e o veículo
privilegiado para exprimir o que porventura possa ser considerado uma
identidade? Embora algumas (des)identidades aqui apresentadas se arti-
culem em torno de práticas sexuais específicas e sistemáticas, inclusive que
ganham algum nível de visibilidade em grupos organizados, podemos nos
perguntar se, por exemplo, o poliamorista de Antônio Pilão é uma iden-
tidade no mesmo sentido daquelas presentes na sigla LGBT ou é, sobre-
tudo, um arranjo afetivo-relacional que poderia ser melhor entendido em
virtude de uma teoria da conjugalidade e do parentesco, mais do que por
uma teoria da sexualidade ou uma teoria da identidade. O poliamor envolve,
como pergunta Pilão, nesta coletânea, “mecanismos de distinção e iden-
tificação, em que certos indivíduos e grupos constroem uma visão de si e
dos outros orientada por essas categorias?” Devemos aderir à ideia aven-
tada por Maycon Lopes, no verbete flexível, sobre a “compreensão da prá-
tica da flexibilidade enquanto vetor identitário”? A propósito de verbetes
como drag queen, camgirl e escort, tratamos de identidades sexuais ou
de categorias profissionais? O verbete criança viada, aliás, recupera uma
expressão de uso comum nas rodas de conversa de homens homossexuais
e, tal como apresentada aqui por Felipe Euzébio e Nina Acacio, mais do que
a uma identidade ou a uma orientação sexual já cristalizada na infância,
refere-se à experiência do autor e da autora enquanto crianças para refletir,
a posteriori, sobre a identidade deles como adultos.
Identidades emergentes, ainda que minoritárias, também não estão
livres de valoração. Frequentemente, são categorias que buscam (des)iden-
tificar-se das categorias normativas vigentes em um certo contexto. Isso
não garante que sejam sempre categorias positivadas, de enaltecimento
dos sujeitos em relação aos quais elas podem ser empregadas. Em muitos
casos, processos de (des)identificação e positivação de identidades ocorrem
juntos. Em outros, a (des)identificação não elimina o uso pejorativo ou ofen-
sivo da (des)identidade. A maioria dos verbetes aqui apresentados tratam
de situações em que a (des)identidade em tela é valorada positivamente
pelas pessoas com as quais as autoras e os autores trabalham. Contudo, em
outros casos, o potencial ofensivo continua a ser observado, como verifica-
-se, por exemplo, nos verbetes arrombado (de Mylene Mizrahi) e maricona
louca (de Bruno Puccinelli). Algo similar acontece com a ambiguidade e
o incômodo suscitado pela ideia de uma criança viada (Felipe Euzébio e
Nina Acacio).

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16 Guillermo Vega Sanabria e Moisés Lino e Silva

Dentre as estratégias mais notórias utilizadas na formação das (des)


identidades que compõem esta coletânea – a rigor, táticas, no sentido con-
sagrado por Michel de Certeau (2011) –, destacamos as seguintes: táticas
de ressignificação, táticas de (re)historização, táticas neológicas e táticas
de substantivação. Em cada uma delas existe o potencial latente de posi-
tivação ou negativação de identidades emergentes. Isto é, as táticas em si
não são, a priori, garantia de que haverá uma valoração mais positiva ou
negativa de uma determinada (des)identidade.
Os processos de ressignificação geralmente ocorrem com categorias
identitárias originalmente concebidas como ofensivas a diferentes grupos
“desviantes”. É o caso de verbetes como criança viada, puto (Victor Hugo
Barreto), do vale (George Amaral Santos) e travesti (Jinx Vilhas), por
exemplo. Táticas de ressignificação não priorizam a criação de novos sig-
nificantes, ao contrário, preservam taticamente os termos e as categorias
identitárias consideradas ofensivas ao mesmo tempo em que promovem
ativamente alterações nos significados destas. A alteração geralmente (mas
nem sempre) consiste no deslocamento ou realocamento de um significado
de maneira mais positivada. Uma cadeia de ressignificações fica evidente,
por exemplo, quando uma marca de barbeadores como Gillette passa a
designar (primeiro pejorativamente e depois de maneira mais positivada)
uma pessoa (gilete) que se relaciona amorosa ou sexualmente com “os dois
sexos” (vide o verbete de Inácio Saldanha). Decerto, a mudança de signifi-
cados linguísticos não depende apenas de voluntarismos individuais. Antes
de mais nada, costumam ser processos sociopolíticos que muitas vezes
emergem sem um agente causal de fácil identificação. Em outros casos,
no entanto, são táticas mais evidentemente concebidas enquanto práticas
de militância, por meio da articulação política de grupos de interesse. Tais
grupos se utilizam de diversas ferramentas para promover ressignifica-
ções, sendo a internet uma das arenas contemporâneas mais importantes
para “embates semânticos” de grande audiência. Isso é o que vemos, por
exemplo, com a expressão “do vale”, que viralizou em uma plataforma de
vídeos on-line, como discutido por George Amaral Santos.
Em certas instâncias, processos de (des)identificação assumem uma
dimensão marcadamente histórica. Cientes de que inexistem processos
dessa ordem que sejam atemporais, observamos que algumas narrativas his-
tóricas são explanadas mais intencionalmente e ocupam um lugar mais cen-
tral em verbetes como adé (Claudenilson Dias e Almerson Passos), cafuçu
(Roberto Marques e Isadora Lins França) e mati (Gloria Wekker, Cecilia
Eliceche e Leandro Nerefuh), por exemplo. Tais narrativas articulam-se

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introdução 17

a um aparato conceitual mais amplo que permite aos autores justificar a


existência de tais categorias apontando para uma origem alhures (notada-
mente na África) e para um passado mais ou menos longínquo, invocado à
luz de uma “ancestralidade” que permite traçar continuidades com o pre-
sente. Esse movimento é importante não apenas por promover o eventual
“resgate” de uma identidade previamente apagada por relações de opressão
e repressão ao longo de séculos, mas, sobretudo, porque revela o complexo
emaranhado entre identidade étnica, raça, gênero, temporalidade e sexu-
alidade em uma perspectiva mais sincrônica. Embora tal perspectiva não
seja a adotada pelos autores e pelas autoras desses verbetes, ela constitui
uma via de análise cujos rendimentos merecem ser sinalizados.2
Há, ainda, as (des)identidades associadas a neologismos, com foco na
invenção de novos termos identitários. Táticas desse tipo expandem as possi-
bilidades de subjetivação dos grupos com as quais os diferentes autores desta
coletânea conviveram durante as pesquisas de campo. É o que acontece, por
exemplo, com verbetes como bicha-boy (Moisés Lino e Silva), mavambixa
(Igor Torres e Raphael Brito), saficrente (Louise Tavares), poliamorista
(Antônio Pilão) e tomfem (Macarena Williamson). Observamos que a maior
parte dos neologismos apresentados nesta coletânea surgem de combina-
ções de termos. (Des)identidades como bicha-boy (bicha + boy), mavam-
bixa (mavambo + bixa, com o termo bicha já desidentificado) ou saficrente
(sáfica + crente) combinam, em um novo termo, outras identidades (mais ou
menos estáveis em si mesmas) para produzir uma nova (des)identificação.
A propósito, ao tratar das interações de um grupo de mulheres cristãs em um
aplicativo de mensagens, o verbete saficrente ilustra também o papel do ati-
vismo (e da internet) na origem de muitos neologismos.
Por fim, destacamos modos de (des)identificar que se baseiam no
uso produtivo das relações verbo-substantivo, isto é, (des)identidades
diretamente derivadas de certas ações, práticas e performances. Essa tática
reflete uma discussão estabelecida na literatura especializada, por exemplo,
no debate apresentado por Michel Foucault (1979) sobre a consolidação
histórica da categoria do “homossexual” enquanto uma identidade, um
substantivo, e não mais como um ato sexual, algo possível de ser performado
entre pessoas de mesmo sexo. Nessa categoria, poderíamos considerar que
(des)identidades como escort (Guilherme Passamani), camgirl (Caroline

2 Ver, por exemplo, o caminho trilhado por Oyèrónkẹ Oyěwùmí (1997) na discussão sobre a cate-
goria “mulheres” na África Ocidental.

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18 Guillermo Vega Sanabria e Moisés Lino e Silva

Dal’Orto), flexível (Maycon Lopes) e drag queen (Bruna Araújo) derivam,


respectivamente, de práticas bem conhecidas como “acompanhar”,
“mostrar-se via câmera”, “flexionar-se” e “montar-se”. Ainda nesse contexto,
a discussão do verbete cavalo-marinho, por Anne Alencar Monteiro,
apresenta uma fascinante reflexão sobre homens trans e como o ato de
parir pode ser masculino (algo comum no universo dos cavalos-marinhos),
apontando novas possibilidades para a (des)identificação de gênero da
gravidez e do parto também nas relações humanas. Por fim, observamos
que o ato de se detectar ou não o vírus da imunodeficiência humana (HIV,
pela sigla em inglês usada no Brasil) no corpo de uma pessoa pode produzir
uma “bioidentidade”, como mostra Pisci Bruja no verbete indetectável.

NORMAS, NORMATIVIDADE E DESVIOS

Uma dificuldade com a qual um número considerável de autores e autoras se


depararam ao dissertarem sobre categorias consideradas “não normativas”
foi evidenciar, de maneira etnográfica, a existência de uma “normatividade”.
Nesse sentido, cumpre frisar que, embora muitas (des)identidades aqui tra-
tadas possam ser consideradas não normativas, de modo algum isso significa
que tais construções estejam necessariamente desprovidas de normas. Neste
livro, normativo seria melhor compreendido na acepção de prescritivo, em um
sentido mais universalizante. Há uma diferença importante entre os sistemas
de normas que operam em um grupo porque os membros aderem a elas, isto
é, identificam-se com os requerimentos do grupo para gozarem de uma certa
identidade, e aqueles casos em que as normas identitárias prescrevem com-
portamentos e geram um tipo de demanda sobre pessoas de fora do grupo. Em
outras palavras, identidades não normativas seriam aquelas que não esperam
impor suas normas identitárias internas como valores universais. Ao mesmo
tempo, essas (des)identidades sexuais tendem a ser consideradas subversivas,
sujas ou perigosas pelos defensores de identidades mais normativas.
Em um artigo chamado “Pensando o sexo: notas para uma teoria radical
das políticas da sexualidade” (2012, p. 17-18), a antropóloga Gayle Rubin,
precursora dos estudos de gênero e sexualidade, argumenta que existe uma
hierarquia de valores sexuais. Segundo esta autora:

[Eles] funcionam em muito da mesma maneira como os sistemas


ideológicos do racismo, etnocentrismo e chauvinismo religioso.
Eles racionalizam o bem-estar do sexualmente privilegiado e a

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introdução 19

adversidade da plebe sexual [...] De acordo com esse sistema, a


sexualidade que é ‘boa’, ‘normal’, e ‘natural’ deve idealmente ser
heterossexual, marital, monogâmica, reprodutiva e não-comercial.
Deveria ser em casal, relacional, na mesma geração e acontecer em
casa. Não deveria envolver pornografia, objetos fetichistas, brinquedos
sexuais de qualquer tipo ou outros papéis que não o masculino e
feminino. Qualquer sexo que viole as regras é ‘mau’, ‘anormal’ ou
‘não natural’. O sexo mau pode ser o homossexual, fora do casamento,
promíscuo, não-procriativo, ou comercial. Pode ser masturbatório ou
se localizar em orgias, pode ser casual, pode cruzar linhas geracionais
e pode se localizar em lugares ‘públicos’, ou ao menos em moitas
ou saunas. Pode envolver o uso de pornografia, objetos fetichistas,
brinquedos sexuais ou papéis pouco usuais.

As (des)identidades sexuais aqui elencadas poderiam, em sua maioria,


ser consideradas manifestações do “sexo mau” e não normativas, nesse sen-
tido. Em certos casos, contudo, observa-se que algumas (des)identidades
possuem tendências mais normativas do que outras.
Na organização da coletânea, aliás, deparamo-nos com uma certa
contradição. Supúnhamos que, a princípio, o termo (des)identidade era
bastante sugestivo e exprimia claramente nosso distanciamento de uma
visão prescritiva da sexualidade. Imaginávamos que ao falar de (des)
identidades colocaríamos em foco processos de subjetivação dificilmente
enquadráveis em categorias rígidas, sem deixar, por isso, de perceber o gênero,
a sexualidade e os afetos como formas fenomenais da construção social da
pessoa. (DUARTE, 2013) Desse ponto de vista, parafraseando Fry e McRae
(1985), nossa tendência era tratar todos os termos a que se referem os verbetes
desta coletânea, sem exceção, como produções que dizem muito mais sobre
as pessoas que as articulam, os contextos sociais e culturais em que são
produzidos, do que sobre a sexualidade em si. No entanto, constatamos que
alguns dos interlocutores dos nossos colaboradores (às vezes também nossos
colaboradores) estão genuinamente interessados em identificar-se de forma
mais estável; buscam, ao mesmo tempo, diferenciar-se e ser reconhecidos
(identificados), em virtude dos termos que melhor sirvam a esse fim.
Decerto, paralelos podem ser traçados aqui com teorias da etnicidade,
em especial aquelas que destacam o cunho político dos processos de iden-
tificação e contemplam como elemento central a possibilidade da autoa-
tribuição de identidades. Isso significa, sobretudo, atentar para o caráter
necessariamente relacional desses fenômenos, pois, como observou Cunha
(1985, p. 206, grifo da autora),

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20 Guillermo Vega Sanabria e Moisés Lino e Silva

o que se ganhou com os estudos de etnicidade foi a noção clara de que a


identidade é construída de forma situacional e contrastiva, ou seja, que
ela constitui resposta política a uma conjuntura, resposta articulada
com as outras identidades em jogo com as quais forma um sistema.

Conforme essa mesma autora assinala, na produção de identidades,


sejam elas religiosas, étnicas ou sexuais, o que está em jogo é a produção
de diferenças e formas de classificação, a partir das quais certos sinais dia-
críticos fazem sentido e as identidades são confrontadas.
Nem sempre interesses “identificatórios” são produtos de um espírito
militante deliberado. Outras vezes, o espírito existe e se manifesta com vee-
mência, talvez seguindo as demandas políticas do que Spivak (1985 apud
GROSZ, 1990) chamou de “essencialismo estratégico”. Porém, antes de ser
naturalizada, a atitude militante, que reivindica publicamente certa iden-
tidade, deve ser considerada junto ao fato de que existem espaços nos quais
“discursos afirmativos envolvendo identidades homossexuais ou similares
são praticamente inexistentes”. (ROGERS, 2006, p. 127) Em certas circuns-
tâncias, tanto a sobrevivência física quanto a capacidade de fazer parte do
entramado das relações sociais podem depender da habilidade dos sujeitos
de manterem-se incógnitos: não dizer, não nomear, não (se) assumir. Além
disso, deparamo-nos ainda com a possibilidade de que certos termos, queer
por exemplo, ainda possam ser usados como categoria guarda-chuva e mais
fluida, na contramão de processos identitários mais rígidos e compartimen-
tados, como revela Antoine Badaoui no verbete mujtamaʿ al-mīm/ʿayn.
Nesta coletânea, defrontamo-nos com reivindicações de novas identi-
dades (algumas mais e outras menos estáveis) com força autoafirmativa e
com aspiração de reconhecimento público. Ao mesmo tempo, no verbete
puto, Victor Hugo Barreto aproxima-se mais da ideia de (des)identidade
enquanto não identificação, por meio do que ele nomeia de “princípio da
discrição”. Isto é, uma premissa que contém práticas e formas de se rela-
cionar que valorizam o segredo e o anonimato. As festas de homens descritas
por esse autor versam, justamente, sobre o desejo de não ser reconhecido,
mais do que ser reconhecido. Tiago Duque, falando da bicha pé-de-morro
em uma região de fronteira internacional, também nos interpela ao propor
uma discussão mais densa nesse sentido. Trabalhos como o de Duque, aliás,
são exemplares em “desapegar” de categorias e termos que parecem indis-
pensáveis na atualidade. A respeito, ele afirma, nesta coletânea:

A ‘cisgeneridade’, enquanto uma categoria analítica usada ‘para


questionar os privilégios dos corpos que se entendem dentro de uma

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introdução 21

perspectiva naturalizante e essencialista de gênero’ (NASCIMENTO,


2021, p. 100), diferentemente de outros estudos, aqui não é útil para
compreender o regime em questão. Não se trata de negar a ‘cis-polí-
tica’ (DEMÉTRIO, 2019), antes, compreender que processos de reco-
nhecimento podem ir além da diferenciação ‘cis’/’trans’ mesmo
quando as bichas sejam gays e travestis ou mulheres transexuais
[...] Assim, a pé-de-morro ensina-nos sobre um regime de visibili-
dade que não é identitário nos termos ‘cis’/‘trans’, mesmo envol-
vendo gays e travestis/transexuais; nem mesmo restrito a uma certa
diversidade sexual, ao invés disso, é um regime em que, no quadro
de inteligibilidade fronteiriça, também envolve moradores(as) não
bichas e não necessariamente brasileiros(as).

Em alguns casos, mais do que afastar-se de categorias sexuais e de


gênero mais ortodoxas, algumas das (des)identidades aqui descritas incor-
poram elementos claramente convencionais, quando não valores fran-
camente tradicionais. Por exemplo, algumas práticas e comportamentos
habituais, a princípio originais e tão idiossincráticos, apontam para um
profundo enraizamento moral e, no limite, tão moralizante quanto muitas
das identidades sexuais mais normativas. É o que aponta Maria Silvério ao
referir-se aos casais swinger como “o modelo mais próximo do ideal do
casal convencional, mais heteronormativo, apolítico e com pessoas mais
conservadoras”. Não se trata apenas dos swingers de Silvério, mas de um
senso moral prescritivo também encontrado nos poliamoristas de Antônio
Pilão. Todos eles precisam lidar com expectativas, por exemplo, sobre como,
quando, com quem e com quantas pessoas é aceitável fazer sexo e qual tipo
de sexo. Sobre isso, afirma Silvério, “apesar de adotar comportamentos
libertários no que diz respeito à fidelidade conjugal, ao pudor e à promis-
cuidade, paralelamente, um casal swinger prega valores que são conserva-
dores sob qualquer ponto de vista”. Ela acrescenta ainda que o universo
swinger é “um meio que usa caminhos heterodoxos para preservar uma
instituição que ele considera sagrada: o casamento monogâmico entre um
homem e uma mulher”.
Embora divirjam em termos de regras e no que porventura possa ser
referido à estética e às performances sexuais, outros trabalhos também
sugerem, por outra parte, sensos morais emergentes. Voltando ao ver-
bete puto, Victor Hugo Barreto, nesta coletânea, aponta que “ficar de
romance” é o comportamento mais indesejado em uma “putaria”, pois
“fere a ética local”. Porém, ele também aventa a ideia de testes e de limites,
ao observar que:

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22 Guillermo Vega Sanabria e Moisés Lino e Silva

[…] muito do desejo e do prazer nas práticas analisadas vem justa-


mente de uma certa erotização dos riscos e perigos, e não do desco-
nhecimento deles [...] Ao contrário do que se possa imaginar sobre
um evento orgiástico, não imperaria um descontrole sem regras ou
um ‘desgoverno de si’. Muito pelo contrário. Mesmo entre os partici-
pantes dos grupos de práticas mais extremas, como o sexo pig, há a
preocupação de se afirmar que suas práticas partem de valores como
a ‘responsabilidade’, o ‘consentimento’ e o ‘cuidado’.

COLETIVIDADES, (DES)IDENTIDADES E INDIVIDUALISMOS

Há algumas possibilidades interessantes para compreender a relação entre


verbetes de (des)identidade sexual e as práticas sexuais em si. No livro
Palavras-chave: um vocabulário de cultura e sociedade (2007), Raymond
Williams nos ensina que há uma história social e política das palavras.
As palavras são formas cristalizadas de entendermos o que são e como fun-
cionam certos fenômenos sociais; elas servem como retrato da maneira como
operam os valores e os significados de um grupo, em um determinado local e
tempo. A respeito, diríamos, como fizera Saba Mahmood (2019, p. 148-149):

[Esperamos que nosso intento] será inteligível para aqueles antro-


pólogos que há muito reconheceram que os termos que as pessoas
utilizam para organizar as suas vidas não são uma mera glosa de
ideologias universalmente partilhadas acerca do mundo e do lugar
de cada um no seu seio, mas são de facto constitutivos de diferentes
modalidades de pessoa, conhecimento e experiência.

Na verdade, nosso intuito é que os verbetes aqui discutidos sejam apre-


ciados para além da antropologia, não apenas por cientistas sociais, mas
por outras disciplinas e por um público fora da academia também, o mais
amplo possível.
Uma observação de Néstor Perlongher em 1987, no livro O que é AIDS,
poderia servir muito bem como justificativa deste glossário. Ela é retomada
por Inácio Saldanha no verbete gilete para notar que existe uma tendência
no discurso público sobre a sexualidade, e mesmo em certos ambientes
militantes, a privilegiar classificações de origem médica. Todavia, tais
classificações, amiúde, contrastam nitidamente com um contexto social
como o brasileiro. O termo “bissexual”, por exemplo, já resultava “inaudito
nas barrocas nomenclaturas nativas (apenas no circuito de perambulação

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introdução 23

homossexual do centro de São Paulo, estão em circulação mais de 50


maneiras de aludir aos gêneros e estilos dos ‘entendidos’, desde bicha-baby
até michê-gilete)”. (PERLONGHER, 1987, p. 56, grifo do autor)
Outra observação no mesmo sentido é feita por Bruno Puccinelli
no verbete maricona louca, ao citar uma pequena lista com o título de
“Vocabulário de gíria homossexual”, publicada originalmente na década
de 1960, por José Fábio Barbosa. Embora essas gírias surjam localmente,
elas podem se tornar de uso geral com rapidez e serem transformadas
permanentemente pela própria dinâmica das relações sociais. Como aponta
Macarena Williamson no verbete tomfem desta coletânea, citando o
trabalho de Regina Facchini (2005, p. 181):

[A] especificação de categorias como lésbicas, travestis e transexuais


pode ser compreendida como escolhas, feitas a partir de um leque
de possibilidades – que, com incentivo da globalização e da grande
circulação de informações, passam a trazer referências criadas em
outros contextos culturais. Há um processo de re-significação e um
contexto político-cultural local que permite a demanda por novas
categorias ou estilos e que influenciam a apropriação de determi-
nada categoria ou estilo e não outra.

Ao lidar com questões como estas, nosso olhar se volta, em primeiro


lugar, para as respostas oferecidas pelos próprios autores e autoras que gene-
rosamente colaboraram com esta obra. A autoridade deles não advém do
fato, por exemplo, de necessariamente fazerem parte dos grupos com que
trabalham, mas de sua tentativa de articular palavras, conceitos e práticas
que constituem um campo de significação e de prática. Resta saber, também,
se neologismos surgidos em contextos relativamente fechados, como safi-
crente na lista de WhatsApp do grupo junto ao qual pesquisa Louise Tavares,
referem-se, de fato, a uma tradição discursiva ou a uma manifestação mais
passageira.3 Marcar e observar essas diferentes temporalidades não invalida

3 Talal Asad (1986) usa o conceito de “tradição discursiva” ao tratar das características do islamis-
mo, notadamente sobre a importância das escrituras. Como observado por Mello (2020, p. 3),
“Asad lança mão do conceito de ‘tradição discursiva’, com o objetivo de enfocar os modos pelos
quais a linguagem direciona, justifica e permeia os sentidos de corpos vivos, por meio de ações
repetidas que articulam intenções, pensamentos e sentimentos. Uma tradição é um conjunto
de aspirações, sensibilidades e relações de sujeitos que vivem e transitam entre múltiplas tem-
poralidades (p. 92-93)”.

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24 Guillermo Vega Sanabria e Moisés Lino e Silva

a importância das categorias para o momento em que emergem, mas podem


indicar rumos e estratégias políticas diferentes.
Por isso mesmo, enquanto vemos o surgimento de palavras, conceitos
e práticas em um horizonte de significação, é preciso ficarmos atentos
também às enrascadas. Especialmente porque a abundância de termos e
categorias com pretensões identitárias, mais do que uma solução per se,
pode nos colocar às voltas, mais uma vez, com o famigerado problema da
representação ou, melhor, da representatividade. Desse ponto de vista,
como avaliar as experiências contidas no termo irmã, por exemplo, uti-
lizado pelo pequeno grupo de quatro amigos que descreve João Victtor
Gomes Varjão?
Por outra parte, como explicar aqui o predomínio de verbetes que se
referem à sexualidade masculina, sem que alguns deles não pareçam apenas
ligeiras variações do mesmo tema ou mesmo repetições? Especialmente,
pensamos em alguns verbetes que se originam da interesecção da raça
(negra), da classe social (periférica, popular, marginal), de gênero (mas-
culino) e de orientação sexual (homossexual) (vide adé, pão-com-ovo,
mavambixa, mavambo e cafuçu). Mutatis mutandi, todos eles se referem
diretamente à experiência de jovens que são, em sua maioria, negros,
homossexuais e da periferia. Repare-se, aliás, que o fato de o trabalho etno-
gráfico ser localizado, como é de praxe, não significa que um verbete seja
ininteligível mais amplamente. O problema é ao contrário: que seja inte-
ligível demais, justamente porque lida com as mesmas categorias funda-
mentais com que lidam outros trabalhos. Por isso mesmo, tal situação nos
desafia a pensarmos em que medida verbetes parecidos seriam apenas, ou
algo a mais, do que uma variação de um mesmo tema e o que essas varia-
ções (aparentemente fractais) podem produzir como efeito epistemológico.

COMPLICANDO OS BINARISMOS

Por vezes, os argumentos dos nossos autores e autoras tendem a basear-


-se em oposições, de tal forma que alguns termos só fazem sentido à luz
de outros que lhe são antitéticos. Por exemplo, a putaria contrasta com o
romance, como observa Victor Hugo Barreto, embora, como ele adverte,
também “podem se atravessar e se condensar: não é porque você está
‘fazendo sexo’ ou ‘fodendo’ que a interação não possa ser afetuosa no sen-
tido de não ter carinhos ou beijos”. Em outro caso, a antítese do poliamor
descrito por Antônio Pilão nesta coletânea é a “monogamia compulsória”

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introdução 25

(sic). Em trabalhos como esses, a (des)identidade é literal, pois no lugar


ou junto às certezas identitárias, também encontramos expectativas (por
vezes frustradas) sobre o que não se é, qual seja, monogâmico ou român-
tico, por exemplo.
Tais oposições são interessantes porque sugerem algo diferente do que
muitos dos trabalhos aqui reunidos pressupõem. Um número considerável
de verbetes coloca-se enquanto contribuições que contestam o binarismo e
afirmam o caráter “dissidente” de certas identidades sexuais. Isso bastaria,
segundo essa compreensão, para considerá-las como (des)identidades.
Porém, o fato de transitarem entre noções bem estabelecidas de mascu-
linidade e feminilidade não parece dar fim ao binarismo, mas, em alguns
casos, reforçá-lo. De um ponto de vista analítico, tornam-no necessário e
englobante.4 Dito de outro modo, em que pesem as críticas corriqueiras
ao binarismo, inclusive entre nossos colaboradores, o que se depreende
do conjunto dos trabalhos é que a lógica binária parece estar longe de ter
esgotado seu potencial explicativo, inclusive enquanto recurso explicativo
nativo. Nesse sentido, Jinx Vilhas, no verbete travesti desta coletânea, cita
Don Kulick (2008) para recusar a ideia das travestis como uma espécie de
terceiro gênero e sugerir que, nesse caso, o que acontece é que “o binário
configura-se de um modo radicalmente diferente do que estamos condicio-
nados a pensar”. Don Kulick (p. 239-240, grifo do autor) afirma:

Ao sugerir que os indivíduos que não se encaixam no dualismo


macho-fêmea estão fora dele, além dele ou transcendentes a ele,
deixa-se de compreender que esses indivíduos podem estar, na
verdade, operando desarranjos e reconfigurações, ou seja, podem
estar introduzindo complicadores nesse sistema dual. O idioma do
terceiro gênero deixa intacto o binarismo tradicional. Em vez de
expandir, sofisticar e complexificar o entendimento da masculini-
dade e da feminilidade, o discurso do terceiro gênero cristaliza e sela
as categorias duais, e situa a fluidez, a ambiguidade, as dinâmicas
e as sobreposições em um espaço completamente exterior: fora das
fronteiras do binarismo, nos domínios do terceiro. O conceito de ter-
ceiro acaba dificultando o entendimento de que ‘dois’ pode não ser
tão simples e careta como se pensa. Enfim, o terceiro nos impede de
ver que pessoas como as travestis não caem fora do sistema binário,
absolutamente. Ao contrário, as travestis nos permitem sugerir que

4 A respeito ver: Duarte (2013, 2017).

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26 Guillermo Vega Sanabria e Moisés Lino e Silva

o binário configura-se de um modo radicalmente diferente do que


estamos condicionados a pensar.

Em pesquisa etnográfica na Favela da Rocinha, Rio de Janeiro, Moisés


Lino e Silva apresenta observações adicionais sobre as classificações e
perspectivas adotadas por travestis com quem conviveu por alguns anos.
Ao discutir o verbete bicha-boy, Lino e Silva, nesta coletânea, afirma:

No emprego do termo pelas travestis, por exemplo, percebe-se que


há uma normalização da existência travesti e a categoria bicha-boy
passa a operar como um ‘marcador de diferença’ em relação a esse
fato. A ‘bicha normativa’ passa a ser a travesti, aquela que vive sua
identidade por meio de uma combinação de práticas que são cor-
porais, sexuais, materiais e discursivas: os brincos, os maridos, os
seios, os sapatos de salto alto, mas também o pênis (que muitas não
querem retirar) e ainda o emprego de certas categorias classificató-
rias como o caso do verbete em pauta. Nesse contexto, ser bicha-boy
significa não ser hétero e também não ser travesti.

O trabalho de João Victtor Gomes Varjão, no verbete irmãs, oferece-nos


uma descoberta etnograficamente interessante ao tratar da positivação da
“passividade sexual” (em contraste com o papel do “ativo”). Ser “passiva”,
como disse um dos interlocutores de Gomes Varjão, é mais do que desem-
penhar o papel passivo no ato sexual, mas é, sobretudo, uma reafirmação
do fato que fundamenta o parentesco entre as irmãs: uma performance
passiva, que implica em discursos, atos, gestos e outras atuações. De forma
similar, o dito vínculo exprime-se no uso dos pronomes femininos, pois
enunciar pronomes no feminino indica, antes de mais nada, a construção
de uma pequena coletividade a partir do uso pronominal. Como sugere o
autor, esse uso pronominal indica uma indexicalidade coletiva feminina e
“passiva” para as irmãs:

Ser irmã implica em um compartilhamento íntimo e intersubjetivo


de vidas, percebido a partir do compartilhamento de substâncias
– como dinheiro, cigarro, maconha e outras ‘drogas’ – e, especial-
mente, pela aproximação a partir da ‘passividade’. No idioma do
parentesco das irmãs, ‘ser passiva’ é um fator positivo que agrega
valor à coletividade do grupo. Essa identificação, constantemente
reivindicada, aproxima tanto as ‘bichas’ quanto as ‘rachas’ pela
comum possibilidade de ‘ser penetrada’.

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introdução 27

Com o claro predomínio de abordagens descritivas na coletânea, o tra-


balho de Edward González adota uma perspectiva histórica para mostrar
como o surgimento do que ele chama de “cultura fitness” associa-se a ideias
de masculinidade (heterossexual) e, por essa via, abre caminho para uma
nova figura no mundo homossexual: a barbie. Outros autores nesta obra
valem-se de pressupostos históricos sobre “ancestralidade” e “herança afri-
cana” para embasar a origem de termos como adé (Dias e Passos) e mati
(Wekker, Eliceche e Nerefuh). Wekker, Eliceche e Nerefuh declaram, con-
cretamente: “meu entendimento é que pessoas escravizadas chegaram ao
Suriname com o conceito de mati, referindo-se ao relacionamento espe-
cial entre companheires/as/os [sic] de bordo nas travessias atlânticas”.5
Contudo, tais tentativas de vincular certos termos a uma África imaginada
no passado ou à sua recuperação no presente de pessoas negras no Brasil
e alhures, deixam inadvertida a violência e a homofobia que também per-
sistem no continente africano.
Roberto Marques e Isadora Lins França, por sua parte, propõem uma
genealogia do cafuçu, associada ao racismo que é marca de origem do
Estado nacional brasileiro. Descrevem o cafuçu como “usualmente vincu-
lado a corpos avaliados por terceiros como carentes de distinção, subalter-
nizados entre convenções e estratégias narrativas que atribuem ao cafuçu
uma sensualidade (mais) primitiva em meio a repertórios coloniais de dife-
renciação, violência e desejo”. Marques e França também comparam o
cafuçu com os camponeses celibatários descritos por Bourdieu, uma vez
que o cafuçu “exibiria características e gestos acintosamente relacionados
a um mundo que foi ou deveria ser deixado para trás”. Tal imagem con-
trasta com a figura, quiçá mais positivada e empoderada, do mavambo
descrito por Lucas Moreira. Quando Marques e França dizem do cafuçu
que “seus atributos seriam acentuados pela parca capacidade de consumo”,
também é inevitável lembrar das bichas pão-com-ovo de Murillo Nonato,
claramente inseridas em um circuito bastante específico, ainda que limi-
tado, de consumo. Em contraste com as bichas pão-com-ovo, o cafuçu
de Marques e França, nesta coletânea, pela sua “origem rural e o modo de
trabalho a ela vinculada como algo primitivo, pouco rentável e degradante
[...] não possuiria os recursos necessários para acessar os bens e prazeres

5 Narmala Halstead (2008, p. 116) argumenta que, em contexto mais amplo no Caribe, “o termo
mati foi usado durante o colonialismo para expressar a igualdade das pessoas em condições
comuns de dificuldades, onde os colonizados com várias histórias de chegada e assentamento
eram solidários entre si”.

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28 Guillermo Vega Sanabria e Moisés Lino e Silva

que almeja [...]”. Ao mesmo tempo, os cafuçus também são apresentados


e valorizados como objetos de desejo e de consumo alheio. Assim, muitos
deles terminam por gerar valor de compra ao deixarem-se consumir em um
arranjo de trocas monetárias e sexuais.

IDENTIDADE: UMA QUESTÃO DE INTENSIDADE?

Um corolário das reflexões aqui aventadas por diversos autores e autoras


pode ser pensar em intensidades (mais do que descontinuidades) na
hora de questionarmos se há, de fato, uma separação radical entre polos
aparentemente distintos: identidades normativas versus desviantes ou
coletivas versus individualistas. Uma das vantagens em pensar questões
identitárias contemporâneas de maneira etnográfica é perceber que na
vida diária esses fenômenos são mais complicados e interessantes do que
algumas vezes pode fazer crer um tratamento superficial da teoria antro-
pológica. Nesse sentido, esta coletânea também é uma oportunidade para
enfatizarmos a importância de compreender, de um ponto de vista que
não seja apenas teórico, fenômenos como o surgimento e a hibridização
de ­­­­­­­­­­­­­­­­­­­(des)identidades sexuais.
Este livro não se pretende enquanto contribuição para uma “teoria
queer”, ao menos não de maneira direta e intencional. A partir de uma cha-
mada inicial para contribuições, passamos a trabalhar com ideias e debates
da vida diária, que privilegiam experiências etnográficas em lugar de ela-
borações desconectadas do cotidiano de nossos interlocutores em campo.
Talvez nisso consista, precisamente, nossa modesta contribuição como
antropólogos nesta seara. Na prática, o quadro que os verbetes a seguir per-
mitem desenhar é complexo e difuso, sem certezas pré-concebidas, ou con-
cebidas depois, sem divisões simplistas. Trata-se, sobretudo, de pensar em
intensidades, graus, gradações: mais ou menos normativas, mais ou menos
desviantes, mais ou menos coletivistas e mais ou menos individualistas.
Isso poderá ajudar a entendermos os modos contemporâneos de viver, pra-
ticar, significar as (des)identidades sexuais.
Observação similar também seria válida em relação às quatro táticas de
(des)identificação apresentadas anteriormente: táticas de ressignificação,
táticas de (re)historização, táticas neológicas e táticas de substantivação.
Apesar de nossa proposta inicial tentar sistematizar essas categorias, as
observações etnográficas sugerem que não são possibilidades isoladas. Em
muitos casos, essas táticas se entrecruzam e, em diferentes intensidades,

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introdução 29

atuam na constituição de diferentes (des)identidades. Camgirl, por


exemplo, é tanto o resultado de um processo neológico aditivo (cam + girl)
quanto de uma substantivação de uma ação, uma prática. Ao mesmo tempo,
na definição do verbete camgirl, Caroline Dal’Orto se utiliza tanto de narra-
tivas históricas consideradas “tradicionais” sobre a exploração do trabalho,
quanto de debates mais recentes sobre a exploração de mulheres e outras
narrativas contemporâneas sobre novas tecnologias digitais.
Para além da adoção ou, às vezes, da disputa de narrativas históricas
em alguns verbetes, a recusa em desconectar nossas observações de con-
textos e posições concretas produz consequências que merecem ser des-
tacadas. Mesmo quando a discussão parece demandar a “desconstrução”
de requerimentos de objetividade, como mostra Hildon Carade no verbete
desconstruída, a insistência etnográfica das autoras e dos autores pode
trazer surpresas e inovações que articulações teóricas sozinhas nem sempre
conseguem. Por outro lado, esse traço marcante, profundamente situado,
da prática etnográfica também dificulta atingirmos o nível de generali-
zação comumente esperado de glossários e dicionários. O uso de uma lin-
guagem referencial, supostamente mais neutra e objetiva, por exemplo,
raramente é privilegiada pelos autores e autoras dos nossos verbetes. Desde
a concepção inicial deste projeto, o título de “glossário” foi pensado mais
enquanto provocação intelectual do que, de fato, como uma aspiração à
produção de uma lista exaustiva de (des)identidades existentes e no esgo-
tamento semântico destas.
O tipo de definição que oferecemos para cada uma das entradas a seguir
é contextual em um sentido aberto, dependente das relações contínuas esta-
belecidas entre autores, autoras e os interlocutores dos respectivos grupos
de identificação ao longo de um tempo que não é estanque. Destarte, enten-
demos que se os mesmos verbetes fossem escritos por outros colaboradores,
os resultados poderiam ser bastante diferentes. Em sintonia com as aspi-
rações dos sujeitos aqui (des)identificados, nosso glossário também não
poderia pretender-se universal. Apesar disso, minimamente, almejamos
que este livro seja concebido como uma coletânea para além do sentido edi-
torial, como um emaranhado de evidências etnográficas sobre a existência
de uma coletividade desidentificada com a lógica das siglas mais conhe-
cidas e estabelecidas de identificação sexual.

glossario-das-desidentidades-MIOLO.indb 29 13/09/2023 07:13


30 Guillermo Vega Sanabria e Moisés Lino e Silva

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glossario-das-desidentidades-MIOLO.indb 32 13/09/2023 07:13
33

ADÉ [ADẸ̀]

Claudenilson da Silva Dias


Almerson Cerqueira Passos

As encruzilhadas epistemológicas rabiscadas pelos Estudos Queer e decolo-


niais visibilizaram o protagonismo de alguns corpos dissidentes.1 Categorias
identitárias como “gay” e “bicha” abrem caminhos para pensarmos as expe-
riências de homens homossexuais a partir de uma outra matriz, trazendo
novas perspectivas teórico-metodológicas para compreender uma diver-
sidade de corpos e suas materialidades. Propomos, neste círculo [ṣiré]2
decolonial, discutir a importância do conceito Adé [Adẹ̀] como uma ofe-
renda [ẹbọ] capaz de dialogar com as identidades sexuais na diáspora afror-
religiosa. Muito mais do que descrever a orientação homossexual de um
homem, o conceito Adé [Adẹ̀] nos convoca para uma reflexão crítica sobre

1 Por corpos dissidentes estamos nos referindo a algumas populações LGBTQIAPN+ em sua di-
versidade de gêneros e sexualidades que, a partir das normas cisheterossexuais, são compreen-
didos como abjetos e fora de uma normalidade social imposta.
2 Optamos por empregar as expressões típicas dos cultos afro-brasileiros em português, tal qual
aprende-se nas Comunidades Tradicionais de Terreiro (CTTro) e, em seguida, sua grafia em io-
rubá, com vistas à recuperação do texto fonte. Apresentamos entre colchetes sugestões gráficas
tiradas de Márcio de Jagun (2017) para a representação de termos em língua iorubá.

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34 Claudenilson da Silva Dias e Almerson Cerqueira Passos

a necessidade de incorporarmos novas possibilidades lexicais que visibi-


lizem os ilás [ila ou ké]3 existentes nesta encruzilhada-mundo.4
Adé [Adẹ̀] não será encontrado nos dicionários de iorubá como uma
representação da homossexualidade. Ou seja, não se trata de um verbete
comum nos territórios de língua iorubá para designar pessoas de gênero
masculino que se relacionam com outras pessoas do mesmo sexo. Há um
termo iorubano, aṣebíabo, que designa um grupo étnico africano que apre-
senta o hábito de vestir-se de mulher; ou, ainda, os adẹ̀fẹro, aqueles que
se relacionam sexualmente com outros homens, sendo este termo revisi-
tado/reformulado através da comunicação nos terreiros para se referir aos
homossexuais efeminados, os “Adéfantó”.5
Estamos de acordo com Carlos Henrique Lucas Lima (2017, p. 28),
quando aponta que o pajubá/bajubá,6 ou suas palavras “pajubeyras”, são
“[...] um método de ação política [...]”, que colabora para a emancipação dos
sujeitos relegados à subalternidade. Existem termos diversos para se referir
às dissidências sexuais e de gênero no continente africano (REA, 2018), bem
como no Brasil. Adé [Adẹ̀] aparece nesse contexto como um neologismo,
criação típica dos falares africanos no Brasil (CASTRO, 2001; LÓPEZ, 2004;
LIMA, 2017) para designar certas (des)identidades sexuais, quer nos espaços
religiosos, quer nos guetos onde esses fenômenos ocorrem.
Adé, em iorubá, segundo os dicionários, significa “[...] coroa [...]”.
(BENISTE, 2019; JAGUN, 2017) A vogal “e” [ɛ] tem uma pronúncia fechada,
como o “e” [e] em “ele/dele”, e em tom agudo. Em português, o termo seria

3 Som emitido pelo Orixá [Òrìṣà] no momento da incorporação. Dedicamos esse ilá a todas as
Adés que se colocaram em linhas de frente para que nós, hoje, possamos soltar nossos ilás ainda
com toda repressão que nos aflige. Agradecemos a Igor Leonardo que nos impulsionou para en-
frentar a escrita deste verbete. E em especial agradecemos a Fran Demétrio, essa travesti que
nos uniu em luta e seguiu ao Orun no dia 28 julho 2021. Olorun Kosi Pure, Mana! Adupé O!
4 Tomamos de empréstimo o termo de Luiz Rufino que nos orienta para pensar as encruzilhadas
como novas possibilidades de entender o mundo cotidiano com todas as dimensões coloniais
que nos circundam. Para mais ver: Pedagogias das Encruzilhadas (2019).
5 Agradecemos ao nosso colaborador e professor de língua e cultura Iorubá, Okanbi Odé Adnel-
son pelas informações aqui apresentadas, haja vista que elas anunciam uma aproximação di-
reta com as práticas sobre sexualidades no continente africano, questão muito pouco discuti-
da, como pode ser percebida também na coleção África Queer (volumes I e II), organizada pela
professora Katarina Rea – UNILAB – e publicada pela Editora Devires, compondo traduções de
textos que intentam apontar as problemáticas encontradas pelas populações queer of colour
africanas face às demandas das colonialidades do gênero.
6 Linguagem criada por travestis com termos da língua portuguesa e expressões oriundas das
religiões de matriz africana.

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adé [ adẹ ̀ ] 35

escrito como “Adê”, fazendo a mesma referência ao sentido de adorno de


cabeça (coroa) que alguns Orixás [Òrìṣà] ostentam quando incorporados em
pessoas iniciadas. (JAGUN, 2017) Adé [Adẹ̀],7 por sua vez, terá o “é” [ɛ] pro-
nunciado de forma aberta também em som agudo da mesma forma que em
“pé”, sendo um monossílabo tônico. Se o primeiro sentido (coroa) tem sua
forma gráfica alterada em português (pelo som da pronúncia), o segundo
vai manter a grafia iorubá para coroa (Adé), mas empregando outro sen-
tido, aquele para referir-se às expressões de gênero e de sexualidade mas-
culinas não heterossexuais ou viris. Diante disso, ainda que atualmente
entendida nos Candomblés como uma correspondência para bicha, gay ou
­homossexual, a categoria Adé [Adẹ̀] revela, enquanto fundamento semântico
e político, a anunciação de uma população que performa suas dissidências
e assim tencionam a matriz normativa de gênero que também está presente
nas Comunidades Tradicionais de Terreiro (CTTro). (NOGUEIRA, 2020)
A história da categoria Adé [Adẹ̀] passa pelas relações tecidas entre pes-
soas LGBTQIAPN+ e as religiões de matriz africana. Trabalhos etnográficos
seminais deram apontamentos sobre esse vínculo (FRY, 1982; LANDES,
2002; PERLONGHER, 2008) e outros trataram de discutir especificamente
esse termo êmico.8 Grande parte deles afirma o destacado vínculo das reli-
giões de matriz africana com a população homossexual e travesti desde
as décadas de 1970 a 1990. Nestor Perlongher (2008) já observava, em seu
trabalho com michês, como os cultos afro-brasileiros, os Candomblés e a
umbanda, estavam presentes entre a classe popular e negra de São Paulo,
os chamados guetos. Tal percepção levava em consideração a expressão de
uma característica particular de homossexuais e michês negros, a qual ele
designou de nagô, usando o léxico afro-brasileiro a fim de marcar o lugar
social desses sujeitos.
Os Candomblés, assim como os demais cultos afro-brasileiros, são
lugares de organização social, afirmação religiosa e de formação identi-
tária periférica. Neles coexistem identidades sexuais e de gênero que “[...]
transitam entre a adesão à norma sexual e de gênero dominante e a sua
transgressão, afirmando, apesar de todos os conflitos, as hesitações e as
dificuldades de que ‘outros mundos’ são possíveis”. (BIRMAN, 2005, p. 412)

7 Essa é uma aproximação para a estrutura da língua iorubá sem uma correspondência direta com
uma tradução do idioma. O intuito é enfatizar a forma como o vocábulo se constituiria. O termo
encontrado em iorubá é o Adé que tem como significado a coroa, como advertido no parágrafo.
8 Os trabalhos citados criam uma fissura no campo discursivo e acadêmico das pesquisas sobre
religiões de matriz africana ao trazerem essas discussões não mais como apêndices.

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36 Claudenilson da Silva Dias e Almerson Cerqueira Passos

Mesmo que algumas perspectivas de trabalhos socioantropológicos sobre


esses cultos tendam a ocultar em suas análises as dimensões de gênero e
de sexualidade que se manifestam nos espaços dessas religiões (BASTIDE,
2001; CARNEIRO, 1948; RODRIGUES, 2005), há um outro movimento que
desafia essa normatização sobre o cotidiano religioso e as dissidências
sexuais e de gênero. (DIAS, 2020; MATORY, 1998; RIOS, 2012)
Contudo, não se deve criar uma ilusão de que a presença das Adés [Adẹ̀]
nos Candomblés, especificamente nos da Bahia, é bem-vista ou aceita.
A homossexualidade sempre foi um tabu dentro das CTTro, pois, nesses
espaços, imperam valores morais coloniais que estão eminentemente pró-
ximos do cristianismo. (AZZI, 1987; DIAS, 2020;9 NOGUEIRA, 2020)10 Além
disso, há uma tendência interpretativa de acadêmicos da religião na qual
“[...] as casas-de-santo foram tratadas [...] como comunidades que, trans-
postas da África para as periferias ainda rurais das cidades brasileiras, pre-
servavam de suas origens uma harmonia social e moral que era preciso,
a todo custo, defender”. (BIRMAN, 2005, p. 405)11
O advento das colonialidades do saber/poder/gênero alicerçara as prá-
ticas coloniais em nossas CTTro a ponto de se instituírem novas formas
de lidar com as nossas práticas cotidianas de terreiro, como salienta
Claudenilson Dias (2020) sobre a presença de pessoas trans* nas CTTRo.
Consideramos importante destacar esse aspecto porque, embora haja ainda
algumas práticas desses saberes tradicionais nas culturas africanas, em
muito se deve ao modus operandi dos colonizadores europeus que impu-
seram seus modos de vida às comunidades africanas, como aponta a nige-
riana Oyèrónkẹ Oyěwùmí (2017) sobre a utilização da categoria gênero no
continente africano, sobretudo na iorubalândia.
Os passos de pessoas dissidentes sexuais e de gênero nos Candomblés,
como o saudoso Joãozinho da Goméia, foram cruciais para que as

9 Sugerimos que as relações coloniais estão arraigadas nas práticas cotidianas dos adeptos dos
Candomblés, haja vista que os modos de vida estão muito mais aliados com as práticas judaico-
-cristãs em relação aos ensinamentos das matrizes africanas. Dito isso, esse campo semântico
está sendo desenvolvido em tese de doutoramento de um dos autores desse texto.
10 As dissidências sexuais no continente africano são amplamente discutidas por ativistas dos
Direitos Humanos, intelectuais e outras pessoas interessadas. Nesse campo há uma profusão
de vozes que ressoam desde a emancipação das identidades sexuais e de gênero até o papel do
Estado como vetor de políticas públicas efetivas para a população LGBTQIA+. Pode-se ler mais
sobre em Rea, Paradis e Amancio (2018); e Rea, Fonseca e Silva (2020).
11 Diante disso, as considerações de Landes (2002), no entanto, não gozaram de amplo acordo,
sendo rechaçadas por intelectuais como Arthur Ramos. (BIRMAN, 2005)

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adé [ adẹ ̀ ] 37

homossexualidades masculinas fossem percebidas, entendidas e não mais


apreendidas como danosas, como ficou estabelecido desde o ensaio clás-
sico de Ruth Landes Matriarcado cultural e homossexualidade masculina
(2002b). Neste último, a autora se utiliza da categoria homossexuais pas-
sivos para atribuir aos homossexuais alcunhas pejorativas e enaltecer um
comportamento de rivalidades entre eles e as grandes mães de santo.
Desse modo, nos cabe refletir sobre as impossibilidades estabelecidas
nessas tensas relações, bem como as consequências direcionadas às homos-
sexualidades no âmbito das CTTro, haja vista, como enfatiza Peter Fry
(1982), que a homossexualidade já estava presente nessas comunidades,
muito embora a negação desse fato fosse constante entre as grandes mães
de santo. As Adés [Adẹ̀] revelam a tirania12 persistente nas CTTro, reflexo
das relações coloniais estabelecidas nos espaços de acolhimento e resis-
tência nessas comunidades. Vale aqui ressaltar que, mesmo diante de toda
negação, muitas Adés [Adẹ̀] fizeram crescer casas de Candomblé, embora a
literatura especializada, sobretudo na antropologia mais clássica, reivin-
dique o matriarcado como um advento da religião dos Orixás [Òrìṣà].
Em seus trabalhos no início do século XX, Edson Carneiro (2008) e Ruth
Landes (2002b) fizeram uma defesa de um modelo de família que beira os
valores da família tradicional brasileira. À guisa de exemplo, o posto de iaô
[ìyàwó] era, até então, apenas ocupado pelas mulheres, pois somente elas
“rodavam no santo”, ou seja, somente a elas era facultada a possibilidade
de excorporação, momento esse em que uma divindade espiritual possuía
o corpo de uma pessoa a partir do transe mediúnico. Aos homens, o transe
era negado (e até mesmo era neles abominado), sob a justificativa de que
eles desenvolveriam trejeitos afeminados. (CARNEIRO, 2008)
Essa visão coincide com a criação do cargo de ogã [ògá]. Se os homens
não podiam entrar em transe, alguma função eles deveriam ocupar, sobre-
tudo as de influência. A maior abertura à possessão em alguns Candomblés
e a autorização aos homens a serem sacerdotes seria uma flexibilização da
“tradição” nas antigas casas na Bahia, algo que não foi concedido facilmente,
mas conseguido a duras penas pelos homens que auxiliavam as práticas coti-
dianas das CTTRo, sob total resistência das “senhoras do partido alto” que
conformavam a sociedade baiana do Candomblé. (LANDES, 2002a)

12 Nesse aspecto, tomamos como premissa a utilização da categoria tirania para nos referirmos à
homofobia internalizada nas CTTro que nega a atuação prática e política de homossexuais no
movimento de ampliação das nossas comunidades religiosas.

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38 Claudenilson da Silva Dias e Almerson Cerqueira Passos

Não obstante, mesmo podendo ser empregado para (des)identificar um


filho de santo que se relaciona com outra pessoa do mesmo sexo, Adé [Adẹ̀]
não equivaleria ao termo “bicha” do modelo hierárquico proposto por Fry
(1982), tampouco ao “homossexual”, haja vista que essa categoria aponta
para um indivíduo de um grupo social religioso e comunitário muito espe-
cífico e diferente das “bichas” que estão difusas na cultura pop gay. O termo
tem uma conotação religiosa e se ressignifica a partir da utilização que os
grupos sociais das comunidades religiosas atribuem a esses sujeitos no exer-
cício de suas performances nos Candomblés, “ou seja, na vida do santo”, no
cotidiano e nas vivências nas CTTro.
Adé [Adẹ̀], portanto, seria alguém que “[...] explora seu duplo sentido
sexual e, assim, o seu sentido enquanto feminilidade [...]” durante o transe,
como sinaliza Birman (1995, p. 111), mas também a partir de outras práticas
litúrgicas, comunitárias, haja vista que nem todas as Adés entram em transe.
Essa categoria não assume um lugar tão somente acusatório ou pejorativo,
mas aparece acionada como um construto identitário por meio de autoi-
dentificações, referências a si pelo uso do vocábulo, implicando também
na criação de uma ideia de grupo. (BIRMAN, 1995)
Dessarte, temos um fato histórico que subscreve as análises de Patrícia
Birman: o termo passa a ser incorporado politicamente, em Salvador, pelo
grupo Adé Dudu (Bicha Preta),13 um dos mais proeminentes grupos de
homossexuais negros da Bahia, com atuação nacional desde 1981, ano de
sua criação. Esse grupo fez uma inflexão racial no Movimento Homossexual
Brasileiro14 da época ao problematizar o racismo que operava no seu interior,
mas também a homofobia internalizada no Movimento Negro Unificado
(MNU) ao disputar espaço para inclusão de suas pautas e estimular pes-
quisas sobre as experiências de outros negros homossexuais. (MOTT, 1988;
TREVISAN, 2018)15

13 Muito embora a utilização do termo “bicha” tenha se aplicado aos grupos políticos que se ocu-
param em discutir essas pautas ao longo das décadas de 1970 a 1990, ressaltamos que este não
se aplica às comunidades religiosas com sua ideia de Adé.
14 O Movimento Homossexual Brasileiro foi, durante muito tempo, o termo utilizado pelos ho-
mossexuais que iniciaram as movimentações políticas em torno das discussões sobre as iden-
tidades sexuais. Em São Paulo, nos idos dos anos 1980, o Grupo Somos foi uma das principais
articulações. Já aqui na Bahia, temos como expoente o Grupo Gay da Bahia (GGB).
15 Além dessas referências clássicas para conhecermos as narrativas fundacionais dos movimen-
tos LGBTQIAPN+, contamos aqui com a memória documental de acervos políticos dos pesqui-
sadores em questão.

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adé [ adẹ ̀ ] 39

Nas andanças pela cidade de Salvador, destacavam-se, dentre as casas


noturnas, o Adé Aló, ambiente onde as bichas pretas se permitiam viven-
ciar suas homossexualidades sem os olhares punitivos comuns na Salvador
de fins dos anos 1980, epicentro da epidemia de HIV/aids. Nessa casa e em
outras tantas, os movimentos LGBTQIAPN+ promoviam processos de cons-
cientização sobre sexo seguro e afetividades.
Isso reitera que, ainda que sendo um termo a ser aplicado a qualquer
homossexual masculino identificado como bicha – como comumente era
feito nos centros de São Paulo –, Adé [Adẹ̀] guarda uma relação de pertença
religiosa que define os limites de sua aplicação: aparece também como um
“[...] recurso de organização de um grupo que vai deter coletivamente certos
padrões comuns de comportamento no interior das casas de Candomblés”.
(BIRMAN, 1995, p. 112)
Rios (2013) observa que Adé [Adẹ̀] se instaura dentro de uma relação de
gradações de expressões de masculinidade e feminilidade. Contrastando
com os okó [ọkọ], que seriam ativos independente da parceria sexual e uti-
lizariam signos considerados masculinos, as Adé [Adẹ̀] se relacionariam
exclusivamente com pessoas de mesmo sexo, sendo passivas e veiculando
signos considerados femininos. Assim, apontamos que a identidade Adé
[Adẹ̀] tem uma relação não apenas com a feminilidade, mas com a passivi-
dade. (RIOS, 2012, 2013)
Desse modo, contrapõem-se ao sentido psi16 de homossexualidade, defi-
nida como a relação entre pessoas do mesmo sexo. As performatividades de
gênero, no campo de Rios (2012, p. 69), eram responsáveis por assegurar as
“[...] possibilidades de localização no terreiro [...]”, demonstrando que o sis-
tema de gênero do terreiro em que ele pesquisou dialoga com a hierarquia
religiosa. Dessa maneira, homens com expressões masculinas seriam pre-
feríveis para a função de ogã [ọ̀gá], enquanto aqueles mais femininos não
seriam bem-vistos na posição.17 Essa exigência surge, nas análises do autor,
como um reflexo da posição protetiva que fora atribuída historicamente
a esses homens pelas matriarcas do Candomblé Ketu. (RIOS, 2012, 2013)

16 A nossa utilização desse termo pensa o modo como a socióloga Berenice Bento apresenta as
ideias de um conjunto de ciências que estabelecem normativas para os comportamentos sociais e
de gênero, sobretudo no que tange às identidades transgênero. Para mais ver: Bento (2006, 2008).
17 Considerando que a maior ou menor presença de homens femininos que podem ou não serem
interpretados como Adés [Adẹ̀] conforma-se como parâmetro para aferição de tradicionalidade
de um Candomblé, Rios (2013) também comenta a existência de CTTro nas quais a feminilidade
de homens não configura um problema, um valor negativo, uma mácula à tradição, e que, inclu-
sive, serão pejorativamente identificados como “candomblés do veadeiro”.

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40 Claudenilson da Silva Dias e Almerson Cerqueira Passos

Ademais das contribuições de Patrícia Birman (1995), cabe aqui uma


crítica às suas análises feitas sobre a relação das Adés [Adẹ̀] com o transe,
a espiritualidade e a vida religiosa. Baseada em alguns relatos e algumas
poucas entrevistas, ela faz constantemente juízos de valor sobre o que consi-
dera motivos fúteis apresentados pelas Adés [Adẹ̀] para a inserção delas nos
Candomblés. Esse discurso da acolhida indistinta de todos os corpos ainda
é muito propagado em nossas tradições religiosas, muito embora não seja
uma prática efetiva do povo do Candomblé. A autora sugere, ainda, uma ins-
trumentalização da possessão, com vistas ao reforço da feminilidade, o que
implicaria numa relação um tanto perigosa dos Orixás [Òrìṣà] e da religião.
Desde a publicação do trabalho Identidades trans* e vivências em
Candomblés de Salvador: entre aceitações e rejeições (2020), Claudenilson
Dias, autor deste texto, vem reiterando a falácia desse discurso diante da
incapacidade de líderes religiosos conceberem a ideia de acolhimento indis-
tinto das identidades trans* em suas CTTro. Contrapondo-nos a essa posição
de Birman (1995), reinterpretamos suas análises e compreendemos que a
construção semântica de Adé [Adẹ̀] está relacionada à dimensão simbó-
lica da arte, promovendo espaços de sociabilidade nas CTTro, através da
posse de qualidades corporais e visuais aplicadas no exercício religioso, que
implicam no domínio da dança, na valorização estética de Orixá [Òrìṣà],
aspectos que estão voltados para a vida religiosa, para a vida no santo.
(BIRMAN, 1995)
Ainda que tenha caído no contexto mais geral de sociabilidade LGBT,
sobretudo pela sua inserção no pajubá/bajubá, Adé [Adẹ̀] não deve ser com-
preendida strictu sensu como homossexual, gay ou bicha, por ser, também,
uma categoria utilizada para descrever pessoas que tenham performativi-
dades de gêneros e sexualidades distintas da norma heterossexual. (RIOS,
2012, 2013) Não obstante que encontremos, no nível da expressão sexual e
de gênero, correspondências entre os signos, há outras atribuições de sen-
tido que constituem e também diferenciam esse vocábulo.
Quando perguntadas sobre a existência de alguma palavra para gay/
viado/bicha na religião, muitas pessoas de axé responderam com o termo
Adé [Adẹ̀]. As formas de primeiro contato com a expressão variam: pode
ser repassada pelo sacerdote ou sacerdotisa em resposta a uma indagação
direta de algum filho de santo; acessada através do pajubá/bajubá; desco-
berta na relação direta com outros frequentadores de terreiros; com a inte-
ração com irmãos de santo; com a consulta a dicionários; ou com uma busca
na internet. Embora nos pareça que a expressão esteja caindo em desuso,
ainda é possível ver o vocábulo ser citado por pessoas de axé [àṣẹ], mesmo

glossario-das-desidentidades-MIOLO.indb 40 13/09/2023 07:13


adé [ adẹ ̀ ] 41

que esporadicamente, como, por exemplo, na obra de Marcelo Ricardo que


aponta para as nossas afetividades, e direcionada Aos meus homens (2021,
p. 75, grifo nosso):

Treme e faz tremer


Seu agueré diz de novo que o tempo é agora
E eu danço para lhe dizer
Eu danço para lhe dizer
Nem cavaleiro do zodíaco, nem do apocalipse
Adé é guardião do axé
Axé, Adé!!!

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glossario-das-desidentidades-MIOLO.indb 44 13/09/2023 07:13
45

ARROMBADO

Mylene Mizrahi

A expressão “arrombado” tem usos e entendimentos amplos. Uma rápida


busca pela internet deixa isso evidente. Arrombado pode referir-se a uma
porta que tenha sido forçadamente aberta ou a um cofre que foi violado
de maneira a prescindir de seu segredo. O termo pode ainda referir-se à
pessoa que foi colocada em lugar passivo no momento do intercurso sexual
e teve seu ânus penetrado, à sua revelia e com violência. Segue-se daí sua
associação a diferentes adjetivos como humilhado, derrotado ou mesmo
babaca.1 O sentido figurado do termo, vemos, deriva da materialidade
dos corpos não humanos, como no caso da porta e do cofre, ou de corpos
humanos. Mas poderíamos pensar que o sentido figurado, como aplicado
aos corpos humanos, seria independente do dado biológico sexual. Um
ânus, seja ele parte de um corpo humano feminino ou masculino, é sempre
passível de ser arrombado.
Uma vagina, certamente poderia ser arrombada, no sentido de que
penetrada à força e à revelia; o termo, contudo, não é acionado para

1 Ver por exemplo as definições no Dicionário Priberam (Ver em: https://dicionario.priberam.org/


arrombado), no Dicionário Online de Português (Ver em: https://www.dicio.com.br/arromba-
do/), no Dicionário Infopédia da Língua Brasileira (Ver em: https://www.infopedia.pt/diciona-
rios/lingua-portuguesa/arrombado), no Dicionário Informal (Ver em: https://www.dicionario-
informal.com.br/significado/arrombado/42/).

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46 Mylene Mizrahi

designar esses casos de violação. Os usos populares, ao concederem con-


tornos outros ao sentido figurado, convertem o termo em gíria ofensiva.
Emblematicamente, o insulto se institui de fato quando o termo é empre-
gado entre homens, tendo por referência outros homens. Se o termo pode
ser usado por mulheres e entre mulheres, o seu potencial ofensivo se atu-
aliza entre homens.2 Isso não significa, contudo, que o termo se restrinja à
sua conotação homofóbica, nem que consista em ofensa dirigida exclusi-
vamente a homens homossexuais.
Podemos dizer que o xingamento se desdobra não apenas da materia-
lidade do sexo, mas do significado atribuído às relações sociais instituídas
pelo sexo. Relações sociais que permitem desestabilizar a própria ideia de
identidade sexual, que seria fundada na prática sexual – em nosso caso, a
de homens que praticam sexo entre si – e que estaria no próprio cerne das
noções de senso comum informando a categoria arrombado. Tais noções
tomam assim como óbvio que todo e qualquer homem que mantém rela-
ções sexuais com outro homem é um “homossexual”, alguém cujo desejo
só se realiza junto a uma pessoa do mesmo sexo. Uma suposta obviedade
que há algumas décadas a literatura etnográfica vem ajudando a desfazer,
como no caso melanésio em que jovens homens são iniciados na vida adulta
masculina em ritos de passagem nos quais recebem em seus ânus o sêmen
de seus tios. (HERDT, 1998) Em outros termos, com o nexo de relações que
emergirá de uma etnografia do arrombado, esperamos que emerja também
modos contraintuitivos para pensarmos nosso próprio sistema do sexo/
gênero. (RUBIN 2017)
Ao seu sentido literal e ao que surge de seus usos populares e de senso
comum, adicione-se então o significado etnográfico do termo, conceituado
na rede de conexões que se articulou em torno do cantor de funk carioca
Mr. Catra. Aqui a noção de sujeito homem emergirá como contraimagem
que permitirá mais claramente notar o modo pelo qual o verbete arrombado
pode contribuir para este glossário de (des)identidades sexuais, permitindo
repensar a própria noção de identidade. Esse último aspecto será reiterado
pela pessoa não circunscrita e compósita (LATOUR, 2005; STRATHERN,

2 Por exemplo, Moises Lino e Silva, em comunicação pessoal, nota que ser “larga”, com o empre-
go no feminino, poderia ser motivo de orgulho para alguns jovens LGBT da Rocinha. Essa co-
notação positiva pouco frequente pode ser corroborada pelo significado igualmente episódico
encontrado no Dicionário Michaelis UOL em que arrombado pode ser, além dos significados
encontrados em outros sítios, alguém “que tem muita sorte”, é “afortunado” (Ver em: https://
michaelis.uol.com.br/moderno-portugues/busca/portugues-brasileiro/arrombado).

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arrombado 47

2004) que acompanhará a conceituação etnográfica e que tem nos bens de


riqueza itens cruciais para a produção de si. Portanto, o sentido de arrom-
bado emergirá do contraste com um certo modo de ser homem, cuja per-
formatividade acessamos por meio da materialidade dos corpos (BUTLER,
2017), e da materialidade dos objetos. (MILLER, 2005)
Mr. Catra faleceu em fins de 2018, antes de completar 50 anos. O artista
é figura que marcou como poucos a cena funk nacional, tendo sido consi-
derado pela crítica especializada o artista mais importante do ritmo em
seus primeiros 30 anos de existência. (ESSINGER, 2018) Junto à sua rede de
relações, empreendi o trabalho de campo que alicerçou minha tese de dou-
torado, conduzido ao longo de 18 meses, em três diferentes situações etno-
gráficas: as performances artísticas e os deslocamentos pelo Rio de Janeiro,
sua área metropolitana e cidades adjacentes para realizá-las; o estúdio de
gravação musical Sagrada Família, adjacente à casa da família Catra; as
relações familiares de Mr. Catra, nestas incluídas o ambiente da casa e a
relação com sua esposa Sílvia, seus filhos e outros parentes e afins. Desse
ambiente mais doméstico e familiar fizeram parte ainda as incursões para
compras de alimentos e para a produção da beleza corporal.
Nesse nexo de relações, ainda que o termo arrombado faça referência
genérica ao homem que é penetrado de forma violenta ou à sua revelia e
possa ser usado como sinônimo de “viado” ou “viadinho” – termos que,
a princípio, colocam em dúvida a masculinidade daquele que é assim
nomeado – ele era acionado, preferencialmente, para desqualificar alguém
do sexo masculino que, de alguma maneira, pudesse trazer para aquele
que acusa ou xinga algum tipo de prejuízo, em especial prejuízo financeiro­­
e/ou material. Por contraste, “sujeito homem”, outra categoria nativa, era
acionado de modo a igualmente designar alguém do sexo masculino, mas
que não falta com sua palavra, possuindo assim “honra”. O que não estava
referenciado à sexualidade, de modo que um homossexual poderia per-
feitamente ser um “sujeito homem”. Vemos assim que ambos os termos –
arrombado e sujeito homem – em vez de fazerem referência à sexualidade
enquanto prática, recorrem a papéis de gênero que derivariam do sexo –
aqui entendido enquanto dado biológico – para, outrossim, fazer referência
a condutas morais, como a retidão e o cumprimento ou não cumprimento
de compromissos previamente assumidos.
Em visita aos meus cadernos de campo, encontro o termo arrombado
acionado junto a relações same-sex e eminentemente masculinas. O termo,
naturalmente, poderia ser proferido na presença de mulheres, mas ele não
se dirigia a elas e colocava-se, principalmente, em relação aos homens. Além

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48 Mylene Mizrahi

disso, o termo era acionado fundamentalmente em conjunturas relativas à


festa, aos shows e às performances profissionais, preferencialmente durante
os deslocamentos que fazíamos para cumprir a agenda profissional. Era,
portanto, em ambientes nos quais o dinheiro e o ganho financeiro estavam
em causa que o termo arrombado era mais frequentemente acionado.
Desse modo, arrombado poderia ser o presidente da República, cujas
visitas costumam acarretar desvios em vias públicas, de modo a facilitar o
deslocamento e garantir a segurança da autoridade federal. Como na tarde
em que aguardávamos por Mr. Catra na Fundição Progresso, tradicional casa
de eventos na Lapa, Zona Central do Rio de Janeiro. Catra estava atrasado
para o ensaio e, segundo ele mesmo nos avisara, estava retido no engarra-
famento da Avenida Passos. A “culpa” era do “arrombado do presidente”.
O “viado do Lula”, comentava-se, estava na Rocinha, a icônica favela em
São Conrado, bairro da Zona Sul da cidade, e teria vindo ao Rio apenas para
“perturbar”. A produtora do artista, que também acompanhava o ensaio,
duvidava que o atraso de Mr. Catra fosse causado pelos desvios no trajeto.
Ela tinha a informação, dada por um dos motoristas “do bonde dele”, de
que estavam “na Riachuelo”, rua distante a apenas 1,5 km do local em que
nós mesmos estávamos.
Ainda mais explicativo do significado etnográfico de arrombado é seu
o emprego para designar aquele de quem se desconfia que não honrará
um compromisso, reiterando a articulação com o ganho financeiro para
seu sentido êmico.
Os deslocamentos de Mr. Catra eram feitos junto a um comboio de
carros – como no episódio descrito logo acima, ocasiões em que meu pró-
prio carro poderia fazer parte da composição – ou em um único veículo a
transportar o coletivo e eventuais convidados. Como na noite em que, após
uma apresentação na Kaldeirão, casa de shows em Rio das Ostras, muni-
cípio no litoral norte do estado do Rio de Janeiro, Mr. Catra disse, já sentado
no último banco da van: “estou cocando”. “Cocar” pode significar também
“espiar” e com o emprego do termo o artista reiterava que estava atento à
situação. E grita: “Cadê aquele arrombado que vinha trazer o dinheiro!?”.
O “arrombado” dessa vez é o contato da casa de shows que estaria trazendo
o pagamento da noite que costuma ser proporcional ao público pagante, o
que invariavelmente abria precedentes para querela em torno do valor cor-
reto a ser pago ao artista por seu contratante.
O termo arrombado retorna em outro episódio, desta vez em uma con-
juntura de explícita desconfiança, formada na própria casa onde vivia a
família Catra. A residência era contígua ao estúdio de gravação e, por isso

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arrombado 49

mesmo, marcada pelo entra e sai de artistas e parceiros de criação, de negó-


cios e de outros acertos. Apesar de ser ambiente doméstico, a casa não se
definia por uma noção estrita de privacidade ou pela família nuclear.
Mr. Catra se preparava para a “Festa da Giselle Bündchen” The Week,
clube noturno na mesma Zona Central do Rio de Janeiro em que fica a já
mencionada Fundição Progresso. Giselle, a modelo brasileira de carreira
e renome internacional, desfilaria naquela tarde na Rio Fashion Week, a
semana de desfiles de moda do calendário oficial da cidade, e seria a home-
nageada da festa promovida naquela noite pela Colcci, badalada marca de
jeans. Sílvia ajudava Catra a escolher a roupa que levaria na mochila para
a festa, quando ele mencionou a “camisa de correntes”. Ela respondeu
dizendo que provavelmente estaria no “flat”, o apartamento que Mr. Catra
mantinha no Recreio dos Bandeirantes, não muito distante da casa em
Vargem Grande, também na Zona Oeste do Rio de Janeiro. E acrescentou,
perguntando: – "para que ir 'todo acorrentado' se todo mundo já sabe que
você 'é o cara'"? Eu conhecia a camisa em questão, de fundo azul royal e
toda estampada por correntes douradas de elos largos, escolha que pareceu
a Sílvia excessivamente chamativa para um artista que já tinha, em seu
entender, notoriedade consolidada.
A noite caía quando Mr. Catra decidiu mudar o seu look. Nesse momento,
foi interpelado por Binho e Fernando, como os chamarei. Os rapazes o
cobravam pelo pagamento de um serviço que lhe prestaram e insinuavam
que ele estaria fazendo agora como faria seu próprio empresário que, pare-
ciam entender, ficaria com o dinheiro alheio. Mr. Catra, com a serenidade
que lhe era peculiar, sorriu e, em seguida, “passou um rádio” para Pigmeu,
perguntando a seu empresário, por meio do rádio comunicador, se “aquele
arrombado” que deveria ter depositado um cheque em sua conta corrente já
o tinha feito. Após a breve conversa, ele pediu aos dois rapazes que aguar-
dassem, pois em breve Pigmeu chegaria com o dinheiro. Os dois preferiram
não esperar e sugeriram acompanhar Catra até o banco. Catra concordou,
mas disse que iria “de moto”. Ele foi até a garagem no fundo da casa, veio até
o jardim onde estávamos, deu uma volta com sua motocicleta, ­exibindo-se,
e saiu pelo portão traseiro, rumo ao banco.
Nos relatos das situações que expus acima vimos os bens de riqueza
acompanharem as performances de masculinidade funk. Mais do que
isso, eles reiteram que não é possível tomar o gênero como performativo
(BUTLER, 2017) sem a ancoragem das coisas com as quais produzimos
o corpo e a nós mesmos. (MIZRAHI, 2019) Portar um maço de dinheiro,
exibir motocicletas e carros, ostentar armas, joias e garrafas de bebida,

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50 Mylene Mizrahi

andar enlaçado a uma mulher em cada braço, revelam como a noção de


pessoa masculina funk é feita na dependência desses mesmos elementos.
(MIZRAHI, 2018) Nesse nexo, acionar o termo arrombado coloca aquele que
é alvo do xingamento na posição de destituído de masculinidade porque
não satisfaz critérios de moralidade. Desse modo, aquele que não paga, o
que deve dinheiro, o que não honra seus compromissos, não é suficiente-
mente homem. Não apenas não “porta”, como não dá conta de “portar”
bens de riqueza.
Naturalmente que “portar” – dinheiro, joias, armas, bebidas importadas
– não equivale a “honrar” os compromissos financeiros que se assume.
Contudo, para honrar compromissos é preciso deter os recursos que a exi-
bição ostensiva de bens de valor faz crer que se possui. Portar sinaliza que
se está diante de um potencial honrador de compromissos. Analogamente,
proferir o termo arrombado permite que o enunciador se diferencie desse,
reiterando, nos termos acima, sua masculinidade e permitindo performa-
tizar isso que estou designando como masculinidade funk.
Como na noite em que nos deslocávamos, mais uma vez em alta veloci-
dade, pelas pistas da cidade, agora rumo à Favela do Borel, na Tijuca, bairro
da Zona Norte do Rio de Janeiro, para o baile que comemoraria o aniver-
sário do “de frente” do morro. Estávamos em um único carro de passeio,
uma Doblò, carro da marca Fiat que poderia ser considerado como uma van
em miniatura. Seguíamos com Thamyris, a filha mais velha de Mr. Catra,
alguns de seus primos, além da mãe dela, que já tinha sido casada com
Mr. Catra, e o marido da mãe, que conduzia o veículo. Carlos, como o cha-
marei, dirigia em aceleração, parecendo querer se exibir. Ao se ver obrigado
a reduzir a velocidade de seu carro para evitar se chocar a outro que saía do
acostamento, ele buzinou e reclamou, como se falando com o motorista do
carro alheio: – uma vez feita “a merda”, que a faça “até o fim, arrombado”.
De fato, eu não pude deixar de pensar que Carlos mimetizava o ex-marido de
sua atual mulher, produzindo como um modelo reduzido (LÉVI-STRAUSS,
1989) da performance do artista funk. Dirigindo sua minivan em alta velo-
cidade pelas pistas do Rio, carregando, entre outras pessoas, aquela que já
foi a esposa de Catra, afirmava, por meio das coisas e da palavra, que era
sujeito homem.
Se arrombado extrapola o significado advindo da materialidade do
corpo, ele retorna a ela. Pois arrombado, enquanto insulto, parece erigido
pelo entendimento de que o homem que pratica sexo anal é não apenas vul-
nerabilizado pela prática, mas seria também pessoa fraca, que não resiste
aos próprios impulsos ou não consegue evitar os impulsos alheios, acusação

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arrombado 51

que muitas vezes incorre também sobre a mulher em situação de estupro.


Do mesmo modo, este homem seria pouco confiável, como aquele que não
honra seus compromissos. Mas ainda assim, o dado sexual não é incontor-
nável, como reafirma a expressão “sujeito homem”, a categoria nativa que
designa a pessoa do sexo masculino que não falta com sua palavra, seja ela
homossexual ou heterossexual.
É a partir dessa lógica que arrombado é empregado em conversas esta-
belecidas entre uns. E se é incomum escutar uma mulher ser chamada de
arrombada, assim como também é raro encontrar mulheres que empreguem
o xingamento, seja para dirigi-lo a um homem ou a uma mulher, o ânus
feminino pode ser “invadido”. Invasão que na canção demanda sedução
e erotismo, mas é operação que costuma acontecer à revelia do outro e é
comumente perpetrada por vários agentes.

A gente só invade
Depois que a gata pisca
Bum bum não se pede
Bum bum se conquista.
(BUM BUM..., 2009, grifo nosso)

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Intérprete: Mr. Catra. [S. l.]: Sagrada Família, 2009. (2 min).

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53

BARBIE

Edward Armando González Cabrera

No fundo ressoa a música, o ambiente está lotado e as luzes coloridas


realçam os corpos esculpidos. Reunidas em pequenos grupos na balada,
as barbies estão dançando, de cabelos curtos e barbas delineadas, com estilo
masculino. Vestem roupas que estão na moda, mas tiram as camisas dei-
xando-as penduradas nos bolsos das calças. Seus torsos nus e musculosos
revelam disciplina, conferindo-lhes semelhança, sincronia e proximidade.
O termo barbie designa homens homossexuais, de camadas socioeconô-
micas médias e altas, geralmente cisgênero, brancos e considerados jovens,
cujos corpos denotam cuidado e trabalho por meio de tecnologias de gênero.
(DE LAURETIS, 1987)
Dentre essas tecnologias estão o esporte, notadamente aqueles rela-
cionados às academias e outras atividades fitness (GARCIA, 2000), a moda
(CEZAR; MOSER, 2012) e a alimentação, especificamente suplementos nutri-
cionais, proteínas e “bombas”. (LIMA, 2001; MOURA, 2019; ROCHA, 2016)
Ainda que o corpo musculoso seja associado a comportamentos masculinos,
dentro do estereótipo do que é um homem (WIENKE, 1998), para as barbies
a performatividade masculina parece ser heterogênea. Desse ponto de vista,
elas fazem convergir, na sua particular configuração corporal e performativa,
diferentes marcadores da diferença: a sexualidade, a classe social, a raça, a
idade e os papéis de gênero, e, por isso mesmo, colocam o corpo no centro
de sua própria sociabilidade. (FRANÇA, 2007; OLIVEIRA, 2016)

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54 Edward Armando González Cabrera

Peter Fry e Edward MacRae (1985) afirmam que a homossexualidade


varia não somente segundo a época, mas também segundo o país, as regiões
e as classes sociais. A multiplicidade de posições e experiências de um indi-
víduo permite compreender a heterogeneidade da definição de homosse-
xualidade. (FRY, 1982) A aparição das barbies nas últimas duas décadas do
século XX tem a ver com um distanciamento do estereótipo do gay afemi-
nado. (MISKOLCI, 2013; TRINDADE, 2004) Com uma forte conexão às cul-
turas gay da América do Norte e da Europa Ocidental, as barbies surgiram
no Brasil primeiro nas cidades do Rio de Janeiro e de São Paulo e logo se
difundiram em outros grandes centros urbanos do país, como, por exemplo,
Porto Alegre, em meados dos anos 1990. (KLEIN, 1999)
Trindade (2004) aponta três características das barbies: a prática de
atividades esportivas em academias, a mise en scène de seus corpos mus-
culosos (através das roupas apertadas, por exemplo) e um repertório de
comportamentos considerados masculinos. Contudo, pesquisas etnográ-
ficas têm mostrado que alguns homens homossexuais julgam tais posicio-
namentos como uma “falsa” masculinidade. (KLEIN, 1999) A pesquisa de
Rios e demais autores (2019), no Recife, identificou a utilização do termo
“bicha-boy” como sinônimo de barbie, para exprimir a ambiguidade com
que a masculinidade das barbies é percebida por outros homossexuais.
Numa pesquisa abordando o consumo de suplementos alimentícios por
homossexuais na cidade de Palmas (ROCHA, 2016), foi encontrado o uso
do termo “falso hétero” para referir-se às barbies. Essa performatividade
dos comportamentos masculinos é também requisitada no mercado do
sexo, sendo materializada na figura do “michê”, um trabalhador sexual
viril. (PERLONGHER, 1987)
Os papéis sexuais tradicionalmente se restringiam à dicotomia hierar-
quizada entre parceiro passivo e parceiro ativo, sendo o primeiro estigma-
tizado e a quem se atribua um corpo mais fraco; o segundo era valorizado
como expressão de virilidade, de força, vigor, fôlego, dominação, comu-
mente encarnada em corpos musculosos. (FRY, 1982; ROCHA, 2016)
Contudo, “The gueto is over”, como escreveu Charles Klein (1999, p. 239,
grifo nosso) e hoje há uma diversificação das comunidades gays no Brasil.
Dentro da pluralidade de maneiras de viver a homossexualidade, ser jul-
gado como barbie por outros homens homossexuais pode subentender a
atribuição de comportamentos homofóbicos a essa última categoria, pela
suposta rejeição do gay afeminado (da “bicha”, da “pintosa”, por exemplo),
além da desvalorização dos corpos de homossexuais com sobrepeso ou mais
velhos. (LIMA, 2001; ROCHA, 2016)

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barbie 55

Nesse sentido, ainda que a categoria barbie seja nativa no contexto


LGBT, ela é mais atribuída do que reivindicada. Assim, etiquetam-se os
homens considerados barbie, mas a maioria deles não se autodenominam
dessa maneira, preferindo termos como “malhados” ou “sarados”. Essa
situação é diferente para outras categorias nativas, como, por exemplo, os
“ursos”, que reivindicam o uso dessa categoria para si mesmos. (TRINDADE,
2004) Segundo Garcia (2000), o uso do termo é conotado de sátira e ironia,
com uma importante representação imagética do “corpo perfeito”. Em
outras palavras, o termo barbie carregaria uma acepção negativa, com múl-
tiplos ângulos avaliativos (de classe social, de idade, de sexualidade). (REIS,
2013) Torna-se importante notar aqui a reapropriação de representações
heterossexuais, dentre elas, o desenvolvimento de corpos musculosos.
Essas categorias que circulam entre homens homossexuais têm também
uma funcionalidade para explorar territórios de “pegação” ou sedução.
(OLIVEIRA, 2016) Rocha (2016) ressalta o papel do corpo nessas sociabili-
dades, o qual toma um grande espaço nos aplicativos de encontro e de trocas
de nudes. Esses aplicativos exigem algumas informações que permitem a
classificação dos indivíduos segundo, por exemplo, o tipo de musculatura
(oferecendo opções como “torneado”, “grande”, “musculoso”, “magro”, “par-
rudo”), tribo (como “malhadinho”, barbie, “urso”, cafuçu, “trans”) e o inte-
resse sexual (“ativo”, “passivo”, “versátil”). Contudo, Trindade (2004) alerta
que as fronteiras entre essas categorias ou subgrupos não são tão claras,
podendo existir pontos de convergência. Ele evoca, notadamente, a arena
política, que se evidencia na reivindicação de direitos ou na luta contra a
homofobia (marchas do orgulho LGBT).
Para as barbies, a prática de exibir o corpo (através de roupas ajustadas,
por exemplo) não se limita à academia, mas inclui também outros espaços
urbanos como bares, praias e principalmente boates. O estilo pode ser asso-
ciado também às marcas de roupa, às partes do corpo exibidas, aos pente-
ados, à depilação dos pelos corporais e à incorporação de tatuagens nessa
estética. Mesmo que existam lugares específicos frequentados principal-
mente pelas barbies, elas podem também se juntar a outros tipos de homos-
sexuais, como os ursos, ou até a heterossexuais.
Desse modo, toma forma uma intimidade entre as barbies, marcada
pela classe social e a corporalidade. Por exemplo, algumas boates de zonas
nobres da cidade de São Paulo são prediletas desses homens que, por sua
vez, formam nesses ambientes pequenos círculos onde dançam com o torso
nu (LIMA, 2001) e exibem roupas e estilos de cabelo similares. Em obser-
vações etnográficas (TRINDADE, 2004), alguns homens falam que esses

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ambientes, por exemplo as baladas, exigem a nudez do torso, pois as tem-


peraturas são altas. Contudo, a exibição dos corpos parece ter um papel
importante como forma de flerte e sedução. Outras barbies justificam essa
exposição como parte essencial do trabalho como gogo-dancer. (AYROSA,
2012; FRANÇA, 2012; PEREIRA; TRINDADE, 2004)
Compreender os atributos a partir dos quais um homem chega a ser
identificado como barbie implica em analisar as produções de imagens da
estética masculina. No contexto urbano brasileiro, as barbies foram prece-
didas por outras figuras de corpos masculinos. Trindade (2004) pontua que
as condições para a emergência das barbies produziram-se num contexto
de intercâmbios transnacionais e de transformações nas representações
visuais (fotos, desenhos, publicidades, por exemplo). Os corpos muscu-
losos e os comportamentos atrelados a uma masculinidade hegemônica1
nas barbies é reconhecível desde o final do século XX.
Contudo, também é possível identificar outras fontes que contribuem
para a descrição desse fenômeno na virada do século XIX para o século
XX. Nas dinâmicas biopolíticas dos marcos nacionalistas europeus, os
homens eram estimulados a trabalhar sua musculatura por meio da prá-
tica de exercícios físicos, para servir a seus países, serem pilares da família
e bons cristãos. (COURTINE, 2011) Nessa conjuntura foram criados os pri-
meiros ginásios na Europa e os médicos passaram a prescrever esportes para
melhorar a saúde. Figuras esportivas importantes entram em cena nessa
época, como o alemão Eugene Sandow (1867-1925). Ele foi o primeiro ícone
do fisiculturismo, começando sua carreira num circo como um strongman
– artista que fazia da exibição de seu corpo musculoso um espetáculo.
Em 1889, Sandow ganha sua primeira competição de fisiculturismo no
Royal Albert Hall, em Londres, e sua fama aumenta quando participa na
Exposição Universal em Chicago em 1893. A partir de então, fotografias de
seu corpo começam a circular como cartões postais. Ele pode ser consi-
derado como um dos primeiros empreendedores da transformação física.
(ANDREASSON; JOHANSSON, 2014)
Charles Atlas (1883-1972), um imigrante italiano radicado nos Estados
Unidos, tornou-se o segundo ícone do fisiculturismo, dando assim continui-
dade ao trabalho de Sandow. Durante a Primeira Guerra Mundial, e com as
transformações sociais que dela decorreram, houve a mudança no papel do

1 Forma socialmente valorizada de ser homem. A esse respeito, consultar a obra de Raewyng
Connell (2005).

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pai e do homem americano, provocando um período de crise da masculini-


dade. A musculação era, aos olhos de Atlas, um meio de redenção nacional,
uma possibilidade de apoiar a virilidade. Esses elementos levaram ao rápido
desenvolvimento do fisiculturismo, bem como à organização nacional e
internacional de uma indústria de fitness precoce e ao desenvolvimento
de uma forma moderna de fisiculturismo, especialmente nos anos 1960 e
1970. (ANDREASSON; JOHANSSON, 2014)
Com a criação de diversos manuais esportivos e o desenvolvimento da
fotografia, o corpo musculoso vira símbolo e ideal de realização mascu-
lina. Junto à grande circulação de imagens dessas corporalidades, desen-
volve-se sua erotização, fonte para fantasias e desejos homossexuais que se
materializaram, por exemplo, na venda de fotografias ou revistas por cor-
respondência no final do século XIX. (BRAUER, 2017) David Johnson (2019)
chama a atenção com relação à emergência de revistas fitness sutilmente
direcionadas a um público de leitores homossexuais no final da Segunda
Guerra Mundial. Nelas as poses eram sugestivas e as peças de roupa cada
vez menores. Johnson (2019) ressalta o trabalho do fotógrafo Bob Mizer,
centrado na captura de imagens de homens jovens e musculosos. Essas
imagens se difundiram no mundo Ocidental quando Mizer vendia suas
fotografias por via postal e, posteriormente, com a criação da revista Physic
Pictorial, em 1951. O fenômeno contribuiu para a consolidação e circulação
de um imaginário da sensualidade masculina, cuja estética do corpo mus-
culoso se incorporou entre homens gays e serviu como objeto de fantasia.
O autor também fala da influência de outras imagens explicitamente homo-
eróticas, como os desenhos de Tom of Finland (1920-1991), artista finlandês
que representava homens muito musculosos, com genitais grandes e ves-
tindo uniformes associados a ofícios considerados masculinos (como poli-
ciais, militares, marinheiros e vaqueiros).
Outros pesquisadores (CEZAR; MOSER, 2012; REIS, 2013) afirmam que
a erotização desses corpos masculinos também encontra eco nos anos 1970
e 1980 com o grupo de música Village People, em que cada artista repre-
sentava um personagem masculino (cowboy, índio norte-americano, mari-
nheiro, policial), voltado para um público homossexual. Segundo Johnson
(2019), todos esses processos tiveram um papel essencial na configuração de
um senso mais forte de comunidade nacional entre os gays após a Segunda
Guerra Mundial.
Os corpos musculosos, atléticos e “em forma” tornaram-se, assim, um
ideal apresentado pela cultura fitness. (SASSATELLI, 2010) O capitalismo
tem uma influência sobre as produções dessas corporalidades e a formação

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de um padrão de beleza, o corpo como capital mobilizável em diferentes


contextos. (D’EMILIO, 1983; GOLDENBERG, 2011) As academias são um
importante cenário para a transformação dos corpos nessa direção. É impor-
tante ressaltar que esse campo deixou de se restringir à “subcultura” e se
expandiu, articulando-se a discursos de saúde contra o sedentarismo e o
estresse urbano. (SASSATELLI, 2015) Andreasson e Johansson (2014) des-
crevem esse fenômeno global como uma “revolução do fitness”, caracteri-
zada pela multiplicação das academias e pela redução das taxas de inscrição,
transformando-as em lazer de massa para a população dos centros urbanos.
As academias e as atividades fitness são centrais para as barbies
(GARCIA, 2000), tornando-se parte das trajetórias desses homens homos-
sexuais de zonas urbanas. A escolha de uma academia não se deve somente
ao que ela oferece para a prática esportiva, mas também às possibilidades
de achar um “público interessante”, aspecto importante na “experiência
de corporificação” (TRINDADE, 2004, p. 166), pois ali se desenvolvem e
reforçam relações (como malhar com amigos) que influenciam na adesão
à cultura fitness através do aprendizado das técnicas pelas quais o corpo é
modificado. Do mesmo modo, para além da procura de “boas máquinas”
ou um “personal” qualificado, as academias podem se constituir como um
mercado de sociabilidade para a sedução e o sexo. (FACCHINI; FRANÇA;
BRAZ, 2014)
Seja nas academias, seja nas baladas, seja nas praias, lugares de fabri-
cação e exibição do corpo, as barbies revelam a plasticidade corpórea e a
maleabilidade do gênero pela incorporação de códigos “sinônimos” da hete-
rossexualidade. Dentro do espectro de grupos homossexuais, a compre-
ensão do nascimento das barbies implica historicizar a aparição de modelos
de masculinidade, especialmente em zonas urbanas, considerando a matriz
relacional em que esses indivíduos se inserem.

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BICHA-BOY

Moisés Lino e Silva

“Você vai gostar da bicha, Moisés!”. Afirmou Natasha, olhando para mim
com empolgação. “Qual o nome dele mesmo? É Márcio?”. Confirmei,
enquanto esperávamos pelo amigo de Natasha em uma parada de ônibus
na Favela da Rocinha, Rio de Janeiro. “Sim! E o Márcio é bicha-boy igual a
você. Acho que vocês vão se dar bem!”. Eu sorri, mesmo sem entender exa-
tamente o que Natasha havia acabado de dizer. Continuei: “Isso quer dizer
que ele é gay?”. Ela balançou a cabeça negativamente: “Ele é bicha-boy!
Tipo você, usa calça jeans, camiseta, entendeu? Não é uma bicha liberada
assim como eu”. Aproveitei a oportunidade para elucidar o uso de alguns
termos: “Você é bicha ou travesti?”. Ela começou a ficar impaciente com a
conversa: “Travesti, claro! Com muito orgulho!”. Respondeu e, ao mesmo
tempo, começou a acariciar os próprios seios como prova da última afir-
mação. Calei-me e continuei a escutar: “Mas toda travesti é bicha também!
Só não sou uma bicha encubada como vocês, que ficam dando uma de boy.
Uma bicha de verdade veste assim como eu!”. Natasha mostrou o sutiã de
renda preta que estava usando e, em seguida, apontou para a minissaia pra-
teada, que mal cobria as nádegas dela naquela noite.
Morei na Favela da Rocinha nos anos de 2009 e 2010 conduzindo pes-
quisa etnográfica. Durante esse tempo, aprendi diversos novos vocábulos,
muitos deles com minhas amigas travestis. Compartilho aqui alguns signi-
ficados possíveis do verbete bicha-boy e especulo, também, sobre algumas

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64 Moisés Lino e Silva

consequências de travestis usarem tal conceito como forma de categori-


zação. Especificamente, considero que bicha-boy (boy, do inglês: menino)
não opera simplesmente como uma versão mais masculinizada do termo
“bicha”. O conceito bicha-boy atua, minimamente, de três formas distintas.
Por um lado, assim como acontece com o termo bicha,1 ele promove uma
(des)identificação em relação àqueles considerados heterossexuais.
Contudo, o termo indica uma inflexão mais masculina ou feminina
(a depender do contexto) em relação a outros termos mais conhecidos (gay,
por exemplo). Por fim, na fala de algumas travestis, o conceito também
indica uma certa falta de autenticidade: a bicha-boy não seria nem um
“homem de verdade” e nem uma “verdadeira bicha”.
Do ponto de vista travesti, ser “bicha” não se define simplesmente pela
“passividade” em atos sexuais (ser penetrada), ou pela dominação por parte
dos “homens de verdade”. Ser uma “verdadeira bicha” significa, acima de
tudo, assumir-se em público enquanto tal (“garantir-se”). Quando Natasha
argumenta não ser uma bicha “encubada”, ela refere-se ao fato de expressar
a feminilidade dela de uma maneira muito específica, que inclui o uso de
roupas e adereços considerados femininos. Neste ponto, o principal mar-
cador de diferença entre uma “bicha” e uma “bicha-boy” seria o fato de as
“bichas de verdade” expressarem a identidade sexual e de gênero delas para
além de atos privados e de afirmações identitárias limitadas a atos verbais.
Como discuto em mais detalhes no livro Minoritarian liberalism: a tra-
vesti life in a Brazilian favela (2022), na Rocinha, “assumir-se” não era um
processo marcado por um momento singular que coincidia com o início de
uma vida adulta independente, como é frequentemente o caso no contexto
norte-americano. Também, não era uma questão de vociferar uma orien-
tação sexual, desejos ou mesmo uma subjetividade. Em vez disso, o ato de
“­garantir-se”, ou “ser liberada”, estava profundamente ligado à capacidade de
um tipo de metamorfose corporal. Nesse sentido, o vestuário aqui não pode
ser compreendido simplesmente como uma identificação de gênero possi-
bilitada pelo uso e consumo de algumas mercadorias como saias e brincos.
Seguindo uma perspectiva elaborada por Eduardo Viveiros de Castro em

1 Peter Fry (1982, p. 90, grifo do autor) observa que “a categoria ‘bicha’ se define em relação à ca-
tegoria ‘homem’ em termos do comportamento social e sexual. Enquanto o ‘homem’ deveria
se comportar de uma maneira ‘masculina’, a ‘bicha’ tende a reproduzir comportamentos geral-
mente associados ao papel de gênero (gender role) feminino”.

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bicha-boy 65

relação ao contexto indígena amazônico,2 sugiro que, também no caso das tra-
vestis na favela, “roupas” deveriam ser entendidas não como itens supérfluos
da vida cotidiana, mas como equipamentos privilegiados para a expressão e a
afirmação de uma identidade específica. Mais do que uma camada externa ao
corpo, o cuidado e o tempo que Natasha e outras travestis dedicavam às suas
roupas e maquiagem indicam uma relação importante entre “vestimenta” e
“corpos”. Nesse contexto, “vestir-se” pode ser entendido como uma prática
corporal inscrita com significados práticos que incluem uma afirmação iden-
titária enquanto “bicha de verdade”, um marcador de liberdade sexual e de
gênero frente ao machismo, à homofobia e à transfobia.
Certamente, há outros entendimentos e discussões na literatura antro-
pológica sobre o posicionamento da categoria bicha-boy em relação às
diversas possibilidades identitárias. Contudo, elas tendem a focar mais na
demarcação do lugar da bicha-boy em uma escala simples, que varia entre
feminilidade de um lado e masculinidade de outro. Se pensarmos que o
termo boy poderia operar trazendo uma inflexão de “masculinidade” ao
termo bicha, poderíamos considerar duas possibilidades: bicha-boy pode
ser redundante (quando se espera que a bicha seja, por definição, um ente
masculino, ainda que não heterossexual) ou antitético (nos casos em que
se espera que o termo bicha expresse, por definição, uma feminilidade, no
sentido proposto por Peter Fry). No diálogo reproduzido na introdução
deste texto, quando aprendi sobre o conceito pela primeira vez, o entendi
como uma redundância. No meu entendimento, até aquele ponto, as bichas
seriam homens homossexuais. Por isso também a minha pergunta para
Natasha sobre a equação entre ser bicha e ser travesti.
Em pesquisa com moradores do Rio das Pedras, uma outra favela do
Rio de Janeiro, Silvia Aguião (2007, p. 121) encontrou um entendimento
que conecta o termo bicha-boy com uma dimensão mais feminina do “ser
bicha”, ainda que diferente da travesti. Uma interlocutora do estudo de
Aguião, chamada Priscilla, definiu: “Ai! Bicha-boy é assim: é afeminada,
mas não quer ser travesti, muito pelo contrário. Quer ser bem diferente da
travesti. Então usa calça jeans justa e blusa justa, tipo baby look [...] mas
não usa saia e não usa salto”. Após esse relato, a pesquisadora continua a
discussão trazendo considerações mais detalhadas oferecidas por Priscilla,

2 Eduardo Viveiros de Castro (1996, p. 133) argumenta: “aqui me parece haver um equívoco impor-
tante, que é o de tomar a ‘aparência’ corporal como inerte e falsa, a ‘essência’ espiritual como ativa
e verdadeira. Nada mais distante, penso, do que os índios têm em mente ao falarem dos corpos
como ‘roupas’. Trata-se menos de o corpo ser uma roupa que de uma roupa ser um corpo”.

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66 Moisés Lino e Silva

que reafirmam a posição defendida por Natasha sobre a bicha-boy ser como
uma travesti “no armário”:
Ainda segundo ela, as “bicha-boy” são muito “pintosas”, podem fazer a
sobrancelha e até passar um gloss. Perguntei se a diferença para a travesti
seria então somente o não uso de saias e saltos. Ela então explicou que “a
travesti é bem mais sensual” e que na verdade ela tem a teoria de que toda
“bicha-boy” quer ser travesti, só não tem coragem de assumir. Os amigos
dela de Rio das Pedras que são “bicha-boy” só a aceitam porque eles já eram
amigos antes dela virar travesti, quando era uma “bicha-boy”. Seguindo em
suas explicações, Priscilla diz que a diferença da “bicha-boy” para o “gay”,
é que o segundo “dá pinta de homem mesmo”. A calça jeans é a mesma, só
que a da “bicha-boy” é justa, do tipo que fica no meio do caminho entre ser
de homem e de mulher.
Dito isso, na capital do estado de Pernambuco, Luís Fernando Rios (2019,
p. 977-988) e outros colaboradores descrevem a categoria bicha-boy como
pertencendo muito mais ao espectro masculino dentro de uma escala de
possibilidades entre o feminino e o masculino. Em uma pesquisa sobre HIV/
aids e identidades sexuais, os pesquisadores reproduzem algumas falas de
Valter, um interlocutor do estudo em Recife:

Tem o gay que é reservado, que é o mais boy. Eles geralmente são
mais fortezinhos, tentam forçar a voz. [...] eles querem aparentar ser
heterossexuais. [...] A bicha-boy, ela se veste assim: ela geralmente
bota uma calça apertada, porque geralmente ela malha, é a antiga
barbie. [...] Eles usam roupas que geralmente o público hétero gosta.
Geralmente, eles não andam com outros homossexuais que são mais
pintosos ou assumidos. Eles andam com héteros ou com gays tipo eles.

Dessa passagem, os autores inferem que a bicha-boy teria uma “passa-


bilidade heterossexual”, ou seja, ela não se diferenciaria visualmente dos
padrões de aparência de um homem heterossexual – o contrário do que
acontece com outras (des)identidades sexuais, como no caso das travestis,
ou mesmo das ditas “pintosas”. Em uma outra passagem da fala de Valter,
o interlocutor observa que, ao contrário da bicha-boy, a “pintosa é aquele
que não tá de acordo com as normas sociais [diferentemente da bicha-boy]”.
Apesar das diferenças entre as definições apresentadas em três pes-
quisas aqui analisadas – duas no Rio de Janeiro (na Rocinha e em Rio das
Pedras) e uma no Recife – há alguns elementos que se reforçam nos dados
etnográficos levantados. Para além das intensidades variáveis entre “mascu-
linidade” e “feminilidade” para as quais os três casos apontam (em sentidos

glossario-das-desidentidades-MIOLO.indb 66 13/09/2023 07:13


bicha-boy 67

diferentes), a importância das vestimentas enquanto instrumentos de “libe-


ração” aparece de forma recorrente no entendimento da categoria bicha-boy.
Conectado a isso, surge também a questão do desejo (ou não) de “assumir”
em público identidades sexuais que nos contextos de pesquisa poderiam ser
consideradas “desviantes”. Minha concepção de bicha-boy considera que o
entendimento de tal verbete estaria incompleto se não concebêssemos a
importância das vestimentas para a afirmação desta (des)identidade sexual.
Além de meros acessórios estéticos na formação de (des)identidades, vesti-
mentas são centrais em processos identitários porque emergem como pre-
ocupações que vão além da estética para assumir um caráter ontológico,
afetando a própria possibilidade de existência dessas pessoas.
Além disso, para entender a complexidade da categoria bicha-boy há de
se questionar a base normativa (o entendimento pressuposto do que seria
“normal”) no contexto em que diferentes conceitos operam. No emprego
do termo pelas travestis da Rocinha, por exemplo, percebe-se que há uma
normalização da existência travesti e a categoria bicha-boy passa a operar
como um “marcador de diferença” em relação a esse fato. A “bicha nor-
mativa” passa a ser a travesti, aquela que vive sua identidade por meio de
uma combinação de práticas que são corporais, sexuais, materiais e discur-
sivas: os brincos, os maridos, os seios, os sapatos de salto alto, mas também
o pênis (que muitas não querem retirar)3 e ainda o emprego de certas cate-
gorias classificatórias como o caso do verbete em pauta. Nesse contexto,
ser bicha-boy significa não ser hétero e também não ser travesti. Dito isso,
há uma margem ampla de significação no que tange à masculinidade ou à
feminilidade da bicha-boy. Por último, mas de extrema importância para
minhas amigas travestis da favela: a inflexão “boy” opera como um indi-
cador da falta de liberdade (“encubamento”) dessas pessoas não heterosse-
xuais que decidem por não implementar os artefatos necessários para uma
identificação pública enquanto travesti.

REFERÊNCIAS
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numa favela do Rio de Janeiro. 2007. Dissertação (Mestrado em Medicina Social)
– Instituto de Medicina Social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de
Janeiro, 2007.

3 Sobre a importância do pênis na constituição da identidade travesti, ver: Don Kulick (2008).

glossario-das-desidentidades-MIOLO.indb 67 13/09/2023 07:13


68 Moisés Lino e Silva

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sociedade%20mais%20ampla. Acesso em: 17 abr. 2021.

glossario-das-desidentidades-MIOLO.indb 68 13/09/2023 07:13


69

CAFUÇU

Roberto Marques
Isadora Lins França

O termo cafuçu tem origem incerta, remontando à mestiçagem, a mis-


tura entre identidades raciais presentes no termo “cafuzo”, aquele que
provém de pai negro e mãe índia, ou vice e versa. Em pesquisas realizadas
por Roberto Marques (2015) sobre o ritmo pop conhecido no Nordeste, e
em demais localidades brasileiras, como forró eletrônico, os significados
atualizados pelo termo em debate não dizem respeito somente a aspectos
raciais. Ele também é usualmente utilizado como “categoria de acusação”
(VELHO, 1994) para referir-se a personagens com comportamentos ina-
propriados para o ambiente em que se encontram, como veremos adiante.
O termo aparece também em pesquisas de Isadora Lins França (2012)
sobre homens gays das camadas médias que habitam as principais metró-
poles do país, em referência ao desejo por homens encontrados nas classes
populares e nos contextos de turismo em cidades da região Nordeste,
numa clara articulação entre virilidade, raça e nação. Neste verbete, per-
corremos a categoria cafuçu explorando algumas das articulações entre
diferenças e hierarquias em diferentes registros de análise, de forma a
circunscrever os sentidos atribuídos a essa categoria nas etnografias rea-
lizadas por Marques e França.
É possível dizer que a ambivalência que cerca as hierarquias entre dife-
renças tais como gênero, classe social e raça – e que produz tensionamentos

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70 Roberto Marques e Isadora Lins França

libidinais nos seus cruzamentos (PERLONGHER, 1987) – remonta pelo


menos ao século XIX em diferentes discursos que fazem coincidir a emer-
gência dos Estados-Nação modernos com os dispositivos de regulação das
populações fortemente baseados na raça e na sexualidade – e na invenção
mesma dessas categorias na sua acepção moderna. Ann Laura Stoler (1995)
apresenta uma releitura do debate sobre o dispositivo da sexualidade, tal
como emerge em Michel Foucault, de modo a colocar em relevo a dupla
regulação da raça e do sexo nas sociedades coloniais desde mesmo antes
do século XIX, numa linguagem marcada pela ideia de “contágio” entre
raças e do perigo da degeneração de uma prole resultante da transposição
de fronteiras raciais.
No Brasil, hierarquias que remetem às origens coloniais brasileiras e
a relações de escravidão povoaram as análises sociológicas e literárias das
décadas de 1930 e 1940, ajudando a compor certa imagem de uma “sensu-
alidade nacional”, da qual a dimensão racial seria indissociável. Tomamos,
por exemplo, o modo pelo qual Gilberto Freyre construiu uma poderosa
narrativa sobre essa sensualidade, que passa também pelas cidades como
loci da produção de uma fricção das fronteiras de raça, classe e sexuali-
dade. Assim, em Sobrados e mucambos: decadência do patriarcado rural e
desenvolvimento do urbano (1977, p. 156), publicado originalmente em 1936,
Freyre lançou mão de relatos coloniais para definir a Ilha do Recife como:

o bairro do comércio e dos judeus, dos pequenos funcionários e dos


empregados da Companhia das Índias Ocidentais; dos artífices, dos
operários, dos soldados, dos marinheiros, das prostitutas. [...] Muita
mocidade foi engolida por essa sodoma de judeus e de mulatas;
de portugueses e de negras; de soldados e marinheiros de todas as
partes do mundo.

Ao mesmo tempo em que se colocam claramente as hierarquias que


estruturam a sociedade colonial, há o risco do borramento de fronteiras
nos trânsitos propiciados pela própria cidade. Não por acaso, o moleque
Ricardo, do romance homônimo de José Lins do Rego (1995), publicado ori-
ginalmente em 1935, tem sua iniciação sexual no carnaval naquele mesmo
Recife, com mulheres que vão da “provocante negra Isaura” ao amor luxu-
rioso de Guiomar, “mais clara que ele”, até a “mulata” Odete. Nessa lite-
ratura, que encontra relevantes expoentes em Freyre e Rego, destaca-se a
rudeza e ao mesmo tempo a ingenuidade ou a esperteza dos “moleques”.
Entre “moleques” e “mulatas”, tais discursos acabaram por produzir ima-
gens da nação perpassadas por raça, sexo e gênero e articuladas à escravidão,

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cafuçu 71

violência que funda o Brasil como nação.1 Neles, repulsa e desejo operam
de forma ambivalente.
Tais narrativas foram objeto de importantes releituras, realizadas por
intelectuais feministas no Brasil nas décadas de 1980 e 1990, tais como Lélia
Gonzalez (1984) e Mariza Corrêa (1996), que, cada uma a sua maneira, inter-
rogaram o lugar ocupado pelas mulheres “negras” e “mulatas” nesse reper-
tório nacional. Para Corrêa (1996, p. 50), o “mulato” seria categoria mais
fluida em termos raciais, enquanto a “mulata” se construía como um objeto
fixo, como um terceiro termo entre brancos e negros, a funcionar como
espécie de símbolo nacional – cuja encarnação do desejo masculino branco
escondia, por tabela, a rejeição à “mulher negra preta”. González (1984),
por sua vez, chamou a atenção para como a figura sexualizada da “mulata”,
a figura trabalhadora da “empregada” e a figura materna da “­ama-de-leite”,
com fronteiras deslizantes entre categorias e funções, representavam os
lugares subalternizados destinados às mulheres negras em nossa socie-
dade. Mais recentemente, estudos antropológicos têm abordado como mar-
cadores de diferença social se cruzam com noções sobre nacionalidade e
erotismo, materializando-se nos corpos e estabelecendo convenções sobre
“a mulher brasileira”, “o negão” ou “a mulata”. (MOUTINHO, 2004; PINHO,
2015; PISCITELLI, 2008; SILVA; BLANCHETTE, 2010)
Interessam-nos aqui, portanto, os territórios de mistura, poluição e
indefinição, que nos parecem remeter à figura do cafuçu. Mary Louise Pratt
(1999) usa o termo “zona de contato” para descrever encontros entre sujeitos
anteriormente separados por descontinuidades históricas e geográficas e
que passam a manter contato consistente, usualmente no âmbito comer-
cial. Dimensões interativas e improvisadas dessas interações evidenciam
como “os sujeitos são constituídos nas e pelas suas relações com os outros”,
em práticas interligadas, frequentemente “dentro de relações radicalmente
assimétricas de poder”. (PRATT, 1999, p. 32) Françoise Vergès (2020) con-
tribui com o debate ao demonstrar como a presença de corpos racializados
de trabalhadoras subalternas na cidade não pode jamais ser confundida
com a democratização do espaço. Seria antes a “presença fantasmática”
que assinala suas funções subalternizantes, ao tempo que interdita outros
membros dessas comunidades supérfluas, que “devem permanecer na
porta das residências privadas e dos bairros reservados”. (VERGÈS, 2020,
p. 20) Dinâmicas e interdições na circulação de corpos e sentidos seriam,

1 Mariza Corrêa (1996) ressalta como essa literatura assimila boa parte do discurso médico da época.

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72 Roberto Marques e Isadora Lins França

portanto, marcados pela “redundância, descontinuidade e irrealidade”


(PRATT, 1999, p. 24), capazes de produzir convenções e estratégias nar-
rativas pródigas em perpetuar assimetrias nas formas de definição de si e
subalternização do Outro.
Nas etnografias realizadas por nós, o termo cafuçu está usualmente
vinculado a corpos avaliados por terceiros como carentes de distinção,
subalternizados entre convenções e estratégias narrativas que atribuem
ao cafuçu uma sensualidade (mais) primitiva em meio a repertórios colo-
niais de diferenciação, violência e desejo. A designação sempre mascu-
lina do cafuçu explicita dinâmicas de hierarquia entre essa masculinidade
“natural” e “primitiva” e os ardis de um suposto colonizador encarnado.
O cafuçu é sempre homem. Usualmente um homem forte e corpulento.
Como os “camponeses” celibatários descritos por Bourdieu (2004), exibiria
características e gestos acintosamente relacionados a um mundo que foi ou
deveria ser deixado para trás. Seus atributos seriam acentuados pela parca
capacidade de consumo. O cafuçu desejaria deslocar-se, mas não possuiria
recursos físicos, refinamento intelectual ou instrumentos necessários para
tanto. Pouco integrado à paisagem citadina, aparece como desajeitado, mal-
vestido e desejoso de aproveitar, até as últimas consequências, momentos
de fruição, como é o caso das festas de forró eletrônico descritas na etno-
grafia de Roberto Marques (2015).
Ali, o termo cafuçu compunha uma gramática jocosa e acusatória2 bas-
tante frequente em festas massivas que se notabilizaram em capitais e
cidades de médio porte do Nordeste brasileiro a partir da década de 1990
e, posteriormente, foram editadas em todo o país. (TROTTA, 2010, 2014)
Ao longo das incursões em campo, o termo cafuçu costumava ser utilizado
para designar corpos masculinos descritos por pessoas que buscavam res-
saltar no Outro traços físicos tomados como rústicos ou sinais diacríticos
reveladores de um passado rural recente. Conjuga-se aqui, portanto, a des-
crição da origem rural e o modo de trabalho a ela vinculada como algo pri-
mitivo, pouco rentável e degradante. O cafuçu não possuiria os recursos
necessários para acessar os bens e prazeres que almeja, daí a alcunha “mer-
cadoria sem nota”: a ambição de circular e expressar um modo de vida a que
suas características raciais, de origem e localização social seriam incapazes
de corresponder. Desse modo, além da tensão racial acima descrita, o termo

2 Os termos masculinos “bonequeiro”, “estourado” e os femininos “muquira” e “periguete” mar-


cam a variedade e ambiguidade das formas de designação das personagens frequentes nas fes-
tas de forró.

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cafuçu 73

atualizaria uma mudança nas formas de produção e consumo (CANCLINI,


2001) em que produzir o que se consome seria fonte de demérito. Nesse
cenário, marcas de um passado rural deveriam ser eficientemente apagadas
no corpo, nos produtos consumidos e nos modos de vida.
Ao pôr em circulação, em cidades de pequeno e médio porte, mímesis
de grandes espetáculos do mundo pop, com seus efeitos de luz, telas de
LCD, gelo seco e dançarinas, as festas de forró eletrônico se tornam loci
privilegiados para a recepção e a apropriação de ideais de comportamento
afeitos ao mundo urbano e sua produção de hierarquias. Roberto Marques
(2018) descreve festas em que o número de visitantes advindos(as) de outras
cidades se equiparava a ⅓ da população das cidades onde tais festas ocor-
riam.3 Concorriam, portanto, para a circulação de corpos por ambientes
festivos acessados a partir da mímesis de anonimato, condensação e ebu-
lição social, características usualmente vinculadas ao mundo urbano. Como
nos ensinam Cavalcanti (2006) e França (2012), cenários de grande circu-
lação reforçam a necessidade de evidenciar processos de diferenciação e
hierarquia. O uso do termo cafuçu torna-se, portanto, categoria de acu-
sação (VELHO, 1994) bastante relevante nessa experiência de continuum
rural-urbano expressa nas festas de forró, em que projetos de vida, fruição
e designação de corpos correspondem a imagens postas em circulação
recentemente, como alegorias do mundo urbano e usufruto de bens e hie-
rarquias que só experiências massivas poderiam propiciar.
Na pesquisa de Roberto Marques (2015), a participação em festas em
cidades de escalas distintas, acompanhando grupos diversos, possibilitou
a observação de usos instrumentais insuspeitos do termo a partir de dife-
rentes localizações sociais. Perguntada sobre o que seria um cafuçu, uma
jovem interlocutora do pesquisador dizia que seriam os herdeiros de pro-
prietários de terras locais, que andavam em carros utilitários e proclamavam
em bom som os bens de suas famílias. Nessa apropriação do termo, perma-
necia a forma desabonadora de descrever origem rural, embora aqui não
esteja vinculada à falta de capacidade de consumo. Para a interlocutora,
o cafuçu não seria desejável por sua falta de afeição ao trabalho, caracte-
rística propiciada pela herança e vínculos familiares. Quando perguntado
se já havia tido interações sexual-afetivas com cafuçus em festas de forró,
um jovem homem gay respondeu que até já quis, mas seus amigos não o

3 Ressalta-se, portanto, a impossibilidade de alinhar tais festas ocorridas em cidades de pequeno


e médio porte à descrição de nichos do mercado de lazer, como ocorre nas grandes cidades e
metrópoles do país.

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74 Roberto Marques e Isadora Lins França

deixaram. Inventivos expedientes de esquecimento sobre interações for-


tuitas ocorridas nas noites de festa pareciam assinalar que, embora pra-
zerosas, essas interações não produziriam vínculos efetivos. Por fim, em
uma grande festa de forró ocorrida em clube central em cidade de médio
porte no sul do Ceará, um grupo de jovens adultos gays, trabalhadores,
acompanhados de rapazes mais jovens para quem pagavam ingressos e
bebidas, apontara, em tom de fofoca, uma trabalhadora jovem e seu acom-
panhante. Para esses jovens adultos gays, a natureza da relação vivida por
esse casal heterossexual servia para legitimar a interação entre pessoas
LGBT e os cafuçus. A festa de forró irmanava a todos e evidenciava expe-
dientes financeiros frequentes em interações afetivo-sexuais, fossem elas
heterossexuais ou não.
Na etnografia realizada por Isadora França nas cidades de São Paulo
e Recife com homens de classe média autoidentificados como gays, os
mesmos conteúdos relacionados à virilidade, rusticidade e classe social
eram acionados na figura do cafuçu. Mesclavam-se ainda com a noção de
“malícia”, tomada como marca de uma sensualidade nacional “autêntica”,
sempre racializada na figura do “moreno”. A figura do cafuçu surgia em
contextos que tratavam da busca por essa sensualidade viril, encontrada
em homens que dificilmente poderiam fazer parte dos círculos sociais hie-
rarquizados frequentados por interlocutores de classe média alta. O cafuçu
existia no limiar entre o desejo e a transgressão em relação a um universo
de classe média, branco, muitas vezes intelectualizado. Esse desejo movi-
mentava-se com as interdições de classe e raça, que seus interlocutores
procuravam burlar nos itinerários que realizavam em busca da fantasia do
cafuçu, envolvendo a circulação por territorialidades tidas como “margi-
nais” na cidade ou por aquelas relacionadas à prostituição.
Entre os interlocutores paulistanos de Isadora França, a origem do
termo cafuçu era atribuída ao Recife, de onde a categoria teria sido trans-
portada para um universo de consumo de “homens gays” em São Paulo.
Nesse universo, repetiam-se os conteúdos observados por Roberto Marques
relacionados à rusticidade, ao trabalho braçal e à virilidade, enfatizando-se
uma hexis corporal de inequívoca virilidade. (BOURDIEU, 2004) Como um
dos interlocutores de Isadora França, branco e de classe média, descreveu
à época: “a mão do cafuçu é dura e áspera, não é assim lisinha. É aquele
dedão largo, que você pega assim e fala ‘ai’. [...] Implica alguém que aparen-
temente é mais ignorante, menos articulado, visualmente é um cara que
trabalha com as mãos, que tem um trabalho braçal, que não tem apuro esté-
tico nenhum, que tem coisas muito marcadas do mundo heterossexual mais

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cafuçu 75

classes D e E”. (FRANÇA, 2012, p. 103) Além disso, o cafuçu era frequente-
mente descrito como um tipo “moreno” e “bem brasileiro”. O emprego do
termo, aqui, diz mais sobre as fantasias de gênero e raça que atribuem a um
“Outro” o lugar de cafuçu do que sobre a existência concreta desse sujeito.
Dessa maneira, argumentamos que cafuçu não funciona como uma cate-
goria descritiva de sujeitos ou corpos específicos – nem por isso, contudo,
as dinâmicas que essa categoria sugere sobre as relações entre homens de
posições sociais desiguais no Brasil são menos reais.
No contexto da pesquisa realizada por Isadora França, impunha-
-se, por exemplo, uma pragmática interdição a respeito dos relaciona-
mentos mais duradouros entre gays e os supostos cafuçus, permanecendo
a fantasia do cafuçu na esfera de um desejo que se efetuava em trocas
sexuais temporárias, frequentemente envolvendo transações monetárias
e “ajudas”. Entre os interlocutores pernambucanos de Isadora França, que
diante dos cafuçus se autoidentificavam frequentemente como “frangos”,
o caráter muitas vezes subterrâneo desses relacionamentos era atribuído
ao conservadorismo e hipocrisia locais, com vista à manutenção das hie-
rarquias de sexualidade, classe e raça. Entretanto, evocavam também um
certo “perigo”, associado ao caráter marginal dessas relações, que operava
também como um componente erótico e que demandava um equilíbrio
bastante sutil das tensões emergentes entre sujeitos tão hierarquicamente
marcados. Para os “frangos” no Recife ou para os gays em São Paulo, a vio-
lência dos “boys” ou cafuçus era um risco sempre presente, que poderia
resultar em violência física dos últimos sobre os primeiros, sempre que
os “boys” ou cafuçus se sentissem humilhados em termos de “classe” ou
“raça”. Tal “humilhação” era descrita como as situações em que “frangos”
e gays tentavam impor todas as suas vontades numa dada interação pes-
soal com os supostos cafuçus, tratando-os como inferiores. Assim, era
importante “tratar bem” o “boy”, senão por convicção, como forma de se
proteger de eventuais reações violentas.
Embora este verbete concentre-se no manejo dessa categoria em con-
textos etnográficos bastante localizados, em que a categoria aparece muito
mais entre a acusação, a desvalorização e o desejo pelo “Outro”, é importante
mencionar que a violência implícita na ideia do cafuçu também implica os
que são designados por essa categoria. Nesse caso, há a violência da humi-
lhação na forma como sentem-se frequentemente inferiorizados e redu-
zidos como sujeitos a marcas de raça e de classe, com todas as profundas
desigualdades que elas carregam. Ainda que Isadora França não tenha se
deparado em sua pesquisa com nenhum interlocutor que se definisse como

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76 Roberto Marques e Isadora Lins França

cafuçu, houve situações em que as relações com homens brancos de classe


média foram descritas por homens negros nascidos na periferia a partir
da violência evocada por essa categoria. Um dos seus interlocutores, por
exemplo, um rapaz negro de São Paulo, com um estilo ligado ao hip hop,
queixava-se de ser visto como um “marginal”, recusando-se a ocupar esse
lugar de modo a “bancar a onda” dos desejos de homens brancos.
Como podemos perceber, portanto, a categoria cafuçu sugere complexas
dinâmicas entre fantasia, poder e violência operantes nas hierarquias de
classe, raça e gênero no Brasil. Como assinalado por González (1984) em
relação à mulata, tais dinâmicas evidenciam o lugar incontornável ocu-
pado por categorias racializadas na constituição da própria nação. Aliadas
às dinâmicas de sexualidade, gênero e consumo, categorias como “tra-
balho” e “mundo rural” impõem-se como tensores libidinais, nos termos
de Perlongher (1987), ou seja, operam a um só tempo produzindo, intensi-
ficando e interditando o desejo pelo “Outro”.
Esse “Outro” na pele do cafuçu seria sempre desabonado por sua origem
e modos, pela falta de carisma ou capacidade de consumo, tal como abor-
dado por Roberto Marques. O uso da categoria como acusação por terceiros
tolheria a interação inapropriada entre corpos de origens díspares. Inibiria
a circulação daqueles descritos como cafuçus para além de limites circuns-
critos, delimitados por características diacríticas de raça, origem e modos.
Ao mesmo tempo, a ausência de protocolos e burocracia para o contato
sexual, aliada à fantasia de uma masculinidade natural, torna o cafuçu
personagem central das disputas eróticas que aliam potência, permissivi-
dade e ausência de limites para o usufruto do desejo. Nessa tensão entre
erotização e demarcação de diferenças e hierarquias se dá a transposição
do termo para os universos de sociabilidade gay, pesquisados por Isadora
França. Não raro a fantasia da desmesura do prazer, compartilhado com
uma masculinidade natural, está aliada à precariedade financeira do cafuçu.
Cria-se, assim, um par complementar no qual o sujeito afeito a uma esté-
tica, modos de vida e ideais urbanos impõe-se como instrumento de usu-
fruto de supostas fantasias de consumo e fruição pelo cafuçu. A partir dessa
categoria relacional, precipitam-se, portanto, disputas que marcam a ideia
de “Brasil mestiço”, aliando consumo, lhaneza e hierarquias de origem a
classe social, raça e regionalidade.

glossario-das-desidentidades-MIOLO.indb 76 13/09/2023 07:13


cafuçu 77

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glossario-das-desidentidades-MIOLO.indb 78 13/09/2023 07:13


79

CAMGIRL

Caroline Dal’Orto

O GRUPO

Em maio de 2018, conheci Angel no aplicativo Tinder. Ela era de São Paulo
e eu moradora do Rio de Janeiro. Nossa intimidade foi construída a partir
de experiências de términos recentes de outros relacionamentos. Trocamos
redes sociais e nos acompanhamos por um tempo. Em meados do mesmo
ano, Angel, fazendo referência às minhas postagens no Facebook, me con-
vidou a “experienciar” um trabalho que ela exercia há 6 anos. No mesmo
mês, inscrevi-me no Câmera Privê. Foi a partir desse contato que, dois anos
depois, passei a fazer campo com camgirls, junto ao mesmo grupo no qual
comecei como nativa.1
Em entrevista concedida por videochamada, Angel explica a razão
de participar do grupo de WhatsApp no qual estabelecemos contato.

1 Faço um recorte metodológico ao estudar mulheres cisgênero, por partir de um foco de pes-
quisa ambientado na minha experiência como camgirl e na minha participação em grupos de
conversa que foram facilitados pelo meu desempenho de gênero enquanto mulher cisgênero.
O trabalho de camming também comporta camboys, transboys, transcamgirls e sujeitos não bi-
nários que, no entanto, não serão abordados aqui.

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80 Caroline Dal’Orto

“Acolhimento” e “quebra de rivalidade feminina” no mercado, além de


um lugar em que o “desgaste psicológico” do trabalho possa ser atenuado e
dúvidas frequentes sanadas. Para ela, o limite último da unidade do grupo
é a necessidade financeira, marcando as possíveis diferenças ao nível da
“experiência de trabalho”. Ela, embora se posicione a favor do empodera-
mento feminino, pontua tensionamentos com as feministas que a acusam
de “aliciadora de mulheres inocentes”.
O grupo de WhatsApp tem vinculado ao seu título, “Bitches get rich”,
um link que nos transporta para um documento do Google Docs contendo
várias seções facilmente acessadas por palavras-chave como “podolatria”,
“camming”, “instagram”, “packs”, “receber anonimamente”, “golpes paypal”.
O documento inicia com a palavra camming,2 definida pela seguinte descrição:

Um nicho muito famoso (principalmente na mídia) de trampo


adulto. No camming você fica online ao vivo via vídeo em uma pla-
taforma (como a câmera hot, câmera privê, cam4, webcammodels,
chaturbate e afins). Cada plataforma tem sua forma de trabalho.
Algumas, o cliente precisa te chamar em chat pra que você possa
começar seu show e não pode ter nudez em chat grátis, outras você
fica online e os clientes vão te dando tokens pra que você faça coisa
X ou Y. Existem plataformas brasileiras e gringas, pra receber em real
ou dólar, e cada plataforma difere bastante entre si. O camming é pra
quem curte trampar em vídeo ao vivo, e pra quem quer ter uma pla-
taforma como ‘apoio’ pra conseguir clientes e receber pagamentos.

A PRIMEIRA CAMGIRL

Lucia Santaella (2003, 2004) propõe diferenciar a “cultura das mídias” da


“cultura digital”. Para a autora, a primeira cultura corresponde à emergência
de diferentes mídias (imprensa, rádio, televisão) na década de 1980. Essas
mídias seguiam uma arquitetura portátil, de dispositivos e conteúdos pro-
duzidos em massa, como os filmes em videocassetes, as imagens em foto-
copiadoras, os jogos em videogames e os programas da TV a cabo. É nesse
cenário que a boca de Linda Lovelace engole US$ 600 milhões em bilheteria

2 N. do E.: O documento possui cunho privado, assim o compartilhamento comprometeria o ano-


nimado das interlocutoras.

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camgirl 81

com Garganta Profunda,3 revolucionando a cena pornográfica, que até a


década de 1970 permanecia marginalizada a espaços segmentados como
casas de prostituição. No documentário Inside Deep Troat (Por dentro da
Garganta Profunda), o diretor do filme afirma que sua produção mudou o
comportamento sexual do americano médio ao tornar popular o sexo oral,
antes considerado sodomia.
Em 1996, a ex-salva-vidas americana Jennifer Ringley, de 20 anos,
conectou uma webcam ao computador posicionado à frente de sua cama
no Dickinson College, na Pensilvânia. O objetivo era documentar todos os
aspectos de sua vida privada. No entanto, as imagens que ganhavam mais
destaque eram de seus encontros sexuais. Em seu site, Ringley disse aos
telespectadores que sua câmera era “para simplificar, uma espécie de janela
para um zoológico humano virtual. JenniCam é virtualmente não editada
e sem censura... Então, fique à vontade para assistir, ou não, como achar
melhor. Não estou aqui para ser amada ou odiada, estou simplesmente aqui
para ser eu mesma”.4 (SENFT, 2008, p. 42-43, tradução nossa) Em entrevista
à ABC News, Jennifer Ringley afirmou querer ‘mostrar às pessoas que o que
viam na TV – pessoas com cabelos perfeitos, amigos perfeitos, vidas per-
feitas – não é realidade. Eu sou a realidade’”.5 (SENFT, 2008, p. 16) Alguns
meses depois, os 100 milhões de espectadores registrados em seu site por
semana, tornaram Ringley a “playboy” da tecnologia de streaming.
As fitas VHS, a TV a cabo e as revistas traziam uma sexualidade multi-
mídia para a intimidade e a discrição do espaço privado. Entretanto, a sua
portabilidade só era capaz de fornecer um conteúdo não individualizável.
Enquanto Linda Lovelace criou o espaço do sexo como representação midi-
ática de massa, transformando as cadeiras dos cinemas em espaços de
trocas de fluídos e a sexualidade em uma tecnologia que transformou os

3 Lançado em 1972, o filme Deep Throat (Garganta Profunda), do diretor norte-americano Gerard
Damiano e estrelado por Linda Lovelace, é o primeiro filme de temática pornográfica a ser lan-
çado em salas convencionais de cinema, seguindo até hoje com a maior bilheteria da história.
Ver em: França (2015, p. 93)
4 Texto original: “JenniCam virtually unedited and uncensored ... So feel free to watch, or not, as
you see fit. I am not here to be loved or hated, I am simply here to be me”.
5 Texto original: “In an interview she gave at the height of her popularity, Jennifer Ringley told
ABC News that she wanted to ‘show people that what we see on TV – people with perfect hair,
perfect friends, perfect lives – is not reality. I’m reality’”.

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82 Caroline Dal’Orto

fluxos de excitação em capital,6 Jenifer Ringley inaugurou o que Danilo


Patzdorf chama de “atopias sexuais”,7 trazendo à tona um corpo não mais
estruturado nas posições entre produtor/espectador, mas num movimento
de incorporação, distribuição e manipulação semiótica das imagens, sons
e textos inscritos em uma nova arquitetura digital, na qual as divisões de
espaço e produtor/produto tornam-se obsoletas.
Para Santaella (2003, 2004), a virada da “cultura das mídias” para a
“cultura digital” é marcada pela transição da web 1.0 para a 2.0 e culmina
no surgimento de uma “linguagem universalizável”. Isto é, enquanto uma
informação em áudio, gravada numa fita magnética, necessitava de um
aparelho específico capaz de ler este (e apenas este) conteúdo, na cultura
digital essa mesma informação passa a ser reproduzível em diferentes dis-
positivos (computador, celular, tablet, mp3 player), sob uma codificação
comum, o binário informático (0 e 1). Isso faz com que a produção, o arma-
zenamento e a distribuição de conteúdos tornem-se menos onerosos e reali-
zados quase que instantaneamente. No final dos anos 1990, Jenifer Ringley
e sua página da JenniCam, atualizando sua imagem de webcam em tempo
real a cada 10 segundos, torna-se, para nós, um novo protótipo da sexuali-
dade comercializável, convertida em pixels sob uma nova “linguagem uni-
versal”, encadeada pela sequência de 0 e 1. Tornando-a a primeira camgirl.

CAMGIRL, GAROTA DE PROGRAMA E ATRIZ PORNÔ

O termo camgirl8 é usado para se referir a mulheres cisgênero, em sua maioria


jovens, que operam suas próprias webcams (ou de estúdios) para se comu-
nicar com um amplo público on-line, muitas vezes envolvendo a exposição

6 Paul Preciado oferece uma alternativa ao conceito de “biopolítica”, de Michel Foucault, para
pensar novas formas de governabilidade, cultura e gestão do capital via “sexopolítica”. Da pers-
pectiva proposta por Preciado, a sexualidade ganha privilégio numa gestão pós-disciplinar e
molecular do corpo, a partir das indústrias pornográfica e farmacêutica. Essa nova gestão do
corpo será chamada por Preciado de farmacopornográfica. Ver em: Preciado (2013).
7 “Na nossa atualidade, no entanto, as tecnologias digitais estão dissolvendo essas pornotopias
para nos fazer vivenciar uma espécie de ‘atopia sexual’ que prescinde de um local físico (como
o bordel) ou midiático (como a revista ou o VHS) para o exercício sexual, bem como, por vezes,
da própria representação do corpo humano”. (OLIVEIRA, 2017, p. 127)
8 A preferência pelo termo em inglês se dá pela sua maior popularização. Em português, pode-
mos nos referir à camgirl como uma modelo de webcam.

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camgirl 83

de sexo explícito em tempo real em troca de créditos, tokens e presentes.9


Para além da modalidade de shows ao vivo via plataformas digitais, o trabalho
de camming também pode se distribuir pela venda de conteúdos indepen-
dentes via plataformas, como no Onlyfans, ou através de mídias sociais indi-
viduais, como Twitter e Snapchat. A venda de conteúdos independentes se
articula na promoção de algumas mídias como as packs,10 videochamadas,
texto e mensagens de voz exclusivas nas redes sociais, que pode ser reali-
zada nos perfis individuais das modelos ou em grupos de aplicativos de bate-
-papo, como Telegram e WhatsApp. Nesses grupos é comum a prática de
drops11 entre as modelos que geralmente se organizam em torno do mesmo
“nicho”. Entre esses nichos encontramos a promoção de conteúdos que vão
de sexting,12 a “pacote namoradinha” e modelos que vendem apenas pacotes
de fotos e vídeos (não fazem videochamadas), ou que atendem apenas feti-
ches, como femdommes, dominatrix, slavemoney.13 Serena, uma de minhas
interlocutoras, explica: “eu só vendo (vídeos, não packs) por Twitter, paga-
mento picpay e entrega por drive”.14
Já nas plataformas de camming, os “nichos” podem ser distribuídos,
além das categorias comuns do gênero dos(as) modelos selecionados(as),
como “mulher”, “gay” e “transexual”, em tipos físicos/corporais como

9 Criptomoedas usadas nos sites de conteúdo adulto, como CâmeraPrivê, Stripchat, LiveJasmin,
WebCamModels e Cam4.
10 Pacotes de fotos comercializados contendo nudez ou conteúdo sexualmente provocativo.
11 Prática de troca de divulgação entre perfis de modelos dentro da mesma plataforma ou em pla-
taformas diferentes.
12 Sexo por mensagem de texto.
13 Para os homens, o femdommes é enxergar as mulheres como um tipo de “autoridade natural”,
nesse tipo de relação o homem gosta que a mulher tome a posição de ativa/dominadora (ela
manda mensagem, ela faz convite, manda flores). A dominatrix é uma mulher que oferece ser-
viços não necessariamente sexuais (pode ser uma simples troca de poder) e estuda para isso, é
uma profissional. Slavemoney é ter um prazer na submissão monetária. Como o dinheiro é visto
como uma troca de poder e os homens têm mais poder, geralmente eles representam mais esses
papéis, embora também existam mulheres. Aqui pode haver o envolvimento de outros fetiches
como o “ageplay” em que a pessoa performa uma outra idade. A exemplo do relato de um amigo
que disse se sentir um adolescente quando dava dinheiro para uma mulher. Aqui a pessoa está
abrindo mão de um poder que ela tem em um momento específico, é como se eu transferisse mi-
nha responsabilidade com o dinheiro (como gastar, por exemplo) para outra pessoa (nota trans-
crita a partir de um áudio enviado pela minha interlocutora Angel).
14 Uma maneira apresentada por minhas interlocutoras de trabalhar como sex worker no ambien-
te digital, fora das plataformas, é produzir conteúdo independente, articulando essa produção
com a divulgação nas mídias digitais “abertas”, o armazenamento em serviços de nuvem e o
pagamento através de plataformas que oferecem serviço de carteira digital.

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84 Caroline Dal’Orto

“gorda”, “fitness”, “morena”, “branca”. No site LiveJasmin, por exemplo,


encontramos algumas categorias de modelos distribuídas em “fetish cate-
gory”, “hot flirt”, “soul mate”, “celebrity” e “cosplay”.15 A venda de conteúdo
nessas plataformas se distribui na modalidade de chats ou salas que deter-
minam o tipo de performance permitida para as modelos. No chat grátis,
em sua maioria, não é permitido nudez, com exceção de alguns sites como
Cam4, Chartubate e WebCamModels, onde encontramos cenas de sexo
explícito em salas abertas. É comum que, nos sites que permitem nudez no
bate-papo gratuito, as modelos operem com metas, definindo valores espe-
cíficos que, assim que atingidos, “desbloqueiam” performances por elas
prometidas. Para os sites em que a nudez é vetada no chat gratuito, geral-
mente são oferecidas opções de outros chats como “simples”, “privado” e
“exclusivo”, em que automaticamente são cobradas taxas por minuto de
uso para aqueles que têm créditos/tokens.
A indústria de camgirl difere da pornografia tradicional de várias
maneiras. Para Paul Bleakley, a atividade “fundamentalmente interativa”
do webcamming é o que o distancia da definição de uma mera modali-
dade do pornô. Essa interatividade entre a performer e o público fornece
à indústria do sexo uma nova modalidade de venda exclusiva, estendendo
o pornô mainstream às performances interativas, ao passo que desloca a
gestão da produção centralizada nas empresas do mercado adulto e torna
a performer uma “empreendedora de si”. Em uma live no seu Instagram, a
produtora de filmes eróticos e camgirl DreadHot afirmou: “sou feminista

15 O site oferece várias categorias diferentes em que as modelos configuraram seus perfis e passam
a transmitir de acordo com as especificidades de cada uma delas, incluindo o tipo de perfor-
mance a ser feita, o teor das conversas, a estética do cenário e a performance corporal da mo-
delo. Na categoria “hot flirt” (flerte quente) é proibido nudez ou comportamento sexualmente
provocador no bate-papo gratuito. No bate-papo privado, as modelos são livres para decidir que
tipo de programa estão dispostas a oferecer e recomenda-se que sejam “sexy, yet hard to get”.
Na categoria “soul mate” (alma gêmea) as modelos não devem fornecer ou implicar qualquer
conteúdo sexualmente explícito, seja ele escrito, imagem ou um feed de câmera ao vivo. Já a ca-
tegoria “celebrity” (celebridade) recomenda-se que as modelos “show interest in the Members,
and approach them through their minds”. Aqui não é permitido nudez, e a valorização de uma
“personalidade” e conexão “intelectual” são um imperativo. Descrito como um “territory for the
special needs”, o “fetish category” (categoria fetichista) é uma subcategoria do “nudes category”.
Aqui existem três requisitos principais: roupas, com prioridade a vestuários escuros (vermelho,
preto, látex roxo, couro, espartilho, meias, zíperes, cintos, uniformes); acessórios (correntes,
punho de pulso ou tornozelo, saltos altos, cadeira gótica, joias); cenário (relacionando mobiliá-
rio e iluminação com os acessórios acima mencionados).

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camgirl 85

e fui para o pornô para fazer frente ao pornô mainstream, para produzir
algo alternativo”.16
No seu artigo “Webcamming erótico comercial: nova face dos mer-
cados do sexo nacionais” (2021), a pesquisadora Lorena Rúbia Pereira
Caminhas discute seus estudos que se debruçam sobre o que denomina
como “universo do webcamming erótico comercial”. Em diálogo com suas
interlocutoras, a autora percorre uma constelação de termos, variando
entre striptease, prostituição e pornografia, e busca entender quais são as
intermediações, contatos, atravessamentos e rupturas que esses termos
apresentam na definição do que ela observa como um novo fenômeno do
trabalho sexual.
Baseada nessa leitura, perguntei às minhas interlocutoras como elas
se definiam e levei o artigo de Caminhas para o grupo de WhatsApp, ini-
ciando uma conversa. Em resposta, Heleonara afirmou concordar com os
termos, mas sem pretensão de “ofensa” ou de tê-los como algo “negativo”.
Perguntei por que ela os entendia dessa forma, ela seguiu: “é porque tem
gente que associa a palavra prostituição com ofensa e tal”. Angel aparece
e afirma: “striptease não, né? Ninguém diz ‘eu trabalho com striptease’”,
diz “eu trabalho com camming/programa”. Ainda, confirma: “o strip é um
galho da árvore do camming. Prostituição/pornografia virtual, sim, porque
é o que ele é”. Heleonara intervém: “tipo... sem ofender a nós todas aqui,
mas eu acho que sim... pode ser um tipo de prostituição, mas bem dife-
rente porque, no caso, não estamos sendo obrigadas a isso nem foi porque
a sociedade nos empurra para isso”.
Pergunto se há uma diferença de “necessidade” entre o camming e a
prostituição. Angel se “irrita” e afirma: “eu não acredito nessa distinção. Isso
é tentar higienizar o camming como se ele fosse ‘menos pior’ que programa”.
Heleonara interpela: “digamos que, por mais [que] tenha arrombamentos
[no camming], estamos mais seguras”. Angel confirma. O debate continuou
em relação à pornografia e Angel indagou: “mas tem diferença? A diferença
para mim é o pornô mainstream e o independente”. Já Heleonara, em tom
de discordância, sugeriu: “[...] na parte audiovisual tem essa diferença sim!”.
Insisti sobre a diferença e Angel afirmou: “eles pagam pela sensação de
exclusividade e ‘proximidade’”. Heleonara complementa: “pela sensação de
estar no controle também. Porque no mainstream eles são só expectadores”.

16 Ver o perfil da produtora em: https://www.instagram.com/dreadhot/?hl=pt-br.

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86 Caroline Dal’Orto

Afirmações sobre a natureza comercial do webcamming erótico/venda


de conteúdo digital frequentemente acompanhavam o termo “serviço
de luxo” – dado seu caráter interativo telemediado (diferente do pornô)
e remoto (diferente da prostituição) – valendo-se das desigualdades de
acesso: materiais, raciais e simbólicas, para dissociarem-se de outras moda-
lidades de trabalho sexual. Essas constatações levaram-me a distanciar a
matéria comercializada no webcamming erótico de uma prática exclusiva-
mente sexual para ganhar privilégio na intimidade telemediada. É aqui que
a própria ligação com a indústria sexual é questionada pelas camgirls na
medida em que consideram o distanciamento físico, o acesso tecnológico
e linguístico e a natureza criativa/cognitiva do webcamming como experi-
ências de trabalho privilegiadas. O rompimento dessa ligação, no limite,
torna-as sujeitos (des)identificados de uma gramática do trabalho sexual –
bem como laboral17 – a partir dos novos relacionamentos entre tecnologia,
capital, trabalho e sexo engendrados nos fins do século XX.18

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Disponível em: https://link.springer.com/article/10.1007/s12119-014-9228-3.
Acesso em: 4 jun. 2023.

17 A veemente proibição à atividade de prostituição e a escolha por eufemismos como “modelo”


(Câmera Privê), “cammodel” (WebCamModels), “emissor Independente” (Cam4), “Independent
Broadcasters” (Chatubarte) não só aliviam as empresas-plataformas das jurisdições do mercado
do sexo como esvaziam a atividade do webcamming erótico da gramática do trabalho sexual.
18 A relação que estabeleço aqui entre as “(des)identificações sexuais” no interior dos distancia-
mentos gramaticais/práticos de minhas interlocutoras acerca da natureza do trabalho sexual
do webcamming erótico – bem como suas hierarquias morais – é iluminada pela defesa de Gayle
Rubin (2003, p. 35): “O trabalho sexual é uma profissão, enquanto que um desvio sexual é uma
preferência erótica. Não obstante, eles partilham algumas características de organização social.
Como os homossexuais, as prostitutas são um grupo sexual estigmatizado com base na ativida-
de sexual […] Como os gays, as prostitutas ocupam territórios urbanos bem delimitados e lutam
com a polícia para defender e manter esses territórios”.

glossario-das-desidentidades-MIOLO.indb 86 13/09/2023 07:13


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glossario-das-desidentidades-MIOLO.indb 88 13/09/2023 07:13
89

CAVALO-MARINHO

Anne Alencar Monteiro

Durante o trabalho de campo para produzir minha dissertação de mes-


trado (MONTEIRO, 2018), 1 conversei com diferentes homens trans 2
que haviam passado pela experiência da gestação. Ao narrarem essa

1 Nesta pesquisa anterior analisei as dinâmicas relacionais de parentesco que envolvem as trans-
formações corporais, a sexualidade e a reprodução para homens trans que passaram pela expe-
riência da gestação. Este estudo é de caráter etnográfico e para desenvolver o trabalho de campo
utilizei três estratégias metodológicas: a realização de entrevistas em profundidade e semiestru-
turadas com oito homens trans de diferentes regiões do Brasil; observação participante em espa-
ços de convivência dos homens trans na cidade de Salvador (BA); e exploração de sites e mídias
sociais on-line. Todo esse processo durou cerca de um ano e meio e ocorreu entre os meses de se-
tembro de 2016 e abril de 2018.
2 A categoria “homem trans” é utilizada aqui como um termo guarda-chuva para se referir às pessoas
que foram designadas como “mulheres” ao nascer, a partir da observação de suas genitálias, mas
que, no curso de sua constituição como sujeitos, se opuseram a essa determinação e se autoiden-
tificam enquanto “homens”. Tal experiência se caracteriza por uma diversidade de nomenclaturas
como: trans homem, transman, FTM (sigla original do inglês female-to-male), transexual masculi-
no, homem transexual, pessoa transmasculina e “boyceta”. Essa experiência é marcada por diferen-
tes formas de transformações corporais que podem incluir desde a utilização de roupas e acessó-
rios considerados masculinos até as intervenções cirúrgicas e hormonais. (ALMEIDA, 2012; ­ÁVILA,
2014) Recentemente, passei a encontrar em campo pessoas que se identificam enquanto pessoa
transmasculina. Esta categoria é utilizada para dar conta das pessoas que pensam e constroem suas
identidades de gênero para além das categorias binárias, uma vez que essas pessoas tendem a não
se identificar com a categoria homem, mas com as masculinidades, ou seja, enfatizam que há a pos-
sibilidade de vivenciar a masculinidade sem necessariamente ser uma vivência de homem.

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90 Anne Alencar Monteiro

experiência, parte deles utilizou o termo cavalo-marinho para explicar


o fato de ser um homem e ter engravidado. A lógica que faz referência ao
cavalo-marinho está na associação entre gravidez e masculinidade, uma
vez que, no caso dessa espécie animal, o indivíduo que é considerado o
macho engravida. Nesse sentido, esse termo é utilizado em contextos trans
para referir-se à gestação e/ou à paternidade transmasculina (embora nem
todos os homens trans o utilizem ou se identifiquem com o termo). É o
que, por exemplo, Carlos ilustra ao relacionar a ideia do cavalo-marinho
a ser um homem trans e ter gestado seus dois filhos:

Eu acho que posso dizer que nós homens trans somos que nem os cava-
los-marinhos porque, no cavalo-marinho, é o macho que engravida.
Eu engravidei duas vezes e mesmo assim ainda queria fazer a tran-
sição [de gênero]. [...] Não me sinto menos homem porque pari meus
filhos. (grifo nosso)

Carlos tem 36 anos, quando engravidou ainda não se identificava


enquanto um homem trans, teve seu primeiro filho aos 20 anos e, cinco
anos depois, deu à luz a sua segunda filha. Conheci Carlos quando ele
morava em Salvador (Bahia) junto com sua ex-esposa, com a qual dividia
as despesas e os cuidados com a casa e com as crianças. Quando o inda-
guei sobre o fato de ter gestado e, agora, identificar-se enquanto homem,
Carlos me respondeu de forma direta: “Para mim isso não afeta em nada,
não pesou na minha transição”. Este pequeno relato ilustra a relação entre
os processos reprodutivos e aquilo que grande parte dos homens trans
chamam de transição de gênero.
Observei, durante o campo, que essa transição de gênero não é linear,
nem homogênea; possui muitas nuances, idas e vindas. O ponto fundamental
desse processo parece ser a autoidentificação enquanto homem ou com a
masculinidade. Cada homem trans pode ou não utilizar o que há disponível
para compor seu gênero. Essa transição envolve mudanças legais e modifica-
ções corporais que podem incluir o uso de fármacos a base de testosterona,3

3 É comum entre os homens trans a utilização de diferentes fármacos a base de testosterona (por
exemplo, Deposteron, Durateston, Androgel e Nebido). Por meio do uso contínuo desses hor-
mônios, eles vivenciam mudanças significativas em seus corpos, como, por exemplo, o cresci-
mento de pelos do rosto, formando a barba e o bigode; mudança no timbre da voz, que a torna
mais grave; aumento da força muscular, aumento da libido sexual, mudanças no cheiro e espes-
sura dos fluidos corporais e a interrupção da menstruação.

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cavalo -marinho 91

o uso de binder4 e packer,5 roupas e acessórios considerados masculinos,


loções para crescer a barba6 e a realização de cirurgias.
A principal cirurgia realizada e a mais desejada entre os homens trans
é a mastectomia ou mamoplastia masculinizadora, que visa masculinizar o
tórax a partir da retirada dos seios. Além da mastectomia, outras cirurgias
podem ser feitas, como a histerectomia, que consiste na retirada do útero,
e a cirurgia de redesignação sexual. Essas cirurgias são feitas com menos
frequência, sendo a última menos desejada, pois, segundo eles, os resul-
tados não são satisfatórios. Todos esses processos que envolvem a tran-
sição de gênero funcionam em relação e contra os parâmetros médicos7 e
jurídicos que atualmente se baseiam numa distinção entre sexo e gênero,
natureza e cultura, que tem suas raízes na ciência sexual do século XIX.
(GONZALEZ-POLLEDO, 2017) Tais parâmetros pressupõem que a tran-
sição começa quando o sexo e o gênero estão desalinhados e definem a
transição como uma passagem linear de um gênero para o outro, sendo
o sucesso dessa transformação dependente de mudanças físicas, psico-
lógicas e expressões de gênero bem definidas e alinhadas. (GONZALEZ-
POLLEDO, 2017) Contudo, pude observar que as vivências cotidianas
dessas pessoas são mais complexas e que nem sempre se encaixam nos
critérios definidos por tais parâmetros, como é o caso, por exemplo, dos
homens trans que engravidam.
Assim, como o processo de transição de gênero é múltiplo e diverso,
homens trans podem engravidar na medida em que não tenham realizado
a histerectomia ou a cirurgia de redesignação sexual, tenham interrom-
pido ou nunca tenham iniciado o tratamento hormonal e que não façam
uso de contraceptivos. Há também os que não desejam engravidar. Dessa

4 O binder é um colete ou faixa, feito de tecido elástico, que comprime e esconde o tamanho dos
seios. É bastante utilizado pelos homens trans que ainda não realizaram a mastectomia.
5 Os packers são próteses penianas que podem ser feitas de vários tamanhos, estilos e materiais.
Eles servem para fazer volume na roupa, para urinar em pé, para ter relações sexuais e podem
ser facilmente adquiridas em lojas virtuais ou em sex shops. Alguns homens trans fazem o pa-
cker com meias emboladas e dobradas para que simulem o volume do pênis na roupa.
6 Alguns homens trans utilizam o Minoxidil, um vasodilatador que estimula o crescimento da
barba e do bigode.
7 No caso do Brasil esses parâmetros estão ligados ao chamado processo transexualizador no âm-
bito do Sistema Único de Saúde (SUS). Segundo Vergueiro (2015, p. 1), “o ‘Processo Transexuali-
zador’ é a base para a atenção específica às populações trans no sistema público de saúde (SUS),
e é significativamente fundamentado em perspectivas patologizantes sobre a diversidade de
identidades de gênero”.

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92 Anne Alencar Monteiro

maneira, muitos homens trans não são estéreis, mas o uso dos seus órgãos
reprodutivos pode significar uma transgressão ao gênero escolhido, uma
vez que a gestação pode ser vista como um ato incompatível com a sua
masculinidade, pois ser um homem pode ser compreendido como sinô-
nimo de não engravidar. (HÉRAULT, 2011) No entanto, para os homens
trans com os quais convivi, a gravidez não significou ser “menos homem”.
Nesse contexto, a reprodução não é negada, mas incorporada ao próprio
processo de transição de gênero, como é exemplificado na utilização do
termo cavalo-marinho.
Como argumentei anteriormente (MONTEIRO, 2020), ao utilizarem
a metáfora do cavalo-marinho esses homens trans buscam, no domínio
daquilo que se entende como natureza ou biologia, algo que dê sentido à
possibilidade que há em seus corpos de engravidar e parir sem deixar de
lado as suas masculinidades. Vemos que, nesse contexto, a “natureza” é
mobilizada como uma categoria capaz de tornar ainda mais inteligível a
existência de um homem grávido ou capaz de engravidar. Embora essa
referência à biologia possa ser compreendida como uma forma de essen-
cializar as experiências sociais da reprodução, essa metáfora do cavalo-
-marinho funciona como uma crítica aos paradigmas culturais vigentes,
em que gestar e parir está relacionado com o ser mulher cis8 e ser mãe.
Com isso, o cavalo-marinho é utilizado como uma forma de (des)identi-
ficação e de associação direta entre gravidez, feminilidade, maternidade
e cisgeneridade.
Ao passo em que esses homens trans mantêm seus processos de masculi-
nização junto à possibilidade de gravidez e do parto, elementos importantes
como, por exemplo, os fármacos a base de testosterona, a mastectomia,
o útero e a gestação são mobilizados estrategicamente para transformar
uma pessoa em um homem e em um pai. A questão da paternidade é apre-
sentada pelos homens trans com os quais eu convivi, principalmente por
aqueles que engravidaram antes da transição de gênero, como um processo
delicado, que requer cuidado e paciência, para se desvincular da imagem
feminina de uma mãe. Dessa maneira, eles buscam estratégias e negociam
outras formas de (re)significar essas relações.
Gustavo, um homem trans de 25 anos, que mora em São Paulo, engra-
vidou antes da transição e tem uma filha de cinco anos chamada Manu.

8 Cis ou cisgênero é um termo utilizado para se referir às pessoas que se identificam com o gênero
que lhes foi atribuído ao nascimento e que não se identificam enquanto trans.

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cavalo -marinho 93

Quando contou para sua filha sobre sua transgeneridade, Gustavo disse
que, no início, ela simplesmente dizia que “a minha mãe é menina e
menino”. Contudo, com o passar do tempo, quando as primeiras mudanças
corporais começaram a surgir como resposta ao tratamento hormonal,
Manu ficou muito triste, dizendo que não queria que Gustavo “virasse”
um menino, pois tinha muito medo de perder a mãe. Gustavo diz que foi
difícil lidar com essa fase e que sempre tentava fazê-la compreender essas
mudanças, deixando-a bem à vontade para conversar sobre a situação.
Para Gustavo, a parte mais complicada era quando Manu o chamava de
mãe em ambientes públicos. Como ele já estava adquirindo certas carac-
terísticas corporais consideradas masculinas, como barba e bigode, ser
identificado no feminino em algumas situações era constrangedor:

[...] eu gostaria muito que ela [Manu] me visse como pai, mesmo
já tendo o outro dela, mas que não fosse algo imposto. E principal-
mente por conta do constrangimento que eu passo sempre, quando
nós saímos, e ela me chama de mãe e as pessoas olham tipo, como
assim mãe?.

Essa narrativa apresentada por Gustavo evidencia que os sentidos


de maternidade e paternidade não são fixos e podem ser alvo de tensões.
O fato de uma pessoa engravidar e se reconhecer enquanto um homem
e um pai, pode gerar determinados conflitos no modo como vinha esta-
belecendo suas relações anteriormente. Assim, percebemos que o pro-
cesso de transição de gênero não está desassociado das relações com as
outras pessoas.
Com base no que foi apresentado fica evidente que mesmo não se iden-
tificando como homens quando engravidaram, esses homens trans narram
essa experiência como fazendo parte do processo de masculinização,
demonstrando que a transgeneridade não envolve só aspecto subjetivos,
ligados às transformações corporais, mas que ela também está inserida nos
modos relacionais (CARSTEN, 2000, 2004), ligados ao parentesco e à repro-
dução. Portanto, ao utilizarem a (des)identificação cavalo-marinho eles
(re)significam a capacidade que há em seus corpos de engravidar, a partir
de suas vivências e experiências transmasculinas. Assim, a gravidez passa
a ser compreendida como um processo que em modo algum fica restrito à
feminilidade ou associada diretamente à maternidade.

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94 Anne Alencar Monteiro

REFERÊNCIAS
ALMEIDA, G. ‘Homens trans’: novos matizes na aquarela das masculinidades?.
Estudos Feministas, Florianópolis, v. 20, n. 2, p. 513-523, 2012. Disponível em:
https://www.scielo.br/j/ref/a/wkWvfpf58vHyvr35KTZyvtr/?lang=pt. Acesso em:
5 out. 2021.

ÁVILA, S. Transmasculinidades: a emergência de novas identidades. Rio de


Janeiro: Multifoco, 2014.

CARSTEN, J. (org.). Cultures of relatedness: new approaches to the study of


kinship. Cambridge: Cambridge University Press, 2000.

CARSTEN, J. After Kinship. Cambridge: Cambridge University Press, 2004.

GONZALEZ-POLLEDO, E. J. Transitioning: matter, gender, thought. New York:


Rowman e Littlefield, 2017.

HÉRAULT, L. Le mari enceint: construction familiale et disposition corporelle.


Critique: Centre National des Lettres, França, v. 764-765, n. 1-2, p. 48-60, 2011.
Disponível em: https://www.cairn.info/revue-critique-2011-1-page-48.htm.
Acesso em: 5 out. 2021.

MONTEIRO, A. A. Homens que engravidam: um estudo etnográfico sobre


parentalidades trans e reprodução. 2018. Dissertação (Mestrado em
Antropologia) – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade
Federal da Bahia, Salvador, 2018.

MONTEIRO, A. A. Cavalos-marinhos: uma análise etnográfica sobre


masculinidades que engravidam. In: BOLLETTIN, P.; EL-HANI, C. (org.). Teorias
da Natureza: etnografias da Bahia. Padova: Cooperativa Libraria Editrice
Università di Padova, 2020. p. 11-30.

VERGUEIRO, V. Por inflexões decoloniais de corpos e identidades de gênero


inconformes: uma análise autoetnográfica da cisgeneridade como normatividade.
2015. Dissertação (Mestrado Multidisciplinar em Cultura e Sociedade) – Instituto
de Humanidades, Artes e Ciências Professor Milton Santos, Universidade Federal
da Bahia, Salvador, 2015.

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95

CRIANÇA VIADA

Felipe Aurélio Euzébio


Nina Acacio

Quando falamos em crianças viadas,1 a criança é só no nome, só na idade.


A parte viada toma conta do resto. É a parte viada que não deixa ela na
inocência do “criançar”. Ou, melhor, é o olhar do outro que tira da criança
viada a inocência. Que agride, que xinga, que exclui, que mata. Não importa
a idade, se a parte viada for notada, a “criança criança” deixa de existir.
Ela passa a ser o menino no canto da sala de aula e que gosta de boneca,
a menina sozinha com o boné para trás e uma bola no pé ou mesmo a
criança que sonha com a cauda de sereia e com a troca das cores das peças
no guarda-roupa.
Antes de seguir, é preciso dizer que os exemplos citados acima e os
que se seguirão ao longo deste verbete não foram inventados ao acaso.
As crianças viadas deste texto somos nós. São partes recortadas de nossas

1 Aos leitores(as), vocês notarão que o termo criança viada irá aparecer a todo momento e se re-
petirá inúmeras vezes ao longo do texto e, é preciso dizer, isso não é por acaso (nada é por um
acaso) ou até mesmo falha na escrita. Utilizamos a repetição e a substituição de palavras gene-
ralizadas enquanto uma estratégia empregada para que a forma como escrevemos seja coerente
com o que estamos propondo em termos de crianças viadas. Crianças viadas não possuem uma
identidade de gênero, uma orientação sexual ou uma idade específica. Trata-se de um espectro
borrado e corporificado à medida que é apontado e acusado na direção de uma criança qualquer
que esteja em desacordos com as normas e imposições cisheterossexuais.

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96 Felipe Aurélio Euzébio e Nina Acacio

infâncias misturadas às narrativas etnográficas de uma pesquisa desen-


volvida com professoras de educação infantil e séries iniciais. São borrões
de histórias que nos ajudam a dar contorno ao que aqui nomearemos de
crianças viadas.
Alguns as chamariam de “crianças que não cabem em si”. Para
Alexsandro Rodrigues e demais autores (2019, p. 2), os processos de identi-
dades, ou mesmo o olhar inquisidor mencionado anteriormente, avolumado
nos últimos tempos, são “obsessões compartilhadas em torno do disposi-
tivo da infância, que buscam em seus exercícios de poder e saber interditar
a criança que escapa e borra o sistema sexo/gênero”.
As crianças viadas são aquelas em dissidência com as normas de gênero
e/ou sexualidade. São as que transgridem as amarras pré-concebidas do azul
e rosa e, por isso, acabam fragilizando os dispositivos da infância, da moral
e dos bons costumes. Estas transgressões localizam-se em processos de uma
“rebeldia” mediada, vigiada e controlada, que se materializa e se corporifica nas
expectativas de gênero “quebradas” e nas tecnologias de gênero (DE LAURETIS,
1994) que, quando possíveis, são ressignificadas e reconstruídas.
Também é preciso dizer que, por mais que o termo “viada” esteja aqui
adjetivando a figura da criança, a criança viada não será necessariamente
homossexual. Tomaremos “viada” como uma expressão dessa dissidência,
que mesmo em sua potencialidade não é suficiente para nomear uma
criança como cis ou trans, de uma orientação sexual essa ou aquela. Dito
isso, é possível direcionar o olhar para as multiplicidades de identidades e
orientações sexuais que compõem a sigla LGBTQIAPN+, mesmo que esta
sigla ainda esteja em construção e expansão, e perceber o óbvio muitas
vezes esquecido: pessoas LGBTQIAPN+ já foram crianças.
É dessas crianças que estamos falando. Que estão presentes no coti-
diano de qualquer escola, rua ou casa. Que são percebidas nas bonecas de
papel facilmente criadas e destruídas para não “testemunharem” uma brin-
cadeira proibida, como também, nos jogos de futebol em que a presença da
criança viada é alvo de uma “torcida” preocupada com o “rabo de cavalo
bagunçado” ou com o suor que não cai bem em uma menina.
Essas crianças viadas existem sem serem nomeadas; são um amon-
toado de histórias que vez ou outra estampam as manchetes dos telejor-
nais. E, se podem ser pensadas enquanto histórias, ou mesmo “fábulas
de uma vida bicha” (RODRIGUES et al., 2017), a melhor forma que encon-
tramos de dar certo contorno a esse verbete tão complexo, instável e cheio
de pontas soltas, é a partir de narrativas coletadas e relatos de situações
em que as crianças viadas que um dia fomos estiveram presentes. Fazemos

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criança-viada 97

este esforço de resgatar histórias, fábulas, contos e narrativas que forneçam


alguns dos borrões que precisamos para elaborar o que significa ser uma
criança viada. Segue uma:

A criança viada dessa primeira história vivia no mundo cor de rosa...


Ela tinha que se sentar na mesa rosa, na cadeira rosa... Na hora de
pintar, todos os desenhos dela eram cor de rosa... Ela queria passar
batom... Às vezes ela passava o dedo no lábio da professora para tirar
o batom e passar na boca dela... Se alguma menina levava maquiagem
infantil, ela enlouquecia porque ela queria muito se maquiar... E na
hora das fantasias também... Todos os meninos iam para as fanta-
sias de super-herói... De tudo que tinha... Tinha de super-herói, de
anjo, de Papai Noel... Era bem diversificado... E as meninas para as
de bailarinas, princesinha... E a criança viada sempre queria a de
princesa... Sempre... Daí ela vestia, dançava, ela dizia que ela era
a Cinderela, às vezes ela se vestia de Branca de Neve e daí ela ence-
nava... Ela adorava histórias de princesa, então sempre que era para
a professora contar uma história, a criança viada queria que a pro-
fessora contasse sempre história de princesa e ela encenava muito...
Ela tinha uma imaginação muito aguçada para essa parte da lite-
ratura infantil, ela representava quando ela botava as fantasias na
sala de aula... Se a criança viada colocava a fantasia da Branca de
Neve, ela pegava a maçã, dos brinquedos de panelinha que tinha as
comidinhas, e ela mordia e caia no chão, abria só um olhinho e dizia
assim: Quem vai me beijar? Quem vai me beijar? Cadê meu príncipe?
(Trecho de entrevista com professora do ensino infantil realizada
em 2020, os nomes foram alterados, grifo nosso)2

O único problema é que nem todas as pessoas a viam como uma prin-
cesa. Para muitas pessoas ela era um menino fora da norma!
Quem narra a história acima, transformada em conto, é uma professora
de ensino infantil. Segundo ela, essa foi a primeira vez que se deparou com

2 Esta entrevista, bem como os demais dados etnográficos deste texto, é oriunda de d
­ iferentes
­interlocuções desenvolvidas no Projeto de Extensão “Mapeando a Noite: Universo T
­ ravesti”,
vinculado ao Grupo de Estudos Etnográficos Urbanos da Universidade Federal de Pelotas
­
(GEEUR/UFPEL). Desde 2018, a equipe do projeto (do qual somos integrantes) tem se empenhado
em atender demandas de professores e professoras de educação básica que buscam “instrumen-
talização” para o trato de temáticas relacionadas à diversidade de gênero e sexualidade em sala
de aula. Assim, a pesquisa foi realizada com o desenvolvimento de diversas ações de formação
docente (cursos, minicursos, palestras, oficinas), possibilitando a troca de relatos e experiências
que construíram as relações de interlocução entre docentes e pesquisadores(as).

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98 Felipe Aurélio Euzébio e Nina Acacio

o tema da transgeneridade. Percebemos, ao entrevistá-la, que a transgene-


ridade e as identidades corporificadas na persona da criança viada afetam
– mexem, sacodem e desestabilizam mães, pais, irmãos e irmãs, familiares
próximos e distantes, vizinhos, professores e professoras, colegas de tra-
balho e de escola, e daí por diante. Esse afetar pode resultar em extrema
violência ou, como nesse caso, um sentimento de zelo. A vontade de pro-
teger ou a vontade de corrigir. Quase sempre um extremo ou outro.
A professora conta que essa história se passa em 2018, com uma turma
de Maternal B, ou seja, crianças de 3 a 4 anos.

— Eu tive uma criança viada de três anos que não aceitava o corpo
que tinha. Ela tinha muito conflito com as outras crianças porque ela
dizia que ele não era menino, ela era menina, e não aceitava que cha-
massem ela pelo nome dela [masculino].
— Como é que ela gostava de ser chamada?
— De Cinderela.
(Trecho de entrevista com professora do ensino infantil realizada
em 2020, grifo nosso)

As histórias de crianças viadas são diferentes. Muitas delas não são


contadas como as experiências vividas por Cinderela e narradas pela pro-
fessora. Estas crianças são diversas, suas narrativas conversam e são cons-
truídas por identidades plurais que se relacionam com classes sociais, raça,
regionalismos, categorias de gênero e sexualidade. Assim, crianças viadas
são vistas e percebidas quando não correspondem a uma expectativa e um
desejo de normalização que se inicia desde tenra idade. É necessário com-
preender que as expectativas e os papéis de gênero (LOURO, 2013) que são
impostas às crianças viadas abarcam desde as formas de brincar, de inte-
ragir ou mesmo de como espirrar: “Espirra que nem um homem!”.
Se buscarmos por criança viada em sites de busca como o Google e pes-
quisarmos por imagens, diversas fotografias apareceram. Fotos de crianças
brincando, fazendo pose, dançando, vestindo fantasias, acenando para a
câmera, usando um boné virado para trás ou mesmo apenas sorrindo com
a cabeça levemente inclinada para o lado. Essa busca nos ajuda a ilus-
trar essa (des)identidade que até o menor deslize – como tirar uma foto –
perante a cisheteronormatividade, pode situar uma criança qualquer como
uma criança viada.
Outras histórias cabem aqui. Como esse relato a seguir:

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criança-viada 99

Lembro de um dia, às vezes como se estivesse vivendo novamente em


outros momentos, como um borrão. Estava na 4ª. série, estava com 9
ou 10 anos, as professoras nos deixavam em sala na euforia de mais
um dia de aulas para juntas tomarem um cafezinho na ‘cantina’ da
escola (inclusive minha mãe que também lecionava na escola). Nesse
dia me chamaram de Ana. Ana é o nome de uma mulher trans da
minha cidade. Ela era conhecida e reconhecida na rua, uma vez se
candidatou a vereadora. Outras tantas foi motivo de piada por ser
uma das ‘primeiras’ da cidade. Eu cresci ouvindo sobre ela. Eu cresci
escutando piadas ou histórias de sua ‘agressividade’. Naquela época,
hoje mais ainda, eu entendia que sua agressividade era uma forma
de defesa, porque [eu] mesmo, [ainda sendo] uma criança, tinha que
me defender. Minhas defesas eram diferentes das de Ana. De tanto me
defender, fui apelidada de manteiga derretida, pois as lágrimas eram
constantes. Quando me chamaram de Ana eu chorei, como nunca
tinha chorado na vida. Nunca disse à minha mãe o porquê daquele
choro, dos soluços. Ela soube por uma colega, uma antiga professora
que soube do que aconteceu pelo filho que estudava comigo e presen-
ciou este acontecimento. Naquela época, não compreendia o que era
ser a Ana, não queria ser a Ana. Eu sou a Ana, não porque fui apon-
tada como tal – e aí encontra-se a violência – mas porque entendi que
a Ana também é um pouco de mim. (Relato de uma das autoras for-
necido em 2021, grifo nosso)3

A infância, seus dispositivos e, consequentemente, seu controle são alvos


de disputas. Quando estas crianças (sujeitos da infância como aponta Silva,
2020) transgridem a construção de uma sociedade cishetonormativa elas
passam a ser vigiadas, ainda mais controladas e, em grande maioria, violen-
tadas física e psicologicamente. Estas crianças e suas formas de experienciar
dada realidade são o que Assunção, Azevedo e Ribeirão (2020, p. 51) chamam
de uma “rachadura na estrutura da casa da família tradicional brasileira”.
Por conseguinte, as crianças viadas são sujeitos que vivem cotidiana
e intensamente processos de resistência à normalização e normatização
de corpos (PRECIADO, 2017), experiências e práticas de gênero e sexuali-
dades. Suas performances, seus jeitinhos e trejeitos, quase sempre malvistos
e apontados, são intrínsecos à constituição de um sujeito que é forçado a
aprender e apreender como resistir. Ao trazermos a figura e a (des)identi-
dade destas formas de infância estamos apontando a constituição de um

3 Os nomes originais foram alterados

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100 Felipe Aurélio Euzébio e Nina Acacio

“fazer-se criança” que acontece no hoje, no ontem e no amanhã. Faz parte


da política do “lembrar” dos que cresceram, do “observar” dos que já são
grandes, e da “experiência” de hoje dos que ainda crescerão.

REFERÊNCIAS
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Auto/etnografias, cuidados e reparações. REBEH – Revista Brasileira de Estudos
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LOURO, G. L. Gênero, sexualidade e educação: uma perspectiva pós-estruturalista.


6. ed. Petrópolis: Vozes, 2003.

PRECIADO, P. B. “Cartografias ‘Queer’: O ‘Flâneur’ Perverso, A Lésbica Topofóbica


e A Puta Multicartográfica, Ou Como Fazer uma Cartografia ‘Zorra’ com Annie
Sprinkle”. eRevista Performatus, Inhumas, ano 5, n. 17, 2017. Disponível em:
https://bit.ly/3y3aQdF. Acesso em: 10 maio 2021.

RODRIGUES, A.; OLIVEIRA, M. R. G. de; ROCON, P. C. et al. Precárias


experiências em dissidências: crianças que não cabem em si. Pro-Posições,
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RODRIGUES, A.; ROSEIRO, S. Z.; ZAMBONI, J. et al. Crianças Bichas


demasiadamente fabulosas. Revista Interinstitucional Artes de Educar, Rio
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Acesso em: 10 maio 2021.

SILVA, A. F. da. Olhares sobre crianças e infâncias na Arqueologia: uma breve


aproximação. História Unisinos, São Leopoldo, v. 24, n. 3, p. 343-350, 2020.
Disponível em: https://bit.ly/3y49nnq. Acesso em: 10 maio 2021.

glossario-das-desidentidades-MIOLO.indb 100 13/09/2023 07:13


101

DESCONSTRUÍDA

Hildon Oliveira Santiago Carade

Em 1967, numa conferência dada na Universidade Johns Hopkins, nos


Estados Unidos, o filósofo francês Jacques Derrida cunharia pela primeira
vez o termo “des-construção”, com o objetivo de tecer uma crítica à meta-
física ocidental e a sua mania de operar com base em binarismos. (CEIA,
2009) Mal sabia ele que, no alvorecer do segundo milênio da era cristã, o
seu conceito entraria para o vocabulário de grande parcela de jovens pro-
gressistas atuantes no mundo da internet. Desde então, o termo acabaria
denotando uma espécie de regeneração moral que se expressa mediante os
atos de despojamento dos próprios preconceitos e do reconhecimento de
privilégios, sejam eles de classe, raça ou de orientação sexual. Assim, para
compreendermos o significado do verbete desconstruída, convido o leitor a
um périplo que começa no debate intelectual francês, tendo por escalas os
departamentos de Letras de universidades americanas; a atuação de mino-
rias politicamente organizadas (mulheres, negros, LGBTQIAPN+); e o ati-
vismo digital da era da informação. Mas esse ainda não será o nosso último
destino. Finalizaremos a nossa viagem em um internato escolar localizado
em uma cidade interiorana da Bahia. Senão, vejamos.
No plano da filosofia, o termo “des-construção” foi engendrado por
Derrida nas obras Gramatologia (1973) e Escritura e diferença (1971), ambas
publicadas em fins dos anos de 1960, tendo como alvo a desestabilização do
pensamento metafísico ocidental, que se amparava, na maioria das vezes,

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102 Hildon Oliveira Santiago Carade

em relações binárias estabelecidas a partir da primazia de um termo perante


o outro. Assim, a construção derridiana apontava todas as suas armas contra
a pretensão estruturalista à totalidade, verificada em sua tentativa de cons-
trução de um sistema lógico de relações a governar todos os elementos da
cultura. Não foi este o plano de Claude Lévi-Strauss quando, em As estru-
turas elementares do parentesco (1982), identificara no tabu do incesto o
limiar, a passagem da natureza para a cultura, independente das forma-
ções sociais, dos tempos históricos e da própria consciência dos sujeitos?
As ideias que Derrida havia cunhado para conter a sangria estrutura-
lista cativaram teóricos literários que construíam a sua carreira em solo
americano. Nesse sentido, pode-se mesmo dizer que as universidades de
Yale e Johns Hopkins se transformaram em uma espécie de departamento
francês de ultramar, responsável por transformar a “des-construção” em
um método crítico ou modelo de análise textual. (VASCONCELOS, 2003)

A perspectiva do crítico literário em relação à desconstrução é um


pouco diferente [da estabelecida pelo filósofo francês], pois não está
imediatamente preocupado com o facto de certos textos postergarem
as categorias da metafísica ocidental mas preocupa-se antes com as
propriedades singulares da escrita em si. (CEIA, 2009)

Dos departamentos de Letras americanos, a “des-construção” migraria


para o contexto dos “novos” movimentos sociais, quais sejam, o movimento
dos direitos civis das populações negras do sul dos Estados Unidos, o movi-
mento feminista da denominada segunda onda e o então designado movi-
mento homossexual. (MISKOLCI, 2012) Conforme Miskolci (2012), essa nova
onda dos movimentos sociais questiona as normas, as convenções e impo-
sições sociais que nos assujeitam, buscando tornar visíveis as injustiças e
violências arquitetadas pela demanda de disseminação e cumprimento
dos padrões culturais hegemônicos, indo além das demandas por redistri-
buição de renda. Em especial, o movimento queer – ao almejar a positivação
de uma identidade deteriorada, demonstrando o quanto a dicotomia hete-
rossexualidade/homossexualidade é um regime de poder-saber – surgido
também nos Estados Unidos dos anos de 1980, no contexto da epidemia da
aids, em sua intensa interlocução com a academia, elege o conceito derri-
diano como procedimento metodológico,

indicando um modo de questionar ou de analisar e apostando que


esse modo de análise pode ser útil para desestabilizar binarismos lin-
guísticos e conceituais (ainda que se trate de binarismos tão seguros

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desconstruída 103

como homem/mulher, masculinidade/feminilidade). A descons-


trução das oposições binárias tornaria manifesta a interdependência
e fragmentação de cada um dos polos. (LOURO, 2001, p. 548)

A aparição de novas formas de interação deu um novo fôlego aos movi-


mentos sociais. Na onipresente atmosfera da internet, eles encontraram um
espaço para apresentação de suas demandas a um público mais amplo do
que aquele que, comumente, era alcançado pelos meios de comunicação
de massa tradicionais. “Da segurança do ciberespaço, pessoas de todas as
idades e condições passaram a ocupar o espaço público, num encontro
às cegas entre si e com o destino que desejavam forjar, ao reivindicar seu
direito de fazer história”. (CASTELLS, 2013, p. 23)
Ainda que tenha surgido no alvorecer da década de 1990, com o advento
da web, o chamado “ativismo digital” – compreendido como militância
on-line (VASCONCELOS FILHO; COUTINHO, 2016) – ganha uma maior
amplitude com a chegada do século XXI, o qual assistiu ao surgimento das
tecnologias digitais móveis e, consequentemente, das redes sociais digitais
tais como, inicialmente, o MSN, o Orkut, os blogs e fotologs; e, posterior-
mente, o YouTube, o Facebook, o Twitter, o Instagram e o TikTok.
Também nessas plataformas, os indivíduos passaram a se sentir “pro-
dutores de conteúdo” e muitos deles foram catapultados à fama quase que
instantaneamente. Surgem, então, os blogueiros, os youtubers e os influen-
cers, categorias de sujeitos, pois, que passaram a acumular milhares de likes,
curtidas, tweets e retweets nesse ubíquo mundo do ciberespaço.
Nesse ambiente, a des-construção torna-se um adjetivo: o desconstruído.
Aqui, quando uma pessoa afirma ser desconstruída, ela está se referindo
ao ato de despir-se de todos os preconceitos, em especial, o machismo, o
racismo, a homofobia e a gordofobia, os “quatro cavaleiros do apocalipse” no
mundo virtual. Ser flagrado na companhia de algum deles te torna um alvo
fácil da política do cancelamento, ou seja, da destruição de sua reputação.
Daí o empenho na construção de um “personagem” livre de preconceitos,
esforço muitas vezes malogrado, especialmente quando a criação de um
perfil nas redes sociais digitais tem por objetivo o acúmulo de seguidores,
curtidas e interações nas postagens. Deslizes sempre podem acontecer.

Por isso, a desconstrução, nas mídias sociais, se transforma e se


inverte, não com pouca frequência – de fato, talvez mesmo via de
regra – em ferramenta de autoafirmação. Ela se solidifica na ‘apa-
rência do desconstruído’, que nos esforçamos, então, para transmitir
e preservar a todo custo. (MACHADO, 2020)

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104 Hildon Oliveira Santiago Carade

Todavia, influenciadas pela dinâmica das redes sociais digitais, mas


mantendo-se alheias às fogueiras das vaidades, adolescentes matriculadas
no internato escolar de uma cidade situada na porção centro-sul do estado
da Bahia, a cerca de 280km da capital Salvador, passaram a se denominar
como desconstruídas, uma categoria nativa, pois, que combina aspectos
lúdicos, eróticos e identitários. Vejamos mais de perto.1
Consumindo conteúdos lançados no YouTube, por exemplo, em páginas
humorísticas como o Quebrando tabu, o Guia de sobrevivência de um jovem
adulto e o Porta dos fundos, e acompanhando youtubers e perfis nas redes
digitais de pessoas conhecidas em suas cidades, aos poucos as jovens foram
ampliando o seu repertório cultural. Simultaneamente, elas começaram a
atuar no movimento estudantil, participando de caravanas e viagens para
congressos de entidades representativas da classe, em especial da União
Nacional dos Estudantes (UNE).
No âmbito do internato, por sua vez, em cada dormitório os jovens,
em geral, fazem questão de “rachar” a conta de uma conexão privada de
internet. Aquela que é oferecida gratuitamente pela escola só pode ser
acessada nos espaços formais de ensino (biblioteca e pavilhões de aulas),
além de não primar por uma boa qualidade. Assim, os estudantes encon-
tram na internet, mediante o manuseio de seus telefones móveis, um meio
de passar o tempo na instituição, especialmente no turno noturno, período
em que não estão em aulas.
Esses momentos de ócio são gozados de maneiras distintas, a depender
do gênero do estudante. Nossos dados etnográficos2 sugerem uma certa
diferenciação da experiência de internamento: enquanto os meninos se
dispersam e ocupam todo o espaço público da escola (cantina, quadra e
demais áreas de lazer), as meninas preferencialmente optam por perma-
necer em seus quartos, retirando-se deles quase sempre nas horas das refei-
ções e das aulas. Assim, enquanto os rapazes aparecem como os líderes das
galeras, promovendo a zoeira e mesmo atitudes de indisciplina, as garotas
adotam uma postura mais passiva, tornando-se espectadoras das alga-
zarras masculinas, fenômeno já observado por Pereira (2017) em escolas

1 Os dados doravante apresentados foram coletados no âmbito da pesquisa “Longe da casa dos
pais: sobre a experiência dos jovens em regime de internato escolar”, aprovado pelo Comitê de
Ética do Instituto Federal da Bahia, através do Parecer Consubstanciado nº 4.328.150, de 08 de
outubro de 2020.
2 Dados obtidos nas entrevistas semiestruturadas realizadas com as adolescentes, bem como
através do exercício de observação participante do cotidiano escolar.

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desconstruída 105

públicas de São Paulo. Diante deste cenário, longe da vigilância dos demais
membros da organização, as adolescentes, encerradas na esfera privada,
encontram suas próprias maneiras de socializarem-se e de divertirem-se,
o que McRobbie e Garber (2006) chamam de “cultura de quarto”. Através
de jogos e brincadeiras, as meninas passam a ensaiar e performar outras
identidades sexuais, para além do binarismo hétero-homossexual. Para
algumas internas, que mantêm uma relação conflituosa com suas famílias
por conta de suas sexualidades, o internato escolar surge como que envolto
por uma aura de liberdade, uma possibilidade para elas se descobrirem e
dar vazão aos desejos mais íntimos. Enfim, tudo se passa como se em um
ambiente onde viceja o “poder disciplinar” (FOUCAULT, 1987), em que as
alunas pudessem encontrar um caminho passível de contrariar o caráter
compulsório da heterossexualidade.
É nesse encontro entre o lúdico e o erótico que elas passam a se designar
como desconstruídas. Tudo pode começar com uma simples brincadeira.
As meninas formam um círculo ao redor de uma das camas do dormi-
tório; sobre esta superfície, uma garrafa é disposta ao centro. Uma vez
girada, temos o início do jogo “verdade ou consequência” ou, conforme
outra nomenclatura, “verdade ou desafio”.3 Ao serem miradas pelo objeto
(quem estiver com a boca da garrafa apontada para si, fará uma pergunta;
quem for apontada pelo fundo, deverá responder), as estudantes encon-
tram um pretexto para zoar as amigas e a si mesmas. As perguntas elabo-
radas, geralmente, avançam para o território da intimidade: “você ficaria
com algum professor/servidor?”, “você já beijou outra menina?”, “você
pegaria fulano do ap.[apartamento] 13?”, são alguns exemplos. A respon-
dente opta por responder ao questionamento ou por pagar uma “prenda”.
Estas quase sempre envolvem algum contato corporal: beijar uma outra
colega de quarto, por que não? Assim, sem se preocupar com rótulos e em
um clima de descontração, as garotas matam o tempo. Às vezes, maliciosa-
mente, elas entram na brincadeira já visando a “prenda” que deverão cum-
prir, pois são “desconstruídas”.
Dessa maneira, nesse ambiente, o termo desconstruída indica a fluidez
e a permissividade que as estudantes se davam em experimentar carícias
e gestos homoafetivos com suas colegas de quarto. Identificar-se com esse
termo aqui, para além do amplo guarda-chuva “não ser preconceituosa”, sig-
nificava estar aberta a beijar e até “ficar” com alguma amiga de acomodação,

3 Obtivemos esta descrição em algumas entrevistas realizadas com as adolescentes.

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106 Hildon Oliveira Santiago Carade

de uma maneira despretensiosa, uma brincadeira mesmo, sem maiores con-


sequências. Não muito preocupadas em ir ao encontro de suas essências,
afastando-se do “complexo de Gabriela” – aquela da modinha que entoava
“eu nasci assim, eu cresci assim, vou ser sempre assim” –, as meninas des-
construídas davam indicações do quanto estavam aptas a serem guiadas
pela própria curiosidade. Por que confinarmos tudo isso na esfera da sexua-
lidade e da chamada identidade sexual, se tudo é tão somente um inocente
jogo? “Precisamos verdadeiramente de um verdadeiro sexo?” – pergunta-
-se Foucault em Herculine Barbin: o diário de um hermafrodita (1982, p. 1).
As meninas certamente responderiam que não. Como não encontramos
relatos de experiências semelhantes entre os rapazes do internato, descons-
truída só pode aparecer aqui no feminino.
Enfim, da crítica aos ditames da metafísica ocidental à análise textual;
dos círculos da Literatura aos “novos” movimentos sociais; destes ao uni-
verso infinito da internet; por conseguinte, da egotrip das redes sociais digi-
tais e sua busca incessante por seguidores e engajamento às brincadeiras
jocosas das garotas no internato escolar de uma pequena cidade da Bahia.
Venceu-se, pois, o percurso para a compreensão do verbete desconstruída.

REFERÊNCIAS
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internet. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2013.

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desconstruída 107

LÉVI-STRAUSS, C. As estruturas elementares do parentesco. Petrópolis: Vozes,


1982.

LOURO, G. L. Teoria queer: uma política pós-identitária para a educação, Estudos


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MACHADO, L. Desconstrução, autoafirmação e redes sociais. A terra é redonda,


São Paulo, 13 ago. 2020. Disponível em: https://aterraeredonda.com.br/
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MCROBBIE, A.; GARBER, J. Girls and subcultures. In: HALL, S.; JEFFERSON, T.
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Acesso em: 10 jul. 2021.

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109

DO VALE

George Amaral Santos

Estávamos em uma cafeteria de Salvador, eu comendo um pedaço de bolo


e meu interlocutor, animado, me contava sobre os festejos do seu aniver-
sário. Jaques (nome fictício) é um homem trans, ou seja, um homem que
subverte a lógica linear binária genital–gênero, ao performar um gênero
diferente daquele que lhe foi atribuído no nascimento em razão de seus
genitais. Fazendo isso, requer, por meio de apropriações epistemológicas,
semióticas e tecnológicas, a legitimidade de sua identidade masculina.
Ele tem 22 anos de idade e está prestes a financiar um carro usado para
conseguir trabalhar como vendedor. Já misturando o assunto de sua festa
com o financiamento do carro, ele me fala sobre o rapaz com quem está
negociando – um jovem médico que reside em Belo Horizonte, capital
de Minas Gerais. No meio da narrativa de como conheceu o negociante,
mostrou-me no celular a conversa que se desenrolou entre eles e acres-
centou: “eu falei assim para minha noiva: eu acho que esse cara é do vale!
Normalmente, eu me dou muito bem com as pessoas que são do vale. Por quê?
Não sei! Acho que está todo mundo em casa. Me sinto mais confortável”. (grifo
nosso) Contou sorrindo, enquanto bebia café.
Era a segunda vez que eu ouvia a expressão do vale. Logo perguntei que
sentido ela tinha para Jaques. O uso, quase sempre acompanhado de um
sorriso de canto de boca, falava de um sentimento de pertencimento e rela-
cionava-se a práticas de identificação com grupos não heterossexuais, tais

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110 George Amaral Santos

como trocas de afeto entre dois homens ou entre duas mulheres e compor-
tamentos tidos como afeminados em corpos com pênis.
O termo faz referência direta ao testemunho de uma pastora evangélica
chamada Yonara de Lira, conhecida como Yonara Santo, no qual ela afirma
ter visitado o inferno por 15 vezes. Seus vídeos e depoimentos tornaram-se
virais desde as frequentes aparições que fazia em programas de televisão
na década de 2010. Em vídeos, disponíveis no YouTube, a pastora descreve
pormenorizadamente cenas de seus passeios pelo inferno, guiada pelo pró-
prio deus cristão. Um dos cenários é o “Vale dos Homossexuais”, descrito
por ela da seguinte forma:

É o único local que eu vi no inferno, em que estão todos juntos. Um


ardendo de frente para o outro para nunca esquecerem da abomi-
nação que fizeram diante de deus. Homem com homem. Mulher com
mulher. Um de frente para o outro. O anjo me disse: Todos aqueles
que praticam o homossexualismo, eles vão para o inferno. Só no
vale dos homossexuais eu fui seis vezes, e vi de diversos ângulos:
tanto de cima quanto de baixo e dos lados. (TESTEMUNHO..., 2016)

Intercalando à sua narrativa, ela faz citações de textos bíblicos dos


livros de Levítico e da Carta aos Romanos para basear sua afirmação de que
homossexuais são dignos de morte e culpados por tal fim. As viagens ao
inferno são presença constante nas tradições judaica e cristã desde textos
antigos, como o Apocalipse de Pedro. Tais descrições fazem parte do ima-
ginário cristão e se preocupam em apresentar os castigos a que estão desti-
nadas as pessoas que desobedecem às normas da doutrina religiosa. Figuras
como vales e lagos de horror são comuns e costumam ter ícones grotescos
como dejetos humanos e torturas incessantes perpetradas por demônios.
(MATTOS, 2020)
Tais recursos narrativos influenciam diretamente o imaginário reli-
gioso do cristianismo, à medida que produz e satisfaz um desejo de ver rea-
lizada a punição de comportamentos considerados contrários aos dogmas
bíblicos. (SOUZA, 2011) Salientam, dessa forma, a justiça divina em exaltar
o estilo de vida heterossexual como superior, legítimo e digno, ao mesmo
tempo em que expõe ao escárnio e condena à morte física e espiritual pes-
soas que contrariem tal estilo. A pastora Yonara inclui no rol de pecadores,
logo condenados à sua visão do inferno, também aquelas pessoas heteros-
sexuais que tenham algum respeito ou admiração por pessoas homosse-
xuais. Em suas palavras:

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do vale 111

Quando você diz: eu não sou homossexual, mas se o fulano quer


ser, eu não tenho nada a ver. ‘Eu até acho bonito ver duas mulheres,
embora eu não pratique’. Quando você diz isso, você está pecando
ao deus criador, dizendo a ele em palavras: ‘Senhor, eu não acredito
naquilo que tu constituíste como família na terra: homem e mulher’.
(TESTEMUNHO..., 2016)

Essa narrativa colabora na produção de recursos retóricos para violên-


cias de diversas ordens contra aqueles e aquelas que ocupariam “o vale dos
homossexuais”, inclusive nas disputas pela elaboração de políticas de saúde.
(QUINTÃO, 2017) Naquela mesma década, a estratégia de enfrentamento à
cruzada da pastora para marginalizar os aspirantes a habitantes do Vale dos
Homossexuais ganhou corpo nas redes sociais on-line como Orkut, Twitter,
Instagram e Facebook. Uma série de vídeos, fotos, imagens, memes, gifs,
grupos, tweets e postagens de diversas formas passaram a compor o cenário
virtual com a intenção de desarticular a agressividade do discurso religioso
tão difundido nas apresentações de Yonara Santo.
Foi nesse contexto que o humor, como prática de resistência, também
começou a aparecer em performances articuladas pelas redes sociais
­on-line com o intuito de desarmar o discurso hegemônico de condenação
aos homossexuais e produzir um senso quase patriótico de pertencimento
ao Vale dos Homossexuais. As produções textuais e imagéticas que zom-
bavam desse discurso religioso violento produziram um eixo em torno do
qual as pessoas atacadas se reuniram e se identificaram. O humor, tal como
abordado por Goldstein (2013) em sua etnografia de uma favela brasileira,
produz interseções com a violência no sentido de produzir palavras sobre
a experiência. É uma forma de tornar suportável falar; bem como de pro-
duzir esperança de enfrentamento em contextos de hostilidade tão intensos
como nos produzidos pelo racismo, machismo e preconceitos de gênero e
sexualidade. Funciona tanto como uma prática de ruptura com normativi-
dades, quanto como uma máscara que suaviza a resistência.
O termo do vale emergiria outras vezes durante o meu trabalho de
campo, na produção da pesquisa Práticas de homens trans para produção
de vida melhor: sobre (r)existir (2019). Nos primeiros dias de acompanha-
mento aos participantes, minhas observações se concentravam em perceber
formas de nomear identidades, grupos e espaços que compunham os cená-
rios em que eu estava. Do vale, evocando o humor por fazer troça das con-
denações religiosas, surgia como uma estratégia de “(r)existência” por ser
usado para aproximar pessoas que rompiam com a cisheteronormatividade

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112 George Amaral Santos

– o conjunto de instituições, estruturas de compreensão e orientações prá-


ticas que tornam a experiência de pessoas que performam o mesmo gênero
que lhes foi designado em razão de seu genital (cisgeneridade) e os desejos
sexuais direcionados exclusivamente a pessoas do gênero oposto a este
(heterossexualidade), como os padrões morais coerentes e naturalizados
da experiência humana. (VERGUEIRO, 2016)
Durante o acompanhamento ao Jaques, meu interlocutor em estudo
anterior (AMARAL-SANTOS, 2019), por exemplo, do vale era a expressão
evocada para explicar o conforto sentido em participar de uma pesquisa
em que o pesquisador estava tão presente no seu cotidiano. Eu era adjeti-
vado, em suas palavras, como “um amigo do vale”. Era como ele suavizava
minha presença em seu cotidiano de trabalho, lazer e convivência com
familiares. Também servia para me localizar quando estávamos em seus
círculos de amizade: “Ele é do vale também”, dizia quando me apresentava
a um de seus grupos.
Outro episódio ocorreu quando buscávamos alguns produtos na casa
de um de seus contatos de trabalho. Estávamos em um prédio pequeno,
sem elevador, e na porta da casa havia uma plaquinha que dizia: “Vale dos
Homossexuais”. Embaixo dessa frase, a imagem de unicórnios com os pelos
esvoaçantes correndo em um vale verdejante; centralizado na imagem, um
rio de águas azuis, ladeado por um arco-íris. Aparentemente, aquele era um
apartamento dividido por alguns rapazes gays e bissexuais e, novamente,
tinha esse sentido de confraria. Uma clara demarcação do território de um
grupo e afirmação de sua identidade como habitantes do vale.
Oliva (2018) descreve o uso de um meme durante as olimpíadas de 2018,
em que o termo “Vale dos Homossexuais” fazia alusão à delegação no des-
file de abertura. Como se fosse um país participante dos jogos. Naquele
caso, uma estratégia de enfrentamento à hashtag #gaysnomerecenme-
dallas. O humor é analisado aí em sua potência para desarticular ataques
a minorias sexuais, ridicularizando discursos de ódio. Outro exemplo da
apropriação do termo para afirmar identidade e grupalidade aconteceu em
fevereiro de 2018, no Carnaval em Salvador. Jaques me contava seus planos
de seguir a pipoca do bloco “O vale”, lançado havia poucos anos. Jaques iria
com sua noiva e contava que tinha duas preocupações durante a festa: pro-
tegê-la da multidão, haja vista que ela era uma mulher “baixinha”, como ele
descrevia; e, a segunda, desviar das ex-namoradas. O espaço desse bloco de
carnaval era local de encontro certo com mulheres que ele namorou antes de
afirmar-se publicamente como homem. Encontrar as ex-namoradas, quase
todas lésbicas, seria motivo para os ciúmes da noiva e levaria a discussões

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do vale 113

que atrapalhariam a festa. O vale mostrava-se novamente como um terri-


tório de afirmação de identidade.
O lugar de exclusão ou o estratagema de ameaçar com o inferno para
forçar a mimese do comportamento heterossexual pretendido pelas nar-
rativas apocalípticas era, assim, contestado e desarticulado. Por meio de
uma cadeia de ressignificações, ser do vale passou a representar um espaço
de pertencimento e produção de grupalidade. Uma estratégia teimosa de
continuar resistindo e afirmando (des)identidades que sofrem opressões
semelhantes em razão de sua sexualidade ou de seu gênero e que podem
articular-se como uma nação com território próprio (mesmo que virtual)
na produção de práticas de existência.

REFERÊNCIAS
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Rio Shantytown. 2. ed. Berkeley: University of California Press, 2013.

MATTOS, C. E. Um inferno para ser visto: o Apocalipse de Pedro e os sofrimentos


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OLIVA, T. D. Memes de natureza cômica como estratégia de


resistência a discursos hegemônicos: análise das reações à campanha
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SOUZA, J. D’. O movimento apocalíptico em seu contexto sociopolítico e


histórico. Fragmentos de Cultura, Goiânia, v. 21, n. 1, p. 69-78. 2011. Disponível
em: https://periodicos.ufjf.br/index.php/sacrilegens/article/view/26664. Acesso
em: 15 jul. 2021.

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114 George Amaral Santos

TESTEMUNHO: Pastora Yonara 15 Idas ao Inferno. [S. l.: s. n.], 2016. 1 vídeo (109
min). Publicado pelo canal Zenil Pina. Disponível em: https://www.youtube.com/
watch?v=nS4qJCLYCC4. Acesso em: 30 ago. 2021.

VERGUEIRO, V. Por inflexões decoloniais de corpos e identidade de gênero


inconformes: uma análise autoetnográfica da cisgeneridade como normatividade.
2016. Dissertação (Mestrado em Cultura e Sociedade) – Instituto de
Humanidades, Artes e Ciências Professor Milton Santos, Universidade Federal da
Bahia, Salvador, 2016.

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115

DRAG QUEEN

Bruna Silva Araújo

Este verbete se propõe a debater a prática drag queen pensando as diversas


esferas que compõem a atuação dessas figuras. Inicialmente, é pertinente
salientar, como problematiza Louro (2013), que o gênero e a sexualidade
representam a instabilidade de processos históricos e culturais que deter-
minam e naturalizam formas de ser por meio de regras relacionadas à
“matriz heterossexual”. O caminho para compreender o significado dessa
matriz está nos corpos que, ao não se adequarem a ela, são marcados,
punidos e evidenciam “normas regulatórias”. Assim, o corpo drag queen
subverte e expõe a construção dos gêneros.
Vencato (2002, 2005) destaca que a construção do “fenômeno drag”
em terras brasileiras direciona-se a homens e rapazes que adotam proce-
dimentos de montaria/montação que os constituem como drag queens.
As drags mantêm-se em performances por meio da maquiagem, vestimentas
e demais acessórios. Nesse sentido, é preciso entender que “maquiagem”
é o conjunto de cosméticos utilizados e aplicados no rosto e que “mon-
taria” representa o conjunto de vestimentas e acessórios utilizados pela
drag, já colocados sobre o corpo. Esse conjunto (vestimentas, acessórios e
maquiagem) é o que se visualiza como montado “de/em drag”.
Pensar a atuação drag queen como (des)identidade sexual r­ elaciona-se
com a problemática de Butler (2010), a partir da qual essa autora com-
preende a distinção entre sexo e gênero. Então, assim como a categoria

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116 Bruna Silva Araújo

“mulher” não se constitui – necessariamente – como produção cultural


do feminino, da mesma forma o “homem” não é sinônimo do corpo
“entendido” como masculino. Essa teoria permite problematizar que
o corpo possibilita uma variedade de gêneros não limitados pelo bina-
rismo. Assim, o gênero não limitado é uma ação cultural e corporal que
“[...] institui e faz com que proliferem particípios de vários tipos, cate-
gorias re-significáveis e expansíveis que resistem tanto ao binário como
às restrições gramaticais substantivadoras que pesam sobre o gênero”.
(BUTLER, 2010, p. 163-164)

MATERIALIDADE

A drag queen torna visível o caráter “material” da “invenção” das identi-


dades sexuais. Essa materialidade nas drags exprime, de modo concreto,
as diversas possibilidades do gênero. (LOURO, 2013) É pertinente compre-
ender, como observa Louro (2013), que uma “fronteira” se configura como
um local em que é possível haver relação, espaço de encontro, interseção
e conflito. Em um mesmo movimento, ela aproxima e distancia grupos.
Quando se problematiza a fronteira por meio da perspectiva de gênero e da
sexualidade, a drag queen constrói-se como personagem acentuadamente
subversiva, pois torna evidente a “transitoriedade”.
O esperado e o previsível sobre gênero, desejo, prática e condição sexual
referem-se ao que Butler (2010) chama de “coerência” e “continuidade da
pessoa”. Assim, as práticas reguladoras que definem e constituem o gênero
não estão relacionadas com as experiências e particularidades de sua con-
dição, mas de maneira oposta, são regras de inteligibilidade presentes na
sociedade. Dessa maneira, é importante compreender que os “[...] ‘gêneros
inteligíveis’ são aqueles que, em certo sentido, instituem e mantêm relações
de coerência e continuidade entre sexo, gênero, prática sexual e desejo”.
(BUTLER, 2010, p. 38)
Percebendo as questões abordadas, é necessário entender que a célebre
frase de Butler (2010, p. 39), “[...] o gênero não decorre do sexo”, é funda-
mental para a discussão sobre a prática drag queen e os impactos dessas
figuras em seus espaços de atuação. Assim, a desordem em relação a elas é
fundamentada. Pensando a sexualidade, Foucault (1988) observa que não
basta mencionar uma separação binária entre o dito e não dito, mas pro-
mover o questionamento sobre qual discurso é autorizado.

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drag queen 117

PERFORMANCE

Gadelha (2009) explica que o que as drags nominam de “montagem”1 é um


processo de mudanças comportamentais e corporais. Montar-se é um pro-
cesso de transformação da pessoa – que performa a drag – e de seu corpo.
“Perucas, vestidos, brincos, pulseiras, silicone, saltos, maquiagem, per-
fumes, meias-calças, adereços flúor, cílios postiços, pedrarias; [...] esconder
a sobrancelha ‘natural’ para redesenhá-la em outro canto” (COELHO, 2009,
p. 48) são procedimentos relacionados ao momento de montagem, além
das mudanças de comportamento e personalidade.
Como destaca Vencato (2002), montar-se refere-se também a diversas
esferas da vivência drag e, sem dúvida, a um dos atos mais significativos
no processo de elaboração das personagens. Essa produção ocorre, sobre-
tudo, no interior de um espaço e, como aponta a autora, esse lugar pode
ser interpretado como liminar, pois é o local onde acontece a modificação.
O espaço promove, em determinados casos, uma mudança completa, ou são
destacadas características da própria pessoa em sua personagem. A limi-
naridade, como observa Turner (2008), configura-se como a ligação entre
status e condição cultural, a intitulada “passagem liminar”. As pessoas em
uma condição liminar não se encontram fixos(as) nesses dois estados, mas
localizam-se no intermédio, o “entre” eles. As pessoas liminares são, em
si, “ambíguas” (TURNER, 2008), tendo em vista que essa circunstância e
essas pessoas burlam as redes de categorizações cotidianas. Os indivíduos
liminares estão “entre” a condição alcançada e as condutas criadas pelas
regras culturais e de costumes.
Compreendendo a discussão sobre a montagem e a condição liminar,
performance2 torna-se uma categoria central. Schechner (2011) escreve
que a ação da performance como categoria antropológica define-se em um
momento de ligação singular entre as performers e aqueles(as) para os(as)
quais a performance existe, compreendendo-a de forma semelhante à estru-
tura do drama social.3 É interessante perceber que nesse processo há, na

1 É necessário ressaltar que se montar, como debate Vencato (2002), é uma categoria nativa em
que se define as técnicas e o processo de “se produzir”.
2 É importante frisar que o movimento de Turner ocorre do ritual ao teatro, enquanto Schechner,
seu aluno, manifesta-se e localiza sua produção do teatro ao ritual. Assim, “[...] na configuração
de movimentos contrários e complementares irrompe um dos momentos originários da Antro-
pologia da performance”. (DAWSEY, 2006, p. 17)
3 Turner (2008), ao refletir sobre o tempo social, o compreende de maneira inteiramente dramá-
tica. Assim, sua metáfora e modelo são pensados a partir da estética, subjetividade e imagina-

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118 Bruna Silva Araújo

“consciência performática”, diversas possibilidades e escolhas, t­ ornando-a


inteiramente subjetiva.

A CIDADE E O TRABALHO

Há algumas especificidades que atravessam as experiências de drag queens


que são atuantes em Sobral, cidade localizada na região Norte do estado
do Ceará. Sobral constrói-se como relevante contexto empírico e analítico
porque permite pensar sob uma situação que particulariza e traz novos sig-
nificados à prática drag. No referido contexto, ser drag queen implica requi-
sitos além dos trabalhados neste verbete e está fortemente relacionado ao
ofício como deejay nos bares.
Vayölla, em entrevista,4 relata que não há outras formas e possibilidades
para a atuação como drag queen na cidade de Sobral. A possibilidade de
atuação, bem como de remuneração financeira, está no trabalho nos bares.
Nesse sentido, é possível interpretar que ser deejay configura-se como uma
característica fundamental na prática drag queen. Nesse caso, a drag incor-
pora, na produção de sua personagem, características e comportamentos
ligados a esse ofício, tais como: performar ao ritmo da música selecionada
em sua playlist e interagir com seu público de acordo com o ritmo: funk,
pop, forró, dentre outros. Ao final do show, elas retiram seu material de tra-
balho e prestigiam o trabalho da próxima deejay ao lado do seu público que,
em geral, demonstra acentuado respeito e admiração por elas.
O bar é o espaço onde a atuação e o trabalho são possíveis. Apesar
disso, o transitar pela cidade está repleto de ofensas homofóbicas e trans-
fóbicas, insultos em referência ao gênero e sexualidade das interlocutoras
da pesquisa. Juny Salen relata diversas situações de discriminação sexual a
caminho do bar e na própria entrada do estabelecimento. Ao descreverem
o transitar pela cidade sobralense, a caminho de bares, outras drag queens
também trazem à tona os contornos de experiências e conflitos que esse
corpo carrega no espaço urbano.
A cidade é uma relevante esfera da atuação drag, pois revela também
a discriminação e o preconceito que marcam a experiência desses corpos.
Dessa maneira, é compreendido que a ameaça da discriminação, seja vinda

ção, distanciando-se da natureza, sendo uma percepção fundamentada na cultura a referência


para esse conceito social e científico.
4 Ver: Araújo (2019).

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drag queen 119

de desconhecidos, seja de familiares, pode ser visualizada a partir do olhar


de Douglas (1976), como o reflexo de uma sociedade que busca a manutenção
da “ordem ideal” por intermédio da repressão de possíveis “transgressores”.
Em meio à discriminação e ao preconceito na cidade, o bar c­ onfigura-se
como um espaço de experiências e de socialidade das drags cearenses que
atuam em Sobral. Pensar os usos e as táticas a partir de Certeau (2013) é
direcionar a atenção para o modo como elas praticam a vida na cidade ao
ressignificarem espaços e ao construírem seus percursos em locais em que
liberdade e segurança são possíveis para elas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Pretendeu-se, neste verbete, lançar um olhar para a (des)identidade drag


queen, primeiramente, trabalhando a referida categoria a partir de um
debate mais geral, considerando um referencial teórico alinhado à antro-
pologia de gênero, sexualidades e performance (mais do que performa-
tividade). Buscou-se trabalhar a categoria êmica “montagem” a fim de
problematizar, como observa Vencato (2002), a sua importância. Em um
segundo momento, o debate sobre performance alinha-se à discussão da
antropologia da performance, seguindo a teoria de Turner e Schechner, a
partir da perspectiva teatral.
A compreensão mais geral no início deste verbete tem como propósito
situar as experiências dessas figuras em um contexto que se distancia da
realidade vivenciada nos grandes centros urbanos do Brasil. A drag queen
que atua no interior do Ceará carrega aspectos particulares e diferenças,
seja nas andanças pela cidade, seja tornando o ofício como deejay em bares
e a atuação drag queen como parte da mesma performance.
Pensando a atuação drag na cidade de Sobral, frisa-se que a problemá-
tica desenvolvida é fundamentada em pesquisa etnográfica e em histórias
de vida. Como observa Kofes (1994), as experiências narradas ultrapassam
a vivência pessoal e discutem a cidade e a referida prática. Buscou-se cons-
truir uma definição plural sobre o conceito de drag queen, mas introduzindo
uma drag que é atuante em cidades interioranas, ajudando a deslocar e a
repensar a atuação dessas figuras, provocando um novo olhar sobre espaços
urbanos localizados no interior do Nordeste brasileiro.

glossario-das-desidentidades-MIOLO.indb 119 13/09/2023 07:13


120 Bruna Silva Araújo

REFERÊNCIAS
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na cidade de Sobral/CE. 2019. Dissertação (Mestrado em Antropologia) –
Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 2019.

BUTLER. J. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de


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CERTEAU, M. de. A invenção do cotidiano. Artes do Fazer. Petrópolis: Vozes, 2013.

COELHO, J. F. da J. Bastidores e estreias: performers trans e boates gays


“abalando” a cidade. 2009. Dissertação (Mestrado em Sociologia) – Universidade
Federal do Ceará, Fortaleza, 2009.

DAWSEY, J. C. Turner, Benjamin e Antropologia da Performance: o lugar olhado


(e ouvido) das coisas. Campos: revista de antropologia social, Curitiba, v. 7, n. 2,
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Acesso em: 14 abr. 2021

DOUGLAS, M. Pureza e perigo: ensaios sobre as noções de poluição e tabu. São


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FOUCAULT, M. A história da sexualidade: a vontade do saber. Rio de Janeiro:


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KOFES, S. Experiências sociais, interpretações individuais: histórias de vida,


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Disponível em: https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/cadpagu/article/
view/1725/1709. Acesso em: 20 abr. 2021.

CERTEAU, M. de. A invenção do cotidiano. Artes do fazer. Petrópolis: Vozes, 2013.

GADELHA, J. J. B. Masculinos em mutação: a performance drag queen em


Fortaleza. 2009. Dissertação (Mestrado em Sociologia) – Universidade Federal do
Ceará, Fortaleza, 2009.

LOURO, G. L. Um corpo estranho – ensaios sobre sexualidade e teoria queer. 2. ed.


Belo Horizonte: Autêntica, 2013.

SCHECHNER, R. Pontos de contato entre o pensamento antropológico e teatral.


Cadernos de Campo, São Paulo, n. 20, p. 213-236, 2011. Disponível em: https://
www.revistas.usp.br/cadernosdecampo/article/view/36807. Acesso em: 17 jun.
2021.

TURNER, V. Dramas, campos e metáforas. Niterói: EdUFF, 2008.

glossario-das-desidentidades-MIOLO.indb 120 13/09/2023 07:13


drag queen 121

VENCATO, A. P. “Fervendo com as drags”: corporalidades e performances de drag


queens em territórios gays da Ilha de Santa Catarina. 2002. Dissertação (Mestrado
em) – Universidade Federal de Santa Catarina, Ilha de Santa Catarina, 2002.

VENCATO, A. P. Fora do armário, dentro do closet: o camarim como espaço


de transformação. Cadernos Pagu, Campinas, n. 24, p. 227-247, 2005.
Disponível em: https://www.scielo.br/j/cpa/a/z9Zk6FkFpDwFhBsj5mPZMCK/
abstract/?lang=pt. Acesso em: 20 mar. 2021.

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123

ESCORT

Guilherme R. Passamani

No âmbito do trabalho sexual transnacional, a categoria escort funciona


como um jogo entre diferentes identidades. Ela se apresenta como menos
fixa e mais fluida em relação às categorias garoto de programa e michê,
muito comuns no Brasil. Para tanto, é preciso compreender que o “negócio”
(PERLONGHER, 1987) que envolve o sexo constitui uma gama ampla de
atividades, sendo considerado uma verdadeira indústria (AGUSTÍN, 2005),
com diferentes mercados. Nesse sentido, a prostituição, para autoras como
Alexandra Oliveira (2004), seria uma das modalidades do mercado sexual,
ou, como prefere Adriana Piscitelli (2013), das economias sexuais.
A categoria escort aparece como contingente, contextual, performática.
O escort parece não estar fixo à atividade que desempenha, conforme temos
observado em pesquisa com homens brasileiros envolvidos com o trabalho
sexual em Portugal. Ele (escort) se anuncia como tal em contextos nos quais
esta operação constitui-se como rentável. A depender dos roteiros e dos
scripts necessários (GAGNON, 2006), esses homens acionam determinadas
condutas que aproximam prática e sentido, não necessariamente confor-
mando uma identidade na percepção mais estrita do termo. (HALL, 2006)
Em pesquisa anterior (PASSAMANI et al., 2020), entre as pessoas envol-
vidas com o trabalho sexual em contexto transnacional (sobretudo europeu
e entre homens), notamos que escort constitui-se como a categoria mais
acionada para referir-se ao homem que faz trabalho sexual. Trata-se de uma

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124 Guilherme R. Passamani

categoria muito popular entre esses homens e também entre pessoas LGBT
consumidoras ou não de trabalho sexual. O continente europeu, em vista
das distâncias e das políticas de fronteira, permite trânsitos muito cons-
tantes. Há uma série de línguas nacionais diferentes. No entanto, a língua
que os aproxima tem sido o inglês. A palavra escort significa acompanhante
em língua inglesa (tradução livre). No Brasil, a palavra escort parece ter
menos conotação sexual em relação ao seu uso na Europa. Escort popula-
rizou-se no Brasil associado a um modelo de automóvel.
O termo escort “neutraliza” compreensões pejorativas naturalizadas ao
trabalho sexual quando associadas a categorias como garoto de programa
e michê. Escort comporia uma gramática estética mais “neutra”, “limpa”,
“higienizada”, inclusive para referir-se a homens que prestam serviços de
acompanhamento em diferentes espaços sociais. Com ou sem fins sexuais.
Parece que não se está apenas diante de uma simples eleição entre palavras.
Tratar-se-ia de uma tentativa de descolamento de categorias mais estig-
matizantes associadas aos homens trabalhadores sexuais. Escort, então,
produziria condições de um sujeito mais clean, sofisticado, cosmopolita,
que prestaria um serviço mais “qualificado”, “caro”, de “luxo”. Mirar-se-ia
em um público que não é afeito à contratação de garotos de programa ou
michês, mas de acompanhantes.
É possível que haja um recorte de classe na compreensão e constituição das
performances desses sujeitos. De forma geral, os escorts ­caracterizar-se-iam
por serem acompanhantes de luxo, destacando-se o corpo em forma, uma
idade entre 20 e 30 anos, um “dote” superior a 20 centímetros, o fato de serem
falantes de duas ou mais línguas, escolarizados, “discretos” e com aparência
de “modelo”. Eles podem oferecer serviços sexuais variados, que são acer-
tados com os clientes antes do primeiro encontro. Segundo constatamos
durante a pesquisa, o montante de dinheiro pedido/recebido é que determi-
nará o que poderá ou não ser realizado nos atendimentos.
O perfil descrito acima é um tipo ideal. Ele aparece em discursos de
diferentes trabalhadores sexuais, clientes ou outras pessoas envolvidas
nas economias sexuais quando questionadas acerca de uma possível defi-
nição de escort. Como tipo ideal, o escort efetivamente não existe. Mas estas
características, estas marcas, serviriam de balizadoras para a constituição
de um sujeito que busca aproximar-se desse lugar que, no âmbito do tra-
balho sexual, pode ser de mais prestígio em relação a outras categorias.
Os escorts em contextos transnacionais não costumam trabalhar nas ruas,
nas saunas, nos clubes de sexo. Os espaços priorizados são casas, hotéis e
motéis. Os sites de “acompanhantes” na internet, ou outras mídias digitais,

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escort 125

permitem a interação com potenciais clientes. Um escort de luxo, segundo


dados de campo, chega a faturar, pelo menos, entre €3.000 e €5.000 por
mês. É comum ouvi-los falar em valores muito superiores a estes, espe-
cialmente, antes da pandemia da covid-19, algo que chegaria à casa dos
€10.000. No entanto, quanto mais distante de uma realidade como escort
de luxo, os ganhos seriam paulatinamente menores. Houve vários escorts
que relataram ganhos mensais entre €1.000 e € 2.000.
Na presente pesquisa, temos seguido uma série de pistas para pensar o
escort. Há uma gama de categorias de diferenciação, que no feixe das rela-
ções de poder, constituem marcadores sociais da diferença que tencionam,
por um lado, a fantasia do escort e, por outro, a ilusão do cliente. Nessa dis-
puta constitui-se o escort potencial, fruto do desejo de uns e outros, a partir
de elementos diferentes que uns e outros apresentam à negociação.
É assim que se percebem táticas e estratégias desenvolvidas pelos
escorts em suas performances nos diferentes contextos pelos quais cir-
culam na expectativa de auferirem mais lucros a partir de lugares de pres-
tígio estabelecidos. Michel Foucault (1995) perceberia esta engenharia como
economias de poder, quer dizer, estratégias que são operadas no âmbito das
relações de poder constituindo ações de uns e de outros de acordo com as
possibilidades contextuais nas quais se dão tais relações.
Isso corrobora a compreensão de escort como uma identidade menos
fixa a aproximar-se de uma performance situacional. Escort seria uma cons-
trução momentânea no seio das relações de poder em articulação com a
fantasia ofertada por estes homens e a ilusão demandada pela clientela.
É com base nessa lógica (de sujeitos em permanente construção) que per-
cebemos que eles podem ser resultantes de atos performativos (BUTLER,
2003) que configuram sentido às experiências contextuais que desenvolvem
para constituir lugares sociais mais próximos daqueles que desejam como
ideais. Há nesses atos performativos dos escorts a constituição de sujeitos
nas relações discursivas de saber-poder, pois é preciso imbuir-se de um
saber para poder tencionar nas relações de poder, para anunciar, para atingir
um público específico, para ganhar mais dinheiro, para correr menos risco,
para ter sucesso.
Nas relações discursivas de saber-poder, a noção de agência pode
ser uma possibilidade de articulação e de ressignificação no sentido de
“poder fazer” dos escorts, como advertem Casale e Femenías (2009), ao
compreenderem agência não como um atributo, mas como um ato per-
formativo. A compreender agência não como uma “coisa em si”, mas um
processo, a performance escort, no âmbito do trabalho sexual em contexto

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126 Guilherme R. Passamani

transnacional, é também um processo em que estes sujeitos agenciam


melhores possibilidades para o negócio a empreender.
A categoria escort, a partir da noção de agência, permite diálogos pro-
fícuos com a interseccionalidade. (CRENSHAW, 1991) As articulações em
torno das categorias raça e gênero constituem diferentes lugares aos sujeitos.
Algumas vezes, tais lugares resultam em desigualdade. Em outros casos, não
se movem no sentido de soma de opressões. (BRAH, 2006; MCCLINTOCK,
2010) Como refere Adriana Piscitelli (2008), as interseccionalidades per-
mitem aglutinar outros marcadores sociais da diferença à raça e ao gênero.
No caso dos escorts, isso poderia permitir que eles conseguissem, em deter-
minados contextos, escapar pelas brechas do poder que só conseguiam
prever para quem se envolvesse com o trabalho sexual um lugar de subal-
ternidade e estigmatização.
Entre os escorts, por exemplo, sexualidade, escolarização, nação,
geração, cor/raça, são elementos decisivos para que ocupem um lugar um
pouco melhor como trabalhadores sexuais e negociem suas posições de
sujeito nos jogos do desejo. Quando os escorts transitam por diferentes con-
textos, a mobilidade embaralha todas estas categorias e informa sobre dife-
rentes potências no campo do desejo erótico. Por exemplo, nas economias
sexuais em Portugal, há uma preferência por homens latino-americanos
e africanos em relação aos europeus. Portanto, cor/raça e nação (região)
já seriam marcadores que se destacam. Junto a eles, há escolarização e
geração. Homens desses lugares, escolarizados e mais jovens, com corpos
lidos como atraentes e com uma performance viril são mais requisitados.
Isso pode ser comprovado pelos perfis dos escorts em alguns dos sites de
acompanhantes que são mais populares no mercado português. O Hunqz
e o Viphomens.net são bons exemplos disso.
O processo de mobilidade entre escorts pode ser considerado como um
ato simbólico e liminar por meio do qual eles negociam autonomia psicoló-
gica e econômica fora de casa na articulação entre as diferentes categorias
acima elencadas. Eles não seriam migrantes “comuns”, ao mesmo tempo
que não estão “em casa”. Eles movem-se de um lugar a outro a acompanhar
as variações do mercado. Os trânsitos dos escorts associam-se à busca pelas
melhores “praças”.
A praça é o local no qual se desenvolve o trabalho sexual. (RIBEIRO et
al., 2007) Normalmente não é um espaço público. A praça é um lugar por
onde se passa, em que não se permanece por muito tempo, é propício a
atividades intermitentes desses sujeitos percebidos como errantes. (MAI,
2014) Portanto, “fazer praça” é o ato de deslocar-se de um lugar para outro

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escort 127

no intuito do escort obter mais clientes por ser uma “novidade” onde acaba
de chegar. Nas cidades onde os escorts acabam de chegar, geralmente
habitam (de forma temporária) “apartamentos de praça”, que são espaços
cujos quartos são alugados (de maneira informal) por preços acima do
mercado, para que eles possam realizar trabalho sexual ali durante um
período curto de tempo. Os escorts costumam deslocar-se para lugares
reconhecidos como “boas praças”, isto é, para trabalhar em cidades ou
habitar casas conhecidas por ter uma clientela numerosa, frequente e
que pagaria acima da média.
Dessa forma, não é uma tarefa fácil definir escort, esse sujeito errante
que se move de praça em praça, pois trata-se de uma categoria fluida e com-
plexa. Um jeito de olhar os escorts pode ser por meio de mobilidades por
fronteiras internacionais, por meio de processos migratórios transnacio-
nais. A categoria escort engendra uma série de marcadores sociais da dife-
rença, o que permite fugir de paradoxos já clássicos no que diz respeito
ao trabalho sexual. Assim, essa (des)identidade possibilita leituras dife-
rentes de agência, demonstrando os arranjos contextuais que os sujeitos
constituem na expectativa de tornar suas experiências mais interessantes
e viáveis.
Por fim, trânsitos e deslocamentos, físicos e simbólicos, são estabele-
cidos no âmago de diferentes processos. Os escorts se constituem como
sujeitos nesse périplo em busca de algo como um “sonho europeu”, mesmo
entre aqueles que já são europeus, mas de regiões menos prestigiadas do
continente. Escorts do chamado “Leste Europeu”, por exemplo, prosti-
tuem-se na Europa Central, sujeitos da própria Europa Central também o
fazem ali, ainda que em menor número. No entanto, os escorts mais pro-
curados (pelo menos os nossos dados indicam isso até o momento) são
aqueles que apresentam algumas marcas acentuadas de diferença, tais
como cor/raça (que não seja branca), nação (que não seja europeia), mas
parece que o estereótipo de uma lascividade e malemolência associado
a homens latino-americanos e africanos impõe-se como especialmente
potente neste mercado.
Assim, os movimentos empreendidos pelos escorts em um contexto cir-
cunscrito por noções relacionadas às performances (e performatividades)
de gênero e sexualidade inserem-se em um panorama maior das relações de
poder existente entre sujeitos de distintas nacionalidades. Atravessar fron-
teiras não é uma exigência para que um homem atue como escort. No entanto,
mobilidade, trânsito, circulação têm sido estratégias muito relevantes nesse
mercado. Algumas vezes, tais movimentos implicam atravessar fronteiras.

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128 Guilherme R. Passamani

E quem o faz parece auferir ganhos mais significativos. Desse modo, é pos-
sível vislumbrar uma miríade de configurações, entre relações e brechas,
que manipulam signos, constituem imaginários e promovem a dinâmica
da performance dos escorts em suas recorrentes perambulações.

REFERÊNCIAS
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glossario-das-desidentidades-MIOLO.indb 130 13/09/2023 07:13
131

FLEXÍVEL

Maycon Lopes

A composição de grupos de dança é uma tradição na vida de jovens LGBT


da periferia urbana do Brasil. Este verbete nasce de uma etnografia condu-
zida na cidade de Salvador, onde convivi com dezenas de adolescentes e
jovens negros – cuja idade variava de 12 a 21 anos – estando, a maioria, na
faixa dos 15 anos de idade. Muitos eram vinculados ou egressos de grupos
de dança. Ao longo dos anos pesquisando esse segmento em camadas popu-
lares, observei que a participação e criação de grupos de dança assume um
lugar relevante na construção de (des)identidades sexuais e de gênero.
A proeza em flexibilidade corporal que se verifica entre integrantes de
algumas dessas equipes é um fenômeno que merece especial relevo e é a
tal prática que estas linhas serão endereçadas. Diria mesmo que a formação
de muitos desses grupos é mobilizada pelo interesse na flexibilidade, modo
pelo qual designam uma prática que, sendo também capaz de perturbar
alianças e gerar hostilidade entre eles, nos convoca a colocar o corpo no
centro da experiência LGBT.
Comumente assinaladas pelo público leigo com o verbo “escalar”, as
acrobacias em que esses jovens flexíveis1 são mestres tornaram-se objeto

1 É possível que em outros contextos e cenas o termo “flexível” encontre-se associado à atividade
sexual, seja conotando bissexualidade, seja como sinônimo da categoria versátil (sujeitos que
praticam sexo anal insertivo e receptivo). Embora pareça considerável que as acepções diversas

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132 Maycon Lopes

da música funk. Presentes da região amazônica ao sudeste do Brasil – dado


que testemunha a disseminação da flexibilidade pelo país –, essas canções
não somente codificam como encorajam a performance de posturas que
encontram ressonância na ginástica rítmica e no contorcionismo, moda-
lidades ginásticas que requerem flexibilidade extrema. Essas atividades
artísticas podem produzir um ambiente de sociabilidade lúdica convida-
tivo à exploração e cultivo de movimentos corporais não normativos em
termos de sexualidade e gênero. Esse aspecto é crucial para a compre-
ensão da prática da flexibilidade enquanto vetor identitário e construção
de pessoa, dimensão que mantém relação com os ritmos a que esses dan-
çarinos se propõem a performar.
Na Bahia, os flexíveis dançam ao som do funk e do pagode baiano.
Apesar de terem bases formadoras distintas, há pontos de contato sig-
nificativos na experiência de fruição e consumo desses dois ritmos.
Em eventos festivos, é coletivamente – em geral em pequenos grupos de
pessoas do mesmo gênero – que se costuma dançar tanto funk quanto
pagode baiano. Muitas letras, de ambos os ritmos, têm teor, quando não
abertamente sexual, sexualmente sugestivo. Seus ritmos enérgicos e pul-
santes, difundidos em volume alto, são frequentemente coreografados de
acordo com o gênero dos dançarinos.
Em sua etnografia em bailes funk, a propósito, Mizrahi (2019) observa
que nas danças performadas por mulheres, estas flexionavam os joelhos,
colocando as mãos sobre estes, enquanto inclinavam o tronco para frente
e jogavam os quadris para trás. Às vezes em posição de agachamento, ele-
vavam e abaixavam a bunda. Os rapazes, por sua vez, faziam o movimento
inverso, lançando os quadris não para trás, e sim para frente, destacando
a região genital.
As descrições dos movimentos femininos oferecidas pela antropóloga
integram a coreografia que observei entre os participantes da minha pes-
quisa – eles introduzem esses movimentos em um repertório gestual cuja
tônica é a bunda e posturas como abertura de pernas. Este último, presente
em diversas posições da flexibilidade, consiste em estender as pernas for-
mando preferencialmente um ângulo de 180º, de modo a desenhar, com
o auxílio delas, uma linha reta, quer horizontalmente – acoplando-se ao
solo –, quer verticalmente – mantendo-as paralelas ao tronco. Combinada,

que o termo pode ganhar indiquem, também nesse ponto, uma situação de “abertura”, esses
outros usos não serão englobados nesta análise.

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flexível 133

amiúde, a movimentos pélvicos, tal abertura angular comunica sensuali-


dade e feminilidade também em corpos “masculinos”. Os grupos de dança
atuam como uma espécie de laboratório em que se experimenta a fabri-
cação coletiva de gestos e coreografias.
A formação de vínculos mediante grupos, e a tarefa de mantê-los
no dia a dia, é muitas vezes permeada pela competição e disputa com
outras equipes, animando, assim, um circuito de rivalidade, não raro
febril. O duelo de competências ginásticas é parte da prática da flexibili-
dade. Os jovens com quem trabalhei chamam esse combate de “afronte”,
que pode irromper no espaço público sempre que um gay “flex” exibe sua
destreza cravando o olhar em outro flexível. A variar segundo a face empre-
gada e quem é o flexível fitado (se amigo, se desconhecido ou mesmo um
desafeto), aquelas posturas confiantes deixam de ser mero espetáculo ou
exibição desinteressada, sendo convertidas em um ataque com alvo pre-
ciso. Alguém é então desafiado a assumir a posição de contendor e res-
ponder ao gesto arremessado, muitas vezes sob pena de terminar reputado
entre os pares como covarde.
Como em outras tradições afrodiaspóricas, a exemplo da capoeira e do
breakdance, é comum que em torno das performances flexíveis formem-
-se círculos de espectadores. Indício do interesse despertado pela flexi-
bilidade, as rodas compreendem um ingrediente ativo nas performances
flexíveis: o público que as compõem avalia o desempenho dos dançarinos;
os estimula, vibrando por eles; e intervém, demandando-lhes posturas
específicas. O flexível que tem o poder de “abrir roda”, isto é, de cercar-se
de espectadores, atesta sua virtuosidade na flexibilidade.
A disputa característica à flexibilidade, assim como o repertório de movi-
mentos, produz uma atmosfera fervilhante em torno dessa arte. Os gestos de
execução rápida e intensa – giros, rotações, saltos – e os afrontes, corriquei-
ramente alçados ao clímax da prática, põem em relevo a natureza híbrida da
flexibilidade. Isto é, sua qualidade de dança, mas também de jogo e esporte.
Como já argumentado, o confronto de performances, quando não explici-
tamente visado, configura-se como uma possibilidade levada em conside-
ração na formação de um flexível. Segue-se que essa cultura física demanda
em seu praticante uma disposição particularmente altiva, que se faz notar
na expressão superlativamente ereta do tronco e da cabeça e de um sem-
blante grave e até belicoso. Essa atitude corporal informada pela bravura,
ou, antes, a coragem como uma virtude moral cultivada e radicada em
uma prática específica de corpo, contribui para imprimir uma estética de
batalha na flexibilidade.

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134 Maycon Lopes

Para atuar no “mundo da dança”, como meus sujeitos etnográficos


aludem a esse universo, na qualidade de flexível, querer não basta; para
escalar é necessário habilitar o corpo a esse movimento. Embora haja níveis
de empenho e envolvimento variáveis na arte da flexibilidade, é impera-
tivo submeter-se a um treinamento fisicamente exigente para que se possa,
de fato, participar dessa brincadeira séria. A preparação do corpo consiste,
principalmente, em uma variedade de exercícios de “alongamento”, ana-
lisados em trabalho anterior. (LOPES, 2021) Embora a rivalidade integre a
prática da flexibilidade, é em um colaborativo corpo a corpo que gays se
tornam flexíveis. (LOPES, 2021) Quase todos os gays com quem me rela-
cionei durante a pesquisa “foram alongados” por um dançarino mais pro-
ficiente, geralmente um amigo que se incumbe em instruir o noviço com
técnicas de alongamento.
Algo que chama atenção na preparação do corpo flexível é a experi-
ência da dor, que se mostra incontornável. Nos treinamentos aprende-se
a experimentá-la como efeito e indício de correção do método de alon-
gamento. Tornada rotineira, é fato que se deve procurar estabelecer uma
relação com a dor – sensação por vezes ambivalente, que lhes pode pro-
vocar aflição e gozo. Para os muitos fins visados pelo alongamento, como
tornar uma “frontal” (isto é, um espacate),2 “colada” ou “zerada” (acoplada
ao solo, ajustando-se ao alinhamento deste – princípio estético da flexibi-
lidade), além de atraída, a dor deve ser suportada por um tempo.
Assim, o aspirante a flexível aprende desde cedo que para tornar-se
hábil em executar movimentos fulminantes, que desafiam os limites ordi-
nários do corpo (é comum o relato de “distensão” entre os flexíveis), é neces-
sário resistir à dor – idealmente, até superá-la. Talvez seja esse o primeiro
gesto de bravura advindo da prática da flexibilidade. A força originada por
esses movimentos, mediante a exploração das possibilidades anatômicas
do corpo, destina-se não só à formação da capacidade de superar desafios
físicos, mas também outros constrangimentos presentes nas vidas dessas
pessoas, tornando-se um aprendizado de superação de si.
Vejo, neste flanco, um diálogo com os achados de Moisés Lino e Silva
(2022). A partir de uma etnografia na favela da Rocinha (Rio de Janeiro),
onde também habitam grupos de jovens queers flexíveis, o autor argumenta,
convincentemente, que o sentido de liberdade experimentado por aqueles

2 Posição que consiste em afastar as pernas uma da outra, de modo que, paralelas ao solo, for-
mem um ângulo de 180º.

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flexível 135

sujeitos – sem prejuízo analítico, considero que podemos conceber a supe-


ração de constrangimentos como um exercício de liberdade – encontra-se
visceralmente localizado nas faculdades e performances corporais; no que
pode um corpo.
Em meu campo, enquanto o neófito experimenta uma sorte de meta-
morfoses gestuais, ele é lembrado dos potenciais afrontes que a prática da
flexibilidade lhe reserva, disputas para as quais convém empregar deter-
minada atitude. A instrução remetida é expressa no mesmo ambiente de
camaradagem que o incentiva a “segurar a dor”. Brinca-se de competir com
os amigos, dança-se ao som de canções que remetem usualmente a rela-
ções contenciosas, escuta-se os flexíveis mais pródigos nessa arte – que
advertem aqueles que estão provisoriamente sob sua batuta a respeito da
importância de um rosto aguerrido.
Se não uma leitura de mundo como potencialmente conflituoso, os
dados de minha pesquisa sugerem que a flexibilidade propõe ao jovem
gay uma certa maneira de estar no mundo, incorporada mediante o duro
trabalho corporal que se destina a formar um flexível. Esboçar uma feição
beligerante enquanto se executa um movimento potente, que sujeita o per-
former à dor, resulta de um processo de aprendizado sensorial, de suportar
o sofrimento físico. Por um lado, não sucumbir a este parece fundamental
para sublimá-lo, dirigindo a atenção e assumindo como mais relevante
para o curso da ação o adversário em cena; por outro, o aspecto beligerante,
inclusive com que se convoca e responde ao adversário, sintoniza-se com
o vigor depreendido para o cumprimento de certos movimentos, e mesmo
para a dor que esses lhes podem provocar.
Outro modo corrente de exercer algum controle sobre a dor é aque-
cendo o corpo e aprendendo a reconhecer sua temperatura interna. O aque-
cimento visa evitar ou, melhor dito, controlar o grau da dor. Os flexíveis
possuem uma expressão para designar a condição mais favorável para o
desempenho de suas performances: estar de “sangue quente”. Afirmar que
o sangue está quente é declarar seu estado de prontidão física para a flexi-
bilidade; como se vê, uma prática ricamente sensorial, para a qual o fluxo
metabólico importa.
Não é somente o semblante bravo que é bem-vindo para fornecer a face
da prática da flexibilidade. A apresentação de um rosto blasé,3 em irônico
contraste com o esforço físico que a flexibilidade impõe, soa provocativo,

3 Meus interlocutores aludem a essa atitude como “tumblr” e “deboche”.

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136 Maycon Lopes

desafiando o oponente na medida em que empresta ao performer ares de


superioridade. Há, do rosto mais explicitamente combativo ao desprezo
diante daqueles a que se atribui um estatuto inferior, diferentes versões e
matizes de uma atitude corporal altiva, cuja adesão aponta para a face como
sede por excelência de disposições e transações afetivas.
Esse caráter afirmativo – radicado, particularmente entre os gays fle-
xíveis, também em seus músculos e tendões –, faz eco ao “carão”, tão pre-
sente na constelação de sociabilidades LGBT. O carão combina uma atitude
esnobe com glamour e poder, marcando certa postura no encontro com o
outro. Sob outra perspectiva, a flexibilidade se insinua como um atalho
interessante para pensar a “fechação”, que, guardando também relação
com um ímpeto autoafirmativo, é elevada, na prática, a qualificador de
um bom desempenho. “Fechar” ou “dar close” tem a ver com se destacar,
com chamar atenção para si. Também entre os praticantes da flexibilidade,
“abrir roda” se faz por meio de maneiras extravagantes – senão de um com-
portamento exageradamente feminino.
Assim, aprendemos com a performance enérgica dos flexíveis que a
chave para a compreensão da fechação – efeito categórico na flexibilidade
–, repousaria sobre o corpo, notadamente sobre a articulação íntima entre
corpo e gênero. Este vínculo deixa antever como o movimento se oferece
para os flexíveis enquanto recurso para o investimento deliberado em femi-
nilidade. Desse modo, a flexibilidade disponibiliza uma rota de aprendi-
zagem para que gays da periferia se apresentem de modo distintivamente
atrevido e imponente.
A flexibilidade revela ainda como identidades se conjugam a estilos de
movimento; no caso, na qualidade de expressão da rotinização da bravura
como modo apropriado de se apresentar e de agir no mundo. Em suma,
nos diz algo sobre a coragem como uma inclinação encarnada e enquanto
valor ético. Concluo, nessa direção, que a fisicalidade sob exame promove
a bravura como uma disposição simultaneamente corporal e moral – for-
mação duradoura que pode se prolongar em domínios outros, ressoando
para além dessa experiência recreativa.

REFERÊNCIAS
LINO E SILVA, M. Minoritarian Liberalism: a travesti life in a Brazilian favela.
Chicago: University of Chicago Press, 2022.

glossario-das-desidentidades-MIOLO.indb 136 13/09/2023 07:13


flexível 137

LOPES, M. Learning body techniques: dance and body flexibility among gay black
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MIZRAHI, M. Figurino funk: roupa, corpo e dança em um baile carioca. Rio de


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glossario-das-desidentidades-MIOLO.indb 137 13/09/2023 07:13


glossario-das-desidentidades-MIOLO.indb 138 13/09/2023 07:13
139

GILETE

Inácio dos Santos Saldanha

— Ele é gilete
— Como assim?
— Corta dos dois lados! (grifo nosso)

Gillette é uma marca conhecida de barbeadores e uma metonímia para


o próprio objeto. O “gilete”, a pessoa (geralmente do gênero masculino),
é alguém que se relaciona amorosa ou sexualmente com os dois “sexos”,
tem um significado muito próximo daquele atribuído popularmente à cate-
goria bissexual. A definição desse verbete, porém, choca-se com valores e
lugares de sujeitos políticos evidentes na atualidade. O gilete não corta de
dois lados, mas dos dois lados, quando presumivelmente existem apenas
dois “sexos” ou “gêneros”. É uma definição que contrasta com aquela que o
movimento bissexual contemporâneo vem expandindo há algumas décadas
de “bissexualidade”: atração por mais de um gênero, estando aberta aqui a
possibilidade numérica de categorias de gênero contempladas pelo desejo
do sujeito bissexual.
Neste texto, apresentarei as aparições da figura do gilete na literatura
antropológica e nas discussões recentes em torno da bissexualidade, cha-
mando a atenção para a controvérsia ao redor da binaridade de gênero e
como o apelo a esta noção revela as disputas pelo sentido de bissexualidade

glossario-das-desidentidades-MIOLO.indb 139 13/09/2023 07:13


140 Inácio dos Santos Saldanha

em diferentes contextos de classificação e identificação da sexualidade no


passado e no presente. Parto de um material produzido por meio de revisão
de bibliografia acadêmica e um trabalho com ativistas, participação em
debates, ciclos de conversa, realização de entrevistas com bissexuais que
atuam de diferentes formas em diferentes regiões do país e incluo, também,
uma música.
O gilete aparece como uma figura popular já nos primeiros esforços de
estudar a homossexualidade masculina no Brasil, entre os anos de 1970 e
1980. A experiência de pesquisa pioneira de Peter Fry em Belém do Pará,
em 1974, seria recuperada pelo próprio autor no desenvolvimento de sua
teoria de que a classificação da sexualidade masculina no Brasil estava
em processo de transição. Segundo ele, havia um modelo de classificação
sexual baseada em papéis de gênero que diferenciava “homens de ver-
dade” de “bichas”. Essa forma de olhar a sexualidade masculina valori-
zava a virilidade e o papel sexual ativo, estando mais presente nas classes
populares e nas regiões menos urbanizadas. Nesse sentido, os “homens” se
relacionavam sexualmente com mulheres, mas muitas vezes também com
“bichas”, sem que isso necessariamente prejudicasse o prestígio social deles.
Naquela altura, o modelo de classificação de origem médica tripartido em
“heterossexuais”, “homossexuais” e “bissexuais” se fortalecia em contextos
urbanos, principalmente com o surgimento de um movimento homossexual
organizado, embora, na linguagem política deste movimento, a figura do
bissexual fosse encarada como um empecilho da afirmação de uma iden-
tidade homossexual “verdadeira” e negada com frequência. (FACCHINI,
2005; FRY, 1982; MACRAE, 2018)
Fry estava longe de pensar esses dois modelos de classificação como
uma oposição estanque e via como a categoria bissexual, por exemplo,
“traduzia-se” em termos populares como “gilete” e “panachê”.1 Essas duas
figuras, que aludem aos dois lados, também não deixariam de ser colo-
cadas em dúvida. Elas poderiam, porém, ser mais do que meras traduções
das classificações médicas. Foi isso que Néstor Perlongher (2008) demons-
trou em sua etnografia da prostituição viril na cidade de São Paulo, em
que a taxonomia dualista do movimento homossexual contrastava com
uma grande variedade de categorias populares. No abrangente gráfico de
Perlongher, os michês chamados de “gilete” e “panqueca” se juntavam a

1 Citado por Fry (1982), o termo possivelmente tem relação com “panaché”, algo composto por
elementos diferentes entre si.

glossario-das-desidentidades-MIOLO.indb 140 13/09/2023 07:13


gilete 141

muitos outros definidos por diversas práticas e atributos correntes no seu


campo de pesquisa.
Em seu curto livro sobre a aids, Perlongher manifestou preocupação
com a tendência dos debates públicos de preferir a classificação de origem
médica, entendida por ele como incompatível com o contexto cultural bra-
sileiro, não tanto com relação à figura do homossexual, mas principalmente
ao bissexual. Assim era o

termo ‘bissexual’, inaudito nas barrocas nomenclaturas nativas


(apenas no circuito de perambulação homossexual do centro de
São Paulo, estão em circulação mais de 50 maneiras de aludir aos
gêneros e estilos dos ‘entendidos’, desde bicha-baby até michê-
-gilete). (PERLONGHER, 1987, p. 56, grifo do autor)

De fato, embora houvesse pessoas autoidentificadas como bissexuais


nos primeiros grupos organizados e na produção cultural “homossexual”
nesse momento, apenas a partir de meados da década de 1980, com o
advento da epidemia de HIV, o termo “bissexual” se fortaleceria no voca-
bulário popular brasileiro. (FACCHINI, 2005) Se a epidemia era, a prin-
cípio, associada principalmente aos gays, o aumento notável da transmissão
entre pessoas não classificadas como tal (principalmente mulheres casadas
e crianças) fez popularizar-se o imaginário da “ponte bissexual”. Isto é, a
crença de que esses homens levariam uma vida dupla e, assim, estariam
levando a doença de seus parceiros homossexuais para pessoas heterosse-
xuais indefesas. (SEFFNER, 2016) A oposição de uma presença do “gilete”
em contextos informais e do bissexual em discussões de inspiração epide-
miológica parece ter sido um padrão por algum tempo,2 mas, ainda assim,
devemos reconhecer que nos contextos populares o gilete poderia ser enten-
dido como uma (des)identidade para além de um único objeto de desejo.
O Amante giletão, uma antiga paródia de sertanejo, atribuída a um
cantor de identidade pouco clara, Mané da Zona, e sem data precisa de
lançamento, em seu eu lírico reclama por não ser correspondido por uma
mulher, que prefere um homem chamado por ele de “safado” e “bichona”:

2 Herbert Daniel e Richard Parker dedicam seu inspirado livro AIDS, a terceira epidemia: ensaios
e tentativas (1991) aos gays, transexuais, michês, travestis e, dentre outros, aos giletes. Em con-
traste, as pesquisas realizadas na esteira da epidemia, inclusive por Parker, estavam mais volta-
das para a categoria bissexual, muito mais em um sentido de “práticas” do que de “identidade”
inicialmente preocupadas em saber se esses homens realmente existiam e como sua sexualida-
de poderia influenciar na dispersão da doença. (MIGOT; RISSON; MARTINS, 1996)

glossario-das-desidentidades-MIOLO.indb 141 13/09/2023 07:13


142 Inácio dos Santos Saldanha

Eu queria te comer na minha cama


Mas é outro vagabundo que tu ama
Mas ele é bicha
Ele anda dando o cu pra todo mundo
O miserável vive até de rabo fundo
De tanto dar
Você dá pra ele e ele dá pros outros
Será que é isso o que você quer?
Se envolver com esse bicha giletão
Que nem é homem, nem mulher3

Essa canção mostra como a definição circunscrita de orientação sexual,


apesar dos esforços de médicos e militantes, nunca se dissociou totalmente
de um padrão de virilidade oposto a uma “bichice”. O preconceito expresso
na forma de uma “dor de cotovelo” humorística e na vontade de espancar
e mijar na cara do gilete, confunde os limites entre o imaginário da vida
dupla bissexual e a representação da bicha travesti: “Esse fi de rapariga
só te engana/Vira-lata igual a ele, ninguém viu/Você tem que mandar esse
traveco/Ir à puta que pariu”. A substituição de um modelo por outro, ante-
vista por Fry, nunca chegou a se completar em seus complexos usos popu-
lares pelo país. Em vez disso, os grupos e as categorias têm se relacionado.
Porém, a posição de ambiguidade atribuída ao bissexual e ao gilete perma-
neceria um elemento de fácil associação entre os dois termos.
Apesar da resistência intelectual de Perlongher e de muitos militantes
homossexuais, o termo bissexual entraria em documentos e siglas oficiais
através da presença dessas pessoas no movimento homossexual e em seu
prosseguinte LGBT. Mas a posição marginal que as pessoas bissexuais
ocupam nesses espaços (muito relacionada à própria ideia de que a bisse-
xualidade não existe) só seria fortemente tensionada recentemente, com o
desenvolvimento de comunidades e vocabulários próprios na atualidade.
(FACCHINI, 2005, 2020) Assim, a adoção da noção de bifobia, como uma
forma de preconceito específico em relação a um rompimento da bina-
ridade pela orientação sexual, abriria caminho para um novo sentido de
bissexualidade, que escaparia à rigidez da oposição binária homossexual-
-heterossexual e englobaria pessoas de gênero não binário como sujeitos
desejantes e desejados. (LEÃO, 2018; MONACO, 2020) Os novos sentidos
de bissexualidade que pulsam dos espaços virtuais e dos novos ativismos,

3 Música disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=x90_2gamJ-c.

glossario-das-desidentidades-MIOLO.indb 142 13/09/2023 07:13


gilete 143

constantemente se rearticulando, se digladiam pelo lugar das definições


correntes em certos espaços acadêmicos, militantes e mesmo informais:
como a definição daquele que corta dos dois lados.
Hoje, o gilete tem sido representado como uma figura do passado, enten-
dido por pessoas bissexuais como um termo depreciativo, cujos resquícios
de uso manifestam-se vez ou outra em episódios constrangedores. Em uma
recente discussão do Grupo Amazônida de Estudos sobre Bissexualidade
(GAEBI), pessoas de diversas partes do país confrontaram-se com o engra-
çado termo “gilete”, que muitos não conheciam, em uma discussão sobre a
teoria de Peter Fry. Houve dúvidas: “Era mesmo um xingamento?”, “O termo
também era usado para mulheres?”, “E se nós ressignificarmos o gilete?”,
“Uma pessoa não binária poderia ser gilete?”. A ressignificação parecia uma
ideia política problemática. Nos jovens espaços “bi” de ativismo, produção
de conhecimento, discussão de memória e até mesmo de vendas on-line,
ecos de uma definição binária de bissexualidade levanta desconfortos e
tensões, principalmente na medida em que pessoas trans de gêneros não
binários estão cada vez mais presentes nesses espaços, como bissexuais.
Essa pode parecer uma questão menor ou restrita a um mero nome.
Se o bissexual, com o seu prefixo “bi” (do latim “dois”), foi ressignificado
para além de um sentido de binaridade, por que o gilete não poderia ser?
A resposta é que a noção de bissexualidade nunca foi totalmente alterada,
que seus usos binários permanecem correndo e que os esforços ativistas
de defender o novo significado deparam-se com o obstáculo que é o pre-
terimento da bissexualidade como algo “real” para o alcance de sua dis-
cussão. Isso não impede, claro, as iniciativas nesse sentido: recentemente,
um Brechó Gilete foi criado por um casal de pessoas não binárias no Rio
Grande do Sul e a ativista Ana Paula Rosário4 defendeu o gilete como sujeito
político em um seminário do Conselho Regional de Psicologia da Bahia.
Sem rechaçar a nova noção de bissexualidade, sua fala chamava atenção
para um viés afiado no uso irreverente do termo popular por aqueles assim
denominados. Para ela, a figura do gilete era característica de seus prede-
cessores nos contextos populares do Brasil, tendo alguns deles assumido
o lugar de gilete, interrompendo sua conotação acusatória.
As disputas contemporâneas entre os sentidos de bissexualidade
revelam também a sua proximidade com a produção de outros grupos,

4 Mesa “Bissexualidades: invisibilidade e diversidade”, ver em: https://www.youtube.com/watch?v-


=5jH5-eAQ338&t=9233s.

glossario-das-desidentidades-MIOLO.indb 143 13/09/2023 07:13


144 Inácio dos Santos Saldanha

como pansexuais, polissexuais, gays, bi-curiosos, hetero-flexíveis, abros-


sexuais, queers, assexuais e panromânticos, por exemplo. Muitos ativistas
bissexuais olham com desconfiança a ressignificação de mais uma alcunha,
em particular por ser um momento no qual a categoria bissexual tem de,
cada vez mais, dividir espaço com outras, de sentidos muito próximos,
ou mais específicos. É comum entender essa questão como um tensiona-
mento recente entre um grupo mais organizado (principalmente, em torno
da noção de bifobia) e uma “proliferação desenfreada” de identidades com
base em demandas de reconhecimento de experiências pessoais.
Regina Facchini, porém, defende que se trata de uma tensão presente
no movimento LGBT desde a afirmação política da homossexualidade na
década de 1970: “por um lado, apelos à experiência e à atribuição de sentidos
para a luta baseados na opressão vivida e, por outro, as identidades políticas
pactuadas visando a objetivos estratégicos e coletivos”. (FACCHINI, 2020,
p. 62) Para ela, os processos políticos no Brasil da década de 2010 favore-
ceram um momento de valorização da experiência, quando veríamos a pró-
pria emergência política mais incisiva de pessoas não binárias e bissexuais.
A essas categorias, destacadas agora pela rejeição de oposições binárias e
por escapar a demandas políticas convencionais, ­somam-se também os
espectros de assexuais e arromânticos, pessoas que sentem pouca, alguma
ou nenhuma atração sexual ou romântica.
Esse contexto dificulta uma ressignificação da figura do gilete como uma
ação coletiva, mas não como uma iniciativa política pessoal de atribuição
de sentido à experiência. As novas categorias nomeiam pontos específicos
ocupados pelos sujeitos em espectros de gênero, sexualidade e roman-
ticidade, o que implica também estar em pontos diferentes dentro dos
diferentes espectros (ser de gênero maverique, demissexual, bissexual e
homorromântico ao mesmo tempo, em um exemplo hipotético). Mais uma
vez, com uma complicada associação com o objeto cortante, a bissexuali-
dade encontra-se em meio a uma disputa de arranjos de classificação sexual
no Brasil, como em décadas passadas.

REFERÊNCIAS
DANIEL H.; PARKER, R. AIDS, a terceira epidemia: ensaios e tentativas.
São Paulo: Iglu, 1991.

glossario-das-desidentidades-MIOLO.indb 144 13/09/2023 07:13


gilete 145

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glossario-das-desidentidades-MIOLO.indb 145 13/09/2023 07:13


glossario-das-desidentidades-MIOLO.indb 146 13/09/2023 07:13
147

INDETECTÁVEL

Pisci Bruja Garcia de Oliveira

“Sou indetectável” é um termo que tem sido cada vez mais utilizado por
Pessoas Vivendo com HIV/aids1 (PVHA) e que fazem uso de antirretrovirais.
Tecnicamente, estar indetectável no Brasil significa que há uma quantidade
igual ou inferior a 40 cópias de HIV por milímetro cúbico, o que também é
equivalente a uma gota de sangue.2 Já em relação aos padrões internacio-
nais, o número de cópias virais que caracterizam a indetectabilidade são
quantidades iguais ou inferiores a 200 cópias por milímetro cúbico de san-
gue.3 A indetectabilidade é demarcada, portanto, quando a carga viral está

1 Escolho manter a sigla “aids” em “Pessoas Vivendo com HIV/aids”, pois compreendo que esta
pandemia não pode ser reduzida a um controle biomédico, sendo o estigma construído em tor-
no dela um fator importante nos aspectos cotidianos, moldando experiências sociais, afetivo-
-sexuais, políticas e econômicas. Em AIDS: A terceira epidemia, ensaios e tentativas (2018),
­Herbert Daniel e Richard Parker vão definir a epidemia de aids em três perspectivas. A primeira
epidemia refere-se ao próprio vírus, ao HIV, que passa a adentrar na sociedade. A segunda epi-
demia já é a materialização deste vírus nos corpos, isto é, o adoecimento por aids. Já a terceira
epidemia é referente às representações culturais ou “às reações sociais, culturais, econômicas e
políticas à AIDS”. (DANIEL; PARKER, 2018, p. 14) É dentro desta perspectiva socioantropológica
que penso a pandemia de aids.
2 Ver em: http://saude.sp.gov.br/centro-de-referencia-e-treinamento-dstaids-sp/homepage/des-
taques/carga-viral-indetectavel-torna-infeccao-por-hiv-intransmissivel#:~:text=A%20nota%20
informa%20gestores%2C%20profissionais,o%20v%C3%ADrus%20pela%20via%20sexual.
3 Ver em: https://www.health.ny.gov/diseases/aids/ending_the_epidemic/faq.htm.

glossario-das-desidentidades-MIOLO.indb 147 13/09/2023 07:13


148 Pisci Bruja Garcia de Oliveira

controlada há pelo menos seis meses, evitando o desenvolvimento de aids,


bem como impossibilitando a transmissão do vírus.4
Em janeiro de 2008, a Comissão Federal Suíça de AIDS reuniu um grande
número de evidências que comprovam a eficácia do uso de antirretrovirais
e informou, pela primeira vez, que as PVHA que estão com a carga viral
suprimida são incapazes de transmitir o HIV. Cerca de três anos depois, um
novo estudo realizado em nove países sondou 1750 casais sorodiferentes –
quando uma pessoa vive com HIV/aids e a outra não, e revelou que a terapia
antirretroviral era capaz de reduzir as chances de transmissão em ao menos
96%. (COHEN et al., 2011) Além deste, outros dois importantes estudos em
locais diferentes contribuíram para a validação desta nova evidência: um
na Colúmbia Britânica (MONTANER et al., 2014), no Canadá, e outro na
província de KwaZulu-Natal, na África do Sul. (OLDENBURG et al., 2016)
Mais recentemente, outros grandes estudos de coorte, o Partner e o
Opposites Attract, não encontraram casos de transmissão do HIV entre
casais sorodiferentes quando o parceiro que vive com HIV/aids estava inde-
tectável. O Partner e seu prolongamento, o Partner 2, compreenderam o
período de 2010 até 2014 e de 2014 até 2018, respectivamente. Ao todo, foram
acompanhados 972 casais gays e 516 casais heterossexuais, totalizando mais
de 135 mil relações sexuais sem o uso de preservativo. (RODGER, 2019) Por
sua vez, o Opposites Attract, reuniu 343 casais homossexuais sorodiferentes,
compreendendo cerca de 16.889 atos de sexo anal sem preservativos e zero
transmissão do HIV. Este estudo foi apresentado durante a IX Conferência
Internacional de AIDS sobre Ciência do HIV – IAS – em 2017, em Paris, e
somou forças aos resultados anteriores, evidenciando que as PVHA que
fazem uso de antirretrovirais por mais de seis meses e que estão indetec-
táveis, não transmitem o HIV.
A importância dessas evidências científicas não pode ser subestimada.
Elas têm impacto direto na vida das PVHA. Historicamente, as PVHA
sempre enfrentaram o estigma em decorrência de uma pandemia altamente
politizada, carregada de ligações com as ideias de pureza, de procriação e
de reprodução social. (POLLAK, 1990) A violência que se desdobra dessa
forma de compreender a epidemia de aids tem provocado a articulação
das pessoas mais diretamente afetadas. Assim, as ONGs-AIDS se consoli-
daram como espaços de amplos debates políticos e também de produção

4 Ver em: http://www.aids.gov.br/pt-br/noticias/diahv-atualiza-informacoes-sobre-o-conceito-inde-


tectavel-intransmissivel.

glossario-das-desidentidades-MIOLO.indb 148 13/09/2023 07:13


indetectável 149

de identidades e de bioidentidades. (FACCHINI, 2003; ORTEGA, 2004;


PERRUSI; FRANCH, 2012; VALLE, 2002)
Em relação às noções de bioidentidades ou de “identidades clínicas”,
como sugere Valle (2002), estas referem-se a um esforço de transformação
intersubjetiva para construir uma possibilidade de vida sem estigma e
discriminação; indica um afastamento das noções que colocam as PVHA
enquanto potenciais vetores de doença. Em outras palavras, exprime a ten-
tativa de se diferenciar das noções de risco produzidas massivamente ao
longo da pandemia, especialmente ao longo dos anos 1980. Assim, termos
como “aidético”, “portador” e “soropositivo” foram questionados e substi-
tuídos por “pessoas vivendo com HIV/aids”. Estas transformações das bio­
identidades de risco (OLIVEIRA, 2021) buscam reajustar o foco para a pessoa
e, assim, humanizar todas as pessoas que vivem com HIV/aids, evitando
nomeações que enfatizam algum tipo de status sorológico.
Este trajeto histórico de nomeações vem acontecendo ao longo das
quatro décadas de pandemia de aids, à medida que as compreensões sociais,
políticas, econômicas e também biofármaco-tecnológicas se transformam
e se sofisticam. Uma das formas mais recentes de nomeação, que busca
apartar-se dessa noção de risco ou de corpo-vetor de doença, é o ser/estar
indetectável. Esta bioidentidade ainda está começando a se desenvolver no
Brasil e chegou com mais força em 2018, trazida por ativistas, pesquisadores
e instituições a partir de uma campanha global que chamava atenção para
o fato de que “Indetectável é igual Intransmissível” (I=I).
A campanha Indetectável = Intransmissível (I=I) (em inglês undetectable
= untransmittable) nasceu em 2016, a partir de um grupo de PVHA com o
objetivo de reiterar o caráter da intransmissibilidade do vírus ao passo que
busca ressignificar o estigma de que as PVHA representariam um risco à
sociedade. Os avanços biomédicos possibilitam, em alguma medida, fer-
ramentas importantes para desmantelar processos de estigmatização e
que agora auxiliam pessoas a encontrar novas possibilidades de superação
de determinadas violências; além de permitir uma maior qualidade de
vida, produzindo impactos significativos nas questões relacionadas à saúde
mental, à própria liberdade sexual e afetiva, e em relação ao auto estigma.
A campanha I=I adquiriu maior expressividade a partir da 22ª
Conferência de AIDS (AIDS, 2018). Com o documento Expert Consensus
Statement, produzido ao longo desta conferência para barrar o avanço da
criminalização da transmissão do HIV no mundo, a mensagem I=I tem sido
articulada internacionalmente para lutar contra o estigma. A campanha
tem dois objetivos políticos principais, a saber: 1) pressionar os Estados a

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150 Pisci Bruja Garcia de Oliveira

promover o acesso à medicação para todas as PVHA; e 2) desincentivar a


promulgação e o uso de leis punitivas e discriminatórias contra as PVHA.
No que concerne às esferas das relações sociais e sexuais, e segundo
os estudos de Kane Race (2015) acerca das práticas sexuais de PVHA que
não usam preservativo, em Sidney, na Austrália, indetectável tem sido uma
categoria mobilizada entre esses grupos, inclusive no lugar de “positivo”,
desde pelo menos 2015. Assim, esta nova bioidentidade tenta ressignificar
as noções de risco – de transmissibilidade do vírus – e se conecta com os
discursos biomédicos e estatais (como no caso brasileiro) de Tratamento
como Prevenção (TCP).
Com base no trabalho de campo feito no movimento social de Aids
e saberes científicos sobre a pandemia, Oliveira (2021) percebeu uma
mudança recente na autoidentificação das PVHA. Partindo de análises
socioantropológicas realizadas na 22ª Conferência Internacional de AIDS
– AIDS 2018 –, e na 4ª Conferência Internacional em Ciências Humanas
e HIV, identificou-se que gays cisgênero vivendo com HIV/aids já não se
identificam como “soropositivas”, “HIV positivas” ou até mesmo como
“vivendo com HIV”. Indetectável é a forma pela qual essas pessoas passam
a se referir: “sou indetectável”.
Em São Paulo, um estudo recente de Patrícia Figueiredo (2020) busca
compreender como as evidências de indetectabilidade e de intransmissi-
bilidade estão sendo familiarizadas e apropriadas no cotidiano das PVHA.
Figueiredo (2020) aponta que I=I está cada vez mais presente no cotidiano
das PVHA, nas suas práticas sexuais e afetivas, e com especial potencial de
enfrentamento ao estigma. Mesmo se tratando de um discurso sobre o risco,
é possível identificar uma recalibragem desse risco na medida em que se
enfatiza a intransmissibilidade do HIV. Como consequência, o discurso das
PVHA move-se então para a esfera da “ausência de risco”, transformando a
própria “socialidade” do viver com HIV/aids. (FIGUEIREDO, 2020)
Para além da potencialidade de reconstrução do sujeito e da subjetivi-
dade, o que se dá por meio de uma bioidentidade de risco, deve-se ressaltar
a necessidade de reflexão sobre o contexto político, social e econômico de
desmantelamento das políticas de aids no Brasil e no mundo, bem como o
avanço das privatizações e sequestros das infraestruturas públicas de saúde
e de educação. Ativistas como Lynette Mabote e Oliveira, além de pesquisa-
dores como Edwin Cameron e Richard Elliot, membros da Canadian HIV/
AIDS Legal Network, chamam atenção para as armadilhas acerca da defesa
de direitos com base nos avanços das tecnologias biomédicas e farmacêu-
ticas (OLIVEIRA, 2021), sobretudo em países com maiores dificuldades de

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indetectável 151

acesso às Terapias Antirretroviral (TARV) por conta de patentes e conside-


rando também as desigualdades que decorrem das relações assimétricas,
fundadas nos marcadores sociais da diferença. Regiões fortemente atraves-
sadas pelas relações de poder e marcadas pela colonização criam e nutrem
disparidades sociais no acesso aos direitos, inclusive às tecnologias biomé-
dicas e farmacêuticas e aos serviços de saúde, tornando as epidemias “um
dos mais eficazes mecanismos de genocídio” (ANJOS, 2004, p. 104 apud
LÓPEZ, 2011, p. 595), delimitando, grosso modo, quem vive e quem morre
de aids; quem “é” e quem “não é” indetectável.5
Ademais, ainda é preciso se questionar como serão os impactos da
desestruturação de programas de educação sexual nas escolas para as juven-
tudes, com um suposto deslocamento para a esfera familiar. Vera Paiva
(2020) pontua que, semelhantemente à ditadura civil-militar, época em que
a “educação sexual” estava restrita à “educação moral e cívica”, há hoje uma
retomada e um avanço dessas narrativas, indo na contramão de medidas
producentes para amortizar os impactos das vulnerabilidades sociais e suas
consequências em relação à pandemia de aids.
À guisa de conclusão, demarca-se o caráter revolucionário da indetec-
tabilidade neste novo momento da pandemia de HIV/aids, especialmente
a partir da segunda década dos anos 2000, com destaque para novas estra-
tégias e possibilidades de desmantelamento do estigma e de reconstrução
subjetiva das PVHA, e aumento da qualidade de vida. No entanto, ainda é
preciso atenção para que não se criem castas entre pessoas que atingiram
a indetectabilidade daquelas que, em grande parte por razões estruturais e
especificidades corporais, não têm a possibilidade, inclusive material, para
se tornarem indetectáveis.

REFERÊNCIAS
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Acesso em: 1 out. 2016.

5 É exatamente por este contexto de violência estrutural e de negação de direitos que a população
negra se configura como a mais afetada pela aids no Brasil, sendo as mulheres cisgêneras ne-
gras as que mais morrem: cerca de três vezes mais do que a população branca. (BOMFIM, 2016)

glossario-das-desidentidades-MIOLO.indb 151 13/09/2023 07:13


152 Pisci Bruja Garcia de Oliveira

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glossario-das-desidentidades-MIOLO.indb 153 13/09/2023 07:13


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155

IRMÃ

João Victtor Gomes Varjão

A partir do trabalho de campo com a Companhia de Teatro Drama, em


Juazeiro da Bahia, tive contato com a categoria nativa irmã.1 Ao referirem-
-se acerca de si, um pequeno grupo de integrantes do teatro constante-
mente mencionava o fato de serem “irmãs”, embora não houvesse laços
de consanguinidade ou um núcleo familiar comum. Os membros dessa
irmandade eram Alex, Roberto, Bruno e Ingrid, um grupo formado por três
“bichas” e uma “racha”2 negras. Na minha pesquisa etnográfica (VARJÃO,
2021), levei a sério essa denominação e busquei compreender qual o sen-
tido de ser irmã em suas vidas. A partir do convívio nos bastidores do teatro,
compreendi que ser denominada irmã constitui uma maneira particular
de denominar laços relacionais. (CARSTEN, 2000) Mais do que uma metá-
fora da nomenclatura “tradicional” do parentesco, evocar-se como irmã
indica uma (des)identificação das relações de parentesco consanguíneo e
tradicional, por vezes “naturalizado”, lançando luz sobre outras formas de

1 Esse trabalho de campo foi realizado ao longo do ano de 2020 para construção da dissertação
de mestrado (VARJÃO, 2021) do Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade
Federal da Bahia, financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia.
2 Adoto a maneira pela qual eles costumam se “identificar” na nomenclatura sexual. Embora
­“racha” seja por vezes associado a um adjetivo pejorativo, no contexto da Companhia Drama,
seu uso era constante e comum, sendo realizado mesmo pelas mulheres.

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156 João Victtor Gomes Varjão

se fazer família, sobretudo, nesse contexto de diversidade de gênero, sexu-


alidade e racialidade.3
Aproximo minha discussão, em alguma medida, ao estudo de Antu
Sorainen (2019). Em sua etnografia sobre um grupo formado por quatro gays
marginalizados de meia-idade, denominados de Gay Back Alley Tolstoys,
a teórica Soarinen propõe um estudo sobre um parentesco que se forma
na vida dessas pessoas, que não se acomoda no léxico da relacionalidade
associada às vidas gays, mas que é construído a partir de arranjos íntimos
e domésticos de solidariedade e mutualidade. Sorainen (2019) afirma que
eles estão à margem da margem e constituem uma forma não convencional
de relacionalidade. Essa rede inclui ainda um cachorro que eles adotaram
na Espanha e que cada um se relaciona de uma determinada forma. Em sua
etnografia, a autora demonstra os limites do parentesco LGBT, quando está
firmado na tríade de relacionamento, reprodução e legalidade. Essa tríade
nem sempre contempla outras formas de intimidade queer que podem ser
percebidas no cotidiano dessas pessoas.
Semelhantemente, atentar-se para essas irmãs e para essa autodenomi-
nação aponta para uma outra forma de intimidade e de conexão que, embora
retome o termo clássico do parentesco, desidentifica-se com suas caracterís-
ticas próprias. Ainda que a etnografia se limite a uma rede bastante restrita
de indivíduos, ela aponta para uma complexidade relacional e léxica que
devem ser entendidas localmente e nos limites definidos pelo grupo. Ao con-
trário de buscar uma (des)identidade mais abrangente e em escala mais
ampla, os contextos apontam para formas locais de identificação. Embora,
em teoria, um verbete busque definir um termo mais ou menos padronizado
e amplo, um verbete de uma (des)identidade parece sempre estar limitado a
contextos marginalizados – sempre em relação a uma maioria.4 (DELEUZE;
GUATTARI, 2015) Saliento, portanto, que a suficiência e a extensão do termo
parecem ter a ver com o tipo de antropologia que se pretende, a forma parti-
cular de delimitar uma palavra, um grupo ou uma identidade. Mais que per-
mitir uma definição limitada, essas irmãs complexificam o termo “original”,

3 Recorro ao conceito de “diversidade” para identificar um contexto em que sujeitos são atraves-
sados por um conjunto de marcadores sociais da diferença que não se adequam ao padrão hete-
rossexual, cisgênero, normativo e branco.
4 Recorro, neste texto, à definição de minoria e maioria a partir da obra de Deleuze e Guattari
(2015) que pensam essas categorias analíticas não a partir de quantidade, mas relações de po-
der e eixos de diferenciação não normativos. “As maiorias e as minorias não se distinguem pelo
número. Uma minoria pode ser mais numerosa que uma maioria. O que define a maioria é um
modelo ao qual é preciso estar conforme”. (DELEUZE, 2013, p. 218)

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irmã 157

como um léxico menor (DELEUZE; GUATTARI, 2015), demonstrando que


essas nomenclaturas em geral têm a ver com questões cotidianas e locais
de suas experiências, havendo reverberações em toda rede (a saber, outros
membros identificavam esse pequeno grupo enquanto irmãs, mas incluem-
-se nessa rede apenas como “amigos”), mas compondo-se, sobretudo, como
uma relacionalidade marcada como “linha de fuga”.
Ser irmã implica em um compartilhamento íntimo e intersubjetivo
de vidas, percebido a partir do compartilhamento de substâncias5 – como
dinheiro, cigarro, maconha e outras “drogas” – e, especialmente, pela apro-
ximação a partir da “passividade”. No idioma do parentesco das irmãs, “ser
passiva” é um fator positivo que agrega valor à coletividade do grupo. Essa
identificação, constantemente reivindicada, aproxima tanto as “bichas”
quanto as “rachas” pela possibilidade de “ser penetrada”. Era comum que,
durante nossas conversas, as irmãs falassem sobre desejo, prazer e sexua-
lidade. Esse universo do desejo era sempre referenciado a partir da “pas-
sividade” (“dar o cu!”). As irmãs afirmavam com veemência: “Somos todas
passivas!”. Embora Ingrid seja uma mulher cisgênero e bissexual, elas,
por vezes, disseram que ela tinha “alma de ‘trava’”, o que parece alinhá-la
à sexualidade dissidente das irmãs.6 Além disso, se a “passividade” é ser
penetrado analmente, ela estava em consonância com essa característica,
como disse em muitos momentos. O que quero pontuar é que o desejo e
o prazer são fundamentais para a mutualidade e o emaranhamento das
vidas irmãs.
Aproximo-me da reflexão de Don Kulick (1997), que aponta para uma
aproximação generificada entre pessoas que são penetradas sexualmente
(homossexuais e mulheres cis e transgênero). A partir do binômio de
“homens” e “não-homens”, Kulick (1997) afirma que o gênero na América
Latina pode ser lido a partir de quem é penetrado e de quem não é, mas
que vai além da interação sexual, desembocando em uma estrutura con-
ceitual da qual se pode compreender desejo, corpos, relações afetivas e

5 Utilizo o conceito de “substância” elaborado por Janet Carsten (2000): a “substância” para a
antropóloga é uma matéria compartilhada que dá corpo às relações de parentesco. Atentar-se
ao compartilhamento dessas substâncias – que podem variar de campo para campo – permite
observar a maneira pela qual as pessoas estão relacionadas umas às outras e como intensificam
seus laços no cotidiano.
6 Discuto de maneira mais aprofundada sobre essas sexualidades não normativas no contexto do
teatro em outro texto. (VARJÃO, 2022) Embora dê uma ênfase maior ao território do Centro de
Cultura João Gilberto, analiso como a sociabilidade relacionada à diversidade de sexualidade,
gênero e raça é mais intensa nos contextos de produção artística em Juazeiro da Bahia.

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158 João Victtor Gomes Varjão

físicas e papéis sociais. A “passividade” e a “atividade” são questões fun-


damentais para compreender as relações no contexto brasileiro, sobretudo,
relacionados a homossexuais, como demonstrou Peter Fry (1982). No caso
das irmãs, “dar o cu” é positivo e denota um potencial da relacionalidade.
Esse processo relacional viveu uma crise durante a pesquisa de campo
quando Roberto, uma das irmãs, começou a namorar com José, outra “pas-
siva”. Isso se tornou um problema constante nas conversas dessas irmãs
e fez Roberto virar motivo de chacota. Durante uma das festas que fre-
quentei, Ingrid me disse: “Roberto era ‘passiva!’ Quando Roberto conheceu
José, José começou a dar o cu e Roberto virou ‘ativa!’ Roberto hoje é ‘ativa’,
porque José dá o cu! E Roberto gosta? Ela ama, porque ela diz que José mos-
trou uma nova vida para ele!”. Esse novo aspecto do desejo, a partir da ela-
boração da subjetividade de Roberto, por conta de José, reverbera nesse
ponto fundamental das irmãs: a “passividade”. Roberto está traindo algo
que as une, sendo “ativo”, o que intensifica o sentimento de ameaça intro-
duzido por José. Ser “ativo” se torna uma traição por dissidiar aquilo que
elas orgulhosamente defendem e reivindicam.
Considero que há uma aproximação entre a reflexão de Kulick (1997)
e a vida das irmãs. A partir da “passividade” (“ser penetrado”), as irmãs se
identificam, alinham-se “do mesmo lado”, havendo tanto homens cisgê-
nero, quanto mulheres cisgênero na composição do grupo. Há uma aproxi-
mação a partir da “passividade”, que constrói uma coletividade, um grupo
familiar. Nesse sentido, a “passividade” não é somente importante para a
performatividade de gênero, mas também para construção do parentesco
na vida das irmãs. Por isso, a indignação e a traição de Roberto quando ele
“deixa” de ser “passiva”. Além de dissidiar a “passividade”, está, em alguma
medida, dissidiando a coletividade do parentesco. “Ser passiva”, assim, é
um desejo que se associa à coletividade e à mutualidade da vida das irmãs.
Ser “passiva”, como disse Alex, não significa somente desempenhar o
papel passivo no ato sexual (“dar o cu”), mas é uma reafirmação do caráter
que fundamenta o parentesco entre as irmãs: uma performatividade
­“passiva”, que implica em discursos, atos, gestos e outras atuações perfor-
mativas. (BUTLER, 2017) As irmãs imbricam o gênero e a sexualidade forte-
mente em seu parentesco, de modo que Roberto interfere na “passividade”
de todas elas quando deixa de “dar o cu” e se torna “ativo”. Antes de ser um
ato individual e privado, tornar-se “ativa” culmina em uma dissidência ao
coletivo. A presença de José, portanto, é um problema de traição e confiança,
pois interfere diretamente no parentesco das irmãs e, mais perigosamente,
pode implicar em um distanciamento de Roberto do grupo.

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irmã 159

Essa performatividade das irmãs pode ser percebida na indexicalidade


dos pronomes usados nas enunciações cotidianas do andar junto. Entre
si, as irmãs prezam pela pronominação cotidiana em concordância com
gênero feminino. Durante o trabalho de campo, praticamente todo dis-
curso era enunciado a partir do uso do gênero feminino de maneira ampla
entre as irmãs. Esse uso variava quando não havia uma intimidade cons-
truída entre os envolvidos, acontecendo com mais incidência apenas entre
as irmãs. Os usos dos vocativos “mulher” e “bicha” são amplamente per-
cebidos nas conversas diárias entre as pessoas que andam juntas. Ser cha-
mado a partir desses vocativos significa que há uma aproximação e uma
intimidade entre quem chama e quem é chamado. Raramente, vi esses usos
sendo feitos com desconhecidos. É importante não confundir esses usos
com uma reivindicação da identidade de gênero feminino, pelo menos entre
as pessoas com as quais convivi. Enunciar pronomes no feminino indica,
sobretudo, a construção de uma coletividade a partir do uso pronominal.
Considero, portanto, que esse uso pronominal indica uma indexicalidade
coletiva feminina e “passiva” para as irmãs.
Se os amigos são um agrupamento que pode ser pronominado a partir
do feminino, há também condições que fazem esse uso variar – condições
que têm a ver com a proximidade, o bom humor e a relação não conflituosa.
Essa variação pronominal raramente ocorre entre as irmãs; os pronomes
dificilmente serão masculinos nas relações das irmãs. Caso isso aconteça,
o conflito atingiu seu ápice.
Dito isso, a conformidade do gênero masculino (heteronormativo) não
as inclui por inteiro. Se os pronomes femininos demarcam parentesco,
demonstram quem pode ser irmã, eles também externalizam quem não
faz parte dessa relacionalidade. Ainda que nossa amizade tivesse se con-
cretizado e nossos laços estivessem mais próximos, muitas vezes ocorria
de me chamarem por pronomes masculinos. Pontuo essa característica,
além disso, para contextualizar o uso extensivo e, por vezes, discordantes
das normas cultas de língua portuguesa dos pronomes femininos ao longo
deste texto. No entanto, a partir da indexicalidade “passiva”, para as irmãs,
essa pronominação independe de ser homem ou mulher; discordâncias ou
confusões também são propositais nas suas práticas cotidianas.
Em alguma medida, pronunciar-se pelo feminino, bem como alinhar-se
a “ser passiva”, pode ser associado a uma certa posicionalidade, de modo
que o “tu” estaria associado a “ser ativo”, aquele que “come”, que consiste
no externo, o outro perigoso/desejado. A partir da consideração de Roberto
como um “ativo”, as irmãs estão demarcando uma distância constitutiva:

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160 João Victtor Gomes Varjão

ele não pertence à “mesma espécie”, assim como outros “ativos” que não
fazem parte da mesma relacionalidade e não compartilham da “passivi-
dade” das irmãs. O “ser ativo”, assim, é o outro, perigoso e ameaçador, para
a relacionalidade das irmãs e, apesar disso, continua sendo desejado –
o cônjuge prescrito nas relações das irmãs, por isso, seu caráter disruptivo.
Nessas relações de parentesco, o tabu não consiste necessariamente no
incesto, como na teoria clássica de Lévi-Strauss (1982),7 mas no tabu da pas-
sividade. As irmãs, compartilhando a possibilidade de serem passivas, não
devem se relacionar com outras passivas. Como no exemplo de Roberto e
José, a presença de outra passiva (José) fez com que Roberto mudasse sua
forma de agir com as irmãs – diminuísse seus trejeitos, adquirisse uma pos-
tura mais “masculina” e exercesse o papel de “ativo” durante o ato sexual.
O perigo de ter uma “passiva” em jogo consiste justamente na possibilidade
de a passividade não ser mais uma linguagem comum, coletiva, como acon-
tecia antes do relacionamento. Por conta de José, outra passiva, Roberto
mudou sua postura, servindo de constante chacota no grupo.
Nesse sentido as “pegações” (com os “boys”, como elas dizem) são
geralmente com pessoas fora da irmandade. Os boys, na maioria das vezes,
faziam parte da rede de sociabilidade da Companhia Drama. Eram amigos
de amigos, visitantes convidados, atores novatos. Raramente, havia uma
relação com pessoas muito externas da rede, salvo para o namorado de
Ingrid, Danilo. A Companhia Drama era um dos espaços em potencial para
estabelecer essas relações, sobretudo, quando apareciam novas pessoas.
Com os boys, expressa-se o desejo mais intensamente, porque os boys em
geral são “ativos”.
Os boys permitem que as irmãs estejam mais alinhadas em um lado
– afinal, a linha divisória entre o “ativo” e o “passivo” é importante para
esses laços de relacionalidade. Essa linha divisória é resultado de uma

7 Segundo Lévi-Strauss (1982, p. 159), a estrutura elementar do parentesco seria a proibição do


incesto e a inerente troca de mulheres entre grupos: “é sempre um sistema de troca que encon-
tramos na origem das regras do casamento [...] é a troca, sempre a troca, que aparece como base
fundamental e comum de todas as modalidades da instituição matrimonial”. A exogamia pos-
sui um valor positivo, na perspectiva estruturalista, possibilitando a existência social do outro.
O incesto (ou o casamento endógamo) seria proibido “[...] para introduzir e prescrever o casa-
mento com um grupo diferente da família biológica. Certamente não é porque algum perigo
biológico se ligue ao casamento consanguíneo, mas porque do casamento exógamo resulta um
benefício social”. (LÉVI-STRASUSS, 1982, p. 521) A proibição do incesto é a regra que garante o
domínio da cultura sobre a natureza: “Antes dela a cultura ainda não está dada. Com ela a natu-
reza deixa de existir, no homem, como um reino soberano”. (LÉVI-STRASUSS, 1982, p. 61)

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irmã 161

relação cuidadosa e perigosa com esse outro (o “ativo”). Elas os desejam,


mantêm relações afetivas e sexuais, “ficam” e os “pegam”, mas os mantêm
em uma distância controlada nessa linha divisória. Alinhadas à “passivi-
dade”, as irmãs fortalecem e dão sentido ao seu parentesco. “Dar de comer”
aos “ativos”, a indexicalidade feminina, bem como uma certa performativi-
dade corporal “passiva”, constituem e diferenciam o parentesco das irmãs
da relacionalidade com outras pessoas. A irmandade, portanto, pode ser
conceituada como um parentesco relacionado à identidade “passiva” (a pas-
sividade) que é performada na vida cotidiana do grupo.

REFERÊNCIAS
BUTLER, J. Problemas de Gênero: Feminismo e subversão da identidade. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2017.

CARSTEN, J. Introduction: Cultures of relatedness. In: CARSTEN, J. (org.).


Cultures of relatedness: new approaches to the study of kinship. United Kingdom:
Cambridge University Press, 2000. p. 1-36.

DELEUZE, G. Conversações. 3. ed. São Paulo: Ed. 34, 2013.

DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Kafka: por uma literatura menor. Belo Horizonte:
Autêntica, 2015.

FRY, P. Homossexualidade masculina e cultos afro-brasileiros. In: FRY, P. Para


inglês ver: identidade e política na cultura brasileira. Rio de Janeiro: Zahar, 1982.
p. 54-86.

KULICK, D. The Gender of Brazilian Transgendered Prostitutes. American


Anthropologist, Washington, D. C., v. 99, n. 3, p. 574-585, 1997. Disponível em:
https://www.jstor.org/stable/681744. Acesso em: 29 maio 2023.

LÉVI-STRAUSS, C. As estruturas elementares do parentesco. Petrópolis: Vozes,


1982.

SORAINEN, A. Gay back alley tolstoys and inheritance perspectives: Reimagining


kinship in queer margins. In: BOYCE, P.; GONZALEZ-POLLEDO, E. J.;
POSOCCO, S. (ed.). Queering knowledge: analytics, devices and investments
after Marilyn Strathern. Abingdon: Routledge, 2019. p. 55-72.

glossario-das-desidentidades-MIOLO.indb 161 13/09/2023 07:13


162 João Victtor Gomes Varjão

VARJÃO, J. V. G. Andando junto: relacionalidade LGBTQ+ e o parentesco


“passivo” na Companhia de Teatro Drama em Juazeiro da Bahia. 2021.
Dissertação (Mestrado em Antropologia) – Pós-Graduação em Antropologia da
Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal da Bahia,
Salvador, 2021.

VARJÃO, J. V. G. O “João Gilberto” no palco do patrimônio cultural: sexualidade,


gênero e cor/raça nos bastidores do teatro em Juazeiro da Bahia. ACENO –
Revista de Antropologia do Centro-Oeste, Cuiabá, v. 9 n. 19, p. 119-132, 2022.
Disponível em: https://periodicoscientificos.ufmt.br/ojs/index.php/aceno/article/
view/13471. Acesso em: 29 maio 2023.

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163

MARICONA LOUCA

Bruno Puccinelli

O sexo das loucas, que temos usado de atração para este


delírio, seria então a sexualidade louca, a sexualidade
que é uma fuga da normalidade, que a desafia e a subverte.1
(PERLONGHER, 1997, p. 33, tradução nossa)

Enquanto realizava pesquisa2 em um shopping center conhecido pela pre-


sença “gay”,3 na cidade de São Paulo, a expressão “maricona louca” foi utili-
zada por diferentes interlocutores para se referir a determinadas práticas e
fluxos naquele espaço. A expressão caracterizava-se por um uso pejorativo
e desqualificador, referindo-se sempre a uma outra pessoa e nunca como
autodefinição. Dessa forma, os interlocutores com os quais realizei o tra-
balho de campo definiam-se em termos que consideravam mais qualifica-
dores e, portanto, mais corretos para explicar suas sexualidades, práticas,

1 Texto original: “El sexo de las locas, que hemos usado de sueñuelo para este delirio, sería entonces
la sexualidad loca, la sexualidad que es una fuga de la normalidad, que la desafía y la subvierte”.
2 A pesquisa, intitulada O Shopping Frei Caneca e a rua gay de São Paulo: uma abordagem etno-
gráfica, foi realizada entre 2008 e 2009 como iniciação científica na Faculdade de Filosofia,
­Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP), sob orientação do prof.
dr. Heitor Frúgoli Jr. e com bolsa PIBIC/CNPq.
3 Ao longo do texto as palavras utilizadas por interlocutores serão grafadas entre aspas.

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164 Bruno Puccinelli

performances e performatividades. “Gay”, palavra amplamente utilizada,


capturava boa parte dessas autoidentificações com adjetivações ou termos
coadjuvantes que reafirmavam a qual grupo cada um sentia pertencer.
Contudo, havia variações no espectro de uma masculinidade sem trejeitos
e afetações no uso de expressões como “gay másculo”, “musculoso”, “fora
do meio”, “discreto”, “urso” e “lobo”. Estas duas últimas expressões fazem
referência explícita a compleições físicas de maior volume corporal e exis-
tência ou manutenção de pelos visíveis no dorso e barba, enquanto as pri-
meiras combinavam um corpo saudável e atlético a uma ideia de juventude.
A divisão esquemática entre “ursos” e “musculosos” nos espaços do sho-
pping criava também limites semânticos entre esses dois esquemas grupais
através de termos acusatórios como “bichas gordas”, quando os “muscu-
losos” se referiam aos “ursos”, e “barbies” quando os primeiros se refe-
riam aos segundos. Apesar dessa suposta antinomia, baseada em pares de
opostos operativos com a efeminação dos sujeitos desqualificados, havia
cruzamentos rotineiros. Onde se situa, então, a maricona louca? Como men-
cionado no início, maricona louca não se refere necessariamente a uma
classificação de um tipo personológico, mas a práticas de algumas pessoas,
sendo o uso dos banheiros públicos para atos sexuais um polo atrator dessa
(des)identidade e ponto de difusão de outras lógicas de circulação.
A “maricona” aparece já no trabalho de Néstor Perlongher (2008), ao
tratar das formas classificatórias de clientes e michês. Nele, o autor esboça
um quadro com três grandes blocos: gênero, idade e estrato social, cada
um subdividido entre prostitutos e não prostitutos, cujos termos circulam
no contexto da “michetagem” e das “bocas” do “gueto gay paulistano” da
década de 1980, como ele define a área central da cidade. Neste quadro, o
termo “maricona” aparece atribuído a clientes considerados mais velhos
(a partir de 35 anos) adjetivado por expressões de gênero que enfatizam
a efeminação e o pertencimento a estratos sociais mais baixos. Assim,
figuram nas classificações dos prostitutos expressões como “maricona” e
“bicha velha”, aludindo à idade, e “maricona podre” ou “maricona fodida”,
quando relacionados ao estrato social. Segundo a percepção do poeta e
antropólogo argentino, que realizou sua pesquisa em São Paulo, “mari-
cona” se aproxima de “marica”, “[um] portunholismo menos difundido”
(PERLONGHER, 2008, p. 156) e partilha o mesmo sentido de “tia” no que
concerne à depreciação dos clientes considerados de maior idade. Ainda
segundo Perlongher (2008), “maricona” também pode referir-se aos sujeitos
enrustidos com práticas homossexuais, ou seja, que tentam, sem sucesso,
ocultar sua sexualidade.

glossario-das-desidentidades-MIOLO.indb 164 13/09/2023 07:13


maricona louca 165

No que concerne a esse tipo de classificação no contexto de minha pes-


quisa, a “maricona” expressaria sua feminilidade tanto na forma de andar
quanto nos espaços que frequenta, com uma desaprovação enfática da prá-
tica de “banheirão”.4 Segundo os interlocutores de pesquisa, essa seria uma
forma inconveniente e desregulada de lidar com a própria sexualidade,
que agride os usuários heterossexuais ao perceberem trocas de olhares nos
mictórios e espelhos, portas entreabertas nos privativos e demora na exe-
cução das necessidades fisiológicas. O mictório, equipamento produtor
de gênero, como aponta Preciado (2019), que expressa facilidade ao urinar
para pessoas com pênis, em geral considerados homens, é convertido em
lugar de desejo na dinâmica do “banheirão”. A prática, contudo, pode ser
interrompida tanto pela intrusão institucional do shopping center, com a
penetração evacuante de seguranças ou faxineiros, quanto da maricona
louca, aquela “bicha que não se toca”. O ato de “não se tocar”, na dinâmica
observada, está relacionado a uma falta de traquejo no uso dos códigos de
olhares e aproximações vagarosas na prática do “banheirão”, mas também
na falta de autopercepção de que há uma exclusão do mercado sexual ope-
rado naquele espaço de pessoas com certa idade ou efeminação ostensiva.
“Não se tocar”, no sentido figurado de não se dar conta de certas coisas, adi-
cionaria o elemento do desvario da “louca”, interditando que a “maricona”
toque outros homens, já que a bicha delirante crê ser parte da pequena orgia
que se forma ao redor do mictório, mas não é bem-vinda.
A maricona louca, próxima da “bicha”, pode talvez já ser observada nos
apontamentos de Silva (2005) na década de 1960. Em uma pequena lista
intitulada “vocabulário de gíria homossexual”, Silva (2005, p. 186) apre-
senta a expressão “bicha louca” referente a:

[...] os indivíduos que agem agressivamente de modo efeminado.


Empregada também como ‘loucas’ referindo-se ao grupo que
demonstra atitude ostensiva homossexual, especialmente na ‘caça’,
como passivos. Utilizado ainda para destacar o interesse na caça,
especialmente numa reunião homossexual, em uma situação em
que existe a possibilidade disso.

Como pode-se perceber, há uma semelhança no que concerne à


expressão exagerada de desejo sexual e à efeminação deslocadas do con-
texto de reunião privada, contextos pesquisados por Silva. A principal

4 “Banheirão” em geral se refere a práticas sexuais furtivas em banheiros públicos.

glossario-das-desidentidades-MIOLO.indb 165 13/09/2023 07:13


166 Bruno Puccinelli

alteração se dá, 20 anos depois, quando olhamos o trabalho de Perlongher,


na marcação geracional que acentua o deslocamento na percepção da idade
dos sujeitos à procura de sexo. Isso é algo presente 30 anos depois do tra-
balho desse autor, no contexto de pesquisa de Oliveira (2017) no circuito
de cinemões, saunas e uso de aplicativos de relacionamento direcionados
para “gays” em João Pessoa. Neste caso, no entanto, a “maricona” aparece
como o polo mais negativo dentre as atribuições de interesse no mercado
sexual, figurando ao lado da “mona” e do “viado”, mais desvalorizada que a
“bicha” e que uma outra categoria de nomeação de sujeitos de maior idade,
o “coroa”. Simões (2004) aponta que o uso desse último termo é parte de
um manejo de recondução de homens mais velhos à arena do desejo. Em
um certo sentido, o “coroa” pode ser visto como um antônimo arquetípico
da “maricona”: apresenta traços de envelhecimento, como cabelos grisa-
lhos, mas é viril, saudável e bem-sucedido, podendo garantir acesso a bens
e espaços privilegiados para si e a seus amantes.
Já a “maricona”, em sua deriva louca em busca de sexo, desloca uma
ideia normatizada de como se devem dar os interesses afetivo-sexuais e
as interações carnais. No contexto de minha pesquisa, a maricona louca
opera na reafirmação de uma homossexualidade contida e privatizada, que
constrange manifestações públicas abertas e “fechativas”5 e/ou expressões
ostensivas de si, o “dar pinta”. Chamo a (des)identidade maricona louca de
operativa por ser uma expressão manejada tanto pelos “ursos” quanto pelos
“musculosos”, frequentadores do shopping, que apontam a terceiros tal
alcunha. De forma geral, no meu contexto de pesquisa, esse termo era atri-
buído a alguém reconhecido como não pertencente nem ao próprio grupo
e nem a outros, situando-se no fluxo circulatório dos corredores do shop-
ping sem que fosse possível uma delimitação identitária mais óbvia. Nesse
sentido, a maricona louca transita entre “ursos” e “musculosos”, emergindo
em contextos considerados fora dos limites do comportamento aceitável.
Semelhante à ideia de forasteiro, a maricona louca também era per-
cebida em campo como um alguém que tenta circular de maneira furtiva
para conseguir penetrar os espaços de trocas sexuais e, com isso, extrair o
máximo de prazer com o mínimo de rejeição. Por tais motivos, a maricona

5 Segundo Arruda (2017), o termo “fechação”, de ampla utilização entre jovens gays, se refere à
acentuação da expressividade corporal de forma intencional, com gestos, palavras e andares,
para que suas homossexualidades sejam percebidas. Segundo o autor, a “fechação” possui um
caráter de ação e “preserva essa dimensão de um ser que afeta, provocativamente, o outro, atra-
vés de sua expressividade corporal”. (ARRUDA, 2017, p. 23)

glossario-das-desidentidades-MIOLO.indb 166 13/09/2023 07:13


maricona louca 167

louca é responsabilizada por certa percepção de desconfiança por parte da


administração do shopping, expressa na atuação de seguranças e outros
funcionários, e explicitada no aviso preso aos espelhos dos banheiros mas-
culinos que alerta para a punição legal da prática de ato obsceno em lugar
público.6 A maricona louca representa a circulação contínua, sem um
ponto de destino, subindo e descendo escadas enquanto flerta, fazendo
um mal-uso do shopping, de acordo com meus interlocutores. Estes últimos
apontam, com isso, que possuem interesses muito objetivos em suas pró-
prias visitas ao shopping, seja para uso comercial ou encontros não neces-
sariamente sexuais.
Apesar de parecer uma definição de um sujeito com comportamentos
desaprovados, a maricona louca refere-se antes a uma prática de pessoas
específicas que, no discurso mais amplo, é extremamente reprovada. Isso
fica mais claro quando um dos interlocutores mais enfáticos na desapro-
vação da atividade que caracteriza a maricona louca aparece também como
parte do fluxo de saídas e entradas em banheiros, subidas e descidas de
escadas, junção em um pequeno bando anônimo e participante nas silen-
ciosas práticas nos mictórios. Em suma, a maricona louca existe porque
nesses espaços estão outros partícipes destes deslocamentos, que são espa-
ciais e personológicos, mas não são considerados maricona louca.
Seguindo o “círculo mágico versus os limites externos” na hierarquia
sexual proposta por Rubin (2017, p. 86),7 a maricona louca ocuparia os vários
extremos da sexualidade considerada “normal, natural ou sagrada”: é pro-
míscuo, intergeracional, em público, em grupo e, podemos adicionar, um
sexo de “loucas”. A estrutura institucional criada como forma repressiva
parcial ajuda a enfatizar o aspecto de perversão. Como aponta Perlongher

6 As placas foram afixadas em 2011, sem qualquer tipo de resistência dos frequentadores, e di-
ziam o seguinte: “A prática de ato obsceno em lugar público, ou aberto, ou exposto ao público, é
passível de pena de detenção de três meses a um ano” (BRASIL, 1940, p. 23911), mencionando o
artigo nº 233 do Código Penal que data de 1940 e ainda está em vigor. (BRASIL, 1940)
7 Rubin (2017, p. 86) propõe um modelo analítico sobre o sexo formado por dois círculos con-
cêntricos divididos em 12 fatias no qual o círculo central, intitulado “o círculo mágico”, possui
as qualificações de uma sexualidade socialmente “boa, normal, natural, sagrada”, enquanto o
círculo externo, intitulado “os limites externos”, apresentaria os elementos formadores de uma
sexualidade “má, anormal, antinatural, maldita”. As fatias de cada círculo possuem, cada uma,
seu par de oposição entre o círculo central e o externo, permitindo pensar tanto numa lógica
de centro x periferia, donde se imagina a má sexualidade como fora do ideal normativo, mas
também como algo que existe como limite opositor na reafirmação do discurso do bom sexo, ou
seja, numa lógica complementar.

glossario-das-desidentidades-MIOLO.indb 167 13/09/2023 07:13


168 Bruno Puccinelli

(1997, p. 32, tradução nossa): “A censura mantém viva a ilusão de que ‘tem
alguma coisa’ na perversão e essa ‘alguma coisa’ é um horror”.8
A maricona louca, portanto, traduz possibilidades de fuga em cruza-
mentos depreciativos que são ficcionais e concretos ao mesmo tempo.
Ficcionais por manejarem imaginários repulsivos criadores de sujeitos a
serem extirpados e, portanto, que não representam a quem fala, mas, por
estarem em um mesmo campo semântico (das homossexualidades mas-
culinas) têm o poder de macular a imagem positiva que é cuidadosamente
construída por outros, neste caso, especialmente outros homossexuais.
E concretas, pois são acopladas em sujeitos reais e têm consequências.
A “bicha velha”, “pintosa”, “louca”, congregando uma ideia de maricona
louca, é produzida como autômato que, ao se movimentar, precisa ser con-
vertida em bode expiatório.

REFERÊNCIAS
ARRUDA, M. S. O corpo e o gênero fechativo pelas ruas de Salvador. 2017. Tese
(Doutorado em Ciências Sociais) – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas,
Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2017.

BRASIL. Decreto-lei nº 2.848 de 1940. Código Penal. Diário Oficial da União:


seção 1, Brasília, DF, ano p. 23911, 31 dez. 1940. Disponível em: http://www.
planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848.htm. Acesso em: 16 jul. 2021.

FRY, P. Da hierarquia à igualdade: a construção da homossexualidade no Brasil.


In: FRY, P. Para Inglês Ver. Rio de Janeiro: Zahar, 1982. p. 87-115.

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universo da pegação. Rio de Janeiro: Ed. Multifoco, 2017.

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Ensayos 1980-1992. Buenos Aires: Ediciones Colihue, 1997. p. 29-34.

PERLONGHER, N. O negócio do michê: a prostituição viril. São Paulo: Ed.


Fundação Perseu Abramo, 2008.

PRECIADO, P. B. Lixo e Gênero, Mijar/Cagar, Masculino/Feminino. eRevista


Performatus, [São Paulo], ano 7, n. 20, p. 1-5, 2019. Disponível em: http://
performatus.com.br/wp-content/uploads/2019/03/Paul-Preciado_ed20_
eRevistaPerformatus.pdf. Acessado em: 28 maio 2023.

8 Texto original: “La censura mantiene viva la ilusión de que con la perversión ‘pasa algo’, y que
ese ‘algo’ es un horror”.

glossario-das-desidentidades-MIOLO.indb 168 13/09/2023 07:13


maricona louca 169

RUBIN, G. Pensando o sexo. In: RUBIN, G. Políticas do Sexo. São Paulo: UBU Ed.,
2017. p. 62-128.

SILVA, J. F. B. da. “Homossexualismo em São Paulo: estudo de um grupo


minoritário”. In: GREEN, J.; TRINDADE, R.(org.). Homossexualismo em São Paulo
e outros escritos. São Paulo: Ed. UNESP, 2005. p. 41-212.

SIMÕES, J. A. Homossexualidade masculina e curso da vida: pensando idades


e identidades sexuais. In: PISCITELLI, A.; GREGORI, M. F.; CARRARA, S. (org.).
Sexualidade e saberes: convenções e fronteiras. Rio de Janeiro: Ed. Garamond,
2004. p. 415-447.

glossario-das-desidentidades-MIOLO.indb 169 13/09/2023 07:13


glossario-das-desidentidades-MIOLO.indb 170 13/09/2023 07:13
171

MATI

Gloria Wekker
Cecilia Lisa Eliceche
Leandro Nerefuh

Com a permissão da professora Gloria Wekker, Cecilia Lisa Eliceche e Leandro


Nerefuh selecionaram e traduziram alguns parágrafos do livro Politics of
Passion: Women’s Sexual Culture in the Afro-Surinamese Diaspora. Publicado
originalmente em 2006, Politics of Passion recebeu o Prêmio Ruth Benedict
da Associação Americana de Antropologia, em 2007. Nossa seleção deixa
de fora, certamente, os aspectos mais evocativos da vida mati, assim como
preciosos testemunhos de Misi Juliette Cummings, de todas as outras infor-
mantes e da própria professora Wekker sobre seu envolvimento no trabalho
mati. Consideramos que a tradução completa do livro para o português no
Brasil é um projeto necessário. Conhecer a instituição do trabalho mati no
Suriname é uma dívida que todes(as)(os) s­ ul-americanes(as)(os) temos com
nós mesmes(as)(os).1 Ao conhecer esta forma de erotismo e amorosidade tão

1 O livro da professora Gloria Wekker foi publicado em inglês, com partes em holandês e partes
em sranan tongo, língua crioula do Suriname. No inglês, muitas palavras não têm gênero mas-
culino ou feminino. Na tradução para o português usamos o masculino e o feminino quando e
conforme aparecem no livro original. Com a permissão da professora Wekker, nós, tradutores,
decidimos usar o “e” para palavras em que o masculino é naturalizado como “neutro universal”
no português. Por exemplo, “human beings” seria traduzido como “seres humanos” no portu-

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172 Gloria Wekker, Cecilia Lisa Eliceche e Leandro Nerefuh

original e particular do continente, criamos espaço para habitar nossas possi-


bilidades de ser e para nosso imaginário de amor e prazer. Esperamos que esta
tradução parcial abra as portas da curiosidade para que estudioses(as)(os)
afro-brasileires(as)(os) embarquem no projeto de traduzir esse importante
livro na íntegra.

INTRODUÇÃO

“Sortu syen, Meisje, un kon mit´ a wroko dya. A no un´ mek´ en”.
Mis’Juliette
[“O que você quer dizer com vergonha? Garota, nós encontramos o tra-
balho mati quando chegamos aqui. Não fomos nós que o inventamos”].2
O trabalho mati é uma instituição antiga, mencionada pela primeira
vez na literatura colonial holandesa, em 1912. Nela, as mulheres mantêm
relações sexuais com homens e com mulheres, simultânea ou consecutiva-
mente. A prevalência da instituição na população afro-surinamesa aponta
para um repertório cultural de base mais ampla. O trabalho mati é expres-
sivo do repertório de subjetividades sexuais oriundo da África Ocidental,
com o qual pessoas escravizadas engajaram-se sob circunstâncias demo-
gráficas e político-coloniais específicas na ex-colônia holandesa. Dentre as
continuidades africanas, há uma noção de pessoa (personhood) em que o
sexual e o espiritual estão entrelaçados.

guês normativo. Nós traduzimos para “seres humanes”. Para nós, tradutores, o “e” inclui os gê-
neros feminino e masculino, assim como todas as possibilidades entre e além deles. Atendendo
ao pedido dos editores desta publicação, adicionamos o masculino e feminino a/o, além de “e”;
resultando em e/a/o na tradução final. Na América luso-hispano falante, o uso da chamada “lin-
guagem inclusiva” (em suas variantes: “e”, “x”, “i”, “@”...) é cada vez mais frequente e até mesmo
adotado por lei em alguns países, como Argentina (Lei n° 27635). Algumas universidades já acei-
tam teses de doutorado escritas numa linguagem não binária, assim como há editoras que fa-
zem uso desse conceito em suas publicações. Nós, tradutores, acreditamos que as línguas mu-
dam com as sociedades que as usam. Agradecemos e nos alinhamos com as comunidades LGBT
que lutam por inclusão na sociedade civil através da mudança das línguas, postos de trabalho,
cotas nas instituições acadêmicas e culturais. Acreditamos que este glossário de desidentida-
des é parte da mesma luta pela liberdade de viver plenamente. Esperamos que este texto seja
lido não só por mulheres e homens, mas também por pessoas que não se identifiquem com o
binarismo de gênero. Usando o e/a/o queremos reconhecer, honrar e agradecer a todes(as)(os)
(es)(as)(os) leitores(as) por investir nessas palavras.
2 Grifo nosso.

glossario-das-desidentidades-MIOLO.indb 172 13/09/2023 07:13


mati 173

WINTI: UMA RELIGIÃO AFRO-SURINAMESA


E O SELF MÚLTIPLO

Winti é uma religião afro-surinamesa praticada principalmente pela classe


trabalhadora. Poderia ser considerada equivalente ao Candomblé no Brasil,
ao Vodou no Haiti e à Santeria em Cuba.3 Compreender a estrutura epis-
têmica do Winti é crucial porque é o contexto discursivo dentro do qual os
múltiplos significados de gênero e subjetividade sexual da classe trabalha-
dora tomam forma (inclusive mati).
No que diz respeito ao gênero, identifiquei um sistema essencialmente
igualitário e não rígido de gênero inserido nas dobras das práticas religiosas
Winti. Isso é evidente não apenas pelo domínio numérico das mulheres
como praticantes da religião, mas também pelos papéis influentes que
elas assumiram como bonuman (especialistas em rituais). Uma segunda
indicação de igualitarismo é que deusas(es), ancestrais e espíritos são
conceituadas(es)(os) como femininos e masculinos. Na verdade, a mais
poderosa Winti é uma mulher: a força de Mama Aisa, a Deusa superior
da terra, é desejada por muitos na classe trabalhadora, por trazer riqueza,
beleza, fertilidade e prosperidade.
Winti oferece modelos de como agir em situações particulares e expli-
cações sobre o porquê de certos eventos ocorrerem. Sinônimo de Winti é
kulturu/cultura, e essa amplitude é exatamente o que Winti sinaliza: um
modo de viver, um modo de estar no mundo. De modo que, mesmo quando
mulheres e homens da classe trabalhadora não se envolvem ativamente nas
práticas Winti, a visão de mundo deles é compartilhada na maneira como
pensam e falam sobre si mesmes(as)(os), na etiologia que atribuem aos
eventos e ao curso de ação que será necessário em cada situação particular.
Vindo da África Ocidental, das regiões Fante-Akan, Ewe-Fon e Bantu
Ocidental (aproximadamente Gana, Daomé e Congo-Angola), pessoas escra-
vizadas do Suriname carregavam consigo cosmogonias africanas centradas
em um Deus superior, Anana Keduaman Keduampon, que se afastou da
Terra, uma crença em uma alma imortal que reencarna e em um culto

3 É a escolha des tradutores escrever Winti com W maiúscula, Candomblé com C maiúscula, Vo-
dou com V maiúscula e Santeria com S maiúscula. Mesmo que esses termos sejam popularmen-
te identificados como religiões, consideramos que identificam complexos civilizatórios, ciên-
cias milenares, formas ancestrais de habitar o mundo. Em reconhecimento à grandeza dessas
ciências altamente tecnológicas e, em agradecimento ao labor que elas cumprem no balanço da
ordem telúrica e cósmica, escrevemos com maiúscula. Ayibobo!

glossario-das-desidentidades-MIOLO.indb 173 13/09/2023 07:13


174 Gloria Wekker, Cecilia Lisa Eliceche e Leandro Nerefuh

ancestral. Essas características foram mantidas no Winti, que significa lite-


ralmente “vento”. Como o vento, espíritos e ancestrais são invisíveis, mas
podem se mover rapidamente e se apossar de seres humanes(as)(os) e fenô-
menos naturais como árvores e animais.
Anana deixou o governo do mundo para Deusas(es) antropomórfique(cas)
(cos) superiores e inferiores, que se dividem em quatro panteões: os do céu,
os da terra, os da água e os da floresta. Dentro de cada grupo existem, nova-
mente, subdivisões de vários tipos. Por exemplo, no grupo Ingi (indígena),
existem Watra Ingi (indígenas da água), Bus’Ingi (indígenas da floresta) e
Gron Ingi (indígenas da Terra). Várias amigas mati mencionaram existir um
Motyo Ingi (indígenas putas), que são divindades que adoram se divertir,
beber, fazer sexo e ir para cama com diferentes pessoas. As divindades são
conhecidas pelo nome próprio porque, quando tomam posse de alguém,
frequentemente se identificam em sua própria língua. Assim, Majanna,
Ana Maria, Philippina, Theresia deram-se a conhecer como ingi prisiri meid
(garotas indígenas que gostam de prazer).
Seres humanes(as)(os), como filhes(as)(os) de Winti, são outro elo do sis-
tema cosmológico. Entendides(as)(os) como seres em parte biológicos e em
parte espirituais, eles(as) estão totalmente integrades(as)(os) à cosmologia e
ligades(as)(os) às(aos) Deusas(es). O lado biológico des(as)(os) humanes(as)
(os), carne e sangue, é fornecido por progenitores terrenos. O lado espiri-
tual é formado por três componentes: todes(as)(os) seres humanes(as)(os)
têm um kra (uma “alma”), dyodyo (progenitores no mundo dos deuses) e
um yorka (um “fantasma”). Essa última é a entidade que permanece após
a morte de uma pessoa. Juntas, a misi/miss, a parte feminina, e o masra/
mister, a parte masculina do dyodyo e do kra, constituem o kra completo,
cuja sede é a cabeça. Existem vários outros termos para kra, dos quais o
mais usado é yeye. Dyodyo também é mencionado como “gente de apoio”
ou “o povo de cada um”.
A concepção afro-surinamesa de ser está em oposição ao que, apesar
dos insights pós-modernos, ainda é a forma ocidental liberal dominante
de considerar o indivíduo, como algo fixo, essencial, em oposição à socie-
dade. Nas práticas Winti, uma pessoa consiste em diferentes “autoridades”
que não desejam necessariamente as mesmas coisas ou têm os mesmos
desejos. Como teóricos pós-modernos afirmaram nas últimas décadas, a
subjetividade nos contextos ocidentais também é muito mais fragmentada,
maleável e mutável do que se supunha anteriormente. Embora a fragmen-
tação como um conceito-chave pareça sinalizar, na superfície, os mesmos
processos para pessoas ocidentais e afro-surinameses, seria uma grande

glossario-das-desidentidades-MIOLO.indb 174 13/09/2023 07:13


mati 175

distorção igualar essas construções identitárias. Equacionar esses dois


tipos de processos obscureceria mais do que revelaria, em suma, os “prin-
cípios gramaticais” da África Ocidental que sustentam a noção de pessoa
[personhood] afro-surinamesa. Compreender as várias construções do ser
é, como M. Jacqui Alexander e Chandra Mohanty (1997) também argumen-
taram, um empreendimento complicado e sensível ao contexto, que não
pode ser simplesmente invocado pela reivindicação repentina de identi-
dades fluidas ou fraturadas.
A galeria de seres significatives(as)(os) Winti começa a preencher os
contornos de como uma pessoa é concebida neste universo. Na língua suri-
namesa, sranan tongo, há uma infinidade de termos para fazer afirma-
ções sobre o “eu”, apontando para a multiplicidade e maleabilidade do ser.
No Quadro 1, abaixo, tracei os termos mais recorrentes para falar “eu” na
língua sranan tongo.

Quadro 1 – Pronome pessoal “eu”

Mi ik, mi ikke Eu

Mi kra Minha “alma”

Mi yeye Minha “alma”

A misi (f’mi) Aquela senhora (minha, minha parte feminina)

A masra (f’mi) Aquele senhor (meu, minha parte masculina)

Mi misi nanga mi masra Minha senhora e senhor

Mi dyodyo Meus progenitores Divinos

Mi ma dyodyo Minha mãe Divina

Mi pa dyodyo Meu pai Divino

A sma f’mi Aquela pessoa minha

Den sma f’mi Aquelas pessoas minhas

Mi skin Eu, meu corpo


Fonte: elaborado pelos autores.

MATI WROKO

No universo da classe trabalhadora afro-surinamesa, são a atividade sexual


e a realização sexual per se que são significativas; não é o sexo biológico
de(a)(o) parceire(a)(o) sexual que carrega as informações mais importantes.

glossario-das-desidentidades-MIOLO.indb 175 13/09/2023 07:13


176 Gloria Wekker, Cecilia Lisa Eliceche e Leandro Nerefuh

A meu ver, a instituição chamada de mati wroko (trabalho mati), ou a mati


libi (a vida mati), ou a beweygey (o movimento), ou ainda, o que é chamado
pelas mulheres mais velhas de wroko (trabalho das mulheres) e kompe wroko
(trabalho kompe), são manifestações atuais deste princípio histórico que é
expressivo da herança cultural da África Ocidental.
O trabalho mati é feito por mulheres da classe trabalhadora que normal-
mente têm filhes(as)(os) e se envolvem em relações sexuais com homens e
mulheres, consecutiva ou simultaneamente. Essa é uma definição mínima
porque mati, certamente, não é uma identidade unitária; algumas mulheres
têm relacionamentos com homens e mulheres, enquanto outras se envolvem
apenas com mulheres. Essas últimas são indicadas na linguagem mati como
effectieve mati meid (garotas mati verdadeiras).
O trabalho mati é visto por seus praticantes como um comportamento
sexual variado e versátil: nenhum “eu” [self] real, autêntico e fixo é reivindi-
cado, mas há uma instância particular, fortemente masculina e que adora
se deitar com mulheres. Entretanto, o trabalho mati oferece uma configu-
ração alternativa radicalmente diferente da gênese histórica da “identidade
homossexual” sob o capitalismo, ao se conceber em termos de comporta-
mento, prática, trabalho: nenhum “ser” homossexual é reivindicado.
Em consonância com a multiplicidade do “eu”, um repertório sexual
múltiplo foi materializado na classe trabalhadora crioula do Suriname.
Não há estigma significativo associado a partes desse repertório. Jovens
que crescem em bairros da classe trabalhadora crioula são confrontadas
com diferentes escolhas sexuais e, engajar-se em uma variedade delas
(por exemplo, relações do mesmo sexo) geralmente não expõe a jovem à
desaprovação, nem a predispõe a permanecer naquela parte do espectro
sexual para sempre. Assim, vemos mulheres que variam entre, ou estão
simultaneamente ativas, em distintas partes do espectro sexual. As mulheres
expressam suas práticas sexuais entre pessoas do mesmo sexo por meio de
um verbo: m’e mati (estou fazendo o trabalho mati) e não por meio de uma
construção “eu sou” (“eu sou gay” ou “eu sou lésbica”, por exemplo).4
Meu entendimento é que pessoas escravizadas chegaram ao Suriname
com o conceito de mati, referindo-se ao relacionamento especial entre
companheires(as)(os) de bordo nas travessias atlânticas. Esse relaciona-
mento especial adquiriu um significado sexual para homens e mulheres

4 No marco da presente publicação em português, poderia se dizer que a categoria mati refere-se
mais a uma prática (trabalho) de desidentificação sexual do que a uma identidade estável.

glossario-das-desidentidades-MIOLO.indb 176 13/09/2023 07:13


mati 177

crioulos, além de seu significado geral e afetivo de amizade. Em várias


partes da diáspora negra, a relação entre pessoas que vieram para o “Novo
Mundo” no mesmo navio foi e continuou sendo especial. Malungo brasi-
leiro, malongue de Trinidad, batiment haitiano, sippi e mati surinameses
são todos exemplos dessa conexão simbólica especial, não biológica, entre
duas pessoas do mesmo gênero.
Essa relação especial entre companheires(as)(os) de bordo, mati, que
se tornou parte da construção das sociedades do “Novo Mundo”, criando
parentes para as pessoas escravizadas, adquiriu um significado sexual com
o passar do tempo, tanto para mulheres quanto para homens crioulos.
A palavra mati passou a ter um significado geral, sexualmente neutro, mas
afetivamente carregado, de “amigue(a)(o)”; igualmente, passou a fazer refe-
rência a alguém que mantém relações sexuais com pessoas do mesmo sexo
e é atualmente usado tanto para mulheres quanto para homens.
Se meu argumento de que o trabalho mati no Suriname evidencia os
“princípios gramaticais” da África Ocidental no domínio do ser, gênero e
sexualidades for válido, deveríamos então ser capazes de encontrar formas
comparáveis em outros lugares da diáspora negra. Algumas das descobertas
um tanto imprecisas sobre a prevalência do fenômeno de mulheres que
amam mulheres em outras partes do Caribe sugerem que, pode não ser tão
público e institucionalizado como no Suriname, mas que certamente esse
tipo de “trabalho” ocorre.
A biomitografia de Audre Lorde, Zami: a New Spelling of My Name
(1982), situa mulheres que são sexualmente ativas com outras mulheres
em Carriacou e Granada. Antes dela, M. G. Smith (1962a, 1962b) explicou,
de maneira problemática, o mesmo fenômeno com base na ausência de
homens (que estariam no exterior). Em vários estudos sobre o Caribe,
o assunto é mencionado, mas não é tratado em profundidade. Além do
Suriname, os Herskovits observaram o fenômeno de mulheres se envol-
vendo sexualmente com outras mulheres no Haiti (1937) e em Trinidad
(1947). O termo usado em Trinidad também é zami. Curaçao conhece as
relações kambrada entre mulheres. (CLEMENCIA, 1995; MARKS, 1976)
Rubenstein (1987) afirma que, em São Vicente, o bulling (homossexuali-
dade masculina) e o zammie (lesbianismo) são rejeitados. Vera Rubin (1976)
mencionou a sexualidade feminina do mesmo sexo em St. Martin, Saba e
Anguilla; enquanto Kerr (1952) trouxe a Jamaica para esse panorama.
Mais recentemente, há a bela descrição que Makeda Silveira (1992)
faz das lembranças de sua mãe e de sua avó sobre o man royals e sodo-
mitas na classe trabalhadora jamaicana. Elwin (1997) coletou entrevistas

glossario-das-desidentidades-MIOLO.indb 177 13/09/2023 07:13


178 Gloria Wekker, Cecilia Lisa Eliceche e Leandro Nerefuh

com mulheres que amam mulheres de várias partes do Caribe, St. Kitts,
Dominica, St. Lucia e Jamaica. Dados históricos afro-norte-americanos
sobre o fenômeno das mulheres que amam mulheres podem ser extraídos
do blues e da poesia e, hoje em dia, cada vez mais, de livros de ficção e tra-
balhos acadêmicos. Assim, pode-se dizer que o termo mati, e muitos outros
semelhantes, possuem reverberações amplas na diáspora africana em todo
o continente americano, de sul a norte.

REFERÊNCIAS
ALEXANDER, M. J.; MOHANTY, C. T. (ed.). Feminist Genealogies, Colonial
Legacies, Democratic Futures. New York: Routledge, 1997.

CLEMENCIA, J. Women Who Love Women. A Whole Perspective from Kapuchera


to Open Throats. In: CARIBBEAN STUDIES ASSOCIATION CONFERENCE, 1995,
Curaçao. Proceedings […]. Curaçao: [s. n.], 1995. p. 23-26.

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Beyond. American Ethnologist, Washington, D. C., v. 22, n. 4, p. 848-867, 1986.

HERSKOVITS, M. Life in a Haitian Valley. New York: Knopf, 1937.

KERR, M. Personality and Conflict in Jamaica. Liverpool: University Press, 1952.

LORDE, A. Zami: a new spelling of my name. Trumansburg: Crossing, 1982.

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KITLV, 1976. n. 77.

RUBENSTEIN, H. Coping with Poverty: adaptive strategies in a caribbean village.


Boulder and London: Westview, 1987.

RUBIN, L. Worlds of Pain: life in the working-class family. New York: Basic, 1976.

SILVEIRA, M. Man Royals and Sodomites: Some Thoughts on the Invisibility of


Afro-Caribbean Lesbians. Feminist Studies, College Park, v. 18, n. 3, p. 521-532,
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SMITH, M. G. Kinship and Community in Carriacou. New Haven: Yale University


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SMITH, M. G. West Indian Family Structure. Seattle. Washington, D.C.: University


of Washington, 1962b.

WEKKER, G. Politics of Passion: women’s sexual culture in the Afro-Surinamese


Diaspora. New York: Columbia University Press, 2006.

glossario-das-desidentidades-MIOLO.indb 178 13/09/2023 07:13


179

MAVAMBIXA

Igor Leonardo de Santana Torres


Raphael Cardoso Brito

Não nos engajaremos aqui na tarefa de encontrar uma origem possível,


uma sociogênese, da expressão mavambixa. Nosso empenho é o de ilus-
trar alguns de seus sentidos. Como uma palavra disseminada entre grupos
que escapam ao acrônimo LGBT, trata-se de um termo desconhecido por
muitas pessoas, o que, por sua vez, não impede nosso movimento interpre-
tativo. De modo a tentar compreender como pessoas que se definem por
mavambixa dão sentidos a este termo, como o apreendem e quais signifi-
cados impõem a ele, analisamos algumas publicações numa plataforma
digital (rede social) e estabelecemos diálogo com quatro interlocutoras1
sobre o assunto.2 Três delas compartilham, ou compartilharam, dessa defi-
nição em algum momento.
Enquanto categoria de (des)identificação, mavambixa tem sua circu-
lação mais fortemente marcada nos espaços da periferia de Salvador, sendo

1 Adotamos o substantivo “pessoa” como termo neutro para nos referir a um grupo, deixando
incluída a menção a toda e qualquer expressão de gênero, sem a distinção binária masculino/
feminino. Por isso adotamos a forma feminina para nos referir a nossas “interlocutoras”.
2 Todas as nossas interlocutoras são pessoas negras de camadas populares. Três são estudantes
universitárias, uma trabalha como vendedora e a outra também como artista independente.
Suas idades variam entre 20 e 28 anos. Os seus nomes são fictícios neste texto.

glossario-das-desidentidades-MIOLO.indb 179 13/09/2023 07:13


180 Igor Leonardo de Santana Torres e Raphael Cardoso Brito

comumente usada por homens gays negros. Esse verbete não pode ser
entendido fora do quadro léxico-social do pajubá, uma vez que se con-
forma a partir de um termo muito específico desse conjunto linguístico.
Mantendo uma profunda relação com vocábulos oriundos das religiões
afro-brasileiras e sendo constituído inicialmente como elemento caracte-
rístico da sociabilidade entre travestis e mulheres trans, o pajubá/bajubá
pode ser compreendido como um conjunto linguístico de pessoas LGBT
no Brasil. (LIMA, 2016)
Mavambixa forma-se a partir da combinação de dois termos: mavambo
e bixa. O primeiro, mavambo, no Candomblé Congo-Angola, designa a
divindade que rege os caminhos, o mensageiro responsável pela comuni-
cação, comumente associado a Èṣù no Candomblé Ketu. (MOTTA, 2013)
Na sua reapropriação pelo pajubá/bajubá, significa “marginal, ladrão,
meliante”. Existe, ainda, uma relação do mavambo com outro termo:
cafuçu,3 mais uma categoria que reforça e ganha sentido mediante as asso-
ciações entre masculinidade e periculosidade (ver também os verbetes nesta
coletânea). O segundo, bixa, faz uma torção da palavra “bicha” por meio do
seu sufixo, grafando-o de forma distinta, ao trocar o “ch” pelo “x” para pro-
duzir uma rasura e um deslocamento ao mesmo tempo estilístico e iden-
titário. Nesse sentido, a troca das letras reflete ainda uma marcação social
que muito comumente se observa no uso de expressões como “bixa preta”,
“bixa estranha”. O “x” é utilizado também como alternativa à normativi-
dade linguística, além de funcionar como um marcador de diferenciação
social, geográfico e racial das pessoas LGBT das periferias. Mavambo,
por sua vez, se estabelece como significante atrelado a uma estética peri-
férica hipermasculinizada, representação dos entrelaçamentos e das ten-
sões entre prazer e perigo.
Há ao menos duas aplicações bem definidas para o termo mavambixa.
Seu uso denota uma ambiguidade semântica. De um lado, há quem posi-
cione mavambixa como um movimento de reprodução da masculinidade
hegemônica e, de outro, quem a interprete como uma reabordagem femi-
nina da masculinidade periférica. Em conversa com Breno, que se autoa-
firma como mavambixa, ao interpelá-lo com interesse em entender melhor
essa categoria, a resposta dada sobre o significado do termo foi muito direta:
“um cara que não é másculo demais, p[a]ra não parecer tão hétero, mas

3 Enquanto mavambo nomeia o marginal, cafuçu descreve alguém desqualificado, sem forma-
ção, grosseiro, mas também aquela pessoa que “se parece ou se veste como bandido”.

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mavambixa 181

também não é afeminado demais, p[a]ra não parecer tão homossexual”.


(Breno, 23/5/2021) A conceituação não parte tão somente de uma abstração
sobre a idealidade da identidade, mas da forma como a pessoa mesma
se coloca no mundo e se expressa pelo significante. Isso ficará mais evi-
dente diante da profusão de sentidos que observamos em relação ao termo.
Da mesma maneira, Vagner argumenta que a expressão diz “sobre as bixas
que adotam um estilo misto de mavambo (másculo, cara de bravo, blusa de
time, óculos espelhados Juliete) e um lado mais feminino (shortinho curto,
unha pintada, um tranção)”.4 (Vagner, 16/6/202, grifo nosso)
Ícaro pensa um pouco diferente e não atribui a categoria “somente à
performatividade (porque senão chamava apenas de bicha, viado), mas à
estética atribuída ao mavambo e que, por si só, é associada a caras héteros”.
(Ícaro, 16/6/2021, grifo nosso) Sobre a maneira pela qual classificaria um gay
mavambo que não performe feminilidade, ela acrescenta: “eu identifico
como mavambixa, mas se for discreto, a princípio, pode enganar a boneca5
pela aparência... de todo modo, se eu souber que é gay, é mavambicha”.6
(Ícaro, 16/6/2021, grifo nosso)
Nesse caso, há uma predominância da estética para a atribuição da
­(des)identidade mavambixa. De acordo com Ícaro, seja a pessoa discreta
ou não, é mavambixa, uma vez que a categoria não estaria ancorada dire-
tamente à feminilidade, mas sobretudo ao componente mavambo que as
bichas passam a adotar e transformar em seus usos, incorporando a essa
estética a feminilidade como uma possibilidade de expressão. Desse modo,
ser feminino não seria um requisito para ser mavambixa, mas sim ser gay
e adotar uma aparência mavambo. Em outras palavras, a feminilidade
compõe a figura mavambixa; esta, no entanto, não se resume a ela.
A estética (entendida aqui enquanto roupas e acessórios) e a expressão
de gênero dialogam na representação do que vem a ser mavambixa, mas
sem perder de vista o que Breno vai nomear como oscilação, a relação de
trânsito entre expressões performativas de gênero que vão do masculino

4 Tranças longas geralmente obtidas com o uso de extensões capilares, como as chamadas fibras
ou box braids.
5 “Enganar a boneca” significa ser engambelada. Expressão comum entre a população LGBT.
O termo “boneca” historicamente vem sendo utilizado como uma forma de se referir a mulhe-
res trans e travestis.
6 Ainda que o uso corrente grafe a expressão com “x”, esta interlocutora a trouxe com “ch”, tra-
tando-se mais de uma questão linguística pontual. Como será possível acompanhar, o sentido
estará consoante aos argumentos do texto.

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182 Igor Leonardo de Santana Torres e Raphael Cardoso Brito

(mavambo) ao feminino (poc).7 Aqui vê-se mais concretamente a ambi-


guidade que os usos da categoria expressa. Nesse sentido, Breno reforça
que “sim, tem relação estética, comportamental também. É uma oscilação.
Se eu me sentir extremamente confortável, eu posso ser totalmente poc, ou
não. Eu acredito que oscilo muito entre poc e mavambo”. (Breno, 23/5/2021,
grifo nosso) Compreende-se que estas são sensibilidades, aspectos que
coexistem no mesmo corpo em diferentes intensidades. Isso vai variar
segundo a pessoa e o contexto. A mavambixa é uma produção contextuali-
zada, que a depender do momento, segundo a fala dessa interlocutora, vai
se expressar mais feminina ou mais mavambo. Esse movimento leva-nos
a pensar na existência de intencionalidade ou de um sujeito por trás dessa
ação, agente da relação entre masculinidade e feminilidade. (COLLING,
ARRUDA, NONATO, 2019) Estamos diante, portanto, de uma performance
de gênero8 agenciada, produzida e negociada no cotidiano.
Há ainda uma relação de poder que desemboca na deslegitimação de
quem cobra para si essa ambiguidade entre o mavambo e a bixa e que revela
similaridades com o discurso da bifobia.9 Se o termo não goza de ampla
circulação e conhecimento entre a comunidade LGBT, “quando usam é
julgando a personalidade das pessoas”. (Breno, 23/5/2021) Se as pessoas bis-
sexuais (ver também “Gilete” nesta coletânea) são questionadas pela ambi-
guidade do seu desejo, Breno (23/5/2021) sente da mesma forma a pressão do
discurso binário segundo o qual uma pessoa só pode ser “ou afeminado ou
másculo, os dois não rola”. Junto a esse discurso vem, outrossim, uma leitura
sobre a prática sexual que vai depender da maior ou menor variação entre
feminilidade e masculinidade, podendo ser a mavambixa categorizada
como passivo, mas almejado enquanto ativo. No caso de Vagner (16/6/2021),

7 Termo êmico também utilizado por algumas pessoas para fazer referência a bichas jovens, afe-
minadas e/ou pobres. Já foi usado como sinônimo de “pão-com-ovo”, embora haja divergên-
cias sobre se as expressões possuem equivalência. Se outrora teve uma conotação pejorativa,
hoje passou por uma ressignificação, sendo utilizada como identificação por muitas pessoas da
comunidade LGBT, sobretudo as mais jovens, como um marcador não da sexualidade, mas de
uma expressão de gênero feminina (a afeminação).
8 Em acordo com Colling, Arruda e Nonato (2019), empregamos o termo “performance” para
assinalar a ideia de que há uma agentividade, intencionalidade, na produção da identidade
­mavambixa. Compreendemos esta como uma performance de gênero na medida em que as
relações entre feminilidade e masculinidade suscitadas por essa identificação inserem-se no
âmbito da expressão do gênero.
9 Preconceito em relação a pessoas bissexuais que se manifesta geralmente em discursos que as
colocam como promíscuas, indecisas, ou mesmo tendem a apagar o desejo por mais de um gê-
nero pelo insistente reforço à dicotomia hétero-homossexual.

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mavambixa 183

ele também assinala a tendência a alguém definir sua posição sexual pela
aparência: “o que mais ocorria nos meus tempos de ouro era da maioria achar
que eu era somente passiva por eu usar mais roupas ditas femininas, chama-
tivas e ser mais soltinha nas festas sem medo de dançar nas rodinhas. Além
da estética, o comportamento também é julgado”.
Alguns discursos deixam implícito que, na ambivalência, o dado imagé-
tico que predomina é o do mavambo. Como ele evoca toda uma aparência
máscula, heterossexual, torna-se comum pressupor uma predominância
dessa sensibilidade sobre a da bixa. Marcos (16/6/2021) diz: “não reco-
nheço essa categoria [mavambixa], nunca tinha ouvido falar. Mas acho que
usaria pra designar um gay/viado heteronormativo, sem analogia direta
com posição sexual”. O ponto de vista sobre uma categoria da qual des-
conhece as nuances, reverbera como a antítese de uma posição menos
normalizada:10 uma expressão que reforça os estereótipos de gênero e per-
formance sexual e, em alguns casos, entendida como uma adição de com-
ponentes, entre os quais se sobressaem os aspectos tidos como negativos
– mavambo + heterossexualidade compulsória. Estes seriam expressivos
o suficiente para ignorar a sexualidade dissidente como uma clivagem que
opere alguma diferença.11
Para outras pessoas, no entanto, mavambixa representa também uma
ação política “que é muito mais sobre ressignificar a estética e reafirmar sobre
a comunidade e cultura de vestimenta do local de que vieram e onde vivem”.
(Vagner, 16/6/2021) O uso do radical “mavambo” amalgamado com “bixa”
na criação dessa categoria de identificação exprime um deslocamento/
desapropriação do primeiro termo e, ipso facto, da heterossexualidade e
virilidade como domínio da estética periférica, dos signos que comumente
correm para a associação entre mavambo, heterossexualidade, virilidade

10 Ao atribuir à mavambixa uma noção de heteronormatividade, mais especificamente uma ima-


gem de sujeito heteronormativo, Marcos não só mostra um equívoco comum no uso do conceito
de heteronormatividade – do qual subentende-se um conjunto de discursos e relações de poder
pautadas na defesa de um modo de vida heterossexual entre pessoas de gênero e sexualidades
dissidentes da heterossexualidade, e não uma estética ou comportamento – como, também,
ao invocar a ideia de “gay/viado heteronormativo”, cria uma divisão entre o heteronormativo
(­mavambixa) e o não heteronormativo (essa identidade menos normalizada, em ruptura com
os temperamentos e comportamentos “comuns” ao masculino ou feminino).
11 O comentário de Marcos, junto com outras manifestações textuais observadas em campo, as-
sinala que os componentes imperativos da identidade mavambixa seriam os comportamentos
combinados das identidades mavambo com uma reprodução da heterossexualidade compulsó-
ria. Segundo essa abordagem, mavambixa seria mais uma identidade pouco produtiva ou dis-
ruptiva em relação aos valores heterossexistas.

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184 Igor Leonardo de Santana Torres e Raphael Cardoso Brito

e performance masculina. “Mavambixa” então sugere a mimetização da


masculinidade periférica em corpos bixas, assim como a feminilização
dos signos que compõem essa representação de uma masculinidade gue-
tizada, favelada.
É possível identificar ainda uma concepção que aponta para formas
de pertencimento racial e de classe na construção da estética mavambixa,
como expresso por uma de nossas interlocutoras:

Eu acho que o recorte do mavambixa é muito mais puxado para as


bixas pretas que estão inseridas nesse contexto da favela mesmo,
paredão, que arrumam uma forma de se afirmar dentro da estética
da comunidade. Vai mais além do que somente esse ponto de misturar
feminino e masculino. É algo local das periferias mesmo. E por isso eu
me considero mavambixa, por ser bixa preta, periférica e livre este-
ticamente em questões de gênero. (Vagner, 16/6/2021, grifo nosso)

A circulação e compreensão de mavambixa, como colocado em sua


relação com o pajubá, depende de um conhecimento mínimo desse léxico.
Ao contrário de categorias como “gay”, “bicha” e “viado”, estamos lidando
com um signo que possui presença racial e de classe mais marcantes, que
se desenvolve e ganha sentido no espaço de sociabilidade de corpos negros
e de baixa renda das periferias do Brasil, sobretudo em Salvador – nosso
campo de pesquisa. Assim, Ícaro endossa que essa identificação denota “um
empoderamento na estética do gueto, até pelas divas pop, que sempre foram
referência de moda pra muitas bichas e que fortalece[m] essa mudança esté-
tica das ditas mavambichas”.12 (Ícaro, 16/6/2021)
Vê-se que essa identificação aparece também como um estilo, um código
de vestuário, indicado por alguém como um de seus “muitos modos de se
vestir”, e sendo posicionada ao lado de outra expressão que denota uma
feminilidade (poc). No entanto, outras interpretações concorrem com essas.
Vagner e outras pessoas, por exemplo, evidenciam que ser mavambixa não
significa uma estética tão somente, mas a incorporação de um ethos.13 Essa
outra nuance interpretativa disposta por elas indica que não seria apenas
sobre parecer, apresentar os signos, mas estar inserido na cultura LGBT e
na cultura pop. Aqui, em tese, a ação de reconhecimento não se limitaria a
componentes estéticos, mas também de pertencimento cultural.

12 Ver nota de rodapé acima sobre a questão do uso do “x” ou “ch”.


13 Conjunto de costumes, valores e crenças de um determinado grupo humano.

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mavambixa 185

De outra forma, mavambixa pode ser vista como a incorporação de


uma “postura de bandido”. Ela se relaciona com mavambo na medida
em que recupera o universo simbólico do crime, a estética periférica do
jovem hétero da favela, para definir um gênero que condensa esse universo
e estética e os dobra14 em sua incorporação. Nessa postura de “bandido
mavambo” existe uma bixa. Ela é a manifestação da ambiguidade e coe-
xistência de expressões contrárias de performatividades de gênero: “passar
de macho”, reproduzir uma normatividade masculina, ou melhor, encenar,
mas de certa forma não esconder, posto que os atributos femininos seriam
uma espécie de denúncia que desmontaria a incorporação cênica do macho.
Noutros discursos, observamos a transmissão da ideia de uma tentativa
de reprodução de masculinidade “padrão” que não seria completa, por isso
uma farsa. Mavambixa seria alguém que se mostraria mavambo, mas na
dinâmica sexual, fugiria ao real script de uma persona mavambo, uma vez
que na cama se mostraria contrária a ser o “ativo”. O temperamento “mar-
rento”, tal qual aventado numa publicação, não combinaria com o “miado”
na cama, a representação simbólica de uma posição passiva. O gemido,
então, considerado algo do feminino, provaria essa farsa, essa falha. O tom
jocoso subsidia o discurso de deslegitimação da mavambixa, como se a
(des)identidade em si fosse motivo de piada.
Parece-nos que, se a tomarmos comparativamente, podemos considerar
que mavambixa, enquanto uma categoria guetizada, guardaria proximi-
dades com a (des)identidade travesti, pelo contexto de acontecimento e as
relações de poder (FOUCAULT, 2017) que a constituem (raça e classe, sobre-
tudo) e por uma expressão de gênero ou aplicação de técnicas corporais de
ordem semelhante. Reforçando a pertinência das posições dos sujeitos na
criação de perspectivas estéticas sobre si (FOUCAULT, 2010a, 2010b), uma
vez que reflete uma reorganização de atributos, sensibilidades, de domí-
nios aparentemente antagônicos para o questionamento de antigos quanto
para a produção de novos quadros de inteligibilidade.15
Destacamos, por fim, a potência da identidade mavambixa para o
debate em torno da agência (ORTNER, 2017a, 2017b) e da performatividade

14 O conceito de “dobra” está sendo empregado nos marcos do pensamento deleuziano. No senti-
do de as pessoas atuarem sobre eles e ressignificá-los, produzindo subjetividades.
15 Esses são insights oferecidos pela discussão que apresentamos aqui, mas que, reconhecemos,
precisam ser melhor aprofundados. Infelizmente, o espaço não nos permite um esquadrinha-
mento dessas questões, mas gostaríamos de lançar mão desta observação para amadurecê-la e
desenvolvê-la de forma mais pormenorizada em pesquisas futuras.

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186 Igor Leonardo de Santana Torres e Raphael Cardoso Brito

e performance de gênero. (BUTLER, 2008; COLLING; ARRUDA; NONATO,


2019) Acreditamos que o movimento de construção de corpos e comporta-
mentos por parte daquelas que se designam como mavambixas pode ser
útil para pensar o caráter ficcional do gênero, entendido como algo que,
se por um lado, é produzido por forças e sentidos sociais que extrapolam
a esfera do indivíduo, também é fabricado e negociado cotidianamente
pelos sujeitos. Produção de desejo e sentimentos de pertencimento são
alguns dos motes por meio dos quais as mavambixas se engajam na cons-
trução de uma estética, expressão e imagem particulares e que, ao lan-
çarem mão de elementos das experiências mavambo e bixa, masculino
e feminino, mesclando-os e tornando seus limites porosos, desembocam
em uma ­(des)identidade.

REFERÊNCIAS
BUTLER, J. Problemas de gênero: feminismo e subversão de identidade. 2. ed. Rio
de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008.

COLLING, L.; ARRUDA, M. S.; NONATO, M. N. Perfechatividades de gênero: a


contribuição das fechativas e afeminadas à teoria da performatividade de gênero.
Cadernos Pagu, Campinas, n. 57, p. 1-34, 2019. Disponível em: https://www.
scielo.br/j/cpa/a/nnMNWqQW7tjNCP9Kn9tgYJf/abstract/?lang=pt#. Acesso em:
12 jul. 2021.

FOUCAULT, M. A ética do cuidado de si como prática da liberdade. In: MOTTA,


M. B. (org.). Ética, sexualidade, política. 2. ed. Rio de Janeiro: Universitária,
2010a. p. 264-287.

FOUCAULT, M. Uma estética da existência. In: MOTTA, M. B. (org.). Ética,


sexualidade, política. 2. ed. Rio de Janeiro: Universitária, 2010b. p. 288-293.

FOUCAULT, M. Microfísica do poder. 6. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2017.

LIMA, C. H. L. Linguagens pajubeyras: re(ex)sistência cultural e subversão da


heteronormatividade. 2016. Tese (Doutorado em Cultura e Sociedade) – Instituto
de Humanidades, Artes e Ciências Professor Milton Santos, Universidade Federal
da Bahia, Salvador, 2016.

MOTTA, C. M. Kubana njila diá Angola, travessias do ator-sacrário por entre as


divindades angolanas. 2013. Dissertação (Mestrado em Artes Cênicas) – Escola de
Comunicação e Artes, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2013.

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mavambixa 187

ORTNER, S. Poder e projeto: reflexões sobre agência. In: GROSSI, M. P.; ECKERT,
C.; FRY, P. H. (org.). Conferências e diálogos: saberes e práticas antropológicas.
Blumenau: Nova Letra, 2007a. p. 45-80.

ORTNER, S. Uma atualização da teoria da prática. In: GROSSI, M. P.; ECKERT, C.;
FRY, P. H. (org.). Conferências e diálogos: saberes e práticas antropológicas.
Blumenau: Nova Letra, 2007b. p. 19-44.

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189

MAVAMBO

Lucas Moreira

No decurso de extenso trabalho de campo realizado em praças públicas de


musculação na Orla Atlântica de Salvador, Bahia, noto que os “malhados”,1
ao exibirem publicamente seus corpos “magros” ou “definidos”, isto é, mus-
culosos, mas não excessivamente trabalhados, são observados e cortejados
por um público gay. Essa audiência – composta por bichas, coroas (sugar
daddies) e bofes turistas ou locais – expressa categoricamente o desejo
pelos corpos dos malhados e pela performance masculina. Eles rondam
os malhados pelas beiradas das praças, na praia ou do outro lado da rua,
pontos comuns de “pegação”2 nesse trecho da cidade. O desejo e a exci-
tação em resposta aos corpos e performances dos rapazes são verbalmente
expressos. Adjetivos como “gostosos” e “machos” destacam-se nas ten-
tativas de descrevê-los. No entanto, um conceito específico é articulado
para defini-los: trata-se, segundo aprendi junto aos meus companheiros
no campo, da (des)identidade “mavambo”.
Nesse contexto, mavambo evidencia um estereótipo empregado para
definir perfis estéticos, comportamentais e corporais de homens jovens das
classes populares e destacar neles um conteúdo sexual e erótico. O termo, de

1 Modo pelo qual se autoidentificam os jovens fisiculturistas amadores da praça.


2 Espaços públicos onde, sobretudo nos fins de tarde e noite, concentra-se uma sociabilidade gay
marcada por encontros de paquera e práticas sexuais.

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190 Lucas Moreira

uso assíduo nos ambientes da socialidade gay neste trecho da Orla Atlântica
soteropolitana, aparece em frases como “adoro esses mavambos assim, com
cara de pivete violento!” ou “olha a ginga perigosa desse mavambo!”, frases
proferidas durante conversas informais que tive junto aos admiradores cos-
tumazes destes rapazes.
No léxico do “pajubá”, forma linguística corrente no universo das tra-
vestis brasileiras (BENEDETTI, 2005; PELÚCIO, 2009), – também conhe-
cida como “bajupá” ou ainda, como “bate-bate” em algumas regiões do
país3 – há reservado um lugar ao termo mavambo, sinônimo de “marginal”,
“bofe com pinta de ladrão” e “traficante”, junto a outros sentidos classifica-
tórios similares. Para além dessa relação lexical de origem no quimbundu,
Mavambo, Exu-Mavambo e Jiramavambo correspondem a entidades do
Candomblé de origem angola, no qual representam “o barro”, “o caminho”,
sendo sua imagem “um bordão terminado em duas faces opostas e juntas
que representam o bem e o mal respectivamente”. (CASTRO, 2001, p. 261)
A categoria mavambo transita entre diversos contextos sociais, gêneros
narrativos e suportes midiáticos, como na pornografia e na literatura eró-
tica LGBT, e, embora exalte formas e valores da macheza tradicional, encon-
tra-se, simultaneamente, numa interface com identidades performadas,
por vezes, nos limites das normas sexuais e de gênero – residiria nesse fato
ao mesmo tempo sua potência e sua contradição. Desse modo, o termo
mavambo ocupa um espaço no imaginário popular, sobretudo quando o
termo serve para classificar sujeitos a partir de sua idade, estética, perfor-
mance de gênero, raça e classe social.
Na sua acepção mais contemporânea, mavambo tem assumido um
caráter de identidade autointitulada, construída em torno de símbolos das
classes sociais populares e da negritude, copiosamente difundidos nas redes
sociais. A asserção é que a identificação do jovem com o termo apresenta a
construção de uma identidade baseada na transformação e apropriação de
valores estéticos e corporais tidos como abjetos, estigmatizados ou amea-
çadores, que são agenciados pelos sujeitos como capital corporal na pro-
dução de distinção social. (BOURDIEU, 2011)
A expressão mavambo refere-se à performance estética do rapaz jovem,
geralmente negro, identificado como portador de um capital de formas cor-
porais e posturas associadas à juventude periférica. Nesse sentido a classe

3 Entre os itens lexicais que conformam o pajubá encontram-se combinados dentro do português
termos principalmente do iorubá, embora relações semânticas sejam tecidas com outras lín-
guas da afro-diáspora.

glossario-das-desidentidades-MIOLO.indb 190 13/09/2023 07:13


mavambo 191

social aparece inscrita no corpo mavambo e torna-se explícita em palavras,


gestos e artimanhas que se inscrevem, por assim dizer, nos detalhes do jeito,
da postura e nos maneirismos corporais e verbais. Os sentidos corpóreos dos
mavambos, segundo a percepção corrente, seriam visíveis nos seus movi-
mentos, na sua conduta, no seu jeito imponente, sexual e agressivo, assim
como em outras qualidades impressas no corpo através de roupas e acessó-
rios. Como narra um experiente interlocutor,4 em tom libidinal, “mavambo
é o tesão! Estilo sexy de parecer traficante ou bandidinho”.
O estereótipo social do mavambo carece de representações em etno-
grafias, contudo, é representado abundantemente em sites de literatura
homoerótica em língua portuguesa.5 Neles, são reservadas seções inteiras
aos mavambos. Nas histórias dessas seções, jovens garotos de periferias bra-
sileiras, junto a trabalhadores braçais, essa última (des)identidade também
conhecida como cafuçu,6 encenam uma trama sexual na qual, notada-
mente, a idade, a cor da pele e a classe social são os principais atrativos da
narrativa libidinosa. Os contos detalham a condição plenamente erótica
desses aspectos ao definirem o mavambo como “um macho parido pela
favela”, que porta “músculos no estado de transição entre o menino e o
macho”, incluindo “desde os motoboys até os coroas que trabalhavam na
feira [...] suando e ofegando pelo esforço”. (MARTINS, 2018)
Conjuntos de palavras, como as que elenco a seguir, retiradas de sites
pornográficos7 nos quais o mavambo é também tematizado, podem ratificar
o sentido do termo no imaginário sexual supracitado: “muleque da favela”,
“pivete”, “zé droguinha”, “favelado”, “malandro”, “envolvido”, “marginal”,
“pedreiro” e “entregador de gás”. No plano das relações simbólicas da sexua-
lidade, o mavambo pressupõe uma corporalidade erótica, “safada”, “des-
carada”, mas também subversiva e “fora da lei” como aquela do jovem que
trabalha no mercado ilícito. Simultaneamente, ela pressupõe o porte físico
do trabalhador que foi fabricado no processo laboral.

4 Com o objetivo de proteger a identidade dos interlocutores, que gentilmente cederam entrevistas
para a construção deste verbete, substitui seus nomes, quando aparecem, por nomes fictícios.
5 Ver em: https://www.casadoscontos.com.br/tema/mavambo.
6 Nessa literatura homoerótica, assim como nos filmes pornográficos, o termo cafuçu geralmen-
te é usado como sinônimo de mavambo, embora eles se diferenciem nestas mesmas represen-
tações. Sendo o aspecto geracional a principal entre as diferenças; o cafuçu tende a ser repre-
sentado como um homem mais maduro, e o mavambo como um jovem rapaz.
7 Ver em: https://www.xvideos.com/amateur-channels/mavamboys. Conteúdo não permitido
para menores de 18 anos.

glossario-das-desidentidades-MIOLO.indb 191 13/09/2023 07:13


192 Lucas Moreira

São esses os aspectos antropológicos que situam os mavambos em um


campo de representações do corpo masculino nas classes populares e sobre
os quais escrevem os contistas e encenam os filmes pornográficos. O jeito
“rude” e “viril” do corpo identificado como periférico, do corpo que corre
risco e que pode demonstrar poder pela violência, ganha o status de sen-
sualidade e erotismo. Para usar as palavras de Marcus, administrador de
uma página do Instagram voltada à divulgação de fotos de mavambos na
Bahia, o “boy mavambo tem ginga, agressividade e sensualidade [...] uma
sensualidade própria no olhar ou em outras expressões corporais”. Este
“criador de conteúdo”, como se autodefine, aponta para o fato de traços
como “cara de malandro”, “jeito de corpo”, “jeito de se portar”, “masculi-
nidade aparente” e “autoconfiança” serem aqueles que “desperta nas gay
[sic]” o desejo sexual. Essa sensualidade masculina, apesar de não ser a
mais hegemônica na cena LGBT, traz ao centro do desejo sexual o corpo do
homem das periferias brasileiras.
Hábeis em embaralhar e deslocar de lugar paradigmas de identificação,
tão aparentemente estáveis, variadas definições se entrecruzam na figu-
ração identitária dos mavambos. É uníssono entre os interlocutores que
a sexualidade não demarca necessariamente um mavambo. Antes, são a
fluidez e a indeterminação as constituidoras de tal (des)identidade e suas
performances. Há “mavamboys” (masculinos) e “mavambichas” (afemi-
nadas), assim como há também as “mavambas”, designação feminina do
termo. Impera, no entanto, nas narrativas produzidas nas cenas homoeró-
ticas da pornografia brasileira, um imaginário da performance viril do rapaz
aparentemente heterossexual, ou de um homem que, embora se declare
heterossexual, desenvolve, no plano da sexualidade, relações com gays, tra-
vestis e transexuais, sexualidades consideradas “dissidentes”. Do ponto de
vista da identidade de gênero, destaca-se nesses homens a masculinidade
própria do macho enquanto seu principal capital.
O dom da sensualidade e a suposta destreza viril dos mavambos
encontra lugar nas narrativas do sexo no Brasil. Nelas o sujeito periférico
ocupa a centralidade, ainda que por vezes, sua aparição como objeto de
desejo tenda a reduzi-lo à hipersexualização do corpo do trabalhador urbano
e do negro. No entanto, como é próprio das categorias sexuais, a denomi-
nação mavambo ganha renovados significados e se inscreve em diferentes
cenários nos quais pode ser compreendido também como positividade e
identidade autoafirmativa.
Douglas e Marlon, jovens negros, moradores dos bairros da Liberdade e
da Boca do Rio, em Salvador, de 19 e 20 anos respectivamente, sugerem que

glossario-das-desidentidades-MIOLO.indb 192 13/09/2023 07:13


mavambo 193

mavambo é o “novo estilo do gueto”, o “estilo do menino envolvido”, popu-


larizado nos bairros periféricos de Salvador, que, passando a “ser cotado”,
“virou status”. Segundo Marlon, como consequência desse novo status
“agora até viado quer ser mavambo!”. Na composição desse estilo, a forma
do corpo “magro”, “definido”, “traçado”, “trincado” – designações corre-
latas – assume lugar fundamental. Conforme informa Douglas, isto produz
uma inflexão nos “padrões de beleza” porque o “magrinho”, que antes era
subestimado nos estereótipos sexuais, agora “virou fetiche”. À maneira que
aprendi com Douglas e Marlon, o mavambo ostenta no corpo o seu valor e
demarca seu prestígio, no campo da sexualidade e fora dele também, por
meio de signos estéticos e acessórios da moda.
Disseram-me que o cabelo muito curto ou marcado à navalha, com dese-
nhos ornamentais ou pintado de loiro (descolorido com água oxigenada)
promove o charme. O short abaixo do joelho é tactel, das marcas Nike e
Cyclone, segundo Marlon, antes consideradas “marcas de ladrão”, hoje são
“moda do gueto” e demarcam igualmente uma proposta estética afirma-
tiva. O boné de aba flexionada e os chinelos das marcas Kenner e Nike são
igualmente destacados na estética, além de tatuagens e anéis, colares e pin-
gentes, assim como óculos juliet, nome dado às lupas esportivas espelhadas.
É preponderantemente nas redes sociais Facebook,8 Instagram9 e
Twitter10 que o termo mavambo circula com maior frequência, tendo um
público fiel de admiradores e de jovens autoidentificados com um “movi-
mento” que, como sugere Douglas, fundamenta-se na “visibilidade da
beleza das pessoas periféricas na internet”. A sensualidade, o jeito de corpo,
a forma do corpo e o estilo se congregam no exibicionismo cotidiano e na
“ostentação da beleza” por meio de selfies e ensaios fotográficos. O que pre-
valece na composição da imagem é a exposição do corpo, do rosto, da bar-
riga, das pernas, da bunda e do pênis, o qual, embora nem sempre apareça
explicitamente, é frequentemente destacado em sungas, bermudas espor-
tivas e cuecas molhadas ou atrás de toalhas em fotos no espelho.

8 Ver em: https://www.facebook.com/Só-mavambos-553477981791745/.


9 Ver em: www.instagram.com – @_mavambos (https://www.instagram.com/_mavambos_/); @ma-
vambosdabahia (https://www.instagram.com/mavambosdabahia/); @mavambosbaianos (https://
www.instagram.com/mavambosbaiano/); @mavambosblacks (https://www.instagram.com/ma-
vambosblacks/); @mavambinhosoficial (https://www.instagram.com/mavambinho/); @mavam-
binhosbaianos (https://www.instagram.com/mavambinhosbaianos/).
10 Ver em: www.twitter.com – @mavambosoficial (https://twitter.com/mavambosoficial); @mavam-
bosRJ (https://twitter.com/mavambosrj).

glossario-das-desidentidades-MIOLO.indb 193 13/09/2023 07:13


194 Lucas Moreira

É incontestável que a identidade estética do mavambo conecta-se às


dimensões do espaço urbano e que sua performance se inscreve simulta-
neamente na estética do corpo e na própria cidade. Nas redes sociais, as
legendas que intitulam as fotografias selecionadas por Marcus, o adminis-
trador da conta do Instagram, indicam tal fato com precisão em Salvador:
“Vem do Nordeste de Amaralina, Salvador. De Pivete se transformou em um
belo Mavambo”; “Outra dupla de Mavambos, são de Pirajá”; “Um encontro
histórico de dois Mavambos, um do Calabar, o outro das vielas de Ondina”;
“Mavambão de Castelo Branco”; “Mavambo trincadinho de Cajazeiras”,
por exemplo. Em todos os casos, a identidade do mavambo aparece expe-
rimentada e conceitualizada em termos geográficos. Os bairros populares
em Salvador constituem-se como base em um forte componente étnico-ra-
cial e a figura social do mavambo se inscreve na imagem da cidade como
um estilo hodierno que atua na reinvenção de signos culturais racializados.
(PINHO, 2005)
O uso do termo “mavambo black” ou “mavambos pretos” não é raro
nos discursos de interlocutores que afirmam que há um “poder” na “cor da
pele”, na “beleza negra” e na “marra”11 que expressam com esses termos.
Nas suas acepções, o mavambo, consciente de seu poder, o expressa não só
na sua exibição em redes sociais, mas na afirmação benfazeja de sua etni-
cidade, ostentada como um valor honroso e de singular prestígio. Como
afirma Marlon, os mavambos são a expressão da “autoestima, beleza e liber-
dade corporal e mental” dos jovens negros. As legendas em seus posts em
redes sociais são fecundas em revelar esse aspecto, sob a gama de adje-
tivos múltiplos. Usa-se “negro lindo”, “pretos no topo”, “melanina pura”,
“baianidade nagô”, “pretinho no poder”, “negros estilosos”, “foca no preto”.
Concomitantemente, como um personagem antropológico que povoa o ima-
ginário sexual do erotismo gay e suas figurações pornográficas, o mavambo
aparece representado enquanto sujeito racializado, sendo sinônimo de
“negão”, “negro”, “moreno”, “mulato”, ocupando, por vezes, o papel de
identidade objetificadora.
A (des)identidade do mavambo emerge, no complexo contexto aqui
caracterizado, em torno das representações contemporâneas do corpo mas-
culino negro das classes populares (PINHO, 2005) e forma-se, também,
como nos mostram Douglas e Marlon, como identidade autoadscrita.

11 Adjetivo geralmente empregado pelos interlocutores para definir um sujeito cuja autoestima
elevada e estilo são ostentados de maneira imperativa.

glossario-das-desidentidades-MIOLO.indb 194 13/09/2023 07:13


mavambo 195

A forma gestual e estética do mavambo, contudo, fora dos estereótipos


hegemônicos do habitus masculino, insere-o socialmente enquanto cate-
goria de desprestígio, que pode ser utilizada de modo pejorativo por grupos
sociais e racialmente privilegiados, que tendem a ver na referida estética
traços de incivilidade. A capacidade de produzir torções nos estereótipos
e estigmatizações sociorraciais, dando a elas uma dimensão positiva por
meio das próprias categorias de acusação, foi brilhantemente destacada
por Pinho (2005) quando traçou a ascendência, na cidade de Salvador, da
figura social do controverso brau.12
O brau sublevou-se como uma identidade performativa de masculini-
dade dos jovens nos bairros populares,13 o que colocou esse termo, assim
como ocorre hoje com o termo mavambo, na “fronteira entre significados
impostos e auto-atribuídos”. (PINHO, 2005, p. 127) Conta Pinho (2005, p. 132)
que o brau marcou a paisagem soteropolitana com “a explosão exuberante
das performances hipermasculinizadas e ritualmente agressivas [...] que
não hesitavam em explorar e exibir seu próprio corpo dançando ou semi-
-desnudando-se”, demarcando no ambiente a sexualidade exacerbada,
dimensão que “os qualificariam como excessivamente ‘negros’”. O brau
foi uma resposta periférica aos padrões globais do consumo cultural, cuja
modernização, como nos conta Pinho (2005, p. 140), “porta todas as con-
tradições de um processo ao mesmo tempo emancipador e subordinante,
marcado pela convivência entre destradicionalizacão e reprodução social
desigual em termos de classe, raça e gênero”.
Embora a figura do brau tenha esvaecido na arena das representações
do corpo masculino, novas configurações estéticas emergem reavivando a
insubmissão às etiquetas sociais, e reinventando as contradições das per-
formances de gênero que este personagem sociológico outrora suscitou.

12 O brau, na Salvador dos anos 1970 e 1980, foi estilo, moda e comportamento incorporado pela ju-
ventude periférica que assimilava positivamente as dimensões estéticas do funk afro-americano
embora fosse estigmatizada pela classe média, que transformara o termo em conceito pejorativo.
13 Múltiplas etnografias descreveram práticas corporais e estéticas ligadas à juventude dos bairros
populares soteropolitanos e, por sua vez, a relação entre estigmatização sociorracial e o tema do
prestígio e autoestima no universo masculino. Destacam-se formas de organização, estilos esté-
ticos e musicais que, como sugere Michel Agier (1991), atuavam na transformação do racismo em
sujeito político da etnicidade. Jeferson Bacelar (1989), no mesmo sentido, ressalta na expressão
estética dos blocos afros no carnaval de Salvador a ascensão política e cultural da vaidade étnica
do jovem negro. Simultaneamente, essas práticas estéticas e corporais acionavam estereótipos
sexuais e raciais. No entanto, como sugere Mara Vigoya (2018), estereótipos sociorraciais, comuns
em manifestações culturais na América Latina, agem nos limites entre a transformação da objeti-
ficação em positividade e a cumplicidade com o modelo hegemônico de masculinidade.

glossario-das-desidentidades-MIOLO.indb 195 13/09/2023 07:13


196 Lucas Moreira

Na contemporaneidade podem-se encontrar nas ruas de Salvador, como


afirma Pinho (2021), em entrevista, jovens que “desfilam sua negritude, o
seu corpo, o seu cabelo oxigenado, as tatuagens, os pelos pubianos à mostra,
as correntes de prata [...] cantando canções que remetem à facção do crime
e desafiando uns aos outros”. Assim, através dessa produção de si, ritua-
lizam esses jovens o seu poder e sua agência juvenil e periférica. É nesse
quadro social marcado pelas (re)invenções de estilos e estéticas tidas como
estigmatizantes, que emerge a figura sexual e ao mesmo tempo sociológica
dos mavambos.
Reinventado como categoria identitária múltipla, como performance
construída no entorno de estereótipos de sexualidade, classe e raça, e
sendo incorporado por fim ao universo dos estilos, da moda e da internet,
a (des)identidade do mavambo representa status entre os jovens que assim
se autoidentificam. Não há dúvida de que, como outras nomeações iden-
titárias, a dos mavambos é arbitrária e constitui-se com base em tensões e
disputas por representação. Embora fruto de estigma e hipersexualização,
a categoria mavambo mostra-se ponto de partida para novos modos de
(des)identificação sexual e de gênero potencialmente subversivos.

REFERÊNCIAS
AGIER, M. Introdução. Caderno CRH, Salvador, p. 5-16, 1991. Suplemento.
Disponível em: https://periodicos.ufba.br/index.php/crh/article/
view/18840/12210. Acesso em: 2 jun. 2023.

BACELAR, J. Etnicidade: ser negro em Salvador. Salvador: Ianamá, 1989.

BENEDETTI, M. R. Toda feita: o corpo e o gênero das travestis. Rio de Janeiro:


Garamond, 2005.

BOURDIEU, P. A distinção social: crítica social do julgamento. Porto Alegre: Zouk,


2011.

CASTRO, Y. P. Falares africanos na Bahia: um vocabulário afro-brasileiro. Rio de


Janeiro: Topbooks, 2001.

MARTINS, A. “Vai sentar pro traficante filho da puta”. [S. l.]: Casa dos Contos,
2018. Conto erótico, proibido para menores de 18 anos. Disponível em: https://
www.casadoscontos.com.br/texto/20170836. Acesso em: 2 jun. 2023.

PELÚCIO, L. Abjeção e desejo: uma etnografia travesti sobre o modelo preventivo


de aids. São Paulo: Annablume: Fapesp, 2009.

glossario-das-desidentidades-MIOLO.indb 196 13/09/2023 07:13


mavambo 197

PINHO, O. [Entrevista o brau na Bahia]. Entrevista cedida a Ana Dumas. Brau!:


Manifesto brasileira universal. Salvador, v. 1, n. 1, p. 57, 2021.

PINHO, O. Etnografias do Brau: corpo, masculinidade e raça na reafricanização de


Salvador. Estudos Feministas, Florianópolis, v. 13, n. 1, p.127-14, 2005. Disponível
em: https://www.scielo.br/j/ref/a/w7bBdcwdb9Twn3HDyPrD8bM/?lang=pt.
Acesso em: 2 jun. 2023.

VIGOYA, M. V. As cores da masculinidade: experiências interseccionais e práticas


de poder na Nossa América. Rio de Janeiro: Papéis Selvagens, 2018.

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glossario-das-desidentidades-MIOLO.indb 198 13/09/2023 07:13
199

MUJTAMAʿ AL-MĪM/ʿAYN

Antoine Badaoui

Mujtamaʿ al-mīm/ʿayn ( ) é um termo que se refere às mino-


rias sexuais no mundo árabe. Ativistas mujtamaʿ al-mīm/ʿayn árabes
criaram esse termo na tentativa de enraizar seu ativismo no contexto
local, sem a necessidade de recorrer às siglas e categorias LGBT transna-
cionais. (MOUSSAWI, 2015) Inicialmente, os ativistas criaram o termo
mujtamaʿ al-mīm, que significa “comunidade M”, como um termo gené-
rico que engloba as categorias individuais de minorias sexuais: mithlī,
mithliyya, muzdawij al-muyūl al-jinsiyya, muzdawijat al-muyūl al-jinsiyya,
mutaḥawwil al-jins e mutaḥawwilat al-jins – termos a serem traduzidos e
explicados mais adiante. Em um estágio posterior, os termos ʿābir al-jandar
e ʿābirat al-jandar substituíram o uso de mutaḥawwil al-jins e mutaḥawwilat
al-jins. Esta foi uma mudança implementada pelos próprios ʿābirī (plural
de ʿābir) al-jandar e ʿābirāt (plural de ʿābirat) al-jandar, ambos termos
que podem ser traduzidos como pessoas trans. Desta maneira, os antigos
termos mutaḥawwil al-jins e mutaḥawwilat al-jins foram abandonados
em benefício dos novos, mais representativos da comunidade na visão
de seus próprios integrantes.

glossario-das-desidentidades-MIOLO.indb 199 13/09/2023 07:13


200 Antoine Badaoui

ETIMOLOGIA

Todos os termos árabes que os ativistas mujtamaʿ al-mīm/ʿayn criaram ini-


cialmente para se referir às minorias sexuais começam com a letra M ( ) do
alfabeto árabe, chamada mīm ( ). Consequentemente, o termo genérico
mujtamaʿ al-mīm (comunidade M) passou a existir. O termo mithlī ­­­­­­( )
refere-se a homens que são atraídos sexualmente por homens. Tem sua
origem na palavra árabe mithl ( ). Como acontece com a maioria das pala-
vras desse idioma, também mithl possui três letras raiz. Em árabe, as três
letras raiz ligam grupos de palavras relacionadas etimologicamente. Mithl
significa “semelhante” e mithlī é um de seus derivados. Portanto, mithlī
obtém seu significado da ideia de semelhança e, no contexto de mino-
rias sexuais, designa aqueles que pertencem ao mesmo sexo. Mithliyya
( ) é a forma feminina de mithlī e refere-se a mulheres que se sentem
atraídas sexualmente por mulheres. Vale mencionar ainda que adjetivos
e substantivos derivados em árabe possuem formas masculinas e femi-
ninas: a mudança do masculino para o feminino dá-se pela adição da letra
t curta ( ), pronunciada como a ou at, que serve para designar o femi-
nino. Portanto, ao contrário do termo inglês gay que pode ser usado para
referir-se tanto a homens gays quanto, às vezes, a mulheres gays, o árabe
mithlī refere-se apenas a homens, enquanto mithliyya refere-se apenas a
mulheres. Da mesma forma, todos os outros termos abrangidos pelo con-
ceito de mujtamaʿ al-mīm/ʿayn têm uma forma masculina e uma forma
feminina. Muzdawij al-muyūl al-jinsiyya e muzdawijat al-muyūl al-jin-
siyya ( ) são derivados do subs-
tantivo verbal ʾizdiwāj (
1
), significando “dualidade”, e referem-se a
indivíduos atraídos tanto por homens quanto por mulheres. Os termos
mutaḥawwil al-jins e mutaḥawwilat al-jins ( )
estão relacionados ao substantivo verbal taḥawwul ( ) e servem para
designar a pessoa que se transformou sexualmente. Este termo árabe subs-
titui a palavra transnacional transgênero (transgender). No entanto, indiví-
duos do mujtamaʿ al-mīm tomaram a iniciativa de substituir o termo acima
mencionado por ʿābir al-jandar e ʿābirat al-jandar ( ),
relacionados ao substantivo verbal ʿubūr ( ), que pode ser traduzido
como “cruzamento”, “passagem” ou “trânsito”. Esta mudança de termos
implementada pelos próprios ʿābirī al-jandar e ʿābirāt al-jandar reflete o

1 “Substantivo verbal” é a tradução do termo árabe maṣdar, melhor entendido como infinitivo,
embora maṣdar não seja verbo.

glossario-das-desidentidades-MIOLO.indb 200 13/09/2023 07:13


mujtamaʿ al-mīm/ʿayn 201

envolvimento das minorias sexuais em atividades de autodefinição, bem


como o aspecto dinâmico do termo mujtamaʿ al-mīm/ʿayn, cuja semântica
pode ser ampliada para acomodar novas categorias.

UTILIZAÇÃO DOS TERMOS

Ativistas e organizações não governamentais no mundo árabe esforçam-se


por usar os termos locais em seu ativismo. Eles também utilizam a termi-
nologia árabe em suas aparições e contribuições nas mídias tradicionais.
Essa estratégia é semelhante àquela de que as organizações lançam mão
nas redes sociais também. Por exemplo, a Fundação Árabe para a Liberdade
e Igualdade no Oriente Médio e Norte da África (AFE-MENA), uma orga-
nização libanesa que trabalha e coopera com ativistas e organizações de
outros países árabes, publicou um vídeo em suas plataformas de mídia
social juntamente com ativistas de nove países árabes. O vídeo, intitulado
No longer alone, é coproduzido com a Human Rights Watch e visa ofe-
recer apoio a mujtamaʿ al-mīm/ʿayn e combater a homofobia. Ativistas de
diferentes países que participaram do vídeo usaram os termos árabes que
se referem a minorias sexuais. O vídeo continha legendas em inglês para
torná-lo acessível a pessoas que não falam árabe no resto do mundo. Nas
legendas, a organização traduziu os termos mujtamaʿ al-mīm/ʿayn para as
categorias LGBT transnacionais da seguinte forma:

Quadro 1 – Tradução dos termos mujtamaʿ al-mīm/ʿ ayn

Mujtamaʿ al-mīm/ʿayn Comunidade LGBT


Mithlī Gay
Mithliyya Lésbica
Muzdawij al-muyūl al-jinsiyya/muzdawijat al-muyūl Bissexual
al-jinsiyya
ʿābir al-jandar/ʿābirat al-jandar Transgênero
Fonte: elaborado pelo autor.

Além disso, em outros vídeos de organizações libanesas do mujtamaʿ


al-mīm/ʿayn, os participantes alternaram entre o uso de termos árabes e os
transnacionais em inglês. Essa dinâmica linguística sugere que os termos
árabes não estão completamente dissociados das tendências LGBT globais.

glossario-das-desidentidades-MIOLO.indb 201 13/09/2023 07:13


202 Antoine Badaoui

DEBATE SOBRE AS IDENTIDADES

Mesmo levando em consideração o contexto sociopolítico, o ativismo árabe


permanece também ativamente envolvido com os discursos LGBT globais
mais dominantes. (MOUSSAWI, 2015) De fato, algumas minorias sexuais
árabes articulam suas identidades em um ambiente fortemente impactado
por fluxos culturais globais e promoção de políticas identitárias, devido à
conectividade da internet. (GAGNÉ, 2012) Além disso, ao aderir ao ativismo
global e adotar as categorias LGBT transnacionais unificadas, as organi-
zações locais tornam-se elegíveis para receber financiamento e apoio do
movimento LGBT global. (SECKINELGIN, 2009) Portanto, o ativismo árabe
mujtamaʿ al-mīm/ʿayn há muito usa as siglas LGBT em suas atividades e
esforços para lutar pelos direitos das minorias sexuais e tentar eliminar
a homofobia social e legal. Assim, as categorias transnacionais lésbicas,
gays, bissexuais e transgêneros terminaram adotadas nos contextos locais
árabes. Esse fato contribuiu para que os ativistas LGBT árabes fossem cri-
ticados e acusados de importar identidades e valores ocidentais para as
sociedades árabes. Massad (2007), por exemplo, censura o que batiza de
Gay International, termo empregado pelo autor para descrever as organiza-
ções ocidentais de promoção dos direitos dos homossexuais e a missão, que
concedem a si mesmas, de “salvar” as minorias sexuais em todo o mundo.
Ele condena a agenda da Gay International em sua tentativa de impor o sis-
tema binário ocidental, gay versus hetero, às sociedades árabes e muçul-
manas. (MASSAD, 2007)
Massad explica que quem produz conhecimento sobre a homossexu-
alidade árabe para a Gay International são acadêmicos e jornalistas gays
brancos, homens, europeus e americanos. Esses acadêmicos e jornalistas
estudam árabes e muçulmanos como objetos, não como sujeitos. (MASSAD,
2007) Objetivar a população pesquisada leva à produção de um sentido
sobre ela, não para ela, sem considerar suas crenças e valores. (TAYLOR,
1971) Esse fato serve para rotular os “praticantes de sexo com aqueles do
mesmo sexo” na região árabe, conforme descrição de Massad (2007), de
gays e lésbicas e está na base da alegação errônea de que gays e lésbicas são
categorias que transcendem as culturas. De acordo com Massad (2007), gays
e lésbicas são um produto da Gay International e melhor se encaixam no
Ocidente. Ele argumenta que os “praticantes de sexo com aqueles do mesmo
sexo”2 no mundo árabe nunca assumiram uma identidade gay ou lésbica

2 Expressão de Massad (2007), texto original: “same-sex practitioners”.

glossario-das-desidentidades-MIOLO.indb 202 13/09/2023 07:13


mujtamaʿ al-mīm/ʿayn 203

antes da Gay International. (MASSAD, 2007) Portanto, ao afirmar que gays


e lésbicas são categorias globais ou ocidentais, porque global e ocidental
se tornaram intercambiáveis (OSWIN, 2006), a Gay International “reprime
desejos e práticas [entre integrantes] do mesmo sexo que se recusam a ser
assimilados em sua epistemologia sexual”.3 (MASSAD, 2007, p. 163, tra-
dução nossa)
Do outro lado do debate, As’ad Abukhalil (1993, p. 33, tradução nossa)
demonstra que a homossexualidade não constitui importação ocidental.
Ele ressalta que existia uma “identidade homossexual pura”4 na cultura
árabe/islâmica e que lésbicas e gays autodeclarados gozavam de um grau
de tolerância negado por séculos aos homossexuais no Ocidente durante
a Idade Média.
Esse argumento ressoa com as declarações dos ativistas mujtamaʿ
al-mīm/ʿayn que participaram da campanha de vídeo da AFE-MENA nas
redes sociais. Os ativistas declararam que, antes do colonialismo, as mino-
rias sexuais viviam um estilo de vida homossexual visível e tolerado. Dito
isso, os termos árabes existentes naquela época, por exemplo Lūtī ( ),
terminaram por ganhar uma conotação negativa. A palavra Lūtī que Abu
Nawwas, famoso poeta árabe do século VIII, empregou em seus poemas,
pode ser traduzida, em nossos dias, pelo termo ofensivo “viado” ou “sodo-
mita”, e seu uso não é mais tolerado na mídia. Na verdade, Lūtī deriva do
nome do profeta Lot no Antigo Testamento. Lot vivia em Sodoma, e seu
povo praticava o ato proibido da sodomia, contra o qual Deus teria respon-
dido violentamente. (IBN KHATER, [2023]) Surgiu, assim, a necessidade de
buscar termos neutros para referir-se a minorias sexuais no mundo árabe,
sem recorrer às categorias transnacionais desenvolvidas em países ociden-
tais e sem usar termos pejorativos com significância religiosa e social dis-
criminatória. A criação das palavras árabes neutras abrangidas pelo termo
mujtamaʿ al-mīm/ʿayn constitui parte dos esforços pelos ativistas locais
para imbuir as subjetividades das minorias sexuais na cultura local e para
estabelecer um ativismo mujtamaʿ al-mīm/ʿayn culturalmente consciente.
(MOUSSAWI, 2015)

3 Texto original: “represses same-sex desires and practices that refuse to be assimilated into its
sexual epistemology”.
4 Texto original: “pure homosexual identity”.

glossario-das-desidentidades-MIOLO.indb 203 13/09/2023 07:13


204 Antoine Badaoui

UMA TERMINOLOGIA DINÂMICA

Os termos mujtamaʿ al-mīm/ʿayn são dinâmicos e comportam mudanças.


Assim como os termos mutaḥawwil al-jins e mutaḥawwilat al-jins foram
alterados para ʿābir al-jandar e ʿābirat al-jandar, há espaço para que a
mudança terminológica continue. Tarek Zeidan, diretor executivo da
Helem, a primeira organização árabe e libanesa mujtamaʿ al-mīm/ʿayn,
destaca que o uso dos termos árabes de mujtamaʿ al-mīm/ʿayn não deve
ocorrer sem considerar que existem povos não árabes no mundo árabe,
como os curdos e os amazigh, com suas próprias línguas. Além disso, as
minorias sexuais nos vários países árabes podem usar termos locais que
não são igualmente conhecidos em todas as sociedades árabes. Alguns
desses termos têm uma conotação negativa, mas o mujtamaʿ al-mīm/ʿayn
começou, ainda assim, a reivindicar esses termos como seus em um movi-
mento semelhante ao que aconteceu com a palavra queer nas sociedades
ocidentais. Na mesma linha, Mourad (2013) argumenta que, mesmo quando
os indivíduos mujtamaʿ al-mīm/ʿayn árabes se referem a si próprios usando
os termos transnacionais LGBT em inglês, tal uso não ocorre em dissociação
completa dos contextos locais. Assim, a utilização dos termos em inglês,
como gay e lesbian, sofre influências culturais árabes na região. Dito isso, os
termos árabes mujtamaʿ al-mīm/ʿayn permanecem na terminologia domi-
nante a que as organizações locais recorrem em sua luta para eliminar a
homofobia e alcançar melhores condições de vida para as minorias sexuais
no mundo árabe.

REFERÊNCIAS
ABUKHALIL, A. A note on the study of homosexuality in the Arab/Islamic
civilization. The Arab Studies Journal, [s. l.], v. 1, n. 2, p. 32-48, 1993.

GAGNÉ, M. Queer Beirut online: The participation of men in gayromeo.com.


JMEWS: Journal of Middle East Women’s Studies, [California], v. 8, n. 3, p. 113-
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IBN KHATER. The story of Lut (Lot). [S. l.: s. n.], [2023]. Disponível em: http://
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Acesso em: 1 ago. 2018.

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glossario-das-desidentidades-MIOLO.indb 204 13/09/2023 07:13


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glossario-das-desidentidades-MIOLO.indb 205 13/09/2023 07:13


glossario-das-desidentidades-MIOLO.indb 206 13/09/2023 07:13
207

PÃO-COM-OVO

Murillo Nonato

No momento do seu nascimento, dada a presença do pênis, as bichas pão-


-com-ovo são reconhecidas como homens e em torno dos seus corpos,
geralmente pretos e pardos, cria-se a expectativa da reprodução da mas-
culinidade ideal pautada na cisheteronorma.1 No imaginário social essa
masculinidade está associada a uma visão biologizante e trans-histórica do
homem, ligada ao sujeito que é cisgênero, de classe média, branco, hete-
rossexual e viril.
Apesar da pluralidade intrínseca das formas de ser homem e de cons-
tituir masculinidades, o modelo supracitado garante privilégios para
quem é “homem de verdade” em uma sociedade cisheteronomativa. Este
modelo ideal, Raynael Connell (2005) chama de masculinidade hegemô-
nica. A autora explica em seu livro Masculinities que em um determinado
tempo e espaço sempre haverá um modelo de masculinidade plenamente
legitimado na sociedade, enquanto os outros serão considerados formas

1 A cisheteronorma é compreendida aqui através da definição proposta por Vergueiro (2015), que
a define como um conjunto de normas que operam com o intuito de coagir os corpos a se enqua-
drarem dentro dos paradigmas da matriz cultural do gênero analisada por Butler (2012). Nes-
se sentido, se espera, por exemplo, que o sujeito que nasce com um pênis se identifique como
homem, seja viril e heterossexual respeitando a linearidade entre sexo-gênero-desejo-práticas
sexuais que está contida na referida matriz.

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208 Murillo Nonato

subalternas. A exemplo de masculinidades subalternas, podemos citar as


masculinidades negras, das bichas e das lésbicas masculinas.
As performances de gênero2 das bichas pão-com-ovo frustram essas
expectativas criadas em torno da noção da masculinidade hegemônica
ao produzir corpos, aparências e gestos mesclando elementos do mascu-
lino e do feminino. Assim, essa apresentação é desenvolvida de maneira
ambígua, na forma de um patchwork produzido por meio de retalhos dos
códigos de gênero já prescritos e que provocam, no olhar do outro, a sen-
sação de incerteza e dúvida.
Ao retratar a vida de um grupo de adolescentes chamado PAFYC3 ou
“as novinhas flexíveis”, que moram na favela da Rocinha e apresentam
gênero e sexualidade discordantes da norma, Lino e Silva (2022) observa
que o vestuário e a expressão corporal desses sujeitos são canais de trans-
formação dos seus corpos, aparatos que não podem ser vistos como supér-
fluos em suas dinâmicas. Na verdade, aponta o autor, ao se considerar o
tempo dedicado à constituição de suas aparências por meio dos referidos
elementos, esses deveriam ser compreendidos como parte de seus próprios
corpos. Argumento que o vestuário e a expressão corporal das bichas pão-
-com-ovo podem também ser compreendidos de maneira semelhante. Esses
elementos são indispensáveis para elas, pois é por meio desses recursos que
vocalizam suas diferenças.
As bichas pão-com-ovo podem rebolar ao caminhar; caminhar de
maneira feminina; desmunhecar, gesticular muito com as mãos; cruzar as
pernas; dançar de forma feminina, rebolando demasiadamente o quadril,
a bunda, movimentando o corpo de forma fluída em oposição à rigidez
do movimento masculino; apresentar voz aguda; falar de forma espalha-
fatosa; utilizar vestuários e acessórios considerados femininos como ves-
tidos, saias, salto alto, argolas, tiaras, gargantilhas; e usar maquiagens como
batom, base para o rosto e máscara para os cílios.
Elas também podem manter em seus corpos características mascu-
linas como os pelos nas pernas, braços, peitoral e rosto; serem musculosos;
mover o corpo de forma mais rígida ao caminhar em oposição ao corpo
“molinho” da bicha; manter o uso de vestimentas e adereços masculinos

2 A ideia de performance de gênero está aqui sendo utilizada a partir de Butler (2012). A autora
argumenta que gênero e sexualidade não são categorias fixas e naturais, sendo constituídas no
tempo-espaço, ou seja, são performances de gênero. Essas performances materializam em nos-
sos corpos as nossas ideias de gênero e sexualidade.
3 PAFYC é a junção da inicial do nome dos membros que compõem o grupo.

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pão - com- ovo 209

como bermudões, blusas largas, bermuda surfista, boné e óculos de sol espe-
lhado. A partir da presença ou ausência desses elementos se desenvolve a
performance de gênero desses sujeitos, possibilitando a constituição de
várias corporalidades e formas de ser uma bicha pão-com-ovo.
A partir dessa constituição de gênero conflituosa com as expectativas das
normas para um “corpo de homem”, as bichas pão-com-ovo nos provocam a
realizar uma reflexão acerca da constituição de identidades binárias e crista-
lizadas como a do homem/mulher ou dos padrões estereotipados como o do
masculino/feminino já que passeiam entre ambas as noções sem repousar/
fixar-se em nenhuma delas, aproximando-se por vezes mais de uma do
que da outra e vice-versa. A constituição dessa aparência e desse “eu” per-
mite-nos observar um certo movimento, indo na contramão da fantasia da
estabilidade do gênero pressuposta nas concepções binárias e normativas.
Por caminharem na contramão da expectativa da masculinidade hege-
mônica, apresentando ao outro uma forma subalterna de ser homem, as
bichas pão-com-ovo são rejeitadas no mercado sexual-afetivo. Em espaços
de sociabilidade e pegação, seus corpos são, no geral, negados como objeto
de desejo ou são levados a mimetizar uma masculinidade viril para con-
quistar parceiros sexuais. Há ainda, sobre as bichas pão-com-ovo pretas,
a expectativa de que elas reproduzam a estereotipada performance do
“negão”, uma espécie de constituição de masculinidade negra, como aponta
Caetano e demais autores (2020), valorizados nesses espaços de pegação
por conta da sua virilidade, exibição dos músculos, força e do imaginário
da existência de uma performance sexual extraordinária e de um pênis
supostamente avantajado.
A bicha pão-com-ovo preta é compreendia, então, como demasiada-
mente feminina para ser “negão” ou mesmo um gay respeitável. Vale res-
saltar que, dentro dessa conjuntura, as bichas pão-com-ovo e o “negão” estão
dentro de um contexto de precarização das possibilidades de consumo, de
relações de trabalho, sendo a valorização do “negão” e a rejeição da bicha
constituída, principalmente, por meio das aproximações e distanciamento
das normas do gênero/sexualidade.
A bicha pão-com-ovo é vista frequentemente como escandalosa, indis-
creta e seu comportamento em público é classificado pelos outros como
indecente ou indecoroso. Ela é descrita, como sinalizado acima, também
em oposição à categoria do gay, sujeito aqui compreendido como homos-
sexual (deseja sujeitos do mesmo gênero), sendo que esse sujeito não entra
em conflito com as normas prescritas para a masculinidade. O gay, por
meio de um comportamento discreto e respeitável, busca gozar de um

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210 Murillo Nonato

certo prestígio social ao tentar espelhar a cisheteronorma como estra-


tégia para se acomodar no seio social e conquistar algum grau de aceitação
dentro deste. (MACRAE, 2018) A bicha, nesse sentido, por se distanciar
desse modelo prescrito, rompendo com essas expectativas, é levada a
habitar no interior da margem, a partir da sua desvalorização enquanto
sujeito e objeto de desejo.
As condições socioeconômicas nas quais as bichas pão-com-ovo estão
inseridas também interferem no processo de constituição de suas perfor-
mances, pois a classe social gera impacto nas possibilidades de desenvolvi-
mento das suas próprias aparências, em suas relações sexuais-afetivas e na
sua percepção e (des)valorização pelo outro. Essas bichas possuem renda,
na maioria das vezes, baixa e irregular e, portanto, frequentam, na maior
parte do tempo, espaços comunitários gratuitos como praças, parques e
praias ou espaços comerciais dirigidos para o público de baixa renda. Como
aponta Marsiaj (2003), os espaços comerciais podem ser bares, saunas,
boates e outros, onde pessoas de sexualidade e gênero conflitantes com as
normas podem socializar e ter encontros sexuais e afetivos. Ele aponta que,
a depender da renda, o acesso a esses espaços é maior ou menor.
Os estabelecimentos localizados em espaços comerciais de luxo são
certamente menos acessíveis para aqueles com menor poder aquisitivo.
Os espaços públicos, as boates e os bares de baixo custo são os mais pro-
curados pelos usuários mais pobres. Assim sendo, observamos como o
poder aquisitivo desenha a distribuição espacial dos corpos e delimita os
espaços onde grupos podem viver suas sexualidades e desejos. A diferença
no acesso impacta também na percepção moral sobre esse sujeito – acei-
tação, glamour – bem como gera nítidas diferenças em relação aos níveis
de segurança entre os grupos.
Ser visto em espaços precários (em vista, por exemplo, da má qualidade
do serviço ofertado, da estrutura mal-acabada e em face da insegurança)
como as boates, praças e saunas localizadas nos vários centros comerciais
do país, em que se disputa, muitas vezes, espaço nas ruas com prostitutas,
michês, traficantes e usuários de droga, leva as bichas pão-com-ovo, de
modo geral, a serem percebidas pelos outros de forma desprestigiada e pre-
conceituosa. As bichas são vistas como pessoas com as quais não se pode
manter uma relação de proximidade e com as quais não se pode constituir
uma relação afetivo-sexual. Quando essas relações são constituídas, na
maioria das vezes, é feita de forma fortuita, escondida, já que a mera pro-
ximidade com esses sujeitos levaria o outro a também ser desvalorizado
nos ambientes em que circula.

glossario-das-desidentidades-MIOLO.indb 210 13/09/2023 07:13


pão - com- ovo 211

A situação socioeconômica das bichas pão-com-ovo também as leva à


constituição de uma aparência corporal que é entendida como precária por
sujeitos das classes sociais mais abastadas. É comum se apresentarem com
vestimentas, acessórios e calçados com nomes de grandes marcas, buscando
emular a aparência das classes mais favorecidas, mas esse consumo é rea-
lizado comprometendo o orçamento doméstico (o balanço entre os ganhos
e os gastos que permitem uma vida financeira organizada) ou por meio de
produtos falsificados. Além disso, no geral, consomem produtos de baixa
qualidade ou usam da criatividade para estilizar e customizar suas próprias
vestimentas e acessórios.
Marsiaj (2003) afirma que a partir dos anos 1970 se notou a formação de
um mercado voltado para o público homossexual após empresários perce-
berem que havia nesse grupo um potencial de consumo maior do que entre
os heterossexuais. De acordo com o autor, cada vez mais esse mercado foi
se expandindo, o que levou os homossexuais com alta renda a criarem uma
estratégia política para alcançar aceitação social por meio do consumo.
Consumo esse que, em diversos momentos e de diversas formas, as bichas
pão-com-ovo tentam acompanhar ou usar de sua criatividade para burlar
as limitações delas.
O autor aponta que a referida estratégia poderia levar à maior acei-
tação de um grupo específico: o gay branco de classe média. Esse movi-
mento levaria, no entanto, os devassos de todos os outros tipos e sem poder
aquisitivo a uma marginalização por não caber no ideal do cidadão-con-
sumidor. Ou seja, o reflexo dessa política resultou na aceitação parcial do
gay branco de classe média e na marginalização da bicha pão-com-ovo.
A desigualdade social também leva à maior incidência de violência física e
cognitiva a essas bichas. Marsiaj (2003) aponta que no Brasil está em desen-
volvimento um processo de pauperização da violência, em que indivíduos
das classes mais baixas são em maior número vítimas das violências pra-
ticadas por policiais e por justiceiros. Eles são também em maior número
vítimas de linchamentos e outras configurações de violência dentro e fora
da comunidade LGBT.
Em suma, as bichas pão-com-ovo nos impelem a refletir sobre os pro-
cessos de constituição do gênero e da sexualidade normativa e suas relações
com as questões de raça e classe nos processos de constituição de si e das
relações que se constroem com o outro, com o espaço, com o consumo e as
condições de constituição de possibilidade de ação dentro desse contexto.

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212 Murillo Nonato

REFERÊNCIAS
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Janeiro: Civilização Brasileira, 2012.

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Chicago: University of Chicago Press, 2022.

MACRAE, E. A construção da igualdade-política e identidade homossexual no


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MARSIAJ, J. P. P. Gays Ricos e Bichas Pobres: desenvolvimento, Desigualdade


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n. 18-19, 2003. Disponível em: https://ojs.ifch.unicamp.br/index.php/ael/article/
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VERGUEIRO, V. Por inflexões decoloniais de corpos e identidades de gênero


inconformes: uma análise autoetnográfica da cisgeneridade como normatividade.
2015. Dissertação (Mestrado em Cultura e Sociedade) – Instituto de
Humanidades, Artes e Ciências, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2015.

glossario-das-desidentidades-MIOLO.indb 212 13/09/2023 07:13


213

PÉ-DE-MORRO

Tiago Duque

Diz-se pé-de-morro à pessoa relacionada a uma certa região na fronteira Brasil-


Bolívia, independentemente do seu gênero ou sexualidade. Mas, aqui, buscarei
refletir o quanto essa categoria ensina sobre as experiências das chamadas
“bichas” e de toda uma população fronteiriça. Ao adotar a categoria bichas,
conforme os usos locais, estou me referindo a gays, travestis e mulheres tran-
sexuais com quem convivi durante uma pesquisa etnográfica, envolvendo
também entrevistas e pesquisas on-line. Aqui, as reflexões seguirão, princi-
palmente, uma perspectiva teórica queer. (PEREIRA, 2012) A aposta analítica
é na compreensão de que a existência de “bichas ­pé-de-morro” corresponde a
processos de diferenciação identitária que, no contexto sul-mato-grossense,
apontam para normas e convenções que estão em jogo em um regime de visi-
bilidade/reconhecimento de gênero e sexualidade.
Pé-de-morro, mais precisamente, corresponde à classificação de um
perfil de morador(a) de regiões periféricas de Corumbá, dos bairros da
cidade alta, das ruas próximas aos morros, onde concentram-se pessoas
mais pobres e com origens étnico-raciais africanas e sul-americanas, prin-
cipalmente paraguaias e bolivianas de fenótipos indígenas. Moradoras(es)
de famílias com origem europeia e do sudoeste asiático encontram-se mais
comumente em outras regiões da cidade, principalmente no centro comer-
cial. Contudo, os locais de moradia não necessariamente separam as pessoas
nos contextos de interação, havendo grande circulação dos(as) diferentes

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214 Tiago Duque

moradores(as) nos mais variados espaços da cidade. Não é à toa que existe a
interpretação de que em Corumbá é “todo mundo junto e misturado”, con-
forme foi-me dito em diferentes situações. Isso, contudo, não significa que
essas interações não se deem a partir de estigmas em torno das diferenças
e de complexos processos de hierarquização. (COSTA, 2013)
A “mistura” se refere às diferenças de classe, raça e etnia, mas, princi-
palmente, de gênero e sexualidade. Sob o olhar das bichas, por exemplo,
o modo como elas se envolvem em diferentes eventos na cidade e são
“prestigiadas” é um indicador não apenas dessa “mistura”, mas também
do quanto a cidade seria “sem preconceito”. A suposta identidade não pre-
conceituosa do lugar, quando o assunto é diversidade sexual, é uma das
características também apontadas em campo por diferentes interlocu-
toras(es). (DUQUE, 2019) O uso da categoria pé-de-morro, portanto, asso-
ciada às bichas, ajuda-me a pensar sobre esse modo de tornar-se visível na
região, especialmente quando o foco são os eventos que elas, muitas apon-
tadas como pé-de-morro, estão envolvidas.
Esses eventos podem ser classificados em dois grupos. Aqueles em que a
visibilidade acontece em termos mais identitários, no que se refere à diver-
sidade sexual, como os concursos de “Miss Gay Corumbá”, “Musa Gay do
Carnaval”, “Parada da Cidadania LGBT” e o “Amistoso da Diversidade” –
partida de futebol que reúne bichas de Corumbá contra as de Ladário. Mas,
também, aqueles eventos em que a presença das bichas é igualmente mar-
cante no seu planejamento, na sua organização e na sua execução, como o
concurso de quadrilhas juninas, as apresentações e concurso de fanfarras
escolares, o carnaval e a “Louvação de Iemanjá” – festa religiosa às margens
do Rio Paraguai. Em qualquer um desses eventos, pode-se perceber, con-
forme dito por uma das bichas da pesquisa, que “em Corumbá os eventos
são feitos por gays, mas não para gays”, isto é, o público em geral comparece
e “prestigia” as bichas, independentemente do tipo do evento. Nas palavras
de outra interlocutora: “todo mundo vai aplaudir as bichas”.
O reconhecimento das bichas na cidade pelo “prestígio” que recebem
nos eventos não se diferencia em termos identitários por elas serem gays
ou travestis/mulheres transexuais. Isso não significa que o tratamento na
cidade seja sempre o mesmo para gays e trans, mas, diante do regime aqui
caracterizado, a análise para a sua compreensão não se dá via um “cistema”.
(JESUS, 2016) Isto é, o reconhecimento da visibilidade das bichas não se
explica pela existência de uma produção de corpos tidos como “naturais”
(“cis”) e outros como “não naturais” (trans). A “cisgeneridade”, enquanto
uma categoria analítica usada “para questionar os privilégios dos corpos

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pé-de-morro 215

que se entendem dentro de uma perspectiva naturalizante e essencialista


de gênero” (NASCIMENTO, 2021, p. 100), diferentemente de outros estudos,
não é útil aqui para compreender o regime em questão. Não se trata de negar
a “cis-sociopolítica” (DEMÉTRIO, 2019), antes, compreender que processos
de reconhecimento podem ir além da diferenciação “cis”/“trans” mesmo
quando as bichas sejam gays e travestis ou mulheres transexuais.
Nesse sentido, com um olhar para além do binarismo “cis”/“trans”, pro-
curo compreender o funcionamento normativo de tanto “prestígio” e “reco-
nhecimento”, mesmo quando elas são apontadas como pé-de-morro. Para
isso, ao refletir sobre as experiências dessas bichas, o fato delas viverem
em uma região de fronteira precisa ser considerado. Gênero e sexualidade
são marcadores da diferença (logo, da diferenciação) que estão em jogo
com outros, como a nacionalidade. Inspirado nas afirmações de Judith
Butler durante uma de suas entrevistas (KNUDSEN, 2010), compreendo
o reconhecimento, assim como o poder, como algo que circula, isto é, não
respeita as fronteiras identitárias, pelo contrário, produz essas fronteiras
a partir de históricas singulares, dentro de certo quadro comum de inte-
ligibilidade. Sendo assim, é preciso reconhecer que a região fronteiriça
tende a ser relacionada a coisas ruins, como o tráfico, a ilegalidade, a vio-
lência, a doença, o crime, o perigo e a própria miscigenação. (OLIVEIRA;
CAMPOS, 2012) Gênero e sexualidade precisam ser compreendidos nesse
contexto, especialmente para aquelas pessoas que agregam valor positivo
à ideia de uma cidade fronteiriça “sem preconceito”, onde “todo mundo é
junto e misturado”.
A alusão à ideia pejorativamente classificatória de pessoas como sendo
pé-de-morro não nega e nem desmente as características positivas do lugar,
em termo das diferenças. Mais que isso, em vez de pensar em possibilidades
analíticas em busca de verdades e mentiras, é preciso compreender o jogo
dos regimes de visibilidades, neste caso, das bichas, em especial, daquelas
também classificadas como pé-de-morro. “Regime” aqui é entendido não
como algo que proíbe ou impede determinado modo de se tornar visível,
mas algo que regula e normaliza, algo que se ensina e se aprende em termos
de códigos de valores e representações de como se deve tornar-se reconhe-
cido, leia-se, visível. (MISKOLCI, 2017; PASSAMANI, 2018; SEDGWICK, 1998)
A maior parte das interlocutoras que estão sob o risco de serem apon-
tadas como pé-de-morro são pobres, miscigenadas, com infâncias demar-
cadas por experiências de efeminamento em contextos que elas viam as
bichas em destaque no carnaval ou em cargos de lideranças em terreiros
de religiões de matriz africana. Perceberam, rapidamente, que o lugar de

glossario-das-desidentidades-MIOLO.indb 215 13/09/2023 07:13


216 Tiago Duque

“prestígio” nas apresentações das fanfarras escolares era tocando prato


“melhor que as meninas” ou apresentando-se como balizas junto com
elas, e não tocando os instrumentos tidos como mais masculinizados.
Entenderam também que, para ganhar o concurso de quadrilha, tinham
que ser a noiva, e não apenas coreografar e ensaiar o grupo. Aprenderam que
poderiam, sob o olhar de um público variado e de seletas juradas (mulheres
brancas e ricas da cidade), serem eleitas a Miss Gay. Construíram um espaço
de representatividade junto às mulheres passistas do carnaval, elegendo-se
Musa Gay para ter um lugar na “corte de Momo”, que abre o carnaval corum-
baense nas ruas e nas festas para turistas.
“Eu sou uma pé-de-morro”, disse-me uma das vencedoras de um dos
concursos de Miss Gay e também de Musa Gay. No contexto das trocas de
mensagens pela internet, não foi em tom de orgulho que a frase foi dita, mas
em referência ao quanto, apesar de viver no bairro onde vive, conquistou
representatividade (leia-se reconhecimento). Outra, durante o ensaio de
um concurso de beleza na cidade, atacou a concorrente e colega: “sua bicha
pé-de-morro!”. As que estavam próximas riram por entender que a crítica
era sobre o quanto ganhar o concurso seria difícil para ela que “não desfi-
lava como Miss” (fugia dos estereótipos de branquitude e delicadeza).
Nesse sentido, a “bicha pé-de-morro” circula na cidade ao mesmo tempo
em que, sendo “prestigiada” e “reconhecida”, agrega valor a uma região
estigmatizada por ser fronteira nacional, mas, apesar disso, ou por isso, é
legitimada como sendo “sem preconceito”, onde a “mistura” das diferenças
sustenta a ideia de uma cidade merecedora de elogios. Dito de outro modo,
os aplausos nos eventos são um importante código de reconhecimento para
as bichas, que conquistam visibilidade porque, mais do que um prestígio
pessoal, por serem visíveis a esse modo, produzem valores que contrapõem
a desvalorizações de toda uma região fronteiriça e enfrentam os estigmas
que são atribuídos aos(às) moradores(as) da cidade.
Contudo, nem todas as pé-de-morro querem ou podem exercer essa
visibilidade prestigiada. Essas, por sua vez, tendem a não ser aplaudidas,
inclusive, muitas vezes são criticadas pelas próprias bichas com as quais
pude conviver. Exemplo disso são as que se prostituem e “criam confusão
na rua” ou que “querem mostrar o peito no dia da parada”, ou ainda, “as gays
que querem se beijar no meio do povo”. O fato de existir uma diversidade
de “bichas pé-de-morro” não tira a funcionalidade do jogo das represen-
tações daquelas que aprenderam a se colocar visivelmente na cidade, a
ponto de produzir uma cidade valorada como contraponto à própria ideia
de um outro não brasileiro. Digo isso porque, comumente, também entre as

glossario-das-desidentidades-MIOLO.indb 216 13/09/2023 07:13


pé-de-morro 217

próprias bichas, entende-se que bolivianos(as) são preconceituosos(as), a


ponto de algumas interlocutoras afirmarem que do outro lado da fronteira
“não tem gay”, “só índio”. (DUQUE, 2017)
Assim, a pé-de-morro ensina-nos sobre um regime de visibilidade que
não é identitário nos termos “cis”/“trans”, mesmo envolvendo gays e tra-
vestis/transexuais; nem mesmo restrito a uma certa diversidade sexual. Ao
invés disso, é um regime em que, no quadro de inteligibilidade fronteiriço,
também envolve moradores(as) não bichas e não necessariamente brasi-
leiros(as). Considerando essas reflexões, é possível afirmar que as bichas,
muitas delas pé-de-morro, conseguem por meio desses eventos aqui citados
conquistar um reconhecimento que circula entre elas e entre todos(as)
de uma cidade fronteiriça, produzindo diferenciadamente um(uma) vizi-
nho(a) boliviano(a) preconceituoso(a). Mais do que uma trajetória pessoal
de “prestígio”, as pé-de-morro ajudam a entender modos de vidas possíveis
em uma cidade pantaneira desigual, localizada em um quadro de inteligi-
bilidade que também diz muito sobre como os centros são produzidos em
contraposição às margens.

REFERÊNCIAS
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reificado na fronteira Brasil-Bolívia. Tempo Social, São Paulo, v. 25,
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aqui. Prefácio. In: DUQUE, T. Gêneros incríveis: um estudo sócio-antropológico
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glossario-das-desidentidades-MIOLO.indb 218 13/09/2023 07:13


219

POLIAMORISTA

Antonio Cerdeira Pilão

Nos últimos anos, o substantivo “poliamor” e os adjetivos “poliamoroso(a)”


e “poliamorista” têm sido incorporados em alguns dicionários brasileiros.
Entre eles, o Michaelis moderno dicionário da língua portuguesa (2015),
que definiu poliamoroso como “aquele que tem inclinação para o poliamor”
e poliamorista como a “pessoa que pratica o poliamor”: “Tipo de relação ou
atração afetiva em que cada pessoa tem a liberdade de manter vários rela-
cionamentos simultaneamente [...]”.
O neologismo polyamory, que é uma combinação do grego (“poli” –
vários) e do latim (“amor”), refere-se à possibilidade de estabelecer relações
afetivo-sexuais com mais de uma pessoa de forma concomitante e consen-
sual. (PILÃO, 2015; SILVÉRIO, 2018) Esse conceito foi primeiramente for-
mulado nos anos 1990, nos Estados Unidos, sendo, ao longo do século XXI,
adaptado para outros idiomas, como o espanhol e o português, que utili-
zaram o termo poliamor. O primeiro registro escrito de que se tem conhe-
cimento em inglês é de 1992, no grupo de discussões “alt.sex”. Nele, Jenifer
Wesp, considerando a “não-monogamia” uma palavra negativa a substi-
tuiu por polyamory, o que culminou, em 20 maio daquele ano, na criação
de outro grupo de discussões virtuais, o alt.polyamory. (CARDOSO, 2010;
PILÃO; GOLDENBERG, 2012)
A Igreja neopagã de Todos os Mundos (Church of all the Worlds) também
é reconhecida por pesquisadores e poliamoristas como responsável pela

glossario-das-desidentidades-MIOLO.indb 219 13/09/2023 07:13


220 Antonio Cerdeira Pilão

formulação desse conceito. A palavra polyamory teria sido empregada pela


primeira vez em um evento público, organizado por membros da igreja, des-
tinado a criar um dicionário de terminologia relacional. (CARDOSO, 2010)
Essa explicação, no entanto, é alvo de controvérsias, em função de não
haver registros escritos que respaldem o seu uso nesse encontro, realizado
em agosto de 1990, em Berkeley (Califórnia). Ainda assim, outro fator que
contribui para a associação da emergência do poliamor à Igreja de Todos os
Mundos é o artigo “A Bouquet of Lovers”, escrito, no mesmo ano, por uma
das lideranças dessa igreja, Morning Glory Zell-Ravenheart, que nesse texto
defendeu um estilo de vida e um compromisso polyamorous (poliamoroso).
A eficácia dessa categoria identitária, a partir do final do século XX,
esteve relacionada à crescente demanda por uma terminologia que fosse
capaz de comunicar um ideal não exclusivo de relacionamento que desta-
casse o amor. A categoria “amor livre”, expressiva nos anos 1970, não con-
tinha de maneira explícita uma oposição à monogamia compulsória, já que
se referia, sobretudo, à busca por dissociar a sexualidade do casamento
reprodutivo. Os termos “relacionamento aberto” ou “casamento aberto”
enfatizavam a prática sexual extraconjugal, mas não múltiplas parcerias
amorosas. A expressão “não-monogamia”1 era vista como bastante abran-
gente e negativa, uma vez que afirmava apenas aquilo que não é. “Poligamia”,
além de se referir ao casamento (quando muitos(as) poliamoristas são con-
trários(as) a essa instituição), associava-se a práticas alheias à igualdade de
gênero que, portanto, estariam assentadas na dominação masculina e na
heteronormatividade, restringindo a possibilidade de relacionamentos múl-
tiplos ao homem heterossexual. “Casamento em grupo” e “polifidelidade”
pareciam ser termos adequados às comunidades alternativas da contracul-
tura, visto que não englobariam múltiplos arranjos diádicos.
Nesse sentido, nenhuma das categorias existentes contemplava o anseio
por nomear a possibilidade de estabelecer variados tipos de relaciona-
mentos afetivos e sexuais múltiplos, igualitários e consensuais. Utilizar
o termo poliamor inadvertidamente para quaisquer relacionamentos não
monogâmicos anteriores aos anos 1990 seria um anacronismo. Isso porque
o poliamor é um desenvolvimento do amor romântico, dependendo das
ideias modernas de liberdade individual de escolha e de exaltação do amor
como principal critério para o estabelecimento de uma união. A ênfase

1 Por ser tratada como categoria nativa opto sempre por manter essa estrutura, privilegiando o
emprego mais corrente entre os meus interlocutores de pesquisa em detrimento da norma culta
da língua.

glossario-das-desidentidades-MIOLO.indb 220 13/09/2023 07:13


poliamorista 221

poliamorista no amor, em detrimento do sexo, pode ser compreendida


ainda como uma defesa contra a associação das relações não monogâ-
micas à promiscuidade, estigma que se acentuou com a epidemia de HIV.
Ademais, é importante considerar que a legitimação do divórcio, a defesa
da igualdade de gênero e a crítica à heteronormatividade, intensificadas
na segunda metade do século XX, foram elementos indispensáveis para a
emergência do termo. (PILÃO, 2017)
Desde o surgimento do poliamor, a internet foi o principal veículo de
interação entre poliamoristas, o que favoreceu a sua internacionalização.
Atualmente, há mais de 30 países com grupos que se destinam a trocar
experiências pessoais sobre poliamor, promover visibilidade e buscar con-
quistar direitos, como o reconhecimento jurídico das uniões poliamorosas.
No Brasil, a palavra poliamor ganhou circulação na virada do milênio. Em
2004, foi criada a comunidade “Poliamor Brasil” na extinta rede social
Orkut, principal veículo de comunicação entre poliamoristas brasileiros
até 2011, totalizando nesse período 1.791 membros. Foi a partir da atuação
na mídia de Regina Navarro Lins que um debate público sobre o poliamor
foi iniciado no Brasil, em 2007. Muitos(as) poliamoristas afirmaram ter
conhecido o poliamor a partir de declarações, publicações ou entrevistas
concedidas por essa psicóloga, identificada à época como a principal repre-
sentante pública dessa ideologia relacional. (PILÃO, 2017)
A Rede Pratique Poliamor Brasil (RPPB) foi criada por lideranças polia-
moristas, em 2011, com o objetivo de unificação e de transformação do
poliamor em um movimento social. A definição utilizada pelo grupo foi:
“Pratique Poliamor Brasil é uma rede de apoio, conhecimento e militância”.
Esses(as) poliamoristas acreditavam que não se devia restringir a prática
do poliamor ao âmbito privado, por isso buscavam aumentar sua visibili-
dade e romper com os significados negativos da prática, a fim de possibi-
litar que todos(as) aqueles(as) que não se adéquam à monogamia tenham
um caminho legítimo.
No dia 22 de maio de 2011, foi criado no Facebook um grupo homônimo
que se tornou, em 2012, o principal veículo de troca entre poliamoristas bra-
sileiros(as). Uma das iniciativas da rede foi encontrar suporte jurídico para
o reconhecimento da primeira escritura de “União Poliafetiva” do Brasil,
entre duas mulheres e um homem, realizada no Tabelionato de Notas de
Tupã, em São Paulo, no dia 13 de fevereiro de 2012. As controvérsias rela-
cionadas ao reconhecimento do poliamor como entidade familiar contri-
buíram decisivamente para a disseminação desse termo no país e para a
sua inclusão na agenda dos debates públicos. (PILÃO, 2020)

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222 Antonio Cerdeira Pilão

Com a “popularização” do poliamor, um número crescente de grupos


dedicados ao tema foi criado no Facebook, de modo que a RPPB passou a
ocupar, desde 2013, uma posição secundária, reunindo comparativamente
um menor número de membros e de mensagens trocadas. Diferentemente
da RPPB, que tinha a militância contra a monogamia compulsória como
proposta fundamental, predominaram nos grupos mais recentes publica-
ções de pessoas que buscavam, sobretudo, encontrar parceiros(as), sem
debater teórica e politicamente sobre a monogamia. Nesse sentido, é pos-
sível afirmar que enquanto nos primeiros anos de circulação da categoria
poliamor no Brasil a identidade poliamorista esteve concentrada, princi-
palmente, entre jovens, com alto nível de escolaridade, ideologicamente
identificados(as) com a esquerda e críticos ao status quo, com a sua dis-
seminação, a privatização e a despolitização do tema foram acentuadas.
É importante destacar que desde os primeiros debates sobre o poliamor
no país se manifestam discursos que expressam resistência à busca da cons-
tituição de uma identidade poliamorista e de um movimento político a ela
associado. (PILÃO, 2015) Nesse sentido, uma interlocutora afirmou na refe-
rida comunidade “Poliamor Brasil” que:

Eu me considerava mais poli[amorista] antes de entrar para um grupo


de discussão, porque vivi uma relação poli[amorosa] sem stress, sem
ter que conceituar e sem ter outras pessoas tentando padronizar e
criar uma tese sócio-política do que eu vivo e faço [...] Não me inte-
ressa muito a questão das nomenclaturas e regras ou de transformar
o poli[amor] num movimento político e exigir que a sociedade reco-
nheça o casamento poli[amoroso] ou que inventem uma lei para punir
pessoas polifóbicas. Gostaria de ter liberdade de viver meus relaciona-
mentos em paz, sem ter necessidade de validar alguma forma [espe-
cífica], conceituar e racionalizar muito. (grifo nosso)

Outro interlocutor reforça esse argumento, confrontando o intuito de


uma padronização conceitual e identitária associada ao poliamor:

Não sei se quero o carimbo de poliamorista ou outro ista, porque sou


quem sou. Andei lendo e relendo muitos tópicos e muitas coisas dizem
que eu poderia, sim, me encaixar em mais essa definição. Mas não vem
ao caso porque minha tribo é a dos inimigos da normalidade [...]. Caso
você [moderador da comunidade Poliamor Brasil] tenha um modelo
de poliamorista bonitinho que se adeque às suas idealizações poste
aqui. Quem sabe alguém tope se adequar, porque eu, caro, não calço
bota de ferro de ninguém. (grifo nosso)

glossario-das-desidentidades-MIOLO.indb 222 13/09/2023 07:13


poliamorista 223

É possível destacar a existência de um paradoxo na construção das iden-


tidades poliamoristas, já que ainda que os(as) interlocutores(as) sintam a
necessidade de se reconhecer como um grupo – utilizando conceitos e cate-
gorias comuns – temem que, ao fazê-lo, percam a sua autenticidade e sin-
gularidade. Essa tensão também pode ser observada em uma entrevista
(PILÃO, 2015), quando a interlocutora diz que, embora se sinta desconfor-
tável com o emprego de “rótulos”, vê a adoção da categoria poliamorista
como indispensável para a expansão da liberdade amorosa:

Não gosto muito de definições, rótulos, mas ultimamente eu tenho


visto uma necessidade política disso, talvez seja um mal necessário que
eu me afirme dessa maneira, para que todas as pessoas que estejam
envolvidas no processo e que não sabem que existe esse tipo de rela-
cionamento possam também viver de uma forma mais confortável,
sejam mais toleradas na sociedade.

É necessário ressaltar a existência de uma variedade de posições em


torno da difícil articulação entre identidade poliamorista e individua-
lidade. Em um extremo, recusa-se, definitivamente, qualquer categori-
zação de si. Em outro, considera-se a categoria poliamorista como uma
expressão de sua verdade. Como na declaração da entrevistada, posições
mais alinhadas ao “essencialismo estratégico” (SPIVAK, 1999) buscaram
articular esses extremos, afirmando simultaneamente que cada um é
único e, portanto, irredutível à categoria poliamorista, mas que é neces-
sário desconsiderar as diferenças individuais a fim de alcançar resultados
políticos efetivos.
Em meio à expansão da visibilidade do poliamor no Brasil, outro grupo
não monogâmico ganhou notoriedade no país, as “relações livres” (RLi).
(BARBOSA, 2011; BORNIA JUNIOR, 2018; PILÃO, 2017) Esse modelo de não-
-monogamia, elaborado conceitualmente nos anos 2000, em Porto Alegre,
tem a liberdade como valor inegociável. Desse modo, os(as) RLis – pessoas
identificadas com a prática das “relações livres” – criticavam a ênfase polia-
morista no amor em detrimento do sexo, bem como a adoção de acordos
conjugais restritivos, especialmente a polifidelidade. A RLi e o poliamor
foram, no início do século XXI, os únicos grupos não monogâmicos com
defensores(as) públicos(as) e militâncias organizadas no Brasil. Ambos
os termos “RLi” e “poliamorista” se constituem como possíveis lugares
de sujeito(a), análogos ao ocupado pelas identidades sexuais e de gênero.
Tratam-se, portanto, de mecanismos de distinção e identificação, em que

glossario-das-desidentidades-MIOLO.indb 223 13/09/2023 07:13


224 Antonio Cerdeira Pilão

certos indivíduos e grupos constroem uma visão de si e dos outros orien-


tada por essas categorias.
A intensificação das relações entre RLis e poliamoristas, a partir de
eventos conjuntos e de debates em ambientes virtuais, favoreceu o cresci-
mento de questionamentos sobre as suas semelhanças e diferenças. Mesmo
que se vissem como aliados(as) no combate à monogamia compulsória, suas
vozes disputaram hegemonia e protagonismo no movimento não monogâ-
mico, procurando demonstrar que cada um detinha a melhor solução para a
superação da exclusividade afetivo-sexual. Nesse processo, não foram raras
as tentativas de desqualificação do(a) outro(a), de maneira a atribuir a si o
caminho eficiente e politicamente engajado de resistência à monogamia.
(PILÃO, 2017) Em comum, há o fato de poliamoristas e RLis enfrentarem
a mononormatividade a partir da construção de outras normatividades,
demarcando fronteiras e hierarquias entre os diversos arranjos conjugais.
Como consequência, a manutenção de espaços de inferiorização de pessoas
e práticas que fogem aos princípios defendidos pelo grupo.
Apesar de um certo ideal de unidade política não monogâmica ter sido
comprometido pela tensão entre poliamoristas e RLis, no final dos anos
2010, essa distinção perdeu força no plano das identidades individuais,
crescendo o uso das categorias comuns não-monogamia e não-monogâ-
mico. Desse modo, observa-se o retraimento da ideia de que há um modelo
de relação que expressa a verdade de si, destacando-se o entendimento das
práticas como contingentes e variáveis.
No lugar das certezas identitárias, certezas sobre o que não se é, qual
seja, “monogâmico(a)”. A propensão ao reconhecimento de si e dos seus
relacionamentos como “não monogâmicos(as)”, no lugar de “poliamorista”
ou “RLi”, parece promover uma sensação de maior autonomia e flexibili-
dade. Com isso, as pessoas se veriam como capazes de incorporar às suas
possibilidades outras práticas sexuais, arranjos conjugais e moralidades.
Se no contexto anglo-americano o termo poliamor foi historicamente substi-
tutivo da expressão não-monogamia, vemos no Brasil um percurso inverso,
de modo que a categoria “relações não monogâmicas” tem ganhado visibi-
lidade apenas nos últimos anos, por vezes, inclusive, suplantando a iden-
tidade poliamorista.

glossario-das-desidentidades-MIOLO.indb 224 13/09/2023 07:13


poliamorista 225

REFERÊNCIAS
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Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2018.

CARDOSO, D. Amando vári@s – Individualização, redes, ética e poliamor. 2010.


Dissertação (Mestrado em Ciências da Comunicação) – Faculdade de Filosofia e
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PILÃO, A. C. “Por que Somente um Amor?”: um estudo sobre poliamor e relações


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PILÃO, A. C. Direitos em disputa: a controvérsia monogamia/poliamor no sistema


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POLIAMORISTA. In: MICHAELIS moderno dicionário da língua portuguesa.


São Paulo: Melhoramentos, 2015. Disponível em: https://michaelis.uol.com.
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8 maio 2021.

glossario-das-desidentidades-MIOLO.indb 225 13/09/2023 07:13


226 Antonio Cerdeira Pilão

POLIAMOROSO. In: MICHAELIS moderno dicionário da língua portuguesa.


São Paulo: Melhoramentos, 2015. Disponível em: https://michaelis.uol.com.
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SILVÉRIO, M. S. Eu, tu... ilus: poliamor e não-monogamias consensuais. 2018.


Tese (Doutorado em Antropologia) – Escola de Ciência Sociais e Humanas,
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SPIVAK, G. Critique of Postcolonial Reason. Cambridge: Harvard University Press,


1999.

glossario-das-desidentidades-MIOLO.indb 226 13/09/2023 07:13


227

PUTO

Victor Hugo de Souza Barreto

O que é ser puto? Ou melhor seria perguntar, o que é o “devir-puto” ou


o “devir-putaria”, visto que se trata mais de um atravessamento, de um
fluxo de desejo atualizado numa performance do que de uma identidade
específica? Em minhas pesquisas etnográficas sobre práticas homoeróticas
em diferentes contextos na cidade do Rio de Janeiro – tais como prosti-
tuição masculina, organização de eventos para sexo coletivo entre homens
e práticas sexuais tidas como “de risco”, como sexo bareback e sexo pig
(BARRETO, 2017a, 2017b, 2019b, 2020) – foi possível perceber a repe-
tição e o uso constante da categoria “putaria” entre meus interlocutores.
Percebo também o uso do termo “safadeza”, mas me parece que esse seria
um nível abaixo do que a “putaria” é colocada, se usássemos uma escala de
intensidade. Ambos são termos valorativos, adjetivam alguém que “puxa os
limites” ou que tem uma performance que chama a atenção: “esse é putão”,
“você curte uma putaria de verdade”, “você é muito puto”. Ao mesmo tempo
são usados para valorar as práticas efetuadas e o próprio ambiente, sempre
como meta a ser buscada.
Inicialmente a interpretei como um simples adjetivo, próximo à con-
cepção sexualizada comum. Porém, ao longo das pesquisas, percebi que a
ideia de “putaria” tinha uma maior densidade do que eu imaginava entre os
participantes daquelas práticas. Há nesse termo uma produção conceitual
própria de um princípio que não só é organizador e avaliador das práticas

glossario-das-desidentidades-MIOLO.indb 227 13/09/2023 07:13


228 Victor Hugo de Souza Barreto

e das interações, como também produz formas de subjetivação vividas em


gramáticas de intensidade que refletem a putaria enquanto um modo sin-
gular de engajamento no mundo, produzindo uma subjetividade especí-
fica e desejada: o “puto”.
É claro que esse termo não é restrito aos espaços de interação homoeró-
tica. A palavra “putaria” costuma ser usada em outros contextos, principal-
mente naqueles relacionados a acusações de bagunça e desordem. Trata-se
de um termo de valoração moral: “isso daqui virou uma putaria”, ou seja,
tornou-se caótico, anárquico, um espaço no qual não se respeitam mais as
regras e os valores; em que não se trabalha ou não se leva nada a sério; no
qual a moralidade se perde ou se dilui; em que as pessoas envolvidas e que
praticam o que se está tachando de putaria são associadas a figuras que
carregam estereótipos negativos: malandros, vagabundos, bandidos, per-
vertidos, corruptos, enfim, àqueles que se contrapõem aos elementos tidos
como moralmente valorizados em nossa sociedade.
“Putaria”, tal como elaborada e utilizada nessas práticas homoeróticas,
são agenciamentos em que o êxtase marcaria o descentramento de si, uma
experiência no plano do sensorial percebido pelos sujeitos como desafiante
de outros aspectos de suas vidas (como família, trabalho, saúde, religião,
por exemplo). O que a experiência ou, melhor dizendo, a experimentação
da sexualidade nessas práticas parece colocar em jogo são outros modos de
subjetivação e corporalização, modos propriamente intensivos, em que a
intensidade do instante de vida (ou de gozo) pode até se impor, ou colocar
em suspensão, aspectos e valores que compõem, de acordo com Duarte
(1999), o investimento de uma vida em sua duração a longo prazo, como as
citadas acima: família, trabalho, saúde, religião. Essas práticas de que falo,
atualizam a todo momento uma tensão entre intensidade e “mundo exten-
sivo”. (BARRETO, 2019a)
“Ir para a putaria”, ou seja, a própria ida a esses eventos, tal como me
apresentam seus participantes, é um acontecimento de “jogação”, de “safa-
deza”, de “brincadeira” que precisa guardar uma relação de equilíbrio com
as outras áreas da vida dessas pessoas. Os homens (cisgêneros em sua quase
totalidade) que frequentam esses espaços não trabalham em uma lógica
disjuntiva. A maneira como eles parecem lidar com os diferentes “mundos”
e “categorias” em que vivem assemelha-se muito mais a uma lógica da
conjunção. O que não quer dizer que elas se misturem. A maioria das pes-
soas com quem conversei, por exemplo, afirma preferir que a ida a esses
lugares não seja do conhecimento de amigos e familiares, sem contar o
fato do número representativo de pessoas casadas ou em alguma forma de

glossario-das-desidentidades-MIOLO.indb 228 13/09/2023 07:13


puto 229

relacionamento que também aparecem nesses espaços (nem sempre acom-


panhados de seus parceiros, caso eles sejam homens cisgêneros também).
O desafio aqui, inclusive carregado de erotismo, é saber gerenciar a putaria
com o restante. Aproxima-se de uma ideia de “hedonismo competente”
(EUGÊNIO, 2006), uma competência em saber articular os compromissos
da vida cotidiana com as práticas de “perdição”, de êxtase.
A transgressão se daria, para os putos, não apenas pelo exercício dessas
práticas sexuais, mas pelo próprio movimento em relação à deriva dese-
jante, ou seja, pela busca dessas interações e pela possibilidade de “devir-
-puto”. Esta última implica uma maneira específica e singular de habitar
o mundo e de percorrer certos territórios urbanos (como a rua, saunas,
cinemas eróticos, banheiros públicos, aplicativos de pegação para celular
e as festas de orgias organizadas), implica em uma disponibilidade para o
novo, um engajamento em um encontro com um outro (ou outros) que na
maioria das vezes é e permanece como desconhecido(s) e anônimo(s), e em
uma vontade de nomadização. O desejo sexual é chave na deriva e, como
estilo de sexualidade, ela não existe como resultado do vazio ou da solidão,
e sim como uma defesa da mobilidade e da fugacidade, uma configuração
própria de produção desejante. (GUATTARI; ROLNIK, 2005)
O que eu chamo em meus trabalhos de “princípio da putaria”, dessa
forma, funciona como ponto nodal nessas práticas, ele dá diretrizes não
só de performance, mas da própria ética local, balizando as relações entre
os participantes.1 O puto não é só uma subjetividade, mas uma forma de
subjetivação que inclui, dentre outras coisas, roteiros de desejo, formas de
relação, maneiras de se portar, éticas locais, um proceder. (BARRETO, 2018)
O puto produzido pelo “princípio da putaria”, portanto, é aquele que
se destaca durante as interações sexuais pela manipulação dos elementos
eróticos e da produção desejante desses eventos. É aquele que aciona, cap-
tura e intensifica o desejo do(s) outro(s) a partir dos incessantes encontros

1 Em Barreto (2017a), explico que analisei as práticas sexuais coletivas masculinas a partir daqui-
lo que eu chamei de “princípios”, ou seja, dos pontos nodais com os quais meus interlocutores
organizavam esses eventos, tanto em sua ética local quanto em roteiros sexuais corresponden-
tes. São três: o “princípio da masculinidade” (no qual se demonstra toda a importância de va-
lorização de uma determinada performance de gênero, a de uma “masculinidade exagerada”);
o “princípio da discrição” (em que se explicitam práticas e formas de se relacionar que valori-
zam o segredo, o anonimato, a escuridão e a desidentificação); e o “princípio da putaria” que
destaco no presente verbete. Estes princípios são os responsáveis pela produção subjetiva valo-
rizada nesses espaços: a do “macho”, “discreto” e “puto”. Sendo este último, também perceptí-
vel nos outros cenários etnográficos estudados.

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230 Victor Hugo de Souza Barreto

estabelecidos. Tentativa árdua a de circunscrever um conceito como o da


“putaria”, já que ele, assim como o puto, quer o tempo todo escapar para ter
mais encontros, formar mais ligações, conexões, deriva constante em busca
dos corpos, frisson pelos corredores, ruas e dark rooms em busca de mais
prazer. Máquina que se acopla a outras, que não quer ser apreendido, cap-
turado, retido, reprimido. Quer fugir. Daí os espaços de sexo grupal ou cole-
tivo, como as festas de orgia, ser o território onde a “putaria” pode alcançar
maior potencialidade, não só pela maior possibilidade de conexões como
também de disposições territorializadas ali. Ao invés de circunscrever,
melhor acompanhar os diversos caminhos desses desejos da “putaria”.
Trago dois elementos para pensar melhor sobre esse conceito e conseguir
visualizar o puto em sua diferença: primeiro a sua contraposição ao que
eles chamam de “romance” e depois o elemento variável da “disposição”.
Que mundos são esses, o da “putaria” e o do “romance”? Nesses espaços
eles se contrapõem, no discurso principalmente, mas podem se atravessar
e se condensar: não é porque você está “fazendo sexo” ou “fodendo” que a
interação não possa ser afetuosa, no sentido de não ter carinhos ou beijos.
Da mesma forma, durante os encontros coletivos, casais se fazem e se des-
fazem a todo momento, a duração do encontro ou da relação depende da
vontade de cada um e da intensidade do encontro. A meu ver, a diferença
fundamental entre “putaria” e “romance” é dada em termos de movimento
e de velocidade.
Na “putaria”, o puto produz um movimento de circulação permanente,
rápido, de deriva constante. Os homens que participam dessas práticas estão
o tempo todo se locomovendo pelos espaços da sauna ou do território em
que tal evento ocorre, sempre na espera e na busca do encontro. Não param
e não podem parar se querem, de fato, fruir da intensidade da “putaria”;
não ficam o tempo todo no mesmo lugar esperando que alguém se apro-
xime; ficam em movimento procurando se encaixar em alguma interação.
O que há são as pausas para os breves encontros, aproximação de corpos
(sejam os desconhecidos ou os “preferidos”), que interagem até o esgota-
mento daquela intensidade e que, logo a seguir, retomam trajetórias inde-
pendentes. O “romance”, ao contrário, fixa ou freia o movimento, força a sua
lentidão, essa é a diferença; faz com que esses corpos se retirem da deriva
constante e se estabeleçam em um ponto fixo do espaço. No “romance” se
é capturado ou se deixa capturar naquele encontro e, ao mesmo tempo,
impede-se a aproximação de outros corpos na composição. É quando acon-
tece uma interação que não permite a “ligação” de outros corpos. Quando
um casal se tranca na cabine de alguma sauna, por exemplo, ou quando se

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puto 231

escondem em algum canto do dark para ter uma interação “fechada” a dois,
ou quando um grupo pequeno decide que vai interagir sexualmente apenas
entre eles, não desejando a observação ou participação alheia. “Ficar de
romance” é o comportamento mais indesejado em uma “putaria” porque
fere a ética local.
Mas ser puto não é só estar à deriva por esses territórios se mostrando
disponível para as interações, é também preciso ter e mostrar “disposição”.
A “putaria”, além de pautar e qualificar as práticas, os participantes e
o ambiente, é uma potência oriunda das vontades e impulsos dos partici-
pantes dos encontros, como uma “disposição”. O elemento da “disposição”
é sempre acionado nas falas de meus interlocutores como o elemento vari-
ável e individual, ou seja, da competência de cada um e que faz variar a
intensidade da potência da “putaria”. Ainda que não seja encarado numa
chave essencialista (poderíamos parafrasear a famosa frase beauvoiriana:
“não se nasce puto, torna-se puto”).
“Disposição”, no contexto da “putaria”, é uma escala variável do tamanho
da “vontade de fazer sexo” ou da quantidade de desejo para as interações.
Ao mesmo tempo, a “disposição” também se aproxima de uma variação
qualitativa e mais performática. Ter “disposição” não é só sentir muita von-
tade de fazer sexo, mas também saber bem como fazê-lo nesse contexto,
destacar-se através dela. É algo que se percebe na prática, na performance.
É aquele cara que não fica escolhendo muito os parceiros, que não é “exi-
gente”, que não fica “de frescura” ou “de nojinho”.
O corpo e como ele age/reage à “putaria” é, portanto, fundamental para
a definição do status dos agentes nesse contexto de interação sexual cole-
tiva e, consequentemente, como veículo privilegiado para as estratégias de
distinção, sendo, simultaneamente, por elas condicionado.
E é aqui que se encontra o potencial de “disrupção” do “princípio da
putaria”, na medida em que os participantes se “jogam” nas experiências
intensivas das interações, há a possibilidade de torções de normas de gênero,
de suspensão momentânea ou borramento das hierarquias normativas dos
corpos e o aparecimento de “fissuras” nas relações. (DÍAZ-BENÍTEZ, 2015)
A chave para entender o desejo e o prazer na prática da “putaria”, dessa
forma, se encontra na pergunta de inspiração spinozista e também deleu-
ziana: “o que pode o corpo?” Essa pergunta não é minha no sentido de que
não sou eu que a está trazendo de fora. Ela é colocada a todo momento
por esses homens em prática a cada ida nesses eventos, cada interação é
uma oportunidade para se testar: “quais os meus limites? o que eu posso
fazer? o que o outro pode fazer? até quanto eu ou ele aguenta?”. Seja numa

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232 Victor Hugo de Souza Barreto

questão quantitativa (de “quantos cus eu comi”, para “quantos caras eu


dei”, ou “quantas vezes eu gozei”), mas também qualitativa, de intensidade
das interações, “até onde eu aguento nesse encontro?”, “mais forte ou mais
calmo, mais rápido ou mais devagar?”, “está me machucando, mas perma-
neço aqui ou não?”, “qual o meu limite?”; “o que podem os nossos corpos?”.
Ela é feita até mesmo na perda da conta das interações realizadas durante
algum evento.
Vivemos acreditando que existe um limite pré-determinado para nosso
corpo, acredita-se que já sabemos o que ele pode e existe sempre um espe-
cialista para determinar aquilo que nossos corpos são capazes ou não de
fazer. Só que o que algumas experiências intensivas (como drogas, música,
bebidas, esportes radicais, sexo e experiências religiosas) colocam são expe-
rimentações que empurram, contornam, atravessam, enfim, retraçam as
linhas de nossos limites. (FERREIRA, 2006; PERLONGHER, 2012; ROCHA,
2011; VARGAS, 2001) O que os participantes desses encontros colocam em
prática pelo “princípio da putaria” é essa experimentação intensiva de seus
próprios limites. Esses cenários etnográficos se tornam verdadeiros labo-
ratórios de experiências com o próprio corpo.
Chamar a atenção para essas experimentações não é invisibilizar os
riscos possíveis em prol de uma valorização do gozo e dos prazeres, nem é
dizer que os meus interlocutores fazem isso. Ainda mais que muito do desejo
e do prazer nas práticas analisadas vem justamente de uma certa erotização
dos riscos e perigos, e não do desconhecimento deles. (BARRETO, 2017b)
O que meus interlocutores parecem estar produzindo nessas interações na
“putaria” são concepções outras, concepções próprias de “saúde”, “doença”,
“cuidado” e “risco”. Concomitantemente, técnicas de si (FOUCAULT, 2013)
também são criadas para lidar com essas tensões.2
Ao contrário do que se possa imaginar sobre um evento orgiástico, não
imperaria um descontrole sem regras ou um “desgoverno de si”. Muito
pelo contrário. Mesmo entre os participantes dos grupos de práticas mais

2 Falta-me espaço neste verbete para descrever em detalhes as técnicas que conformam uma cer-
ta “ciência do concreto” de meus interlocutores em suas práticas sexuais e na maneira como
criam uma bricolage entre conhecimentos vindos da medicina e outras ciências e saberes in-
corporados vindos de suas percepções sensoriais. Essa “ciência do concreto” está na base de
suas concepções de “doença” – enquanto um processo que se constrói numa prática, relacional
e contextualmente – e ser “saudável”, aqui, é cuidar-se e proteger-se não dentro de uma lógica
ou discurso estatal necessariamente, mas sim a partir de uma hierarquia de riscos própria ten-
sionada constantemente por uma valorização do prazer. Para mais detalhes, conferir Barreto
(2017b, 2019b, 2020).

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puto 233

extremas, como o sexo pig, há a preocupação de se afirmar que suas prá-


ticas partem de valores como a “responsabilidade”, o “consentimento” e
o “cuidado”. O que meus interlocutores estão chamando atenção é para o
fato deles serem responsáveis e conscientes dos riscos possíveis nas prá-
ticas em que se estão engajando, ao mesmo tempo que são autônomos e
livres para todas as escolhas possíveis (desde que tomadas de forma cons-
ciente e que sejam consentidas por todos os presentes); e que também são
atentos a alguma forma de cuidado, mesmo que seja no gerenciamento dos
riscos (como nos cuidados com a prevenção de doenças).
O fato de perceber a prática da “putaria” como um território privile-
giado de singularidade e de usos outros do corpo tampouco quer dizer que
não perceba o quanto ela é atravessada pelos chamados marcadores sociais
da diferença (como classe, idade, status, cor da pele, por exemplo), seja na
configuração de desigualdades, seja na própria composição de prazeres.
Pelo contrário, é possível perceber uma tensão constante nesse sentido.
São parte importante, portanto, da economia libidinal desses territórios,
em que hierarquias sociais tensionam libidinalmente a maneira como se
organiza o erotismo, seus desejos e suas práticas locais. (PERLONGHER,
1987; GREGORI, 2016)
O que o espaço deste verbete me permite dizer, por ora, é que esses
eventos possuem um ritmo, um tempo que alterna momentos de maior ou
menor intensidade. Há tempos e espaços de efervescência, de descanso, de
torpor e de reativação dos prazeres. Estou chamando a atenção nesse tra-
balho tanto para a busca quanto para os próprios momentos de “picos de
intensidade”, em que o “devir-puto” acontece. São esses momentos de efer-
vescência que, estou dizendo, têm a potência de criar “fissuras” e de borrar
esses marcadores, colocando todos num plano no qual o que importa, o
que diferencia, o que singulariza esses atores é sua “disposição” na putaria,
sua desenvoltura durante os encontros, seja aumentando ou diminuindo a
potência das “ligações”, seja catalisando e/ou capturando o desejo do outro,
enfim, sua capacidade de dar ou receber prazer.
A “putaria” e sua produção subjetiva, o puto, são modos de intensi-
dade, portanto. Sendo o puto a forma de distinção local para aquele que
sabe/consegue manipular os fatores que aumentam ou diminuem a inten-
sidade das interações, independentemente desses marcadores de dife-
rença, ou apesar deles.

glossario-das-desidentidades-MIOLO.indb 233 13/09/2023 07:13


234 Victor Hugo de Souza Barreto

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DUARTE, L. F. D. O império dos sentidos: sensibilidade, sensualidade e


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puto 235

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Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2001.

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237

SAFICRENTE

Louise Tavares Oliveira do Nascimento

A Igreja Vale das Bênçãos é um grupo virtual formado por mulheres lésbicas,
bissexuais e pansexuais, tendo em torno de 60 membros das mais variadas
regiões do Brasil e também do exterior. O início do grupo deu-se durante a
pandemia do novo coronavírus, em meados de maio de 2020, e teve como
intuito central promover cultos virtuais (webcultos) mensais, com destaque
para as Santa-Ceias. Desse modo, a congregação Igreja Vale das Bênçãos
busca ser um espaço de acolhimento de vivências sapatonas cristãs. Por isso,
o que é tratado no cotidiano do grupo relaciona-se com questões impor-
tantes na vivência de mulheres LBT, principalmente, em práticas como a
“saída do armário” e as relações com os familiares e a igreja. Logo, o grupo
surgiu como uma alternativa para que essas mulheres vivessem a religio-
sidade cristã, em sua maioria evangélica e católica, de forma considerada
“inclusiva” ou “afirmativa”.
Fátima Weiss de Jesus (2012) coloca em sua tese que a internet tem sido
a forma em que muitos grupos de cristãos LGBT estão encontrando espaços
de luta e acolhimento. A (des)identidade discutida aqui surge a partir do
meu trabalho de campo para uma pesquisa de mestrado. De forma resu-
mida, minhas explorações iniciaram-se em maio de 2021. Por meio do con-
tato diário nas conversas em redes sociais, venho familiarizando-me com
o campo. Desenvolvo uma netnografia, ou seja, um trabalho de campo que

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238 Louise Tavares Oliveira do Nascimento

se dá pela mediação técnica da internet. (MERCADO, 2012) Essa é minha


forma de estar mergulhada na experiência em período pandêmico.
Existe um tipo de sociabilidade bem marcante no grupo que orbita entre
a fronteira “gospel” e “lésbica”, uma fronteira que estou investigando. Foi
assim que fiz meu primeiro contato “no privado”1 com a Bel, uma mulher
negra, bissexual e de tradição pentecostal. Foi por meio dela que me senti
mais segura para participar ativamente nos debates do grupo. Ela também
foi umas das responsáveis por incentivar-me a estudar o grupo e os cultos.
Bel também me ouvia sem reservas. Na medida em que as possibilidades de
amizade e acolhimento foram abrindo-se, percebi que era importante não
só participar, mas saber o que era dito entre elas, por exemplo, com o uso
de gírias: lesbianbait, lesbofofoca, sáficas, lesbicrente, tesourinha, cultura
da pureza, celibato e a (delicada temática) cura gay. Nesse contexto, o con-
ceito saficrente emergiu por meio de uma fala feita por Thay, uma das mais
articuladas e experientes participantes da congregação. Outras mulheres
do grupo começaram a utilizá-la para referir-se a todas as participantes da
Igreja Vale das Bênçãos.
Para esclarecer o sentido da (des)identidade saficrente, fiz questio-
namentos por meio das redes sociais. “Joguei” a seguinte mensagem no
grupo de WhatsApp da Igreja Vale das Bênçãos, com o intuito de compre-
ender o significado da palavra: “Para vocês o que significa saficrente?”.
(TAVARES, 2021) Thay, que se declarou responsável por ter cunhado o
termo dentro do grupo, respondeu que o termo “sáfica” abrangeria as
mulheres lésbicas e as bissexuais também, com o fato de serem “crentes”.
Ela defendeu ainda que todas ali poderiam ser (e eram de fato) referidas
como saficrentes. Foi assim que ela me trouxe uma definição para esse
neologismo. Thay2 assegurou:

[12:07, 12/05/2021] Sáfica é o termo usado para se referir às mulheres


que se relacionam com mulheres. Lésbica é um termo para deter-
minar mulheres que se relacionam exclusivamente com mulheres.
Já uma mulher bissexual e pansexual também pode se relacionar
com mulheres, mas não de forma exclusivista. Sáfica é o termo que

1 O WhatsApp é um aplicativo de mensagens em que a comunicação pode se dar por meio de


grupos ou individualmente. Dessa forma, quando se quer falar apenas com uma pessoa que faz
parte de um grupo é necessário chamá-la no privado.
2 Trecho retirado de uma conversa no WhatsApp, para pesquisa de mestrado que venho desen-
volvendo. Ver nas referências: Amaral (2021).

glossario-das-desidentidades-MIOLO.indb 238 13/09/2023 07:13


saficrente 239

vai abarcar todas as relações femininas. Saficrente foi um neolo-


gismo, essa palavra não existe, eu que falei aqui uma vez para me
referir a nós, que somos sáficas e também crentes, quer dizer, agora
a palavra existe, né! (grifo nosso)

O que essa categoria nativa quer mobilizar em termos de (des)iden-


tidade? A categoria marca, politicamente, que dentro da Igreja Vale das
Bênçãos é possível ser “sáficas e crentes”, ao mesmo tempo: “saficrentes!”.
A criação da palavra faz circular a necessidade de se viver uma religiosi-
dade diversa e plural. Assim, defende-se que definições não se dão apenas
pelo significado “cru” da palavra ou por seus fonemas. As palavras colocam-
-se como parte de discursos ou uma ordem de efetivação, como colocado
por Foucault (1996) em a Ordem do discurso. Donna Haraway (2004), por
exemplo, observa que há uma política das palavras, ao discutir o verbete
gênero na obra Gênero para um dicionário marxista. Busco, então, pensar
nos possíveis significados políticos das palavras, mais precisamente, nos
termos que emergem em meu campo, como esse que minhas irmãs de grupo
criaram e categorizam: saficrente.
Por isso, ainda sob algumas inquietações, questionei mais uma vez
sobre o sentido dessa palavra. Na congregação, em tom de brincadeira, ouvi
da Jojo, outra membra do culto que “saficrentes são mulheres que amam a
Deus sobre todas as coisas e outras mulheres como a si mesmas”. Lu então
completou: “Mulheres sáficas que descobriram que a mesa de Jesus também
é delas!”. Assim, essa última definição dada por Lu remete a algo muito
comum no grupo, que é a busca pela definição de um lugar no mundo e na
religião. As saficrentes buscam demarcar algo que é constantemente asso-
ciado, por elas mesmas, aos conceitos de Teologia indecente, propostos
por Musskopf e Ester (2020), ou seja, por uma fé e uma teologia que “saem
do armário”. A Teologia indecente seria uma proposta que busca abarcar a
perspectiva de gênero e de dissidências sexuais dentro do campo religioso, é
um modo de pensar Deus e a fé por meio da diversidade e pluralidade, algo
que deve ser problematizado, no sentido de compreender a força reativa e
o contexto dessa proposta em relação à moralidade cristã heterossexual.
Nesse sentido, como colocado anteriormente por Thay, “Moça, viver
seu desejo é revolução!”. As saficrentes estão ali para demonstrar que
amar outras mulheres também é ser parte da mesa de Deus. Diante disso,
é necessário pensar que o gênero aqui pode ser visto na perspectiva dis-
cutida por Judith Butler (2017), como algo performativo e, por vezes, sub-
versivo. Essa última observação é importante, porque esse fator de desejo

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240 Louise Tavares Oliveira do Nascimento

“revolucionário” apresenta-se em resposta a situações comuns e tangíveis


de abandono e exclusão por outras instituições religiosas e as famílias das
saficrentes. Mesmo assim, essas mulheres não abrem mão da fé em Deus.
Por isso, a Igreja Vale das Bençãos busca a conciliação entre a religiosidade
e a sexualidade. Fátima Weiss de Jesus (2012), ao estudar uma outra “igreja
inclusiva”, demonstra como a religião produz sentidos e discursos de per-
tencimento e que grupos LGBT têm buscado cada vez mais espaços para a
expressão desses sentidos. Assim, é sob esses termos que saficrente ajuda
a efetivar uma experiência religiosa diversa.
Nesse contexto, busco estudar como mulheres sáficas reivindicam um
lugar à “mesa de Jesus”.3 Por quais caminhos essas saficrentes conduzirão
tal reivindicação? Muitas das que estão na congregação foram criadas em
lares cristãos. Ser saficrente relaciona-se a um desejo de reconhecimento, o
termo cria as condições, em uma nova linguagem, para que mulheres lés-
bicas possam continuar a serem cristãs de maneira mais inclusiva, buscando
superar o desconforto e estigmas relacionados à sexualidade e à religião. Isso
fica ainda mais claro nos momentos de partilha nas ­Santa-Ceias, quando
se declara: “Bebam e comam, porque vocês são parte do corpo de Cristo”.
Ou quando, em momentos de dor, ansiedade e angústia elas repetem:
“Você não está só!”. É sob esse plano que busca-se compreender os elementos
colocados por Rubin (2017) de que o pessoal é político. A maneira como
fé, gênero e sexualidade se entrelaçam nos sentidos produzidos por essas
mulheres (r)existe e reverbera diante das disputas em relação à identidade
evangélica, entre o conservadorismo e o progressismo.
Nesse sentido, a (des)identidade saficrente emerge de momentos de par-
tilha entre essas mulheres. De alguma maneira, o termo ajuda nos longos
e dolorosos processos de quem “já se assumiu” ou das que estão em pro-
cesso de “saída do armário”, de quem está “se descobrindo”. Assim, apesar
de ser um termo “novo”, é possível notar que existe uma quantidade de
longas histórias de vida que são representadas por ele. Como defendido por
Bauer e Gaskell (2002), narrativas são formas de compreender as experiên-
cias de grupos sociais. Portanto, saficrente é mais um elemento para se com-
preender a vida dessas mulheres sáficas e cristãs. Em entrevista informal
com Thay, ela reforçou que a palavra saficrente sintetiza bem o que o grupo
busca defender. Além disso, declarou que as outras meninas animaram-se

3 Metáfora utilizada em um dos cultos do grupo em que a passagem bíblica sobre o diálogo entre
a mulher cananéia e Jesus é reapropriada para se dizer que há uma mesa no Reino do Céus para
as mulheres sáficas. (BÍBLIA, N.T., Mateus) – Ver nas referências: Almeida (1864).

glossario-das-desidentidades-MIOLO.indb 240 13/09/2023 07:13


saficrente 241

com essa nova identidade. Para ela, o importante seria pensar sobre como
expandir os usos dessa palavra, como ampliar sua circulação para além do
grupo. Com esse intuito, e como aliada dessa congregação, escrevo este ver-
bete como um ato acadêmico e político, na esperança de que o neologismo
saficrente possa circular para muito além da congregação Igreja Vale das
Bênçãos. Assim, penso nos sentidos de troca e aproximação envolvidos em
trabalhos antropológicos, já que a partilha e a coletividade são razões da
própria existência do grupo de saficrentes.

REFERÊNCIAS
ALMEIDA, João Ferreira de. A Bíblia Sagrada, contendo o Velho e o Novo
Testamento. [Barueri]: Sociedade Bíblica do Brasil, 1864.

AMARAL, T. [Significado da palavra Saficrente]. WhatsApp: Igreja Vale das


Bênçãos. 12 maio 2021. 12:07. 50 mensagens WhatsApp.

BAUER, M. W.; GASKELL, G. Pesquisa Qualitativa com texto, som e imagem.


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Revista Teias, Rio de Janeiro, v. 13, n. 30, p. 15, 2012. Disponível em: https://
www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/revistateias/article/view/24276/0.
Acesso em: 20 ago. 2021.

MUSSKOPF, A. S.; ESTER, A. Teologia Queer: o necessário indecentamento da


teologia. Revista Senso, Belo Horizonte, n. 17, 2020. Disponível em: https://bit.
ly/2HhLYJV. Acesso em: 12 maio 2021.

glossario-das-desidentidades-MIOLO.indb 241 13/09/2023 07:13


242 Louise Tavares Oliveira do Nascimento

RUBIN, G. Pensando o sexo. In: RUBIN, G. Políticas do sexo. São Paulo: Ubu Ed.,
2017. p. 62-128. Publicado originalmente na obra ‘Thinking sex: notes for a
radical theory of the politics of sexuality’.

TAVARES, L. [O que seria saficrente?]. WhatsApp: Igreja Vale das Bênçãos. 12 maio
2021. 12:06. 49 mensagens WhatsApp.

glossario-das-desidentidades-MIOLO.indb 242 13/09/2023 07:13


243

SWINGER

Maria Silvério

O swing, também conhecido como troca de casais, pode ser definido como
uma prática em que casais heterossexuais mantêm relações sexuais com
outros casais na companhia da pessoa amada. (SILVÉRIO, 2014a, 2014b,
2014c, 2018) Uma das premissas é que o casal esteja junto durante o envol-
vimento sexual. Com o tempo, porém, esse aspecto muitas vezes é deixado
de lado, mas continua sendo importante que a pessoa amada participe da
escolha e concorde com quem a outra irá fazer sexo. (VON DER WEID, 2008)
Trata-se de uma prática entre casais heterossexuais, já que as casas
e festas de swing são voltadas para este público. Um casal de lésbicas,
por exemplo, poderia facilmente entrar como duas mulheres solteiras.
Lá dentro, encontrariam com quem se relacionar, pois a incidência da
bissexualidade feminina é alta. Apesar disso, as lésbicas esbarrariam no
fato das outras mulheres estarem com seus parceiros heterossexuais, que
provavelmente fetichizariam o ato sexual e tentariam dele participar.
Já um casal de homens tem o acesso dificultado ou mesmo impedido.
Tentar entrar como dois solteiros não vale a pena, pois o valor cobrado
costuma ser o dobro ou o triplo do preço do casal e o acesso é limitado
em dias e quantidade de homens solteiros. Além disso, a homossexua-
lidade masculina é um tabu no universo swinger e eles, muito provavel-
mente, não conseguiriam se envolver com outros homens. (NOGUEIRA,
2014; SILVÉRIO, 2014c)

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244 Maria Silvério

O objetivo do swing é o sexo casual, por puro prazer, através de um


envolvimento não íntimo, fortuito, arbitrário; uma resposta a uma demanda
exclusivamente fisiológica para satisfação momentânea; uma forma de viver
o desejo sexual livremente. (VON DER WEID, 2008) Por causa disso, é comu-
mente retratado como uma atividade na qual a interação sexual é conside-
rada recreativa para o casal (BERGSTRAND; SINSKI, 2010), que enxerga as
outras pessoas como objetos para o prazer sexual. Todas concordam com o
aspecto de que as outras estão ali para serem usadas e algumas até chegam
a falar que “[…] usam umas as outras como dildos vivos […]”.1 (MCDONALD,
2010, p. 78, grifo e tradução nossa)
A razão de ser do swing é a própria relação afetivo-sexual do casal,
sua estabilidade, manutenção, aprimoramento e fortalecimento. Uma de
suas principais características é a separação entre sexo e amor. Um casal
swinger se considera “amorosamente monogâmico” e “sexualmente poli-
gâmico”, trazendo para dentro do relacionamento a diversificação das rela-
ções sexuais sem abrir mão do ideal de exclusividade amorosa. (SILVÉRIO,
2014a, 2014b, 2014c, 2018)
Muitos casais afirmam que no swing “fazem sexo” e em casa “fazem
amor”, reforçando os princípios do amor romântico de complementari-
dade, interdependência e totalidade com a pessoa amada, assim como as
noções de que a relação é única, exclusiva e para sempre. Como explicam
alguns swingers, “o sexo ali é duro e cru, sem intimidade, carinho ou afeto”.
Geralmente esses casais são enfáticos em afirmar que a natureza humana
não é monogâmica, aspecto que justificaria a não exclusividade sexual.
Paralelamente, porém, a ideia de que é possível amar e se relacionar afe-
tivamente com mais de uma pessoa ao mesmo tempo é inconcebível.
Desta forma, a transgressão para a realização das fantasias sexuais ocorre
dentro do limite do próprio casal e as experiências são vividas somente se
forem permitidas pela parceria. Segundo Von der Weid (2008, p. 112, grifo
nosso): “A diferença fundamental e possível contradição dos casais swin-
gers é justamente a de querer realizar esta busca pelo prazer e satisfação
enquanto casal, não só preservando, mas também valorizando o vínculo
do casamento”.
Apesar de adotar comportamentos libertários no que diz respeito à
fidelidade conjugal, ao pudor e à promiscuidade, paralelamente, um casal
swinger prega valores que são conservadores sob qualquer ponto de vista.

1 Texto original: “using each other like live dildos […]”.

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swinger 245

De acordo com Nogueira (2014, p. 56): “É um meio que usa caminhos hete-
rodoxos para preservar uma instituição que ele considera sagrada: o casa-
mento monogâmico entre um homem e uma mulher”.
Quem é swinger geralmente considera a prática um estilo de vida, mas
há quem a enxergue como uma filosofia de vida ou uma forma de estar.
Algumas pessoas rejeitam o rótulo por não se considerarem totalmente per-
tencentes à comunidade e outras entendem como swing somente a troca
completa e excluem da categoria quem se envolve apenas em determinados
atos sexuais ou frequenta as casas e orgias somente ocasionalmente, sendo
estas reconhecidas como “pessoas liberais”.
No Brasil, algumas se intitulam “swingueiras”, às vezes grafado “suin-
gueiras”. De acordo com Fernandes (2009), é muito difícil identificar uma
pessoa swinger fora dos ambientes onde se reúnem, pois, exceto pela não
monogamia sexual, ela costuma ser extraordinariamente comum nos
demais aspectos de sua vida.
O swing permite uma variedade de práticas e fetiches sexuais que, entre-
tanto, não são exclusivos a este universo. Durante minha pesquisa de campo
e bibliográfica, observei que a troca completa (que envolve penetração com
alguém do outro casal e representa o que normalmente é chamado de swing)
não acontece com tanta frequência. Muitos casais preferem o voyeurismo
(prazer em assistir outras pessoas se envolverem sexualmente), exibicio-
nismo (prazer em ser observada durante o ato sexual), ménage feminino
(sexo a três envolvendo duas mulheres e um homem) ou troca leve (carí-
cias, beijos ou sexo oral entre os casais, sem ocorrer penetração com alguém
do outro casal).
Muitos casais vão juntos para um quarto, mas não se envolvem entre
si. O fato de estarem no mesmo ambiente já é estimulante para eles. Há
ainda aqueles que afirmam que a libido é consideravelmente despertada
com o simples fato de estarem em uma casa de swing, melhorando a inte-
ração entre o casal. Um aspecto notório é a ausência quase total de homens
que fazem sexo oral ou masturbam as mulheres. Esses atos geralmente são
praticados por outras mulheres. Uma single (termo que designa as pessoas
que frequentam o swing sem ser como casal) narra o seguinte: “os caras
acham que, se te chuparem, vão estar chupando um pênis por tabela. Olha
que caretice! Ouvi isso do marido da minha amiga. Um dia lá eu disse que
ia subir para transar com outros. Aí ele disse isso e que se eu quisesse eles,
tinha que ser só com eles. Foi assim que a transa acabou”. Muitos homens
também resistem ao ménage masculino mesmo quando a parceira deixa
claro que tem essa fantasia.

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246 Maria Silvério

Durante meu trabalho de campo, passei um feriado em uma praia com


quatro casais swingers. Um episódio chamou minha atenção. Estávamos na
piscina e um marido pediu para que a esposa entrasse na água com ele. Ela
disse que estava com frio e não queria. Ele insistia para ela nadar e tirar o
biquíni para mostrar a marquinha. Embora tivesse repetido claramente que
não queria, acabou entrando na água. Após um tempo, o marido começou a
masturbá-la, embora ela dissesse várias vezes: “Para, amor, para. Eu não estou
a fim”. Mesmo assim, ele a virou de costas e começou a penetrá-la na vagina.
Ela reclamou que na piscina arde muito porque a água impede a lubrificação.
Ele continuou com movimentos cada vez mais rápidos até que ela se virou
bruscamente falando: “Está doendo, para. Eu não quero”. Ele continuou com
provocações e pediu para que ela lhe fizesse sexo oral. Pouco tempo depois,
um outro homem se aproximou e ela começou a fazer sexo oral nos dois.
Essas dinâmicas reforçam a percepção de que o universo swinger faz
parte de uma tendência geral de objetificação sexual das mulheres, que con-
fere uma aparência de liberdade e empoderamento a práticas machistas.
(MCDONALD, 2010) Para Nogueira (2014, p. 144), o swing não difere muito
do “mundo lá fora” e “é tão machista quanto qualquer outro”. Dentro do
meio não monogâmico, o swing é apontado como o modelo mais próximo
do ideal do casal convencional, mais heteronormativo, apolítico e com pes-
soas mais conservadoras. A ausência de comprometimento com um senso
de comunidade e coletividade, além da falta de estratégias e tentativas
conjuntas de solução dos problemas também são criticadas. (BARKER;
LANGDRIDGE, 2010; MCDONALD, 2010; SHEFF, 2014)
As pessoas poliamoristas geralmente sentem-se ofendidas quando são
comparadas às swingers justamente por considerá-las machistas, por privi-
legiar os desejos masculinos e tratar as mulheres como objetos sexuais. Por
isso, o swing também não seria tão igualitário e a ideia de “liberdade con-
sentida” é vista como um contrassenso. (PILÃO, 2012) O enraizamento do
swing na heterossexualidade, sobretudo para os homens (VON DER WEID,
2008), e os padrões de consumo envolvidos também são problematizados.
(FRANK; DELAMATER, 2010)
No que diz respeito à percepção social acerca dos diferentes modelos de
não monogamia, Matsick e demais autores (2014) mostram que uma pessoa
swinger é avaliada mais negativamente em dimensões que englobam matu-
ridade, responsabilidade e personalidade. Elas são vistas como mais kinky,2

2 Refere-se a práticas, atos, fantasias e desejos sexuais considerados excêntricos, estranhos e


pouco convencionais.

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swinger 247

mais sujas, radicais, aventureiras e assustadoras, além de menos respon-


sáveis, despertando mais sensação de desconforto.
Das 85 pessoas entrevistadas na minha pesquisa que se autoidentificam
como swingers, relacionamento aberto, poliamor, RLi3 ou anarquia rela-
cional, somente no swing houve quem não entendesse a pergunta “qual a
sua opinião sobre a monogamia?”, respondendo, por exemplo, “o que você
quer dizer com isso?” ou “explique melhor o que isso significa”. Tal incom-
preensão demonstra claramente o aspecto apolítico e não ativista que carac-
teriza o swing. Como resume um swinger: “as pessoas não estão ali para
mudar o mundo. Elas querem apenas sexo”.
Neste sentido, Nogueira (2014) afirma que a “causa swinger”, susten-
tada por umas poucas pessoas, consiste apenas na luta contra o precon-
ceito e na vontade de que elas se assumam publicamente. Paradoxalmente,
­pode-se dizer que o swing é a única forma de não monogamia consensual
que pode ser vivenciada de maneira legítima e até institucionalizada devido
à existência de locais específicos que proporcionam oportunidades para os
casais experimentarem práticas sexuais públicas sob a proteção do anoni-
mato, sem, portanto, colocarem-se realmente em qualquer tipo de perigo
de julgamento moral associado a tais atividades. (SILVÉRIO, 2014c, 2018)
O sigilo, “o risco de ser descoberta”, e a possibilidade de fazer algo “proi-
bido pela nossa sociedade hipócrita” são citados como fatores que geram
adrenalina, excitação e grande parte do encantamento do swing, distan-
ciando-o de outras práticas não monogamias que lutam por reconheci-
mento identitário. Os casais swingers afirmam não ter dilema ético ou moral
com o estilo de vida adotado. Pelo contrário, consideram-se mais avançados
que os casais “normais”, mostram-se satisfeitos pela coragem de dar esse
“passo à frente” e por conseguirem uma espécie de “progresso pessoal”.
Diante de todas estas questões, pode-se pensar o swing como uma
espécie de modelo relacional intermediário, que apesar de não se igualar
completamente ao casamento padrão, tampouco é muito próximo dos
preceitos das não monogamias que procuram transformar a instituição
social da monogamia compulsória, do casamento e da família. Casais que
se orientam por valores machistas encontram facilmente no swing um
ambiente para reproduzir e perpetuar tais princípios. Paralelamente, os que
se guiam por valores como igualdade, liberdade e reciprocidade conseguem

3 Modelo de relações livres surgido no Rio Grande do Sul em 2001. Para mais informações sobre
cada tipo de não monogamia consensual, ver: Silvério (2018).

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248 Maria Silvério

usufruir da prática de forma mais equilibrada e não hierárquica. (SILVÉRIO,


2014a, 2014b, 2014c, 2018)
Ao mesmo tempo que um casal swinger reproduz elementos de conven-
cionalidade sociocultural e heteronormativa, ele também rompe e ressig-
nifica alguns aspectos tidos como tipicamente femininos ou masculinos.
Embora afirme-se não ser possível encontrar tudo em uma única pessoa,
a busca por mais satisfação sexual só acontece na companhia daquela tida
como a única capaz de garantir para sempre a totalidade e complementari-
dade características do amor romântico. A iniciativa para o swing é predo-
minantemente masculina, porém as mulheres são apontadas como as mais
satisfeitas. Elas têm a possibilidade de experimentar uma série de novas prá-
ticas sexuais, enquanto eles muitas vezes têm que reprimir certos desejos,
como o de se envolverem com outros homens. (SILVÉRIO, 2014a, 2014b,
2014c, 2018) Por um lado, existe um comportamento herdado da cultura
machista em que o homem manda, a mulher obedece; o homem é o sujeito
do desejo e a mulher é o objeto. Por outro, surge uma mulher dona do seu
corpo e desejo, sujeito de seu próprio prazer e com mais poder devido à pos-
sibilidade de vivenciar a sexualidade de maneira mais livre e experimental.
(VON DER WEID, 2008) O casal swinger é, portanto, ambíguo e paradoxal.

REFERÊNCIAS
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reflections_on_recent_research_and_theory. Acesso em: 6 out. 2021.

BERGSTRAND, C. R.; SINSKI, J. B. Swinging in America: love, sex and marriage in


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swinger 249

MATSICK, J.; CONLEY, T. D.; ZIEGLER, A. et al. Love and sex: polyamorous
relationships are perceived more favorably than swinging and open relationships.
Psychology and Sexuality, [s. l.], v. 5, n. 4, p. 339-348, 2014. Disponível em:
https://www.tandfonline.com/doi/full/10.1080/19419899.2013.832934.
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MCDONALD, D. Swinging pushing the boundaries of monogamy?. In: BARKER,


M.; LANGDRIDGE, D. (ed.). Understanding non-monogamies. New York:
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NOGUEIRA, M. Sociedade secreta do sexo: o luxo e a lascívia das orgias mais


exclusivas do mundo. São Paulo: Leya, 2014.

PILÃO, A. C. Poliamor: um estudo sobre conjugalidade, identidade e gênero.


2012. Dissertação (Mestrado em Sociologia e Antropologia) – Instituto
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SHEFF, E. The polyamorists next door: inside multiple-partner relationships and


families. Plymouth: Rowman & Littlefield, 2014.

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(Doutorado em Antropologia) – Escola de Ciências Sociais e Humanas, Instituto
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SILVÉRIO, M. Gênero, sexualidade e swing: a ressignificação de valores


através da troca de casais. Sexualidad, Salud y Sociedad, Rio de Janeiro,
v. 18, p. 111-139, 2014a. Disponível em: https://www.scielo.br/j/sess/a/
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through%20partner%20exchange&text=O%20objeto%20de%20estudo%20
deste,identidades%20de%20g%C3%AAnero%20dos%20praticantes. Acesso em:
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SILVÉRIO, M. Swing em Portugal: uma interpretação antropológica da troca de


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VON DER WEID, O. Adultério Consentido: gênero, corpo e sexualidade na


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Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro,
Rio de Janeiro, 2008.

glossario-das-desidentidades-MIOLO.indb 249 13/09/2023 07:13


glossario-das-desidentidades-MIOLO.indb 250 13/09/2023 07:13
251

TOMFEM

Macarena Williamson

Tomfem é uma (des)identidade sexual que será explorada por meio da expe-
riência de Avril, migrante venezuelana, morena,1 lésbica, residente recen-
temente em São Paulo, Brasil. Por meio das narrativas de Avril, pretende-se
indagar como os deslocamentos e circulações transnacionais atravessam as
sexualidades oferecendo, ou não, segundo o contorno geopolítico, possibili-
dades para viver uma sexualidade não normativa em diferentes territórios.

É que tomfem vem sendo esse tipo de mulher masculina, mas não cem
por cento, sabe? Por exemplo, eu gosto de me vestir como homem, mas
não cem por cento vestir como homem. O que eu gosto é que fique bem,
sabe? Eu visto o que eu sei que vai ficar bem, vou na loja, experimento
e o que gosto como fica, eu uso. Daí tomboy como a palavra mesmo diz,
‘boy’ é cem por cento essa menina que já gosta de vestir como menino e
não tem isso de tomfem. Uma tomfem acho que até pode se maquiar,
mas sendo mais masculina, sabe? E minha personalidade tampouco
é dessa pessoa ‘tipo, sou homem’, não. Assim como você me vê, assim

1 Nas palavras de Avril, morena é uma categoria de autoidentificação popular relativa à raça. Vá-
rios relatos de migrantes venezuelanos no Brasil coincidem em que as categorias de negro, par-
do ou branco não são recorrentes na Venezuela. Dessa maneira, Avril se reconhece como mo-
rena, esta categoria racial popular, demonstrando diferenças na gramática racial entre Brasil e
Venezuela que se tornam evidentes a partir da experiência de deslocamento.

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252 Macarena Williamson

sou. Mas eu gosto de vestir mais masculina, não tão feminina, nem
saias. (grifo nosso)2

Segundo Avril, tomfem é uma jovem lésbica que possui características


atribuídas à feminilidade e que incorpora recursos estéticos e de consumo
categorizados como masculinos, vestindo roupas e acessórios de homem.
Além do estético, no contexto venezuelano ser uma tomfem indica um com-
portamento sexual particular; é sinal de “versatilidade” entre jovens lésbicas.
Ainda quando os Estudos Queer sobre essa (des)identidade são escassos
na Venezuela e no Brasil, por que não dizer inexistentes, algumas pistas per-
mitem compreender melhor seu sentido. Por um lado, tomfem3 se insere na
diversificação de taxonomias e nomeações produzidas pela constante cir-
culação de estilos e reelaboração das masculinidades femininas divulgadas
na internet e outros espaços de sociabilização entre jovens lésbicas. Dessa
maneira, tomfem é uma categoria juvenil, que nasce da influência de estilos e
subculturas da juventude lésbica fortemente influenciada pela globalização.
Por outro lado, tomfem parece inspirada na figura da tomboy investi-
gada em profundidade pelos Estudos Queer e descrito por Jack Halberstam
(1998, p. 6) “como um período estendido de masculinidade feminina da
infância”. Na tomfem, além dos atributos estéticos de menino, interagem
também características femininas. No seguinte trecho, Avril explica as dife-
renças entre tomfem e tomboy.

O tomfem pode vestir masculino, mas não é tão extremista. Me entende?


Não sei se você já viu essas mulheres com cabelo comprido e esses bonés
e aquelas camisetas grandes, folgadas, todas sexys, bom, elas são as
tomfem. Então, as outras que têm o cabelo curto, curto, curto e falam
assim, mais masculino, essa é tomboy. Vê a diferença? Eu não posso
ser cem por cento um rapaz, me entende? Acho que também é bonita

2 Todos os trechos de entrevista reproduzidos neste verbete têm a mesma fonte. Entrevista reali-
zada em 25 de abril de 2021, com tradução da autora.
3 Para Regina Facchini (2005, p. 181), as categorias das sexualidades não normativas estão rela-
cionadas às múltiplas identidades sexuais que se transformam na globalização e na era das in-
formações “a especificação de categorias como lésbicas, travestis e transexuais podem ser com-
preendidos como escolhas, feitas a partir de um leque de possibilidades – que, com incentivo
da globalização e da grande circulação de informações, passam a trazer referências criadas em
outros contextos culturais. Há um processo de re-significação e um contexto político-cultural
local que permitam a demanda por novas categorias ou estilos e que influenciam a apropriação
de determinada categoria ou estilo e não outra”.

glossario-das-desidentidades-MIOLO.indb 252 13/09/2023 07:13


tomfem 253

essa parte de uma menina masculina, mas que no fundo é menina, eu


acho sexy. (grifo nosso)

França (2012, p. 33) sugere que “performar masculino ou feminino é


um processo contínuo, contextual e instável”. Nesse sentido, para inves-
tigar um pouco da origem, perguntei a Avril, como ela tinha chegado ao
conceito de tomfem. Ela me explicou que está relacionada com as trocas
sexuais lésbicas nas quais, por meio de recursos masculinos e femininos,
pretende-se comunicar “versatilidade”.

Eu sempre me considerei uma mulher ativa. Nas relações gays, tem


a passiva, a ativa e a versátil. A versátil é aquela pessoa que pode ter
os dois papéis ao mesmo tempo, feminino e masculino. A passiva é a
mulher, cem por cento mulher e a ativa é mais masculina, entende? Eu
me considero mais ativa, sou tomfem, entende? A maioria das vezes
as tomfem são ativas ou versáteis. Eu posso usar blusa de meninas,
mas de florzinhas não. Pode ser uma camisa comprida, é todo um
estilo diferente, mas eu te digo: nada de flores, nem gatinhos, nem
nada disso. (grifo nosso)

Olhando para as relações entre feminino, masculino e a ideia de ativi-


dade e passividade, França (2012, p. 209) argumenta que essas categorias
assinalam trocas homoeróticas, “os indicadores – ser mais masculino ou
feminino ou constituir parcerias com masculinos ou femininos – atuam
como prescrições dos comportamentos sexuais esperados”. Avril explica
que o estilo de vestir – a roupa, o tom da voz, o cabelo, entre outros recursos
– indica as preferências sexuais entre jovens lésbicas:

Eu não sou uma mulher que vai gostar de mulheres masculinas. A ves-
timenta, as outras lésbicas já fazem saber que tipo de pessoa é, o que
ela gosta, é uma forma de atração às lésbicas. Então elas já veem se
querem ou não querem, é uma forma de se comunicar com as outras
lésbicas sem a necessidade de ter que dizer essa é passiva, essa é ativa.

Quando indago como ela se deu conta de que era uma tomfem ou quem
havia lhe mostrado esse conceito, Avril acrescenta:

Bom, porque isso foi algo que começou a sair na Venezuela faz três
ou quatro anos e eu meio que me senti identificada. Eu disse ‘não, eu
sou ativa’. Mas, as pessoas já estão se identificando com sua forma de
vestir, então eu dizia: ‘bom, entre tudo isso, me encaixo aqui’. Porque

glossario-das-desidentidades-MIOLO.indb 253 13/09/2023 07:13


254 Macarena Williamson

tomboy, cem por cento, não sou. Quer dizer, eu não chego até lá, não é
que não possa, mas é que eu não me veria falando assim como homem,
não. Tem pessoas que até me perguntam, ou seja, que não sabem que
sou gay e dizem: ‘você é lésbica?’ E tem outras pessoas que sim, se dão
conta, porque é lógico. Algumas pessoas se dão conta rápido e outras
não. (grifo nosso)

Halberstam (1998, p. 1) insiste na reinterpretação das masculinidades


femininas para além das narrativas hegemônicas. Assim, é interessante
olhar para as tomfem como uma (des)identidade “longe de uma imitação do
masculino”. Para Avril, além de recursos estéticos masculinos e femininos
de uma tomfem, há a “personalidade”, como refere-se abaixo:

...a tomfem pode ser algo de moda, pode ser algo de personalidade.
Por que eu gosto de ser tomfem? Porque eu gosto de vestir bem. Pode
ser algo estético, algo de personalidade, de comodidade, algo que você
quer atrair. Tomfem tem um grau de masculinidade, por exemplo,
eu poderia dizer que, em mim, essa masculinidade pode ser uns 70%
e uns 30% feminino, ou seja, quase nada. (grifo nosso)

Dessa maneira, tomfem não é uma identidade sexual totalizante e essen-


cialista. Envolve uma série de práticas e interações complexas que, por
meio de expressões que navegam entre o “masculino” e o “feminino”, ten-
sionam a rigidez da ordem de gênero cisgênero, binária e heterossexual.4
Explorando a trajetória migratória de Avril, ao contrário de sentimentos
de estranhamento, a paisagem urbana de São Paulo pareceu-lhe conhecida.
Essa percepção do entorno demonstra que migrar é uma experiência subje-
tiva marcada por contatos, tensões e negociações com as sexualidades nos
diferentes contextos geopolíticos de circulação.

...Uau! Quando cheguei a São Paulo vi todos esses prédios grandes,


eu disse, estou no meu país. Porque sabe que minha cidade também
tem edifícios grandes e gostei muito. Além de que, tenho que dizer,
quando eu vi esse montão de mulheres bonitas eu pensei ‘merda, estou
no céu’, então eu disse não, não, não...eu daqui não vou me embora,
eu vou me casar aqui.

4 Como sugerem West e Zimmerman (1987, p. 126, tradução nossa): “Fazer gênero envolve uma
complexa guia social de atividades perceptivas, interacionais e micropolíticas particulares
como expressões ‘naturais’ de masculino e feminino”.

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tomfem 255

As diferenças de gênero, classe social, raça, nacionalidade, status migra-


tório modulam a experiência de Avril na cidade de São Paulo. Neste caso,
seu deslocamento a levou a conhecer outras configurações raciais, espe-
cíficas ao contexto brasileiro. A partir de sua sexualidade e desejos, como
os lésbicos tomfem, Avril identifica algumas diferenças nas configurações
raciais entre seu país de origem e o Brasil.

Tenho notado que aqui em São Paulo as lésbicas ou as mulheres


casadas gostam muito da minha cor de pele, gostam muito das pes-
soas morenas. Bom, eu não sei que cor de pele sou, porque não sou nem
negra, nem morena, não sei o que sou. Na Venezuela eu sou morena,
eu sou tipo a exceção das cores de lá, porque tem pessoas que são mais
escuras. Sou eu quando caminho, tomo muito sol. Agora estou recupe-
rando meu tom de pele, eu sou morena, uma cor marrom clara, não
sei como explicar.

Finalmente, é importante ressaltar que a tomfem faz parte de um uni-


verso heterogêneo de sexualidades. Há múltiplas categorias e formas de
ser e sentir-se lésbica. No que se refere ao estudo das masculinidades
femininas, Halberstam (1998, p. 9) aponta que é uma área de pesquisa que
“tem sido marginalizada pela perspectiva heterossexista e mulherista dos
estudos de gênero”. Também Avril sugere que há uma tendência a genera-
lizar quando se trata de mulheres lésbicas: “São poucas as pessoas que per-
guntam ou que se interessam por esse tema. Tem pessoas que dirão entre
os chineses e os coreanos, todos são coreanos. Ou que todos são gays, é a
mesma coisa, me entende? Para eles é a mesma coisa.”
Ser tomfem envolve práticas centrais para a (des)identidade lésbica
e mensagens que comunicam atração entre mulheres. E é expressão
para a produção, manutenção e continuação das comunidades lésbicas.
(TABATABAI, 2013) Mulheres tomfem, como Avril, organizam suas experi-
ências estéticas e sexuais a partir de uma releitura dos atributos de gênero
categorizados como masculinos ou femininos. Tomfem, como expressão
de uma masculinidade feminina e como uma reelaboração das masculini-
dades hegemônicas “pode codificar uma forma única de rebeldia social”.
(HALBERSTAM, 1998, p. 9)

glossario-das-desidentidades-MIOLO.indb 255 13/09/2023 07:13


256 Macarena Williamson

REFERÊNCIAS
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identidades coletivas nos anos 90’. Rio de Janeiro: Garamond, 2005.

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consumo e subjetividades na cidade de São Paulo. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2012.

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TABATABAI, A. Protecting the lesbian border: the tension between individual and
communal authenticity. Sex, Gender, and Sexuality. The New Basics. New York:
Oxford University Press, 2013.

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Society, Newbury Park, v. 1, n. 2, p. 125-151, 1987. Disponível em: https://www.
gla.ac.uk/0t4/crcees/files/summerschool/readings/WestZimmerman_1987_
DoingGender.pdf. Acesso em: 5 jul. 2022.

glossario-das-desidentidades-MIOLO.indb 256 13/09/2023 07:13


257

TRAVESTI1

Jinx Vilhas

O termo travesti é polissêmico e faz referência, simultaneamente, a uma


identidade política reivindicada no contexto latino-americano e a uma cate-
goria êmica2 produzida e articulada, principalmente, em centros urbanos
na América Central e do Sul. Em geral, as travestis são pessoas que foram
designadas homens ao nascer, mas que, em algum momento de suas vidas,
passaram, por exemplo, a se aproximar da identidade feminina e a trans-
formar seu corpo de acordo com essa aproximação – através da ingestão de
hormônios, da utilização de roupas e adereços femininos e da aplicação de
silicone industrial ou próteses. Devido aos diversos contextos e situações
em que essa identidade é reivindicada, ela pode ser encarada como uma
identidade múltipla, em disputa, uma (des)identidade.
Há travestis que se definem como mulheres enquanto outras se definem
enquanto homens, quase-mulher, bicha travesti, trava, nem homem nem

1 Este texto, em versões anteriores, recebeu valiosas sugestões de pessoas que são, ao mesmo
tempo, colegas e amigas. Agradeço aos editores deste livro, os professores Moisés Lino e Silva e
Guillermo Vega Sanabria, por sua leitura atenta e seus preciosos apontamentos, assim como a
Caia Maria Coelho, Inácio dos Santos Saldanha e Raphael Cardoso Brito por sua generosidade,
amizade e companhia.
2 São as categorias que surgem a partir dos interlocutores das antropólogas e antropólogos, e não
a partir de um processo de classificação externo.

glossario-das-desidentidades-MIOLO.indb 257 13/09/2023 07:13


258 Jinx Vilhas

mulher, homem e mulher, mulher travesti ou mulher de peito e pau. A maior


parte dessas pessoas é simplesmente travesti, uma identidade própria –
ainda que não monolítica. No imaginário popular, as travestis são comu-
mente associadas à prostituição, à marginalização, às drogas e à violência.
O preconceito e a discriminação historicamente direcionados a essa popu-
lação têm contribuído para sua difícil situação, erigindo barreiras quase
intransponíveis no que se refere às condições de emprego e acesso à edu-
cação e saúde.
O primeiro estudo antropológico publicado sobre as travestis no Brasil
foi uma etnografia de Hélio Silva (1993). Nela, o autor realiza uma imersão
no cotidiano dos3 travestis que vivem e se prostituem no entorno do bairro
da Lapa, na cidade do Rio de Janeiro. Silva propôs uma forma de percorrer
as nuances da vida dessas pessoas que passa pela compreensão da existência
de uma temporalidade diferenciada – ditada pelo tempo da prostituição,
com um “dia” que começa pela tarde, avança na noite e termina de manhã.
A etnografia de Hélio Silva (1993) guarda um pioneirismo importante, na
medida em que é capaz de fornecer uma visão privilegiada dos conflitos e
dinâmicas de fabricação da identidade travesti num contexto urbano, dei-
xando de lado a forma estereotipada e preconceituosa de abordar a temá-
tica, típica das matérias e notas jornalísticas da época. O autor defende
entender o travesti como forma de constituir uma outra modalidade do
feminino, que é composto pelo movimento de deixar-se “à plena manifes-
tação da natureza em si” (SILVA, H. R. S., 1993, p. 162), representado pelo
masculino, ao mesmo tempo em que se cortam os excessos e se impõe um
controle sobre essa natureza.
Soma-se a esse momento inicial o trabalho de Neuza Maria de Oliveira
(1994), que estudou os travestis do Pelourinho, em Salvador, propondo um
espectro de identidades que vai desde transformistas, passando por tra-
vestis e chegando em transexuais – estas simbolizando a transformação
“definitiva”, atingida por meio da cirurgia de transgenitalização4 e da apro-
ximação a uma figura feminina mais tradicional. As diferenças entre essas

3 Naquela época, pessoas que estudavam as travestis referiam-se a elas principalmente no mas-
culino, em virtude tanto do fato da palavra “travesti” ser tratada como substantivo masculino
quanto do fato das próprias travestis se referirem no masculino. Ao longo do tempo, o uso do gê-
nero gramatical feminino passou a ser mais comum. Quando o uso do masculino for feito nesse
contexto, usarei o itálico.
4 Também chamada de “cirurgia de mudança de sexo” ou “cirurgia de redesignação sexual”, con-
siste numa intervenção cirúrgica que possibilita a construção de um pênis (faloplastia) ou vagi-
na (vaginoplastia), a depender de cada caso.

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travesti 259

(des)identidades, para a autora, não são apenas em relação à intensidade


da produção do feminino num corpo “de homem”, mas também de tipo:
são formas diferentes de vivenciar o feminino.
Dentro do escopo desses estudos iniciais, que focalizaram o cotidiano
travesti a partir da chave da prostituição e das formas alternativas de cons-
trução do feminino, cabe ainda citar a dissertação de Marcelo José Oliveira
(1997), que segue um afastamento ou mesmo uma visão crítica das nar-
rativas midiáticas a respeito do cotidiano dos travestis em Florianópolis.
Para este autor, o que interessa são as relações múltiplas que os travestis
mantêm em seu cotidiano, o que essas relações dizem sobre o contexto
urbano e, principalmente, de que forma elas são capazes, nas palavras de
Marcelo Oliveira (1997, p. 10, grifo nosso), de “resgatar a humanidade pal-
pável do travesti”.
Esse primeiro ciclo dos estudos sobre travestis na antropologia brasi-
leira recebeu críticas importantes de Don Kulick, antropólogo norte-ame-
ricano que fez trabalho de campo com as travestis de Salvador. Publicada
originalmente em inglês, em 1998, a etnografia intitulada Travesti: sex,
gender and culture among Brazilian transgendered prostitutes5 teceu con-
siderações a respeito do lugar das travestis em relação ao binário de gênero
homem/mulher na sociedade brasileira. Recusando a ideia de que a identi-
dade travesti se trata de uma espécie de “terceiro gênero” – ideia que surgia
implícita ou explicitamente nos trabalhos anteriores –, o autor afirma que

elas não são um terceiro no sentido de se situarem fora ou além do


binarismo de gênero. Muito pelo contrário. [...] Ao sugerir que os indi-
víduos que não se encaixam no dualismo macho-fêmea estão fora
dele, além dele ou transcendentes a ele, deixa-se de compreender
que esses indivíduos podem estar, na verdade, operando desarranjos
e reconfigurações, ou seja, podem estar introduzindo complica-
dores nesse sistema dual. O idioma do terceiro gênero deixa intacto
o binarismo tradicional. Em vez de expandir, sofisticar e comple-
xificar o entendimento da masculinidade e da feminilidade, o dis-
curso do terceiro gênero cristaliza e sela as categorias duais, e situa
a fluidez, a ambigüidade, as dinâmicas e as sobreposições em um
espaço completamente exterior: fora das fronteiras do binarismo,
nos domínios do terceiro. O conceito de terceiro acaba dificultando

5 Uma tradução, “Travesti: prostituição, sexo, gênero e cultura no Brasil” foi publicada em portu-
guês em 2008, pela Editora Fiocruz. Nessa tradução, o autor passou a se referir às travestis no
feminino, seguindo a tendência já indicada aqui.

glossario-das-desidentidades-MIOLO.indb 259 13/09/2023 07:13


260 Jinx Vilhas

o entendimento de que ‘dois’ pode não ser tão simples e careta como
se pensa. Enfim, o terceiro nos impede de ver que pessoas como as
travestis não caem fora do sistema binário, absolutamente. Ao con-
trário, as travestis nos permitem sugerir que o binário configura-se
de um modo radicalmente diferente do que estamos condicionados
a pensar. (KULICK, 2008, p. 239-240, grifo nosso)

Esses apontamentos feitos por Kulick, ainda que não possam ser uni-
versalizados para todos os grupos de travestis, fornecem-nos um caminho
interessante para pensar as identidades sexuais no Brasil, especialmente
quando consideramos o caráter ativo/passivo6 das relações (FRY; CARRARA,
2016) e suas respectivas imbricações com as (des)identidades de gênero.
Esse paradigma tem origem no processo de transição que Peter Fry (1982)
analisou em relação à sociedade brasileira, em que esta, a partir do fim
dos anos 1960, passou de um modelo de sexualidade “hierárquico” para
um “igualitário”. A questão, aqui, é a maneira como ser ativo ou passivo é
traduzido em posturas mais masculinas ou mais femininas: homens hete-
rossexuais não estariam tão distantes assim de homossexuais preferen-
cialmente ativos, já que, nesse imaginário, ambos se disporiam a sempre
penetrar ou dominar, mas nunca a serem submissos ou penetrados – ati-
tude passiva, feminina. Desse paradigma deriva diretamente a constatação,
portanto, de que o masculino e o feminino não são expressões de qualquer
realidade biológica que precede nossa realidade social (BUTLER, 2018), e
sim, defende Kulick (2008, p. 242), “signos ou processos que são trazidos à
baila ou acionados através de certas práticas específicas”.
A travesti, nesse caso, define-se precisamente por um conjunto de prá-
ticas compartilhadas, de uma experiência eminentemente urbana e de
marginalização, ligadas entre si principalmente por sua vinculação à femini-
lidade e à atração sexual por homens. Veremos, porém, que se essas caracte-
rísticas constituem um panorama da (des)identidade travesti, ela se espraia
de forma muito mais dinâmica no cotidiano, principalmente quando levado
em conta o próprio processo de emergência da “travesti” enquanto cate-
goria identitária. As travestis fazem parte da realidade latino-americana,
e, ainda que o termo encontre falsos cognatos em outros idiomas, como no
inglês tranvestite ou no francês travesti, essas palavras não se referem ao

6 Quem penetra na relação sexual e quem é penetrado, respectivamente, grosso modo. Pode tam-
bém não ter relação somente com penetração, mas com posturas relativamente mais domina-
doras ou mais submissas nas relações sexuais ou na convivência cotidiana.

glossario-das-desidentidades-MIOLO.indb 260 13/09/2023 07:13


travesti 261

mesmo fenômeno. Naqueles outros idiomas, trata-se do ato ou pessoa que


se traveste, utilizando roupas destinadas a um gênero diferente do seu – seja
por motivos artísticos ou fetichistas. Esse sentido do termo também existiu
no Brasil antes dos anos 1970 (CARVALHO; CARRARA, 2013), sendo substi-
tuído por outros como crossdresser, “transformista”7 e drag queen à medida
em que a categoria travesti emergia simultaneamente enquanto identidade
e enquanto termo pejorativo, ligado à prostituição e, por vezes, ao crime.
Josefina Fernández (2004), antropóloga argentina, traça uma gene-
alogia das travestilidades8 desde sua origem com Magnus Hirschfeld até
o recrudescimento dos movimentos sociais9 e a emergência de “gênero”
enquanto categoria analítica/política. A autora identifica três principais
hipóteses sobre as travestilidades a partir da literatura antropológica:
a hipótese do terceiro gênero; a hipótese do reforço das identidades biná-
rias e a hipótese do gênero performativo. Fernández (2004) situa a etno-
grafia de Silva (1993) num espaço entre a primeira e a segunda hipótese,
de forma similar ao que faz Kulick (2008) com o primeiro ciclo de etnogra-
fias brasileiras sobre o tema. Tanto Kulick (2008) quanto Fernández (2004)
apontam para a necessidade de prestar atenção ao que dizem as travestis
sobre si mesmas, levando-as a sério, ao invés de tentarmos enquadrá-las
numa posição fixa, universal e monolítica das identidades, posição esta que,
para além de reforçar os estereótipos e produzir marginalizações, é ocu-
pada precisamente pelas tradicionais expressões binárias homem/mulher.
É nesse sentido que a hipótese do gênero performativo, conforme apresen-
tada por Butler (2018) e recuperada por ambas as antropólogas, constitui
uma possibilidade importante de diálogo com a antropologia. Como preco-
nizado, há muito, por Leach (2006), nossa prática deve se deslocar daquela
de colecionadores de borboletas, com morfologias pré-fabricadas, e se voltar
para a apreensão das práticas dos sujeitos.10
As tensões, nesse caso, são constitutivas dos contextos em que essas
práticas estão dispostas e é esse o caso quando analisamos as diferenças

7 Categoria muito comum em programas de auditório da TV brasileira, desde os anos 1970.


(­LEITE JÚNIOR, 2008, p. 202)
8 No original, em espanhol, travestismo. Para me afastar tanto de acepções ligadas à patologiza-
ção quanto do sentido já obsoleto do termo em português, traduzo aqui como “travestilidade”.
9 Sobre o caso brasileiro, ver: Facchini (2005).
10 Nesse sentido, trabalhos como a autoetnografia de Vergueiro (2015) têm se mostrado imprescin-
díveis para a apreensão das relações entre cisgeneridade, normatividade, diversidade e transge-
neridade a partir de um ponto de vista travesti.

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262 Jinx Vilhas

entre “travestis” e “transexuais”. Leite Júnior (2008) percorre os processos


de emergência de ambos os termos no discurso científico, desde o fim do
século XIX, e aponta que a ideia de transexualidade está ligada ao pro-
cesso de patologização das experiências de transição de gênero por meio
do sistema médico-legal, tornando-as inteligíveis e “tratáveis” enquanto
distúrbios e anormalidades. A transição de gênero, neste paradigma, só
estaria completa com o tratamento hormonal, a transgenitalização e a
adoção de um tipo específico de feminilidade. Quando nos aproximamos
da utilização dessas categorias no cotidiano das pessoas, é possível per-
ceber que há disputas principalmente em torno de qual identidade car-
rega uma verdadeira feminilidade (LEITE JÚNIOR, 2008), num jogo por
distinção e prestígio social. Desde as primeiras etnografias sobre a temá-
tica, até as mais recentes,11 é possível perceber que se há uma caracterís-
tica mais recorrente do que outras em relação à (des)identidade travesti, é
sua capacidade de escapar às tentativas de fixação e higienização sexual,
seja aquela operada através da repressão policial, seja aquela perpetrada
pelo apagamento no âmbito dos movimentos sociais e políticas públicas.
Essa característica coexiste com eventuais apelos a uma essência travesti
que circulam entre elas – mas esse aparente paradoxo somente se sustenta
até aí. Categorias já citadas aqui, como bicha e trava, circulam de forma
sobreposta a outras presentes no cotidiano dessas pessoas,12 evidenciando
o caráter fluído dessa (des)identidade.
Apesar dos processos de estigmatização e exclusão a que foram subme-
tidas, com efeitos que perduram ainda hoje, as travestis conseguiram orga-
nizar-se politicamente desde muito cedo, resistindo contra as políticas
higienistas e assassinas implementadas pelas forças policiais e militares
durante as ditaduras13 na América Latina. Nesse mesmo contexto, desen-
volveu-se o pajubá14 no Brasil, espécie de variação da língua portuguesa
utilizada pelas travestis para se comunicarem entre si sem que fossem

11 Ver: Luanna Barbosa (2010), Mário Carvalho (2011, 2015) e Moisés Lino e Silva (2022)
12 Inclusive aquelas de cunho pejorativo, como “traveco”.
13 Na cidade de São Paulo, as investidas mais violentas aconteceram sob o nome de “Operação
Limpeza”, levada a cabo pelo delegado Richetti, do começo para o meio dos anos 1980, mas não
cessaram após esse período. Fernández (2004) também narra situação semelhante no contexto
argentino, com foco nos ordenamentos legais instituídos para reprimir aqueles e aquelas consi-
deradas anormais e abjetas pelo Estado.
14 Também chamado de bajubá, dependendo da região do Brasil. Para saber mais sobre o bajubá/
pajubá, ver: Joavanna Baby Cardoso da Silva (2021).

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travesti 263

compreendidas pela polícia. As travestis constituem a militância orga-


nizada LGBT desde a abertura democrática brasileira (MACRAE, 2018),
tendo sua primeira associação fundada em 1992, com o nome ASTRAL
(Associação de Travestis e Liberados), no Rio de Janeiro. (CARVALHO;
CARRARA, 2013; SILVA, J. C., 2021) Desde então houve uma proliferação
de associações do tipo no país, sendo a ANTRA (Associação Nacional de
Travestis e Transsexuais) a maior delas em nível nacional, estando for-
temente engajada na defesa dos direitos da população trans.15 As tra-
vestis têm historicamente participado da formulação e implementação
de políticas públicas de saúde no Brasil, em especial aquelas voltadas à
prevenção de Infecções Sexualmente Transmissíveis (ISTs). Cabe ainda
citar o papel que essa militância organizada tem tido nas eleições brasi-
leiras, sendo capaz de mobilizar, articular e eleger candidaturas de pes-
soas trans por todo o país.16

REFERÊNCIAS
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de atuação política das travestis no mundo-comunidade. 2010. Dissertação
(Mestrado em Antropologia) – Universidade de Brasília, Brasília, DF, 2010.
Disponível em: https://repositorio.unb.br/handle/10482/7121. Acesso em: 4 out.
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Janeiro: Civilização Brasileira, 2018.

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– Instituto de Medicina Social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de
Janeiro, 2015. Disponível em: http://www.bdtd.uerj.br/handle/1/4733. Acesso
em: 4 out. 2021.

15 Sobre a ANTRA e a coprodução de conhecimentos e ativismos dos/nos movimentos sociais de


pessoas trans no Brasil, ver: Coacci (2018).
16 A primeira pessoa trans eleita para um cargo público no país foi a travesti Kátia Tapety, em
1992. Ela não tinha vinculação anterior aos movimentos sociais de pessoas trans, e foi eleita em
virtude de sua atuação no cotidiano de sua comunidade. Depois de sua eleição e da exposição
midiática que ela ensejou, porém, Kátia passou a integrar os espaços dos movimentos sociais.
Sobre esse caso, ver: Kátia (2013).

glossario-das-desidentidades-MIOLO.indb 263 13/09/2023 07:13


264 Jinx Vilhas

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glossario-das-desidentidades-MIOLO.indb 264 13/09/2023 07:13


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glossario-das-desidentidades-MIOLO.indb 265 13/09/2023 07:13


glossario-das-desidentidades-MIOLO.indb 266 13/09/2023 07:13
267

POSFÁCIO
Classificações, diferença e normatividades
em experimentos com a vida

Regina Facchini

Nas redes sociais, como o Twitter ou Instagram, a cada semana emergem


novas identidades, escalas e espectros relacionados a gênero e/ou à sexu-
alidade. Tal processo, somado à ressignificação de categorias como “lugar
de fala”, e sua articulação com entendimentos renovados sobre a ideia de
“representatividade”, vem motivando conflitos que se expressam em redes
sociais e espaços acadêmicos em um momento no qual a noção de “experi-
ência” também ganha novos e variados sentidos.
Isso acontece em um contexto em que movimentos sociais diversificam
suas formas de aparição e já não se pode falar em “o movimento social”.
Soma-se a popularização e o enegrecimento das universidades públicas e
a chegada de pessoas trans nesses espaços, produzindo a revalorização e
reivindicação de reconhecimento de autoras(es) e perspectivas teóricas,
bem como diálogos renovados entre ativismos e reflexão no âmbito das
universidades. Iniciativas no campo do mercado, bastante negligenciadas
nas reflexões sobre movimento social, também integram de modos espe-
cíficos esses processos, embora variando a cada contexto e campo ativista.

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268 Regina Facchini

Tudo isso tem delineado um campo vibrante, que renova e tensiona pro-
cessos de produção de enquadramentos para a luta e de modos de atuar.
A pluralidade de referências e perspectivas e os modos variados e con-
tundentes de se colocar no debate público têm reacendido temores que
invocam categorias como “fragmentação” e “identitarismo”. Esta última
categoria, em especial, tem sido mobilizada por atores em diferentes posi-
ções no espectro político. De ambos os lados, à direita ou à esquerda, fun-
ciona como uma categoria de acusação, evocando sentidos que apontam na
direção de risco, equívoco político e prejuízo a diferentes ideias de coletivi-
dade. Evoca maiorias compostas por “cidadãos de bem” e projetos políticos
“consistentes”, com bandeiras de luta e estratégias claras e consensuadas.
Ao “perigo” anunciado direcionam-se ataques. De um lado, o ataque ao
“outro” diverso e a mobilização de pânicos morais intentam fazer crescer a
coletividade que já se autoclassifica sem nenhum pudor como “de direita”
e “conservadora” e tem como alvo o “mi-mi-mi” das “minorias”. Do outro,
o alvo é a “fragmentação” da capacidade de enfrentamento político, que,
embora se revista de objetivos nobres, também opera muitas vezes com
a desinformação, com a negação da alteridade e com a hierarquização de
enquadramentos e de repertórios de ação.
As ações coletivas, identidades e classificações relacionadas ao gênero
e à sexualidade são um dos pontos mais visíveis de tensão. Com as ações e
perspectivas antirracistas, têm ocupado, embora de modos distintos e mobi-
lizando diferentes pânicos morais, os debates públicos. Relações sociais de
poder baseadas em raça, gênero e sexualidade atravessam de diferentes
maneiras os efeitos das acusações de “mi-mi-mi” ou “fragmentação iden-
titária”. O significante “identitarismo”, contudo, tem sido partilhado por
forças políticas das mais reacionárias às mais progressistas.
Daí vem o interesse desta obra no atual contexto. A mobilização da
noção de (des)identidades e a reunião de uma série de verbetes relacio-
nados a classificações sobre sexualidade não deixa de ser uma maneira de
colocar em suspensão, para operações analíticas e críticas, os gestos e pro-
cessos implicados em atos cotidianos de classificação, diferenciação, hie-
rarquização ou autoclassificação. Desloca, assim, um fluxo no qual somos
postos a pensar em acrônimos e em oposições entre formas de enumeração
de sujeitos que clamam por visibilidade ou representatividade e outras cate-
gorias mais amplas – que teriam o poder de acolher a grande variedade de
manifestações do que Gayle Rubin (2017) identificou como o “mau sexo”,
situadas em posições de “desempoderamento” e “não-normatividade”.
Ao nos mostrar o além da oposição entre acrônimos e categorias como

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posfácio 269

queer, abre as portas para pensar as identidades entre outros modos de


classificação e a ação de relações sociais de poder e da agência de sujeitos
“desempoderados”.
Como nos fazem lembrar os próprios organizadores ao olhar para o con-
junto de verbetes, na introdução deste livro, não há exterioridade às rela-
ções de poder. Classificações e interações com quaisquer sujeitos na vida
social não estão desprovidas de normas e de algum nível de prescritividade.
Lançam, então, mão de uma gradação da normatividade, na qual normas
e prescrições presentes nas (des)identidades sexuais não se pretenderiam
universalizantes. Lembrei-me de algo que escrevi há pouco tempo acerca
do engajamento político e da possibilidade de imaginar mundos possí-
veis como modo de habitar o mundo apesar da dor e do sofrimento, nos
termos de Veena Das (2011, p. 16), mas também como investimentos que
não estão isentos de fazer emergir “novas normas em experimentos com a
vida”. Os verbetes, no espírito do melhor da antropologia, nos convidam à
abertura de limites, à reflexão e a nos ressituar em relação a um universo
classificatório mais amplo do que os que atravessam os experimentos com
a vida com os quais lidamos cotidianamente.

CLASSIFICAÇÕES, IDENTIDADES,
DIFERENÇA E DIFERENCIAÇÃO

Segundo nos ensinava a antropologia clássica, nomear, atribuir sentidos e


classificar são operações próprias do humano e engendram processos de
hierarquização. Todos esses processos resultam em consensos revestidos de
relativa estabilidade no tempo, embora não imunes a tensões e mudanças,
e partilhados por coletividades humanas. Em situações de tensão e conflito,
classificações podem ser mobilizadas de modo acusatório ou na forma de
insultos, em processos de diferenciação. A noção de identidade, por outro
lado, implica processos de identificação, de reconhecimento, de pertenci-
mento, que não se dão fora de processos de diferenciação.
Embora classificações e identidades sejam processos de nomeação,
classificações não são identidades. As identidades não são meros atos de
nomeação, são processos de autoclassificação individuais ou coletivos que
operam sempre em contexto e por meio de diferenciações contrastivas, que
se dão sempre em relação: não há um “nós” que se defina sem a diferen-
ciação contingente frente a um “outro”. Não há nada de essencial em clas-
sificações ou identidades, ao contrário, são processos sociais, históricos,

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270 Regina Facchini

culturais e políticos, e como tal, cambiantes, complexos, multifacetados


e que operam na relação entre seres humanos. Quando tais processos
referem-se à sexualidade tudo isso se complexifica, e muito.
A catalogação e escrutínio de especificidades relacionadas a compor-
tamentos e desejos sexuais datam dos esforços da sexologia, na passagem
do século XIX e XX. Isso ocorre no bojo de um mesmo processo histórico
no qual o liberalismo clássico afirmava a universalidade do humano e em
que emergiam a noção de raça e de um modelo no qual dois gêneros pas-
savam a corresponder a dois sexos opostos e incomensuráveis. (LAQUEUR,
2001) Nesse processo de reorganização das sociedades ditas ocidentais
modernas, a noção de indivíduo se constituía em íntima relação com o que
Michel Foucault (1977) chamou de dispositivo de sexualidade. Nesse con-
texto, cabia à sexualidade dizer a “verdade” sobre o sujeito.
Catalogar variações e apontar desvios da norma fizeram parte do pró-
prio processo de constituição de normatividades sexuais e de governo dos
sujeitos. Vem daí a complexa articulação entre o mais íntimo e subjetivo e
o político identificada por Jeffrey Weeks (2001) ao abordar a sexualidade
desde um ponto de vista histórico. Vem daí também a tendência observada
por Gayle Rubin (2017) de manter um extremo controle sobre qualquer
variação da sexualidade nos processos de estratificação sexual e a ausência
da possibilidade de pensar em variações sexuais benignas. A associação
entre sexualidade e a verdade sobre os sujeitos, a vigilância social sobre o
sexo, culpado até que se prove em contrário, e a possibilidade aumentada
da mobilização de pânicos morais a partir da sexualidade estão no cerne
das sociedades ocidentais modernas.
É assim também que a classificação da sexualidade opera, muitas vezes,
como linguagem a partir da qual se inscrevem outras diferenças sociais, ten-
dendo a afirmar características que se revestem de um caráter que indica
algo essencial, inerente ao sujeito, que dá notícias de uma “verdade” sobre
ele. Ao tomar aqui a noção de diferença, o faço aos moldes de Avtar Brah
(2006), que a toma de modo não essencial, mas como processo de desig-
nação de “outros”. Em processos políticos, em níveis macro ou microsso-
ciais, tais processos de designação de “outros” tendem muitas vezes a se
valer da sexualidade como linguagem.
Na antropologia brasileira, uma série de trabalhos clássicos sobre (homo)
sexualidade inspirados pelo construcionismo social, pelas teorias da rotu-
lação e pela antropologia clássica, perceberam desde os anos 1970, ao olhar
para processos de classificação da sexualidade, o modo como classe, regio-
nalidade, raça, gênero, geração se faziam presentes a essas classificações.

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posfácio 271

Temos as análises de Peter Fry (1982) sobre a dinâmica de processos de clas-


sificação a partir dos modelos ideais circunscritos por pares como bicha-
-bofe e gay-gay e o modo como emergiam em diferentes regiões do país,
espacialidades urbanas e classes sociais e davam notícias de processos de
mudança social. Suas análises dizem também sobre como diferentes cate-
gorias classificatórias têm diferentes origens, seja no campo científico ou
entre os sujeitos que são classificados, e sobre como as categorias circulam,
são reapropriadas e ressignificadas. Tradicional e moderno operam aí como
polos de orientação a partir dos quais ancoram as práticas classificatórias em
um país que passava por intensas mudanças, entre as quais destacavam-se
intensos processos de urbanização, industrialização e migração.
Esses insights são em parte aproveitados e adensados no clássico tra-
balho de Néstor Perlongher (1987) que, ao tomar as derivas de michês das
periferias urbanas da cidade de São Paulo pelos locais de sociabilidade
homossexual no centro histórico da cidade, centrou fogo nas articula-
ções necessárias, aos modos estadunidenses, entre guetos e identidades.
Ao ­fazê-lo, nos brindou com uma etnografia densa das circulações desses
rapazes e seus clientes por diversos código-territórios, descortinando um
universo de classificações que articulavam diferenciações que remetiam a
classe, raça, regionalidade, nacionalidade, geração e gênero, entre outras
possíveis diferenças. Se prenunciava uma das várias contribuições iniciais,
no Brasil, à formulação do que hoje chamamos de interseccionalidade.
Perlongher também retomava preocupações que podemos ver em estudos
da geração anterior, em autores como Mariza Corrêa, Verena Stolcke e no
próprio Fry, sobre as articulações entre o que Mariza Corrêa (1996) deno-
minou de “marcadores sociais da diferença”. Vemos também preocupações
semelhantes às de Fry com a circulação de categorias e com o que se trans-
formava nos processos de apropriação.
Questionamentos sobre a inevitabilidade das classificações dualistas,
tentativas de encontrar caminhos para refletir sobre a complexidade da
operação articulada de diversas relações sociais de poder e um enorme
esforço de pensar sobre como a sexualidade como diferença operava entre
elas estavam presentes nesses trabalhos clássicos. Evoco aqui a antropo-
logia por ser o campo disciplinar que primeiro e mais intensamente se
debruçou sobre elaborar formas de compreensão da sexualidade para além
do campo mais infenso às normatividades sociais das disciplinas médicas,
além de ser o campo disciplinar que orienta de modo mais geral este livro.
Como procurei explicitar em outros trabalhos (FACCHINI; DANI-
LIAUSKAS; PILON, 2013), os estudos sobre gênero e sexualidade no Brasil

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272 Regina Facchini

têm como marcas a não separação entre estudos de gênero e de sexualidade e


a íntima relação, nem sempre pacífica, entre ativismos e produção de conhe-
cimento científico. Sérgio Carrara (2016) é um dos pesquisadores que tem
se dedicado, no campo da antropologia, a explicitar as relações entre pro-
dução de conhecimento científico e processos de cidadanização de LGBT
no Brasil. Os insights possíveis tiveram lugar em um contexto de eferves-
cência ativista possibilitado pelo processo de “abertura” na ditadura civil-
-militar na passagem dos 1970 aos 1980, pelos ventos da contracultura em
um contexto também marcado por transformações importantes no âmbito
das universidades.
Partes desses processos ainda aguardam análises mais adensadas, mas
algo me diz que seriam impensáveis sem o encontro de intelectuais e ati-
vistas que teve lugar em universidades, movimentos e na imprensa alter-
nativa do período. Embora a presença de intelectuais negras(os) tenha sido
atravessada por processos de obliteração da visibilidade próprios ao racismo,
é impossível não lembrar que as preocupações que atravessaram as obras de
Peter Fry e Néstor Perlongher conviveram em um mesmo tempo e lugares
relativamente próximos, como colunas em jornais alternativos, debates em
universidades e manifestações públicas emblemáticas, com as de intelec-
tuais negras como Lélia Gonzalez e Beatriz Nascimento. Embora sejam pre-
ocupações até certo ponto distintas, com caminhos diversos até sua chegada
aos programas de ensino de universidades públicas brasileiras, a publicação
de obras e organização de acervos pessoais e de grupos ativistas começam
a nos permitir investigar também as possíveis conexões.
Chamo atenção a essas possíveis conexões apenas para frisar o caráter
cotidiano e relacional que é parte da produção do conhecimento e nas quais
têm se ancorado historicamente reflexões sobre diferenças, desigualdades
e sexualidade. O faço porque, em momentos posteriores, a reflexão crítica
acerca da necessidade de problematizar os processos de produção de iden-
tidades tendeu, por vezes, obliterar possibilidades de diálogo. Ao longo dos
anos 2000, alguns fatores simultâneos no âmbito das políticas públicas
brasileiras e das universidades, em particular, estiveram relacionados ao
desenvolvimento de uma crítica aguda a identidades. Mas me parece que
algumas dessas críticas nem sempre chegaram a discernir com cautela
aquilo ao que exatamente se direcionava ou a conhecer a fundo os pro-
cessos e atores sociais envolvidos.
Ao mesmo tempo, vivíamos os ecos da Conferência de Durban contra
o racismo e intolerâncias correlatas e a criação de políticas públicas foca-
lizadas em algumas populações, tais como negras(os), mulheres, LGBT e

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posfácio 273

jovens, acompanhadas por espaços de gestão estatal e de participação socio-


estatal. Nas políticas para LGBT, vivemos o auge do processo de cidadani-
zação, com a criação do Programa Brasil Sem Homofobia, as conferências
e políticas públicas que previam ações e contavam pela primeira vez com
orçamento para o combate ao que na época ainda se chamava de homofobia.
As políticas previam, então, a criação de um tripé composto por um órgão
de gestão, um espaço de participação socioestatal e um plano, com princí-
pios, ações e metas. A gestão participativa, no período anterior à organização
das conferências de políticas públicas, priorizava a participação da “socie-
dade civil”, o que na época equivalia à ideia de uma “sociedade civil orga-
nizada” e a redes ativistas, como a ABGLT, Antra, LBL, ABL e várias outras
que surgiram posteriormente. As conferências permitiram um considerável
alargamento da participação. No entanto, nesse momento, havia muitas ten-
sões internas ao movimento social em relação à ocupação desses espaços
de interlocução com o Estado. Havia também muitas críticas com relação
aos modos como se distribuía a visibilidade das pautas e dos segmentos.
A participação socioestatal era um grande desafio a um movimento
tão internamente diversificado. Em um momento inicial, ainda na virada
para os anos 2000 e em sua primeira metade, tratava-se de transformar
demandas em pautas e de promover processos de negociação entre atores
sociais que foram explicitando suas diferenças e procurando ­organizá-las
de modo que se tornassem inteligíveis ao diálogo com atores estatais e
suas gramáticas. Não à toa passou-se a falar em segmentos e a organizar
diferentes redes nacionais, estaduais e municipais. Tratava-se ali de pro-
curar agir de modo criativo, a partir da busca de mínimos denominadores
comuns. A transversalização das pautas e dos segmentos era um objetivo
perseguido pela gestão para a produção das políticas, mas também sempre
muito árduo de se alcançar.
Nas universidades, passávamos por um processo de expansão das ins-
tituições públicas, dos programas de pós-graduação, dos investimentos
em pesquisa e em programas de ampliação do acesso em instituições pri-
vadas. Os estudos de gênero e sexualidade, que já cresciam a partir das
demandas geradas pelas conferências das Nações Unidas em Cairo e em
Beijing, datadas de meados dos anos 1990, agora se capilarizavam. Novas(os)
docentes chegavam a universidades públicas, parte deles trazendo na
bagagem formação, pesquisas e interesses por esse campo. Estudantes
demandavam acesso à literatura, que começavam também a acessar via
internet, a qual também se popularizava, e construíam coletivos ou se orga-
nizavam para estudar e demandar a inclusão de estudos sobre gênero e

glossario-das-desidentidades-MIOLO.indb 273 13/09/2023 07:13


274 Regina Facchini

sexualidade em que eles ainda não estavam disponíveis. Por meio do então
Encontro Nacional Universitário da Diversidade Sexual (ENUDS) mais de
uma geração de estudantes se formou articulando trocas intelectuais e
uma formação via vivência. (LIMA, 2016) Essa nova geração de docentes
e de estudantes interessadas(os) em gênero e sexualidade se encontrou
também com a popularização dos Estudos Queer, que se intensificou com
a chegada da tradução de Problemas de Gênero de Judith Butler, em 2003.
Nesse contexto, tornou-se comum ouvir críticas contundentes a iden-
tidades e ao “identitarismo”. “Identitário” tornou-se uma categoria de acu-
sação tão forte que o simples fato de mencionar a categoria identidade podia
macular a imagem de alguém frente a determinadas audiências. Naquele
momento, o fato de ter estudado processos de produção de identidades
coletivas no movimento (FACCHINI, 2005), mesmo que sob a perspectiva
crítica de Butler (2003) aos apagamentos, tensões e exclusões e ao risco de
tomar identidades como descritivas, era o suficiente para me colocar no
lugar de uma representante das identidades. Não importava que a própria
Butler (1998) houvesse sublinhado a importância das identidades coletivas
para o fazer político feminista e a necessidade de manter uma postura crí-
tica em relação a seus processos de produção.
Em certo momento, tornou-se frequente ver “queers” – como identidade
coletiva não necessariamente ativista num sentido estrito – se insurgirem
contra “identitários” – categoria de acusação. Tratava-se de um processo
político não muito diferente de outros que analisamos frequentemente na
antropologia que se debruça sobre o conflito ou a política: diferenciações,
identificações, acusações. Falar em identidade podia ter o poder de conta-
minar pessoas e espaços e de delimitar fronteiras, com o risco de inibir a
reflexão crítica ao essencialismo estratégico que tomasse em conta o coti-
diano e os desafios de quem se lançava a produzir políticas públicas. Risco
que não se concretizou: alguns excelentes trabalhos sobre os processos polí-
ticos e a ação de movimentos sociais no contexto da produção de políticas
públicas para mulheres, combate ao racismo, LGBT, jovens e outros “seg-
mentos” foram produzidos. Tais trabalhos registraram memórias, impasses
e estratégias desse período e podem servir para alimentar a reflexão aca-
dêmica e ativista num futuro, que espero não muito longínquo, em que se
possa novamente produzir políticas públicas, retomar processos de cida-
danização e pensar criticamente a partir de experiências anteriores.
Hoje, estamos em outro momento, e antes de falar dele, penso que é impor-
tante ter em conta o contexto brasileiro. Aqui nunca tivemos estudos de gênero
e sexualidade implicados com direitos que tenham se conformado como

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posfácio 275

campos separados. Há estudos sobre mulheres que não necessariamente


se envolveram com temáticas LGBT, mas não temos estudos sobre diversi-
dade sexual e de gênero que não guardem íntima conexão com os debates
feministas. Qualquer acusação de fragmentação das lutas não resiste a um
olhar histórico no qual vamos encontrar diálogos e entrelaçamentos entre
feminismos, movimentos LGBT e luta antirracista. Podemos argumentar e
desejar que os contatos e trocas fossem – ou sejam – mais intensos, mas não
há como falar em lutas isoladas. Podemos também observar muitos conflitos
envolvendo a maior visibilidade e acesso a informações e espaços decisó-
rios de gays brancos, mas não podemos esquecer ou apagar as lutas de gays e
lésbicas negros e muito menos o fato de que a construção do movimento de
pessoas trans no Brasil nasceu da luta de ativistas travestis, em sua maioria
negras, que buscaram, e seguem buscando, ocupar todos os espaços possíveis.
Para além das iniciativas e dos enquadramentos e repertórios ativistas
que ganharam maior visibilidade por meio de pesquisas e publicações ou que
tenham predominado em algum momento, me parece que sabemos muito
pouco sobre a grande diversidade de iniciativas no campo dos ativismos
que existiram ou que seguem existindo no Brasil, em suas diversas regiões,
especialmente para além das grandes cidades. É preciso reconhecer que
nosso conhecimento sobre as formas de organização relacionadas à diversi-
dade sexual e de gênero no Brasil é, ainda hoje, bastante precário. É também
precário nosso conhecimento sobre formas de classificação da diversidade
sexual e de gênero e seus processos de mudança em um país tão grande e
diverso quanto o Brasil. Nesse conhecimento estamos ainda engatinhando e
há muito por registrar e refletir. E não se trata de catalogar ou cristalizar, mas
de observar processos dinâmicos e contingentes em diferentes contextos.

(DES)IDENTIDADES E ALGUMAS
POSSIBILIDADES DE REFLEXÃO

Este conjunto de verbetes, articulados pela proposta de um glossário de


(des)identidades, é uma contribuição que chega em bom momento. Nele,
estão presentes um conjunto muito diversos de classificações encontrados
em campo, no cotidiano e que nos permitem abrir perspectivas de reflexão.
Entre os verbetes há categorias que operam como insultos, como no caso
de arrombado, e categorias acusatórias, carregadas de estigma, dirigidas
a um “outro” que não se reconheceria a partir delas e atravessadas por rela-
ções de poder de gênero, classe, raça, idade, etnicidade e território. Esse é o

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276 Regina Facchini

caso de barbie, bicha-boy, maricona, cafuçu, mavambo, pão-com-ovo,


pé-de-morro, que mostram a força de como normatividades sociais se ins-
crevem no modo como se pensa a sexualidade.
Se parte dessas categorias são explicitamente marcadas pela referência
ao desordenamento desconcertante que algumas expressões de sexuali-
dade produzem ao atravessar fronteiras de gênero e nos informam sobre
o poder das normatividades, uma delas chama a atenção por atravessar o
binarismo hetero-homossexual. Este é o caso de gilete, simultaneamente
marcada pela atribuição de ambiguidade de gênero: “esse bicha giletão
que não é homem nem mulher” registrado na paródia sertaneja de Mané
da Zona citada por Inácio Saldanha. A atribuição de poderes e perigos aos
sujeitos cujas heteroclassificações aludem a cruzamentos específicos de
relações de poder que transgridem pares binários faz Mary Douglas (1976)
ressoar fortemente no pensamento.
Algumas heteroclassificações jocosas ou acusatórias, em especial, são
carregadas de grande carga erótica, nos lembrando das formulações de
Perlongher (1987) sobre os tensores libidinais: articulações muito espe-
cíficas de classe, raça, gênero, mas também território e idade, que têm o
poder de evocar imagens e cenas e produzir sentidos que articulam sexo,
erotismo e transgressão. Daí a intensa presença de mavambos, cafuçus,
putos, giletes no imaginário erótico ou no que Gagnon (2006) chamou
de roteiros sexuais. A partir dessas categorias, seria possível pensar que o
modo pelo qual operam relações de poder estruturantes e binarismos pode-
rosos, ou mesmo como constituem forte presença no imaginário erótico,
estaria relacionado ao fato de que determinadas formas de classificação e
categorias resistam aos esforços de médicos e de militantes na direção de
um mundo ordenado em torno da separação entre gênero e sexualidade?
Nos verbetes que se referem a categorias de autoclassificação temos
outra faceta dos processos classificatórios, talvez mais próxima ao sentido
de (des)identidades proposto pelos organizadores deste glossário-coletânea.
Categorias como adé, cavalo-marinho, criança viada, camgirl, des-
construída, do vale, drag queen, escort, flexível, indetectável, irmã,
mavambixa, poliamorista, puto, saficrente, swinger, tomfem e tra-
vesti, operando como autoclassificações, descortinam formas de manejar
relações sociais de poder no que podemos chamar de experimentos com
a vida, tomando de empréstimo os termos de Das (2011). Acionadas em
diferentes contextos, operam como formas de agenciamento, sugerindo
abertura, fluidez, ressignificação frente a normatividades sociais bastante
consolidadas e relações sociais de poder que constrangem possibilidades

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posfácio 277

de existência relacionadas a gênero, sexualidade, afetividades/formação


de vínculos significativos. Sem pretensão de universalização ou mesmo
de atuação para além do contexto em que são acionadas trazem o sentido
de não normatividade acionado por Lino e Silva e Sanabria na introdução.
Contudo, fazem pensar também se haveria limites às possibilidades de res-
significar antigos insultos e acusações. Seria qualquer categoria acusatória
passível de ressignificação?
Entre as categorias que povoam estas páginas estão aquelas que são
apropriadas e ressignificadas ou deslocadas. Assim temos os sentidos asso-
ciados ao cafuçu, rude e viril, que aparece também na forma do mavambo
e lembra o “homem de verdade” dos modelos de Fry, ressignificado no
mavambixa. Mesmo o deslocamento da bicha, categoria que chegou a ser
reapropriada e ressignificada nos primeiros tempos do ativismo homosse-
xual, em direção à bixa, na qual opera uma torção em que o “x” é utilizado
também como alternativa à normatividade linguística, além de funcionar
como um marcador de diferenciação social, geográfico e racial das pessoas
LGBT das periferias, tal qual nos contam Igor Torres e Raphael Brito no ver-
bete mavambixa neste volume. Processos interessantes operam também
entre o estar em travesti, mencionada na pesquisa de Mário Carvalho (2011),
categorias que operam entre o insulto e o acusatório, como é o caso de tra-
veco e suas derivações, e a categoria travesti abordada no verbete de Jinx
Vilhas. Operam também na passagem da categoria acusatória aidético, dos
piores tempos do início da epidemia de HIV e aids, à pessoa vivendo com
HIV ou aids, mobilizada por grupos ativistas em décadas passadas, e ao
indetectável, do verbete assinado por Pisci Bruja.
Processos de apropriação e ressignificação ou deslocamento podem
apresentar ambiguidades boas para pensar. Na leitura do verbete gilete
fiquei me questionando: em que medida gilete seria uma (des)identidade,
no sentido de expressar inventividade e agência? Poderia ser lida como uma
categoria acusatória, boa para pensar, mas não sustentável como autoclassi-
ficação? Aparentemente, esta é a conclusão a que chegaram jovens ativistas
e pesquisadores bissexuais que aparecem no verbete, considerando o caráter
pernicioso dos sentidos binários relacionados a “cortar dos dois lados”. Nos
meus tempos de ativismo, embora pingentes no formato de gilete fossem
usados por algumas de nós, nos preocupavam, ainda, os estigmas relacio-
nados ao objeto cortante, que fere. E, com relação à categoria bissexual, rea-
propriada do campo científico, e deslocada dos sentidos morais e binários
da categoria gilete: poderia ser pensada como uma (des)identidade que
faz frente a intensas normatividades dentro e fora do movimento LGBT,

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278 Regina Facchini

ao mesmo tempo em que opera como uma categoria guarda-chuva para


uma série de expressões de gênero, sexualidade e afetividade? Que desa-
fios e possibilidades de reflexão isso traria para as definições de (des)iden-
tidades esboçadas na introdução a este volume?
Enquanto questionamentos desse tipo sugerem a continuidade do
diálogo com pesquisadoras(es) que trouxeram vinhetas de seus campos e
andanças para este volume e o acompanhamento de suas pesquisas, outras
questões emergem. A leitura deste livro me fez pensar muito na categoria
entendida com a qual me encontrei em campo na primeira metade dos
anos 2000 (FACCHINI, 2008) e em sua relação com processos de agencia-
mento individuais e coletivos que se fazem valer da baixa visibilidade e da
não nomeação em função de práticas.
Naquele contexto, a categoria entendida havia feito uma viagem: das
classes médias urbanas nos anos 1970 para as periferias urbanas da São
Paulo dos anos 2000. Encontrava-se, então, com contextos periféricos nos
quais entendidas se misturavam o máximo possível com os homens da
quebrada. Eventualmente se relacionavam com mulheres que eram hete-
rossexuais antes delas, mas que não tinham em seus horizontes possíveis
a autoclassificação como bissexuais e talvez não aceitassem um convite
para conversar em uma pesquisa sobre mulheres que se relacionam com
mulheres, eram simplesmente mulheres, não nomeadas a partir de suas
práticas e relações afetivo-sexuais. Entre entendidas vigorava, então, uma
valorização importante da ideia de respeito, o que se traduzia em uma dis-
tinção rígida entre público e privado no que tange a demonstrações de afeto.
Uma década depois, em uma atividade de visibilidade bissexual, me encon-
trei com uma ativista cultural periférica que se identificava como bissexual.
Fiquei pensando em como andariam as entendidas dos tempos de minha
pesquisa e suas companheiras, mas também no silêncio e na não classifi-
cação a partir da sexualidade como formas de agenciamento, talvez ainda
hoje importantes em determinados contextos.

IDENTIDADES, “IDENTITARISMO” E AS APOSTAS


POLÍTICAS CONTEMPORÂNEAS

O processo de cidadanização marcou as duas primeiras décadas dos anos


2000 até o atual desmonte das políticas voltadas para LGBT. No momento
histórico imediatamente anterior ao que vivemos, LGBT emergiram como
sujeitos de direitos no Brasil, o movimento social se revitalizou e ganhou

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posfácio 279

visibilidade inédita, um mercado voltado a gays, lésbicas e simpatizantes


floresceu, essa “população” ganhou as ruas na forma de multidões diversas
e multicoloridas nas Paradas do Orgulho ou da Diversidade. Ainda que esti-
véssemos muito distantes de uma efetiva construção de cidadania e dig-
nidade para LGBT, a percepção geral era de um inédito reconhecimento
– tanto que foi necessário mudar a chave analítica das pesquisas para que
pudessem também investigar o que significava tornar-se sujeito de direitos
e quais os limites desse reconhecimento. Progressivamente, porém, o sen-
timento de que nada estava ganho e de que cada espaço precisaria ser dis-
putado cresceu.
Nosso cenário político e social tem se movimentado muito rapidamente,
em direções muitas vezes imprevistas. Gênero e sexualidade têm ocupado
aí um lugar central: entre pânicos morais e fake news, ansiedades sociais
têm sido mobilizadas nesses planos com frequência. Esse processo que
coloca gênero e sexualidade no centro de disputas políticas responde ao
mecanismo frequente pelo qual essas arenas da vida social são lugares em
que se depositam ansiedades diversas (RUBIN, 2017), mas também res-
ponde à dinâmica dos embates políticos do nosso tempo. A ofensiva anti-
gênero que vivemos nos últimos anos pode ser entendida também como
uma resposta às conquistas no marco nacional e internacional na agenda de
direitos para mulheres e LGBT, apontando para disputas que ultrapassam
a escala nacional.
A aparentemente promissora agenda de raça, gênero e sexualidade
construída ao longo dos anos 2000, embutida em políticas orientadas para
a redução da discriminação e da desigualdade, se tornou alvo de processos
de desinformação e de mobilização de pânicos morais e passou por pro-
cessos de desmonte por forças políticas que ganharam mais voz e voto ao
longo dos anos 2010. Os próprios sentidos de “direitos humanos” e “justiça
social” tornaram-se alvo de disputas e reposicionamentos em favor do pri-
mado do mérito individual, da defesa de sujeitos abstratos como “a criança”
e “a família”, do fomento a categorias como “ex-gays” e seu alçamento a
sujeitos de direitos, da desqualificação e da desumanização de pessoas ou
coletividades imaginadas como ameaças a valores, posições e hierarquias
tradicionalmente estabelecidas
Esse é um cenário que tem desafiado pessoas que se dedicam à pesquisa
sobre diversidade sexual e de gênero. Temos sido instados a reler nossos
trabalhos, a redirecionar nossos interesses de pesquisa, a ampliar os diá-
logos com outros campos de estudo. Se nos batemos contra o anti-intelectu-
alismo e as ameaças à universidade, e aos estudos de gênero e sexualidade

glossario-das-desidentidades-MIOLO.indb 279 13/09/2023 07:13


280 Regina Facchini

como um dos alvos preferenciais de ataques, também temos feito dessa


constante luta um estímulo à reflexão e ao encontro. Como afirmou, Júlio
Simões (2020, p. 15) observando outro conjunto de textos e reflexões que
tive o prazer de colaborar para reunir recentemente, por mais que se brade
categorias como “ideologia de gênero”

não foi possível fazer terra arrasada de todos os arranjos, programas


e planos institucionais, da expansão e da diversificação dos movi-
mentos sociais, das novas tecnologias de comunicação e associação,
dos formatos de militância e ativismo postos em prática, da reflexão
e dos conhecimentos que continuaram a ser refinados e produzidos.

É exatamente dessa diversidade de arranjos, formatos e formas de


expressão que resistem e do modo como se articulam em relação ao foco deste
livro que gostaria de falar um pouco para finalizar. Recentemente, a partir de
revisão de literatura e de um esforço coletivo de pesquisa etnográfica, ana-
lisei processos de mudança no modo de definição dos sujeitos políticos, nos
repertórios e nos enquadramentos em torno do movimento LGBT ao longo
das últimas quatro décadas. (FACCHINI, 2020) Meu argumento ali é o de que
as diferentes formulações do sujeito político – de homossexual a LGBTQIAP+
e suas variantes – que nomeia o movimento têm relação com distintos enqua-
dramentos coexistentes, e que tais enquadramentos estão relacionados a duas
diferentes lógicas que convivem em tensão no movimento brasileiro desde
sua origem. Nomeei essas diferentes lógicas que atravessam os enquadra-
mentos e coexistem ao longo do tempo de “experiência” e de “identidade”.
Ao falar em “experiência” pretendi me referir a uma busca por expressar
a diversidade, a complexidade e a fluidez. Ao mobilizar a categoria “identi-
dade”, procurei me referir à lógica que tende ao pragmatismo e à expressão
de denominadores comuns, privilegiando a comunicação contextual, o
que estaria mais próximo às estratégias conhecidas como “essencialismo
estratégico”. Nessa análise, segui apostando em analisar processos de pro-
dução de identidades coletivas ou acrônimos a partir de uma perspectiva
que considera os atores presentes no campo ativista e as relações – de cola-
boração ou conflito – que estabelecem entre si no transcurso de determi-
nados processos políticos.
Atualmente, apesar do relativo fechamento da agenda política para as
demandas de LGBT nos governos e no legislativo, o campo composto por
pessoas que se envolvem em processos políticos tem se ampliado até o limite
em que boa parte dos interessados desenvolve algum tipo de atividade que

glossario-das-desidentidades-MIOLO.indb 280 13/09/2023 07:13


posfácio 281

considera política. Parte dessas atividades é muito fugaz, tem objetivos pon-
tuais. Outras se dão exclusivamente na dimensão on-line. Algumas organi-
zações ativistas mais tradicionais, cujo formato é institucionalizado, seguem
existindo. Esses vários tipos de atividades considerados políticos coexistem,
e as pessoas eventualmente transitam por mais de um.
A multiplicidade e coexistência de várias formas de ativismo e sua
diversificação a ponto de se falar de uma “diluição da forma movimento”
(BRINGEL, 2018) tornam mais evidentes as diferentes lógicas quando
olhamos para acrônimos como LGBT, e suas variantes LGBTI ou LGBTI+,
e para outros, como LGBTQIAP+ e suas inúmeras variantes. A partir de
um olhar exterior, podemos argumentar que em ambos os casos se trata
de uma lógica enumerativa. Contudo, meu argumento é que há aí dife-
renças importantes nos modos de composição, finalidades e contextos em
que esses diferentes tipos de acrônimos circulam. Não se trata apenas de
siglas mais ou menos consolidadas ou de ausência de reconhecimento ou
obliteração da visibilidade.
O primeiro conjunto de acrônimos – LGBT e suas variantes LGBTI, que
em alguns contextos ou ocasiões incluem o sinal de +, embora isso possa
se tornar controverso – estaria relacionado a uma lógica política pragmá-
tica, que procura expressar denominadores comuns, visando a disputa por
direitos que podem alcançar outros sujeitos, que não necessariamente se
reconhecem a partir das categorias explicitamente citadas. Tais acrônimos
têm circulado em redes em que as iniciativas ativistas se organizam pre-
dominantemente a partir de formas institucionalizadas, em cenários em
que estão presentes atores estatais ligados aos diversos poderes e níveis
de governo.
Acrônimos como LGBTQIAP+ e suas inúmeras variantes seriam, para
dialogar com os organizadores desta coletânea, mais próximos de uma
forma enumerativa, embora procurando expressar a diversidade, a com-
plexidade e a fluidez. Nesse sentido, estariam mais próximos do que se
pretendeu alcançar internacionalmente como a mobilização da categoria
queer ou do que tentamos expressar quando usamos expressões amplas,
como diversidade sexual e de gênero. Seu uso mais frequente se dá em redes
sociais, em meios de comunicação, em iniciativas ativistas mais distantes
de formatos institucionalizados. Estão predominantemente mais presentes
entre atores mais jovens, sobretudo em iniciativas que lançam mão de reper-
tórios fundados na expressão artística, disputas culturais, muitas das quais
têm no cerne categorias como “representatividade”, e na ideia de “hackear
o sistema”. Trata-se de reconhecimento, mas nem sempre há demandas por

glossario-das-desidentidades-MIOLO.indb 281 13/09/2023 07:13


282 Regina Facchini

especificidades em termos de políticas públicas ou legislação. Os atores


que as mobilizam nem sempre se sentem em oposição aos que mobilizam
o conjunto anterior de acrônimos. Há casos de circulação de atores e de
colaboração. Há também críticas de ambos os lados, processos de diferen-
ciação, acusações e delimitações de fronteiras, mas circunscritas a deter-
minados atores e contextos.
Tenho argumentado, ainda, que embora os acrônimos sejam novos, as
tensões entre ambas as lógicas não o são. Nos anos 1970 e 1980, podemos
lembrar das tensões entre o “ser” versus o “estar” homossexual, que ante-
cederam o processo de produção de sujeitos políticos estáveis no período
de abertura e início da redemocratização, que viu emergir a categoria orien-
tação sexual. As resistências às exclusões e apagamentos expressos pelas
lésbicas e por gays e lésbicas negras(os) nesse contexto de centramento, bem
como as tensões envolvendo a complexidade e a fluidez da sexualidade res-
surgem nas décadas seguintes de diferentes formas.
A criação de acrônimos e a disputa entre a ordem das letrinhas coin-
cidem com o adensamento do processo de cidadanização de GLBT a partir
da segunda metade dos anos 1990. A inclusão de lésbicas e travestis e tran-
sexuais, além do indigesto B, no acrônimo e a mobilização da categoria
identidade de gênero respondem a parte da demanda reprimida quando
da mobilização das categorias homossexual e orientação sexual nos anos
1980. Mas, além disso, também a partir da segunda metade dos anos 1990,
temos a emergência das multidões diversas e multicoloridas nas paradas
e a organização de um movimento por diversidade sexual (posteriormente
rebatizado para incluir a diversidade de gênero), que questionavam o essen-
cialismo estratégico e não focalizavam diretamente o diálogo socioestatal.
Tais questionamentos se adensam nos anos 2010. Mas, além disso, novo
processo de multiplicação de categorias tem lugar ao mesmo tempo em que
as políticas de direitos humanos, sob a égide de um governo que se auto-
classifica como “conservador” e/ou “de direita”, elegem outros sujeitos de
direitos, como “ex-gays” e “a família”. Uma primeira hipótese, frequente-
mente aventada para esse novo processo de multiplicação de categorias, é
a de que esteja em curso um processo descontrolado de produção de iden-
tidades, desvinculado das conflituosas negociações coletivas que perpas-
savam a participação socioestatal. Tenho argumentado que essa hipótese
dificulta vislumbrar qualquer possibilidade de produção de coalizões estra-
tégicas e de articulação entre formas institucionais e menos institucionais
de atuação. Além disso, deságua na mobilização da categoria “identita-
rismo”, de caráter acusatório e deslegitimador.

glossario-das-desidentidades-MIOLO.indb 282 13/09/2023 07:13


posfácio 283

Tenho procurado me afastar dessa hipótese ao situar a longevidade das


tensões entre apelos à experiência e à atribuição de sentidos para a luta base-
ados na opressão vivida e, por outro, identidades pactuadas visando a obje-
tivos estratégicos e coletivos. Nessa direção, tenho argumentado que se pode
situar as categorias que surgem nesse campo nos anos 2010 como sendo de
dois tipos. Um primeiro tipo diz respeito à inclusão de alguns sujeitos cole-
tivos que ainda não haviam sido mobilizados no país, mas são frequentes
no movimento internacional: homens trans e intersexo. Um segundo tipo,
procura fazer com que se considere a multiplicidade e a complexidade que
transcendem o que é possível alcançar a partir do essencialismo estratégico.
Essa necessidade de fazer reconhecer a “experiência” está presente em cate-
gorias já mais tradicionais, como bissexuais, mas também em outras catego-
rias que passaram a circular, como não bináreis, pansexuais, polissexuais,
assexuais, demissexuais, arromânticos, entre várias outras que remetem a
pontos específicos situados em espectros relacionados a gênero, sexuali-
dade ou afetividade.
Contudo, se as categorias representadas no acrônimo se multiplicam,
isso não implica necessariamente risco de fragmentação. Tenho observado
que a dinâmica das articulações coletivas tem se dado, na maior parte dos
casos, com base na íntima conexão entre “experiência” e “interseccionali-
dade”. Assim, têm se conectado lutas relacionadas a diversas “opressões”,
mas também tem se reencantado a política, na medida em que se permite
dialogar com a experiência mais individual e cotidiana sem que, no entanto,
esta seja pensada de modo dissociado das múltiplas estruturas de poder
que as atravessam e constituem.
Termino essa partilha de minhas reações à leitura deste livro me per-
guntando em que medida as identidades e acrônimos do presente não ope-
raram em algum momento, ou seguem operando contextualmente, como
(des)identidades. Quais enfrentamentos promovem? Que lugares de subal-
ternidade ocupam? Quais riscos de criar normatividades mais acentuadas
correm? No atual contexto, me parece que não há categoria relacionada ao
“mau sexo” na estratificação sexual que goze de conforto. Algumas remetem
a expressões menos malvistas e permitem nos aproximar mais da ideia de
vidas vivíveis e mortes choráveis se comparadas a outras.
As apostas no essencialismo estratégico, na medida em que têm em
mente seu caráter estratégico e os apagamentos que possam engendrar,
não me parecem exercer necessariamente um caráter prescritivo em um
sentido mais universalizante; elas podem atuar como meros recursos dialó-
gicos operando com gramáticas socioestatais. Algumas conquistas, como o

glossario-das-desidentidades-MIOLO.indb 283 13/09/2023 07:13


284 Regina Facchini

casamento, delineiam horizontes normativos, mas, ao final da leitura deste


livro, me pergunto em que medida tais horizontes chegam a constranger
outras expressões e existências.
Por outro lado, apesar das intenções inclusivas e não normativas, me per-
gunto também sobre o potencial normativo presente na estratégia que tem
permitido uma conexão política com a experiência do cotidiano e do vivido
e uma articulação com o “combate a todas as formas de opressão”. A exausti-
vidade dos acrônimos que não cessam de adicionar letras antes do sinal de +
parecem querer desafiar o próprio limite que as palavras têm para nomear
e captar a diversidade das coisas e a complexidade do vivido. Faz pensar,
também, no risco presente na tentação de produzir categorias que pretendem
nomear grupos formados por sujeitos autoidênticos, sobretudo nas poten-
ciais capturas quando coexistem com noções como “representatividade”.
Se movimentos no sentido de fazer algo daquilo que é feito de si podem
estar presentes no cotidiano, em contextos localizados e contingentes,
me parece que ele pode estar também nas várias formas de atuação polí-
tica mais visível que encontramos hoje no cenário brasileiro, embora o
potencial normativo aumente na medida em que cresce a expressão visível.
Historicamente, as tensões entre lógicas pautadas na “identidade” e na
“experiência” parecem ter cumprido um papel de afastar normatividades
extremas. Por outro lado, como já nos alertava Butler (1998, 2003), a perspec-
tiva autocrítica representa um papel muito importante, que não deve jamais
ser menosprezado. E, nisto, este livro apresenta contribuições significativas.

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glossario-das-desidentidades-MIOLO.indb 285 13/09/2023 07:13


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287

SOBRE AS AUTORAS
E OS AUTORES

Moisés Lino e Silva (organizador) – Professor do Departamento de


Antropologia e Etnologia e do Programa de Pós-Graduação em Antropologia
da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Atua principalmente no campo
da antropologia política, especializando-se nos estudos etnográficos da
liberdade e da autoridade em relação a temas mais amplos, como religião,
raça, violência e sexualidade. É autor do livro Liberalismo minoritário: vida
travesti na favela (Edições 70, 2023) e membro do Conselho Internacional
de Ciências Sociais (UNESCO).
E-mail: moises.lino@ufba.br

Guillermo Vega Sanabria (organizador) – Professor do Departamento de


Antropologia e Etnologia e do Programa de Pós-Graduação em Antropologia
da Universidade Federal da Bahia (UFBA). No seu trabalho convergem as
contribuições da antropologia, da cognição e da educação. Interessa-se nas
relações entre ciência, escola e política, além da produção de conhecimento
em contextos institucionais e na formação de comunidades de especialistas
(notadamente professores e cientistas). É coordenador da Comissão de
Educação, Ciência e Tecnologia da Associação Brasileira de Antropologia.
E-mail: guillermo.sanabria@ufba.br

glossario-das-desidentidades-MIOLO.indb 287 13/09/2023 07:13


288 Sobre as autoras e os autores

Almerson Cerqueira Passos – Homem negro, viado, suburbano, candom-


blecista, pesquisador, escritor, professor e psicólogo. Autor do livro Águas
de um Orí: Escritos de uma vida. Mestre pelo Programa de Pós-Graduação
em Estudos Interdisciplinares sobre Mulheres, Gênero e Feminismo, pela
Universidade Federal da Bahia (UFBA). Integrante do Núcleo de Pesquisa e
Extensão em Culturas, Gêneros e Sexualidades (NuCus/UFBA), e do Grupo
de Estudos Feministas em Política e Educação (GIRA/UFBA).
E-mail: cerqueira@hotmail.com

Anne Alencar Monteiro – Doutoranda e mestre em Antropologia pela


Universidade Federal da Bahia (UFBA). Especialista em Gênero, Diversidade
e Direitos Humanos pela Universidade da Integração Internacional da
Lusofonia Afro-Brasileira (UNILAB). Possui graduação em Ciências Sociais
pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Tem experiência e interesse
de pesquisa na área de Antropologia do gênero e do parentesco, transmas-
culinidades, reprodução e Estudos Queer.
E-mail: anne.alencar@ufba.br

Antoine Badaoui – Doutorando em Mídia e Comunicação na Universidade


de Leicester (LE) no Reino Unido. Pesquisa o uso de mídias pelas
Organizações Não Governamentais LGBT libanesas. Antoine enquadra
sua pesquisa dentro das potencialidades de mídia sociais; em particular,
das potencialidades de visibilidade, associação e persistência.
E-mail: ab947@leicester.ac.uk

Antonio Cerdeira Pilão – Doutor em Antropologia pelo Programa de Pós-


Graduação em Sociologia e Antropologia da Universidade Federal do Rio de
Janeiro (PPGSA-UFRJ). Pós-doutorando pelo Programa de Pós-Graduação
em Antropologia Social da Universidade de São Paulo (PPGAS-USP).
Pesquisador do Núcleo de Estudos sobre Marcadores Sociais da Diferença
(NUMAS-USP) e do Núcleo de Antropologia do Direito (NADIR-USP).
Coordenador do grupo de pesquisa Políticas, afetos e sexualidades não-
-monogâmicas (Diretório CNPq).
E-mail: pilao@usp.br

Bruna Silva Araújo – Doutoranda em Antropologia pela Universidade


Federal da Bahia (UFBA). Mestra em Antropologia pelo Programa Associado
de Pós-Graduação da Universidade Federal do Ceará e pela Universidade da

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sobre as autoras e os autores 289

Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (UNILAB). Graduada


em Ciências Sociais pela Universidade Estadual Vale do Acaraú.
E-mail: brunaaraujo.edu@gmail.com

Bruno Puccinelli – Doutor em Ciências Sociais (Unicamp), tem refletido


sobre cidade e memória em convergência com gênero e sexualidades, minis-
trando formações e oficinas em direitos humanos, saúde e sexualidade em
instituições culturais e de ensino. É autor do zine independente Lubricidade
e de artigos e capítulos de livros sobre essas temáticas. Faz parte de núcleos,
grupos de pesquisa e redes de investigação como a Rede de Estudos de
Geografia, Género e Sexualidade Ibero Latino-Americana (RGGSILA).
E-mail: bruno.puccinelli@alumni.usp.br

Caroline Dal’Orto – Licenciada em Filosofia, mestranda em Antropologia


pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia da UFBA. Vinculada
ao grupo de pesquisa Ética, Poder e Abjeção. Tem experiência na área
de Filosofia da Ciência e Antropologia, com ênfase em Epistemologia e
Antropologia Feminista, atuando principalmente nos seguintes temas:
teoria da ciência e tecnologias de gênero e sexualidade, ­interseccionando-se
com raça e classe. Atualmente faz pesquisa sobre trabalho, tecnologias digi-
tais e pornografia.
E-mail: caroline.coutinho@ufba.com

Cecilia Lisa Eliceche – (Wallmapu 1986) é mãe, dançarina e coreógrafa.


Filha espiritual de Houngan Jean-Daniel Lafontant de Sosyete NaRiVèh
(PAP, Haiti) é membra do conselho de KOSANBA (Congress of Santa Barbara),
The Scholarly Association for the Study of Haitian Vodou. Atualmente tra-
balha com Leandro Nerefuh, Heather Kravas, Dr. Kyrah Malika Daniels,
Dr. Paulo França, Egbomi Nancy de Souza, Weichafe Moira Ivana Millan,
Emeraldo Emerito Santana e Dancing at the Crossroads (as we walk).
E-mail: cecilialxe@gmail.com

Claudenilson da Silva Dias – Bicha negra periférica e candomblecista.


Bacharel em Humanidades (IHAC/UFBA), pesquisador permanente do
Núcleo de Pesquisa e Extensão em Culturas, Gêneros e Sexualidades (NuCuS/
UFBA), mestre e doutorando pelo Programa de Pós-Graduação sobre a Mulher,
Gênero e Feminismo (PPGNEIM/UFBA). Professor Assistente (IHAC/UFBA).
Autor do livro Identidades trans* em Candomblés: entre aceitações e rejeições.
E-mail: dias.claudenilson@ufba.br

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290 Sobre as autoras e os autores

Edward Armando González Cabrera – Doutorando em Antropologia


pela Universidade Federal da Bahia (PPGA/UFBA) e em STAPS – Sociologie
(Université Rennes II, Laboratoire VIPS2). Graduado em Psicologia
(Universidad Pedagógica y Tecnológica de Colombia) e em Ciências Sociais
(Université de Strasbourg); mestrados em Psicologia e Sociologia (Université
de Poitiers) e mestrado em Estudos de Gênero (Université Rennes II).
Interessa-se por estudos de gênero e por construção social do corpo.
E-mail: edward.gonzalez.c@gmail.com

Felipe Aurélio Euzébio – Possui graduação em Licenciatura em Ciências


Sociais pela Universidade Federal de Pelotas (UFPel). Atualmente, é mes-
trando e bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia
(FAPESB) no Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade
Federal da Bahia (PPGA/UFBA) pela Linha de Pesquisa Gênero, Sexualidades
e Estudos Queer.
E-mail: felipeeuzebio@ufba.br

Gloria Wekker – Professora emérita no Departamento de Estudos de


Gênero, Faculdade de Humanas, na Universidade de Utrecht, Holanda.
Foi consultora do governo holandês em políticas de emancipação para
minorias, saúde e mulheres. Entre seus livros estão The Politics of Passion;
Women´s Sexual Culture in the Afro-Surinamese Diaspora (2006) e White
Innocence. Paradoxes of Colonialism and Race in the Netherlands (2016).
Atualmente, escreve um livro de gênero misto ficção/não ficção sobre suas
duas avós e dois avôs, intitulado Families Navigating Empire.
E-mail: g.d.wekker@uu.nl

George Amaral Santos – Professor de Cuidado em Saúde Mental na Escola


de Enfermagem da Universidade Federal da Bahia (EEUFBA), é enfermeiro
especialista em Saúde Mental, mestre e doutor em Saúde Coletiva. Pesquisa
sobre a saúde mental na Atenção Básica à Saúde e a relação entre saúde
mental, gênero e sexualidades.
E-mail: george.amaral@ufba.br

Guilherme R. Passamani – Professor da Universidade Federal de Mato


Grosso do Sul (UFMS). Atua nos Programas de Pós-Graduação em Antropologia
Social (PPGAS) e Estudos Culturais (PPGCult). Doutor em Ciências Sociais
pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Pesquisador associado

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sobre as autoras e os autores 291

ao Núcleo de Estudos Néstor Perlongher (NENP/UFMS) e ao CRIA – Centro


em Rede de Investigação em Antropologia (ISCTE-IUL).
E-mail: guilherme.passamani@ufms.br

Hildon Oliveira Santiago Carade – Professor de Sociologia do Instituto


Federal Baiano (IF BAIANO), campus Santa Inês. Desde a graduação em
Ciências Sociais (UFBA), seu trabalho etnográfico vem percorrendo as temá-
ticas da juventude, da educação e das políticas públicas em contexto urbano.
Atualmente, se interessa pela interlocução desses temas com a esfera do
Direito, numa perspectiva da Antropologia do Estado.
E-mail: hildon.carade@ifbaiano.edu.br

Igor Leonardo de Santana Torres – Mestrando em Antropologia Social


na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Bacharel em
Estudos de Gênero pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Atualmente
dedica-se a estudar temas ligados aos Estudos de Fãs, à Antropologia da
Ética e da Moral, do Consumo, das Religiões Afro-brasileiras, e do Gênero
e da Sexualidade.
E-mail: torres.igorsantana@gmail.com

Inácio dos Santos Saldanha – Licenciado em História pela Universidade


do Estado do Pará (UEPA), mestrando em Antropologia Social pela
Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e um dos coordenadores
do Grupo Amazônida de Estudos sobre Bissexualidade (GAEBI).
E-mail: inaciosants@gmail.com

Isadora Lins França – Professora do Departamento de Antropologia do


Instituto de Filosofia e Ciências Humanas na Universidade Estadual de
Campinas (IFCH/Unicamp) e pesquisadora colaboradora do Núcleo de
Estudos de Gênero Pagu/Unicamp. É doutora em Ciências Sociais (IFCH/
Unicamp) e mestre em Antropologia Social (FFLCH/USP). Seus temas de
interesse são gênero, sexualidade, mobilidades, consumo e diferença.
E-mail: doralins@unicamp.br

Jinx Vilhas – Tem licenciatura em Ciências Sociais pela Universidade


Federal de Viçosa (UFV) com período de mobilidade na Universidade
de Coimbra (UC) e atualmente faz mestrado em Antropologia Social
pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) com bolsa CNPq.

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292 Sobre as autoras e os autores

Possui interesse nas áreas de Antropologia da Política, Sexualidade,


Transgeneridade, Violência e Conservadorismo.
E-mail: danielvilhas@gmail.com

João Victtor Gomes Varjão – É doutorando em Antropologia Social pela


Universidade de São Paulo (USP). Mestre em Antropologia Social pela
Universidade Federal da Bahia (UFBA). Cientista Social pela Universidade
Federal do Vale do São Francisco (UNIVASF). Desenvolve, atualmente, sua
pesquisa de tese sobre sexualidade, prazer e risco. Interessa-se sobre temá-
ticas relacionadas à etnografia, sexualidade, gênero e juventude.
E-mail: jvgomesvarjao@gmail.com

Leandro Nerefuh – (M’Boygy 1975) é perambuleiro, costureiro, tradutor


e construtivista tabaréu.
E-mail: leandro@nerefuh.com.br

Louise Tavares Oliveira do Nascimento – Mulher, preta e bissexual for-


mada em Ciências Sociais, atualmente faz mestrado na Universidade Federal
da Paraíba (UFPB) pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social.
Estuda as relações entre religião, gênero e sexualidade. Na atual pesquisa
se dedica a estudar um grupo de mulheres cristãs evangélicas e católicas.
E-mail: lotavares023@gmail.com

Lucas Moreira – Bacharel em Ciências Sociais, mestre em Arquitetura e


Urbanismo e atualmente doutorando em Antropologia pela Universidade
Federal da Bahia (UFBA). Tem experiência nas áreas de Antropologia
Urbana, Antropologia do Corpo e Antropologia do Gênero, c­ oncentrando-se
na temática das masculinidades. É membro do grupo de pesquisa: Ética,
Poder e Abjeção.
E-mail: moreiras.lucas@gmail.com

Macarena Williamson – Mestra em Antropologia Social pelo Centro


de Investigaciones y Estudios Superiores en Antropología Social Social
(CIESAS, México), é doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Ciências
Sociais da Universidade Estadual de Campinas. Suas pesquisas têm se cen-
trado no gênero, sexualidades, subjetividades e violências em diferentes
contextos fronteiriços: migração centro-americana aos Estados Unidos,
fluxos venezuelanos no Brasil, EJA e migração transnacional no Chile.
E-mail: m264128@dac.unicamp.br

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sobre as autoras e os autores 293

Maria Silvério – Doutora e mestra em Antropologia pelo Instituto


Universitário de Lisboa (ISCTE/IUL). Investigadora no Centro em Rede de
Investigação em Antropologia (CRIA-IUL). Autora do livro Swing: Eu, Tu...
Eles. Integrante do grupo de pesquisa Políticas, Afetos e Sexualidades Não-
Monogâmicas (Diretório CNPq). Graduada em Jornalismo (PUC-MG). Áreas
de investigação: gênero, sexualidade, não monogamia, swing, poliamor,
relacionamento aberto, relações livres e anarquia relacional.
E-mail: mariassilverio@hotmail.com

Maycon Lopes – Doutorando em Ciências Sociais pela Universidade Federal


da Bahia (UFBA) e editor associado de Novos Debates (Associação Brasileira
de Antropologia). Com experiência de estágio em pesquisa no exterior,
nomeadamente na Rede Europeia Anti-Pobreza (EAPN), e em pesquisas
desenvolvidas pelo Instituto de Saúde Coletiva da UFBA. Suas principais
reflexões se dirigem aos estudos de gênero e sexualidade, campos sobre os
quais tem publicado regularmente, em periódicos nacionais e estrangeiros.
E-mail: mayconslopes@gmail.com.

Murillo Nonato – Graduado em Comunicação Social com habilitação


em Jornalismo pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB),
possui mestrado em Cultura e Sociedade pela Universidade Federal da
Bahia (UFBA) e é doutorando em Antropologia pela UFBA. É autor do livro
Vivências Afeminadas: Pensando corpos, gêneros e sexualidades dissidentes
(Devires, 2020).
E-mail: nonato.murillo@gmail.com

Mylene Mizrahi – Doutora em Antropologia Cultural (UFRJ/UCL), pro-


fessora na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio),
coordenadora do Estetipop (Laboratório em Estéticas, Cultura Pop e
Antropologia) e Jovem Cientista do Nosso Estado. É autora de A estética funk
carioca: criação e conectividade em Mr. Catra (tese laureada pelo Prêmio
IPP-Rio Maurício de Almeida Abreu da Secretaria Municipal de Urbanismo,
RJ) e de Figurino funk: roupa, corpo e dança em um baile carioca.
E-mail: mylenemizrahi@gmail.com

Nina Acacio – Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Antropologia


Social da Universidade Federal de Santa Catarina (PPGAS/UFSC) e bolsista
CAPES. Arqueóloga formada pela Universidade Federal do Rio Grande
(FURG). Integra o Núcleo de Dinâmicas Urbanas e Patrimônio Cultural

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294 Sobre as autoras e os autores

(NAUI/UFSC), o Grupo de Estudos Etnográficos Urbanos (GEEUR) e o


Margens: Grupos em Processos de Exclusão e suas Formas de Habitar as
Cidades (MARGENS) da Universidade Federal de Pelotas (UFPel).
E-mail: ninacacio@outlook.com

Pisci Bruja Garcia de Oliveira – Travesti biológica e fármaco-possuída


vivendo com HIV/aids. Transpóloga e educadora social no Centro de Pesquisas
Clínicas do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade
de São Paulo (CPC2-HCFMUSP). Articuladora em saúde na ONG Casa Chama
e na Coordenadoria de IST/HIV/AIDS da cidade de São Paulo. Membro da
Coletiva Loka de Efavirenz e redutora de danos na ONG É de Lei.
E-mail: piscibruja@gmail.com

Raphael Cardoso Brito – Mestrando em Antropologia Social na


Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), bacharel em Psicologia
pela Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS). Atualmente dedica-
-se a estudar temas ligados à Antropologia do Gênero e da Sexualidade e
aos estudos sobre prostituição, abjeção e velhice.
E-mail: raphael.brito163@gmail.com

Regina Facchini – Pesquisadora do Núcleo de Estudos de Gênero Pagu e


professora do Programa de Doutorado em Ciências Sociais e do Programa
de Pós-Graduação em Antropologia Social, todos na Unicamp. Bolsista
de Produtividade em Pesquisa Nível 2 (CNPq). Foi editora dos Cadernos
Pagu (2014-2017), coordenadora do Comitê de Gênero e Sexualidade da
Associação Brasileira de Antropologia (2015-2016), coordenadora da Área
de Estudos de Gênero do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais
da Unicamp (2013-2016) e representante dos editores de Ciências Humanas
no Comitê Consultivo SciELO Brasil (2014-2016).
E-mail: re.facchini@gmail.com

Roberto Marques – Doutor em Antropologia Cultural pela Universidade


Federal do Rio de Janeiro (PPGSA-UFRJ) e professor do Programa de Pós-
Graduação em Sociologia da Universidade Estadual do Ceará (PPGS/UECE).
Pesquisa formas expressivas da articulação entre gênero, sexualidade, espa-
cialidades e localização social. É autor dos livros Cariri eletrônico: Paisagens
sonoras no Nordeste, Objetos não-identificados: Deslocamentos e margens na
produção musical do Brasil e Contracultura, tradição e oralidade.
E-mail: roberto.marques@urca.br

glossario-das-desidentidades-MIOLO.indb 294 13/09/2023 07:13


sobre as autoras e os autores 295

Tiago Duque – Possui doutorado em Ciências Sociais pela Universidade


Estadual de Campinas (Unicamp). Possui mestrado em Sociologia pela
Universidade Federal de São Carlos (UFSCAR) e pós-doutorado em Educação
pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). É professor na
Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), no Programa de Pós-
Graduação em Educação do campus Pantanal e na Faculdade de Ciências
Humanas. Lidera o Impróprias – Grupo de Pesquisa em Gênero, Sexualidade
e Diferenças.
E-mail: tiago.duque@ufms.br

Victor Hugo de Souza Barreto – Doutor em Antropologia pela Universidade


Federal Fluminense (UFF). É bolsista de pós-doutorado (PNPD/CAPES) no
Programa de Pós-Graduação em Antropologia da UFF. Pesquisador asso-
ciado ao NuSEX (Núcleo de Estudos em Corpos, Gêneros e Sexualidades)
do PPGAS/Museu Nacional – UFRJ. Autor de Vamos fazer uma sacanagem
gostosa? Uma etnografia da prostituição masculina carioca e de Festas de
orgia para homens: territórios de intensidade e socialidade masculina.
E-mail: torugobarreto@yahoo.com.br

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Formato: 17 x 24 cm
Fontes: Parmigiano Text Pro, Tiempos Text
Miolo: Papel Off-Set 75 g/m2
Capa: Cartão Supremo 300 g/m2
Impressão: Gráfica 3
Tiragem: 300 exemplares

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GUILLERMO VEGA SANABRIA é professor
do Departamento de Antropologia e
Etnologia e do Programa de Pós-Graduação
em Antropologia da Universidade Federal
da Bahia. No seu trabalho convergem
as contribuições da antropologia, da
cognição e da educação. Interessa-se nas
relações entre ciência, escola e política,
além da produção de conhecimento em
contextos institucionais e da formação
de comunidades de especialistas
(notadamente professores e cientistas).

MOISÉS LINO E SILVA é professor do


Departamento de Antropologia e Etnologia
e do Programa de Pós-Graduação em
Antropologia da Universidade Federal da
Bahia. Atua principalmente no campo da
antropologia política, especializando-se
nos estudos etnográficos da liberdade e
da autoridade em relação a temas mais
amplos, como religião, raça, violência e
sexualidade. É autor do livro Minoritarian
Liberalism: A Travesti Life in a Brazilian
Favela (Chicago 2022).
As pesquisas etnográficas reunidas nesta obra
exprimem um universo de práticas, experiências e
significados que dificilmente se esgota em uma sigla.
Antes de mais nada, retratamos formas contraditórias,
criativas e irreverentes de sujeitos concretos
conceberem a si mesmos diante de novas maneiras
de (des)identificar-se e de viver a sexualidade e os
afetos no mundo contemporâneo. Alguns dos verbetes
aqui apresentados são mais conhecidos, enquanto
outros podem ser uma novidade. Em qualquer caso,
todos eles convidam a irmos além de divisões rígidas,
engessadas, e adentrarmos em vivências outras, a
partir das quais, quem sabe, também possamos nos
reconhecer em nossas próprias contradições, mas
também em nossa criatividade e irreverência.

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