08 Apocalipse - Esperança de Um Povo Que Luta

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ESQUEMA DO APOCALIPSE

I. A CARTA PARA AS SETE COMUNIDADES (1,1-3,22)


1,1-3: Título e resumo do livro
1,4-8: Saudação inicial
1,9-20: Origem do livro: a visão de Jesus
2,1-3,22: As sete cartas para as sete comunidades
2,1-7: para Éfeso
2,8-11: para Esmirna
2,12-17: para Pérgamo
2,18-29: para Tiatira
3,1-6: para Sardes
3,7-13: para Filadélfia
3,14-22: para Laodicéia

II. PRIMEIRO ROTEIRO DA CAMINHADA DO POVO: DEUS LIBERTA O SEU


POVO (4,1-11,19)
4,1-11: Visão do Trono de Deus
5,1-14: Visão do Cordeiro com chaga de morte
6,1-7,17: Abertura do livro fechado a sete selos
6,1-8: o passado: abertura dos primeiros quatro selos 6,9-11:
o presente: abertura do quinto selo
6,12-7,17: o futuro: abertura do sexto selo
6,12-17: derrota dos opressores do povo
7,1-17: a missão do povo perseguido
8,1-10,7: Abertura do sétimo selo: as sete pragas finais da história
10,8-11,13: Intervalo que prepara o segundo roteiro
10,8-11: visão do livrinho doce e amargo
11,1-13: visão das duas testemunhas, Moisés e Elias
11,14-19: Sétima praga que marca a chegada definitiva do Reino de Deus

III. SEGUNDO ROTEIRO DA CAMINHADA DO POVO: DEUS JULGA OS


OPRESSORES DO POVO (12,1-22,21)
12,1-17: O passado: a luta entre a mulher e o dragão
13,1-14,5: O presente: os dois campos em luta: a besta-fera e o Cordeiro
13,1-18: a besta-fera, o império romano
14,1-5: o Cordeiro e seu exército: o povo das comunidades
14,6-20,15: O futuro: julgamento e condenação dos opressora do povo
14,6-13: três anjos anunciam o que vai acontecer
14,14-20,15: realiza-se o anúncio feito pelos três anjo
14,14-20: chegada do dia do julgamento
15,1-19,10: a queda de Babilônia
19,11-20,15: derrota final do poder do mal
21,1-22,5: A festa final da caminhada do povo
22,6-21: Recomendações finais

Apocalipse: esperança de um povo que luta – Carlos Mesters


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INTRODUÇÃO

Três conversas sobre o Apocalipse


O Apocalipse é um livro muito procurado pelo povo. Livro miste-
rioso. Cheio de visões estranhas! Todos adivinham aí dentro algo de
importante para a vida. Mas nem todos o lêem do mesmo jeito.

Primeira conversa
— Dona Maria José, a senhora lê a Bíblia?
— Sim senhor, leio todos os dias!
— Qual a parte da Bíblia que a senhora mais lê?
— Ah!, para mim, o que mais gosto é do Apocalipse. Leio todos os
dias!
— A senhora entende tudo o que lê no Apocalipse?
— Entender não entendo, não senhor. O meu entendimento é fraco.
Mas gosto muito! Me traz conforto e coragem na luta!
Maria José lê o Apocalipse não tanto para entender as coisas, mas
para sentir de perto o apoio de Deus. Assim, ela cria coragem para
lutar. De fato, só o entendimento, sem a coragem, não leva à luta. Vo-
lante bom sem motor não faz o carro andar! Mas será que basta a co-
ragem sem o entendimento?

Segunda conversa
— Senhor Romero, o senhor lê a Bíblia?
— De vez em quando! Mas não me animo muito, não!
— Por quê?
— Porque não entendo! Sobretudo o Apocalipse! Não entendo
nada. Dá até medo!
— Medo? Por quê?— Por causa daquelas visões' terríveis do fim
do mundo e da besta-fera. Sem um entendimento, aquilo só pode dar
medo na gente! Não me traz conforto, não!
A coragem que nasce da fé precisa do entendimento. Do contrário,
ela desanda e se perde no vazio. Não basta ter um bom motor. É pre-
ciso que o volante também seja bom. Do contrário, o carro pode virar
e quebrar--se todo! Nem todos são como Maria José. Muitos são como
Romero. Sem um entendimento, o Apocalipse não diz nada para eles,
causa medo e até afasta o povo. Onde procurar o entendimento?

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Terceira conversa
— Senhor Raimundo, já soube da notícia?
— Que notícia?
— A do Papa de Roma! Sofreu um atentado à bala, mas não mor-
reu!
— Ah! Isto eu já sabia há muito tempo. Não me traz surpresa.
— Mas como? Aconteceu foi hoje à tarde!
— Pois este fato está bem conforme o que está escrito!
— Escrito onde, senhor Raimundo?
— Na Bíblia! No Apocalipse! Lá diz que a besta-fera recebe ferida
de morte, mas sobrevive. Não está lá? Pois então!
Para Raimundo, que não é católico, a besta-fera é o Papa de Roma.
Com este entendimento ele lê o Apocalipse. Para outros, a besta-fera
é o atual governo. Para outros, é o capitalismo. Para outros, o comu-
nismo. Cada um, conforme o seu próprio entendimento, lê o Apoca-
lipse e dele tira as suas conclusões. Quem tem razão?
O melhor mesmo é perguntar diretamente ao autor do Apocalipse:
“Senhor João, qual é o sentido certo das coisas que o senhor escre-
veu?” É claro que João não vai responder. Ele já morreu há quase dois
mil anos. Mas ele deixou várias informações espalhadas pelas páginas
do Apocalipse, que esclarecem o sentido de muita coisa. Nos sete ca-
pítulos deste livro, vamos recolher todas estas informações e apre-
sentá-las como uma chave de leitura para o livro do Apocalipse.

AVISO: Neste pequeno livro, você vai encontrar, muitas vezes, alguns
números entre parênteses, sem nenhuma outra indicação. Por exem-
plo: (14,13) ou (4,1-11,19). Isto indica sempre o livro do Apocalipse.
No caso, seria: Apocalipse, capítulo 14, versículo 13, ou: Apocalipse,
capítulo 4, versículo 1 até o capítulo 11, versículo 19. Os outros livros
da Bíblia serão indicados conforme os seus respectivos sinais. Por
exemplo: (Ex 19,4) é o livro do Êxodo, capítulo 19, versículo 4.

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PRIMEIRO CAPÍTULO

APOCALIPSE: MENSAGEM DE CONFORTO PARA O POVO


PERSEGUIDO DAS COMUNIDADES

Quando foi escrito o Apocalipse?


O Apocalipse foi escrito entre o ano 90 e 100. Não se sabe o ano
certo. Para facilitar, vamos dizer que foi no ano 95. Era uma época de
perseguição.
Depois da morte e ressurreição de Jesus, o Evangelho espalhou-se
rapidamente. Em toda a parte surgiam pequenas comunidades. Em
pouco tempo, a Boa Nova de Jesus atravessou as fronteiras da Pales-
tina. Entrou pelo império romano: Ásia Menor, Grécia, Itália. Não foi
uma caminhada fácil. Houve muitas dificuldades e perseguições. Mas,
apesar de tudo, o sol brilhava. O vento era favorável.
Aos poucos, porém, o céu se cobria de nuvens. Uma tempestade se
armava. A escola do império romano ensinava que o imperador era o
Senhor do mundo (13,4.14). Os cristãos diziam o contrário: “Jesus é o
Senhor dos Senhores!” (17,14; 19,16). E não era uma briga só de pa-
lavras! O império tinha os seus deuses (2,14). Era em nome destes
falsos deuses que o imperador se declarava Senhor do mundo! Todos
deviam prestar culto a ele (13,8-15). Assim, ajudado pela religião, o
imperador conseguiu montar um sistema que controlava a vida do
povo (13,16-17) e que explorava os pobres para aumentar o luxo dos
grandes (18,3.9.11-19).
Para os cristãos, Deus é um só. E se Deus é um só, Pai de todos,
então todos são irmãos! Por isso em nome da sua fé, os cristãos pro-
curavam viver como irmãos. Colocavam em comum os seus bens (At
2,44-45;4,32.34). Diziam que todos eram iguais (Gl 3,28; 1Cor 12,13;
Cl 3,11). Condenavam os ricos que exploravam os trabalhadores (Tg
5,1-6). Não queriam apoiar o sistema injusto do império romano
(18,4).
Portanto, não era uma briga só de palavras, nem uma discussão so-
bre deuses lá no céu. Tratava-se também da organização da vida do
povo aqui na terra. A nova organização iniciada e anunciada pelos
cristãos ameaçava o sistema do império! Um conflito aberto não podia

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demorar. De fato, uns trinta anos depois da morte de Jesus, o impera-


dor Nero decretou a primeira grande perseguição. Foi o início dos ma-
les. Foi no mês de julho do ano 64!
Depois de Nero, a paz voltou. Mas não era paz. Era apenas uma
parada. Todos sabiam que o império não ia permitir que as comunida-
des crescessem e se espalhassem. As comunidades eram como cupim.
Subvertiam o sistema do império por baixo. Por isso, em torno do ano
90, o imperador Domiciano decretou uma nova perseguição. Desta
vez, mais violenta e mais organizada. Domiciano torturava os cristãos
para que abandonassem a fé!
Assim, com a chegada do fim do primeiro século, parecia ter che-
gado também o fim da caminhada das comunidades. Todas as portas
estavam fechadas. Todo o poder do mundo se voltava contra os cris-
tãos. Muitos abandonavam o Evangelho por medo e passavam para o
lado do império. Na comunidade se dizia: “Jesus é o Senhor!”. Mas lá
fora, quem mandava mesmo como Senhor todo-poderoso era o impe-
rador de Roma! É neste fim do primeiro século, época de perseguição,
que foi escrito o livro do Apocalipse.

Para quem foi escrito o Apocalipse?


João escreveu o Apocalipse para o povo das pequenas comunida-
des, espalhadas pelo império romano, sobretudo na Ásia Menor
(1,4.11). Qual era a situação desse povo?
Era um povo perseguido (1,9). O próprio João, no momento de es-
crever o Apocalipse, estava preso por causa da sua fé (1,9). A perse-
guição era violenta (12,13.17; 13,7). Havia prisões (2,10), e muitos já
tinham sido martirizados (2,13;6,9-11;7,13-14;16,6;17, 6;18,24;20,4).
Era muito difícil sustentar a fé (2,3-4). O controle da polícia era total:
ninguém podia escapar de sua vigilância (13,16). Quem não apoiava o
regime do império, não podia vender nem comprar nada (13,17). A
propaganda era enorme (13,13) e se infiltrava nas comunidades
(2,14.20). O imperador era apresentado como se fosse um novo Jesus!
Diziam até que ele era um ressuscitado (13,3.12,14). A terra inteira o
adorava como se fosse um deus e apoiava o seu regime (13,4.12-14).
O povo das comunidades tinha ainda outras dificuldades. Havia o
cansaço natural, depois de tantos anos de caminhada (2,2). Havia a
diminuição do primeiro fervor (2,4). Havia os falsos líderes que se

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apresentavam como apóstolos e não eram (2,2). Havia as doutrinas


erradas que traziam confusão (2,6.15); as perseguições por parte dos
judeus (2,9;3,9); o problema das outras religiões que se misturavam
com a fé em Jesus (2,14-15.20). Algumas comunidades estavam mor-
rendo (3,1). Outras, bem fraquinhas, continuavam firmes na fé (3,8).
Em geral, era gente pobre, indigente até (2,9). As comunidades mais
ricas se acomodaram, iludidas pela sua riqueza (3,16-17). Não eram
frias nem quentes (3,15)!
É para este povo das pequenas comunidades que João escreve o seu
livro. Como hoje, também naquele tempo havia os fracos e os pobres
que continuavam firmes na fé e na luta. Havia os que estavam perdi-
dos, sem enxergar o rumo. Havia os que misturavam as coisas, sem
entender direito o sentido. Todos perseguidos! Todos precisando de
uma palavra de esclarecimento, de conforto e de coragem! Naquele
tempo, os nomes eram outros. Hoje eles se chamam Maria, José, Ro-
mero e Raimundo!

Quem escreveu o Apocalipse


O autor do Apocalipse não assinou o seu livro, nem colocou data.
Pouco sabemos da sua vida. Mas ele deixou algumas informações. Ele
se apresenta assim: “Eu, João, vosso irmão e companheiro na tribula-
ção, na realeza e na perseverança em Jesus, encontrava-me na ilha de
Patmos, por causa da Palavra de Deus e do Testemunho de Jesus”
(1,9).
O seu nome é João. Ele não apresenta nenhum título, nem de bispo,
nem de padre, nem de evangelista, nem de apóstolo. O título que vale
para ele é: “Irmão e companheiro na tribulação” (1,9). Ele mesmo é
um perseguido por causa de sua fé. Sofre a mesma coisa que os outros.
Conhece por dentro o drama dos companheiros. Por isso, tem condi-
ções para animá-los!
João tem consciência de ser o portador de uma profecia por parte
de Deus para o povo das comunidades (l,l-3;22,6-8). Ele se apresenta
com autoridade e pede obediência (22,18-19). A sua autoridade vem
da palavra de Deus (1,2). Ele mesmo encarnou esta palavra na sua
própria vida (10,8-11). Por isso, tem autoridade para falar.
Ao que parece, João era o coordenador geral das comunidades da
Ásia Menor, pois é para lá que ele manda o seu livro (1,4.11). Além

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disso, ele está bem por dentro da situação e dos problemas de cada
uma das sete comunidades, como mostra nas sete cartas (2,1-3,22).
Apesar da sua autoridade, João parece ter sido uma pessoa humilde
que não tinha medo nem vergonha de confessar o que não sabia
(5,4;7,13-14).
João não escreve para todos indistintamente. Escreve para os “ir-
mãos e companheiros” perseguidos (1,9). A primeira vista, ele só se
dirige aos irmãos perseguidos das “sete comunidades que estão na
Ásia” (1,4.11). Mas no Apocalipse, o número sete, muitas vezes, sig-
nifica todos. Por isso, escrevendo para aquelas sete comunidades, João
quer é esclarecer e animar todas as comunidades, inclusive as de hoje!

O que o Apocalipse tem a dizer ao povo das comunidades?


Apocalipse é uma palavra que vem do grego. Quer dizer revelação.
Revelação é o mesmo que tirar o véu. Quando uma coisa está enco-
berta por um véu, ninguém pode vê-la. Qual era o assunto encoberto,
do qual João vai tirar o véu para mostrá-lo ao povo?
O assunto encoberto era a própria situação do povo das comunida-
des. Ninguém estava enxergando direito as coisas. Já não entendiam a
perseguição. O povo estava impaciente e dizia: “Até quando. Senhor?”
(6,10). Se Deus era o dono do mundo, como é que Ele permitia essa
perseguição tão demorada? Deus parecia ter perdido o controle da si-
tuação. Quem mandava mesmo no mundo era o imperador de Roma!
Ora, o livro do Apocalipse é a resposta de Deus ao povo aflito e
perseguido das comunidades. Foi escrito por ordem de Deus (1,11.19)
para ser revelação, isto é, para tirar o véu e clarear a situação do povo
com a luz da fé. O livro começa com estas palavras solenes: “Revela-
ção de Jesus Cristo” (1,1)!
Por meio desta “revelação de Jesus”, transmitida por João, Deus
vai tirar o véu e revelar ao povo o seu plano de salvação, etapa por
etapa. Vai “mostrar aos seus servos as coisas que devem acontecer
muito em breve” (1,1). Vai esclarecer o povo e desmascarar a falsa
propaganda do império.
As coisas que Deus realiza para o seu povo, “tanto as coisas pre-
sentes como as que deverão acontecer depois destas” (1,19), existem
escondidas dentro dos acontecimentos da vida. Mas o povo não as en-
xergava. Por isso, estava impaciente e triste. Para poder enxergar a

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ação de Deus dentro da vida, não basta que João tire o véu. É necessá-
rio que o povo colabore, escutando e praticando a palavra de Deus que
João lhe transmite. Assim, reencontrará a alegria. “Feliz o que lê e os
que escutam as palavras desta profecia, se praticarem o que nela está
escrito, pois o tempo está próximo” (1,3)!
Esta é a Boa Nova que o Apocalipse quer revelar ao povo das co-
munidades: “O tempo está próximo” (1,3)! Dentro do tempo da histó-
ria, marcado pelas perseguições, existe o tempo de Deus, a hora de
Deus, o plano de Deus. Este plano entrou na sua fase final. Esgotou-
se o prazo. Deus esta para chegar! Ele vai mudar a situação e libertar
o seu povo! O Apocalipse vai tirando o véu, para que o povo descubra,
dentro dos acontecimentos da perseguição, a Boa Nova da chegada de
Deus que vem para libertar!

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SEGUNDO CAPÍTULO

TIRAR O VÉU DOS ACONTECIMENTOS E ANUNCIAR A BOA


NOVA DE JESUS AO POVO OPRIMIDO

As várias maneiras de se anunciar a Boa Nova de Jesus


Hoje existem várias maneiras ou formas de se transmitir uma men-
sagem. Você pode usar a forma de cordel ou de história em quadri-
nhos. Pode usar também a forma de um canto, de um bendito ou de
um círculo bíblico. A escolha depende de você, do seu jeito. Depende
também da situação do povo ao qual você se dirige. Depende de tanta
coisa!
Assim, no tempo dos primeiros cristãos, havia várias formas de se
transmitir a Boa Nova de Jesus. Havia a forma usada pelos quatro
evangelistas. Havia o jeito de fazê-lo em forma de uma história, usado
por Lucas nos Atos dos Apóstolos. Havia o jeito de fazê-lo por carta,
usado por Paulo. Outros usavam a forma de cânticos: Maria (Lc 1,46-
56), Zacarias (Lc 1, 67-79). Havia também o jeito de fazê-lo em forma
de um Apocalipse.
O Apocalipse era uma forma que se inventou para anunciar a Boa
Nova em épocas de perseguição e de mudança. Havia muitos apoca-
lipses naquele tempo, como havia muitos evangelhos, muitas histórias
e muitas cartas. Mas nem tudo entrou no Novo Testamento. Por dis-
posição do Espírito Santo e através do acordo comum das comunida-
des, só entraram quatro evangelhos: Mateus, Marcos, Lucas e João.
Os ou tios ficaram de fora. Só entrou uma única história, a dos Atos
dos Apóstolos. Só entraram 21 cartas: 14 de Paulo, 3 de João, 2 de
Pedro, 1 de Tiago e 1 de Judas. As outras, como as de Inácio, por
exemplo, ficaram de fora. E só entrou um único apocalipse, o de João.
Os outros ficaram de fora.

Como o Apocalipse anuncia a Boa Nova de Jesus?


O Apocalipse é, antes de tudo, uma mensagem de conforto e de
esperança para um povo em crise, ameaçado na sua fé por causa das
mudanças e das perseguições. O Apocalipse quer ajudar o povo a en-
contrar-se, novamente, com Deus, consigo mesmo e com a sua missão.
Quer animá-lo a não desistir da luta e armá-lo melhor para o combate.

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Por isso, qualquer interpretação do Apocalipse feita para meter


medo no povo ou para aumentar nele o desânimo deve ser considerada
como errada e falsa! Seria o mesmo que usar o sol para molhar, ou a
água para enxugar!

1. Como o Apocalipse enfrenta a crise de fé do povo das comuni-


dades?
A crise de fé tinha duas causas. A causa de fora eram os aconteci-
mentos da perseguição e das mudanças na sociedade. A causa de den-
tro era a falta de visão do próprio povo perseguido. Por isso, para o
povo, Jesus parecia ausente. Deus parecia ter perdido o controle da
situação. Os opressores pareciam ser os donos da história. E muitos
perguntavam: “Será que vale a pena continuar a participar da comuni-
dade?”
O Apocalipse enfrenta o problema revelando o outro lado dos
acontecimentos, o lado escondido. Ele ilumina os fatos com a luz da
fé e descobre:
a. Os acontecimentos não estão escapando da mão de Deus. Apesar
de todas as aparências em contrário, Deus mantém o controle da situ-
ação. Jesus está presente nos acontecimentos como Senhor todo--po-
deroso da história. A história corre dentro dos prazos estabelecidos por
Deus!
b. O poder dos poderosos não passa de um engano. Eles parecem
ser os donos do mundo, mas não passam de funcionários de segunda
categoria. Mesmo sem querer e sem o saber, eles contribuem para a
realização do plano de Deus! O imperador, por mais que grite e oprima
os cristãos, não passa de um pobre coitado. Seu poder é limitado por
Deus. Seu destino será a derrota total!
Este é o outro lado dos acontecimentos, o lado escondido, que só a
fé enxerga. São as “coisas que devem acontecer muito em breve” (1,1).
DEVEM acontecer! Ninguém vai poder impedir a realização do plano
de Deus. Deus é mais forte!

2. A Boa Nova que surge dos acontecimentos, quando lidos à luz


da fé
Tirando o véu, João faz aparecer aos olhos do povo a Boa Nova

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que estava aí, dentro dos acontecimentos, e que o povo não estava en-
xergando. A Boa Nova é esta:
Deus é o Senhor da história! Ele entregou todo o seu poder a Jesus.
Agora, Jesus conduz o seu povo para a vitória final! Ninguém, por
mais forte que seja, consegue mudar o rumo do plano de Deus! Os
opressores do povo vão ser derrotados e condenados, todos! A ressur-
reição de Jesus é a prova que garante tudo isto!
Por meio deste anúncio forte e vigoroso, o Apocalipse desloca o
peso da balança da vida. Enfraquece a carga da perseguição que pe-
sava de um lado. Fortalece o peso da fé do outro lado. E o povo se
equilibra de novo na vida. Agora, já não é a perseguição que enfra-
quece a fé, mas é a fé renovada e esclarecida que enfraquece o poder
dos poderosos. A face de Deus reaparece na vida. O povo agradece,
explode em cânticos de alegria e se dispõe a resistir. Entoa, desde já,
o “canto novo” da vitória, como Miriam, irmã de Moisés, depois da
travessia do Mar Vermelho (Ex 15,20-21).

A Boa Nova do Apocalipse: uma música cantada a três vozes di-


ferentes
Você já deve ter notado a diferença entre o primeiro e o segundo
capítulo deste livro. No primeiro, indiquei muitos textos, para que
você pudesse verificar no próprio Apocalipse as coisas que eu afir-
mava. Neste segundo capítulo, até agora, não indiquei quase nenhum
texto do Apocalipse! Sabe por quê? Porque a Boa Nova de Jesus existe
espalhada por todas as páginas do Apocalipse. É difícil dizer: “Ela está
neste ou naquele texto!” A Boa Nova estava no coração, nos olhos e
na mão de João e, por isso, acabou sendo esparramada em todos os
textos. Você também, coloque a Boa Nova de Jesus no seu coração,
nos seus olhos e nas suas mãos, e poderá reencontrá-la em todos os
textos. Aí, o Apocalipse se clareia pelo lado de dentro! A Boa Nova é
como o leito do rio que se vê quando a água é limpa e cristalina. No
Apocalipse, o leito da Boa Nova se vê em toda a parte!No Apocalipse,
a Boa Nova é sempre a mesma, mas é vista de três maneiras diferentes
nas três partes que compõem o livro:

1. A carta para as sete comunidades (1,1-3,22)


Apresenta a Boa Nova de Jesus como exigência de fidelidade e de

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compromisso. Escrita por ordem de Deus (1,11), esta carta começa


com uma introdução bastante longa (1,4-20), que serve de introdução
a todo o livro do Apocalipse. Em seguida, seguem sete pequenas cartas
para as sete comunidades (2,1 3 22).

2. A primeira leitura dos acontecimentos da perseguição (4,1-


11,19)
Apresenta a Boa Nova de Jesus como anúncio de libertação para
o povo oprimido. A caminhada das comunidades é vista como um
novo êxodo. Deus está libertando, novamente, o seu povo das garras
do faraó. Alguns acham que esta primeira reflexão sobre a perseguição
já tinha sido feita no tempo do imperador Nero, isto é, no ano 64.

3. A segunda leitura dos acontecimentos da perseguição (12,1-


22,21)
Apresenta a Boa Nova de Jesus como julgamento e condenação
dos opressores do povo. A história da humanidade é vista como um
julgamento de Deus. Esta segunda reflexão é bem mais concreta do
que a primeira. Ao que tudo indica„ ela foi feita no tempo do impera-
dor Domiciano, isto é, em torno do ano 95.
Estas três maneiras diferentes de apresentar a mesma Boa Nova
são como três fios trançados que, juntos, fazem a corda do Apocalipse.
Corda forte, capaz de sustentar a fé do povo das comunidades e de
amarrar os seus opressores durante mil anos (20,1-3). São como uma
única melodia, cantada a três vozes diferentes.

Como se faz para tirar o véu de um fato?


Quem transmite uma mensagem em forma de cordel, deve conhe-
cer o ritmo da poesia do povo. Quem anuncia uma notícia em forma
de história em quadrinhos, deve saber desenhar. E quem anunciava a
Boa Nova de Jesus em forma de um Apocalipse, o que devia saber?
Qual o instrumento que devia usar? O que ele fazia, bem no concreto,
para tirar o véu de um fato e revelar, dentro dele, a presença da Boa
Nova?
Fazia, sobretudo, duas coisas:
1. Expressava tudo por meio de visões e símbolos. Esta é a parte
que causa mais dificuldades para nós, hoje. João não usa a linguagem

Apocalipse: esperança de um povo que luta – Carlos Mesters


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comum. Ele se expressa por meio de visões estranhas, cheias de sím-


bolos. Muita gente desiste de ler o Apocalipse, porque nada entende
dessas visões que aparecem em todas as páginas.
2. Dividia a história em etapas e apresentava como profecia o que
já pertencia ao passado. Às vezes, a gente nem sabe se João está fa-
lando do passado, do presente ou do futuro. Além disso, não fica claro
se aquelas etapas são etapas reais da história do povo das comunida-
des, ou se têm um outro significado.
Nos próximos dois capítulos, vamos ver de perto como João usou
esses dois instrumentos no livro do Apocalipse. É a parte mais difícil.
Mas é aqui que está escondida a chave que nos abre a porta principal
do Apocalipse. Vamos procurá-la.

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TERCEIRO CAPÍTULO

“AS VISÕES SE CLAREANDO! AS VISÕES SE CLAREANDO!”

Aconteceu num domingo, num “dia do Senhor” (1,10). João estava


na ilha de Patmos, preso por causa de sua fé (1,9). Aí teve uma visão.
Ele diz: “No dia do Senhor fui movido pelo Espírito, e ouvi atrás de
mim uma voz forte, como uma trombeta, ordenando: “Escreve o que
vês num livro, envia-o às sete comunidades” (1,10-11). Logo em se-
guida, Jesus aparece (1,12-18) e repete a ordem: “Escreve o que viste:
tanto as coisas presentes como as que deverão acontecer depois des-
tas” (1,19). João obedeceu à ordem de Jesus. O Apocalipse é o resul-
tado da sua obediência. É a descrição das visões que ele teve (22,8).
João viu coisas estranhas: animais com seis asas, cobertos de olhos
ao redor e por dentro (4,8), um cordeiro com sete chifres e sete olhos
(5,6), cavalos com cabeça de leão e rabo venenoso (9,17.19), uma
besta-fera com sete cabeças e dez chifres (13,1), cujo número é 666
(13,18), uma cidade que desce do céu (21,2), e assim por diante! João
enche o Apocalipse de números: 3, 4, 10, 1000 e suas combinações: 7
(3 mais 4), 12 (3 vezes 4), 40 (4 vezes 10), 144.000 (12 vezes 12 vezes
1000), 3 e meia (metade de 7).
É outro mundo! Estranho, irreal, diferente do nosso mundo! Como
é que umas visões tão esquisitas podem ser instrumento para clarear a
situação do povo? O que será que João queria alcançar com essas vi-
sões? Vamos dar cinco respostas. Lendo o Apocalipse, você talvez en-
contre mais outras respostas.

Por que João expressa tudo por meio de visões e símbolos?


Primeira resposta:
para trazer conforto e coragem na luta!

Alguém pergunta: “Quem é Jesus?” Você responde com uma frase


e diz: “Jesus é filho de Deus, Messias, sacerdote, juiz, senhor da his-
tória, presente na comunidade, vivo para sempre!” João responde a
mesma coisa com uma visão e diz:
“Voltei-me para ver a voz que me falava. Ao voltar-me vi sete can-
delabros de ouro e, no meio dos candelabros, alguém semelhante a um

Apocalipse: esperança de um povo que luta – Carlos Mesters


16

filho de homem, vestido com uma longa túnica e cingido à altura do


peito com um cinto de ouro. Os cabelos de sua cabeça eram brancos,
como lã branca, como neve. Seus olhos pareciam urna chama de fogo.
Os pés tinham o aspecto de bronze quando está incandescente no
forno. Sua voz era como o estrondo de águas torrenciais. Na mão di-
reita ele tinha sete estrelas, e de sua boca saía uma espada afiada de
dois gumes. Sua face era como o sol, quando brilha com todo o seu
esplendor. Ao vedo, caí como morto a seus pés. Ele, porém, colocou a
mão direita sobre mim, assegurando: 'Não temas! Eu sou o Primeiro e
o Último, o Vivente! Estive morto, mas eis que estou vivo pelos sécu-
los, e tenho as chaves da morte!' “ (1,12-18).
As duas respostas, frase e visão, dizem a mesma coisa, mas de ma-
neira diferente. Na frase, é você que fala sobre Jesus; na visão, é o
próprio Jesus que se apresenta. Na frase, Jesus aparece parado dentro
de um discurso; na visão, ele aparece agindo. A frase traz um relatório;
a visão pinta um quadro. A frase define as margens do rio da doutrina;
a visão conta uma experiência que alimenta a fonte do mesmo rio. A
frase apela para a inteligência; a visão envolve também o coração, o
sentimento e a imaginação. A frase traz entendimento; a visão comu-
nica força e coragem. Na frase, você disse uma grande verdade; na
visão, João anunciou a Boa Nova de Jesus!
Lendo ou ouvindo a visão que João teve de Jesus (1,12-18), a gente
talvez não entenda o significado de todos os detalhes: túnica;longa,
cinto de ouro, olhos de fogo, pés de bronze,' espada saindo da boca
etc. Mas, mesmo sem entender, a gente sente e adivinha algo. É como
acontece com música bonita: todos gostam de ouvir e se sentem bem,
mas só pouca gente entende de música. Música é feita não para quem
entende, mas para quem gosta de ouvi-la!
As visões são como o menino que passeia com o pai. O menino
nada entende de força e proteção. Mas sente a força e a proteção do
pai. Pois vai tranqüilo, sem medo, ao lado dele! Ora, as visões não
dizem o que é força e proteção. Mas fazem o povo sentir a força e a
proteção de Jesus caminhando com ele! Dona Maria José dizia: “En-
tender não entendo. O meu entendimento é fraco. Mas gosto muito!
Me traz conforto e coragem na luta!”

Segunda resposta:

Apocalipse: esperança de um povo que luta – Carlos Mesters


17

para transformar a saudade em esperança!

As visões do Apocalipse estão cheias de imagens e de símbolos do


Antigo Testamento. Sobretudo dos livros de Ezequiel, Isaías, Daniel e
Zacarias. A história toda é lembrada! À vezes, por uma única palavra:
a criação (3,14;4,11;21,1), o paraíso (2,7;21,4; 22,3), a árvore da vida
(2,7;22,2), a mulher e a serpente (12,1-4), o arco-íris depois do dilúvio
(4,3), a saída do Egito (7,14), o cordeiro de páscoa (5,6), as pragas do
Egito (8,6-12; 16,1-21), o canto novo de vitória (5,9; 14,3; 15,3), as
doze tribos (21,12), o seu recenseamento (7,1-8), a caminhada pelo
deserto (7,16-17; 12,6.14), o maná (2,17), a aliança (21,3.7), Moisés e
Elias (11,3.6), Judá (5,5), Davi (5,5), Jerusalém (3, 12;21,9-23), o
Monte Sião (14,1), Jezabel (2,20), Balaão (2,14), o templo
(3,12;7,15;11,1;21,22), as grandes promessas (10,7), a queda da Babi-
lônia (14,8; 18,2.10), a saída do cativeiro (18,4), o nascimento do Mes-
sias (12,5).
Além de lembrar os acontecimentos e as pessoas do Antigo Testa-
mento, João empresta do Antigo Testamento as palavras e as frases
para poder expressar o seu próprio pensamento. De todos os livros do
Novo Testamento, o Apocalipse é o que mais usa o Antigo Testa-
mento. Mais de 400 vezes! De certo modo, as visões nada mais são do
que construções novas, feitas com os velhos tijolos do Antigo Testa-
mento. Qual o sentido de tudo isto? Por que as visões recorrem tanto
ao Antigo Testamento?
O povo das comunidades conhecia o Antigo Testamento. Bastava
alguém puxar um palavra e o povo já lembrava a frase toda! O Antigo
Testamento era o seu passado. Passado bom! Onde Deus tinha mani-
festado a sua presença com grandes milagres! Mas eles lembravam o
passado apenas para curtir a saudade, como muro de lamentações:
“Antigamente, sim! Mas hoje. . .! Deus não aparece mais!” Morriam
de fome com o pão do passado na mão, pensando que era uma esponja
para enxugar as lágrimas!
Ora, as visões recheadas com frases e lembranças do Antigo Tes-
tamento, o que fazem? Fazem o povo descobrir que o passado não é
esponja para enxugar as lágrimas, mas que é pão mesmo, pão para
comer; pão que faz o homem renascer! As visões apresentam o pas-

Apocalipse: esperança de um povo que luta – Carlos Mesters


18

sado como um espelho. É como se estivesse acontecendo agora! As-


sim, aos poucos, a energia do passado vai acordando dentro do povo.
O véu vai caindo e a caminhada se ilumina. O povo recupera a memó-
ria perdida e descobre a boa Nova dentro dos acontecimentos: “Deus
continua agindo! O mesmo Deus de antigamente! Ele não mudou de
lá para cá! Ele está conosco! Ele era, é e vem!” (1,4.8;4,8). Deste
modo, a saudade se transforma em esperança!

Terceira resposta:
para comunicar ao povo algo da paz de Deus!

Alguém disse: “Não gosto do Apocalipse. Nele não sobra mais


nada para o povo fazer. Deus faz tudo! O povo fica sem ação para
lutar, pois deixa tudo por conta de Deus!” De fato, muita gente não
engajada se apóia no Apocalipse para não ter que entrar na luta. Mas
isso não vale para o povo das comunidades da Ásia, que já estava lu-
tando há muitos anos. O problema deles não era achar um jeito para
não ter que entrar na luta mas era achar um jeito para não desanimar
da luta!
Ora, João achou esse jeito. As visões transportam o povo para den-
tro do céu (4,1), para perto do trono de Deus (4,2-11), e comunicam
algo da paz com que Deus, lá do alto, sereno e firme, comanda a luta
contra a injustiça e a opressão (11,14-18; 12,10-11). Os soldados do
exército do Cordeiro estavam perdidos na frente da batalha (6,10). Por
meio das visões, João os leva até o quartel-general do Cordeiro que li
dera a batalha (14,1-15; 17,14;7,9-17). Lá do alto do céu, do centro
das operações, eles contemplam a luta com os olhos de Deus. Desco-
brem que, apesar de difícil, a luta já está ganha (14,9-12; 17,14). Por
isso, voltam para a luta bem mais animados, com sabor de vitória! As-
sim, por meio das visões, a árvore da comunidade finca a sua raiz no
chão de Deus e a tempestade das perseguições já não consegue ar-
rancá-la!

Quarta resposta:
para defender-se contra os opressores do povo!

Em época de perseguição, todo cuidado é pouco! Quem fala demais

Apocalipse: esperança de um povo que luta – Carlos Mesters


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corre o perigo de denunciar o irmão. Quem tem algo a comunicar, o


faz de um jeito que só os companheiros de luta o entendem, os outros
não (14,3). Dizer abertamente que o império romano era o grande ini-
migo a ser combatido podia dar prisão. João achou o jeito. Ele diz:
“Aqui é preciso discernimento! Quem tem inteligência é capaz de cal-
cular o número da besta-fera, pois é número de gente. Seu número é
666!” (13,18). De acordo com o número de cada letra, o leitor, por si
mesmo, calculava e descobria a mensagem: a besta-fera é o imperador
de Roma! Raimundo não tem razão! Conforme o Apocalipse, a besta-
fera não é o papa de Roma! Mas é o imperador romano que perseguia
os cristãos e que já tinha mandado matar são Pedro, o primeiro papa.
Da mesma maneira, João explica o mistério da grande prostituta,
sentada sobre uma besta-fera com sete cabeças (17,3). Ele diz: “Aqui
é preciso ter inteligência para poder discernir: as sete cabeças são sete
colinas sobre as quais a mulher está sentada” (17,9). Para o bom en-
tendedor, meia palavra basta! Todos sabiam que a cidade de Roma,
sede do império, estava construída sobre sete colinas!
As visões com seus símbolos são um meio para esclarecer o povo,
e também para defender o povo contra os seus opressores. Pois elas
revelam a sua mensagem aos oprimidos e a escondem aos opressores.
Deus manda ser bom, mas não bobo!

Quinta resposta:
para fazer-se entender pelo povo das comunidades!

Um cartaz com desenhos transmite muito mais do que só falar.


Uma dramatização é mais instrutiva do que um sermão. Uma imagem
diz muito mais do que uma frase. Para se expressar, o povo prefere
usar desenhos, teatro, imagens, cartazes e comparações.
O mesmo vale para o Apocalipse. O Apocalipse não é uma sala de
conferências, onde o povo entra para escutar, sentado, alguém falar.
Parece muito mais com um salão enorme, cheio de imagens e retratos,
pinturas e quadros, pendurados nas paredes das suas páginas. O povo
das comunidades pode entrar e andar por aí, observando, conversando,
rezando. Pode olhar os quadros na ordem em que João os colocou.
Mas não é preciso. Pode escolher à vontade e andar onde quiser. Pois,
cada pintura, cada visão, tem a sua própria mensagem.

Apocalipse: esperança de um povo que luta – Carlos Mesters


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Seguindo, porém, a ordem em que João colocou as visões, você


aproveita mais. Pois, aos poucos, vai percebendo a mensagem do con-
junto. E aí, um quadro começa a esclarecer o outro quadro e, assim, o
todo se ilumina. A luz do conjunto, por sua vez, cai sobre os detalhes
e os clareia. Mais adiante, vamos tentar descobrir a ordem em que João
colocou as visões dentro do Apocalipse.

As visões do Apocalipse não conhecem meio-termo


Nas visões do Apocalipse, tudo ou é claro ou é escuro. Ou é bom
ou é mau. Não há meio-termo. Só contraste! De um lado, o dragão e a
besta-fera (13, 1-18); do outro lado, o Cordeiro e o seu exército (14,
1-5). De um lado, Roma, a grande prostituta (17,1-18); do outro, Jeru-
salém, a noiva do Cordeiro (21,1-22,5). E assim por diante!
João sabe muito bem que, na vida, as coisas não são assim. Sabe
que o bem e o mal existem misturados na vida das comunidades (2,1-
3,22). Sabe que, no império romano, tem muita coisa boa. Por que,
então, nas visões, ele fala como se, de um lado, só tivesse coisa boa e,
do outro, só coisa ruim?

1. A situação política estava confusa


Nos Atos dos Apóstolos, Lucas tinha apresentado o império ro-
mano como simpático aos cristãos (At 13,7; 18,12-15; 19,35-
40;25,13-27). Além disso, Paulo tinha escrito aos cristãos de Roma
que eles deviam obedecer às autoridades constituídas (Rm 13,1). “De
modo que aquele que se revolta contra a autoridade, opõe-se à ordem
estabelecida por Deus!” (Rm 13,2). Mas a situação tinha mudado!
Agora, essas mesmas autoridades constituídas estavam perseguindo os
cristãos (13,7). Elas até se infiltravam nas comunidades para forçar o
pessoal a adorar os falsos deuses do império (2,14.20).
O que fazer? Quem era o culpado por essa nova situação? O impé-
rio em si, ou só alguns maus funcionários do império? As coisas não
estavam claras. Havia várias opiniões. Devia haver muita discussão e
até briga nas comunidades em torno desse assunto da política!

2. O esclarecimento trazido pelo Apocalipse


João dá a sua opinião bem clara. Para ele, o culpado não são alguns

Apocalipse: esperança de um povo que luta – Carlos Mesters


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maus funcionários do império, mas é o império em si: a sua organiza-


ção econômica e política e a sua pretensão de ser o Senhor do mundo
(13,1-18). Por isso, João condena o império romano de cabo a rabo.
Por que João pensa assim?
João aprecia e julga as coisas a partir do futuro, isto é, a partir da
contribuição que elas estão dando para a vitória futura do bem e da
justiça. A vitória já está certa, garantida pelo poder de Deus (11,17-
18;21,6-8.27;22,3-5). Aquilo que contribui para a vitória é bom, vem
de Deus! Aquilo que impede a vitória não presta, vem do diabo!
Ora, o império romano, do jeito que estava organizado, não estava
contribuindo para a vitória do bem e da justiça. Pelo contrário! Impe-
dia a vitória, pois perseguia aqueles que queriam contribuir! Por isso,
na descrição que faz do império (13,1-18) e da cidade de Roma (17,1-
18), João não aponta nada de bom. Tudo aí é maldade! O império é
obra de Satanás, do Dragão (13,1-2)! A cidade de Roma, a grandiosa
sede do império, a capital do mundo, não passa de uma grande prosti-
tuta que leva o mundo inteiro para a perdição (17,1-2)!
E João recomenda: os cristãos não podem ser ingênuos e alimentar
um regime cuja organização é contra o Evangelho (18,4). Não podem
permitir que a falsa propaganda penetre nas comunidades (2,14.20).
Devem, ao contrário, agüentar firme na sua luta e resistir até a morte
(2,10), apesar das perseguições (3, 10-11). É nesta luta humilde e pe-
nosa do povo das comunidades que está a semente da futura vitória do
bem e da justiça (2,7.11.17.26;3,5.12.21). Resistindo a todo custo e
não se deixando desviar, eles serão o exército do Cordeiro que enfrenta
o império (14,1. 4.5) e o vencerá (17,14).
É por tudo isto que João fala em termos preto--branco. É para aju-
dar os cristãos a enxergar com clareza a política do império romano e
a se definir diante da situação.

Breve explicação de vinte e um símbolos


Não é tarefa deste pequeno livro explicar todas as visões e todos os
símbolos do Apocalipse. Nem daria! Vamos dar apenas uma amostra.
Isto ajudará a descobrir o sentido dos outros símbolos. A explicação
será breve. Apenas uma chave! Sem explicar como a chave foi feita,
nem como funciona. Isto, cada um descobre por si.
1. A mulher grávida (12,1-2): é o povo de Deus, Maria, gerando

Apocalipse: esperança de um povo que luta – Carlos Mesters


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o Messias, o Libertador.
2. Dragão ou Serpente (12,3.9): é o poder do mal que opera no
mundo, o satanás.
3. Sete cabeças (12,3): são as sete colinas da cidade de Roma
(17,9), ou sete reis (17,9-10).
4. Dez chifres (12,3); chifre é sinal de poder ou de rei (17,12);
dez indica totalidade.
5. 1260 dias (12,6), 42 meses (11,2), tempo, tempos, meio
tempo (12,14): é a metade de 7 anos. Indica um tempo limi-
tado e imperfeito. Deus limita o tempo do perseguidor.
6. Asas de águia (12,14): é a proteção com que Deus conduz o
seu povo (Dt 32,11; Ex 19,4).
7. Besta-fera (13,1): é o império romano, o poder que encarna
o mal; capanga do dragão.
8. Besta-fera com aparência de cordeiro e voz de dragão
(13,11): são os falsos profetas que se colocam a serviço do
império romano para legitimá-lo diante do povo.
9. Pantera, urso, leão (13,2): símbolos de voracidade e de ex-
ploração.
10. Cordeiro (14,1): é Jesus, cordeiro pascal, cujo sangue opera
a libertação do povo.
11. 144.000 virgens (14,1-4): é o número completo: 12 x 12 x
1000; 12 do AT e 12 do NT. São virgens, isto é, nunca anda-
ram atrás dos falsos deuses do império romano.
12. Babilônia (T4,8;18,2): é Roma que explora os povos para se
enriquecer (18,3.9-13).
13. Filho do Homem (14,14): imagem de Jesus Messias, tirada
do profeta Daniel (Dn 7,13).
14. Harmaguedon (16,16): símbolo da derrota dos exércitos ini-
migos, tirado de Zc 12,11.
15. Cor branca (19,14): símbolo de vitória.
16. Mil anos (20,2-7): é o tempo completo entre o fim da perse-
guição e o fim do mundo.
17. Lago de fogo (20,14): símbolo do destino de tudo que se opõe
ao plano de Deus.
18. Segunda morte (20,14): é a morte da própria morte. No fim,
só vai sobrar a vida!

Apocalipse: esperança de um povo que luta – Carlos Mesters


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19. Nova Jerusalém (21,2): símbolo do novo povo de Deus.


20. Núpcias do Cordeiro (21,2; 19,9): vitória e festa final da
união de todos com Deus.
21. Alfa e Ômega (21,6): primeira e última letra do alfabeto
grego; princípio e fim.

Sete sugestões para entender melhor as visões do Apocalipse


1. Para entender bem o quadro, não basta olhar uma única vez. Tem
de voltar sempre e ficar aí, olhando, meditando. E, a cada vez, você
descobrirá coisas novas.
2. Diante de uma paisagem bonita, não se fixe logo nos detalhes.
Deixe, primeiro, a beleza e a paz do conjunto da paisagem entrar em
você. Só depois estude os detalhes.
3. Procure descobrir o que vem do Antigo Testamento. Vá conferi-
lo no próprio Antigo Testamento. Isto ajuda a descobrir nas visões a
força que vem do passado do povo.
4. Faça uma lista das comparações que aparecem nas visões. Tente
descobrir de onde foram tiradas: da vida, da história ou da religião do
povo. Procure descobrir a força e o sentido de cada comparação para
a vida do povo.
5. Compare as visões com os sonhos que você já teve ou que outros
tiveram. Ambos têm um sentido escondido, muito importante para a
vida.
6. Para os trechos mais difíceis, consulte alguém ou procure as ex-
plicações ao pé das páginas da sua Bíblia. Se possível, consulte algum
comentário ou dicionário bíblico.
7. Não esqueça nunca de verificar como as visões respondiam à
situação de perseguição em que se encontrava o povo das comunida-
des.

Apocalipse: esperança de um povo que luta – Carlos Mesters


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QUARTO CAPÍTULO

O VÉU VAI CAINDO E A FACE DE DEUS REAPARECE

O outro instrumento usado pelo Apocalipse para tirar o véu dos


acontecimentos é o seu costume de dividir a história em etapas e de
apresentar como futuro o que já pertence ao passado.

Dividir a história em etapas


Uma comparação ajuda a entender este primeiro ponto. Imagine o
seguinte: você está viajando. Já faz tempo que o ônibus está rodando
na estrada. Está escuro lá fora. Você não sabe quanto tempo ainda vai
demorar a viagem nem por onde está passando. No fim, você fica pre-
ocupado e pergunta: “Motorista, onde é que estamos? Vai demorar
muito para chegar a Aparecida do Norte?” Ele responde: “Passamos a
ponte Rio-Niterói, entramos na Via Dutra, subimos a serra, tivemos de
fazer uma volta por causa de uma ponte quebrada e, agora, estamos
em Rezende”. Aí você se tranqüiliza e diz: “Então está tudo certo!
Falta pouco para chegar! Graças a Deus!”
O Apocalipse é como o motorista que ajuda o povo das comunida-
des a se situar na longa caminhada do plano de Deus, feita no escuro
das perseguições. A caminhada já vem de longe. Ninguém sabe quanto
tempo ainda vai demorar nem por onde está passando. Angustiados,
perguntam: “Onde é que estamos? Vai demorar muito ainda?” (6,10).
João, o motorista, explica aos cristãos quantas são as etapas da cami-
nhada e informa em que etapa a comunidade se encontra. Como ele
faz isto? A resposta nos leva para o segundo ponto.

Apresentar como futuro o que já pertence ao passado


As visões transportam o autor do Apocalipse para o passado, para
o início do plano de Deus ou para o início de alguma etapa importante
desse plano. Estando lá no passado, ele olha para o futuro e anuncia o
que vai acontecer daquele momento em diante. Uma parte desse “fu-
turo” já pertence ao passado. Outra parte está acontecendo. Outra parte
ainda vai acontecer. Com outras palavras, estando lá no passado, João
descreve o roteiro da caminhada que o povo de Deus terá de fazer,
desde o início até a vitória final. O Apocalipse tem dois roteiros deste

Apocalipse: esperança de um povo que luta – Carlos Mesters


25

tipo.

Primeiro roteiro da caminhada do povo (4,1-11,19)


No ano 95, época da perseguição de Domiciano, João tem uma vi-
são. Ele vê uma porta aberta no céu (4,1). Ele entra e, lá dentro, vê o
trono de Deus (4,2-11). Em seguida, vê um Cordeiro com chaga de
morte (5,6) que recebe de Deus um livro fechado a sete selos (5,7-12).
É o momento da ressurreição de Jesus e da sua entrada gloriosa no céu
à direita do Pai. Portanto, vivendo no ano 95, João foi transportado em
espírito para o ano 33, para o ano da morte e ressurreição de Jesus.
Lá no passado, do início da última etapa do plano de Deus, João
olha agora para o futuro e “descreve as coisas que devem acontecer”
(4,1). Descreve o roteiro da caminhada do povo, que vai desde o ano
33 até o fim da história. O roteiro está no livro fechado a sete selos
(5,1)- Os sete selos são as sete etapas da caminhada.
As primeiras quatro etapas (6,1-8), descrevem coisas que já acon-
teceram entre o ano 33 e o ano 95, e que o povo já conhecia. A quinta
etapa (6,9-11) descreve a perseguição que estava acontecendo no ano
95. Na abertura do quinto selo, João diz: “Vi debaixo do altar as vidas
dos que tinham sido mortos por causa da Palavra de Deus e do teste-
munho que dela tinham prestado” (6,9). Desta quinta etapa se diz que
ela vai durar só “mais um pouco de tempo” (6,11). A sexta etapa (6,12-
7,17) descreve as coisas que ainda vão acontecer entre o ano 95 e o
fim dos tempos. A abertura do sétimo selo (8,1-11,19) marcará o fim
da caminhada. Aí, “já não haverá mais tempo” (10,6). Será o fim!
Lendo este roteiro, o povo perseguido das comunidades se situa na
caminhada e se tranqüiliza: “Estamos na quinta etapa! A nossa cami-
nhada está conforme o plano de Deus! É Ele que nos conduz. Falta
pouco para chegarmos ao fim! Vamos resistir!”

Segundo roteiro da caminhada do povo (12,1-22,21)


O capítulo 12 é um novo começo. João tem uma visão. Ele vê dois
sinais no céu: uma mulher grávida, que grita em dores de parto (12,1-
2), e um dragão enorme (12,3-4), que é o satanás, “a antiga serpente”
(12,9). Os dois estão em luta (12,4). É a luta anunciada por Deus no
Paraíso terrestre, no começo da criação (Gn 3,15). O dragão quer de-
vorar o menino que está para nascer (12,4). Mas o menino, na hora de

Apocalipse: esperança de um povo que luta – Carlos Mesters


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nascer, é arrebatado para junto de Deus no céu (12,5) e o dragão é


derrotado (12,7-9). É a vitória de Jesus que ressuscita e entra vitorioso
no céu (12, 10-12)! Portanto, vivendo no ano 95, João é transportado
em espírito, ao mesmo tempo, para o começo da criação do mundo e
para o começo da nova criação, iniciada pela ressurreição de Jesus.
Lá no passado, do alto do céu, ao lado de Jesus vitorioso, ele olha
novamente para o futuro e faz um segundo roteiro para a caminhada
do povo perseguido das comunidades. Primeiro (12,13-17), descreve
as coisas que já aconteceram entre o ano 33 e o ano 95. Nesta parte ele
explica a origem da perseguição que abala as comunidades. Em se-
guida (13,1-14,5), descreve a perseguição que estava acontecendo no
ano 95. De um lado, está o império romano, a besta-fera, que recebeu
todo o poder do dragão (13,1-18). Do outro lado, está Jesus, o Cor-
deiro, que recebeu todo o poder de Deus e que tem um exército de
144.000 virgens (14,1-5). Finalmente (14,6-13), João traz o anúncio
final das coisas que vão acontecer entre o ano 95 e o fim da história.
Tudo o que se segue depois (14,14-22,21), como ainda veremos, nada
mais é do que a execução minuciosa desse anúncio final que prediz a
condenação e a derrota total das forças do mal.
Assim, por meio desses dois roteiros, João vai tirando o véu dos
acontecimentos da perseguição e revela, dentro deles, a presença da
Boa Nova de Jesus. Os roteiros oferecem ao povo das comunidades
uma visão de conjunto do plano de Deus e da caminhada através da
história. Mostram como a própria perseguição faz parte desse plano.
A perseguição é apenas uma etapa da caminhada, necessária para se
chegar ao fim. Lendo os dois roteiros, o povo olha como que num es-
pelho e descobre, aí dentro, a que altura está a caminhada. A escuridão
da perseguição se ilumina por dentro, o véu vai caindo e a face de Deus
reaparece, de novo, na história do povo!

Os sete conselhos que João nos deixou


Antes de começarmos a leitura do Apocalipse, capítulo por capí-
tulo, convém lembrar os sete conselhos que João nos deixou, espalha-
dos pelas páginas do Apocalipse. São conselhos que ensinam como
devemos fazer esta leitura.

1. Ler e escutar em comunidade

Apocalipse: esperança de um povo que luta – Carlos Mesters


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João diz: “Feliz o que lê e os que escutam as palavras desta profe-


cia” (1,3). É um só que lê. É mais de um que escuta. Portanto, João
sugere que a leitura seja feita em comunidade. Aliás, ele escreve o
Apocalipse para as comunidades (1,4.11).

2. Sem acrescentar nem tirar nada


Muitas vezes, a pessoa não conhece o texto do Apocalipse. Nunca
leu. Só ouviu falar. Conhece-o enfeitado ou pela metade. Isto não vale!
É preciso olhar bem o que está escrito, sem acrescentar nem tirar nada!
João diz: “A todo o que ouve as palavras da profecia deste livro, eu
declaro: 'Se alguém acrescentar alguma coisa, Deus lhe acrescentará
as pragas descritas neste livro! E se alguém tirar alguma coisa das pa-
lavras do livro desta profecia, Deus também vai tirar dele a sua parte
da árvore da vida e da Cidade Santa, que estão descritas neste livro!' “
(22,18-19).

3. Usar a inteligência
João escreve para o povo das comunidades, que não era um povo
muito instruído. Ele acredita na inteligência do povo. Por duas vezes,
pede que o pessoal use a sua inteligência para descobrir o sentido das
coisas que ele escreve (13,18; 17,9). A inteligência e a sabedoria do
povo que se reúne em comunidade mantêm a imaginação dentro da
linha certa.

4. Ter sede de verdade e de vida


João diz: “Que o sedento venha, e quem o deseja receba gratuita-
mente água da vida!” (22,17). Isto é, aquele que vai ler o Apocalipse
não se deve deixar levar pelos interesses de quem quer que seja. Mas
deve procurar só aquela verdade que serve para melhorar a vida. Aí, o
sedento encontrará a água da vida de que João fala. Conforme Jesus,
o amor à verdade está nos pequenos. Eles entendem melhor (Mt 11,25-
26).

5. Abrir-se para a ação do Espírito Santo


O Apocalipse não é uma palavra qualquer. É uma profecia, vinda
do Espírito Santo (22,6.10; 1,3). Por isso, a comunidade deve abrir os
ouvidos para escutar o que o Espírito tem a dizer: “Quem tem ouvidos
Apocalipse: esperança de um povo que luta – Carlos Mesters
28

para ouvir, ouça o que o Espírito diz às comunidades!”


(2,7.11.17.29;3,6.13.22). Só a inteligência humana não basta para en-
tender a Palavra de Deus. O Espírito é um dom de Deus que se alcança
unicamente pela oração (Lc 11,13).

6. Fazer a mensagem virar oração


João diz: “O Espírito e a Esposa dizem: 'Vem! Que aquele que ouve
diga também: Vem!' “ (22,17). A Esposa é a Igreja, a comunidade.
Animada pelo Espírito ela reza. Os membros da comunidade devem
fazer a mesma coisa. Na medida em que vão “ouvindo” e entendendo
a mensagem do Apocalipse, devem expressá-la em oração. Isto é, de-
vem rezar para que Jesus venha realizar neles a mensagem ouvida.
Sem a ajuda dele, nada se faz (Jo 15,5).

7. Praticar a palavra ouvida


Não basta só ouvir. Nem basta só rezar. Temos de praticar a pala-
vra! João diz: “Feliz aquele que pratica as palavras da profecia deste
livro!” (22,7). E ainda: “Feliz o que lê e os que escutam as palavras
desta profecia, se praticarem o que nela está escrito!” (1,3). A mensa-
gem de Deus não pode ficar escondida no segredo da consciência, mas
deve percorrer o mundo (22,10). É a prática das comunidades que a
divulga.

A porta de entrada do livro do Apocalipse


Por fim, um último conselho. João escreveu o Apocalipse em forma
de carta. Mandou esta carta para sete pequenas comunidades, perse-
guidas pelo império romano (1,4.9.11). Ora, a melhor maneira para
você entender a mensagem de uma carta é você estar na casa do fulano
no momento em que ele recebe e lê aquela carta. Aí, você sente de
perto a amizade que une o escritor e o leitor da carta e entende melhor
o conforto que ela traz. Não é assim?
Pois é exatamente isto que João quer. Ele pede que a sua carta seja
lida em grupo na própria comunidade (1,3). Por isso, aqueles sete con-
selhos só funcionam mesmo se você ler a carta do Apocalipse na casa
das comunidades perseguidas. Isto é, se você for ficar do lado dos po-
bres e dos oprimidos das nossas comunidades de hoje; se souber en-
tender e defender a causa dos que são perseguidos pela justiça. Esta é

Apocalipse: esperança de um povo que luta – Carlos Mesters


29

a melhor porta de entrada para o livro do Apocalipse. Quem fica do


lado daqueles que oprimem e perseguem o povo, este não vai poder
entender nada da mensagem que João tem para nós hoje.

QUINTO CAPÍTULO

Apocalipse: esperança de um povo que luta – Carlos Mesters


30

“QUEM TEM OUVIDOS, OUÇA O QUE O ESPÍRITO DIZ ÀS CO-


MUNIDADES”. A CARTA PARA AS SETE COMUNIDADES
Apocalipse 1-3

A história de como nasceu e cresceu o livro do Apocalipse


Um pedreiro experimentado é capaz de contar a história de uma
casa. Ele examina a construção e diz: “A varanda da frente foi feita
depois. Olhe só os sinais na janela e na porta! A cozinha foi alargada.
Veja o piso e aquela viga de concreto lá no teto! O quarto de dormir
dos meninos, aí ele puxou o telhado, fez mais duas paredes e aprovei-
tou o ângulo morto que havia por ali. No começo, só havia mesmo
dois quartinhos, uma cozinha apertada e um banheiro!”. O pedreiro
sabe, porque entende de construção.
O Apocalipse é como uma casa popular. Cresceu aos poucos, de
acordo com as necessidades do povo das comunidades. Alguns pedrei-
ros experimentados examinaram os sinais nas paredes, no piso, no teto
e no telhado do Apocalipse e concluíram o seguinte:
Primeiro, João fez os capítulos 4 até 11. Foi no começo. Provavel-
mente, no ano 64, época da perseguição de Nero. Mas a perseguição
aumentava e os problemas cresciam. Já não cabiam nos capítulos 4 até
11. Era necessário aumentar a casa. O povo estava pedindo uma refle-
xão mais aprofundada sobre a perseguição e sobre a política do impé-
rio romano. Para responder a este problema, João escreve os capítulos
12 até 22. Isto foi no ano 95, época da perseguição de Domiciano. No
fim, fez a varanda da frente, os capítulos 1 até 3. Ajeitou o quintal nos
fundos (22,6-21). E a casa ficou pronta!
Vocês perguntam: “Como é que a gente sabe de tudo isto?” E eu
pergunto: “Como é que o pedreiro sabe?” Mas esta conversa de pe-
dreiros não é assunto para o nosso livro. São coisas que se discutem
na escola profissional, num curso de pedreiro.
A varanda da frente torna a casa acolhedora. Os capítulos 1 até 3,
ou seja, a “carta para as sete comunidades”, servem como porta de
entrada para o livro todo. É o cabide onde se pendura todo o resto.
Estes capítulos transformam o Apocalipse numa carta carinhosa e aco-
lhedora com endereço certo. São a varanda da frente do Apocalipse,
onde João recebia o povo perseguido das comunidades. Vamos subir
na varanda!

Apocalipse: esperança de um povo que luta – Carlos Mesters


31

Título e resumo do Apocalipse (1,1-3)


O título é “Revelação de Jesus Cristo!” (1,1). O resumo (1,1-3) ex-
plica a origem dessa revelação: ela vem de Deus através de Jesus (1,1).
Explica o seu valor: é Palavra de Deus, confirmada por Jesus (1,2); a
sua exigência: deve ser escutada e praticada (1,3); a sua recompensa:
a felicidade (1,3); a sua urgência: “o tempo está próximo!” (1,3).

Saudação inicial (1,4-8)


João inicia o livro desejando ao povo das comunidades da Ásia
“graça e paz” por parte da Santíssima Trindade (1,4). Hoje, dizemos:
“Pai, Filho, Espírito Santo”. João diz a mesma coisa, mas de maneira
diferente. Ele diz: “Aquele que era, é e vem, os Sete Espíritos, e Jesus
Cristo” (1,4-5). No nome a gente diz o que pensa e espera de uma
pessoa. Vamos ver o que João pensa e espera do Pai, do Filho e do
Espírito Santo:

1. O Pai: “Aquele que era, é e vem!”


No começo, o Pai é chamado “Aquele que era, é e vem” (1,4.8;4,8).
No fim da história, o seu nome é “Aquele que era e é” (11,17). No
fim, Ele já não vem mais. Pois já veio! Já realizou o seu plano. Ou seja,
o Apocalipse descreve a vinda de Deus na história do seu povo. Não é
um Deus distante, fora da história. Mas um Deus que tem história.
Tem passado, presente e futuro! Era, é e vem! A história de Deus é a
história do seu povo. Deus está com eles, caminha com eles!
O nome era, é e vem lembra a frase com que Deus explicou a Moi-
sés o sentido do seu nome Javé: “Eu sou o que sou!” (Ex 3,14). Para
João, o Deus das comunidades continua sendo o mesmo Deus que, na
hora de libertar o povo do Egito, trocou de nome e fez questão de se
apresentar como Javé, Deus presente, Deus libertador. “Este é o meu
Nome para sempre!” (Ex 3,15).

2. O Espírito Santo: “Os sete espíritos que estão diante do trono


de Deus”
São espíritos, isto é, são a ação invisível de Deus na vida e na his-
tória dos homens. “O Espírito do Senhor enche a vastidão da terra”
(Sb 1,7). São sete, porque representam a plenitude da ação com que
Deus atua no mundo para realizar o seu plano. Estão diante do trono,

Apocalipse: esperança de um povo que luta – Carlos Mesters


32

isto é, estão sempre prontos para atender a qualquer ordem do Pai


(5,6).

3. O Filho: “Jesus Cristo, a Testemunha fiel, o Primogênito dos


mortos, o Príncipe”
Jesus recebe muitos nomes. Cada nome revela um traço do seu
rosto. Testemunha fiel: Jesus deu a prova de que Deus é fiel no cum-
primento das suas promessas. Primogênito dos mortos: Jesus, nosso
irmão mais velho, venceu a morte e está vivo (1,18). Nele já está rea-
lizada a promessa que o Pai fez para todos. Príncipe dos reis da terra:
Jesus tem o poder para realizar a promessa do Pai. Os reis da terra, o
imperador de Roma, eles não conseguem impedir. Jesus é mais forte,
está acima deles e os domina!
Este Jesus, forte, fiel e irmão, ele nos ama (1,5). Chegou a derramar
o seu sangue para nos libertar (1,5) e fazer de nós “um reino de sacer-
dotes” (1,6). Ele tem “o domínio pelos séculos dos séculos” (1,6). No
fim dos tempos, ele voltará sobre as nuvens. Todos vão ver e bater no
peito! Até mesmo aqueles que o pregaram na cruz! (1,7).
É tudo isto que João pensa e espera do Pai, do Filho e do Espírito
Santo! A saudação inicial é um breve resumo de toda a Boa Nova do
Apocalipse!

A origem do livro, a visão de Jesus (1,9-20)


O Apocalipse nasceu de uma visão que João teve de Jesus. João até
lembra o dia e o lugar. Foi num domingo, “num dia do Senhor” (1,10),
lá na ilha de Patmos (1,9). Jesus apareceu e disse: “Escreva num livro
aquilo que você está vendo, e mande o livro para as sete comunidades”
(1,11). No fim da visão, Jesus repete a mesma ordem (1,19). Foi uma
visão importante. Convém estudá-la mais de perto.

1. Uma chave de leitura para entender melhor a visão que João


teve de Jesus
Uma visão é como um sonho. Não pode ser tomada ao pé da letra,
palavra por palavra. Aliás, nem daria! Como entender pés de bronze
(1,15), rosto como o sol (1,16), uma espada saindo da boca (1,16)?
João é mais artista do que técnico, mais poeta do que professor! A sua
visão é fruto de uma experiência. João deve ter tido uma experiência

Apocalipse: esperança de um povo que luta – Carlos Mesters


33

profunda do poder, do amor e da santidade de Jesus. E agora, por meio


de imagens, procura comunicar aos outros aquilo que ele mesmo ex-
perimentou. Ele usa imagens conhecidas, que o povo entendia. O povo
talvez não chegasse a entender todos os detalhes, mas adivinhava o
sentido do conjunto, pois tinha a mesma fé no mesmo Jesus Cristo.
Conclusão: só o estudo não basta para entender as visões. É preciso
ter a mesma fé e a mesma experiência de Deus e de Jesus. As visões
são um verdadeiro desafio para nós!
2. Algumas dicas para entender melhor os detalhes da visão
Os sete candelabros (1,12) são as sete comunidades (1,20). O filho
do homem (1,13) é Jesus, o Messias. A túnica longa (1,13) é sinal do
seu sacerdócio. O cinto de ouro (1,13) diz que ele é rei. Os cabelos
brancos (1,14) sugerem a sua eternidade. Os olhos como chama de
fogo (1,14) indicam a sua ciência divina. Os pés de bronze (1,15) são
sinal de firmeza e estabilidade. A sua voz, forte como o barulho de
águas torrenciais (1,15), revela majestade e poder. As sete estrelas na
sua mão (1,16) são os sete coordenadores ou anjos protetores das co-
munidades. A espada que sai da sua boca (1,16) é a sua palavra que
tem o poder de Deus. O seu rosto como o sol (1,16) sugere a sua auto-
ridade. Ao ver Jesus, João cai como morto a seus pés (1,17). Isto re-
flete a situação das comunidades que tinham medo da perseguição e
da morte.
A esta altura da visão, Jesus começa a agir. Ele coloca a mão direita
sobre João (1,17) e diz: “Não tenha medo! Eu sou o Primeiro e o Úl-
timo, o Vivente! Estive morto, mas eis que estou vivo pelos séculos
dos séculos, e tenho as chaves da morte!” (1, 17-18). Este gesto e esta
frase de Jesus explicam muito mais do que tudo aquilo que eu expli-
quei antes.
As sete cartas para as sete comunidades
(2,1-3,22)
São cartas bem pequenas, simples e pessoais para as comunidades
de Éfeso (2,1-7), Esmirna (2,8-11), Pérgamo (2,12-17), Tiatira (2,18-
29), Sardes (3,1-6), Filadélfia (3,7-13) e Laodicéia (3,14-22). Não va-
mos explicar cada carta. Damos apenas algumas informações gerais
para todas as cartas.
1. As sete divisões de cada carta
Todas as sete cartas têm a mesma forma, o mesmo jeito. Têm as

Apocalipse: esperança de um povo que luta – Carlos Mesters


34

mesmas sete partes:


1. Todas elas são dirigidas ao “anjo da comunidade”
(2,1.8.12.18;3,1.7.14).
2. Todas se apresentam como palavra de Jesus: Assim diz...
(2,1.8.12.18;3,1.7.14).
3. Em cada carta, Jesus recebe um título (2,1. 8.12.18;3,1.7.14).
Quase todos os títulos vêm da visão que João teve de Jesus (1,12-20).
4. Em todas as cartas, Jesus começa dizendo: Conheço. . ., e des-
creve as qualidades positivas da comunidade (2,2-3.9.13.19;3,8). A
comunidade de Lao-dicéia não tem nada de positivo. Ela não é fria
nem quente (3,15).
5. Jesus descreve o que cada comunidade tem de negativo e dá ad-
vertências (2,4-6.14-16.20-25; 3,2-3.15-19). Duas comunidades não
têm nada de negativo: Esmirna e Filadélfia. A estas Jesus dá conselhos
de perseverança (2,10;3,11). Na comunidade de Sardes, o negativo é
mais forte
do que o
positivo (3,4).
Por isso, lá se
inverte a
ordem.
6. Todas
elas têm o aviso
final:
“Quem tem
ouvidos, ouça o
que o
Espírito diz às
comuni-
dades!”

Apocalipse: esperança de um povo que luta – Carlos Mesters


35

(2,7.11.17.29;3,6.13.22).
7. Todas elas terminam com uma promessa ao vencedor
(2,7.11.17.26-28; 3,5.12.21).
2. Sete sugestões para a leitura e o estudo das sete cartas
1. Conhecer a situação das comunidades
O que cada comunidade tem de positivo e de negativo? Qual o
ponto em que cada uma deve esforçar-se mais? Quais os perigos que
a ameaçam? Comparar com hoje.
2. Enfrentar a situação
Como João pede que elas enfrentem a situação? Quais os recursos
de que cada comunidade dispõe para vencer os seus problemas? Como
hoje enfrentamos os problemas?
3. Alimentar-se do Antigo Testamento
Quais os trechos e acontecimentos do Antigo Testamento que são
citados ou lembrados em cada carta? Quais as forças do passado que
João quer acordar assim no povo? Como fazemos hoje para recuperar
a memória e fazer acordar no povo a força do seu passado?
4. Aprofundar a fé em Jesus
Quais os títulos que Jesus recebe em cada carta? Qual o sentido e
a força de cada título para a vida do povo? Comparar com os títulos
que Jesus recebe hoje.
5. Saborear as imagens e comparações? Quais as comparações ou
imagens usadas em
cada carta? De onde foram tiradas: do Antigo Testamento, da vida,
da natureza ou da cultura do povo? Qual o sentido e a força de cada
imagem para a vida? Só na “promessa ao vencedor”, as sete cartas
usam as seguintes imagens: árvore da vida (2,7), paraíso de Deus (2,7),
segunda morte (2,11), maná escondido (2,17), pedra branca (2,17),
nome novo (2,17;3,12), cetro de ferro (2,27), vaso de barro (2,27), es-
trela da manhã (2,28), veste branca (3,5), livro da vida (3,5), coluna
no templo de Deus (3,12), nova Jerusalém (3, 12), sentar com Jesus no
trono do Pai (3,21). Esta amostra dá uma idéia da riqueza contida nas
sete cartas.
6. Animar-se com a promessa ao vencedor!
Qual a promessa que cada carta oferece ao vencedor? Como esta
promessa ajuda a continuar na luta e a agüentar a perseguição? Qual a
promessa que hoje anima o povo na caminhada?

Apocalipse: esperança de um povo que luta – Carlos Mesters


36

7. Imitar o exemplo de João


Informar-se sobre a situação concreta das comunidades de hoje que
vocês conhecem. De vez em quando, reúnam a sua comunidade e es-
crevam uma cartinha para uma comunidade que está precisando de um
reforço na caminhada!

SEXTO CAPÍTULO

“SABEREIS QUE EU SOU JAVÉ, VOSSO DEUS E VOSSO


LIBERTADOR!” PRIMEIRO ROTEIRO DA CAMINHADA DO POVO

Apocalipse: esperança de um povo que luta – Carlos Mesters


37

Apocalipse 4-11

Depois do recado das sete cartas, João leva o povo das


comunidades para dentro do céu. Lá do alto, eles vão olhar a terra,
assistir “às coisas que devem acontecer” (4,1). Vão assistir como se
fosse em um teatro em que eles mesmos estão trabalhando. O teatro
da história humana!
Nós também vamos entrar, junto com eles! Vamos entrar pela porta
que João encontrou aberta (4,1). Preparem-se para entrar na morada
de Deus! Não entrem aí como quem já sabe de tudo ou quer saber de
tudo.

Mas entrem para encontrar-se com Deus, para adorá-lo e receber dele
o entendimento e a coragem que estão procurando. Vamos entrar...

A visão do trono de Deus (4,1-11)


Entrando no céu, a primeira coisa que se vê é o trono: “Havia um
trono no céu, e no trono Alguém sentado!” (4,2). A visão do trono é o
pano de fundo de todo o Apocalipse, do começo (1,4) ao fim (22,3).
Ela revela a grandeza de Deus. Invisível, do alto do trono, Deus

Apocalipse: esperança de um povo que luta – Carlos Mesters


38

comanda a última fase do seu plano que vai iniciar agora (4,1).
A visão do trono é como uma música tocada com muitos
instrumentos. Começa baixinho, vai crescendo e explode na
aclamação: “Santo! Santo! Santo! Senhor! Deus Todo-poderoso!”
(4,8). O nome de Deus é proclamado. “ERA, É, VEM!” (4,8). É o
nome que vem do Êxodo: Javé, Deus conosco, Deus libertador! (Ex
3,14-15). Ao iniciar a última fase do seu plano de salvação, Deus
mantém o mesmo nome com que iniciou a primeira fase! E Ele vai
manter o nome até o fim! (11,17). Deus não mudou! E não mudará!
No nome Javé está expresso o compromisso que Deus assumiu de
estar sempre com o seu povo para libertá-lo. E Deus é fiel ao
compromisso. Ele deu a prova! O Êxodo foi a primeira prova: “Vocês
vão saber que Eu sou Iahweh!” (Ex 6,7). Os fatos que vão ser relatados
agora serão a última prova, prova definitiva, de que ele é Javé, Deus
libertador.
O nome Javé é o armário da fé, da esperança e do amor do povo
(Ex 34,6-7). O vento das perseguições fechou o armário e o povo ficou
desprotegido. João começou a abri-lo de novo para poder oferecer ao
povo a luz e a força de que estavam precisando.

A visão do Cordeiro com chaga de morte (5,1-14)


A visão continua. Na mão de Deus está um livro, fechado a sete
selos (5,1). Este livro contém o roteiro da história, desde o ano 33 até
o fim. Ninguém é capaz de abrir o livro (5,3). João chora (5,4). É a
situação das comunidades. Elas choram, porque acham que Deus já
não controla mais a história. Alguém diz: “Não chores! Eis que o Leão
da tribo de Judá, a Raiz de Davi, venceu para abrir o livro e seus selos”
(5,5). João olha, mas não vê nenhum leão nem raiz. Ele vê é um Cor-
deiro com chaga de morte (5,6). É Jesus, que acaba de entrar no céu,
trazendo no corpo os sinais da paixão (Jo 20,27). Jesus recebe o livro
da mão de Deus (5,7) e torna-se, assim, o Senhor da história (5,13). É
Ele quem vai assumir o controle dos acontecimentos e executar o
plano de Deus!
No passado, o sangue do cordeiro libertou o povo do Egito (Ex
12,13-14) e fez dele um “reino de sacerdotes” (Ex 19,6). Agora, é o
sangue de Jesus, o novo Cordeiro, que está libertando o povo, fazendo

Apocalipse: esperança de um povo que luta – Carlos Mesters


39

dele um “reino de sacerdotes” (5,9-10). A libertação já está em anda-


mento. O êxodo já começou! Ressuscitando da morte, Jesus recebeu
todo o poder e assumiu a liderança (5,12-13). Se o império romano
não quiser reconhecê-lo, pior para o império! Pois vai ser derrotado
pelo Cordeiro (17,14). E como no antigo êxodo (Ex 15,1-22), também
agora, todos explodem num “canto novo” de louvor (5,9.12-14).
Canta-se muito no Apocalipse! João traz a letra de muitos hinos e
aclamações (4,8.11;5,9-10.12.13;6, 10;7,10.12;ll,15.17-18;12,10-
12;15,3-4 etc.). Será que é só para informar o que se cantou lá no céu?
Não! Mas para animar o povo perseguido (e a nós também) a cantar
o mesmo canto de vitória e de alegria. O Apocalipse é uma grande
celebração, do começo ao fim! Celebra, e ensina a celebrar, a vida e a
luta do povo. Para João, a caminhada do povo de Deus através da his-
tória, na noite escura das perseguições, é como uma longa procissão
luminosa que segue cantando para as fontes da vida (7,17). É como se
pedisse a todos nós: “Acenda a sua vela, você também! Entre na pro-
cissão do povo! Participe da celebração e cante com a gente!”
Assim, aos poucos, já vai aparecendo a ordem em que João colocou
os quadros na parede do Apocalipse. Ele vai sugerindo que o êxodo, a
libertação, não é um fato do passado, da saudade. Mas é uma realidade
presente, vivida pelo povo das comunidades. Sim, João começou a ti-
rar o véu dos acontecimentos e o povo já está enxergando neles os
traços do rosto de Javé!

A abertura dos sete selos (6,1-17)


A visão continua. Jesus, o Cordeiro, rompe os selos do livro fe-
chado (6,1) que contém o roteiro da história do povo. Conduzida por
Jesus, a história começa a avançar, selo após selo, etapa após etapa, do
ano 33 em diante. João e o povo ficam atentos, assistindo a tudo. Que-
rem entender o sentido da perseguição que os arrasa.
Quatro selos são abertos (6,1.3.5.7), quatro etapas passam. É no quinto
selo que aparece a perseguição do ano 95. Aparece o povo perseguido
que clama por justiça e vingança (6,9-10). João e o povo se reconhe-
cem: “Somos nós! É o nosso tempo! Vamos ver em que vai dar!” Ou-
vem o aviso: “Agüentem por mais um pouco de tempo, até que se
complete o número dos seus companheiros e irmãos!” (6,11). A per-
seguição tem prazo certo para terminar. Sinal de que Jesus controla a

Apocalipse: esperança de um povo que luta – Carlos Mesters


40

situação!
Na abertura do sexto selo (6,12), eles passam a contemplar o futuro
que virá depois da perseguição. Este futuro vai dar sentido à persegui-
ção, pois vem revelar a missão do povo perseguido!
A primeira coisa que aparece no sexto selo é uma tremenda calami-
dade (6,12-14). “Os reis da terra, os magnatas, os capitães, os ricos e
os poderosos, todos eles, sejam escravos ou homens livres” (6,15), fo-

gem de medo e gritam apavorados: “Chegou o grande dia da ira de


Deus! Quem vai poder ficar em pé?” (6,17).
A situação mudou totalmente! Os que, na quinta etapa, ainda do-
minavam e perseguiam, estes, agora, na sexta etapa, fogem apavora-
dos! E o povo das comunidades, o que vai acontecer com ele no sexto
selo? Vai escapar da calamidade, ou vai ter de sofrer mais ainda? A
resposta vem logo em seguida, nas visões do recenseamento (7,1-8) e

Apocalipse: esperança de um povo que luta – Carlos Mesters


41

da multidão sem conta (7,9-17). Antes, porém, convém explicar o sen-


tido desta divisão da história em sete etapas.
Os sete selos do roteiro da história, abertos pelo Cordeiro, não de-
vem ser calculados em etapas de meses, anos ou séculos. Dividindo
toda a história em sete etapas, João quer ensinar o seguinte: tudo, todos
os acontecimentos, todos os povos, todas as pessoas, mesmo as que se
dizem neutras, mesmo o imperador com o seu império, querendo ou
não, tudo e todos estamos dentro da grande luta entre o bem e o mal,
entre a justiça e a injustiça, entre a liberdade e a opressão,entre Deus
e Satanás! Não existe arquibancada para se assistir, como que de fora,
ao jogo da história. Todos estamos dentro do campo, jogando ou a
favor ou contra o plano de Deus! Saiba escolher o lado certo: o lado
da justiça e da liberdade, o lado de Deus e da vitória! Você também!

A missão do povo das comunidades (7,1-17)

1. O recenseamento no deserto (7,1-8).


A visão do sexto selo continua. João pendura mais um quadro na
parede do Apocalipse. Quadro bonito, tirado do passado, do êxodo!
No passado, depois da saída do Egito, houve o recenseamento das
tribos (Nm 1,20-43). Aquela contagem do povo, feita lá no deserto, foi
o começo da nova organização igualitária e fraterna do povo, de
acordo com a Lei de Deus. O oposto da organização opressora do faraó
do Egito!
Agora, no sexto selo, Deus decreta um novo recenseamento. É o
recenseamento dos “servos do nosso Deus” (7,3), que agüentaram a
perseguição sem se contaminar com os falsos deuses do império
(14,4). Um anjo é enviado para marcá-los (7,3). Todos recebem a
marca de Deus que é sinal de proteção (9,4). O número dos marcados
é 144.000 (7,4). De cada tribo, 12.000 (7,5-8). Agora o número é
completo! Já não falta mais ninguém! (6,11).
De fato, no sexto selo a situação mudou por completo! Os
opressores fugiram apavorados (6,15-17). E o povo que vivia
esmagado e disperso (6,9-10), apresenta-se agora ao mundo numa
organização perfeita, unido entre si! (7,5-8). Qual o sentido de tudo
isto?

Apocalipse: esperança de um povo que luta – Carlos Mesters


42

2. A lição do recenseamento
Olhando neste espelho do seu passado, o povo perseguido das
comunidades descobre o seu futuro. O sexto selo vai destruir o poder
dos grandes com a “ira de Deus” (6,17) e vai proteger a vida dos
pequenos com a “marca de Deus” (7,3). Por isso, os pequenos não
devem ter medo da calamidade que se abate sobre os grandes (6,12-
15), nem do poder que persegue as comunidades. Em vez de gastar
energia em combater diretamente esse poder, devem aplicar o seu
esforço em preparar o futuro, imitando o povo do antigo êxodo. Isto é,
devem começar a organizar-se, desde já, de maneira igualitária e
fraterna, de acordo com a Lei de Deus! Pois, quando no sexto selo o
poder dos grandes cair de podre, destruído pelas pragas da história
(6,15-17), então os pequenos devem estar prontos para apresentar-se
ao mundo, unidos entre si, numa nova organização, contrária à
organização opressora do império romano!

3. A multidão que ninguém podia contar (7,9-17)


A visão continua. João vê “uma grande multidão que ninguém
podia contar” (7,9). Todos vestidos de branco com palmas na mão,
diante do trono, louvam a Deus, fazendo coro com os anjos no céu
(7,9-12). João não sabe quem são. Ele até estranha, e pede uma
explicação (7,13-14). Pois a multidão não vem das doze tribos já
marcadas com o sinal de Deus (7,3-8). Vem da humanidade inteira,
“de todas as nações, tribos, povos e línguas!” (7,9).
Trata-se dos que vieram “da grande tribulação” (7,14), da
perseguição do império. Lavaram suas vestes no sangue do Cordeiro
(7,14). Como as doze tribos, eles saíram do Egito e agora estão como
que no deserto, diante do trono de Deus (7,15). Deus estende sobre
eles a sua tenda (7,15) e enxuga todas as lágrimas (7,17). Sob a prote-
ção do Cordeiro, não passam fome nem sede, nem sofrem com o calor
do sol (7,16). Jesus os conduz para as fontes da vida (7,17). A sua vida
é um serviço de louvor a Deus (7,15).
Isto quer dizer que o novo êxodo não é só das comunidades, mas é
da humanidade inteira! As comunidades não podem pensar que elas
são as únicas a resistir contra o império. Nem podem querer controlar
a ação de Deus no mundo! Javé, o Deus libertador, não é propriedade
das comunidades. As comunidades, sim são propriedade de Javé (Ex

Apocalipse: esperança de um povo que luta – Carlos Mesters


43

19,5)! No meio da humanidade oprimida que luta e resiste contra a


opressão, elas devem ser um sinal de Deus. Pela sua organização fra-
terna, nascida de Deus, devem apresentar-se ao mundo como um ser-
viço, como uma possível alternativa para a liberdade e para a justiça.
Por isso, enquanto durar a perseguição do quinto selo, o povo das
comunidades deve agüentar firme (2,13.25;3,11;6,11). Deve resistir
até à morte (2,10)! Pois, pela sua resistência e luta, elas preparam o
futuro que deverá aparecer aos olhos do mundo na abertura do sexto
selo! E resta “pouco tempo” para realizar esta missão (6,11)!

As sete pragas do sétimo selo (8,1-10,7)


A visão continua. O roteiro vai sendo desenrolado. O novo êxodo
progride e avança no escondido da história, sob a proteção de Javé.
Finalmente, o
Cordeiro abre o sétimo selo (8,1). É o começo do fim! Aparecem
sete anjos com sete trombetas (8,2). São as sete pragas finais da histó-
ria que vão “exterminar os que exterminam a terra” (11,18) e vão re-
compensar os santos que temem a Deus (11,18).
Em meio a uma celebração (8,3-5), os sete anjos se preparam para
tocar as suas trombetas e jogar as pragas (8,6). As cinco primeiras pra-
gas são: granizo (8,7), sangue (8,8), água amarga (8,11), escuridão (8,
12) e gafanhotos (9,3.7). Elas são uma nova edição, revista e aumen-
tada, das pragas do Egito (Ex 7,8-10, 29). A sexta praga (9,13-19) vem
do livro da Sabedoria, onde este descreve, a seu modo, as pragas do
Egito (Sb 11,15-19).
Apesar de ser severo no castigo, Deus não nega o perdão. Ele con-
vida os opressores do povo à conversão. É por isso que as primeiras
seis pragas nunca são completas. Destroem apenas “uma terça parte”
(8,7.8-9.10.11.12;9,18). Deus limita o poder destruidor das pragas
(9,4-5). Conforme o livro da Sabedoria, Ele “dispõe tudo com medida,
número e peso” (Sb 11,20). Ele castiga aos poucos, “para que os pe-
cadores se afastem do mal e creiam em Ti, Senhor!” (Sb 12,2). Mas
não adiantou nada! Os homens ficaram agarrados aos falsos deuses do
império (9,20). Não abandonaram “o assassinato, a magia, a corrupção
e o roubo” (9,21). “Não se converteram!” (9,21).
Por isso, terminada a sexta praga do sétimo selo, o anjo de Deus
solta um grito (10,3) e faz um solene juramento (10,5-6), dizendo: “Já

Apocalipse: esperança de um povo que luta – Carlos Mesters


44

não haverá mais tempo!” (10,6). Esgotou-se o prazo do perdão! O tem-


po da conversão terminou! A sétima praga marcará o fim (10,7). Será
a aplicação da justiça sem apelação! A condenação total do império!
Ao toque da sétima trombeta, “o mistério de Deus estará consumado!”
(10,7). Será a chegada definitiva do Reino de Deus (11,15).

A chegada definitiva do Reino de Deus (11,14-19)


Abre-se a última página do roteiro da história. O sétimo anjo toca
a trombeta (11,15). Ouve-se um grito forte: “A realeza do mundo
passou agora para o nosso Senhor e seu Cristo, e ele reinará pelos sé-
culos dos séculos” (11,15). Os vinte e quatro anciãos, isto é, os
representantes de todo o povo, se ajoelham, adoram a Deus e dizem:
“Nós te damos graças, Senhor Deus todo-poderoso, Aquele que é e
Aquele que era, porque assumiste o teu grande poder e passaste a
reinar!” (11,17).
É o começo da celebração final da história. No meio da aclamação,
o Nome de Deus é proclamado: “Aquele que é e Aquele que era!”
(11,17). É o mesmo nome que foi proclamado no começo da história:
“Aquele que era, é e vem!” (4,8). Só que, desta vez, Deus já não vem
mais. Ele já veio! A vinda de Deus na história dos homens é o novo
êxodo que acaba de terminar. O fim chegou! Deus provou para sempre
que Ele é Javé, Deus conosco, Deus libertador!
Aqui termina o primeiro roteiro da caminhada do povo. O roteiro
do novo êxodo! Esta foi a primeira leitura que João fez dos
acontecimentos da perseguição.

Passando do primeiro para o segundo roteiro


João soube tirar o véu e revelar, dentro dos acontecimentos, a
presença da Boa Nova de Jesus, os traços do rosto de Deus. Mas o
tempo foi passando, Chegou a perseguição tão dura de Domiciano. A
| tuação do povo mudou. A mensagem do primeiro rd teiro já não
bastava para enfrentar os novos aconte cimentos. Era necessária uma
leitura mais dentro da medida daquilo que o povo estava sofrendo.
Para responder ao problema do povo sofrido e perseguido, João fez
o segundo roteiro (12-22). Alar gou a casa do Apocalipse para poder
abrigar o povo e enfrentar a situação. Puxou o telhado da sétima pr«
ga (11,14-19) e fez a sala ampla do segundo roteiro que vai do capítulo

Apocalipse: esperança de um povo que luta – Carlos Mesters


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12 até 22. — A sétima praga é a praga da “ira de Deus” (II, 18) contra
as nações que se rebelaram. É a praga do “julgamento” (11,18), em
que chegou a hora de “recompensar os servos de Deus” (11,18) e de
“exterminar os que exterminam a terra” (11,18). O segundo roteiro,
por assim dizer, é o eco prolongado do trovão que se ouve no fim da
sétima praga (11,19). E o roteiro do julgamento e da condenação dos
que perseguem o povo de Deus. Com muita coragem, João se coloca
diante do imperador de Roma e, em nome do povo perseguido, o
desafia e diz: “Apesar de você, amanhã há de ser outro dia!”
Para unir os dois roteiros num único livro, João fez duas pequenas
modificações nas paredes do primeiro roteiro. Acrescentou a visão do
livrinho (10,8-11), onde ele recebe a ordem: “É necessário que você
continue ainda a profetizar contra muitos povos, nações, línguas e
reis!” (10,11). Assim ele avisa: “O livro não vai acabar depois da
sétima praga! Vai ter muitas outras profecias! Terminou o livro dos
sete selos, o primeiro roteiro. Agora vamos ler o segundo roteiro,
descrito no livrinho doce e amargo!” Além disso, acrescentou a visão
das duas testemunhas (11, 1-3). Trata-se de Moisés e Elias. Conforme
a esperança do povo, Moisés e Elias deviam voltar para preparar a
chegada do julgamento final (Eclo 48,10; Ml 3,23). Assim, por meio
desta visão, João orienta a atenção dos leitores para o tema do
julgamento.
No fim de tudo, depois do julgamento final, João retoma o assunto
do povo das comunidades e conta qual foi o resultado da sua luta.
Descreve como vai ser o futuro novo que as comunidades estavam
preparando através da sua organização fraterna. É a grande visão do
novo céu e da nova terra (21,1-22,21).
Tudo isto traz uma lição muito importante. João queria ser fiel, não
só a Deus, mas também ao povo sofrido das comunidades. Queria que
o seu escrito fosse uma resposta real.e concreta aos problemas que o
povo estava sofrendo. Por isso, ele procurava o jeito mais certo de se
expressar, modificava o roteiro e elaborava outro. O importante para
ele era sempre o seguinte: tirar o véu e revelar a Boa Nova de Deus
dentro dos acontecimentos da caminhada!

Apocalipse: esperança de um povo que luta – Carlos Mesters


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SÉTIMO CAPÍTULO

“APESAR DE VOCÊ, AMANHÃ HÁ DE SER OUTRO DIA”


SEGUNDO ROTEIRO DA CAMINHADA DO POVO
Apocalipse 12-22

No primeiro roteiro, João nos levou para dentro do céu, longe da

Apocalipse: esperança de um povo que luta – Carlos Mesters


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terra. No segundo, ele começa olhando o céu (12,1), mas logo desce e
fica na terra, junto do povo que luta e sofre (12,12). E, no fim, o
próprio céu desce sobre a terra (21,2), e será para sempre “a morada
de Deus com os homens” (21,3).
O primeiro roteiro descrevia o novo êxodo: Deus libertando o seu
povo. O segundo descreve o julgamento de Deus: Deus condenando
os opressores do povo. É um julgamento diferente, presente dentro da
história, escondido nos acontecimentos. João vai tirar o véu, para que
o povo possa enxergar. O julgamento tem três etapas:
1. O passado (12,1-17): do ano 33 até o ano 9.5.
2. O presente (13,1-14,5): a época da perseguição de Domiciano
do ano 95.
3. O futuro (14,6-22,21): as coisas que vão acontecer depois do ano
95 até o fim.
Nós também vamos assistir ao julgamento, levando conosco, na
nossa lembrança, a história do nosso povo e a situação do nosso país
e das nossas comunidades. Assim, a luz do julgamento de Deus poderá
clarear, também para nós, os acontecimentos da nossa caminhada.

O passado: A luta entre a mulher grávida e o dragão de fogo (12,1-


17)

1. Deus toma posição a favor da vida ameaçada (12,1-6)


Abre-se o roteiro. A primeira visão é de luta! De um lado, uma mulher
grávida que grita em dores de parto (12,1-2). Do outro lado, um dragão
de fogo, “a antiga serpente” (12,3-4). Esta luta foi anunciada no para-
íso terrestre. Lá foi profetizado: a vitória será da mulher e da sua des-
cendência; a serpente terá a cabeça esmagada (Gn 3,15)!
A mulher que grita em dores de parto (12,2) é Eva, a primeira mu-
lher. É a humanidade, todos nós, enquanto lutamos para defender a
vida contra a ameaça constante da morte. É o povo de Deus que luta
para fazer nascer vida nova. É Maria, a Mãe de Jesus!
O dragão é “a antiga serpente, o diabo, Satanás” (12,9). É o poder
do mal e da morte. Ele se coloca diante da mulher para devorar o me-
nino logo ao nascer (12,4). Luta desigual! Esta é â situação da huma-
nidade até hoje! A vida já nasce ameaçada pela morte. A vida perde
para a morte!

Apocalipse: esperança de um povo que luta – Carlos Mesters


48

Deus toma posição! Defende o menino (12,5), defende a mulher


(12,6). O menino nasce e é arrebatado para junto de Deus (12,5). O
menino é Jesus! Ele nasce, vive, morre, ressuscita, sobe ao céu e re-
cebe de Deus o poder para “reger todas as nações com mão de ferro”
(12,5). A mulher também é libertada da ameaça do dragão e foge para
o deserto (12, 6). É o povo de Deus que sai do Egito para o deserto. É
a Igreja que acaba de nascer!
Deus venceu o dragão! A ressurreição de Jesus é o novo começo!
A luta entre a mulher e o dragão já está decidida. A história que segue

depois é apenas conseqüência da vitória já alcançada. No seu segundo


roteiro, João vai tirar o véu. Vai ajudar o povo a enxergar a vitória de
Deus presente nos acontecimentos da caminhada.

2. O dragão é expulso do céu e desce para a terra (12,7-12)


Conforme o pensamento daquele tempo, Satanás, o dragão, era o

Apocalipse: esperança de um povo que luta – Carlos Mesters


49

“acusador dos irmãos” (12,10), o dedo-duro! Ele vivia junto de Deus


para informá-lo sobre os pecados e as fraquezas dos homens (Jó 1,6-
12;2,3-7).
Mas Jesus venceu e expiou os pecados (Cl 2,13-15). A fé em Jesus
e a doação da própria vida são mais fortes do que o pecado que nos
acusa (12,11). Por isso, não há mais necessidade de um dedo-duro! O
dragão perde o seu emprego! Não há mais lugar para ele no céu (12-
8). Fora com ele! E, numa grande batalha, conduzida pelo arcanjo Mi-
guel (12,7), o dragão é expulso do céu (12,9). “Ai da terra e do mar,
porque o diabo desceu para junto de vocês, cheio de furor, sabendo
que lhe resta pouco tempo!” (12,12). Estamos no início da Igreja. O
início das perseguições!

3. Começa a perseguição da Igreja (12,13-17)


Mesmo derrotado, o dragão não desiste. Quer vingança! Vai perse-
guir a mulher que deu à luz aquele menino (12,13). Isto é, vai perseguir
a Igreja! Mas Deus protege a Igreja. Como no Êxodo (Ex 19,4; Dt
32,11), ela recebe “asas de águia” e voa para o deserto (12,14). O dra-
gão vomita um rio atrás da mulher para matá-la (12,15). É o rio do
império romano. O império romano é o vômito de satanás! Mas a terra
se abre e engole o rio (12,16). A história engole o império e defende o
povo perseguido!
O dragão não desiste e lança um novo ataque. Começa a “guerrear
contra o resto dos descendentes da mulher” (12,17). Aqui estamos che-
gando no ano 95. É a época de Domiciano. Numa nova tentativa de
destruir a Igreja, Domiciano começou a perseguir o povo das comuni-
dades que “observa os mandamentos de Deus e mantém o testemunho
de Jesus” (12,17).
Aqui termina a primeira etapa do roteiro. Ela ensina o seguinte:
a. A perseguição das comunidades é parte de uma luta muito
maior entre vida e morte, entre o bem e o mal.
b. O dragão que estimula a perseguição é um derrotado. Foi der-
rotado por Jesus (12,4-5), pelo arcanjo Miguel (12,7-8), pelos
que crêem em Jesus (12, 11) e pela própria terra (12,16).
c. A perseguição já é um sinal da vitória de Jesus sobre o dra-
gão.

Apocalipse: esperança de um povo que luta – Carlos Mesters


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d. A perseguição não consegue vencer o conjunto das comuni-


dades, a Igreja, que tem a proteção de Deus.
e. A perseguição de Domiciano é sinal de medo e de fraqueza
(12,12.17). Seu poder é limitado no tempo (12,6.14). Está a
caminho de receber a sua quinta derrota!

O presente: Os dois campos em luta: a besta-fera e o Cordeiro


(13,1-14,5)
A luta entre a mulher e o dragão continua. O dragão se encarna na
besta-fera, símbolo do império romano (13,1-18). A descendência da
mulher se encarna em Jesus, o Cordeiro, e no grupo dos 144.000 mar-
cados com o sinal de Deus (14,l-5;7,3-8). No primeiro roteiro, João
falou da perseguição, mas não do perseguidor. Agora, ele vai falar do
perseguidor. Vai dar uma opinião muito clara sobre a política do im-
pério romano.

1. O império romano: a besta-fera que combate as comunidades


(13,1-18)
João está na praia e vê uma besta-fera que sobe do mar (13,1). O mar
é símbolo do poder do mal. É uma besta terrível! Parece uma pantera,
tem pés de urso e boca de leão (13,2). Tem dez chifres (13,1). Sinal de
muito poder! Tem sete cabeças (13,1). São sete reis imperadores
(17,9-10). A esta besta-fera o dragão entrega o seu poder. Assim
conforme João o poder do império romano não vem de Deus, mas de
Satanás (13,2.4)!
A besta-fera faz tudo para aumentar o seu poder sobre o povo. Uma
das suas cabeças tem ferida de morte, mas ficou curada (13,3.12.14).
Isto é, conforme a crença do povo, Nero teria voltado a viver em
Domiciano! Por causa disto, a terra inteira ficou admirada e começou
a adorar a besta-fera (13,3-4). “Quem pode lutar contra a besta?”
(13,4)
O poder da besta-fera é um poder insolente (13, 5): ataca a Deus
com blasfêmias (13,6), persegue o povo das comunidades (13,7) e tem
pretensões de ser deus e dono do mundo inteiro com todos os seus
habitantes (13,7-8).

Apocalipse: esperança de um povo que luta – Carlos Mesters


51

Como é que a besta-fera consegue enganar o mundo inteiro e “fazer


a cabeça” de tanta gente? Ela recebe ajuda de uma outra besta, que tem
aparência de cordeiro mas que fala como um dragão (13,11). São os
falsos profetas (16,13; 19,20;20,10): milagreiros, sábios, sacerdotes,
técnicos, que colocam a sua magia, o seu poder, o seu ministério e o
seu saber a serviço da besta-fera, isto é, a serviço do império (13, 12).
Estes falsos profetas operam maravilhas (13,13). Imitam o profeta
Elias (lRs 18,38-39), fazendo o fogo descer do céu, à vista de todos
(13,13). Realizam grandes projetos (13,15) que causam a admiração
de todos (13,14). Assim, seduzem a humanidade inteira e conseguem
com que todos adorem a imagem dabesta--fera (13,15). E não é só
isso! Dominam a vida do povo pelo medo e pelo controle da economia.

Quem não apoia o regime, morre! (13,15). Quem não tiver a marca ou
o número da besta-fera, não pode comprar nem vender coisa alguma
(13,16-17). Desta maneira, os falsos profetas, tanto os de ontem como
os de hoje, enganam o povo e sustentam o regime do império!
No fim, João dá a chave para a gente entender o crime maior do
Apocalipse: esperança de um povo que luta – Carlos Mesters
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império. Está expresso no número da besta-fera, que é 666! (13,18).


Como já vimos, o número 666 indica o imperador de Roma e denuncia
a sua pretensão de ser deus e dono do mundo. João não tem dúvidas.
Para ele, o império romano não presta! É obra de Satanás!
Todo esse poder é um poder limitado, controlado por Deus. A
perseguição só vai durar 42 meses (13,5). É a metade de sete anos.
Número simbólico para indicar a imperfeição. Isto é motivo de fé e de
perseverança para o povo perseguido (13,10).

2. As comunidades: o Cordeiro e seu exército que resistem ao im-


pério (14,1-5)
Depois do império, aparecem o Cordeiro e os 144.000 marcados
com o nome de Deus (14,1). Trata-se do povo das comunidades que
resiste à perseguição do império (7,3-8). Não há nem pode haver nada
em comum entre os dois campos em luta. É só contraste! E João acen-
tua o contraste. Há uma oposição total entre o Cordeiro, de um lado
(14,1), e a besta-fera, do outro lado; entre o Monte Sião, Jerusalém
(14,1), e Roma, a sede do império; entre os 144.000 marcados com o
nome de Deus e do Cordeiro, e o mundo de gente marcado com o nú-
mero da besta-fera; entre o rumor do canto de vitória que louva a Deus
(14, 2-3), e as palavras insolentes e blasfêmias contra Deus; entre a
fidelidade que resiste ao império sem se contaminar (14,4), e a sedu-
ção do império que leva a adorar a besta-fera; entre o poder de Deus
entregue ao Cordeiro (5,12), e o poder do dragão entregue à besta
(13,2); entre a verdade que rejeita a mentira do império (14,5), e a
mentira do império que rejeita a verdade!
Não há um ataque direto dos 144.000 contra o império. A sua luta
é de outro tipo. O povo das comunidades segue o Cordeiro (14,4). Re-
siste e não se contamina com o culto dos falsos deuses: são virgens
(14,4). Alimentam a sua fé e perseverança com a certeza de que Deus,
e não o império, é o dono do mundo (13,10). Organizam-se de maneira
fraterna e igualitária, como antigamente as doze tribos (7,3-8). Obser-
vam a lei dos mandamentos de Deus e mantêm o testemunho de Jesus
(12,17).
É a luta resistente do povo perseguido que, a longo prazo, vai der-
rotar o império (17,14). O império vai cair de podre, derrubado pelas
pragas da história. Enquanto isso, o povo das comunidades, pela sua

Apocalipse: esperança de um povo que luta – Carlos Mesters


53

luta, prepara o começo do futuro novo. Desde já, as comunidades são


as primícias para Deus e para o Cordeiro (14,4). São uma amostra do
futuro que Deus quer para todos. Por isso, desde já, elas cantam vitória
(14,2-3). Canto forte que enche o mundo com o seu rumor, semelhante
ao rumor de muitas águas (14,2)!
Aqui termina a segunda etapa do roteiro. Termina a descrição da
situação em que se encontrava a humanidade no momento em que João
estava escrevendo o Apocalipse. A impressão que fica é a mesma que
ficou no fim da primeira etapa: é uma luta desigual, como era desigual
a luta entre a mulher e o dragão. É o mundo inteiro que se organiza
para derrotar o povo das comunidades. Mas Deus já pronunciou a sen-
tença de condenação contra o dragão e contra a besta-fera. A sentença
vai ser executada agora!

O futuro: Julgamento e condenação da besta-fera e do dragão


(14,6-20,15)
João continua desenrolando o roteiro da caminhada. Descreveu o
passado (12,1-17) e o presente (13,1-14,5). Agora, ele levanta o véu
do futuro. Começa a descrever como vai acabar a luta que começou lá
no paraíso terrestre. É a parte mais difícil do Apocalipse. Vamos dar
apenas uma ajuda que permita descobrir o fio da meada e o miolo da
questão.
Três anjos aparecem e anunciam o que vai acontecer. O primeiro
anuncia a chegada do dia do julgamento (14,6-7). O segundo anuncia
a queda de Babilônia (14,8) (Babilônia é Roma, a capital do império).
O terceiro anjo anuncia a derrota final de todos os adoradores da
besta-fera (14,9-11). A condenação do império já está decretada! A
certeza disso dá força ao povo das comunidades para continuar a
resistir (14,12-13).
Os três anúncios nos dão os três passos desta terceira etapa do
roteiro:
1. A chegada do dia do julgamento vai ser descrita de 14,14 até
14,20.
2. A queda de Babilônia vai ser descrita, longamente, de 15,1 até
19,10.
3. A derrota final vai ser descrita, com muitas imagens, de 19,11
até 20,15.

Apocalipse: esperança de um povo que luta – Carlos Mesters


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1. A chegada do dia do julgamento (14,14-20)


Aparece o Juiz da história, o Filho do Homem, sentado num trono
de nuvens (14,14). É Jesus, o Messias, do jeito que foi anunciado pelo
profeta Daniel (Dn 7,13). Ele tem uma foice afiada na mão (14,14).
Um anjo grita: “Use a foice, faça a colheita, pois chegou a hora de
colher!” (14,15). Começou a colheita (14,16)! logo em seguida, numa
outra visão, um outro anjo grita: “Use a foice, corte os cachos de uvas
da videira da terra, pois as uvas estão maduras!” (14, 18). Começaram
a colher e a pisar as uvas (14,19-20)!
Fazer a colheita e pisar as uvas maduras são imagens do julgamento
final. Começou o julgamento! Começou a condenação daqueles que
estavam perseguindo o povo de Deus. O julgamento e a condenação
consistem na lenta destruição de Babilônia.

2. A queda de Babilônia (15,1-19,10)


Aparecem sete anjos com sete pragas (15,1). São as sete pragas que
vão destruir, aos poucos, a “grande cidade”, Babilônia (16,19). Ao
mesmo tempo, aparece o povo que agüentou a perseguição do império
e venceu a besta-fera (15,2). Está de pé sobre um mar de vidro (15,2).
Como o povo do Êxodo, depois da travessia do mar Vermelho (Ex
15,1-21), eles cantam o cântico de Moisés e do Cordeiro (15,3; 14,3).
E no canto celebram o julgamento de Deus que acaba de começar
(15,3-4).
Em seguida, uma depois da outra, as pragas vão caindo: úlceras
malignas (16,2), o mar transformado em sangue (16,3), as fontes
transformadas em sangue (16,4), calor que abrasa e queima (16,9),
trevas (16, 10), os rios que secam (16,12) e, finalmente, um terremoto
que destrói a cidade de Roma (16,19).
São as pragas da história, interpretadas por João como julgamento
de Deus e celebradas no céu em solene liturgia (16,5-7). As pragas não
conseguem a conversão dos que adoram a besta-fera (16,9.11). Pelo
contrário! Animados pelo espírito do dragão, da besta--fera e do falso
profeta (16,13), os reis do mundo inteiro se organizam para fazer
guerra contra Deus (16, 14.16). Em vez de conversão, as pragas
provocaram a blasfêmia contra Deus (16,9.11.21).

Apocalipse: esperança de um povo que luta – Carlos Mesters


55

A Grande Prostituta. De 17,1 até 19,10, segue uma nova visão de


Babilônia e da sua queda. João recebe um convite: “Vem! Vou te
mostrar o julgamento da grande prostituta” (17,1). Ele vê uma mulher
ricamente enfeitada (17,3-4). Seu nome é: “Babilônia, a Grande, a mãe
das prostitutas e das abominações da terra!” (17,5). Ela estava
embriagada, não de vinho, mas do sangue dos mártires (17,6). Ela leva
o mundo inteiro a se embriagar com o vinho da sua prostituição (17,1).
Vendo a mulher, João ficou admirado (17,6). Um anjo explica “o
mistério da mulher” (17,2) e deixa bem claro que se trata da cidadede
Roma, capital do império (17,9). No fim, ele conclui: “Enfim, a mu-

lher que você viu é a grande cidade que está reinando sobre os reis da
terra!” (17,18).
Em seguida, de 18,1 até 19,10, seguem quatro cânticos. O primeiro
anuncia a queda de Babilônia (18,2-3). O segundo pede vingança con-
tra o mal que a Babilônia fez (18,4-8). O terceiro é um lamento dra-
matizado sobre a queda de Babilônia (18,9-24). O quarto é uma cele-
bração participada da vitória do julgamento de Deus sobre a grande
prostituta (19,1-8). Nos três primeiros cânticos, João mostra como a
causa de toda a maldade de Babilônia foram o seu desejo de luxo e a
sua ganância organizada (18,3.7.9-20.23). Por isso, ela se tornou “a

Apocalipse: esperança de um povo que luta – Carlos Mesters


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moradia dos demônios” (18,2).


Depois do julgamento da grande prostituta, “chegou o tempo das
núpcias do Cordeiro” (19,7). Sua esposa, o povo de Deus, já está
pronta (19,7)! Já se distribuem os convites para a festa (19,9). Mas
antes da festa final, vem a derrota total dos adoradores da besta-fera.

3. A derrota final do dragão, da besta-fera e dos seus adoradores


(19,11-20,15)
Aqui começa a parte mais difícil do Apocalipse. São visões obscu-
ras, cujos detalhes não têm interpretação certa. Não podem ser toma-
dos ao pé da letra, palavra por palavra. São símbolos. Mas o sentido
geral do conjunto fica claro. João quer ensinar que, no fim, o mal será
derrotado totalmente. A vitória será do bem e da justiça.
1. A primeira derrota
(19,11-21). Aparece um ca-
valo branco (19,11). Seu
montador tem vários no-
mes: “Fiel e Verdadeiro”
(19,11), “Verbo de Deus”
(19,13), “Rei dos reis e
Senhor dos senhores” (19,
16). É Jesus Cristo!
Acompanhado dos
exércitos celestes (19,14),
ele vem “julgar e combater
com justiça” (19,11).
Enquanto os reis da terra,
liderados pela besta-fera, se
preparam para o combate
final (19, 19; 16,13-16), um
anjo convoca os urubus: “Venham comer a carne dos reis, dos
capitães, dos poderosos, dos cavalos e cavaleiros, a carne de todos os

Apocalipse: esperança de um povo que luta – Carlos Mesters


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homens, livres e escravos,


pequenos e grandes” (19,18).
O exército dos reis é
derrotado. A besta-fera e o
falso profeta são capturados e
jogados vivos no lago de fogo
(19,20). Os outros adoradores
da besta-fera são todos
mortos pela espada que sai da
boca do grande cavaleiro
(19,21).

2. O reino de mil anos


(20,1-6). Um anjo desce do
céu, agarra o dragão, “a
antiga serpente, o diabo, o
satanás” (20,1). O dragão é algemado e jogado no grande abismo, onde
ele vai ficar durante mil anos
(20,2-3). Em seguida,
acontece a “primeira
ressurreição” (20,5-6). A
primeira ressurreição é
daqueles que deram
testemunho de Jesus e
resistiram contra a besta--
fera (20,4). O seu
testemunho deixou semente
e ressuscitou na Igreja que
agora cresce e se espalha
pelo mundo inteiro. Isto vai
durar mil anos (20,4). Os ou-
tros mortos não participam
desta primeira ressurreição (20,5), porque a vida deles não valeu para
nada e não deixou semente no chão da vida do povo. Os mil anos
indicam o tempo que vai desde o fim da perseguição do império até o
fim do mundo. É o tempo completo marcado por Deus. Não pode ser
tomado ao pé da letra. Pois, a respeito do fim do mundo, ninguém sabe

Apocalipse: esperança de um povo que luta – Carlos Mesters


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nada. Só o Pai (Mc 13,32; At 1,7)!


3. A segunda derrota e o julgamento final (20, 7-15). Depois dos mil
anos, o dragão é solto (20,7). Mas é só por pouco tempo (20,3).
Andando pelo mundo, ele seduz as nações (20,8). Elas se organizam
para fazer guerra contra o povo de Deus (20,8). Chegam a cercar “o
acampamento dos santos e a cidade amada” (20,9). Novamente, é a
luta desigual! É a última tentativa da serpente contra a descendência
da mulher! E, novamente, Deus intervém a favor da mulher, a favor
do seu povo! Um fogo desce do céu e devora a todos (20,9). E então,
finalmente, o dragão é preso e jogado no lago de fogo, onde já se acha-
vam a besta--fera e o falso profeta (20,10). E lá ficarão, pelos séculos
dos séculos (20,10)! Em seguida, João vê o trono branco de Deus
(20,11). É o trono do Juiz! A morte é obrigada a devolver todos os que
por ela foram engolidos no decorrer da história (20,13). Todos são jul-
gados, cada um conforme as suas obras (20,12.13). Terminado o jul-
gamento, a própria morte, já vencida, é jogada no lago de fogo (20,14).
E junto com ela vão todos aqueles que não estavam inscritos no livro
da vida (20,15). É a “segunda morte!” (20,14). A morte da própria
morte! No fim, só vai sobrar a vida, e vida em abundância (Jo 10,10)!
Tudo está pronto para a festa final!

A festa final da caminhada (21,1-22,5)

1. “Vi então um novo céu e uma nova terra!” (21,1)


O futuro que surge no fim da caminhada, surge como uma nova
criação! Surge como dom de Deus e como fruto da luta do povo per-
seguido que procurou ser fiel. O roteiro do novo êxodo (4,11) encontra
aqui a liberdade. O roteiro do julgamento (12,20) encontra aqui a jus-
tiça. Os traços do rosto de Deus, que todos procuravam durante a ca-
minhada, brilham agora em todo o seu esplendor! O véu é tirado total-
mente! Aparece o rosto de Deus, face a face, estampado num mundo
transformado!
Um rosto não se comenta. Um rosto se olha e se contempla! Sobre-
tudo, quando é da pessoa amada! O comentário pode até estragar a
beleza da poesia e do amor. O melhor é olhar e contemplar o futuro
que Deus preparou para aqueles que o amam (1 Cor 2,9). Este futuro

Apocalipse: esperança de um povo que luta – Carlos Mesters


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alimenta a fé, a esperança e o amor. Alimenta em nós a luta e a resis-


tência contra o império que, até hoje, quer engolir as comunidades que
se organizam em fraternidade.

2. Sete pontos para ajudar a meditar o futuro que Deus oferece


O futuro que Deus oferece está em gestação no escondido da história.
A sua semente está no passado do povo. Uma primeira amostra do
futuro já aparece na luta do povo perseguido que resiste ao império e

se organiza de maneira fraterna. Como será o futuro, depois que a luta


terminou? Ninguém sabe! Ninguém sabe o que Deus preparou para
aqueles que o amam (1Cor 2,9). Mas João tenta adivinhar a partir das
coisas que Deus já realizou no passado e a partir daquilo que ele
mesmo vê realizado nas comunidades. João tenta imaginar o futuro a
partir da semente e da amostra! Ele, por assim dizer, tira sete “slides”

Apocalipse: esperança de um povo que luta – Carlos Mesters


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do passado, coloca a lâmpada da fé atrás e projeta tudo na tela do fu-


turo. E assim ele nos oferece a visão da festa final da caminhada (21,1-
22,5).
1. O futuro que Deus oferece é uma nova criação!
Um novo céu e uma nova terra (21,1)! O mar, símbolo do poder do
mal, já não existe (21,1). Na primeira criação, Deus iniciou o seu tra-
balho criando a luz (Gn 1,3). Mas sobrou a noite. Sobrou a escuridão
(Gn 1,5). Aqui, na nova criação do futuro, a luz vence. A noite, a es-
curidão, já não existem mais (21,25; 22,5). Tudo é luz! O próprio Deus
brilha sobre o seu povo (22,5). Jesus, o Cordeiro, é a lâmpada que
ilumina tudo (21,23)! Das coisas antigas, nada sobrou. Tudo se foi
(21,1.4)! E Deus proclama: “Sim, faço novas todas as coisas!” (21,5).
2. O futuro que Deus oferece é um novo paraíso terrestre!
No primeiro paraíso, havia um rio que irrigava tudo e dava fertili-
dade à terra (Gn 2,10-14). No novo paraíso, a cabeceira do rio é o trono
de Deus (22,1). Suas águas irrigam a terra e fazem crescer as árvores
da vida em todo canto (22,2). As árvores da vida dão fruto doze vezes
por ano, e até as suas folhas curam as nações (22,2). Tudo isto é uma
imagem para dizer que a morte foi vencida. Agora só existe vida, vida
em abundância, para todos! Até as feridas que ficaram da dureza da
caminhada e das perseguições são curadas (22,2). A maldição que en-
trou no primeiro paraíso (Gn 3,14-19) desapareceu (22,3). Não haverá
mais morte, nem luto, nem choro, nem dor (21,4)! Deus enxuga as
lágrimas que ainda sobraram (21,4). Ele dá de beber da fonte da água
da vida (21,5).
3. O futuro que Deus oferece é uma nova aliança!
Como antigamente, depois da saída do Egito, também agora Deus
vem morar com o seu povo (21,3). Estende sobre ele a sua tenda (21,3)
e pronuncia as palavras da aliança. Ele diz ao povo: “Eu serei o seu.
Deus, e vocês serão o meu povo!” (21,3). E Ele diz a cada um em
particular: “Eu serei o seu Deus, e você será o meu filho!” (21,7). Deus
faz a aliança com o povo todo e com cada um em particular! É a per-
feita harmonia do povo entre si e do povo com Deus; do indivíduo com
a comunidade e da comunidade com o indivíduo! Ninguém se perde
nem no anonimato da massa do povo, nem no individualismo de uma
fé que só pensa em si.
4. O futuro que Deus oferece é uma nova organização das doze

Apocalipse: esperança de um povo que luta – Carlos Mesters


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tribos!
A organização fraterna e igualitária do povo começou lá no deserto,
depois da saída do Egito. Foi retomada pelo povo das comunidades
em oposição ao império. E aqui, no futuro que Deus oferece, ela apa-
rece plenamente, depois que o império foi derrubado pelas pragas da
história e pelo julgamento de Deus. O número doze aparece em todo
canto. É a marca registrada da nova criação: 12 portas (21,12), 12 an-
jos (21,12), 12 tribos' (21,12), 12 alicerces (21,14), 12 apóstolos
(21,14), 12 mil estádios (21,16), 12 vezes 12 côvados (12,17), 12 tipos
de pedras preciosas (21,19-20), 12 pérolas (21,21) e 12 colheitas ao
ano da árvore da vida (22,2). É a organização perfeita do povo simbo-
lizada na perfeição da Cidade Santa. No meio desse povo fiel já não
há infidelidade, nem preguiça, nem corrupção, nem assassinato, nem
impureza, nem magia, nem culto aos falsos deuses, nem mentira
(21,8). Tudo isso foi derrotado! A fidelidade venceu pela observância
dos mandamentos de Deus (12, 17).
5. O futuro que Deus oferece é uma nova Cidade Santa, Jerusalém!
Ela desce do céu, de junto de Deus (21,2;21,10), enfeitada com pe-
dras preciosas de todos os tipos (21, 19-20). Nela tudo é perfeito: o
comprimento, a largura, a altura (21,15-16), as muralhas, as portas, o
material usado (21,15.17-18), os alicerces (21,14.19). A sua praça
principal é de ouro puro, como vidro transparente (21,21). Cada tribo
contribui com a sua riqueza, sem se perder no conjunto. As suas portas
estão sempre abertas (21,25). As riquezas das nações são trazidas para
dentro (21,25). Não há perigo de roubo, pois nela não existe mais nada
de impuro ou de mentiroso (21,27). Tudo está a serviço da vida. A
Cidade Santa é a luz das nações (21,24).
6. O futuro que Deus oferece é um povo renovado, bonito como
uma noiva!
A cidade do império era uma prostituta! A cidade de Deus é uma
noiva! Bonita, toda enfeitada para o seu marido (21,2). O seu esposo
é o Cordeiro (21, 9). Ela é a Filha de Sião, imagem do povo de Deus.
É a mulher que lutou contra a morte e contra o dragão! Aqui, no futuro
de Deus, a luta cessou. A serpente já não incomoda mais. Está no lago
de fogo para sempre! A noiva, o povo, se prepara para a união defini-
tiva com Deus, para o casamento com o Cordeiro (19,7.9;21,9). É a
festa final da caminhada!

Apocalipse: esperança de um povo que luta – Carlos Mesters


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7. O futuro que Deus oferece é Ele mesmo, Deus presente no meio


de nós!
O céu desceu sobre terra (21,2), transformada para sempre na mo-
rada de Deus (21,3). Deus é a fonte da vida (21,6;22,1). É o princípio
e o Fim de tudo (21,5). Javé, Deus conosco, Deus libertador, será o
nosso Deus para sempre (21,3). No futuro que Deus oferece, não ha-
verá mais necessidade de sol, nem de lua, nem de lâmpada alguma
(21,23;22,5). Deus será o sol! A sua glória ilumina o seu povo (21,23)
e brilhará sobre ele (22,5). Deus é Luz! Deus é Pai (21, 7)! E todos,
para sempre, contemplarão a sua face (22,4)!
Sim, diante deste futuro que o amor de Deus prepara para o seu
povo e com o seu povo que luta e resiste, a gente diz: "Feliz aquele
que pratica as palavras da profecia deste livro!" (22,7). Ele participará
da festa final da caminhada e estará sentado no banquete das núpcias
do Cordeiro (19,9).

Revelação do futuro
Adelino A. Cordeiro (lavrador)
Vamos ver o futuro no Apocalipse de São João. Diz: que os justos
irão fazer parte de uma Nova Criação, Onde não haverá mais pranto,
morte, nem maldição. Será um paraíso terrestre, com uma perfeita
organização.
Haverá uma Nova Aliança, com Jerusalém Bonita igual a uma
noiva, que recebe os parabéns. É o Deus que é, que era e que hoje
ainda vem! O Dragão e a Besta-fera, nenhum poder mais têm.
Não haverá mais tristeza, dor, nem sofrimento. Todas as coisas
passadas ficarão no esquecimento. Não terá mais o invejoso. Acabará
o ciumento. Pros malvados, o futuro será de muito tormento.
A Cidade é muito linda, segundo o escritor; Todos serão irmãos, e
Deus o Pai protetor. Teremos vida abundante sobre a Paz do Senhor.
Vale a pena lutar muito pra sermos merecedor.

Recomendações finais (22,6-21)


João terminou o seu livro. Ele teve muita coragem! Teve a coragem
de interpretar os acontecimentos daquele tempo à luz da sua fé. E, para
isto, ele precisava de muita coragem! Pois, quem eram os cristãos? Era
um grupinho sem expressão, perseguido, perdido num império

Apocalipse: esperança de um povo que luta – Carlos Mesters


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imenso! E de onde João tirou a coragem para desafiar assim os


poderosos daquele tempo? Tirou, sobretudo, da certeza da sua fé de
que Deus estava com o povo perseguido. Da certeza de que Deus é
Javé, Deus conosco, Deus libertador!
No fim de tudo, ele dá algumas recomendações (22,6-21). Ele sabe
que o seu livro vai encontrar resistências. Nem todos vão concordar
com a sua opinião sobre a política do império romano. Ele sabe que o
seu livro vai encontrar interpretações variadas e até opostas. Para
prevenir tudo isto e para orientar o leitor, ele dá algumas
recomendações e conselhos finais.
Eu também termino este pequeno livro. Feito sem muita pretensão.
É fruto de muita leitura e estudo, de muitas conversas e andanças, de
muita oração. Procurei ser fiel a Deus, à fé da Igreja, ao sentido do
texto e à realidade que hoje vivemos. Não sei se o consegui. Mas se o
povo sofrido das nossas comunidades encontrar aqui dentro algum
alento e algum motivo de fé e de esperança para continuar na sua cami-
nhada e na sua luta contra o império, então, creio, a interpretação que
fiz corresponde ao que Deus espera e pede de mim.
Desenhos
Adélia O. de Carvalho
RECIFE
Revisão
Carlos Rizzi

5ª edição
EP EDIÇÕES PAULINAS
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Com aprovação eclesiástica


EDIÇÕES PAULINAS - SÃO PAULO
ISBN 85-05-00014-5

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