Arlindo Extras 2 PDF
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Preparação
ANTONIO CASTRO
Revisão
MARISE LEAL e FERNANDA FRANÇA
ISBN
978-85-5534-292-9
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seguinte.com.br
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anchor.fm/estacaoseguinte
4 bastidores
5 De onde veio a ideia?
7 Primeiros desenhos
13 Um respiro
16 A voz de Arlindo
22 Cenário e cinema
28 Água na boca
32 Receita do docinho de gelatina
34 Um paquerinha sob medida
41 Parabéns pra vo-cê!
48 Páginas cortadas
51 comunidade
52 Sobre construir espelhos
61 Arlindo e a psicologia
63 #Arlinder
70 Os pitacos mais preciosos do mundo
73 Ouça a playlist
74 Um Arlindo em cada um de nós
76 Arlindo não é um romance
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Estamos muito acostumados com histórias de personagens
lgbtqiap+ unidimensionais, caricatas, que somente giram em tor-
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UM RESPIRO
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Para que você possa se entreter e se emocionar tanto quan-
to nas páginas cheias de acontecimentos, nas páginas de respi-
ro os desenhos têm mais detalhes — que podem conter ou não
pequenas dicas sobre como a história vai se desenvolver, easter
eggs com elementos nostálgicos ou composições mais comple-
xas para que o seu olhar se demore um pouquinho mais nelas.
Nessa página, por exemplo, a gente passeia um pouco pe-
la minha adolescência, quando voltava a pé pra casa da escola,
cozinhando sob o sol. A nostalgia também está bem presente
nas calçadas — que são muito comuns em Currais Novos, a ci-
dade onde eu cresci —, assim como o murinho do portão da ca-
sa de Arlindo.
No fim das contas, mesmo não tendo quase nenhum diálo-
go, essa página informa um pouco quem está lendo sobre a ro-
tina de Arlindo.
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Eu usei como referência uma sequência de Quando tudo
começou, quadrinho da Bruna Vieira ilustrado pela Lu Cafaggi,
que é uma das minhas maiores inspirações. No livro, a persona-
gem da Bruna está chegando numa escola nova, onde se sente
inadequada e cheia de inseguranças.
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Um dos maiores trunfos de fazer quadrinhos em compara-
ção aos tantos outros jeitos de contar uma história é que não
tenho que fazer tudo ser como é no mundo real . Tenho liberda-
de para brincar com o design do personagem e ver como as for-
mas e o tamanho que a gente dá aos elementos podem comu-
nicar coisas diferentes. Isso também faz com que as páginas se
tornem mais dinâmicas e interessantes, mesmo quando não es-
tá acontecendo nada de mais.
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CENÁRIO E CINEMA
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Eu sempre tive uma dificuldade imensa para criar cenários,
talvez por questões técnicas de desenho (perspectiva, o tamanho
das coisas, a dificuldade de trazer objetos que existem no cotidia-
no para o traço que estou utilizando etc.) ou por preguiça mesmo.
Só agora, depois de tantos quadrinhos, me sinto um pouco mais
segura para lidar com o desafio de dar um lugar para as histórias
que conto. Não sei se vai parecer óbvio ou bobo, mas acho im-
portante dividir com você porque é parte do meu processo.
Meu primeiro passo é pensar numa espécie de hierarquia de
complexidade da página. Pensar no que precisa chamar mais
atenção nesse conjunto de cenas — se é o texto, se é o que o
personagem está sentindo, se é o momento ou o lugar onde tu-
do está acontecendo. A primeira vez que você é convidado a se
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demorar um pouco mais
na casa de Arlindo também é
uma oportunidade para conhecer
melhor dona Nalva e a vida da fa-
mília. Levar as personagens para
o cenário que cada uma domina é
um bom jeito de passar um pouco
mais da personalidade delas.
A cozinha de dona Nalva fala sobre quem ela é nos
mínimos detalhes. Os ladrilhos da parede; a dispo-
sição arrumadinha dos eletrodomésticos; o telefone
com um fio imenso, para facilitar o contato com ou-
tras pessoas; o botijão de gás embalado numa cober-
tinha de ponto-cruz… Tudo em seu devido lugar, en-
quanto ela mesma segue toda bagunçada e atrasada. Pra
te aproximar dessa imprecisão da mãe de Arlindo, eu tenho
que saber onde cada coisa fica e, como se fosse um fil-
me, preciso disso para decidir onde colocar a câmera , e
como guiar o seu olhar ao longo da página. Então faço
uma planta baixa simples, indicando onde cada coisa
está, e não me perco à medida que a cena vai seguindo.
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O mesmo acontece com o quarto de Arlindo. A planta bai-
xa é também superimportante para decidir o que a cena vai en-
quadrar e o que não vai. Já os pôsteres na parede, o sonzinho em
cima da mesa e os brinquedos da irmã dele na outra página aju-
dam a situar a história temporalmente.
QUARTO DE ARLINDO
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COZINHA
br in qu ed os da ir mã
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ÁGUA NA BOCA
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Eu usei como referência a graphic novel estadunidense
Bloom, que é muito fofa e mostra o amor de dois rapazes. A
ligação entre eles vai se tornando mais forte a cada receita
preparada na padaria onde se passa a história. No desenho de
Savanna Ganucheau, eles se aproximam de tal forma enquanto
cozinham que não existem sarjetas (espaços em branco) entre
os quadros. Foi um efeito de que gostei muito e resolvi usar em
Arlindo também.
Divulgação / Bloom: O verão em que o amor cresceu , de Kevin Panetta e Savanna Ganucheau.
São Paulo: Conrad, 2022, pp. 188-9.
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A música da Rita Lee foi a linha de guia que usei pra resol-
ver a ordem de leitura — e para mostrar que a paixão de Arlindo
pela música nacional é de família. Usei a letra de “Ovelha negra”
também como prenúncio da relação do menino com o pai, um
spoiler dentro da própria história.
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RECEITA DO DOCINHO
DE GELATINA
INGREDIENTES
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MODO DE PREPARO
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Eu tentei deixar visualmente evidente a maneira como Arlin-
do idealiza Luis Filipe em páginas como a da entrega da marmita
— que é uma das minhas preferidas até hoje. Arlindo se enxerga
muito menor que o crush, como se não estivesse à altura, e morre
de vergonha do garoto mais velho que é legal com ele. Romanti-
camente falando, não é uma relação de igualdade, e também dei-
xa a desejar em termos de representatividade lgbtqiap+. Eu, co-
mo público, fico chateadíssima quando personagens gays ficam
juntos apenas pelo fato de serem gays, sem nada construído pra
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além disso — como os dois amigos gays em Sex and the City que
não têm nada a ver um com o outro e viram um casal no fim da
história mesmo assim. Luis Filipe é maravilhoso, mas eu, como
autora, precisava que o primeiro amor de Arlindo fizesse sentido.
Um belo dia eu estava varrendo a casa e ouvindo Tulipa Ruiz,
quando começou a tocar:
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Quando Pedro aparece pela primeira vez, você e Arlindo
descobrem que o menino do sonho é irmão gêmeo do garoto
mais babaca da escola. Eu não vou mentir: amo colocar gêmeos
nas histórias que invento. Se tem uma coisa que as telenove-
las (brasileiras e mexicanas) me ensinaram, é que esse é o jei-
to mais fácil de criar uma impressão de alguém: estabelecendo
um oposto, uma identidade alternativa à do irmão. Se Téo é ba-
baca, Pedro é sensível. Se Téo é forrozeiro, Pedro é emo. Se Téo
rejeita o grupo dos esquisitos, é pra lá que Pedro vai. Se Téo é
Raquel, Pedro é Ruth. E se Téo é o rival de Arlindo, nada mais
justo que Pedro assumir o papel de interesse romântico.
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O passado misterioso também deixa Pedro um pouco mais
interessante pra alguém como Arlindo, que tem como uma de
suas características essenciais a de ser uma pessoa curiosa,
que pergunta muito. Por que ele não morava com os pais? O
que fez ele voltar? Ele se interessou por Lis ou foi só impres-
são? Quem é esse amigo de quem ele tanto fala? Ele tá dan-
do em cima de Arlindo ou só é gente boa? Por que ele não foi
no dia do filme? Como assim cover de Miguel de Rebelde? “até
que a namorada”… o quê?! E por aí vai. Ele é mais do que o que
a gente sabe dele, e sua história vai além de Arlindo, da escola,
do esporte ou do irmão.
Em resposta a @ilustralu
lu
Em resposta a @ilustra
Em resposta
????
ATÉ O QUE????????
a @ilustralu
ÁGIL
LUIZA EU MUITO FR
PELO AMOR DE DEUS até que o qu
e???
FA Z ISSO
NO MOMENTO NÃO ATE QUE O
QUE????
AAAAAAAA
A
ustralu
Em resposta a @il
ÊÊÊÊÊ?!
ÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊ
até... O QUÊÊÊÊ
MOOD BOARD
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Quando Pedro tira a camisa, sendo — como diz Tulipa Ruiz
— muito “bem resolvido com sua nudez”, depois de várias horas
de conversa e de Pedro ter se mostrado um bom amigo e con-
fiável, você pode perceber que não existe uma escala de com-
paração ou idealização na forma como Arlindo o enxerga. Ele
só vê Pedro, e pronto. Como alguém diferente dele, sim, mas
sem se diminuir.
PARABÉNS PRA VO-CÊ!
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A ideia de construir a cena do aniversário de Arlindo surgiu
num dia em que eu não tinha ideia do que fazer pra esse meni-
no parar de sofrer com o machismo violento e sem noção do pai
do outro lado da porta enquanto ele se trancava no quarto. Não
dava pra resolver com uma fuga física, afinal ele é um garoto de
catorze anos magrinho, sunguelo e com zero de estômago pra
enfrentamentos. Logo, uma fuga mental seria uma opção muito
mais viável, assim, Arlindo acessa uma memória de muito ca-
rinho, conforto e compreensão pra fugir do cenário ansioso e
triste em que se encontra. O garoto então viaja para a lembran-
ça de seu aniversário de quatro aninhos.
42
soa l
Fot os: Ace rvo pes
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Uma coisa muito minha que levei pra esse Arlindo criança foi
a forma como eu me relacionava com as pessoas quando tinha a
idade dele. Eu fui uma criança curiosa, perguntadora e tímida, com
uma autoestima um pouco ruim. Quando Arlindo avisa pra todo
mundo que chega na festa que é aniversário dele — muitas vezes o
momento que ele se permitia chamar alguma atenção sem ser po-
dado — é porque para ele não é óbvio que aquelas pessoas se im-
portam com ele a ponto de saberem disso, mesmo que estejam ali,
mesmo que tenham trazido um presente. Outra coisa que não sei se
fica clara é que não tem muitas crianças na festinha. Além da Mari e
do Luis Filipe, só um outro garotinho aparece, porque mesmo sen-
do um menino tão simpático, Arlindo não tem muitos amiguinhos.
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A sequência de páginas onde Lindo e Mari ficam amigos
é uma das minhas preferidas em toda a história e tem alguns
pontos em que eu queria que vocês reparassem:
Acervo pessoal
A música de Chiquititas que toca quando ele e Marissa se co-
nhecem se chama “Tudo, tudo”, e era a música de encerramento
da novelinha. A letra faz alusão à cena anterior ao flashback, ao
Arlindo adolescente chorando no quarto sozinho:
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O laço de amizade entre Arlindo e Mari se cria com uma expe-
riência muito simples: soprar juntos uma língua de sogra pela pri-
meira vez e engatar numa sabatina de perguntas pessoais e aleató-
rias com que só um par de crianças curiosas seria capaz de lidar. Eu
também gosto muito que seja a mãe da Mari quem trabalha com o
pai de Arlindo, e que ela não saiba muito bem o que o pai faz da vida.
Para criar os diálogos entre Arlindo e Mari, além de ter pas-
sado um tempão reparando na forma como as crianças se com-
portam e se comunicam no meu cotidiano e vendo filmes como
Matilda (1996) e O menino maluquinho (1995), me inspirei bas-
tante na última cena da hq Turma da Mônica — Laços, dos ir-
mãos Vitor e Lu Cafaggi. Quando Cebolinha, Mônica, Magali e
Cascão se conhecem, soltam uma senhora chuva de perguntas
quando o Floquinho surge. Busquei referências que tratassem
as crianças como gente, com diálogos inteligentes, que revelam
a complexidade de sua vida — apesar de ainda não terem vivi-
do muito. Crianças que se expressam de forma simples, mas não
boba, porque crianças não são bobas.
Quando o pai de Arlindo atenta para o filho de mãos da-
das com uma menina, a gente sai da ótica infantil que vê na-
quele gesto o carinho de uma amizade nascendo pra ser joga-
do no mais puro suco da masculinidade tóxica, com seu Arlindo
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usando o próprio filho pra se afirmar como homem hétero —
jogando quem lê de volta à realidade do Lindo adolescente, on-
de essa mágoa do pai é jogada nele o tempo todo. O contraste
entre a relação de Arlindo com o pai na infância e na adoles-
cência mostra um pouco do processo de como ela foi se que-
brando ao longo do tempo.
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PÁGINAS CORTADAS
SOBRE CONSTRUIR
ESPELHOS
Eu considero tia Amanda uma das personagens-chave na
história de Arlindo. Ainda que ela não apareça tanto assim,
Amanda cumpre um papel essencial: o de estar ali, existindo,
do jeitinho que ela é.
Bem antes de começar a produzir Arlindo, eu me lembro de
assistir a um painel de Steven Universe na Comic-Con de San
Diego, em 2016. A Rebecca Sugar (criadora da série e primeira
pessoa não binária a comandar uma animação no Cartoon Net-
work) se assumiu publicamente como bissexual ao responder
uma pergunta sobre o empoderamento feminino e as temáticas
lgbtqiap+ numa série com público infantil enorme.
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de coisa, um pouco de quem você é se
perde. É muito importante pra mim que
se fale para as crianças sobre identidade,
sobre consentimento e sobre tantas ou-
tras coisas. Eu quero sentir que eu exis-
to, quero me enxergar e quero que todo
mundo possa se sentir dessa forma.
e barulhentos que me
suas gargalhadas ♥
Eu con heci pela primeira vez o termo “sapatão”
quan do estava sen do usado co mo insulto contra
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E isso sem contar a importância do convívio com pessoas
lgbtqiap+ mais velhas — aquelas que realmente derrubam dis-
cursos do tipo “Ah, mas é uma fase” e “Você não vai ser ninguém
na vida assim”. Arlindo tem em tia Amanda um espelho de sen-
timentos bons, e é por isso que ele não se questiona, não se tor-
tura e não se entristece quando não se percebe como hétero.
Tia Amanda fez com que isso fosse bom e possível, porque co-
mo pode uma coisa ser ruim se é algo que tia Amanda é?
Eu sou completamente apaixonada pela página do sapatão
gigante porque, além da técnica, ela imprime toda a lógica do
espelho e o olhar da criança. As maneiras de fazer uma página
de quadrinho “como deve ser”, com quadros, requadros e leitu-
ra em Z, são todas subvertidas pelo olhar analítico de Lindo e
Mari, levantando hipóteses e buscando sentido em um xinga-
mento que não parece xingamento, apesar de ser. É uma das mi-
nhas páginas favoritas na história inteira.
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O paralelo entre esses momentos em que Arlindo vai dor-
mir, no presente e no passado, me transmite a mesma sensação
de angústia e solidão de todas as vezes em que a resposta a uma
pergunta tão honesta e inocente me foi negada.
Por fim, é bom lembrar que as crianças estão ouvindo e
guardando. Sempre. É assim que se constroem todas as coisas,
com as crianças reparando e guardando — e isso volta para o
mundo depois. Vamos tentar cuidar das crianças de agora em
nome das que a gente foi. Cuidar para que elas possam ouvir e
guardar coisas boas, e mudar o mundo derrubando um muri-
nho desses de cada vez. ♥
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ARLINDO E A PSICOLOGIA
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O livro de Luiza é esse afeto e esse alicerce. Esse encontro
fundamental para tantos de nós que, no correr e escorrer de
nossas vidas, precisamos ver e ouvir histórias que abraçam nos-
sa subjetividade e nos dão um pouco mais de estabilidade psi-
cológica para seguir, existir e, principalmente, resistir. Juntos.
@ilustralu
vinte minutos pra página de #arlindo sair!
vamos deixar combinado de dar play no filme às 20h20, ok?
#cinearlinder
Inaura m SO
inha filha FR ACAS
ce coisa
melhor #
você me
re - E M IN H A FO I U M 2 9 a nos,
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#leiaarlin cinearlin
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exatame er #leiaa
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Eu vivo pela metal
inguagem de Lisbe s o n line v
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explicando de narra la inde ione ir o
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ior aula de escrita ela e leia a
#cinearlinder #leiaa é essa po L i s b r lin de r #
rlindo a
#c i n e
A festa à fantasia foi uma ideia completamente improvisa-
da. Quando a pandemia eclodiu no Brasil e a quarentena veio,
além de aumentar a frequência de postagens para duas páginas
semanais, promover a festa serviu como um respiro da vida que
a gente não podia ter naquele momento. Aureliano deu a ideia
de fazer um convite para que as pessoas desenhassem suas pró-
prias fantasias e eu usasse algumas delas ao longo da cena da
festa em Arlindo. Foi um dos meus momentos preferidos em to-
da a webcomic, tanto que ela quase não acabou — foram mais
de vinte páginas de festa. Confira alguns dos convidados:
MODELO
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OS PITACOS MAIS
PRECIOSOS DO MUNDO
por Aureliano
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briga. Mas Luiza sempre foi ligeira o suficiente para puxar res-
postas até de onde elas não existem. Mesmo que ela mesma às
vezes precise se esforçar para acreditar no que falou.
Depois desse primeiro dia, selamos um pacto silencioso de
estar sempre ali. De crescer juntos. De se ajudar. De dar vida da
melhor forma possível àquelas pessoas imaginárias tão reais.
Quer dizer, Luiza deu vida, eu só dei pitaco mesmo. Mas me
senti quase que criando tudo junto com ela, porque essa é a
mágica de estar ao lado de uma pessoa incrível como a cria-
dora de Arlindo. Ela trabalha e cria com tanta leveza e perspi-
cácia, que nos faz achar que somos nós mesmos pegando no
lápis e criando aquela novela que, se dependesse do público
leitor, poderia se arrastar para sempre. E sou muito grato de
poder ter feito parte desse processo. De ver as páginas em pri-
meira mão, poder conversar sobre o futuro dos personagens,
acompanhar todas as guinadas que a história teve e vibrar em
todos os momentos em que uma página era postada, mesmo
que eu tivesse visto meia hora antes. Fico triste quando co-
nheço artistas que não têm uma Luiza ou um Aureliano para
poder brigar e compartilhar o processo de criação. Acho que
devia ser obrigatório.
Enquanto os dias de Arlindo se passavam, vi tam-
bém uma nova Luiza aparecer (ou seria essa a Lui-
za de sempre?), uma artista que crescia e encontrava
uma técnica muito própria, uma força avassalado-
ra do marketing digital, uma pessoa que apresentou
sua vulnerabilidade para as mídias sociais e recebeu
em troca uma comunidade lindíssima. Que soube
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trabalhar sabiamente com a afetividade e se abrir para pedir
ajuda, não só de quem era próximo dela, como dos habitantes
desse mundo virtual. Tal qual a carta da força, no tarô, Luiza
doma o leão internet com um carinho e um sorriso. Poder ser
espectador (e participante) desse processo é uma experiên-
cia mágica.
Obrigado toda vida, Luiza! Te amo.
dos em @oiaure.
OUÇA A PLAYLIST
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Às vezes eu me sentia um pouco como se estivesse costu-
rando com dona Anja, observando Arlindo e Luiza trilharem o
caminho deles, recebendo os dois em casa quando uma página
era difícil demais e às vezes dando conselhos carinhosos que
faziam chorar. Minha função nesse processo de publicação, no
fim das contas, sempre foi cuidar de Arlindo.
Cuidar de Arlindo para que ele mostrasse para as pessoas
quem realmente é. Cuidar de Arlindo para que uma escolha de
projeto gráfico não o impedisse de chegar na casa de quem mais
precisa dele. Cuidar para que as últimas páginas de Arlindo não
fossem o fim de sua história.
Você estar lendo esse texto só prova que este não é o fim.
Porque você é a continuação de Arlindo. Nós somos. Foi Luiza
quem começou a contar essa história, mas aonde formos daqui
para a frente, em cada conversa que tivermos, em cada abraço
apertado, a história de Arlindo vai continuar existindo. Porque
nós vamos continuar existindo.
A gente não tá só.
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Era algo bem comum às pessoas lgbtqiap+ que dividiram
suas histórias comigo: o medo da pergunta “Tem alguma coi-
sa que você queira me contar?” e suas consequências, porque
ao longo da vida todos aprendemos a conviver com esse segre-
do guardado e a torcer pra que ele não venha à tona. Acredi-
to que esse medo ainda seja a realidade de muita gente e é uma
das partes onde eu acho que Arlindo é um afago na solidão de
quem já esteve nesse lugar — tanto o do menino que não esta-
va preparado pra explicar, quanto o da mãe que não sabia co-
mo acolher.
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Depois da festa, Nalva percebe que tem algo de esquisito
com Arlindo quando ele não quer falar com o menino do brin-
co, e tenta se aproximar do filho mais uma vez. Agora com me-
nos brabeza e mais carinho. Ela aproveita a saída do pai para
abrir o caminho, faz a comida preferida de Arlindo e o convida
para um pequeno ritual que é só deles — confortável e seguro.
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Lisbela e o prisioneiro é um clássico do cinema nacional,
daqueles filmes que são tão bons, mas tão bons, que a gente até
ignora os atores sulistas fazendo sotaque “nordestino”. É um
dos meus favoritos, num nível que eu tinha um caderno no en-
sino médio onde anotava frases de filmes e metade do roteiro
de Lisbela estava lá. Assim como todas as escolhas que eu fiz
nesse quadrinho, nada está ali à toa. O trecho da música “Você
não me ensinou a te esquecer” cabe perfeitamente no que Ar-
lindo está sentindo em relação a Pedro e, com a cabeça no co-
lo da mãe, cantando junto com ela, ele descarrega o choro que
estava guardado.
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Nalva oferece mais do que o ombro pra ele chorar. Ela dá
para o menino a segurança que ele precisa para ser honesto, e
se permite ser tão vulnerável quanto ele ao criticar a si mesma
como mãe antes de dizer que ele pode, sim, confiar nela. Este
é um dos pontos fixos na história de Arlindo, daqueles que eu
disse que tinha na cabeça como deveriam ser desde que a his-
tória começou: o momento em que Arlindo se assume para a
mãe deveria ser uma escolha dele, mas a gente (no caso, você)
assistiria tudo pelos olhos de Nalva.
Em Arlindo, o background católico está sempre presente.
Seja na decoração da casa, na rotina dos personagens ou nas
expressões mais comuns, tipo o “Ai, meu Deus” que se repete
por toda a história. Mas é apenas isso: um background. A reli-
gião não tem protagonismo, não toma a frente em nenhum mo-
mento e é usada como um recurso narrativo para te situar no
enredo, nos costumes e neste momento — no pedido que ele
faz para a própria mãe.
Na página da Bíblia da criança onde Arlindo escondeu a foto
com Pedro tem uma oração que mescla o sofrimento e a espe-
rança, e que sempre considerei uma das mais lindas:
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A oração fala muito da culpa que Arlindo carrega nesse cho-
ro e é tudo o que ele pede à mãe naquele momento de vulne-
rabilidade que eles estão compartilhando. Algo como “Me des-
culpe, mas, por favor, me defenda”. A única certeza que Arlindo
tem no mundo é do amor da mãe dele, e nesse momento de se
assumir a gente sente que esse amor tão certo está sendo colo-
cado à prova. É por isso que dói tanto ler essa parte da história.
Do meu lado também doeu demais — doeu pensar sobre, doeu
conversar sobre, doeu escrever, doeu desenhar.
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Uma das muitas referências que atravessei pra chegar nessa
parte da história vem do livro O filho de mil homens, de Valter
Hugo Mãe. Mais especificamente do personagem Antonino — o
homem maricas.
gatilho, mas acredito que vale a pena ser compartilhado aqui por-
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Era porque claramente o filho havia des-
coberto que não podia deixar de ser quem
era, embora, uma e outra vez, houvesse de o
tentar. (p. 111)