Arlindo Extras 2 PDF

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Copyright © 2023 by Ilustralu/ Luiza de Souza

O selo Seguinte pertence à Editora Schwarcz S.A.

Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua


Portuguesa de 1990, que entrou em vigor no Brasil em 2009.

Os trechos de O filho de mil homens, de Valter Hugo Mãe,


foram retirados da edição da Biblioteca Azul (Rio de Janeiro, 2016).

Preparação
ANTONIO CASTRO

Revisão
MARISE LEAL e FERNANDA FRANÇA

ISBN
978-85-5534-292-9

Todos os direitos desta edição reservados à


editora schwarcz s . a .
Rua Bandeira Paulista, 702, cj. 32
04532-002 — São Paulo — sp
Telefone: (11) 3707-3500
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4 bastidores
5 De onde veio a ideia?
7 Primeiros desenhos
13 Um respiro
16 A voz de Arlindo
22 Cenário e cinema
28 Água na boca
32 Receita do docinho de gelatina
34 Um paquerinha sob medida
41 Parabéns pra vo-cê!
48 Páginas cortadas

51 comunidade
52 Sobre construir espelhos
61 Arlindo e a psicologia
63 #Arlinder
70 Os pitacos mais preciosos do mundo
73 Ouça a playlist
74 Um Arlindo em cada um de nós
76 Arlindo não é um romance

90 ALGUNS ANOS DEPOIS


90 Arlindo de Carnaval
DE ONDE VEIO A IDEIA?

Eu fiz algumas tirinhas em 2018, querendo mostrar como o


discurso de ódio presente na campanha eleitoral — e que ain-
da está entre nós — era nocivo para as crianças e jovens que
o ouviam. Essas tirinhas acabaram se tornando um estudo de
personagem para o que viria a ser o Arlindo: um adolescente
com uma história que precisava ser mais do que o reflexo de
todo esse ódio. Como diz o Emicida: “Permita que eu fale, não
as minhas cicatrizes”. Aquele era um primeiro passo que eu da-
va para construir conversas.
Depois do resultado das eleições, senti que precisava fazer
mais, e contar as histórias que existem em Arlindo era o que eu
podia fazer para tentar enfrentar esses tempos esquisitos que
a gente tem vivido.

5
Estamos muito acostumados com histórias de personagens
lgbtqiap+ unidimensionais, caricatas, que somente giram em tor-

no da sexualidade, da dificuldade de ser quem se é ou dos es-


tigmas sociais de cada letrinha. Eu queria contar a história de
Arlindo como uma pessoa inteira e, pra falar dele, precisava fa-
lar da cidade onde ele morava, da família, dos amigos, da roti-
na, dos amores, dos sonhos, das aflições. A gente tem várias ca-
madas, por isso mergulhar nesse personagem foi um privilégio
gigante pra mim desde o primeiro momento.
Esse menino feito de cores vibrantes, palavras esquisitas e
referências aleatórias tem pedaços de muita gente que eu amo
e de mim mesma, e se tornou um espelho pra uma infinidade de
pessoas. Virou abrigo e carinho, também. Arlindo é a prova de
que nossas histórias sempre se costuram — mesmo sem perce-
bermos.
Neste material, reuni reflexões e processos que acontece-
ram durante toda a jornada de produção da webcomic. Apro-
veite a viagem!
PRIMEIROS DESENHOS

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UM RESPIRO

Produzir uma webcomic foi um processo bem diferente


de outras histórias em quadrinhos que já fiz — não só pela
mídia digital, sem a experiência do papel, mas também pe-
la periodicidade. Postar páginas semanais muda completa-
mente o estilo da narrativa, por causa da resposta imediata
de quem lê, que reage à história enquanto ela ainda está sen-
do produzida.
Cada página em Arlindo foi cuidadosamente pensada pa-
ra que houvesse um equilíbrio entre o desenho, a narrativa, a
complexidade das informações e uma isca para fisgar quem es-
tá lendo. E tudo isso tem que ser feito de um jeito muito des-
pretensioso para tornar a leitura fluida e gostosa o suficiente
para que você queira mais, mesmo que tenha que esperar uma
semana para ler a próxima página.
O desafio narrativo da webcomic é muito maior nas páginas
em que nada de extraordinário ou emocionante acontece, que
chamamos de páginas de respiro. Em um quadrinho impres-
so, páginas como essas existem numa quantidade muito maior
porque são elas que equilibram o ritmo de leitura — bem dife-
rente do formato digital, no qual o respiro já acontece durante
a espera até a página nova.

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Para que você possa se entreter e se emocionar tanto quan-
to nas páginas cheias de acontecimentos, nas páginas de respi-
ro os desenhos têm mais detalhes — que podem conter ou não
pequenas dicas sobre como a história vai se desenvolver, easter
eggs com elementos nostálgicos ou composições mais comple-
xas para que o seu olhar se demore um pouquinho mais nelas.
Nessa página, por exemplo, a gente passeia um pouco pe-
la minha adolescência, quando voltava a pé pra casa da escola,
cozinhando sob o sol. A nostalgia também está bem presente
nas calçadas — que são muito comuns em Currais Novos, a ci-
dade onde eu cresci —, assim como o murinho do portão da ca-
sa de Arlindo.
No fim das contas, mesmo não tendo quase nenhum diálo-
go, essa página informa um pouco quem está lendo sobre a ro-
tina de Arlindo.

Map data © 2022 Google


A VOZ DE ARLINDO

Quando decidi fazer Arlindo, precisei encarar várias pergun-


tas. Por que eu estou fazendo isso? O que essa história vai levar
para as pessoas? Onde ela vai se passar? Tentei resolver todas
elas numa infinidade de estudos, historinhas curtas, anotações
em cantos de sketchbooks, conversas demoradas com amigos,
e por aí vai… mas acho que só me senti confortável para real-
mente começar o quadrinho quando respondi uma das pergun-
tas mais difíceis: Qual é a voz de Arlindo?
Foi complicado pra mim, como autora, aprender a pen-
sar como um personagem quando, num primeiro momento, a
gente não tinha tanto assim em comum. Arlindo é um meni-
no, tem uma família de constituição tradicional, mora com os
pais e a irmã, tem mais ou menos quinze anos, está bem no
meio da adolescência — o que já garante uma porção de dra-
mas —, tendo que lidar com seus primeiros amores
e tentando não perder muito de si na esperança de
encontrar um lugar em que se
encaixe. Eu já tenho meus vin-
te e tantos anos e morei até os
dezoito com minha mãe.
Encontrei o lugar onde a minha voz e a de Arlindo se cru-
zavam quando voltei um pouco no tempo e fui olhar cadernos
velhos, fotos, coisas que eram muito minhas durante a ado-
lescência. Havia ali um bocado dessa esperança de não perder
muito de mim mesma, apesar das pressões do resto do mundo
— mesmo que o lugar pra me encaixar nunca tenha chegado as-
sim, muito direito.
Eu achei bilhetes que trocava com amigas no meio das au-
las de física, contos e outras coisas que escrevia pra me distrair,
músicas emo que ouvia pra fugir de mim, fotos (das poucas que
sobraram, depois de alguns dias pesados que me fizeram apa-
gar quase tudo que tivesse a ver com a cara que eu tinha nes-
sa época), poesias honestas que depois se transformaram em
textos em blogs, músicas arranhadas num violão avulso ou de-
clarações de amor vergonhosas em subnicks de msn. Também
encontrei a voz de Arlindo em mim mesma e naqueles que vive-
ram coisas parecidas com o que eu tinha imaginado para o per-
sonagem, até que ele passou a existir por inteiro na minha ca-
beça, pronto para que eu começasse a contar sua história.
O começo de Arlindo mostra um bocado da sensação que
encontrei no trecho de um poema apaixonadíssimo que escrevi
para um paquerinha da época, chamado “Mero detalhe”:

Acho que uma das coisas mais peculiares da adolescência


(como a que eu tive) é que absolutamente qualquer coisa se tor-
na uma imensa catástrofe, porque como você não viveu o su-
ficiente pra perceber que as coisas passam, sempre fica a sen-
sação de que elas vão durar pra sempre. Em função disso e de
uma autoestima muito baixa, eu costumava colocar as pessoas
que gostava em pedestais inalcançáveis, e infelizmente Arlindo
herdou isso de mim. Por isso Luis Filipe entregando a marmita
tem tanto destaque na página, mesmo que no fim das contas a
história contada ali sempre seja sobre Arlindo.

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Eu usei como referência uma sequência de Quando tudo
começou, quadrinho da Bruna Vieira ilustrado pela Lu Cafaggi,
que é uma das minhas maiores inspirações. No livro, a persona-
gem da Bruna está chegando numa escola nova, onde se sente
inadequada e cheia de inseguranças.

Quando tudo começou: Bruna Vieira em quadrinhos , de Bruna Vieira


e Lu Cafaggi. São Paulo: Nemo, 2015, p. 32.

No desenho, ela está parada à porta da sala nova, minúscu-


la em relação aos outros estudantes. A diferença de tamanho
entre ela e os demais alunos foi pensada pra causar esse estra-
nhamento — que é o mesmo que eu buscava trazer para quem
estivesse lendo e encontrasse um Arlindo pequeno e sunguelo,
enroladinho na toalha, em contraste com Luis Filipe e seus bra-
ços fortes trazendo a marmita.

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Um dos maiores trunfos de fazer quadrinhos em compara-
ção aos tantos outros jeitos de contar uma história é que não
tenho que fazer tudo ser como é no mundo real . Tenho liberda-
de para brincar com o design do personagem e ver como as for-
mas e o tamanho que a gente dá aos elementos podem comu-
nicar coisas diferentes. Isso também faz com que as páginas se
tornem mais dinâmicas e interessantes, mesmo quando não es-
tá acontecendo nada de mais.

Outra coisa que acho interessante destacar é como os ba-


lões, as cores e os vários pop-ups de Arlindo, somados, ajudam
a pessoa que está lendo a mergulhar na página e a entender o
contraste entre a visão superidealizada que ele tem do outro
menino e a que tem de si mesmo.
Gosto de pensar que esse quadrinho acaba funcionando co-
mo uma máquina do tempo muito poderosa, capaz de fazer
Sandy & Júnior voltarem a estar no auge ou de mostrar pra Lui-
za de quinze anos que conseguimos sobreviver à adolescência
— e ainda levo muito dela comigo — com melhoras na autoes-
tima aqui e acolá.

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CENÁRIO E CINEMA

A melhor coisa de ser uma quadrinista independente é con-


seguir ter um controle maior da narrativa — definir como, quan-
do e por que você, leitore, vai receber a história. A cada página,
as ideias vão se moldando ao que quero contar. Sempre achei
isso meio mágico.
Um desenho pode passar toda uma sensação sem precisar
explicar muita coisa, já a escrita te leva direto ao ponto, e mis-
turar os dois, ao criar uma história em quadrinhos, é meio co-
mo fazer cinema.
Acho que o que mais me chamou atenção
nessas páginas foi o cuidado que precisei
ter com os cenários para conseguir fazer
a pessoa que está lendo mergulhar
na história.

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Eu sempre tive uma dificuldade imensa para criar cenários,
talvez por questões técnicas de desenho (perspectiva, o tamanho
das coisas, a dificuldade de trazer objetos que existem no cotidia-
no para o traço que estou utilizando etc.) ou por preguiça mesmo.
Só agora, depois de tantos quadrinhos, me sinto um pouco mais
segura para lidar com o desafio de dar um lugar para as histórias
que conto. Não sei se vai parecer óbvio ou bobo, mas acho im-
portante dividir com você porque é parte do meu processo.
Meu primeiro passo é pensar numa espécie de hierarquia de
complexidade da página. Pensar no que precisa chamar mais
atenção nesse conjunto de cenas — se é o texto, se é o que o
personagem está sentindo, se é o momento ou o lugar onde tu-
do está acontecendo. A primeira vez que você é convidado a se

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demorar um pouco mais
na casa de Arlindo também é
uma oportunidade para conhecer
melhor dona Nalva e a vida da fa-
mília. Levar as personagens para
o cenário que cada uma domina é
um bom jeito de passar um pouco
mais da personalidade delas.
A cozinha de dona Nalva fala sobre quem ela é nos
mínimos detalhes. Os ladrilhos da parede; a dispo-
sição arrumadinha dos eletrodomésticos; o telefone
com um fio imenso, para facilitar o contato com ou-
tras pessoas; o botijão de gás embalado numa cober-
tinha de ponto-cruz… Tudo em seu devido lugar, en-
quanto ela mesma segue toda bagunçada e atrasada. Pra
te aproximar dessa imprecisão da mãe de Arlindo, eu tenho
que saber onde cada coisa fica e, como se fosse um fil-
me, preciso disso para decidir onde colocar a câmera , e
como guiar o seu olhar ao longo da página. Então faço
uma planta baixa simples, indicando onde cada coisa
está, e não me perco à medida que a cena vai seguindo.

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O mesmo acontece com o quarto de Arlindo. A planta bai-
xa é também superimportante para decidir o que a cena vai en-
quadrar e o que não vai. Já os pôsteres na parede, o sonzinho em
cima da mesa e os brinquedos da irmã dele na outra página aju-
dam a situar a história temporalmente.

QUARTO DE ARLINDO

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COZINHA

br in qu ed os da ir mã

Como eu disse antes, pratica-


mente tudo em Arlindo é pensado
com muito cuidado e carinho, pa-
ra que quem lê se sinta completa-
mente dentro da história. ♥

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ÁGUA NA BOCA

Quando comecei a escrever Arlindo, queria que ele fosse


real, com características que o transformassem numa pessoa
com a qual você consegue se identificar, reconhecer alguém, ou
que simplesmente fosse possível acreditar que ele existe fora
das páginas.
Se você para pra prestar atenção em quem você é, em como
você reage a determinada situação, do que gosta ou não e por
quê, cada uma dessas ações e escolhas tem uma história que a
justifique ou dê algum sentido. Como, por exemplo, uma pessoa
que morre de medo de cachorros porque, quando tinha cinco
anos, o poodle da vizinha saiu latindo e perseguindo ela pela
rua. As pessoas são feitas de histórias.
A página de Arlindo cozinhando com dona Nalva foi uma
das primeiras ideias que eu tive para o quadrinho, porque gran-
de parte da pessoa que Arlindo é vem da relação que tem com a
mãe. É com ela que ele compartilha um cuidado carinhoso que
resulta uma relação muito próxima, e acho que essa página leva
um bocado disso para quem está lendo.
Desenhar essa sequência dos docinhos foi um desafio dife-
rente das páginas anteriores porque, além de fazer caber as vá-
rias etapas da preparação da receita no quadrinho, eu precisava
guiar a leitura do passo a passo na ordem certa.

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Eu usei como referência a graphic novel estadunidense
Bloom, que é muito fofa e mostra o amor de dois rapazes. A
ligação entre eles vai se tornando mais forte a cada receita
preparada na padaria onde se passa a história. No desenho de
Savanna Ganucheau, eles se aproximam de tal forma enquanto
cozinham que não existem sarjetas (espaços em branco) entre
os quadros. Foi um efeito de que gostei muito e resolvi usar em
Arlindo também.

Divulgação / Bloom: O verão em que o amor cresceu , de Kevin Panetta e Savanna Ganucheau.
São Paulo: Conrad, 2022, pp. 188-9.

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A música da Rita Lee foi a linha de guia que usei pra resol-
ver a ordem de leitura — e para mostrar que a paixão de Arlindo
pela música nacional é de família. Usei a letra de “Ovelha negra”
também como prenúncio da relação do menino com o pai, um
spoiler dentro da própria história.

Clique aqui para ouvir


“Ovelha negra” no Spotify!

Arlindo herdou de dona Nalva seu jeito atrapalhado, o


gosto musical, a atenção aos detalhes e o talento na cozinha,
além de alguns dos medos e inseguranças que ainda estavam
por vir.

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RECEITA DO DOCINHO
DE GELATINA

INGREDIENTES

❤ 1 caixa/ lata de leite condensado;

❤ 1 colher de sopa de margarina;

❤ 1 colherinha de chá (tem que ser de chá mesmo, se botar mais

que isso fica borrachudo) de gelatina em pó de framboesa;

❤ 2 colheres de sopa de creme de leite.

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MODO DE PREPARO

❤ Desmanche a gelatina no creme de leite e reserve.

❤ Leve ao fogo médio o leite condensado e a margarina,

mexa até começar a dar ponto de brigadeiro, então

acrescente a gelatina com creme de leite.

❤ Continue mexendo até desprender da panela.

❤ Dá para comer de colher, mas se quiser deixar mais

descolado, coloque em um prato untado, deixe esfriar

e depois faça bolinhas e passe no açúcar cristal ou no

granulado. Também pode enfeitar com castanha em cima

ou com aqueles minichicletes, fica show. ♥


UM PAQUERINHA
SOB MEDIDA
Vamos falar de Pedro — ou
sobre como se inventa um par
romântico com alguma con-
sistência.
Mas pra falar sobre Pedro,
a gente precisa falar sobre outro
crush: Luis Filipe. Não lembro se já
contei isso, mas o papel de Luis Fi-
lipe não foi criado pra preencher
a vaga de romance no coração
de Arlindo. Luis Filipe entrou
na história pra ser a primei-
ra pessoa a defender Arlindo,
a primeira pessoa que conversa
abertamente com ele sobre não ser
hétero, o primeiro amigo nesse sen-
tido. O meu problema foi ter dese-
nhado um Luis Filipe lindo demais,
tornando impossível que Arlindo
(ou qualquer um de nós) não desen-
volvesse uma paixonite por ele.

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Eu tentei deixar visualmente evidente a maneira como Arlin-
do idealiza Luis Filipe em páginas como a da entrega da marmita
— que é uma das minhas preferidas até hoje. Arlindo se enxerga
muito menor que o crush, como se não estivesse à altura, e morre
de vergonha do garoto mais velho que é legal com ele. Romanti-
camente falando, não é uma relação de igualdade, e também dei-
xa a desejar em termos de representatividade lgbtqiap+. Eu, co-
mo público, fico chateadíssima quando personagens gays ficam
juntos apenas pelo fato de serem gays, sem nada construído pra

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além disso — como os dois amigos gays em Sex and the City que
não têm nada a ver um com o outro e viram um casal no fim da
história mesmo assim. Luis Filipe é maravilhoso, mas eu, como
autora, precisava que o primeiro amor de Arlindo fizesse sentido.
Um belo dia eu estava varrendo a casa e ouvindo Tulipa Ruiz,
quando começou a tocar:

Pedrinho andava descalço,


fazia da vida o que a gente sonhou.
Pintava do nada um barato,
falava umas coisas que a gente não pensou.
Como é que pode ser tão criativo,
autoconfiante, um cara cortês!
Pedrinho parece comigo,
mas bem resolvido com sua nudez.
Tirou da cartola uma flor e me presenteou
num domingo de sol!
É meu amigo querido até dormiu
comigo no mesmo lençol…

E, com essa música, Pedro já veio


praticamente pronto na minha cabeça,
do mesmo jeito que veio na de Arlindo.

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Quando Pedro aparece pela primeira vez, você e Arlindo
descobrem que o menino do sonho é irmão gêmeo do garoto
mais babaca da escola. Eu não vou mentir: amo colocar gêmeos
nas histórias que invento. Se tem uma coisa que as telenove-
las (brasileiras e mexicanas) me ensinaram, é que esse é o jei-
to mais fácil de criar uma impressão de alguém: estabelecendo
um oposto, uma identidade alternativa à do irmão. Se Téo é ba-
baca, Pedro é sensível. Se Téo é forrozeiro, Pedro é emo. Se Téo
rejeita o grupo dos esquisitos, é pra lá que Pedro vai. Se Téo é
Raquel, Pedro é Ruth. E se Téo é o rival de Arlindo, nada mais
justo que Pedro assumir o papel de interesse romântico.

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O passado misterioso também deixa Pedro um pouco mais
interessante pra alguém como Arlindo, que tem como uma de
suas características essenciais a de ser uma pessoa curiosa,
que pergunta muito. Por que ele não morava com os pais? O
que fez ele voltar? Ele se interessou por Lis ou foi só impres-
são? Quem é esse amigo de quem ele tanto fala? Ele tá dan-
do em cima de Arlindo ou só é gente boa? Por que ele não foi
no dia do filme? Como assim cover de Miguel de Rebelde? “até
que a namorada”… o quê?! E por aí vai. Ele é mais do que o que
a gente sabe dele, e sua história vai além de Arlindo, da escola,
do esporte ou do irmão.

Em resposta a @ilustralu

Ai eu fico toda soft sempre que o lindo e pedro tao juntos ai


ATÉ O QUE LUIZA, ce quer me matar?!?!!?????

lu
Em resposta a @ilustra
Em resposta
????
ATÉ O QUE????????
a @ilustralu
ÁGIL
LUIZA EU MUITO FR
PELO AMOR DE DEUS até que o qu
e???
FA Z ISSO
NO MOMENTO NÃO ATE QUE O
QUE????
AAAAAAAA
A

ustralu
Em resposta a @il
ÊÊÊÊÊ?!
ÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊ
até... O QUÊÊÊÊ

Em resposta a @ilustr alu


Em resposta a @ilustralu
ATÉ O QUE LUIZA???????
ATÉ O QUE, DONA LUIZA?!?! VÊ LÁ O
QUE A SENHOURITA ESTÁ APRONTANDO!!!!!
A aparência de Pedro foi milimetricamente pensada: o topeti-
nho, o brinco, o aparelho, a bolsa, as roupas, os gominhos, tudo. Co-
mo se fosse um colírio da Capricho que acabou de sair na edição
desse mês. Eu costumo fazer moodboards de cada personagem pra
lembrar das referências visuais e da essência que os preenche, pra
que essas coisas não se percam ao longo da história e pra que os
pontos da narrativa contribuam com a construção do personagem.

MOOD BOARD

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Quando Pedro tira a camisa, sendo — como diz Tulipa Ruiz
— muito “bem resolvido com sua nudez”, depois de várias horas
de conversa e de Pedro ter se mostrado um bom amigo e con-
fiável, você pode perceber que não existe uma escala de com-
paração ou idealização na forma como Arlindo o enxerga. Ele
só vê Pedro, e pronto. Como alguém diferente dele, sim, mas
sem se diminuir.
PARABÉNS PRA VO-CÊ!

Arlindo teve um processo criativo meio caótico, mas fun-


cionou porque eu sabia como era a página anterior, tinha uma
vaga ideia da próxima e precisava me organizar para manter o
fluxo narrativo sem quebrar o ritmo, lendo tudo o que vocês
comentavam sobre a webcomic e levando em consideração as
expectativas — fosse pra corresponder a elas ou quebrá-las.

41
A ideia de construir a cena do aniversário de Arlindo surgiu
num dia em que eu não tinha ideia do que fazer pra esse meni-
no parar de sofrer com o machismo violento e sem noção do pai
do outro lado da porta enquanto ele se trancava no quarto. Não
dava pra resolver com uma fuga física, afinal ele é um garoto de
catorze anos magrinho, sunguelo e com zero de estômago pra
enfrentamentos. Logo, uma fuga mental seria uma opção muito
mais viável, assim, Arlindo acessa uma memória de muito ca-
rinho, conforto e compreensão pra fugir do cenário ansioso e
triste em que se encontra. O garoto então viaja para a lembran-
ça de seu aniversário de quatro aninhos.

42
soa l
Fot os: Ace rvo pes

A estética dos aniversários de crianças da classe média dos


anos 1990 é muito icônica pra mim. Um bolo enfeitado de forma
quase desproporcional ao próprio tamanho, todos os salgadi-
nhos e refrigerantes dispostos em bandejas sobre a mesa, bem
como os docinhos que deveriam permanecer intocados até de-
pois do parabéns, balões — e até lancheirinhas para as outras
crianças, caso aquele ano tivesse sido financeiramente bacana.
Também poderia haver um grande painel, isopor ou toalha com
o personagem escolhido como tema atrás da mesa do bolo para
as fotos ficarem ainda mais incríveis. Eu usei como referência
algumas fotos dos meus aniversários quando criança pra dar a
cara certa para a festinha de Arlindo.

43
Uma coisa muito minha que levei pra esse Arlindo criança foi
a forma como eu me relacionava com as pessoas quando tinha a
idade dele. Eu fui uma criança curiosa, perguntadora e tímida, com
uma autoestima um pouco ruim. Quando Arlindo avisa pra todo
mundo que chega na festa que é aniversário dele — muitas vezes o
momento que ele se permitia chamar alguma atenção sem ser po-
dado — é porque para ele não é óbvio que aquelas pessoas se im-
portam com ele a ponto de saberem disso, mesmo que estejam ali,
mesmo que tenham trazido um presente. Outra coisa que não sei se
fica clara é que não tem muitas crianças na festinha. Além da Mari e
do Luis Filipe, só um outro garotinho aparece, porque mesmo sen-
do um menino tão simpático, Arlindo não tem muitos amiguinhos.

44
A sequência de páginas onde Lindo e Mari ficam amigos
é uma das minhas preferidas em toda a história e tem alguns
pontos em que eu queria que vocês reparassem:

Acervo pessoal
A música de Chiquititas que toca quando ele e Marissa se co-
nhecem se chama “Tudo, tudo”, e era a música de encerramento
da novelinha. A letra faz alusão à cena anterior ao flashback, ao
Arlindo adolescente chorando no quarto sozinho:

Fique bem atento para ver sair o sol


Para se dar conta que o dia vai ser bom
Tem que inventar truques para enganar a dor
Quando estamos tristes
Temos que encontrar o coração

A página não tem requadros (aquelas molduras que separam


uma cena da outra) nem sarjetas (espaços em branco que sepa-
ram os quadros); a sequência de cenas aconte-
ce num grande bloco de memórias intercaladas
pela música, justamente para dar a impressão de
que não há espaço nenhum entre os dois, cúm-
plices daquele espaço de tempo em comum.

45
O laço de amizade entre Arlindo e Mari se cria com uma expe-
riência muito simples: soprar juntos uma língua de sogra pela pri-
meira vez e engatar numa sabatina de perguntas pessoais e aleató-
rias com que só um par de crianças curiosas seria capaz de lidar. Eu
também gosto muito que seja a mãe da Mari quem trabalha com o
pai de Arlindo, e que ela não saiba muito bem o que o pai faz da vida.
Para criar os diálogos entre Arlindo e Mari, além de ter pas-
sado um tempão reparando na forma como as crianças se com-
portam e se comunicam no meu cotidiano e vendo filmes como
Matilda (1996) e O menino maluquinho (1995), me inspirei bas-
tante na última cena da hq Turma da Mônica — Laços, dos ir-
mãos Vitor e Lu Cafaggi. Quando Cebolinha, Mônica, Magali e
Cascão se conhecem, soltam uma senhora chuva de perguntas
quando o Floquinho surge. Busquei referências que tratassem
as crianças como gente, com diálogos inteligentes, que revelam
a complexidade de sua vida — apesar de ainda não terem vivi-
do muito. Crianças que se expressam de forma simples, mas não
boba, porque crianças não são bobas.
Quando o pai de Arlindo atenta para o filho de mãos da-
das com uma menina, a gente sai da ótica infantil que vê na-
quele gesto o carinho de uma amizade nascendo pra ser joga-
do no mais puro suco da masculinidade tóxica, com seu Arlindo

46
usando o próprio filho pra se afirmar como homem hétero —
jogando quem lê de volta à realidade do Lindo adolescente, on-
de essa mágoa do pai é jogada nele o tempo todo. O contraste
entre a relação de Arlindo com o pai na infância e na adoles-
cência mostra um pouco do processo de como ela foi se que-
brando ao longo do tempo.

47
PÁGINAS CORTADAS
SOBRE CONSTRUIR
ESPELHOS
Eu considero tia Amanda uma das personagens-chave na
história de Arlindo. Ainda que ela não apareça tanto assim,
Amanda cumpre um papel essencial: o de estar ali, existindo,
do jeitinho que ela é.
Bem antes de começar a produzir Arlindo, eu me lembro de
assistir a um painel de Steven Universe na Comic-Con de San
Diego, em 2016. A Rebecca Sugar (criadora da série e primeira
pessoa não binária a comandar uma animação no Cartoon Net-
work) se assumiu publicamente como bissexual ao responder
uma pergunta sobre o empoderamento feminino e as temáticas
lgbtqiap+ numa série com público infantil enorme.

Essas coisas têm muito a ver com quem


a gente é. Existe um tabu quando se tra-
ta de falar sobre isso com crianças, mas
todo mundo conta histórias sobre amor
e atração para elas. Tem tantas histórias
infantis que são sobre amor, e faz uma
diferença absurda ouvir uma história em
que alguém como você pode ser amado.
Quando você cresce sem ouvir esse tipo

52
de coisa, um pouco de quem você é se
perde. É muito importante pra mim que
se fale para as crianças sobre identidade,
sobre consentimento e sobre tantas ou-
tras coisas. Eu quero sentir que eu exis-
to, quero me enxergar e quero que todo
mundo possa se sentir dessa forma.

É exatamente assim que eu me sinto quando assisto às


coisas que ela faz, e depois de ouvir Rebecca falando isso acho
que se tornou um pouco da minha missão nesse mundo tam-
bém. É por isso que escrevi Arlindo e por isso que a bendita da
tia Amanda faz tanta diferença nessa história.
Esses são os estudos que fiz na hora de construir a persona-
gem. Silvinha ia aparecer também, mas no fim preferi que ela
não fosse mostrada como “a amiga” da tia Amanda, e sim apre-
sentada pela perspectiva do próprio Arlindo.
A gente fala muito sobre representatividade no mundo do
entretenimento, sobre ver a si mesmo nas coisas que lê, nas
séries, filmes e novelas que assiste, nas músicas que ouve. Cla-
ro, é superimportante se enxergar nos espelhos midiáticos que
todo mundo tem desde sempre. Só que não é o bastante, ou
pelo menos não acho que seja. Se ver representado na mídia
torna a realidade mais leve e pode contribuir para mudar a vi-
da fora das telas também, mas os espelhos da vida real impor-
tam muito, porque não tem série, filme ou novela no mundo
que substitua o impacto de saber que existem pessoas (prin-
cipalmente mais velhas) no seu convívio, existindo (e felizes)
enquanto lgbtqiap+.
Uma época saí perguntando para quem encontrava (ao vi-
vo, na internet e durante um evento sobre Arlindo que rolou
na Fundação José Augusto, em Natal) quando descobriram
que existiam pessoas que se identificam como lgbtqiap+ e co-
mo foi a convivência com elas quando eram crianças ou mes-
mo mais jovens.
Um ponto comum em quase todas as histórias que ouvi é co-
mo se constrói um muro em volta das crianças para que essas
pessoas não as “influenciem”, e também é muito bizarro como a
nossa cabeça assimila as coisas quando somos crianças, e então
as joga lá no fundo da consciência, numa gavetinha escondida.
É interessante, misterioso e devastador perceber quanto é nega-
do, escondido e reprimido dessa convivência entre o mundo real
lgbtqiap+ e as crianças e adolescentes mais jovens. São tantas
histórias de pessoas que estavam ali do seu lado o tempo todo,
mas que eram proibidas, difamadas e distorcidas. Fiz a pergunta
para vários conhecidos e as pessoas de primeira respondiam que
não conviveram com ninguém, mas passavam dois minutos e vi-
nha um “Ah… não… pera… teve tal pessoa, tal prima, tal vizinho”.
Essas foram algumas das respostas do dia da exposição, exa-
tamente como foram escritas:

Quando Cássia Eller morreu, e todas as pessoas

lamentavam, minha mãe explicou que ela não

era uma pessoa boa (e eu bancava isso, afinal

minha mãe dizia).

(Eu tinha uns 10 anos.)

Quando eu tinha uns 15 anos, um primo

e uma prima, filhos do mesmo tio, se

assumiram e foi um caos. Seguiram

dizendo que não eram pessoas boas.

Só na minha adolescência isso se

ajustou na minha cabeça:

ser bom e LGBTQ é possível.


Eu devia ter 5 ou 6. Ou menos. Eram amigos da

família. Aliás, são. Todo mundo sabia. Ninguém

falava sobre. E eles não eram livres para andar

de mãos dadas com seus amores. Até hoje é

assim. Não se sentem livres para isso.

Todo mundo sabe.

Ninguém fala sobre.

Minhas tias, costureiras,

no interior, tinham sempre

amigos alegres, divertidos

e barulhentos que me

acordavam nas férias, com

suas gargalhadas ♥
Eu con heci pela primeira vez o termo “sapatão”
quan do estava sen do usado co mo insulto contra

Fátima Bezerra quan do can didatou a prefeita.


Quan do perguntei a min ha mãe (era uma criança
na épo ca), ela muito sensata me explicou o que

era, e o preconceito. Também me explicou que


nada interferia se governasse ou não, em suas

palavras: “ela não governa da cama dela”.

Depois de ler e digerir todas as respostas, fritou meu juízo


constatar que quem pôde ter uma convivência próxima ou pelo
menos aberta com pessoas lgbtqiap+ sofreu menos para se acei-
tar e teve menos problemas com ansiedade e depressão rela-
cionados a isso. São pessoas que se odiaram menos do que os
que não tiveram a chance de enxergar além desses muros. Olha
o tanto que é poderoso se enxergar no outro, enxergar um futu-
ro possível!

57
E isso sem contar a importância do convívio com pessoas
lgbtqiap+ mais velhas — aquelas que realmente derrubam dis-
cursos do tipo “Ah, mas é uma fase” e “Você não vai ser ninguém
na vida assim”. Arlindo tem em tia Amanda um espelho de sen-
timentos bons, e é por isso que ele não se questiona, não se tor-
tura e não se entristece quando não se percebe como hétero.
Tia Amanda fez com que isso fosse bom e possível, porque co-
mo pode uma coisa ser ruim se é algo que tia Amanda é?
Eu sou completamente apaixonada pela página do sapatão
gigante porque, além da técnica, ela imprime toda a lógica do
espelho e o olhar da criança. As maneiras de fazer uma página
de quadrinho “como deve ser”, com quadros, requadros e leitu-
ra em Z, são todas subvertidas pelo olhar analítico de Lindo e
Mari, levantando hipóteses e buscando sentido em um xinga-
mento que não parece xingamento, apesar de ser. É uma das mi-
nhas páginas favoritas na história inteira.

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O paralelo entre esses momentos em que Arlindo vai dor-
mir, no presente e no passado, me transmite a mesma sensação
de angústia e solidão de todas as vezes em que a resposta a uma
pergunta tão honesta e inocente me foi negada.
Por fim, é bom lembrar que as crianças estão ouvindo e
guardando. Sempre. É assim que se constroem todas as coisas,
com as crianças reparando e guardando — e isso volta para o
mundo depois. Vamos tentar cuidar das crianças de agora em
nome das que a gente foi. Cuidar para que elas possam ouvir e
guardar coisas boas, e mudar o mundo derrubando um muri-
nho desses de cada vez. ♥

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ARLINDO E A PSICOLOGIA

por Bia Madruga

A história de Arlindo é um tecido com várias tramas entrelaça-


das, cuja densidade frequentemente esquecemos. É um livro que
fala sobre infância, família, escola, política, sociedade. Mostra o
crescer, o adolescer, e as dores que esse crescimento pode implicar.
É impossível falar de orientação sexual, do preconceito e das
violências aí associadas sem fazer referência aos pontos que
constroem a história de cada um de nós: nossa família, nossos
amigos, a cidade de onde viemos, nosso tempo histórico e político.
Arlindo faz tudo isso: expõe essas conexões de forma quase
didática para quem ainda simplifica e não enxerga a complexida-
de que a identidade lgbtqiap+ carrega. E assim Arlindo nos oferece
uma das suas maiores contribuições: permitir que pessoas com
vivências tão iguais se vejam nessas páginas. Vejam suas histó-
rias de vida, suas famílias, seus traumas, seus amigos, e os encon-
tros e os abraços que vieram certos. Há, nas páginas, momentos
em que os leitores têm que ouvir mais uma vez algumas frases
difíceis, mas há também a oportunidade de encontrar as palavras
de afeto e alicerce que os sustentaram até aqui.

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O livro de Luiza é esse afeto e esse alicerce. Esse encontro
fundamental para tantos de nós que, no correr e escorrer de
nossas vidas, precisamos ver e ouvir histórias que abraçam nos-
sa subjetividade e nos dão um pouco mais de estabilidade psi-
cológica para seguir, existir e, principalmente, resistir. Juntos.

bia madruga nasceu em Natal (rn) no século passado, e durante

a adolescência descobriu que escrever tinha um efeito calman-

te. E que fazia o tempo passar. Continuou escrevendo sem pres-

sa e sem parar e, sem pensar, publicou os textos curtos de Aos

pedaços, com tudo (2015) e os contos Em fim, nós (2016), ambos


pela editora Escribas. Pela editora M3, publicou com Ilustralu

o livro infantil Os Monstros estão aqui (2018), e escreveu João

sem não (2019), ilustrado por Filipe Anjo. É psicóloga de crian-


ças e adolescentes, e continua escrevendo sem pressa, sem pla-

no, sem pausa.


ARLINDER

Pra mim, uma das partes mais legais da comunidade que se


formou em volta de Arlindo é que a galera se empolga e engaja
com minhas ideias fora da caixinha. Em tempos de isolamento,
fazer um monte de gente assistir a um filme (relativamente an-
tigo) junto, dando play sincronizado com horário combinado
no Twitter, foi como poder ir ao cinema de novo depois de tan-
to tempo em casa. O #CineArlinder aqueceu meu coração, me
fez companhia, e rolou vinte minutos depois da publicação da
página onde Lindo e dona Nalva o assistiam também. Quem re-
solveu ver junto o filme nesse dia, assistiu com eles.

@ilustralu
vinte minutos pra página de #arlindo sair!
vamos deixar combinado de dar play no filme às 20h20, ok?
#cinearlinder

Inaura m SO
inha filha FR ACAS
ce coisa
melhor #
você me
re - E M IN H A FO I U M 2 9 a nos,
D s
#leiaarlin cinearlin
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Eu vivo pela metal
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ior aula de escrita ela e leia a
#cinearlinder #leiaa é essa po L i s b r lin de r #
rlindo a
#c i n e
A festa à fantasia foi uma ideia completamente improvisa-
da. Quando a pandemia eclodiu no Brasil e a quarentena veio,
além de aumentar a frequência de postagens para duas páginas
semanais, promover a festa serviu como um respiro da vida que
a gente não podia ter naquele momento. Aureliano deu a ideia
de fazer um convite para que as pessoas desenhassem suas pró-
prias fantasias e eu usasse algumas delas ao longo da cena da
festa em Arlindo. Foi um dos meus momentos preferidos em to-
da a webcomic, tanto que ela quase não acabou — foram mais
de vinte páginas de festa. Confira alguns dos convidados:

MODELO

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OS PITACOS MAIS
PRECIOSOS DO MUNDO
por Aureliano

Gosto muito dessa história, desse menino e de como ele che-


gou até aqui. Gosto porque diz muito sobre a pessoa que Lui-
za escolheu ser. Porque pra mim essa história foi a forma que a
autora encontrou de entender que é ok pedir ajuda e que tudo
bem precisar dos outros. E a gente se precisou bastante duran-
te esse tempo em que Arlindo viveu tudo o que viveu — e que a
essa altura você provavelmente já leu.
Antes de Luiza começar a desenhar as páginas semanais,
conversamos muito sobre essas pessoas que vieram a existir
com a ajuda de suas mãos. Lembro, em 2018, de ela me levar
os rascunhos e ideias de caminhos para a história e o momen-
to em que comecei a querer saber mais e mais e mais daquele
universo que ia se construindo na cabeça dela, que falava tu-
do o mais rápido que conseguia. Porque a cabeça de Luiza pro-
cessa coisas em uma velocidade que às vezes é difícil a boca
acompanhar. E a gente tem que tirar proveito disso. Por isso
eu perguntava. Fazia perguntas difíceis. Ela me olhava com rai-
va. Nosso processo de criação conjunta parece muito com uma

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briga. Mas Luiza sempre foi ligeira o suficiente para puxar res-
postas até de onde elas não existem. Mesmo que ela mesma às
vezes precise se esforçar para acreditar no que falou.
Depois desse primeiro dia, selamos um pacto silencioso de
estar sempre ali. De crescer juntos. De se ajudar. De dar vida da
melhor forma possível àquelas pessoas imaginárias tão reais.
Quer dizer, Luiza deu vida, eu só dei pitaco mesmo. Mas me
senti quase que criando tudo junto com ela, porque essa é a
mágica de estar ao lado de uma pessoa incrível como a cria-
dora de Arlindo. Ela trabalha e cria com tanta leveza e perspi-
cácia, que nos faz achar que somos nós mesmos pegando no
lápis e criando aquela novela que, se dependesse do público
leitor, poderia se arrastar para sempre. E sou muito grato de
poder ter feito parte desse processo. De ver as páginas em pri-
meira mão, poder conversar sobre o futuro dos personagens,
acompanhar todas as guinadas que a história teve e vibrar em
todos os momentos em que uma página era postada, mesmo
que eu tivesse visto meia hora antes. Fico triste quando co-
nheço artistas que não têm uma Luiza ou um Aureliano para
poder brigar e compartilhar o processo de criação. Acho que
devia ser obrigatório.
Enquanto os dias de Arlindo se passavam, vi tam-
bém uma nova Luiza aparecer (ou seria essa a Lui-
za de sempre?), uma artista que crescia e encontrava
uma técnica muito própria, uma força avassalado-
ra do marketing digital, uma pessoa que apresentou
sua vulnerabilidade para as mídias sociais e recebeu
em troca uma comunidade lindíssima. Que soube

71
trabalhar sabiamente com a afetividade e se abrir para pedir
ajuda, não só de quem era próximo dela, como dos habitantes
desse mundo virtual. Tal qual a carta da força, no tarô, Luiza
doma o leão internet com um carinho e um sorriso. Poder ser
espectador (e participante) desse processo é uma experiên-
cia mágica.
Obrigado toda vida, Luiza! Te amo.

aureliano é jornalista e ilustrador, e mora em Natal. Criou os li-

vros Mercúrio Cromo (Lote 42), O menino que desaprendeu a

chorar (independente) e Madame Xanadu (Nacional). Suas his-


tórias em quadrinhos, escritos e desenhos podem ser encontra-

dos em @oiaure.
OUÇA A PLAYLIST

Clique aqui para ouvir


a playlist no Spotify!
UM ARLINDO EM
CADA UM DE NÓS
por Taissa Reis

Eu cheguei a Arlindo como leitora. Conheci Luiza como ami-


ga de amigos e me apaixonei pelo trabalho dela imediatamente.
Como agente literária, meu objetivo é encontrar histórias
que tenham o potencial de conversar com os leitores. Eu pude
ver Arlindo tomar corações em tempo real e se transformar de
potencial a uma realidade e um alento na vida de muita gente.
Por isso, falei com a Lu que seria um prazer ajudá-la a fazer Ar-
lindo encontrar uma editora para expandir ainda mais seu pú-
blico. Nosso plano era fazer o financiamento coletivo de forma
independente e depois publicar por alguma editora.
Mas Arlindo foi crescendo e crescendo e, enquanto montá-
vamos um projeto para enviar para editoras, chegou a Flipop,
e com ela ainda mais olhos recaíram sobre o trabalho da Lui-
za. Acabamos fechando contrato com a Seguinte, mas com uma
condição: que os arlinders fizessem parte dessa história. Assim,
combinamos que o financiamento coletivo ainda aconteceria,
mas como uma pré-venda especial em vez de um pré-requisito
para que o livro fosse publicado.

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Às vezes eu me sentia um pouco como se estivesse costu-
rando com dona Anja, observando Arlindo e Luiza trilharem o
caminho deles, recebendo os dois em casa quando uma página
era difícil demais e às vezes dando conselhos carinhosos que
faziam chorar. Minha função nesse processo de publicação, no
fim das contas, sempre foi cuidar de Arlindo.
Cuidar de Arlindo para que ele mostrasse para as pessoas
quem realmente é. Cuidar de Arlindo para que uma escolha de
projeto gráfico não o impedisse de chegar na casa de quem mais
precisa dele. Cuidar para que as últimas páginas de Arlindo não
fossem o fim de sua história.
Você estar lendo esse texto só prova que este não é o fim.
Porque você é a continuação de Arlindo. Nós somos. Foi Luiza
quem começou a contar essa história, mas aonde formos daqui
para a frente, em cada conversa que tivermos, em cada abraço
apertado, a história de Arlindo vai continuar existindo. Porque
nós vamos continuar existindo.
A gente não tá só.

taissa reis (ou Tassi) é profissional do livro e atua como agente

literária desde 2014. Formada em relações internacionais e pós-

-graduada em editoração, abriu a agência Três Pontos em 2021,

depois de sete anos de experiência como agente. Representa

vários autores incríveis e ama piadas ruins.


ARLINDO NÃO É
UM ROMANCE
Escrever é muito parecido com costurar retalhos. Você vai
unindo palavras esquisitas e de repente elas fazem sentido e
se transformam em um cobertor bonito que pode aquecer al-
guém. Acho que era essa a sensação que eu queria proporcionar
para as pessoas quando escrevi Arlindo, a de trazer um bocadi-
nho de calor no meio de um tempo tão frio e esquisito.
A sequência de quando Arlindo sai do armário para a mãe
dele foi uma das partes emocionantes da história inteira. É uma
trama que vai acontecendo aos pouquinhos. Quem dá o tom
desse tempo é dona Nalva, e é pelos olhos dela que o ritmo vai
sendo costurado.
O caminho começa quando Nalva dá pra Arlindo a notícia
da surra que Luis Filipe levou e percebe o quanto o menino fi-
cou afetado.
Bem mais tarde, quando Arlindo chega em casa acompa-
nhado de Pedro (o menino do brinco), Nalva está claramente
estressada — não só pela grande quantidade de trabalho do-
méstico e encomendas, mas também porque Arlindo Jr. tinha
sumido sem dizer aonde ia o dia todo. Mesmo confusa e can-
sada, ela tenta abrir um espaço de conversa com a tão temida
pergunta: “Tem alguma coisa que você queira me contar?”.

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Era algo bem comum às pessoas lgbtqiap+ que dividiram
suas histórias comigo: o medo da pergunta “Tem alguma coi-
sa que você queira me contar?” e suas consequências, porque
ao longo da vida todos aprendemos a conviver com esse segre-
do guardado e a torcer pra que ele não venha à tona. Acredi-
to que esse medo ainda seja a realidade de muita gente e é uma
das partes onde eu acho que Arlindo é um afago na solidão de
quem já esteve nesse lugar — tanto o do menino que não esta-
va preparado pra explicar, quanto o da mãe que não sabia co-
mo acolher.

79
Depois da festa, Nalva percebe que tem algo de esquisito
com Arlindo quando ele não quer falar com o menino do brin-
co, e tenta se aproximar do filho mais uma vez. Agora com me-
nos brabeza e mais carinho. Ela aproveita a saída do pai para
abrir o caminho, faz a comida preferida de Arlindo e o convida
para um pequeno ritual que é só deles — confortável e seguro.

80
Lisbela e o prisioneiro é um clássico do cinema nacional,
daqueles filmes que são tão bons, mas tão bons, que a gente até
ignora os atores sulistas fazendo sotaque “nordestino”. É um
dos meus favoritos, num nível que eu tinha um caderno no en-
sino médio onde anotava frases de filmes e metade do roteiro
de Lisbela estava lá. Assim como todas as escolhas que eu fiz
nesse quadrinho, nada está ali à toa. O trecho da música “Você
não me ensinou a te esquecer” cabe perfeitamente no que Ar-
lindo está sentindo em relação a Pedro e, com a cabeça no co-
lo da mãe, cantando junto com ela, ele descarrega o choro que
estava guardado.
82
83
Nalva oferece mais do que o ombro pra ele chorar. Ela dá
para o menino a segurança que ele precisa para ser honesto, e
se permite ser tão vulnerável quanto ele ao criticar a si mesma
como mãe antes de dizer que ele pode, sim, confiar nela. Este
é um dos pontos fixos na história de Arlindo, daqueles que eu
disse que tinha na cabeça como deveriam ser desde que a his-
tória começou: o momento em que Arlindo se assume para a
mãe deveria ser uma escolha dele, mas a gente (no caso, você)
assistiria tudo pelos olhos de Nalva.
Em Arlindo, o background católico está sempre presente.
Seja na decoração da casa, na rotina dos personagens ou nas
expressões mais comuns, tipo o “Ai, meu Deus” que se repete
por toda a história. Mas é apenas isso: um background. A reli-
gião não tem protagonismo, não toma a frente em nenhum mo-
mento e é usada como um recurso narrativo para te situar no
enredo, nos costumes e neste momento — no pedido que ele
faz para a própria mãe.
Na página da Bíblia da criança onde Arlindo escondeu a foto
com Pedro tem uma oração que mescla o sofrimento e a espe-
rança, e que sempre considerei uma das mais lindas:

Salve Rainha, Mãe de Misericórdia. Vida,


doçura e esperança nossa, salve! A Vós bra-
damos, os degredados filhos de Eva. A Vós
suspiramos, gemendo e chorando neste vale
de lágrimas. Eia, pois, advogada nossa, esses
Vossos olhos misericordiosos a nós volvei,
e, depois desse desterro, mostrai-nos Jesus,
bendito fruto do Vosso Ventre. Ó Clemen-
te, Ó Piedosa, Ó Doce Sempre Virgem Maria.
Rogai por nós Santa Mãe de Deus, para que
sejamos dignos das promessas de Cristo.

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A oração fala muito da culpa que Arlindo carrega nesse cho-
ro e é tudo o que ele pede à mãe naquele momento de vulne-
rabilidade que eles estão compartilhando. Algo como “Me des-
culpe, mas, por favor, me defenda”. A única certeza que Arlindo
tem no mundo é do amor da mãe dele, e nesse momento de se
assumir a gente sente que esse amor tão certo está sendo colo-
cado à prova. É por isso que dói tanto ler essa parte da história.
Do meu lado também doeu demais — doeu pensar sobre, doeu
conversar sobre, doeu escrever, doeu desenhar.

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Uma das muitas referências que atravessei pra chegar nessa
parte da história vem do livro O filho de mil homens, de Valter
Hugo Mãe. Mais especificamente do personagem Antonino — o
homem maricas.

(atenção: Esse é um trecho bem forte da história e que pode ser um

gatilho, mas acredito que vale a pena ser compartilhado aqui por-

que foi essencial para o processo criativo.)

A Matilde, depois, pousou no vazio da


mesa a faca grande, que seguia sempre gri-
tando para que o matasse. Não fez mais na-
da. De faca na mão, levantada ao pescoço do
filho, havia sido apenas um modo de escu-
tar a promessa que ele lhe fizera, essa pro-
messa de nunca mais lhe dar um desgosto.
[…] Era cada vez menos mãe dele. Sentia-se
condenada e não abençoada. A maternidade
abençoava. Aquilo não. O rapaz limpou-se
às mangas, tentou talvez abraçá-la, mas ela
fugiu-lhe, e ele pensou que estava obrigado
a conquistar tudo de novo. Tudo o que seria
seu por natureza, e que a natureza se esfor-
çara por lhe levar, ele teria que reconquistar.
Era como encontrar um modo de regressar
a uma mãe. Voltar ao interior que tudo ima-
gina e renascer perdoado, um filho perfeito.
Os filhos perdoados são outra vez perfeitos.
Ficou com essa esperança. (pp. 105-6)

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Era porque claramente o filho havia des-
coberto que não podia deixar de ser quem
era, embora, uma e outra vez, houvesse de o
tentar. (p. 111)

Essa página de Arlindo tem um trecho da carta que escrevi


pra minha mãe quando senti que precisava contar que namo-
rava uma mulher antes que alguém fizesse isso primeiro. Tem
também pedaços do que meu melhor amigo falou pra mãe de-
le quando resolveu sair do armário, e muitas das conversas que
tinha ao longo da vida com pessoas que passaram pela mesma
situação. A sensação de que não importa o quanto você ten-
te fazer todas as coisas certas, ser brilhante, ser perfeito — isso
nunca vai ser compensado. É um sentimento que fica guarda-
do quietinho no fundo de cada pensamento mesmo depois que
você sabe que não tem nada que precise ser compensado, que
não tem nada errado em ser você.
Eu disse desde o começo que Arlindo não é um romance por-
que é, na verdade, sobre aprender a não sentir que precisamos
nos desculpar por sermos quem somos, e ponto-final. É por isso
que essa parte da história é uma das (talvez a) mais importante.
Ser lgbtqiap+ é sobre a maneira como você existe no mundo, para
muito além dos relacionamentos amorosos. É sobre como você
enxerga o que existe ao seu redor, sobre as coisas que você escu-
ta e o que pode estar implícito nas palavras, nos gestos. É sobre
a forma como a gente anda pela cidade, sobre as questões que
nos são mais caras. É sobre se enxergar e se perceber diferente e
toda a carga de significados que anda de mãos dadas com esse
entendimento. É sobre amor também, porém não só.
Era sobre isso que eu queria falar quando comecei a história
e agora, com tudo terminado, com a repercussão, com as con-
versas geradas e vendo todo o apego que as pessoas criaram
por esse menino amarelo, depois de se enxergarem ou olharem
com carinho pra ele, eu acho que consegui.
Arlindo é um quadrinho que é também um exercício de em-
patia. Eu aprendi a me amar um pouco mais de tanto que amei
esse menino e consegui ver o tanto de mim que existe nele. Sei
que muita gente sentiu como se estivesse olhando um espelho
enquanto lia Arlindo e é por isso que eu digo com a certeza do
mundo todinho que a gente não tá só.
ARLINDO DE
CARNAVAL
Esta obra foi produzida em formato digital
para a Editora Schwarcz em agosto de 2023

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