Rubem Alves - Sobre o Dizer Honesto

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sociológica e filosófica, espalham e aceitam, queria

começar com a confissão: somos rãs, no fundo do poço. Ao


Sobre o dizer honesto invés de fazer a crítica da ideologia do pintassilgo é hora
de parar para apalpar a nossa própria ideologia. Respirar
Acordar fundo, sentir que a coisa cheira mal. É bem verdade que
todo mundo se acostuma com o mau cheiro e chega
E há aquela estória, contada pelo Theodore Rozak, de mesmo a se sentir mal quando vai para as montanhas.
uma sociedade de rãs que viviam no fundo de um poço. Passar a mão, sentir as coisas visguentas, nossas
Como nunca haviam saído de lá, para todos os efeitos companheiras. Perguntar ao nosso corpo, esta vítima
práticos, “os limites do seu poço denotavam os limites do silenciosa, como é que ele se sente. Olhar para as coisas e
seu mundo”. É sempre assim. É difícil pensar para além da para a cara das pessoas. Ouvir o que elas dizem.
experiência... Acontece que um pintassilgo descobriu o Nietzsche dá um conselho para quem quer casar que
poço, descobriu as rãs, morreu de dó, e resolveu contar o deveria ser dado a todo mundo. Diz ele que, no ardor do
que havia lá fora. E falou de campos verdes, vacas fogo do amor, cada um deveria se perguntar: “Será que
plácidas, águas limpas, flores, frutos, florestas, e tudo o vou agüentar conversar com esta (ou este) aí até o fim da
mais que se pode ver neste mundo que enche os olhos... A minha vida?”. E é isto o que deveríamos perguntar ao
princípio gostaram das fantasias do pintassilgo. Um bom ouvir o que os outros dizem. Porque a conversação, este
contador de casos. Depois um grupo de filósofos parou tênue fio que sustenta o mundo, é como a água em que
para analisar o seu discurso, e concluiu que se tratava de nadamos. Na verdade, molha muito mais, porque entra
ideologia, das perigosas, cheia de engodos alienantes. Da pelos ouvidos e afoga freqüentemente a razão e não raro a
próxima vez que a avezinha lhes fez uma visita, antes que compaixão... Tudo isto constitui o nosso poço.
abrisse o bico lhe torceram o pescoço. “Boca que conta Parafraseando Wittgenstein, é doloroso reconhecer que
mentira não merece falar.” Morto o bicho, empalharam-no “os limites do nosso poço denotam os limites do nosso
e o colocaram no museu das conquistas da crítica da mundo”.
ideologia. A estória original não é bem assim, pois eu a Acontece que, na grande maioria das vezes, tudo isto
adaptei ligeiramente para servir de começo para uma é inconsciente. E, quanto mais inconsciente, mais
conversa sobre a “ideologia da educação”. O fato é que é insinuante, mais poderoso. Como deve ser difícil para o
fácil ver a ideologia nos outros, do jeitinho das rãs... Até peixe imaginar o que é um aquário, compreender que a sua
hoje não vi ninguém que confessasse, sem pedir vida é um aquário. Ele flutua e nada na água, tranqüilo,
desculpas, ser um habitante das ideologias. Ao contrário, sem dar conta... Fazer um exercício de honestidade e
todo cientista que se preza faz a crítica das ideologias, vê franqueza. Dizer o lugar silencioso, não dito ou mal dito,
com clareza, percebe o equívoco dos outros, do jeitinho de onde vemos e falamos. É daí que arquitetamos o nosso
das rãs... mundo. Teia em que nos movemos. Teia, sim, como a da
Assim, ao invés de falar sobre os equívocos sem fim aranha: feita com materiais de fora, porque nada se faz
que os outros, ainda não iluminados pela crítica ex-nihilo, mas que foram antes engolidos, digeridos,
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assimilados, tornados semelhantes ao corpo do A começar pelo estilo. Se cada teoria social é uma
devorador-tecelão... De fato, porque será daí que ele teoria pessoal, falar no impessoal, sem sujeito, não passa
despedaçará e devorará a ideologia dos outros que, de uma consumada mentira, um passe de mágica que
incautos, caem em suas malhas. procura fazer o perplexo leitor acreditar que não foi
É isto que desejo: falar sobre nosso lugar ideológico, alguém muito concreto que escreveu o texto, mas antes
nosso aquário, nossa teia, nosso poço, nossa conversação. um sujeito universal, que contempla a realidade de fora
Claro que as rãs se julgavam cientistas, donas de dela. E assim tornamo-nos como aquele dançarino de
conhecimento objetivo, em oposição ao pintassilgo, quem Kierkegaard zombava. Pulava muito alto, o que
produtor de pensamento interessado... Acontece que eu produzia palmas do auditório. Mas queria que todos
não aceito tal separação. Todo pensamento sai do nosso acreditassem que ele não saltava, mas voava, O que fazia
ventre, como o fio da teia. Cada teoria é um acessório da com que todos caíssem na gargalhada. Os impessoais
biografia, cada ciência um braço do interesse. Pelo menos «observa-se”, “constata-se”, conclui-se são o ato mágico
tenho em Gunnar Myrdal um companheiro: “ciência social pelo qual o pulo quer se transformar em vôo: desaparece a
desinteressada nunca existiu e, por razões lógicas, não pessoa de carne e osso que realmente viu, pensou e
pode existir” (Objectivity in social research, New York, escreveu, e no seu lugar entra em espírito universal. Mas
Pantheon Books, 1969, p. 55). E também Alvim Gouldner, parece que o fascínio do vôo é um dos pressupostos do
que diz candidamente que nosso poço, uma das regras do mundo da ciência. E estou
propondo que a gente tome consciência dele e o exorcize
cada teoria social é também uma teoria pessoal que
inevitavelmente expressa e coordena as experiências por meio do riso. E que recuperemos a coragem de falar
pessoais dos indivíduos que a propõem. Muito do esforço do na primeira pessoa, dizendo com honestidade o que vimos,
homem para conhecer o mundo ao seu redor resulta de um ouvimos e pensamos. Escrever biograficamente, sem
desejo de conhecer coisas que lhe são pessoalmente
vergonha.
importantes (The coming crisis of western sociology, New
York, Avon Books, 1971) De tudo o que está escrito, eu amo somente aquilo que o
homem escreveu com o seu próprio sangue. Escreve com
A primeira tarefa, portanto, é dizer o poço, sangue e experimentarás que sangue é espírito (Friedrich
reconhecer o aquário, tomar consciência da teia com que Nietzsche, Thus Spoke Zarathustra, em Walter Kaufmann,
prendemos, aprendemos e somos presos... De novo The Portable Nictzsche, N. York, Vikings, p. 152).
Myrdal: “As premissas valorativas das ciências sociais Vai-se a modéstia dos impessoais, modéstia que
devem ser explicitamente declaradas e não ocultadas...” esconde a arrogância da pretensão de universalidade. Não,
(op cit., p. 63). é necessário reconhecer que “o mundo dos felizes é
Imagino que estas confissões preliminares possam diferente do mundo dos infelizes” (Wittgenstein, Tractatus
causar arrepios. Elas não têm o cheiro certo. Que idéias logico-philosophicus, São Paulo, Companhia Editora
têm cheiro é coisa tranqüila e além de dúvida, e a este Nacional, 1968, p. 127, § 6.43), que o mundo das rãs é
ponto voltaremos depois de dois dedos de prosa. E o que diferente do mundo do pintassilgo, que o mundo dos
causa os arrepios são alguns odores que não misturam operários é diferente do mundo dos intelectuais, que o
bem, conflitos valorativos. mundo dos fortes é diferente do mundo dos fracos. E que,
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freqüentemente, as diferenças se encontram em Nós não conhecemos. Nós só podemos fazer palpites. E os
nossos palpites são guiados pela fé não científica, metafísica,
categorias menos abrangentes, mais do corpo como uma
em leis e regularidades que podemos descobrir, des-cobrir.
azia, uma impotência sexual, a cor da pele, a idade, o O velho ideal científico de episteme, conhecimento certo,
sexo... É, tenho de confessar que ainda acredito na demonstrável, provou ser um ídolo.
existência das pessoas, acredito que aquilo que acontece A exigência de objetividade, em ciência, exige que cada
declaração científica permaneça, para sesempre tentativa.
com os seus corpos faz uma diferença, e que nem tudo
(The logic of scientific discovery, New York, Harper, 1968, p.
pode ser reduzido à sua classe social. Minhas palavras são 278 e 290, § 85)
extensões do meu corpo, meus membros se apóiam nelas –
Portanto, tenho de dizer onde me localizo para que,
daí que elas não são nunca, para o sujeito que sangra,
de saída, fiquem claras as razões de muitos dos nossos
meros reflexos ideais, sublimados, inversões óticas da
possíveis encontros e inevitáveis desencontros.
realidade. Quando a realidade está em jogo, quem toca em
uma de minhas palavras é como se tocasse na menina dos De início, creio que é necessário voltar ao corpo. Não
meus olhos... As palavras podem matar. é o corpo o centro absoluto de onde tudo se irradia
No campo de batalha, na câmara de torturas, um navio que
E aqui os arrepios dão a volta porque a questão da
afunda, as questões pelas quais você luta são sempre
objetividade científica fica dolorosamente em suspenso. esquecidas, porque o corpo incha até que enche o universo
De fato, parece que, se não podemos fazer uma opção todo: e mesmo quando você não está paralisado pelo vapor
clara pelo conhecimento universal marcado pelos ou gritando de dor, a vida é uma luta que se desenrola,
momento a momento, contra a fome, o frio, a insônia, contra
impessoais, somos lançados numa torre de Babel em que
uma azia ou uma dor de dentes (Orwell, 1984).
as múltiplas ciências se dizem e se contradizem, sem que Não serão fúteis todas as questões que não dizem respeito
seja possível uma decisão acerca de sua verdade ou ao corpo? E se o honrem se entrega a questões, as mais
falsidade. distantes, as reais abstratas, não será por causa do seu amor
ao seu corpo, a sede de sua dor, o lugar do seu amor, a
Este assunto exigiria outra conversa. Por hora, para possibilidade de prazer? Weber estava correto ao afirmar
os meus propósitos, basta reconhecer que, empiricamente, que mesmo as pessoas religiosas em busca de um céu no
o tal sujeito portador de uma subjetividade livre de valores futuro estão, em última análise, pensando e agindo a partir de
necessidades do aqui e do agora. (Gerth & Mills, From Max
nunca foi encontrado. Por razões óbvias. Pensar a vida Weber, New York, Oxford University Press, 1958, p. 278).
divorciada de elementos libidinais é uma impossibilidade,
Quem acredita no céu pode dormir melhor e quem
pois a vida é preconceituosamente seletiva e
confia na providência divina tem menos enfartes do
embaraçosamente parcial em suas estruturações. A
miocárdio. O destino daqueles cujos corpos se libertaram
ausência de desejo, como centro da consciência, talvez
do ópio religioso parece ser uma nova dependência, agora
marque o momento da própria morte. Como observa
secular e legitimada pela ciência, nos sacramentos da
Werner Stark, “é possível que o pensamento livre de
bioquímica e nos sacerdotes do inconsciente: o corpo não
valores seja um ideal, mas com toda a certeza ele não é
perdoa.
uma realidade em parte alguma” (The sociology of
knowledge, London, Routledge & Kegan Paul, 1967, p. 71). O conhecimento está ao serviço da necessidade de viver, e,
primariamente, ao serviço do instinto de conservação
E mais, basta concordar com a afirmação de Karl Popper:
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pessoal. E essa necessidade e esse instinto criaram, no Dizer que o homem vive da natureza é dizer que a natureza é
homem, os órgãos do conhecimento, dando-lhes o alcance o seu corpo, com o qual ele deve estar em trocas constantes,
que possuem. O homem vê, ouve, apalpa, saboreia e cheira a fim de não morrer. (Karl Marx, Manuscritos filosóficos
aquilo que precisa ver, ouvir, apalpar, saborear ou cheirar, e econômicos, § XXIV).
para conservar a sua vida. (Miguel de Unamuno, Do
sentimento trágico da vida, Porto, Editora Educação Nacional,
Mais adiante, ao analisar a propriedade privada, irá
1953, p. 38). mostrar que a sua conseqüência fundamental se encontra
na metamorfose do corpo que produz. O corpo de muitos
E não me digam que estes são interesses burgueses –
sentidos eróticos é reduzido a uma abstração civil que
como se os operários não tivessem corpos, e sentissem
dispõe de um meio apenas de relação com os objetos: a
dor de dentes com os dentes de sua classe social, e
posse. O que, sem dúvida, põe de cabeça para baixo a
fizessem amor com os genitais de sua classe social, e
forma burguesa de pensar, que acha que a propriedade
vertessem lágrimas com os olhos da classe social. Classe
privada é uma defesa, salvaguarda, fortaleza, couraça do
social pode ser e é um conceito teórico da mais alta
corpo.
importância para o cientista que coloca o corpo entre
parênteses. Mas para quem está sofrendo, ela não existe. A propriedade privada nos tornou tão estúpidos e parciais
que somente consideramos como nosso um objeto quando o
O que existe é a dor imensa, dor que é prelúdio de morte, possuímos... Assim, todos os sentidos físicos e intelectuais
morte que tem a ver com o meu corpo, único, irrepetível, são substituídos pela simples alienação de todos eles, o
centro do universo. Na verdade, a significação humana de sentido do ter (ib. idem, 4 XXXIX, (4) ).
um conceito como o de classe social e a sua possível A apropriação erótica dos objetos, pelo corpo,
eficácia política se derivam do fato de que uma classe é fundamento do prazer e da felicidade, é substituída por
uma forma social de se manipular o corpo. Os pobres uma forma de relação pela qual o corpo se relaciona
cheiram mal, não tratam de dentes, têm fome com mais apenas com uma representação simbólica, abstrata, do
freqüência e não podem afinar suas sensibilidades de sorte objeto. Não é este o sentido do capital?
a gostar de Beethoven. Isto, além de apanhar com mais
Já espero ouvir alguém me dizer: “Mas este é o Marx
freqüência e morrer mais cedo. Para uma pessoa de carne
jovem, imaturo, ainda não cientista. O Marx real, nós o
e osso é este o sentido de classe social: os possíveis e
encontraremos em O capital. Somente aqui ingressamos na
impossíveis para o seu corpo. O corpo é a entrada da
ciência”. Confesso minha total perplexidade e ignorância.
alma, a dor e o prazer os fundamentos do pensamento.
Que se pretende com isto? Que somente as relações
Economia? Mas o que é a economia senão a luta do homem
abstratas, que pertencem aos valores de troca e, portanto,
com o mundo, homem que é corpo e quer transformar o
ao capital, sejam constitutivas da realidade? Parece-me,
mundo inteiro numa extensão do corpo? Pelo menos é
ao contrário, que o fato de serem tais relações passíveis
assim que aprendi de Marx.
de ser tratadas com rigor estrutural não lhes confere
A universalidade do homem aparece na atividade prática
maior densidade ontológica. O que se deriva disto é a
universal pela qual ele transforma a totalidade da natureza
no seu corpo inorgânico. (...) conclusão banal de que dispomos de métodos de análise
A natureza é o corpo inorgânico do homem que nos permitem compreender com rigor certas relações
estruturalmente determinadas. Mas o corpo, a dor de
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dente, a fome, o absolutamente individual – supremo, o cultivo da inteligência pura que, se Ferenczi está
correto, é uma conseqüência de perda de sensibilidade,
desvaneceram-se no ar? Deixaram de ser realidade? O
expressão de uma morte precoce e, em última instância,
discurso a seu respeito – pode ele ser reduzido à condição loucura racionalizada (Norman O. Brown, Vida contra a
de poesia ou metafísica? É curioso como aqui nos morte, Petrópolis, Vozes, 1974, capítulo XVI). É o retorno ao
aproximamos dos mesmos chavões do positivismo. corpo que nos proíbe de perguntar sobre condições de maior
eficácia.
As opções e confissões se colam. O discurso na primeira
pessoa, vazio dos impessoais universais, está ligado à opção Mas o retorno ao corpo tem, para mim, uma
pelo corpo. Porque o corpo só fala assim. significação muito ligada às próprias condições de
Aqui, a primeira confissão. Se me perguntarem o que aprendizagem. E volto novamente aos aforismos de
é que ela tem a ver com o problema da ideologia e da Nietzsche:
educação, devolverei a pergunta. Não será verdade que o Corpo eu sou, inteiramente, nada mais.
propósito de toda a educação é a domesticação do corpo? Alma é apenas um nome para algo que pertence ao corpo.
O corpo é a grande razão...
Não será verdade que este é um programa de natureza
Um instrumento do seu corpo é também a sua pequena razão,
política, e que, como tal, descansa sobre uma ideologia? a que você dá o nome de “espírito” – um pequeno
Por favor, não pensem em escolas quando eu me referir à instrumento e um brinquedo de sua grande razão (Walter
educação. Escolas são instituições tardias e apertadas, Kaufmann, op. cit. p. 146).
enquanto a educação tem a idade do nascimento da cultura Voltar ao corpo como grande razão tem, para mim,
e do homem. Os dois nasceram num mesmo ato, não? Foi um sentido político e um sentido pedagógico. Político,
quando uma geração teve de ensinar à outra a humanidade porque é o corpo que dispõe de um olfato sensível aos
por eles inventada... Na verdade, das primeiras palavras e aspectos qualitativos da vida social, em oposição às
primeiros gestos, que fazem os mestres – pais, mães, funções cerebrais, tão ao gosto dos tecnocratas e dos
irmãos, sacerdotes, padrinhos – senão ensinar a um comandantes, que trabalham sobre as abstrações
aprendiz o uso “correto” do seu corpo, uso conforme as quantitativas. Pedagógico, porque a sabedoria do corpo o
expectativas sociais? E o corpo aprende a fazer as impede de sentir, apreender, processar, entender,
necessidades fisiológicas nos lugares e tempos permitidos, resolver problemas que não estejam diretamente ligados
a conquistar o relógio biológico e a acordar segundo o às suas condições concretas. Como já se repetiu ad
tempo convencional das atividades socialmente nauseam, “a vida não é determinada pela consciência, é a
organizadas, a se disciplinar como guerreiro, como artista consciência que é determinada pela vida”. Muito se
ou como puro cérebro. repetiu, pouco se entendeu. E a prova disto é a imensa
E eu me perguntaria se o tão decantado fracasso de nossas distância que existe entre o falado e o vivido. Sem dúvida
instituições e práticas educacionais não se deve à resistência a fala é marxista, mas a prática se situa dentro da mais
do selvagem que nos mantém rebeldes, e se recusa a aceitar
grosseira caricatura do idealismo. O corpo só preserva as
a deformação do corpo... Que significa maior eficiência nos
processos educacionais? Maior eficácia na domesticação da idéias que lhe sejam instrumentos ou brinquedos – que lhe
fera? Seguimos, segundo Norman O. Brown, “o caminho da sejam úteis, que o estendam, para a incorporação da
sublimação”, da repressão do corpo e das gratificações natureza como parte de si mesma; que lhe dêem prazer,
substitutivas estabelecemos, como valor educacional
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porque não se vive só de pão, mas também de jogo erótico que instituições de saber, que num momento estiveram
e artístico. A volta ao corpo implica a exigência de uma vivas com o fermento do gênio, na geração seguinte
assepsia geral e rigorosa em que todos os produtos da meramente exibem pedantismo e rotina” (Alfred North
educação são colocados de quarentena, para que o corpo Whitehead, The aims of education, New York, The Free
se desafogue e desengasgue e possa tomar a iniciativa de Press, 1967, p. 1). No Brasil o problema está não apenas
selecionar e usar somente aquilo que lhe convier, se o em idéias herdadas do passado, mas especialmente idéias
quiser. transplantadas de além-mar. Mas poderá falar o corpo
Diz Fernando Pessoa que “pensamento é doença dos brasileiro com sotaque estrangeiro? Temo que tenhamos
olhos”. Correto. O pensamento se insinua onde a visão brincado muito de ventriloquia... O resultado é que as
falhou. Ou onde o ouvido, e o olfato, e a língua e a pele idéias permaneceram inertes, sendo portanto totalmente
falharam. A palavra é o testemunho de uma ausência. inúteis. Lembro-me de uma afirmação de Schiller, que
Como tal, ela possui uma intenção mágica, a de trazer à observava que “se a verdade deve triunfar em sua batalha
existência o que não está lá... A intenção de manter viva a com a força, ela deve antes de mais nada se transformar
promessa do retorno. Mais que simples símbolos numa força e invocar algum impulso como seu advogado...;
operacionais, as palavras me ligam aos objetos do meu pois os impulsos são as únicas forças efetivas no mundo
amor, ausentes. Recordando o que diz Maurice Blanchot, a do sentimento” (Walter Kaufmann, Hegel: a re-
linguagem autêntica examination, Garden City, Doubleday & Co., 1966, p. 31).
Somos nós, intelectuais e educadores, que nos
... não é a expressão de uma coisa, mas antes a ausência
desta coisa... A palavra faz desaparecer as coisas e nos perguntamos sobre a ideologia. E ao fazer isto, imagino,
impõe um sentimento universal de que alguma coisa está estamos em busca de coisas que foram ditas e escritas
faltando... sobre a educação. Não podemos nos esquecer, entretanto,
... n’est pas 1’expression d’une chose, mais 1’absence de
que um dos ardis da palavra está em que ela
cette chose... Le mot fait disparaître les choses et nous
impose le sentiment d’une manque universel et même de son freqüentemente significa o oposto do que enuncia.
propre manque (Citado por Herbert Marcuse, Reason and Guerra é paz.
revolution, Boston, Beacon Press, 1966, p. VI). Liberdade é escravidão.
Ignorância é força.
Fala o corpo porque falta algo ao corpo. A fala, o
pensamento, são atos de êxtase – estar fora do seu lugar e Estas eram as honestas divisas do Partido no 1984 de
do seu momento. Instrumentos exploratórios de mundos Orwell. E nossa sofisticação científica é tal que aplicamos
possíveis e só assim horizontes utópicos para a ação sistematicamente sobre o discurso político a arte da
política. Mas, que dizer da palavra que não se encontra desconfiança, preconizada pela astúcia de Nietzsche. De
agarrada ao desejo? Whitehead observa que não existe fato, a verdade do discurso político se encontra, na
coisa pior para a educação que aquilo que ele denomina maioria das vezes, no oposto negado por cima e afirmado
“idéias inertes” – “idéias que são meramente recebidas”, por baixo. Que discurso sobre a liberdade resiste ao
sem nenhum poder que as relacione com a vida. “Na cassetete? Que conversa democrática sobrevive à
história da educação, um dos fenômenos mais marcantes é intolerância de generais, sacerdotes e professores? E

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