Emetropolis 46
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E-mail:
emetropolis@bservatoriodasmetropoles.net
Website:
www.emetropolis.net
editor-chefe
Prof° Dr. Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro
coordenadores editoriais
Fernando Pinho
Juciano Martins Rodrigues
C
om este número, trazemos ruptura com o passado e a constante de escalas nas vias.
mais uma contribuição da e- ocupação de espaços vazios. Assim, o A cidade enquanto lugar fundante
-metropolis para a discussão artigo busca também fomentar a dis- da democracia é ponto de partida para
no campo dos estudos urbanos e re- cussão sobre os espaços industriais e a a convidativa análise desenvolvida por
gionais. Perspectivas diversas unem valorização da memória como identi- Robert Pechman no texto da Seção Es-
artigos com temas relevantes e atuais, dade da paisagem e da vida urbanas, pecial. Para além de reflexão livre sobre
como geografia do voto em contexto através da análise de três renovações em a relação entre a dimensão política da
metropolitano, arte de rua, memória contextos industriais diferentes. Suas democracia e a vida urbana, Pechman
e identidades urbanas em áreas indus- conclusões indicam que manter os va- busca uma maneira de ver como essa
triais inativas, entre outros. zios urbanos não quer dizer preservar o dimensão se manifesta na cidade, no
Iniciamos o número 46 com o ar- abandono, mas que é importante pen- que ele chama de filigranas, nos com-
tigo de Lindijane Almeida, Terezinha sar o desenvolvimento local a partir da portamentos cotidianos e banais, que
Barros, Raquel Silveira e Larissa Ma- sua história e, assim, consolidar sua são tão bem representados pelas nar-
rinho, que trata da disputa eleitoral e identidade. rativas literárias e que expressam de
a gestão metropolitana em Natal, Rio Com o título instigante “A ceguei- maneira veemente a condição humana
Grande do Norte. Ao identificar a ra espacial da justiça: o papel do Po- na cidade. Trata-se de um olhar para
existência de “deputados metropolita- der Judiciário para a promoção de re- a “pequena urbanidade”. Na verdade,
nos” e analisar sua atuação legislativa, moções em obras de urbanização”, o mais que um olhar, trata-se de saber o
as autoras encontram a ausência de artigo de Ana Carolina Tavares e Ana que nos conta a cidade quando esta re-
identidade metropolitana entre esses Cláudia Cardoso posiciona o Poder solve abrir a boca e bate à nossa porta
atores políticos eleitos, e aponta para Judiciário como agente da operaciona- dizendo: não é ninguém, é a cidade!
a existência de ações paroquiais que se lização de intervenções de urbanização Fechamos este número com o En-
contrapõem à necessária coordenação do PAC na Bacia do Tucunduba, em saio Fotográfico de Luiz Henrique
em benefício da gestão e do reconheci- Belém (PA). As autoras partem da in- Oliveira, que expressa sua busca pela
mento de uma questão metropolitana. vestigação do papel do Poder Judiciá- arte de rua enquanto uma expressão da
No segundo artigo, Carolina Lima rio ao ser chamado a resolver conflitos luta pelo direito à cidade em Curitiba.
aborda o relacionamento entre a pro- entre Poder Executivo e populações a Mais do que marcas da arte na cidade,
dução do espaço urbano e a produção serem removidas, seja quando há falta as imagens, segundo o autor, represen-
da arte urbana nas cidades contem- de acordo em relação às compensações tam fronteiriças: nas fronteiras entre a
porâneas, a partir de uma revisão te- ou quando ocorrem ocupações irregu- apropriação e o entendimento, entre
órica sobre o tema e a análise de três lares em áreas já desocupadas ou em a fruição e o registro, entre o pensar e
casos latino-americanos: Medellín, na conjuntos habitacionais semifinaliza- o sentir, entre a ciência e a arte, entre
Colômbia, São Paulo e Belo Horizon- dos. Partindo de evidências empíricas e a realidade e a representação, entre o
te, no Brasil. As conclusões do artigo documentais, do diálogo com técnicos pesquisador e o cidadão, a criação e a
apontam que a arte consegue denun- de órgãos públicos e com a população destruição, o permanente e o efêmero,
ciar as contradições resultantes da pro- ameaçada de remoção, além da análise os fixos e os fluxos.
dução do espaço, ao mesmo tempo de processos judiciais, as autoras de- Finalizamos mais este número da
que as reações a ela aprofundam tais mostram que o direito à propriedade Revista Eletrônica de Estudos Urbanos
contradições. se sobrepõe a outros direitos e que a e Regionais e-metropolis agradecendo
No artigo “Espaços industriais ina- judicialização dos casos contribui para a todos os autores, leitores e colabora-
tivos: valorização da memória e iden- a estigmatização dos ocupantes e para dores, que vêm contribuindo ao longo
tidade urbanas a partir do conceito um número crescente de remoções. dos mais de dez anos de existência da
‘terrain vague’”, Carolina Galeazzi, a Encerrando a seção de artigos, publicação. Em especial, agradecemos
partir da observação da demolição de Arthur Zanella, em “Metrópoles em ao autor de capa deste número, o ar-
uma fábrica no subúrbio carioca, evi- camadas: os rastros da Tramway Can- tista, arquiteto e urbanista, Renato
dencia a necessidade de questionar a tareira no Jaçanã”, busca verificar se o Mãozão!
renovação da cidade, considerando a antigo eixo ferroviário entre o centro Desejamos uma excelente leitura! ▪
editorial
Capa Ensaio
06 A geografia do voto 37 A cegueira espacial 61 Representações
e o engajamento da justiça: o papel fronteiriças da cidade:
metropolitano dos do Poder Judiciário A arte de rua como
deputados estaduais para a promoção de direito à cidade
do Rio Grande do Norte remoções em obras em Curitiba
Voting geography and de urbanização Frontier representations
metropolitan engagement The spatial blindness of the city: street art
of Rio Grande do Norte of justice: the role of as means of the right
state deputies the judiciary in promoting to the city in Curitiba
removals in urbanization works
Por Lindijane de Souza Bento Por Luiz Henrique Rubens
Almeida, Terezinha Cabral de Por Ana Carolina Miranda Tavares Pastore Alves de Oliveira
Albuquerque Neta Barros, Raquel e Ana Cláudia Duarte Cardoso
Maria da Costa Silveira e Larissa
Kevinlyn Martins Marinho
46 Metrópoles em camadas:
os rastros da Tramway
Artigos Cantareira no Jaçanã
19 O estudo da arte de rua Layered metropolises:
como um fenômeno urbano Traces of the Cantareira
e prática espacial Tramway in Jaçanã
na geografia Por Arthur Simon Zanella
The study of street art as an
urban phenomenon and spatial
practice in geography Especial
Por Carolina Maria Soares Lima
56 O padeiro, a democracia
e a cidade
The baker, democracy
27 Espaços industriais
inativos: valorização and the city
da memória e identidade Por Robert Moses Pechman
urbanas a partir do
conceito “terrain vague”
Inactive industrial areas: ficha técnica
urban memory and identity
valorisation based on the A ilustração de capa é do arquiteto e urbanista
concept of “terrain vague” Renato Mãozão.
r.maozao@gmail.com
Por Carolina Hartmann Galeazzi
Projeto gráfico e diagramação
Paula Sobrino
paulasobrino@gmail.com
Revisão
Aline Castilho
alinecastilho1@hotmail.com
capa
Lindijane Almeida
Terezinha Barros
Raquel Silveira
Larissa Marinho
A geografia do voto
e o engajamento
metropolitano
dos deputados estaduais do Rio Grande do Norte
RESUMO ABSTRACT
O presente artigo tem como objetos a disputa This article has as its objects the electoral dis-
eleitoral e a gestão metropolitana. Objetiva- pute and the metropolitan management. The
-se mapear os votos dos eleitores na Região objective is to map the votes of voters in the
Metropolitana de Natal (RMN) nas eleições Metropolitan Region of Natal (RMN) in elections
para a Assembleia Legislativa, em 2014, for the Legislative Assembly, in 2014, analyzing
analisando a existência de deputados metro- the existence of metropolitan deputies whose
politanos cuja votação esteja predominante- votes are predominantly in the municipalities
mente nos municípios pertencentes à RMN. belonging to the RMN. Methodologically, the
Metodologicamente, foram contabilizados os votes of deputies from Rio Grande do Norte
votos dos deputados do Rio Grande do Norte in 2014 were counted, considering metropo-
em 2014, considerando deputados metropo- litan deputies those who obtained 50% of the
litanos aqueles que obtiveram 50% dos votos votes concentrated in the RMN. Then, it was
concentrados na RMN. Em seguida, foi possí- possible to analyze the legislative performance
vel analisar a atuação legislativa dos referidos of these parliamentarians between 2018 and
parlamentares entre 2018 e 2019, com base 2019, based on the mapping of the allocation
no mapeamento da destinação dos valores of amounts corresponding to the legislative
correspondentes às emendas legislativas. Ao amendments. In the end, the study confirms
final, o estudo confirma a ausência de identi- the absence of metropolitan identity among
dade metropolitana entre os atores políticos the elected political actors and points to the
eleitos e aponta para a existência de ações existence of parochial actions that oppose the
paroquiais que se contrapõem à necessária necessary coordination for the benefit of the
coordenação em benefício da metrópole. metropolis.
INTRODUÇÃO
As Regiões Metropolitanas (RMs) são espaços es-
peciais não só pelos elementos econômicos e sociais
como também pela dimensão política. Elas concen-
tram a maioria do eleitorado e, por consequência,
tornam-se lugares estratégicos na disputa política-
-eleitoral. O próprio processo das eleições tem rela-
ção direta com a conquista dos territórios que são
potenciais nichos de eleitores. Apesar de toda essa
importância, a tradução em uma representativida-
de para a metrópole nas esferas de poder, que possa
culminar em uma dinâmica de políticas públicas de
natureza metropolitana, ainda é um aspecto distante
das regiões metropolitanas brasileiras.
Pesquisas que procuram verificar a distribuição
dos votos a partir dos resultados eleitorais são impor-
tantes para descobrir associações de diferentes abor-
dagens com os candidatos e partidos. A geografia do
voto (ANDRADE, 2015; AMES, 2003; CARVA-
LHO, 2003, 2009) para deputados estaduais eleitos
nos permite tecer elementos para relacionar o voto Lindijane de Souza Bento Almeida
com as suas atividades legislativas. é professora do Departamento de
O presente artigo relaciona o tema da disputa Políticas Públicas e do Programa de
eleitoral com a gestão metropolitana e com o estudo Pós-Graduação em Estudos Urbanos
da atuação legislativa entre 2018 e 2019. Objetiva-se e Regionais (UFRN). Pesquisadora
mapear os votos dos eleitores na Região Metropoli- do Observatório das Metrópoles -
tana de Natal (RMN) nas eleições para a Assembleia Núcleo Natal.
Legislativa, em 2014, analisando a existência de de- almeida.lindijane@gmail.com
putados metropolitanos cuja votação esteja predomi-
nantemente nos municípios pertencentes à RMN. Terezinha Cabral de Albuquerque
Ao final, é apresentado o mapeamento do território Neta Barros é professora do
metropolitano, analisando-se o comportamento par- Departamento de Ciências Sociais e
lamentar dos deputados estaduais eleitos na RMN. Política da Universidade do Estado
A proposta tem como base de sustentação teó- do Rio Grande do Norte (UERN).
rico-metodológica os trabalhos de Andrade (2015), Pesquisadora do Observatório
Ames (2003) e Carvalho (2003, 2009), que se funda- das Metrópoles - Núcleo Natal.
mentaram em verificar a agenda legislativa a partir de terezinhacabral@uern.br
seus redutos eleitorais. Após a etapa de mapeamento,
que permitiu perceber o grau de concentração dos Raquel Maria da Costa Silveira
votos, foram analisadas as emendas propostas pelos é professora do Departamento de
deputados mais votados na RMN nos anos de 2018 Políticas Públicas e do Programa de
e 2019, observando-se a atuação dos deputados em Pós-Graduação em Estudos Urbanos
relação à metrópole. e Regionais (UFRN). Pesquisadora
É importante destacar que o requisito para ser do Observatório das Metrópoles -
considerado um deputado metropolitano foi ter Núcleo Natal.
50% dos votos concentrados na RMN (CARVA- raquelmcsilveira@hotmail.com
LHO, 2010). Quanto ao recorte de análise das
emendas (2018-2019), os referidos anos foram es- Larissa Kevinlyn Martins Marinho
colhidos por se configurarem como os dois últimos é bacharel em Gestão de Políticas
exercícios finalizados, que contavam com a compo- Públicas pela Universidade Federal
sição mais completa da RMN, tendo em vista a in- do Rio Grande do Norte (UFRN).
serção do último município em 2019. A dificuldade Pesquisadora do Observatório
de acesso aos dados impossibilitou a análise de uma das Metrópoles - Núcleo Natal.
legislatura completa. larissammarinho123@gmail.com
capa
Fonte: Observatório das Metrópoles - Núcleo Natal, elaborado por Rodolfo Finatti e Brunno Silva (2019).
desta introdução e das conside-
rações finais, em duas seções. A
primeira delas apresenta a RMN,
sua origem, características e dispa-
ridades. Em seguida, parte-se para
a análise da geografia do voto no
contexto metropolitano.
O presente estudo contribuiu
para a análise acerca de uma ausên-
cia de identidade metropolitana,
não só entre os municípios mas
também em relação aos atores po-
líticos eleitos. As ações parlamen-
tares restringem-se à busca da base
eleitoral, com medidas que, em
alguns casos, configuram-se mais
como paroquiais do que em ações
coordenadas em benefício da me-
trópole.
A REGIÃO
METROPOLITANA
DE NATAL:
ELEMENTOS PARA
A COMPREENSÃO
DE SEUS ASPECTOS
POLÍTICO
E INSTITUCIONAL
De forma prévia à discussão em
torno da disputa eleitoral e à rela-
Mapa 1: Municípios da Região Metropolitana de Natal
ção com a gestão metropolitana, a partir do ano de inserção
torna-se importante caracterizar a
RMN a partir de seus elementos
político-institucionais.
A RMN, criada em 1997 por meio da Lei Com- acentuada ao longo da orla marítima e também com
plementar Estadual (LCE) nº 152, localiza-se na por- o município de Parnamirim. Além disso, apontaram
ção leste do Rio Grande do Norte (Região Nordeste a ocorrência de áreas com grande vulnerabilidade so-
do Brasil), especificamente em sua faixa de ocupação cial e notáveis diferenças no grau de integração dos
litorânea. Sua extensão equivale a 3.555,7 km², o que municípios.
representa aproximadamente 7% do território poti- Inicialmente, a RMN era composta por cinco
guar, comportando, aproximadamente, 1.577.072 municípios, sendo eles: Macaíba, Extremoz, São
habitantes (46% de toda a população do estado), de Gonçalo do Amarante, Ceará-Mirim, Parnamirim
acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geogra- e Natal. Atualmente, o arranjo conta com quinze
fia e Estatística (IBGE, 2016). entes, após serem acrescentados: São José de Mipibu,
Caracterizando tal região, de forma geral, Cle- Nísia Floresta (LCE n° 221/2002), Monte Alegre
mentino e Pessoa (2009) destacaram uma dinâmica (LCE nº 315/2005), Vera Cruz (LCE n° 391/2009),
demográfica com grandes desequilíbrios; grande fra- Maxaranguape (LCE n° 485/2013), Ielmo Marinho
gilidade ambiental; dinâmica sócio-habitacional sob (LCE nº 540/2015), Arês e Goianinha (LCE nº
pressão em decorrência da ocupação no entorno do 559/2015) e, recentemente, Bom Jesus (ALMEIDA
polo; e, no geral, com indícios de conurbação mais et al., 2019) (Mapa 1).
Taxa de Taxa de
Nº de habitantes IDHM (IBGE,
Município urbanização analfabetismo
(IBGE, 2020) 2010)
(IBGE, 2010) (IBGE, 2010)
Fonte: Elaborado pelas autoras (2020), a partir de dados do IBGE (2010, 2020).
A composição caracteriza-se por diferenciações por parte do governo estadual. Foi reativado com a
quanto ao porte populacional, taxa de urbanização e promulgação do Estatuto das Metrópoles pelo Go-
indicadores que evidenciam elementos relacionados verno Federal, em 2015, instituindo-se oito grupos
à qualidade de vida e ao acesso a políticas públicas temáticos de discussão metropolitana: resíduos só-
(Quadro 1). A RMN abrange municípios com faixa lidos; mobilidade metropolitana; segurança pública
populacional de 890 mil (Natal) a 10 mil habitantes e defesa social; saúde; educação, cultura e esportes;
(Bom Jesus). As taxas de urbanização também va- agricultura familiar; cidades inteligentes; e Estatuto
riam vastamente, tendo-se a capital (Natal) e Parna- da Metrópole. Porém, como destacaram Almeida et
mirim 100% urbanizados e Ielmo Marinho com taxa al. (2019), as discussões ocorridas em tais grupos não
de 12% de urbanização (IBGE, 2010). Há variação, foram capazes de promover a governança metropo-
ainda, quanto ao acesso a serviços e políticas, aqui litana. Em 2020, destacou-se a ocorrência de nova
demonstrada a partir do IDHM e da taxa de analfa- tentativa de reativação por parte do governo estadu-
betismo. O IDHM varia entre 0,766 em Parnamirim al. Contudo, as atividades não tiveram continuidade
e 0,55 em Ielmo Marinho. A taxa de analfabetismo, em virtude da pandemia do novo coronavírus.
por sua vez, apresentava-se em 32% em Bom Jesus e Para Clementino (2018), na RMN, o planeja-
7,6% em Parnamirim (IBGE, 2010). mento metropolitano e a busca pela implementação
No campo político-institucional, de forma es- de ações comuns entre os entes metropolitanos ainda
pecífica, destacam-se entraves à consolidação da go- podem ser descritos como frágeis. A autora cita casos
vernança metropolitana (ALMEIDA et al., 2015). que comprovam a afirmação, a exemplo da criação
São pontuais as estratégias de cooperação e tímida a do Parlamento Comum enquanto uma movimenta-
atuação estadual nas ações de coordenação. A prin- ção por parte do Poder Legislativo, em 2001, em vir-
cipal ferramenta de gestão metropolitana do esta- tude da ausência de iniciativas por parte do governo
do se constitui no Conselho de Desenvolvimento estadual.
Metropolitano de Natal (CDMN), que tem como Ainda, Silva et al. (2018) apresentam um se-
função promover a integração dos serviços comuns gundo exemplo da ausência de coordenação: o sur-
da RMN. O conselho, criado em 1997, foi desativa- gimento de debates no Fórum dos Secretários de
do, em 2010, em virtude da ausência de cooperação Planejamento da RMN, capitaneado pelo município
dos gestores municipais acerca da discussão metro- de Natal, que funcionou de maneira informal, em
politana, bem como pela ausência de coordenação 2016/2017, como canal para o estabelecimento de
diálogo entre os entes municipais. Tais exemplos de- mica política de representação poderá se traduzir em
monstram que não existe experiência metropolitana obstáculos para a mobilização de atores políticos do
em Natal, mas sim uma legislação que apresenta uma Legislativo em torno de agendas metropolitanas. A
situação política reveladora das dificuldades de sua partir das discussões realizadas pelo autor, é possível
implementação. inferir que o estudo da geografia do voto na metrópo-
O fato é que, em um recorte metropolitano, o le se torna fundamental, na medida em que o fortale-
planejamento e a implementação compartilhada de cimento da base política, administrativa e financeira
ações e estratégias são essenciais para se atingir a so- das metrópoles por vezes é encarado como uma “con-
lução de problemas comuns. Os estudos referidos corrência por recursos públicos e mesmo como uma
dão conta de demonstrar que o planejamento com- ameaça à autoridade dos governos municipais e es-
partilhado não se concretiza no contexto da RMN, taduais sobre seus territórios”. Nesses espaços, deve-
prevalecendo a existência de uma discreta articulação riam “ser discutidas e regulamentadas as propostas de
intrametropolitana entre os executivos municipais gestão de problemas metropolitanos com uma base
(SILVA, 2019). Contudo, poucas são as análises que jurídica sólida, com legitimidade político-social e ba-
revelam a atuação do Legislativo quanto à temática seadas em arranjos institucionais de cooperação in-
metropolitana, destacando-se a atuação do Parlamen- termunicipal sustentáveis no longo prazo”. Contudo,
to Comum, formado por vereadores dos municípios, tal construção requer um debate político, sugerindo,
instância que se encontra atualmente desativada. A à luz de Carvalho e Corrêa (2012), que o dilema da
atuação do Legislativo estadual, ator responsável pela representação metropolitana deve ser analisado con-
aprovação da inserção de novos municípios na RMN, siderando-se o debate político-eleitoral.
ainda requer análises. Carvalho e Ribeiro (2013 apud PADILHA, 2020)
destacam que, nesse contexto, deputados de base elei-
toral na metrópole seriam os representantes políticos
A GEOGRAFIA DO VOTO NA RMN com mais incentivos para abordar temas metropoli-
tanos. Porém, tal raciocínio encontra, pelo menos,
Uma das possíveis formas de estudo do voto consi- duas limitações. A primeira é a lacuna da representa-
dera o território como unidade de análise, buscando tividade das cidades metropolitanas nas assembleias
compreender se há associação entre o percentual de legislativas. A segunda diz respeito às gramáticas po-
votos de um candidato e os atributos de determina- líticas distintas que regulam o comportamento polí-
dos territórios (regiões, estados e municípios) (SAN- tico nas RMs, já que o polo caracteriza-se pelo voto
TOS, 2015). de legenda e parte dos municípios por uma disputa
Conforme Santos (2015, p. 2), “os estudos sobre pouco competitiva. Assim caracteriza o autor:
geografia do voto tentam verificar padrões na distri-
buição dos votos em uma eleição, de modo a desco-
O segundo obstáculo concerne ao comportamen-
brir se existe alguma associação entre a votação que
to político das metrópoles, que seria regulado por
determinado candidato, partido ou coligação recebeu
gramáticas políticas distintas, em que a capital seria
e certos atributos territoriais”. Assim, destacam-se es-
marcada por uma disputa mais competitiva e po-
tudos sobre áreas de concentração de votos e aspectos
litizada, com maior número de votos em legendas
socioeconômicos e, igualmente, análises acerca do
partidárias, enquanto a periferia metropolitana se
perfil do eleitorado e das bases eleitorais dos candi-
caracterizaria por uma disputa pouco competitiva,
datos relacionadas com os sistemas e as legislações
marcada pelo voto personalizado, em que os repre-
eleitorais.
sentantes metropolitanos tendem a obter a maioria
Nesse sentido, Carvalho (2003) apresenta um
de seus votos em apenas um município e, por essa
estudo de destaque no Brasil. A partir de projetos
razão, acabam voltando-se a assuntos locais e paro-
de lei, requerimentos de informação, discursos em
quiais em detrimento de temas que viabilizariam
plenário e emendas orçamentárias, o autor articula a
um programa metropolitano com foco na resolu-
geografia do voto com a conexão eleitoral, estabele-
ção de problemas comuns, gerando o que Carva-
cendo a relação entre os parlamentares e o eleitorado.
lho (2009) chamou de “paroquialismo metropoli-
O referido autor se baseia no trabalho desenvolvido
tano” (PADILHA, 2020, p. 219).
por Ames (2003), o qual sinaliza que as atividades
dos legisladores estão relacionadas com seus redutos
eleitorais, já que sua reeleição é o seu objetivo. Tal limitação guardaria aproximação com o “pa-
Recentemente, de forma específica à esfera metro- roquialismo metropolitano” destacado por Carvalho
politana, Padilha (2020, p. 218) estuda como a dinâ- (2009), o qual é responsável pela ausência de temas
concentrar uma quantidade Fonte: Elaborado pelas autoras (2020), a partir de dados do TSE (2014).
significativa de eleitores no Tabela 1:
Eleitores
estado do Rio Grande do da Região
Norte. Somando a capital aos seus demais municí- namento ao nicho eleitoral dos ganhadores, estabe- Metropolitana
de Natal
pios, concentrava, em 2014, 39% dos eleitores do lecendo uma conexão assentada entre os deputados (2014 e 2020)
estado e, em 2020, 42% (Tabela 1). que representam eleitoralmente aquela localidade e
Como já ressaltamos, a geografia do voto con- os seus munícipes. Isso porque existe todo o interesse
templa diferentes métodos e debates. A opção aqui na maximização dos seus esforços para viabilizar sua
escolhida, que vai além de verificar as bases eleitorais, sobrevivência política.
consiste em estabelecer a conexão das votações com Nesse pleito, foram reconduzidos aos cargos 67%
as práticas legislativas. No cenário proposto, percebe- dos deputados, a bancada partidária em maior nú-
mos realidades eleitorais muito diversas: desde muni- mero foi organizada com o PMDB, levando 5 cadei-
cípios com pouco mais de 8 mil eleitores até pouco ras; o PROS e PSD, respectivamente, com 4 e 3; e
mais de meio milhão da capital. Tal cenário traduz PSB e DEM com 2 assentos cada. A votação mínima
um ambiente metropolitano desafiador para as nos- para deputado foi de 20.140 e a maior foi de 80.249
sas análises, tanto da perspectiva social e econômica, mil votos, revelando uma disparidade no número de
já trabalhada por diferentes autores (CLEMENTI- votos para obtenção do mandato (Quadro 2).
NO; FERREIRA, 2015; CLEMENTINO, 2019), Quanto à dicotomia da disputa política entre
como agora da dimensão política. as áreas rurais e as áreas urbanas, nas eleições 2014,
A RMN, no universo eleitoral de 2014, possuía foi possível evidenciar que 6 municípios, atualmen-
2.728 seções eleitorais distribuídas em 579 locais de te componentes da RMN, concentravam a votação
votação nos seus 15 municípios, com um total de na área rural, sendo eles: Ielmo Marinho, Bom Je-
926.608 eleitores que, além de decidirem os cargos sus, Extremoz, Maxaranguape, Nísia Floresta e Vera
para presidente, senador e deputado federal, tiveram Cruz.
a opção de 237 candidatos pleiteando as 24 vagas Os deputados estaduais sabem da importância de
para o Legislativo estadual. A compreensão eleitoral serem votados nos municípios da RMN – não é à toa
é importante para visualizar os redutos de votos em que todos os 24 eleitos tiveram votos computados na
uma disputa competitiva, sabendo que o voto perso- metrópole. Por exemplo, no município de Goiani-
nalizado conduz para uma ação política com direcio- nha, a votação dos candidatos eleitos alcançou 92%
a RMN, embora não represente a totalidade dos ca- numa atitude puramente eleitoreira. Parlamentares
sos. Conforme a autora, observando dados anteriores elaboram projeto de lei e encaminham à Assem-
às eleições de 2006, “a grande maioria das proposi- bleia, propondo a inclusão de novos municípios
ções dos deputados, na legislatura 2003-2006, este- na RMN em troca de apoio eleitoral (votos) dos
ve voltada para as regiões de atuação dos deputados, prefeitos nas eleições proporcionais, embora o ser
aquelas regiões onde estes obtêm o maior percentual metropolitano não tenha muita importância para o
de votação” (ANDRADE, 2015, p. 408). Naquele município (...) (ANDRADE, 2015, p. 410).
período, a atuação do parlamentar denotava que a
maior parte dos recursos era concentrada no redu- As duas últimas mudanças propostas na composi-
to eleitoral. Para ela, tal comportamento significava ção da RMN foram vetadas pelo governo estadual em
“clara opção por um tipo de comportamento essen- virtude da inexistência de critérios técnicos definidos
cialmente paroquialista”. Além disso, apontava para a por lei. Contudo, a Assembleia derrubou os vetos e
ausência de uma visão mais global com o estado do seguiu com a ampliação da RMN nos últimos anos,
RN e a ausência de um compromisso com um proje- com a inclusão de quatro municípios entre 2015 e
to de desenvolvimento integrado. 2019 (Mapa 1), sendo um deles Ielmo Marinho, o
No caso dos deputados eleitos, principalmente qual possui taxa de urbanização de 12% (Quadro
com votos metropolitanos, o comportamento se re- 1). Tal movimento, para Andrade (2015, p.410), é
petia. Para Andrade (2015), os resultados apontavam responsável por desconfigurar a RMN, “aumentando
para um alheamento com a questão geral da região cada vez mais o problema da ausência de uma iden-
metropolitana, sendo possível caracterizar o com- tidade metropolitana que dá coesão às ações dos re-
portamento legislativo como altamente paroquialista presentantes dos municípios que compõem a região”.
(ANDRADE, 2015). Para ela, como aqui também se evidenciou, a es-
Tal cenário se repete a partir das análises das sência do comportamento dos parlamentares está no
emendas de 2018 e 2019. Os deputados com maior problema de origem da RMN: “o município de Natal
votação na RMN destinaram recursos via emendas, e seu entorno ainda não se configuram como espaço
mas como reflexo de sua alta votação em alguns mu- caracteristicamente metropolitano, e isso se reflete na
nicípios metropolitanos. Não foi verificada uma dis- ação dos parlamentares” (ANDRADE, 2015, p. 410-
tribuição entre os municípios metropolitanos ou a 411). A atualização das análises apontou a existência
existência de uma emenda voltada ao fortalecimento de um ciclo, na medida em que a origem e compo-
do planejamento e gestão da região, mas sim desti- sição da RMN, de forma desconectada de critérios
nada a entidades filantrópicas, serviços ou políticas objetivos, influenciam na atuação parlamentar e esta,
públicas específicas em um único município. por sua vez, é incapaz de fomentar a criação de uma
Como demonstrado, o deputado Dison Lis- identidade metropolitana que possibilite o desen-
boa foi o parlamentar que mais concentrou sua atu- volvimento de ações efetivamente compartilhadas,
ação em municípios da RMN, especificamente em mantendo-se o sentido localista da atuação.
sua base eleitoral (Goianinha). Vale ressaltar que o
referido legislador foi responsável pelo projeto de lei
que inseriu Goianinha e Arês na RMN, a despeito de CONSIDERAÇÕES FINAIS
possuírem apenas 68% e 62% do território urbaniza-
do. Tal fator corrobora com as afirmações de Andrade A tônica dos sistemas de representação em uma de-
(2015), ao indicar que: mocracia é a relação entre a votação e atuação par-
lamentar. No caso dos deputados eleitos com mais
O alheamento dos deputados quanto à questão de 50% de sua votação na Região Metropolitana de
metropolitana (existência de problemas comuns a Natal, esperava-se que sua votação expressiva neste
municípios que estão integrados a Natal do ponto território se transformasse em ações nessa região, por
de vista funcional) pode ser comprovado pelo com- meio de políticas públicas financiadas via emendas
portamento da Assembleia nas diversas mudanças parlamentares e que buscassem fortalecer o planeja-
aprovadas pela casa, na composição da RMN, sem mento e a gestão da RMN.
qualquer discussão ou compromisso acerca dos No entanto, os resultados aqui apresentados
problemas que podem ser gerados a partir dessas apontaram uma distribuição da atuação parlamen-
mudanças. Vale chamar a atenção aqui para o fato tar para diferentes localidades do território potiguar.
de que a maioria dessas mudanças (introdução Apesar da predominância do voto na capital por parte
de novos municípios na RMN) é aprovada por de cinco deputados, a atuação legislativa destes apre-
unanimidade pelo conjunto dos parlamentares, sentou distribuição de ações em outros municípios,
Resumo O presente artigo tem como objetivo divulgar excertos da pesquisa de mestrado
realizada no Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal
de Minas Gerais, que buscou compreender o relacionamento entre a produção do
espaço urbano e a produção da arte urbana nas cidades contemporâneas. Além de
uma revisão teórica, a discussão apresentada é subsidiada pela análise de três casos
latino-americanos (Medellín, na Colômbia; São Paulo e Belo Horizonte, no Brasil)
que colaboram para a construção do argumento de que a arte consegue denunciar as
contradições resultantes da produção do espaço, ao mesmo tempo que as reações a
ela aprofundam tais contradições.
Produção do espaço
Abstract This essay aims to disseminate excerpts from the master’s research carried out in
the Postgraduate Program in Geography at the Federal University of Minas Gerais,
which sought to understand the relationship between the production of urban
space and the production of urban art in contemporary cities. In addition to a
theoretical review, the discussion presented is supported by the analysis of three
Latin American cases (Medellín, in Colombia; São Paulo and Belo Horizonte, in Brazil)
that contribute to the construction of the argument that art is able to denounce the
resulting contradictions of the production of space while reactions to art deepen such
contradictions.
Space production
artigos
garante um consumo e um acesso quase universais, tal, é uma arte política ao redor da qual um campo
se considerarmos como amostra os transeuntes de de tensões se articula, através de conflitos e coopera-
determinada fração da cidade. Essas obras, então, são ções que agenciam a própria (re)produção do espaço
perigosas, pois geram discussão, apresentam iden- urbano.
tidades, narram o contexto da sociedade, dialogam A cultura é uma produção histórica e, assim, as
com as massas, subvertem (ou buscam subverter a análises dos sistemas culturais dependem das condi-
ordem) sendo produzidas em espaços de amplo con- ções sócio-históricas em que se inserem. As culturas
sumo (CASTELLANOS, 2017). Por conta desse pe- nascem de relações sociais que são desiguais. Elas
rigo e do alto interesse no controle da paisagem e dos revelam, portanto, conflitos e desenvolvem tensões.
espaços públicos, um campo de tensões se estabelece Em um determinado espaço social, há uma hierar-
ao redor da arte de rua nas cidades contemporâneas. quia cultural, gerando dominações e resistências
O graffiti, o pixo e os murais são essencialmente (CUCHE & MAHLER, 1999). Considerando esse
urbanos por seus propósitos e ambições relacionados aspecto, é notável que há uma cultura marginal, pro-
à revolução e à contestação da estrutura. Mais do que duzida por grupos sociais subalternos e fabricada no
urbanos, são frutos da sociedade capitalista e da se- cotidiano. As manifestações estudadas compõem o
gregação espacial, gerada por essa sociedade nas cida- grupo de culturas entendidas como culturas margi-
des. Essas expressões são um fenômeno urbano, uma nais.
forma de protesto político e expressam, em essência, Desde o início do século XXI, a arte de rua vem
territorialidade (PENNACHIN, 2011). compondo a paisagem urbana em diferentes cidades
Em contextos históricos anteriores, como o Maio ao redor do mundo. Inicialmente, essa prática era ile-
de 681, ou até mesmo os eventos que atravessaram gal, mas vem ganhando popularidade e aceitação, o
a derrubada do Muro de Berlim, essas expressões já que é evidenciado pelos enormes festivais de arte de
eram observáveis e sempre relacionadas às questões rua, por exemplo (BENGESTEN, 2016). Contudo,
políticas ou identitárias, como é o caso de diferen- a prática ainda é associada ao vandalismo, criminali-
tes gangues ao redor do mundo. Hoje, a arte de rua zada em diversos contextos urbanos, como será apre-
é atração turística em diferentes cidades do planeta, sentado nos casos de análise.
incluindo os três casos de análise, compondo rotei- O graffiti é um elemento da cultura hip-hop, que
ros de visita para contemplar os murais em grandes tem relação com o pop art e não tem ligação direta
metrópoles. Seja como for a percepção, o espectador com o muralismo, ainda que seja possível encontrar
atravessado por essas obras tem reações de admiração algumas semelhanças entre os movimentos. Esta
ou indignação todas as vezes que não as ignora. Já as cultura, o hip-hop, agrega uma série de manifesta-
obras, no que lhe concernem, quando estão nas ruas, ções historicamente marginalizadas, como o rap e o
questionam o espaço pela sua natureza transgressora, graffiti, que, por sua vez, têm origem nas expressões
garantindo reconhecimento a grupos marginaliza- das favelas e periferias como forma de contestar e
dos. Tal reconhecimento se dá a partir das narrativas desequilibrar o consenso e a ordem imposta. As ma-
e pela projeção dos artistas, que levam suas ideologias nifestações culturais do hip-hop configuram formas
e conseguem denunciar as contradições da socieda- de apropriação e ocupação do espaço urbano que
de em circuitos para além das periferias das cidades. promovem uma espécie de propaganda subcultural
Nesse sentido, é possível destacar que a arte de rua, e, recentemente, vêm sendo incorporadas ao circuito
então, é um fenômeno fundamentalmente urbano, oficial da arte e cooptadas pelo mercado (PENNA-
que contesta a lógica imposta na produção do espa- CHIN, 2011). Essa cooptação da arte de rua pelo
ço na cidade neoliberal. Essas manifestações, no que mercado e pelo circuito oficial da arte é uma violenta
lhes concerne, conseguem provocar dissenso e, por opressão contra as narrativas presentes nas obras, que
confrontam tais circuitos, mas, simultaneamente,
1 O Maio de 68 foi um movimento consistido essencialmente promovem projeções a agentes historicamente su-
de protestos organizados por parisienses, desestabilizando a balternizados. O pixo originou-se de uma cultura
República Francesa e gerando uma repercussão mundial. Esse convergente entre o hip-hop e o punk, carregando
evento não foi isolado do contexto mundial de propostas re-
influências dos dois (PIXO, 2009). Ambos valem-
volucionárias, desde, pelo menos, a Guerra do Vietnã, passan-
do pelo assassinato de Martin Luther King, pela Primavera de -se da paisagem urbana para apresentar narrativas e
Praga e pelas resistências às ditaduras latino-americanas, até denunciar as contradições resultantes da produção
a luta pela descolonização da Argélia (BERNARDO, 2008). social do espaço.
Este foi um marco importante que contribuiu para o presente Ainda que sejam cooptadas pelo circuito oficial
debate, pois, a partir daí, torna-se possível a ressignificação
da ocupação dos espaços, gerando ânimo para intervenções
da arte e pelo mercado, a presença dessas obras nas
e para a criação de novos circuitos de arte (BERNARDO, cidades continua a confrontar até mesmo a arquite-
2008). tura e o planejamento das cidades. O planejador, o
urbanista, o arquiteto e o engenheiro não necessaria- espaço na contemporaneidade. A arte de rua é uma
mente preveem que as estruturas serão suporte para subcultura que se porta como um fenômeno essen-
diferentes intervenções quando as concebem. O que cialmente urbano e atravessado, tal como o próprio
fica evidenciado é que a arte de rua confronta a insti- espaço, por relações pautadas em conflitos e coopera-
tucionalidade hegemônica em que a arte e a política ção, o que estabelece um campo de tensões ao redor
se inserem, bem como a lógica de produção capitalis- da mesma. Neste campo de tensões, é instaurado um
ta do espaço urbano. Por conta desse enfrentamento, simulacro das relações sociais de poder e produção,
a arte de rua está constantemente exposta a riscos – no qual determinados agentes resistem à ordem he-
de marginalização, de apagamento, de condenação gemônica e outros a impõem.
aos seus executores, por exemplo. Para estudar as subculturas, assim como para
No interior das periferias, há movimentações e estudar o espaço, devemos admitir que o poder é
produções da ordem da cultura cujas reciprocida- expresso e mantido na (re)produção de ambos, exis-
des e abrangências reescrevem o que se considera tindo, portanto, culturas dominantes e dominadas
“à margem” (PALLAMIN, 2017). Nesse sentido, é (SERPA, 2007). Essa dominação cultural se faz in-
fundamental perceber que as culturas marginaliza- timamente ligada às relações de dominação expres-
das, ou melhor, as subculturas, nos termos de Cos- sas nas relações sociais de produção que atuam na
grove (2012) e Serpa (2007), são responsáveis pela reprodução do espaço urbano. As subculturas rece-
ressignificação da subalternidade imposta a agentes bem uma distinção entre si a partir de Serpa (2007),
marginalizados na metrópole. Tais subculturas, que que devem ser consideradas neste trabalho. Para o
se expressam em canções, vestimentas, pixações e ou- autor, têm-se subculturas residuais – aquelas que res-
tros, compõem comportamentos que se apropriam tam do passado –, as emergentes – que antecipam o
do meio urbano e do espaço público, gerando um futuro – e, finalmente, as excluídas: sendo ativa ou
agenciamento coletivo dos sentidos sobre a própria passivamente suprimidas. Nesse sentido, as culturas
margem (BERTELLI, 2017). É fundamental ler as periféricas são suprimidas, e muitas delas produzem
marginalidades sociais em sua totalidade, ou seja, não narrativas na ordem da utopia, antecipando reformas
admiti-las como o negativo do centro, uma vez que e revoluções.
o próprio processo de periferização foi acompanhado Os processos de apropriação do espaço público
da geração de profundos estigmas sobre as populações são condicionados por representações segregacionis-
pobres, periféricas e faveladas (BERTELLI, 2017). A tas, que mediam processos de territorialização de di-
arte de rua nos ajuda a realizar esse exercício de lei- ferentes grupos sociais no próprio espaço (SERPA,
tura da periferia pela própria periferia e, mais do que 2007). Nesse sentido, avaliar as possibilidades e a
isso, a operar uma crítica à produção do espaço, uma forma com a qual a arte de rua se apropria do espaço
vez que as narrativas presentes nas obras conseguem abre portas para uma importante análise. Isso por-
denunciar aspectos sociais frequentemente ignorados que, uma vez que a arte de rua ocupa o espaço em
no cotidiano. diferentes formas (corpo na produção, obra e narra-
Por vezes, o conteúdo das obras pode gerar pro- tiva), essas formas passam a compor a paisagem ur-
fundo incômodo nos espectadores por diferentes bana e o escopo de representações que nela se fazem
motivos. Isso acontece em um dos casos de análise, presentes. A partir desse processo, a arte de rua passa
que será apresentado à frente, e é crucial ter em men- a compor um escopo de movimentos de territoriali-
te a necessidade da crítica da sociedade e do espaço zação dos grupos, atravessado por relações de poder e
presente nas obras e as agências que elas produzem. dominação em todos os tempos da obra (concepção,
A arte de periferia, a arte marginal, de rua, é fre- produção e exposição).
quentemente deflagrada e marginalizada, ocorrendo Dessa forma, é evidenciado que a arte da rua, si-
num sentido de revolta, por isso, guarda em si um multaneamente, reforça e denuncia as mazelas sociais
potencial de dissenso frente às ordens postas – a so- presentes na produção e na reprodução do espaço ur-
cial, a econômica, a política e a cultural. Isso ocorre, bano. Reforça, porque os agentes estabelecem rela-
sumariamente, devido ao fato de que a relação entre ções de conflito que, cada vez mais, marginalizam e
os agentes marginalizados e os outros espaços sociais criminalizam os artistas que já são estruturalmente
que não a periferia é frequente na base da elaboração marginalizados e subalternizados nas cidades. Isso
temática da arte de rua e da arte de periferia (FEL- ocorre até mesmo com artistas que não são estrutu-
TRAN, 2017). ralmente marginalizados nas cidades contemporâne-
A forma com a qual as representações se colo- as. Ao mesmo tempo, denuncia as mazelas sociais,
cam no espaço público evidenciam as contradições através das narrativas. A arte de rua carrega um enor-
e a marginalidade existente na reprodução social do me potencial de dissenso que, no que lhe concerne,
pode influenciar na transformação da própria pro- análises fílmicas, foram analisados os filmes PIXO
dução do espaço a partir dos agentes que por ela são (2009) e Cidade Cinza (2013). Cada um dos exem-
tocados. O processo de marginalização é denunciado plos contou com suas particularidades, inclusive nas
através das narrativas e retratos do cotidiano dos gru- questões de pesquisa postas aos mesmos. Nesse sen-
pos subalternizados presentes em obras de arte de rua tido, as verificações obtidas a partir de cada um deles
na metrópole. colaboram para a construção do argumento de dife-
A partir das noções e definições a respeito do es- rentes formas.
paço público, é importante destacar o fato de que Em Medellín, na Colômbia, foi possível verifi-
este é concebido como o local de encontro entre dife- car que a presença da arte no espaço público gera
rentes classes e grupos e é onde a política e o dissenso uma dualidade importante para a compreensão desse
mais facilmente acontecem. Estudá-lo na geografia é espaço. A análise foi feita a partir da Comuna 13,
fundamental, tendo em vista que a geografia humana na cidade colombiana. Foi verificado o fato de que
se ocupa da cultura e dos simbolismos no espaço por a presença da arte no espaço público no contexto da
meio do estudo, essencialmente da paisagem. Já no Comuna consegue promover agitação e propaganda,
que tange o estudo das representações, evidencia-se o configurando o que se entende por arte ativista, além
fato de que elas conseguem abarcar grandes contra- de ser responsável pela consolidação da memória e
dições e dualidades, além de serem produto da mente identidade locais. De tal modo, verifica-se que a arte
humana e da divisão do trabalho. Estudar as repre- consegue mediar as relações entre os agentes, sejam
sentações na geografia é fundamental, tendo em vista eles moradores ou visitantes, e o próprio espaço –
que elas são produzidas e produzem o espaço. Nas e os outros tempos e marcas deixados no espaço.
seções subsequentes, serão discutidas de que forma as Contudo, a presença das obras não consegue garan-
apresentações feitas previamente são observadas nos tir cidadania, por exemplo, mas sim promover um
casos de análise, além das contribuições à geografia e aprofundamento dos processos nefastos da produção
aos estudos da urbe. do espaço, como a favelização e a espetacularização
da pobreza, transformando o sofrimento em lucro.
Assim, fica verificado que as obras conseguem de-
CASOS DE ANÁLISE nunciar as contradições do passado e do presente da
Comuna, mas, em simultâneo, geram lucro na forma
A partir das elaborações apresentadas, foram analisa- de turismo e sofrimento por meio da memória, apro-
dos diferentes contextos urbanos para colaborar com fundando os padecimentos resultantes da produção
a construção do pretendido argumento. A partir de do espaço nesse contexto.
entrevistas, grupos focais e análises documentais e Já na análise a respeito de São Paulo também foi
fílmicas, as cidades de Medellín, na Colômbia, São verificado o fato de que os artistas realizam esforços
Paulo e Belo Horizonte, no Brasil, foram analisadas, para a promoção do dissenso, por meio da denún-
e, à frente, os principais resultados serão apresen- cia da exclusão e de outros problemas resultantes da
tados. No total, foram coletados 17 depoimentos, produção do espaço, expressos pelas narrativas pre-
sendo eles: uma entrevista semiestruturada com um sentes em muitas das obras. Também foi verificado
guia de Medellín, realizada em 2020, de forma re- que a reação das massas, do Estado e do mercado
mota; nove entrevistas estruturadas realizadas com em relação à arte de rua gera um aprofundamento
artistas da cidade de São Paulo por meio do Google da exclusão, analisado a partir de casos de referên-
Formulários, lançado em redes sociais com amplo cia para a cidade. No que diz respeito ao mercado,
acesso por artistas de rua da cidade; três depoimen- é notado um esforço para cooptar as obras de arte,
tos colhidos em grupo focal com artistas da cidade despolitizando-as e fazendo-as servir à publicidade.
de São Paulo, na plataforma Google Meet, a partir de Sobre o Estado, é notada a busca pelo controle dos
indicações de artistas, atendendo ao snowball method; artistas e pelo apagamento de obras que não agradam
uma entrevista com uma representante da Prefeitura determinados agentes, além de aumentar a segrega-
de São Paulo, contatada por meio do portal da pre- ção por meio de legislações e editais de fomento à
feitura; três entrevistas estruturadas com moradores, arte. Sobre os editais, deve-se destacar que passam
artistas e guias turísticos da Comuna 13, em Medel- por um processo de encriptação, excluindo agentes
lín, por meio do Google Formulários, divulgado em da possibilidade de concorrer pelo financiamento de
redes sociais de amplo acesso entre os moradores da seu trabalho, por exemplo.
Comuna. Os dados documentais foram coletados a Finalmente, no caso de Belo Horizonte, olhan-
partir de jornais e redes sociais, além de legislações do, em específico, para o Circuito Urbano de Arte,
específicas que tratam do controle da paisagem. Nas foi possível notar a presença do racismo e de outros
sintomas da exclusão em meio ao processo de crimi- o conteúdo de obras de arte na paisagem urbana. Este
nalização de artistas e produtores culturais, com a controle, ou seja, controlar os agentes produtores da
premissa de criminalizar práticas de pixação, mesmo arte e responsáveis pelas manifestações artísticas nas
que outras obras do mesmo festival tenham a estéti- cidades, pode ser compreendido como um sintoma
ca do pixo presente e não tenham sido perseguidas. da disputa que se coloca ao redor do controle da pró-
Belo Horizonte é palco de casos emblemáticos da pria paisagem na cidade de São Paulo. Há um eviden-
promoção do dissenso e da perseguição de artistas da te campo de tensões, articulado a partir de diferentes
periferia e contribuiu intensamente para a solidifica- agentes, que se estabelece por meio de disputas pelo
ção do argumento apresentado neste trabalho. Sobre controle da paisagem urbana. Tal campo reflete a ex-
este caso foi verificada a importância do tamanho das clusão e a marginalidade presentes na própria cidade.
obras e do fato de estarem no espaço público para a Finalmente, no caso de Belo Horizonte, este campo
geração do dissenso e das reações verificadas a partir de disputa se materializa nas perseguições a obras de
de citadinos e da polícia civil. De tal modo, é ob- arte do Circuito Urbano de Arte, a partir de tentativas
servada a possibilidade de denunciar as contradições de criminalização de artistas periféricos e da própria
sociais pelas obras, mas, em simultâneo, são geradas estética da periferia. Tal movimento reforça, ainda, o
circunstâncias que dizem da subalternidade imposta argumento de que a resposta da sociedade, do Estado
a determinados agentes. e do mercado à arte de rua é extremamente relacio-
Além disso, alguns pontos levantados a partir da nada aos sintomas da própria produção do espaço,
revisão teórica se confirmaram na pesquisa empírica tendo em vista que reproduz a exclusão e a margina-
realizada. Eles tangem o fato de que a arte colabora lidade às quais as pessoas das periferias são impostas,
para a transformação do espaço urbano em um terri- colaborando para a geração de uma circunstância de
tório estratégico, atravessado por disputas do contro- subalternidade.
le da paisagem; o fato de que a arte visual na cidade Já a contestação da ordem neoliberal das cidades
consegue contestar a ordem imposta e denunciar as se dá tanto pelas narrativas que desestabilizam o coti-
contradições resultantes da produção do espaço; o diano quanto pelo fato de imprimir na paisagem ele-
fato de que a projeção da arte de rua nas cidades vem mentos não planejados por aqueles que concebem o
se alterando com grandes festivais e apoio do poder espaço. No caso de São Paulo, por exemplo, os artis-
público e é cooptada pelo mercado, em vez de ser tas citaram, no grupo focal realizado, a importância
constantemente marginalizada; e que a arte de rua da obra com escrito “olhai por nóis [sic]” no Pátio do
passa a ser um importante movimento de territo- Colégio (ou Patteo do Collegio). A obra teve reper-
rialização de grupos subalternizados e excluídos nas cussão crítica a partir das classes médias, que aponta-
metrópoles. ram ser um “crime contra a cidade” e alegaram que
Devido ao potencial de imprimir narrativas e os produtores “não sabem escrever direito”. A grande
interromper o cotidiano nas cidades, os três casos imprensa fez repercutir o discurso de que o ocorrido
apontam para configurações de um campo de tensões é uma forma de vandalismo e não de protesto. O Pá-
ao redor da arte de rua, com disputas pelo controle tio do Colégio é o marco inicial da construção da ci-
da paisagem. No caso de Medellín, pode-se afirmar dade de São Paulo e foi onde, historicamente, se deu
que o turismo é uma das principais fontes de renda início a catequese dos nativos. Diariamente, no Pátio,
dos moradores da Comuna. Tal turismo é mantido a concentram-se diversos moradores de rua, amparados
partir do chamado tour de realidade, ou reality tour por grupos assistencialistas, que levam comida e rou-
(FREIRE-MEDEIROS, 2007). A proposta desse pa, por exemplo. Independentemente de quais sejam
tipo de tour, que inclui visitas a favelas e vilas no Sul as ações geradas pelo impacto da obra, foi verificado
Global, promove emoções intensas e extremas aos tu- pelos artistas e a partir da consulta em veículos mi-
ristas, na busca pela promoção de uma comoção cole- diáticos que certamente gerou um “incômodo”, ou
tiva frente à pobreza. De tal modo, a manutenção da melhor, uma interrupção na ordem do sensível, que
paisagem e das obras que remetem à pobreza é uma fizesse questionar essa representação no espaço públi-
violenta glamourização da pobreza, do sofrimento e co da cidade de São Paulo. Os artistas apontaram que
da margem, que coloca a favela como algo exótico, a obra questiona a religião e a dominação de todo o
em vez de urgente, associando o resultado nefasto da país e que a repressão sofrida pelos artistas reflete a
produção capitalista do espaço a uma forma de lazer estrutura da produção do espaço brasileiro. Contu-
e entretenimento na contemporaneidade. do, os artistas destacam que nem todos conseguem
Já no caso de São Paulo, a disputa pelo controle acessar as mensagens que querem imprimir nas obras,
da paisagem se manifesta nas tentativas do Estado em o que é um desafio para os próprios artistas que se
estabelecer um controle dos mesmos, a partir de pro- comprometem com o viés político da ação artística.
cessos de catalogação e legislações que incidem sobre A cooptação artística também é notada por pro-
cessos de fomento a festivais e ao turismo, tanto o Também foi relevante, ao longo da pesquisa, elu-
turismo de realidade quanto o turismo convencional. cidar a importância das relações entre dissenso, polí-
Nos três casos o turismo faz-se um importante fator tica e as representações para a geografia e os estudos
para a existência autorizada da arte nas localidades da produção do espaço. Nesse sentido, deve-se desta-
estudadas e, em simultâneo, um fator que colabora car o valor da manutenção das possibilidades de dis-
para o esvaziamento de agência potencial das obras. senso para a consolidação de processos de produção
No entanto, independentemente da cooptação, a de espaço, que não dizem da exclusão sistemática nas
arte faz-se um importante instrumento de territoria- cidades neoliberais. Finalmente, é verificada a im-
lização dos agentes subalternizados nas metrópoles. portância dos estudos da paisagem na geografia ur-
De acordo com entrevistados, a arte de rua reflete bana, no que diz respeito à percepção espacial, uma
a desigualdade e a exclusão presentes na sociedade vez que ela incide diretamente na própria produção
brasileira em dois movimentos diferentes. Eles desta- do espaço graças ao potencial de desestabilizar a or-
cam que as obras “levam o olhar” para um lugar, ou dem material e sensível vigentes.
seja, apontam e denunciam problemas da sociedade No que tange à geografia, alguns aspectos impor-
contemporânea. Nesse sentido, portanto, é notada tantes deste trabalho colaboram para a compreensão
uma confluência entre o argumento construído e a da importância dos estudos das práticas espaciais da
realidade verificada: as narrativas das obras contes- arte para realizar uma leitura mais acurada do espa-
tam a realidade da produção do espaço e algumas das ço. Isso pode ocorrer tanto pela análise das narrati-
reações à arte de rua reforçam a exclusão. As reações vas presentes nas obras, que se ocupam de temáticas
verificadas dizem de uma fração da realidade, pois, que, por vezes, tratam das contradições resultantes
no contraponto, há várias formas de apropriação e da produção do espaço urbano, quanto pela análise
resistência à violência e à exclusão sistemáticas que da repercussão de determinadas obras entre a socie-
se dão no âmbito da produção e fruição da arte nas dade, que acabam por reforçar as contradições, atra-
cidades a partir da própria arte de rua. Nesse sentido, vés da criminalização da estética da periferia e das
nas cidades estudadas e fora delas, a partir das prá- contradições não superadas. De tal modo, faz-se pos-
ticas espaciais da arte, há experiências importantes sível realizar uma leitura das relações de poder que se
para a consolidação do direito à cidade e para a pro- materializam no tecido social a partir dos conflitos
moção da democracia em ações relacionadas à arte e cooperações agenciados pela arte. Além disso, as
pública. manifestações artísticas, sua recepção e os espaços
de representação se fazem fundamentais para a ter-
ritorialização de grupos e propagação de ideologias
CONSIDERAÇÕES FINAIS E de modo a estabelecer fluxos de controle do espaço,
CONTRIBUIÇÕES À GEOGRAFIA orientando, até mesmo, os usos e apropriações do
mesmo nas cidades.
A hipótese levantada é reforçada a partir dos casos Os outros casos também abrem importantes por-
apresentados, de modo que as narrativas das obras tas de pesquisa, seja para aprofundar as análises aqui
contestam a realidade da produção do espaço e algu- apresentadas em cada um deles ou para questionar
mas das reações à arte de rua reforçam a exclusão. As considerações trazidas ao longo do presente texto.
reações verificadas dizem de uma fração da realidade, Além disso, verifico a necessidade de um aprofunda-
pois, no contraponto, há várias formas de apropria- mento das discussões, no campo da geografia, para a
ção e resistência à violência e à exclusão sistemáticas compreensão das práticas espaciais da arte e de suas
que se dão no âmbito da produção e fruição da arte relações com o espaço urbano, não se restringindo
nas cidades. Nesse sentido, nas cidades estudadas e às artes visuais, como foi o caso deste trabalho, mas
fora delas há experiências importantes para a con- extrapolando para outras formas de apropriação do
solidação do direito à cidade e para a promoção da espaço.
democracia em ações relacionadas à arte pública.
Um importante aspecto da hipótese e dos resul-
tados da presente pesquisa diz respeito à capacidade REFERÊNCIAS
verificada de promoção de dissenso da arte pública.
Isso porque ela consegue reorientar a visão que se BENJAMIN. W. A obra de arte na era de sua re-
tem sobre a realidade urbana e promover debates e produtibilidade técnica. Tradução: Gabriel
inflexões políticas sobre a paisagem. A arte é um im- Valladão Silva. Porto Alegre: L&PM, 2020.
portante componente do escopo de elementos que BENGTSEN, P. Stealing from the public: the value
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Abstract Observing a factory demolition in a Rio de Janeiro suburb, the need of questioning
the renewal of the city from the break with the past and the constant occupation
of empty spaces arose. The aim of this article is to encourage discussion about
industrial spaces and highlight memory as identity of urban landscape and life
through the concept of terrain vague, by Sola-Morales, and the analysis of three
renovations in different industrial contexts. Emscher Park in the Ruhr region, in
Germany, was a project that focused on natural and economic restructuring through
historical preservation. Distrito 22@, in Barcelona, reconfigured the existing spaces
in order to achieve high density and productivity. Arte / Cidade, in São Paulo,
criticized traditional urban planning through temporary artistic intervention,
promoting the informality and the excluded people as part of industrial voids. It can
be concluded that maintaining urban voids does not mean preserving abandonment,
but that it is important to think about local development from its history and, thus,
consolidate its identity.
Figuras 1 e 2:
Antiga Fábrica de
Sabão Português
em processo de
demolição e o
hipermercado
que foi
construído em
seu lugar
Fonte: Fotografias realizadas pela autora em 27/06/2018 e 13/12/2018, respectivamente, a partir da Linha Vermelha.
impulsos físicos que dirigem numa determinada Conforme Solà-Morales (1995), a cidade resi-
direção a construção de um imaginário que esta- dual deveria ser tratada pela noção de continuidade
belecemos como de um lugar ou uma cidade de- no tempo e no espaço. A arquitetura deve atuar no
terminada. Porque já vimos ou porque vamos ver terrain vague não por meio de um poder agressivo e
alguns desses lugares, o mecanismo semiológico da de razões abstratas, mas “através da atenção à conti-
comunicação se dissipa, e a memória que acumu- nuidade. Não da continuidade da cidade planejada,
lamos por experiência direta, por narrações ou por eficaz e legitimada, mas, todo o contrário, através da
simples acumulação dos indícios é a que, indefi- escuta atenta aos fluxos, das energias, dos ritmos que
nidamente, produz nossa imaginação de cidade o passar do tempo e a perda dos limites têm estabe-
(SOLÀ- MORALES, 1995, on-line)4. lecido” (SOLÀ- MORALES, 1995, on-line), aquele
da busca pela identidade, do encontro do presente e
Segundo ele, “os espaços vazios, abandonados, do passado, da expressão das liberdades individuais:
onde já sucederam uma série de acontecimentos,
parecem subjugar os olhos dos fotógrafos urbanos”
[...] nossa cultura pós-industrial reclama espaços de
(SOLÀ- MORALES, 1995, on-line), os quais ele de-
liberdade, incerteza e improdutividade, mas desta
fine pelo conceito terrain vague, que se convertem
vez não ligados à noção mítica de natureza, mas
em pontos de atenção. Não apenas para a fotografia,
à experiência da memória, do fascínio romântico
esses espaços trazem consigo a questão em aberto da
pelo passado como arma crítica contra o presente
ausência de uso relacionada ao sentido de liberdade
banal e produtivista (...) gerenciar, preservar, reci-
e expectativa: “vazio, portanto, como ausência, mas
clar os terrain vague, os espaços residuais da cidade,
também como promessa, como encontro, como es-
que não pode ser simplesmente reorganizá-los para
paço do possível”. Vago não através de uma mensa-
integrá-los de novo no tecido eficiente e produtivo
gem negativa, mas por meio de uma mensagem que
da cidade, cancelando os valores que seu vazio e
traz perspectivas de “mobilidade, tempo livre, liber-
ausência tinham. (...) pelo contrário, é esse vazio e
dade”. Os espaços obsoletos, onde há predomínio da
ausência que devem ser salvos a todo custo, o que
memória do passado, como as áreas industriais, as
deve fazer a diferença entre o federal bulldozer e as
estações de trem, as áreas residenciais inseguras e os
abordagens sensíveis a esses lugares de memória e
lugares contaminados, parecem ter um presente de
ambiguidade (SOLÀ- MORALES, 1996, p. 23).
espera e parecem não fazer parte da cidade. São “lu-
gares estranhos ao sistema urbano, exteriores mentais
no interior físico da cidade, que se manifestam como A partir desses conceitos, três propostas de abor-
contraimagem da mesma, tanto no sentido de sua dagens distintas serão analisadas a seguir. A primeira
crítica como no sentido de sua possível alternativa” delas acontece ao longo de um rio em que terras uti-
(SOLÀ- MORALES, 1995, on-line). lizadas inicialmente para mineração foram recupera-
No entanto, a arquitetura tem um papel coloni- das, renaturalizadas, e que, apesar de não ser uma
zador ao impor limites, ordem e forma, introduzin- área urbanizada consolidada, presta atenção à sua
do no espaço estranho ou improdutivo elementos de continuidade.
identidade para torná-lo homogêneo, “reconhecível,
idêntico, universal”, através de transformações radi-
cais. A arquitetura PARQUE EMSCHER, ALEMANHA
Figuras 3 e 4: Exterior e interior do Complexo Zollverein, uma antiga usina de carvão e uma das edificações
renovadas através de intervenções pontuais, adaptadas para a preservação dos prédios existentes
pela “falta de qualidade urbana e paisagística”, con- como setores básicos para impulsionar e direcio-
forme observa Ganser (2000 apud FARIA, 2004, p. nar as mudanças numa antiga região industrial em
10), geógrafo e coordenador do projeto. processo de transformação. O projeto existe para
O projeto desenvolveu-se em torno de cinco te- assistir a esse processo: ao empregar uma exposi-
mas: a integração e recuperação das antigas áreas in- ção da construção como instrumento prático, o
dustriais e de mineração ao longo do rio Emscher; a IBA transforma essa exposição numa central de
reorganização do sistema ecológico do rio Emscher; a discussões políticas e profissionais, voltada especifi-
criação de empregos e a atração de atividades econô- camente ao debate do desenvolvimento da região.
micas para a região; a proposição de novos usos para (CASTELLO, 2003, on-line).
os antigos edifícios industriais, valorizando a cultura
e a elaboração e implementação de novos projetos ha- Um dos pontos de partida foi o de considerar a
bitacionais e urbanos integrados (IBA Emscher Park, paisagem natural e a bacia hídrica como recursos de
s.d.). No lugar de utilizar a tábula rasa e o desenvol- infraestrutura. A limpeza de 70 km de extensão, com
vimento sobre novos traçados de um plano rígido e a regularização dos cursos d’água do rio Emscher e
autoral, o IBA planejou a preparação de um território a regeneração da vegetação, valorizou a qualidade
de aproximadamente 800 quilômetros quadrados, estética e ecológica da região. Os monumentos in-
buscando tornar a região atraente e, assim, influen- dustriais passaram a ser concebidos conceitualmen-
ciar a economia e a sociedade. A qualidade arquitetô- te como transmissores de uma mensagem cultural,
nica foi um dos pilares de desenvolvimento que, atra- como signos de presença de uma identidade regional
vés do gerenciamento descentralizado, possibilitaria na paisagem. Os projetos não buscaram negar o pas-
o planejamento urbano de baixo pra cima. Tal estra- sado industrial que dominou na região, não almeja-
tégia visava envolver a população no aprendizado da ram criar novas paisagens. Os projetos precederam os
valorização histórica, que poderia intervir ativamente planos reguladores, implicando uma forma de pensar
na transformação, além da interdisciplinaridade, na inovadora para o planejamento europeu, calcada em
integração econômica – ambiental e social – e na bases semi-intuitivas, e a percepção fenomenológica
revalorização dos símbolos para a formação de uma do espaço (CASTELLO, 2003).
identidade regional (FARIA, 2004). Ao mesmo tempo, foi uma operação midiática e
O desenvolvimento e a implementação dos pro- de destaque formal, ao atrair arquitetos renomados
jetos implicaram novas perspectivas de ver e pensar e estimular grandes projetos inovadores, a partir da
o desenvolvimento da região. Com o envolvimen- reutilização de antigos brownfields e edifícios existen-
to de diversos organismos da sociedade, públicos e tes, mantendo o patrimônio industrial que até então
privados, da população e da opinião pública dos 17 tinha uma simbologia de decadência, como se pode
municípios envolvidos no programa, houve um pro- observar nas Figuras 3 e 4. Concomitantemente a
gressivo aumento da aceitação do projeto (CASTRO, isso, operações de regeneração urbanas foram reali-
2014). Seus objetivos específicos zadas, integrando habitação, transporte, assim como
o estabelecimento de espaços públicos de qualidade,
se prendem às áreas de desenvolvimento urbano, atividades econômicas e comerciais (LUSSO, 2014).
social, cultural e ecológico, considerados (sic) Segundo Castello (2003), o Projeto IBA Emscher
Park é uma destacada experiência de arquitetura e micas da nova indústria da era pós-industrial, a da
de desenvolvimento regional e que poderia ser reco- informação. Aposta na complexidade, rompendo
nhecida como “uma chamada à sustentabilidade da com a exclusividade de uso industrial e propondo a
subjetividade coletiva: um instrumento para garantir mistura de usos: tecnológicos, escritórios e indústria
a permanência da subjetividade, daquela subjetivi- urbana, assim como habitação, hotéis, apartamentos
dade compartilhada pelos moradores da Região em de aluguel vinculados a empresas, determinados usos
relação a seus lugares” (CASTELLO, 2003, on-line). comerciais e equipamentos de apoio à comunidade
No entanto, até o momento, apesar de os objetivos e ao sistema produtivo (22@BARCELONA, 2005).
urbanos, ambientais e da renovação de uma imagem Há aumento no coeficiente de aproveitamento
terem sido alcançados, os impactos econômicos e so- de uso do solo como parte de um sistema de incen-
ciais ainda estão incertos, pois os equipamentos cul- tivos, possibilitando que os projetos de renovação
turais estão numa busca constante de investimentos urbana contribuam para a reurbanização de todas as
externos para sobreviver, e os visitantes são escassos e ruas do setor e gerem novas zonas verdes. Além disso,
aleatórios (LUSSO, 2014). o plano de infraestruturas (PEI) foi criado para ga-
Da mesma forma que o Emscher Park, o próximo rantir a modernização da infraestrutura, das redes e
caso também nasce da transformação de um espaço telecomunicações, do transporte etc. Aposta em um
urbano industrial em declínio, porém em área con- modelo urbano “compacto, diverso e sustentável”,
solidada da região metropolitana de Barcelona. Lá que tenha um uso mais “eficiente” do solo, e preten-
parece que “todo espaço vazio é preso ao frenesi de de posicionar-se como espaço de referência em nível
encher, de preencher” como disse Koolhaas (1985, europeu no marco das tecnologias da informação e
p. 156) sobre o processo de reconstrução de Berlim, de comunicação (22@BARCELONA, 2005).
deixando a história e o vazio em segundo plano. Seu Conforme Cubelles e Pardo (2011), Poblenou,
comentário poderia aplicar-se ao projeto Distrito conhecida como “Manchester Catalã”, já foi a prota-
22@, em Barcelona, como verificaremos a seguir. gonista da revolução industrial da Catalunha, predo-
minando ali a produção têxtil nos séculos XVIII. No
século XIX, o processo de atividade industrial na área
DISTRITO 22@, BARCELONA se expande com o estabelecimento de empresas nos
setores metalúrgico e automotivo nos anos 1940. Po-
O projeto 22@ Barcelona prevê a transformação do rém, em meados da década de 1960, iniciou-se uma
seu distrito industrial Poblenou. A própria prefeitura fase de declínio progressivo da atividade econômica
apresenta o projeto como do bairro, em grande parte devido ao fortalecimen-
to da Zona Franca de Barcelona, modificando sua
produtividade, ao instalarem-se lá, principalmen-
um inovador distrito produtivo, dotado de ex-
te, empresas relacionadas à logística e a serviços de
celentes infraestruturas, que oferece mais de três
transporte. A Poblenou entrou em um processo de
milhões de metros quadrados de espaços moder-
regressão e de conversão de atividades, até o proje-
nos, tecnológicos e flexíveis no centro de Barcelo-
to 22@ Barcelona propor uma operação de substi-
na, para a concentração estratégica de atividades
tuição do tecido produtivo e de regeneração urbana
intensivas em conhecimento (...) a renovação das
(CUBELLES e PARDO, 2011).
áreas industriais de Poblenou permite criar até
No entanto, há atividades que são necessariamen-
3.200.000 m² de espaços produtivos, aumentar
te excluídas com a nova regulamentação, que estabe-
entre 100.000 e 130.000 os postos de trabalhos
lece um uso misto de terra: as atividades industriais
localizados na área, construir entre 3.500 e 4.000
tradicionais incompatíveis com o novo espaço de
novas habitações e obter 220.000 m² de solo para
produção focado em uma nova economia. As em-
novos equipamentos e zonas verdes” (22@BAR-
presas não incluídas no novo plano urbano foram
CELONA, 2005, on-line).
obrigadas a deslocar-se para novos espaços metro-
politanos ou a encerrar atividades. Nesse sentido, a
Conforme Leite (2012), a Prefeitura foi a princi- interpretação das relações entre as atividades econô-
pal promotora desse projeto, que visa criar um bairro micas e as conexões do novo espaço urbano, assim
denso de elevada qualidade urbana, necessária para a como a especulação imobiliária originada por essas
atração das atividades intensivas em conhecimento modificações, pode ser entendida a partir do con-
e tecnologia. Para isso, modificações no plano geral ceito de gentrificação produtiva. Embora a indústria
metropolitano de 1976 (MPGM) foram aprovadas tradicional e outras atividades introduzam inovação
no ano 2000, gerando as condições necessárias para em seus processos produtivos, ocorre uma expulsão
estimular o desenvolvimento das atividades econô- de atividades industriais tradicionais devido a direti-
vas urbanas contrárias à sua existência (PALLARES- identidade social. Trata-se de uma região operária,
-BARBERA et al., 2010). influenciada pelo comunismo e pelo anarquismo,
Segundo Leite (2012), apesar de o poder público que mais tarde foi ocupada por artistas libertários,
ter tentado envolver a comunidade nas decisões de atraídos pelas construções industriais abandonadas.
projeto, houve muita resistência da população local Os terrain vague resultam nos melhores lugares de
no que diz respeito às transformações do bairro. Para sua identidade, de seu encontro entre o presente e o
eles, passado, ao mesmo tempo que se apresentam como
o único reduto incontaminado onde é possível exer-
cer a liberdade individual ou de pequenos grupos
a proposta de planejamento da prefeitura é agres-
(SOLÀ-MORALES, 1996).
siva, pois desfigura a paisagem original do bairro,
A imagem que fica é dos prédios novos, ícones
propõe uma altura excessiva para os novos edifí-
dos tempos mais contemporâneos, como se pode ob-
cios e permite a ocupação do interior das quadras
servar nas Figuras 5 e 6. Ou, ainda, dos terrenos já
até então reservadas como espaço semiprivado (...)
vazios após demolições em processo de transforma-
embora o projeto tenha muitos elementos do tra-
ção. Antigos moradores dizem que o novo bairro se
dicional e invejável urbanismo cidadão catalão, o
tornou um lugar de “metidos”; há outros que dizem
sintoma agora neste território é o pragmatismo,
que está mais seguro e com energia renovada. Porém,
em que consulta e participação perdem prioridade
as pessoas concordam que o projeto fechou as portas
para os novos empreendimentos do mundo globa-
para a participação cidadã assim que foi aprovado e
lizado” (LEITE, 2012, p. 232).
questionam: “Em se tratando de um empreendimen-
to criativo, que pressupõe inteligência coletiva, por
Depois de muita pressão dos moradores do bair- que a população original não foi convidada a partici-
ro, a prefeitura fez um plano que permitiu preservar par dessa visão?” (DEVIRI, 2011).
mais de uma centena de “elementos históricos”, a Apesar de reconhecer que estão ocorrendo outras
maioria deles chaminés e fachadas de fábricas antigas, conexões artísticas, muito ligadas às novas tecnolo-
Figuras 5 e 6:
Novo Campus De inteiramente reconstruídas por dentro (CUBELLES gias, artistas sentem falta da liberdade transgressora
La Comunicació e PARDO, 2011). Nesse sentido, o 22@ apresenta do passado, lamentam o excesso de controle: “Não se
Poblenou.
Arquitetura
uma importante ruptura com as melhores práticas de pode projetar a espontaneidade e o imprevisto”. Ain-
contemporânea outrora. Segundo Derivi (2011), que realizou algu- da é uma área aonde as pessoas vão apenas para traba-
integrada mas entrevistas no bairro, o Poblenou foi, até o final lhar (DEVIRI, 2011). Solà-Morales já havia prescrito
com o legado
industrial, dos anos 1980, um bairro periférico, desconectado que “só uma arquitetura do dualismo, da diferença,
restauração da cidade, que, por esta razão, constituiu uma forte da descontinuidade, instalada na continuidade do
concluída em
2008
tempo, pode fazer frente à agressão angustiada da econômicos próprios da cidade e do “mundo da
razão tecnológica, do universalismo telemático, do arte”. Evidenciar como a produção do espaço ur-
totalitarismo cibernético, do terror igualitário e ho- bano e da cultura – bem como a recepção desse
mogeneizador” (SOLÀ-MORALES, 1995). Deve– processo – tem se tornado cada vez mais submeti-
se gerenciar, preservar e reciclar os terrain vague, os da às relações econômicas e de poder (BRISSAC,
espaços residuais da cidade, sem cancelar os valores 2004, p. 86).
que seu vazio e ausência tinham (SOLÀ-MORA-
LES, 1996). Com um custo de 1,5 milhão de reais, o projeto
Em Barcelona, no Poblenou, a agressividade do teve o patrocínio da Petrobras e do Sesc-SP e envolveu
empreendedorismo, a necessidade de produção tec- 24 intervenções em uma área de 10 mil metros qua-
nológica e a inserção no mercado europeu falaram drados (PEREIRA, 2007). Segundo Brissac (2004),
mais alto que a demanda e a preservação da memó- curador da intervenção, diante da nova relação entre
ria local. Em São Paulo, o Arte/Cidade, projeto de arte e desenvolvimento urbano, as respostas alterna-
cunho artístico e político, criticou essa forma de pla- tivas para projetos de intervenção nas metrópoles em
nejamento urbano “eficiente” e excludente através de processo de reestruturação global poderiam englobar
intervenções temporárias.
propostas de configurações e usos de infraestrutura
ARTE/CIDADE, SÃO PAULO que intensifiquem e diversifiquem as articulações
na trama metropolitana. Intervenções programá-
ticas potencializadoras de situações urbanas, em
Arte/Cidade é um projeto de intervenções urbanas
relação direta com as comunidades, distintas de
realizadas em São Paulo, entre 1994 e 2002, e teve
obras ditadas pelo desenho existente da cidade e
quatro edições: a primeira ocorreu num matadou-
pelos interesses econômicos e sociais dominantes.
ro desativado, na região Sul da cidade. A segunda
Uma possibilidade de introduzir novas estratégias
aconteceu no Centro, em três edifícios e na área por
urbanas (BRISSAC, 2004, p. 87).
eles demarcada, cortada por um viaduto. A terceira
deu-se ao longo de um ramal ferroviário, na região
Oeste. A última, em 2002, foi realizada na região les- Tentou-se evitar o entendimento do espaço como
te da cidade, antiga área industrial, em um recorte expositivo, buscando compreendê-lo como um lugar
de cerca de 10 quilômetros quadrados (BRISSAC, pelo qual o cidadão também é responsável, não como
2004), que é a intervenção analisada a seguir. espectador, mas como morador da cidade. Buscou-
A partir da compreensão de metrópole contem- -se evitar a fruição turística, por isso demandou do
porânea, da sua complexidade e dinamismo, o Arte/ público morador e não morador a exploração do lu-
Cidade vem questionar, através de intervenções, o gar. Enquanto as cidades estão adotando estratégias
estatuto e os procedimentos convencionais da Arte, de monumentalização voltadas para o marketing,
da Arquitetura e do Urbanismo, “na medida em para a promoção imobiliária e o turismo cultural,
que enfrentar os processos engendrados pela globa- o Arte/Cidade procurou evitar a espetacularização
lização exige transcender as abordagens e técnicas inerente a esses processos (PEIXOTO, 2000 apud
estabelecidas” (BRISSAC, 2004, p. 85), propondo- SOUZA, 2016).
-se a discutir novas estratégias urbanas e artísticas de Das 24 intervenções, o Ateliê Van Lieshout5 pro-
intervenção em megacidades, transcender a locação pôs uma arquitetura móvel, baseada na prestação de
imediata e remeter ao vasto território da megacidade serviços, dinamizando o vazio a partir da ativação
e a reconfigurações globais da economia, do poder e de um espaço nômade nesses intervalos urbanos.
da arte. Segundo Brissac, do ponto de vista estético, Uma crítica à monumentalidade arquitetônica dos
projetos de redesenvolvimento urbano propostos
as diversas intervenções artísticas talvez possam ser para essas regiões. Vergara6 também se inspira na
vistas como, em parte, ainda comprometidas com atuação dos camelôs. Propôs uma intervenção sobre
estratégias escultóricas em grande escala, percep-
ção fenomenológica de objetos colocados no espa-
ço. Diversos outros parâmetros conceituais e ope- 5 Informações sobre o autor e mais informações sobre o traba-
racionais ainda precisariam ser introduzidos nessa lho desenvolvido estão disponíveis em http://www.artecida-
de.org.br/novo/lieshout.htm. Acesso em 09 jul. 2018.
prática artística para que seus efeitos sejam mais 6 Informações sobre o autor e mais informações sobre o traba-
intensos e abrangentes. Estratégias que permitam lho desenvolvido estão disponíveis em http://www.artecida-
confrontar os aparatos institucionais, discursivos e de.org.br/novo/vergara.htm. Acesso em 09 jul. 2018.
a situação aparentemente inerte da ocupação do va- buscará mais configurações estáveis, mas a criação
zio, inibido pelo rígido programa pré-estabelecido de campos que acomodem processos que resistam
do planejamento urbano. Sugeriu a instalação de a ser cristalizados em formas definitivas. Não a im-
elementos inacabados, que insinuem um possível posição de limites, mas a supressão de fronteiras.
padrão de ocupação, exponenciando uma caracterís- Não a identificação de elementos, mas a descober-
tica básica de toda a região: sua indeterminação, o ta de híbridos. Não mais obcecado com a cidade,
caráter informe dessa complexa configuração urbana mas com a manipulação da infraestrutura para
(ARTE/CIDADE, [2002?]). infinitas intensificações e diversificações, curtos-
O trabalho de Krzysztof Wodiczko7 consistiu em -circuitos e redistribuições – a reinvenção do es-
equipar as populações migrantes para as batalhas paço urbano (...) será que São Paulo promoverá as
pela ocupação dos espaços intermediários, os inter- condições para se integrar na economia e na rede
valos indefinidos entre os enclaves de habitação e de das metrópoles globais? Ou ainda: poderia essa re-
comércio, as grandes estruturas arquitetônicas que configuração se fazer em moldes arquitetônicos e
dominam a paisagem urbana. Conforme Brissac, os urbanísticos distintos daqueles impostos pelo ca-
migrantes, assim como aqueles que atuam numa ati- pital corporativo internacional? (ARTE/CIDADE,
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Abstract This paper positions the Judiciary Branch as an agent for the operationalization
of PAC urbanization interventions, whenever it is called upon to resolve conflicts
between the Executive Branch and populations to be removed, either due to lack
of agreement regarding compensations or when irregular occupations occur in areas
already unoccupied or in semi-finished housing complexes. It is based on the case
study of interventions in the Tucunduba River Basin, in Belém (PA), where families
were removed due to macro-drainage works and the dwelling planned for relocation
were illegally occupied. Empirical and documentary evidences, the dialogue with
technicians from public agencies and with the population and the analysis of legal
actions demonstrate that the right to property overlaps with other rights and that
the judicialization of cases contributes to the stigmatization of occupants and to an
increasing number of evictions.
ções Contratuais (PETRAROLLI, 2015; CARDO- fato de terem ocupado a área após a realização dos
SO, 2011). Por outro lado, diversos municípios não cadastros sociais (REGINO, 2017). Dessa forma,
dispunham de capacidade técnica para lidar com esse quanto maior o tempo necessário para a conclusão
volume de demandas para fiscalização de obras e ge- das obras, maior o número de remoções.
rência de contratos, assim como muitos governos lo- Quando se trata de obras de residenciais que se-
cais não tinham expertise em urbanização de favelas rão destino para famílias remanejadas, as paralisa-
(CARDOSO; DENALDI, 2018). ções e prolongamentos do tempo das intervenções
Essa conjuntura aumenta o tempo necessário causam outros desdobramentos. No caso de Belém,
para a conclusão das obras, o que, por sua vez, di- situações em que há abandono do canteiro de obras
ficulta o controle de ocupação e adensamento nas por parte das empreiteiras são comuns, o que gera
áreas que recebem intervenções e que demandaram uma aparência de ociosidade na área, propiciando a
remoções. Consequentemente, os cadastros sociais ocorrência de ocupações irregulares nestes espaços,
realizados ainda nas fases iniciais do projeto se tor- especialmente nos casos em que há unidades habi-
nam obsoletos no decorrer do processo, pois pode tacionais semifinalizadas. Na cidade, há pelo menos
haver aumento significativo do número de famílias quatro empreendimentos habitacionais produzidos
a serem deslocadas já no intervalo de tempo entre a com recursos do PAC que foram ocupados irregular-
realização do cadastro e o início das obras. No mo- mente, são eles: Residencial Ive Portela, Residencial
mento da realização dos deslocamentos, inúmeros Vila da Barca, Residencial Riacho Doce e Residencial
conflitos emergem, demandando novas soluções por Liberdade (Figura 1), sendo que os dois primeiros
parte dos governos locais para a provisão habitacio- foram contratados pela prefeitura de Belém e os dois
nal e gerando um contingente de famílias que não últimos pelo governo do estado do Pará.
recebem qualquer medida compensatória devido ao Todos os residenciais citados estão relacionados a
Figura 1:
Residenciais
que foram
ocupados
irregularmente
em Belém
Residencial Liberdade
intervenções nas “baixadas” de Belém, que são áreas 2010; MARX, 1991). A partir dessa lei, se normatiza
de várzea entrecortadas por rios e habitadas majori- que a forma padrão de acesso à terra é a compra e
tariamente por população de baixa renda (SUDAM; venda e que o proprietário é seu dono inquestioná-
DNOS; PARÁ, 1976). Além disso, apenas o Resi- vel, portanto outras formas de acesso a terra passam a
dencial Ive Portela se encontra fora da “periferia” do ser consideradas desvios à norma. Assim, aquele que
centro metropolitano, ou seja, todos os outros con- ocupa um espaço que não é de sua propriedade – o
juntos habitacionais estão inseridos em áreas já bas- “invasor” – é considerado um sujeito à parte da lei,
tante consolidadas. Tal aspecto permite reconhecer pois ele ameaça não apenas a propriedade privada,
que a ocupação dos residenciais ocorre de forma a mas toda a sociedade já que a “invasão” é considerada
viabilizar tanto a moradia quanto o acesso à infraes- uma ação violenta e clandestina (MILANO, 2016).
trutura disponível nesses espaços. Ao longo do tempo, reforça-se a imagem do “in-
Tendo em vista a desocupação dos conjuntos ha- vasor” como um inimigo social e a partir disso esse
bitacionais, as procuradorias da prefeitura de Belém e sujeito assume um importante papel nos conflitos
do governo do estado do Pará ingressaram com ações fundiários, pois uma vez que ele é identificado, se
de reintegração de posse para os residenciais Ive Por- autoriza a “intervenção jurisdicional para a extinção
tela, Riacho Doce e Liberdade. A judicialização desses do conflito por meio dos despejos coletivos forçados”
casos introduziu o Poder Judiciário como um novo (MILANO, 2016, p. 18). Portanto, as decisões favo-
ator na operacionalização da política pública, pois a ráveis às remoções podem ser consideradas punições
retomada das obras passou a depender da arguição ao invasor, pois assim se age para reparar um ato su-
das procuradorias e das decisões dos tribunais. No postamente ilegal (a “invasão”) e também para repri-
entanto, um elevado grau de estigmatização acerca mir o “invasor”, que ameaça a norma (AMADEO;
dos ocupantes tende a gerar maior vulnerabilização ANSARI, 2021). Ademais, tais decisões servem
de populações já empobrecidas, como será exposto como um reforço do direito à propriedade privada,
a seguir. que se sobrepõe a outros direitos básicos, como o di-
reito à moradia.
A forma como a justiça privilegia a propriedade
JUSTIÇA E RESOLUÇÃO privada decorre também de uma abstração da justiça
DE CONFLITOS FUNDIÁRIOS em relação à materialidade da vida, ou seja, frequen-
temente os agentes do direito têm uma visão estrita
Nas democracias liberais, o Poder Judiciário se cons- acerca do que é ditado pela lei e pela jurisprudência,
titui como uma força aparentemente neutra e capaz ainda que elas não tenham correspondência com a
de mediar conflitos de maneira idônea. Tal concep- realidade vivida, havendo, assim, uma “tendência de
ção deriva da ideia – construída a partir da moderni- despacialização do direito” (FRANZONI, 2019, p.
dade – de que a sociedade seria formada por um tipo 2926). Nesse sentido, o estudo realizado por Milano
de sujeito universal e autônomo, ou seja, que todos (2016) acerca de decisões judiciais em conflitos fun-
os sujeitos teriam o mesmo acesso às condições ma- diários mostra que o entendimento predominante
teriais da vida. Assim, a justiça poderia servir como entre os magistrados é que “a melhor posse é aquela
régua objetiva para ditar o que está ou não de acordo que deriva do direito de propriedade, desvincula-
com os interesses da sociedade, distinguindo o que é damente de aferições focadas no uso ou na funcio-
legal do que é ilegal (MILANO, 2016). No entan- nalidade que o proprietário tenha ou não dado ao
to, na realidade prática, a justiça serve para atender imóvel” (MILANO, 2016, p. 153). O foco dado ao
interesses classistas a partir dos quais se perpetuam título de propriedade contribui para que, ao longo
estruturas de poder e dominação. Isso ocorre princi- do curso processual, sejam negligenciadas diversas
palmente por meio da aplicação de penalidades, que variáveis que poderiam ser determinantes para as
servem para hierarquizar os desvios à norma e, assim, decisões tomadas, como se o terreno objeto de lide
diferenciar os próprios indivíduos, excluindo aqueles vinha desempenhando a função social, se havia in-
que não agem conforme o que é esperado pela régua cidência de zoneamento especial de interesse social,
moral da justiça e das leis (FOUCAULT, 2014; QUI- qual o nível de consolidação da ocupação e mesmo
JANO, 2002). sobre a veracidade dos documentos de dominialidade
Uma das estruturas largamente defendidas na jus- apresentados.
tiça brasileira é a propriedade privada da terra, que Nesse sentido, Franzoni et al. (2020), ao analisa-
se constituiu como tal a partir da Lei de Terras de rem os casos acompanhados pelo NUTH (Núcleo de
1850, passando então a assumir um caráter de mer- Terras e Habitação) da DPE-RJ (Defensoria Públi-
cadoria e a apresentar valor de troca (MARTINS, ca do Estado do Rio de Janeiro), mostram que, na
maioria das ações possessórias, não foram encontra- do tempo, resultando na criação de localizações e na
das discussões a respeito das condições de moradia geração de renda fundiária. Dessa forma, quando as
e de infraestrutura nos assentamentos envolvidos ações judiciais resultam em desapropriações cujas
em conflitos fundiários. Predomina, assim, “o olhar indenizações incluem apenas o valor das benfeito-
estanque das narrativas processuais para fragmentos rias reforça-se a ideologia em torno da propriedade
da cidade tomados como irregulares, com as escassas privada, já que apenas ela seria a chave de acesso ao
descrições das condições de moradia mascaradas pela valor agregado àquele terreno gerado pelo trabalho
alegação da precariedade” (FRANZONI et al., 2020, coletivo.
p. 96). A mesma situação se repete nas ações pos-
sessórias acompanhadas pelo GTRFDM (Grupo de
Trabalho de Regularização Fundiária e Direito à Mo- A BACIA DO TUCUNDUBA
radia) da DPE-PA (Defensoria Pública do Estado do E A PROMOÇÃO DE
Pará), nas quais Tavares (2021) observou que foram REMOÇÕES COMO PRÁTICA
raríssimas as menções, por parte dos magistrados, INSTITUCIONALIZADA
a aspectos como o grau de consolidação da ocupa-
ção ou como o zoneamento incidente, havendo até A Bacia do Tucunduba localiza-se a sudeste de Be-
mesmo casos em que a documentação utilizada para lém, caracteriza-se pela existência de áreas alagadas
comprovar a propriedade era falsa. Coube, portanto, em grande parte do seu território e é entrecortada
à Defensoria suscitar a discussão acerca de aspectos por 13 canais, tributários do Rio Tucunduba. Tendo
socioespaciais por meio de diagnósticos e pareceres, em vista os frequentes alagamentos e a precarieda-
que trouxeram maior complexidade ao curso proces- de habitacional, a área recebe intervenções do poder
sual. público desde a década de 1990, que consistiram na
A ocultação acerca da realidade vivida das ocupa- canalização incremental dos rios menores. A mais
ções envolvidas em ações possessórias é bastante fun- recente dessas intervenções foi o Projeto de Sanea-
cional, pois permite que predomine uma narrativa mento Integrado para a Bacia do Tucunduba, que foi
sobre a precariedade dos assentamentos e do caráter contratado pelo governo do estado do Pará por meio
violento da “invasão”. Assim, a “despacialização do da então SEIDURB (Secretaria de Integração Regio-
direito” não pode ser compreendida como algo que nal, Desenvolvimento Urbano e Metropolitano)1 e
ocorre ao acaso, mas sim como sendo um projeto po- financiado por recursos do PAC (modalidade sane-
lítico construído historicamente e tendo por objetivo amento) para retomar a macrodrenagem do Rio Tu-
justificar ações violentas contra populações vulnerá- cunduba, contratada inicialmente como um projeto
veis (MILANO, 2016; FRANZONI, 2019). do Programa Habitar Brasil BID não concluído. A
Além das ações possessórias, a justiça também obra engloba intervenções em uma extensão de 2.200
exerce importante papel na resolução de conflitos re- m de margens que eram densamente ocupadas, que
ferentes às desapropriações de benfeitorias em áreas se estendem desde a Rua São Domingos (no bairro
que receberão obras de urbanização quando não há Terra Firme) até a Trav. Vileta (no bairro Marco).
acordo entre os entes promotores das intervenções Em 2013, a intervenção previa o deslocamento
(prefeituras e/ou governos estaduais) e as famílias a de cerca de 930 famílias, (SILVA, 2016), porém, em
serem deslocadas. Ocorre, porém, que as indeniza- 2019, esse número já chegava a 1.511 famílias, as
ções oferecidas costumam apresentar valores insufi- quais ou receberiam indenização ou receberiam uma
cientes para a compra de nova moradia, pois incluem unidade habitacional em um dos residenciais previs-
apenas o valor das construções, desconsiderando o tos. O aumento considerável no número de pessoas
valor da terra, já que frequentemente as famílias não removidas se deve, em certa medida, à promulgação,
têm a propriedade dos terrenos, por se tratarem de por parte do governo do estado do Pará, do Decreto
ocupações irregulares que não passaram por ações nº 30/2019, que definiu quais seriam as áreas de utili-
de regularização fundiária. A grande contradição dade pública para fins de desapropriação na Bacia do
desse procedimento é que o valor das indenizações Tucunduba. No entanto, a área incluída no decreto
desconsidera todo o trabalho coletivo realizado pelas englobou uma faixa maior que aquela anteriormente
comunidades ao longo de todo o tempo em que elas prevista pelo projeto urbanístico, indo além da faixa
ocuparam aquele espaço, o que inclui, por exemplo, de APP e prevendo a desocupação de quadras inteiras
a implantação de infraestrutura (ainda que rudimen- para que estas passassem a servir como canteiros de
tar) e a realização de aterramentos. A melhoria gra-
dual das condições de moradia e de ocupação impli- 1 Atualmente chamada de SEDOP (Secretaria de Estado de
ca diretamente a valorização daquele espaço ao longo Desenvolvimento Urbano e Obras Públicas).
impossibilitado dessa concretização em decorrên- sações, até que, em meados de 2018, uma nova ocu-
cia dos invasores negarem-se a se retirar do imóvel, pação irregular foi iniciada na área, a qual se estende
desafiando assim, o princípio da supremacia do até os dias atuais (final de 2021), contando com cer-
interesse público. (PARÁ, 2012, s/n). ca 1.337 famílias (PARÁ, 2012). Essa nova ocupação
motivou a retomada do processo de reintegração de
posse iniciado em 2012, mantido ativo desde então.
Segundo tal argumentação, seria a permanência Novamente, a COHAB-PA oferece o pagamento do
das famílias naquele espaço que estaria impedindo a Cheque Moradia (atualmente chamado de Programa
continuidade das obras, ignorando-se completamen- Sua Casa) para as famílias que disponham de algum
te o fato de que o canteiro de obras já se encontrava terreno, mas, no momento atual, após o PMCMV
abandonado por meses antes do início da ocupação. ter sido extinto, as possibilidades para a inserção das
A escolha consciente de narrar os fatos dessa forma famílias em algum programa habitacional estão ain-
serve não apenas para ocultar que o governo do esta- da mais reduzidas.
do já não vinha cumprindo a obrigação de executar Ao mesmo tempo, a justiça se exime da respon-
a obra dentro do cronograma previsto, mas também sabilidade de determinar alguma forma de garantia
funciona como tentativa de criminalizar os ocupan- de moradia para as centenas de famílias que estão
tes, uma vez que, segundo a lógica da PGE-PA, se- ameaçadas de remoção. Tal postura funciona tam-
riam eles próprios os empecilhos para o sucesso da bém como forma de punir as famílias ocupantes,
intervenção. Desconsiderou-se totalmente que estes uma vez que, ao promover a remoção sem fornecer
mesmos ocupantes também são sujeitos de direitos e qualquer garantia para que elas possam reproduzir
que eles próprios deveriam ser atendidos pela política condições materiais para a vida, contribui-se para
habitacional empreendida pelo Estado. que a comunidade se torne mais empobrecida e vul-
A petição inicial apresentada pela PGE-PA foi nerável. Cabe destacar que, à nível nacional, a Re-
o suficiente para que fosse concedida a tutela ante- solução nº 10/2018 do Conselho Nacional de Di-
cipada para a reintegração de posse do Residencial reitos Humanos (CNDH) define diversas diretrizes
Liberdade, em março de 2012, sem que houvesse para salvaguardar os direitos humanos em casos de
qualquer discussão acerca de aspectos relacionados conflitos fundiários, determinando, inclusive, que
à ocupação. No entanto, a desocupação da área só “os deslocamentos não deverão resultar em pessoas
veio a ocorrer em dezembro de 2013, devido a uma ou populações sem teto, sem terra e sem território”
série de imbróglios que ocorreram ao longo desse pe- (BRASIL, 2018). No entanto, tais determinações são
ríodo. À época, a COHAB-PA ofereceu o Cheque conscientemente ignoradas pelos agentes do direito
Moradia5 para as famílias que dispusessem de algum envolvidos em conflitos fundiários, o que não ocorre
terreno, o que alcançou 73 famílias, e as outras cerca por acaso, mas sim como artifício para a contínua
de 380 famílias foram inseridas na lista de espera do hegemonia do direito à propriedade e para a estig-
PMCMV (JUSTIÇA, 2013), ou seja, foram removi- matização de comunidades que precisam recorrer às
das sem receber uma alternativa imediata para acesso ocupações irregulares.
à habitação.
É comum que, em ações possessórias, as comu-
nidades sejam removidas sem receber qualquer com- CONSIDERAÇÕES FINAIS
pensação para moradia, então mesmo o cadastro das
famílias para eventual inserção em um programa O caso da Bacia do Tucunduba revela a importância
habitacional é uma medida excepcional. Isso ocorre do Poder Judiciário como agente para a efetivação
porque há uma compreensão frequente entre os ma- da política urbana e habitacional. Contudo, sua atu-
gistrados de que não é atribuição da justiça efetivar ação na resolução dos conflitos entre o setor públi-
o direito à moradia devido ao seu caráter abstrato, co e a população sujeita ao remanejamento baseia-
cabendo essa responsabilidade aos poderes executivo -se, em grande parte, em uma defesa tradicional da
e legislativo (MILANO, 2016). propriedade privada da terra, que tem como efeito
Após a desocupação do Residencial Liberdade em direto a contínua estigmatização de indivíduos que
2013, as obras foram retomadas, no entanto, ao lon- não alcançaram o status de “proprietário”. Essa es-
go do tempo, elas passaram por uma série de parali- tigmatização também é reforçada na forma como as
procuradorias representam as famílias ocupantes em
5 Programa estadual que tem por objetivo repassar recursos
suas peças jurídicas, frequentemente enquadrando-
para famílias de baixa renda adquirirem materiais de constru- -as como empecilhos à efetivação da política urbana
ção e executarem algumas etapas de obras residenciais. e habitacional, quando, na verdade, esses mesmos
indivíduos deveriam ser atendidos por tais políticas. ização de favelas no Brasil: um balanço prelimi-
Assim, a judicialização desses casos tem por efeito o nar do Programa de Aceleração do Crescimento
fortalecimento da ideologia em torno da propriedade (PAC). In: ______ (Orgs). Urbanização de fave-
privada, o que ocorre às custas da manutenção de um las no Brasil: um balanço preliminar do PAC. 1
ciclo de remoções. ed. Rio de Janeiro: Letra Capital, 2018, p. 17 –
Se o Poder Judiciário tradicionalmente buscou se 48.
esquivar de atuar na promoção do direito à moradia, CARDOSO, Ana Cláudia. Desarticulações entre
sua prática na resolução de conflitos fundiários fre- políticas urbanas e investimentos em cidades:
quentemente resulta em populações sem acesso à ha- contratação do PAC paraense. Mercator - Re-
bitação. Em outras palavras: a tentativa de se eximir vista de Geografia da UFC, vol. 10, n. 22, p.
da responsabilidade de promover o direito à moradia 71-86, 2011.
colabora para que o mesmo seja continuamente vio- CARVALHO, Pedro Henrique. Olhar favela, ver ci-
lado. dade: intervenções do PAC-UAP em Fortaleza.
Esse quadro é também resultado de uma série de Dissertação (mestrado) – Universidade Federal
dificuldades e descompassos existentes na operacio- do Ceará, Centro de Tecnologia, Programa de
nalização das intervenções, ou seja, são fenômenos Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo e
que não podem ser vistos desarticuladamente. Como Design. Fortaleza, 2019.
foi exposto, os problemas existentes na administração FERREIRA, Paulo Emilio. O filé e a sobra. As fave-
dos contratos e na execução das obras acabam impli- las no caminho do capital imobiliário. Tese (Dou-
cando a ocorrência de novas ocupações irregulares, torado - Área de Concentração: Habitat) – Facul-
criando, assim, um ciclo em que as intervenções não dade de Arquitetura e Urbanismo - Universidade
se concluem e novas comunidades são removidas. de São Paulo. São Paulo, 2017.
Dessa forma, percebe-se que, no caso da Bacia do FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. 28ª
Tucunduba, a tentativa de enquadrar os ocupantes ed. Rio de Janeiro: Paz & Terra. 2014.
como os responsáveis pela paralisação das obras faz FRANZONI, Julia. Geografia jurídica tropicalista: a
parte de um quadro estrutural, no qual a estigmatiza- crítica do materialismo jurídico-espacial. Revista
ção de tais comunidades é funcional. Por meio de tais Direito e Práxis. Rio de Janeiro, v.10, n.4, p.
artifícios, colabora-se para que o direito à proprieda- 2923-2967, 2019.
de continue se sobrepondo a outros direitos humanos FRANZONI, Julia; XIMENES, Luciana; RIBEIRO,
básicos, ao mesmo tempo que se mantém um ciclo de Bruna; SOUZA, Lucas. Cartografias jurídicas:
populações ameaçadas de remoção. debatendo o mapeamento jurídico-espacial de
conflitos fundiários urbanos no Rio de Janeiro.
In: MOREIRA, Fernanda; ROLNIK, Raquel;
REFERÊNCIAS SANTORO, Paula (orgs.). Cartografias da
produção, transitoriedade e despossessão
AMADEO, Carolina; ANSARI, Moniza Rizzini. O dos territórios populares. Observatório de re-
direito e as margens da cidade. In: UNGARET- moções: relatório bianual 2019-2020. São Paulo:
TI, Débora et all. Propriedades em transforma- FAUUSP. 2020. p. 83-113.
ção: expandindo a agenda de pesquisa. São Paulo: JUSTIÇA determina desocupação de área no bairro
Blucher, 2021, p. 29-53 do Guamá, em Belém. G1 Pará. Belém, 09 de
BELÉM. Lei nº 8.655, de 30 de julho de 2008. dez. de 2013. Disponível em: http://g1.globo.
Dispõe sobre o Plano Diretor do Município de com/pa/para/noticia/2013/12/justica-determina-
Belém, e dá outras providências. Disponível em: desocupacao-de-area-no-bairro-do-guama-em-
http://www.belem.pa.gov.br/planodiretor/Pla- belem.html. Acesso em: 17 de jun. de 2021.
no_diretor_atual/Lei_N8655-08_plano_diretor. MARTINS, José de Souza. O cativeiro da terra. 9ª
pdf. Acesso em: 06 de ago. de 2021. ed. São Paulo: Contexto. 2010.
BRASIL. Ministério dos Direitos Humanos. Res- MARX, Murillo. Cidade no Brasil: terra de quem?
olução nº 10 de 17 de outubro de 2018. Dispõe São Paulo: Nobel/EDUSP, 1991.
sobre soluções garantidoras de direitos humanos MILANO, Giovanna. Conflitos fundiários urba-
e medidas preventivas em situações de conflitos nos e poder judiciário. Decisões jurisdicionais
fundiários coletivos rurais e urbanos. Diário Ofi- na produção da segregação socioespacial. Tese
cial da União, Brasília, 24 out. 2018. Seção 1, (doutorado) – Universidade Federal do Paraná -
p. 118. Curso de Direito. Curitiba, 2016.
CARDOSO, Adauto; DENALDI, Rosana. Urban- PARÁ. Tribunal de Justiça do Estado do Pará.
Ana Carolina Miranda Tavares é arquiteta e urbanista Ana Cláudia Duarte Cardoso é professora titular da
pela Universidade Federal do Pará (2019) e mestra Universidade Federal do Pará (UFPA). Docente
em Arquitetura e Urbanismo pelo PPGAU-UFPA (2021). permanente dos programas PPGAU/UFPA; PPGE/UFPA
Residente do Programa Rede Amazônia: Morar, e PPGPAM/ Unifesspa. Pesquisadora do CNPq, nível 2.
Conviver e Preservar e da Clínica de Direitos Humanos acardoso@ufpa.br
da Amazônia (CIDHA-UFPA). anacmiranda2@gmail.com nº 46 ▪ ano 12 | setembro de 2021 ▪ e-metropolis 45
artigos
Metrópoles
em camadas
os rastros da Tramway Cantareira no Jaçanã
Resumo Busca-se com esta pesquisa verificar se o antigo eixo ferroviário entre o centro de São
Paulo e seu aeroporto internacional deixou rastros dessa modalidade de transporte
sobre as vias que hoje ocupam seu lugar no bairro do Jaçanã. Por meio de uma
cartografia fotográfica e comparativa, os usos e formas urbanas demonstrarão a
perenidade desses rastros como hegemonia de escalas nas vias.
Abstract This research seeks to verify if the old railway axis between the center of São Paulo
and its international airport left traces of this mode of transportation on the roads
that today occupy their place in the district of Jaçanã. Through photographic and
comparative cartography, the urban uses and forms will demonstrate the permanence
of these traces as hegemony of scales in the roads.
tos voltassem a atenção à região denominada Canta- ferro entre a Ponte Grande e a Serra da Cantareira,
reira, à medida que o reservatório de água que nela se passando por Santana com um ramal para o distrito
encontra minguou a ponto de deixar os moradores de Nossa Senhora do Ó” (STIEL, 1978, p. 77).
da Grande São Paulo preocupados com a real falta Porém, após três anos sem finalizar as obras que
de abastecimento de água na mais populosa região propusera em acordo, o Congresso do Estado, pela
do país. Porém, essa ameaça não foi inédita, e ainda Lei nº 62, de 17 de agosto de 1892, autorizou o po-
no fim do século XIX, quando a Imperial Cidade de der executivo a rescindir o contrato, encampar a Cia.
São Paulo não dispunha de água encanada e existiam Cantareira e Esgotos e “mandar executar as obras de
apenas fontes públicas em algumas praças, já houve abastecimento de águas e de desenvolvimento da rede
uma preocupação semelhante. de esgotos” (STIEL, 1978, p. 77).
Com duas das principais fontes de abastecimento Assim, passando para as mãos do Estado, começa-
da cidade se esgotando – Tanque Reúno (Ribeirão ram as obras de abastecimento de água a tomar vulto.
Itororó) na atual Avenida 23 de maio e Tanque Sara- Mas a serra era longe e a subida extenuante. Naquela
cura (Ribeirão Saracura) na atual Avenida 9 de julho época, não se conhecia o automóvel, e as carroças le-
–, formou-se uma reunião na residência do Coronel vavam horas e horas para chegarem até lá, tornando o
Antonio Prost Rodovalho a 25 de julho de 1877 que serviço muito oneroso. Foi então que se voltou a ideia
iria fundar a Companhia Cantareira e Esgotos com de se construir uma linha de trens para o transporte
5 mil ações no valor nominal de 200$000 réis cada. de matérias para a execução das obras.
Após a ideia da criação do reservatório na serra, Apesar de não se imaginar a transformação des-
a grande questão seria chegar até lá. E neste ponto sa linha em um meio de transporte coletivo intenso
vemos a gênese funcionalista dessa nova relação que suburbano, já se dizia que ela “além de servir para a
a zona norte, incluindo o Jaçanã, teria com a região construção e conservação dos serviços de água, viria
central através da primeira ideia de uma linha de prestar serviços aos agricultores da zona percorrida e
“tramways” até a serra, que partiu de Manoel Corrêa contribuir para o maior povoamento desta, em bene-
Dias e Antônio Muniz de Souza, que, em 7 de agosto fício do abastecimento da cidade de gêneros alimen-
de 1890, assinaram um contrato com o conselho da tícios, lenha e pedra de construção” (STIEL, 1978,
Intendência do Estado “para uma linha de carris de p. 80).
Figura 1:
Tramway no
mapa da cidade
de São Paulo
e municípios
circunvizinhos
de 1943
Fonte: Secretaria de Estado de Economia e Planejamento. Instituto Geográfico e Cartográfico - IGC. Acervo - Tombo: 1153.
Fizeram-se os estudos para o melhor traçado, Asilo dos Inválidos e ao Hospital dos Morféticos,
sendo indicada a Estação do Pari como ponto de hoje Hospital São Luiz Gonzaga para tuberculosos.
partida para melhor combinação com a Estrada de Da mesma forma que toda a infraestrutura da
Ferro Inglesa, a qual trazia o material (canos, tijolos tramway só foi concebida quando o problema de
e cimento) de Santos ao armazém ali implantado, de falta de fornecimento de água começou realmente a
onde seria baldeado para o trenzinho da Cantareira. ameaçar a cidade, os dois maiores lotes norteadores
A equipe de locação iniciou seus trabalhos no dia 1º de boa parte da malha urbana do Jaçanã só seriam
de fevereiro de 1893, e em princípios de 1894 já es- ocupados quando uma outra questão de saúde públi-
tava concluída a linha até o reservatório. ca não pudesse mais ser postergada na cidade.
Mas o inesperado aconteceu. Começando os O quadro de desenvolvimento da cidade a par-
seus serviços, o tramway logo chamou a atenção dos tir da instalação do sistema ferroviário é indiscutí-
moradores dos bairros por onde passava, por ser um vel. São Paulo começa a substituir a partir da década
meio mais prático de transporte do que os bondes de 1870 sua fisionomia colonial. São muito claros
da companhia de Santana. A viagem era agradável os relatos das transformações em curso naquela dé-
e cheia de paisagens pitorescas e interessantes. Foi cada. Richard Morse (1970, p. 30), analisando os
então que o Chefe da Comissão de Saneamento fez testemunhos e os dados do período, sintetiza os des-
um ofício ao Secretário dos Negócios da Agricultu- dobramentos positivos introduzidos pela nova in-
ra, Comércio e Obras Públicas pedindo autorização fraestrutura que selou o seu passado provinciano e
para abrir a linha ao tráfego público, “estabelecendo colonial e abriu a cidade para um embrionário ciclo
trens de recreio, com uma só classe, aos domingos e metropolitano:
dias feriados” (STIEL, 1978, p. 82).
Os trens começaram a correr, então, às 7 horas e
O impacto da ferrovia nos trechos urbanos já con-
saíam de 3 em 3 horas até as 4 horas da tarde, com
solidados ou em um processo de consolidação foi
paradas em Santana, Mandaqui, Tremembé e Canta-
radical. Embora naquele momento muitos bairros
reira e a um preço de ida e volta de 3$000. A procura
residenciais cortados pelo sistema ainda estivessem
pela viagem se tornou tão expressiva que os respon-
em processo de urbanização, emergindo concomi-
sáveis pelo tramway consideraram experimentar um
tantemente como bairros arruados, enquanto se
trem diário para passageiros a partir de setembro de
instalava o novo equipamento de transporte.
1894. Com a arrecadação aumentando mais de seis
vezes em apenas três meses (de 511$000 em setem-
bro para 3:369$000 em dezembro do mesmo ano), Na franja periférica da metrópole, os “subúrbios-
houve um estímulo à implantação de novos trens em -estação”, como o Jaçanã, conheceram grande cres-
horários mais organizados. cimento nesse período. Apesar de a ferrovia já não
É interessante a percepção do poder público, já ocupar o mesmo papel de induzir a ocupação poste-
naquela época, em relação à acentuação do processo riormente, sua influência era direta no provimento
de urbanização da zona norte devido à construção de transporte para o Centro, consolidando o papel
das estações ferroviárias, gerando assim um tráfego de “subúrbio-dormitório”.
cada vez maior entre regiões da cidade, como se vê no
Relatório da Secretaria da Agricultura para 1894 que
diz: “Nota-se que o tráfego tende a desenvolver-se, o O DECLÍNIO DA FERROVIA
que encontra fácil explicação no fato de estarem as E SEUS RASTROS
terras marginais atualmente desaproveitadas, poden-
do aliás criarem-se nelas, vantajosamente, pequena Entretanto, essa grande rede ferroviária que conec-
lavoura e chácaras de habitação campestre e de ar- tava Guarulhos e as zonas central e nordeste de São
rabalde”. Paulo se desfez na década de 1960. A partir do ano
Em 1905 foi concluído o ramal ao Horto Flores- de 1964, iniciou-se o desmonte de toda a linha da
tal, tendo sido iniciado no ano seguinte novo pro- Cantareira, começando com o trecho entre a Estação
longamento desse ramal até a Estação Tremembé. E Tamanduateí e a estação Areal, e no ano seguinte o
em 29 de dezembro de 1908 a Lei orçamentária Nº trecho de Areal até Guarulhos, sendo que a última
1160, art. 48. autorizou o governo a mandar cons- viagem do ramal de Guarulhos se deu no dia 31 de
truir um ramal da Estrada de Ferro da Cantareira ao maio de 1965.
bairro do Guapira (hoje Jaçanã), próximo à divisa Não há uma razão exclusiva para esse declínio
das cidades de São Paulo e Conceição de Guarulhos. do sistema ferroviário, que impactou outras linhas
A finalidade desse ramal era ligar aquela estrada ao além da Tramway Cantareira. Não faz parte do esco-
po deste trabalho aprofundar-se sobre essa questão, Da mesma maneira, a forma e os usos adquiridos pela
porém, cabe dizer, como Maia (2009, p. 146), que cidade construída não têm uma origem claramente
o “senso comum a respeito do desmantelamento do definida. Logo, o que se buscam são indícios de al-
sistema ferroviário brasileiro é passível de concordân- gum tipo de contaminação constitutiva que traga di-
cias e críticas”, no que se refere aos discursos de que a ferenças ao objeto em questão, sem encará-la como
crescente indústria automobilística no Brasil das dé- um destino final e também sem encará-la como ori-
cadas de 1950 e 1960, sob o comando de Juscelino gem única e isolada.
Kubitschek e dos militares, foi o fator elementar para Libertando-se de paradigmas dessa sorte dois
o desmonte do sistema ferroviário brasileiro. Afinal, rumos equivocados podem ser evitados com maior
como ela mesma cita: facilidade: o primeiro é o da moldagem de alguns fa-
tos presentes ou históricos a fim de apoiar uma tese
que seja baseada em um motivador único que dis-
as origens da desestruturação podem ser notadas
pense contaminações de áreas diversas, como o caso
mesmo antes do governo Kubitschek. Até porque
do próprio desmonte dos trilhos, que aparentemente
a história da construção da malha ferroviária brasi-
sofreu forte influência de uma política rodoviarista,
leira é repleta de situações problemáticas e de crise.
mas que tem rastros provindos de outros fatores não
Um movimento de vai e vem entre o Estado e a
tão evidentes. O segundo é aquele que não conside-
iniciativa privada nacional e internacional acompa-
ra os rastros que estão sendo deixados no presente e
nha a história da ferrovia. (MAIA, 2009, p. 146).
também os vindouros como parte a ser estudada no
campo da atualidade, deixando que apenas os rastros
Grande parte dos trilhos foi removida ou aterrada do passado dominem o destino daquele objeto e im-
por longas avenidas, e no que se refere às estações, as pedindo possibilidades de raciocínios intervenientes
que não foram completamente demolidas hoje ser- que por si só são argumento suficiente para uma aná-
vem a outros propósitos, sem qualquer menção ao lise como essa, que de outra forma poderia ter sua
uso anterior. E atualmente a Linha-1 Azul do metrô utilidade questionada.
percorre o mesmo trajeto que a Tramway fazia entre
as estações Areal e Tucuruvi, enquanto o trecho en-
tre a Vila Galvão e o aeroporto foi de alguma forma CENÁRIO ATUAL
reconstituído por um corredor de ônibus da EMTU. DO TRAJETO FERROVIÁRIO
Apesar de haver continuidades como essas em re-
lação à estrada de ferro já extinta, buscam-se neste A análise desses rastros que, por vezes, não são rela-
estudo vestígios que são mais sutis, porém significati- cionáveis diretamente à presença passada da ferrovia
vos no que se refere aos usos e formas adquiridas pelo no bairro do Jaçanã, porém estão presentes na for-
entorno do antigo sistema de mobilidade urbana. mação urbana, será evidenciada a partir da captura
E para abranger a ampla gama de contribuições de imagens que, em conjunto e comparadas entre si,
que podem advir de áreas não estritamente relacio- demonstrem a hegemonia de escalas diferentes em
nadas à arquitetura e urbanismo para a constituição duas das principais vias do bairro.
de territórios urbanos é oportuno o empréstimo do Ao transpor o traçado da antiga Tramway Can-
conceito de rastros de Jacques Derrida (1967), quan- tareira sobre um mapa atual, pode-se perceber que o
do este afirma que: trecho entre a estação Vila Mazzei e Jaçanã foi todo
substituído pela Rua Benjamin Pereira; enquanto
uma outra via, a antiga Estrada do Guapira, que hoje
O rastro não é somente o desaparecimento da ori-
é uma avenida homônima, permaneceu como uma
gem, ele quer dizer aqui (...) que a origem nem
rota alternativa no mesmo eixo centro-norte.
ao menos desapareceu, que ela não foi constituí-
Para fins comparativos serão tomados dois tre-
da senão em contrapartida por uma não-origem,
chos dessas vias de mesmo eixo com tamanho similar
o rastro que se torna, assim, a origem da origem.
à distância entre as duas estações ferroviárias citadas
(DERRIDA, 1967, p. 90).
anteriormente. Serão percorridos a pé nos dois senti-
dos e serão capturadas fotografias que mostrem ele-
Essa ideia pode ser aplicada, por exemplo, à no- mentos morfológicos e de usos que correspondam a
ção de que a busca por uma suposta origem única e uma determinada escala predominante na via: a do
pura de um idioma é improdutiva, ao passo que são pedestre ou do automóvel.
incontáveis os rastros que se mesclam e vão continuar Ao dizer que “o natural ponto de partida do tra-
transformando as formas humanas de se comunicar. balho de projetar cidades para pessoas é a mobilidade
Figura 2:
Mapa da região
com traçado da
antiga Tramway
Cantareira
sobreposto com
suas estações
e os sentidos humanos, já que estes fornecem a base Pereira que têm recuos de estacionamento, porém
biológica das atividades, do comportamento e da co- essa extensão da cota da calçada raramente convida
municação no espaço urbano”, Jan Gehl (2013, p. à passagem de pedestres, por suas interrupções entre
33) serve como referência inicial para uma busca por lotes e apreensão durante o passeio a pé, que pode
fatores que interfiram na presença e movimentação ser impedido pela entrada de um automóvel na cal-
do corpo humano pelos espaços públicos. çada ao estacionar. Na Av. Guapira, há edifícios que
Por esse motivo, a partir das fotos que foram recuaram sua fachada para além do espaço reservado
tiradas nesses trajetos, elencaram-se seis pontos de para os automóveis, permitindo uma passagem extra,
análise que se baseiam na experiência na calçada coberta e com programação aos pedestres.
do pedestre em sua escala humana não motorizada. Em alguns trechos da R. Benjamin Pereira a cal-
Pontos a serem comparados nas duas vias, tornando çada tem largura quase insuficiente para uma única
mais claras as divergências por meio de características pessoa atravessar, além de estar ladeada por muros
que puderam ser capturadas em ambos as vias e em altos e próximos, enquanto na Av. Guapira diversos
sentidos opostos. estabelecimentos têm sua fachada recuada convida-
Os pontos a serem comparados são: 1) se o per- tiva ao passeio, pela programação e abrigo da chuva.
curso do pedestre pela calçada pode ser interrompi- As proporções entre as edificações e o corpo hu-
do constantemente pelo acesso a estacionamentos ou mano foram consideradas fundamentais para a boa
não; 2) se as calçadas têm uma largura confortável e relação dos pedestres no espaço urbano, assim como
segura para o trânsito de pedestres; 3) se as escalas dito por Gehl (2013). Tanto em sua horizontalida-
horizontais de fachadas são condizentes com a escala de como em sua verticalidade há divergências entre
humana e do andar; 4) se as escalas verticais das edi- as duas vias analisadas: na R. Benjamin Pereira há
ficações oprimem a caminhada de alguma forma, e diversos lotes com grandes extensões fechadas ao pe-
se os gabaritos urbanos condizem com o passeio do destre e alturas incompatíveis com a escala humana,
pedestre; 5) se existe uma programação de fachadas geralmente pelo uso de galpões voltados para o uso
que atraia o passeio contínuo pela calçada; 6) se há do automóvel; na Av. Guapira diversas edificações
diversidade de usos em um mesmo edifício. foram divididas em estabelecimentos menores que
Quanto ao primeiro quesito, é possível consta- geram uma variedade de programação das fachadas e
tar uma grande quantidade de lotes na R. Benjamin são inclusive separados em seus pés-direitos, propor-
Figura 3:
Fotos do
impacto dos
automóveis nas
calçadas das vias
em estudo
Figura 4:
Fotos de
calçadas com
tamanhos
diversos nas vias
em estudo
Figura 5:
Fotos de
estabelecimento
com extensões
horizontais
diferentes nas
vias em estudo
Figura 6:
Fotos de
estabelecimentos
com alturas
diferentes nas vias
em estudo
cionando uma relação vertical mais próxima. por aquilo que é, mas sim pelo que deixou de ser
Outros dois fatores que corroboram o predomí- ou ainda não é”, como Álvaro Domingues (2009,
nio da escala do pedestre na Av. Guapira e a escala p. 13) explana ao dissertar sobre vias que têm essas
do automóvel na R. Benjamin Pereira são a varieda- características. Ele, apesar de se debruçar sobre vias
de de usos, como comércio e serviços, que podem de maior extensão, também salienta que nesses casos
ocorrer tanto horizontalmente como verticalmente, a via:
por meio de edifícios multifuncionais, comuns na
Av. Guapira, em sua maioria com comércio no térreo
Nem é estrada, nem rua e parece acumular as des-
e habitação ou serviços nos pavimentos superiores.
vantagens de cada uma delas. Para quem vai de
Além de todas essas características díspares que
passagem, são as paragens constantes, o congestio-
foram mostradas até agora, a preeminência do auto-
namento, as passadeiras, os semáforos. Para quem
móvel na R. Benjamin Pereira é visível pela quanti-
vive junto à estrada, é a perigosidade do trânsito,
dade de estabelecimentos com seu uso voltado para
a falta de passeios, o ruído constante (DOMIN-
o próprio automóvel, como postos de gasolina, me-
GUES, 2009, p. 6).
cânicos e autopeças. Neste trecho cartografado foram
constatadas dezoito casos como esse.
As evidências comparativas entre vias com ex- Não é o caso deste estudo apontar como as escalas
tensões e eixos semelhantes servem para demonstrar do pedestre e do automóvel são excludentes; muito
como um meio de mobilidade urbana como a ferro- pelo contrário. Porém; é necessária atenção para que
via pode deixar rastros não apenas no estrito territó- o automóvel não restrinja a liberdade e a qualidade
rio ocupado por ela, mas em toda a área imediata. do passeio a pé por uma via, mantendo-a acessível.
A rua que seguiu o antigo trajeto da Tramway Isso é ainda mais importante quando se trata de uma
Cantareira manteve seu aspecto de passagem de Zona Eixo de Estruturação e Transformação Urbana
alta velocidade, trocando apenas de protagonista. O (ZEU), que pretende promover usos residenciais e
automóvel tomou conta dos usos e das características não residenciais com densidades demográfica e cons-
das edificações lindeiras, gerando uma “identidade trutiva altas, como é o caso da R. Benjamin Pereira,
[que] é flutuante, não encontrando estabilidade onde há o corredor de ônibus metropolitano.
Figura 7:
▪ Fotos que
demonstram
a variedade
de usos e
programação nas
vias em estudo
Figura 9:
Mapa do
encontro das
vias em estudo,
seu entorno e
potencialidades
Arthur Simon Zanella é arquiteto e urbanista formado Presbiteriana Mackenzie. Fez estágio docente na
pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. mesma universidade, como professor de projeto.
Doutorando no Programa de Meios e Processos Tem experiência na área de Arquitetura e Urbanismo,
Audiovisuais da Universidade de São Paulo. Mestre com interesse em Arquitetura, Imagem e Narrativas
em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade ano 12 | setembro de 2021 ▪ e-metropolis
nº 46 ▪ arthsz@hotmail.com
Audiovisuais. 55
especial
O padeiro,
a democracia
e a cidade
A
s cidades tornaram-se moder- suntos humanos” que estão em jogo
nidade o lugar fundante da na cidade, revelando a catástrofe do
condição política de qualquer definhamento da política e a falência
sociedade. Talvez, por isso, possamos do mundo compartilhado que dá sig-
inferir que estas tenham se transforma- nificado à aglomeração urbana. Trata-
do nas grandes parteiras da democracia. -se, por conseguinte, da precarização
Evidencia-se, então, que sem democra- de pertencimento ao coletivo.
cia a cidade fracassa, pois perde uma Faz todo sentido que pensemos,
de suas principais características, que então, que para além do socius, a ur-
é a produção de relações. As cidades, banidade e a sociabilidade pública es-
em seu poder de multiplicar relações, tejam tanto na raiz da cidade como na
assim como em suas possibilidades de da democracia. Assim, torna-se funda-
vínculos e abertura para o diálogo, se mental, para a compreensão, tanto da
tornaram, na sociedade moderna, a cidade quanto da democracia, a per-
grande oportunidade de se experimen- cepção de como os “afetos urbanos”
tar novas formas de uma transcendên- são negociados. Por isso mesmo, o
cia já perdida e que fora sustentada reconhecimento do Outro, a tolerân-
pelo Estado, pela religião e pela famí- cia, a confiança, a amizade pública, a
lia. É assim que a cidade vai deixando hospitalidade e o compartilhamento, Robert Moses Pechman
de poder transmitir sua derradeira he- que tanto precisam do mundo e da vi- é doutor em História pela Universida-
rança, que a configurava como lugar da sibilidade dos assuntos humanos para de Estadual de Campinas. Atualmente,
é professor associado da Universidade
reunião, do encontro e da negociação florescer, são as possibilidades dadas Federal do Rio de Janeiro no Instituto
pelo destino dos homens e da socieda- para a democracia se atualizar a cada de Pesquisa e Planejamento Urbano e
de. É, portanto, a “condição humana”, momento histórico. Nesse sentido, de- Regional (IPPUR).
diria Hannah Arendt, ou seja, os “as- mocracia, cidade e cidadania podem betuspechman@hotmail.com
especial
conviver numa mesma frase, quase como se fossem calam ou se sobrepõem a cidade, a urbanidade e os
sinônimos. narradores. São essas narrativas, pois, que irão nos
Não se trata aqui, no entanto, de analisar a “gran- permitir vislumbrar os laços que se entretecem en-
de urbanidade”, própria à política. Para Jacques Ran- tre o que podemos chamar de pequena urbanidade e
cière (1996, p.41) a política e o político são coisas grande urbanidade, revelando a tessitura de que é te-
muito distintas. A política significando o fim da pro- cida a democracia como forma de compartilhamento
messa da revolução e da utopia e, portanto, o con- da vida em comum. Nesse sentido, se a grande urba-
senso e a pacificação. A tarefa da política seria, pois, a nidade remete para a institucionalização da política,
subtração do político, reduzindo-o à sua função pa- a pequena urbanidade aponta para o urbano, não
cificadora, enquanto que o político seria a substância enquanto logística espacial, mas enquanto territó-
fundamental da negociação da vida em comum, o rio do polido (ORLANDI, 1999), do laço social, da
“laço social”, que se configura com a presença de- urbanidade, da sociabilidade, das trocas simbólicas.
sejante do Outro (TEPERMAN, 2020). Portanto, A narrativa, portanto, há de nos mostrar a cidade a
onde se manifesta a cena política, diz Rancière, só o partir da pequena urbanidade (o cotidiano da cena
que existe é a lei da polícia, para evitar que as relações urbana) e a partir da fala dos marginalizados. Quan-
se multipliquem e estimulem conflitualidades provo- to à grande urbanidade, outra narrativa se impõe e
cadoras do dissenso. dela não iremos tratar. Assim sendo, faremos da pe-
Não farei aqui, no entanto, uma análise da demo- quena urbanidade a porta de entrada na cidade das
cracia, mas sim, de seu rebatimento sobre a cidade. “pequenas criaturas”, daqueles ninguéns, daqueles
Assim, vou me ater ao que podemos cunhar de “pe- sem nome na cidade.
quena urbanidade”, ou seja, a experiência da demo- Por muito tempo, assinala Kellen Resende no
cracia no miúdo e que quero capturar nas narrativas artigo “A cidade vista de baixo: o olhar dos margi-
urbanas, praticadas no cotidiano da vida citadina. nalizados”, determinados elementos sociais foram
De fato, não me aterei à dimensão política da de- ignorados pela arte literária ou apenas usados como
mocracia, mas sim, na maneira como ela se manifesta pano de fundo para enredos narrativos. No entan-
na cidade, nas suas filigranas, nos comportamentos to, a literatura, bem como outras artes e ciências,
cotidianos e banais, tão bem representados pelas nar- passou a mostrar novas formas de se ver o mundo
rativas literárias e que expressam de maneira veemen- (RESENDE, 2009). Personagens, antes esquecidos,
te a condição humana na cidade. passaram a ter registradas suas vozes e olhares. Atenta
Como narrar, então, o trágico humano sem que a essas transformações, Kellen Resende nos apresenta
evoquemos o trágico urbano do laço social e a neces- os personagens marginalizados presentes no livro de
sária confiança que se tenta estabelecer na tessitura João Antônio, “Malagueta, Perus e Bacanaço”. Tais,
de um contrato urbano? são filhos da rua e herdeiros das sobras da cidade, são
Se os gregos teatralizavam o trágico da vida na uns “Zé ninguém”, não têm nome, somente apeli-
pólis, nós narramos a tragédia da cidade como uma dos, sobrevivendo do jogo do bilhar e de pequenas
verdadeira guerra de relatos, sendo que a cidade é trapaças. Roendo a cidade pelas beiradas, o olhar dos
o tema maior da narração (GOMES, 2008, p.181). marginalizados para com os “ganhos” com a cidade
Trata-se, assim, de mostrar a cidade como a principal é projetado como quem a vê desde o rés-do-chão,
protagonista da epopeia contemporânea forjada na como os ratos. Para essas pessoas, diz o contista João
comunhão entre os homens, e com a cidade. Tome- Antônio, ocupar um espaço na cidade leva a que pre-
mos, então, a linguagem como uma espécie de ob- cisem se contentar com os seus restos. Fora dos bair-
servatório da cidade na perspectiva discursiva (OR- ros da jogatina, não são ninguém, são apenas seus
LANDI, 1999). apelidos
O que nos conta a cidade quando esta resolve Não ser alguém na cidade lembra o que Jacques
abrir a boca? Às vezes, essa fala é apenas um sussurro, Rancière (1996), em seu livro “O desentendimen-
às vezes, são ruídos, mas também gritos, berros, ge- to”, diz sobre o escândalo da democracia quando a
midos, ordens, lamentos, urros. É próprio da cidade plebe ousa falar para reivindicar direitos. Trata-se de
falar. seres (plebeus), sem nome, nem fala, privados de lo-
Tomando em conta a premissa que nós narramos gos, sem inscrição simbólica na pólis e que disputam
a cidade como se fora uma guerra de relatos, passa- com os patrícios o que falar quer dizer. É a luta pela
mos a entender porque cidade e narração evoluem palavra e pela razão.
como se fossem um ser único. Ao apenas narrar, a A esse propósito, o romancista e contista
cidade nos conta alguma coisa sobre a sua maneira Lima Barreto também nos brinda com a noção de
de ser e, nessa narrativa, percebemos como se inter- “ninguemdade” na cidade, bem marcada em crônica
especial
de 1922 chamada “De Cascadura ao Garnier”. Trata- indagar, portanto, sobre como os ecos dos sofrimen-
se do bonde que liga o subúrbio ao centro da cidade, tos humanos, na complexidade da cidade, reverbe-
cujo motorneiro é um crioulo forte e simpático, ram no Político, que, segundo a acepção de Rancière,
carinhosamente chamado pelos passageiros de Titio é a substância fundamental da negociação da vida
Arrelia. Tal bonde fazia longo percurso por vários em comum; em outros termos, o político entendido
subúrbios antes de ganhar as ruas centrais da capital como a encenação da vida cotidiana no modo da pe-
do Brasil. Enquanto manejava o veículo, Titio Arrelia quena urbanidade.
deitava pilhérias à direita e à esquerda, brincava com Não à toa é que o cronista Braga procura no co-
o tímpano do bonde e assoviava como os cocheiros, tidiano dos desvalidos a mais ínfima gota de mel que
admirando a nova e irregular cidade que despontava adoce suas vidas. Por isso, a deferência para com o
por aquelas bandas, ainda plenas de capinzais gari, o padeiro, o vassoureiro, o anônimo Silva, a vi-
encimados por velhas casas de fazenda. Aproximando- zinha, a viúva e vários outros. Vejamos isso.
se do centro, o bonde embica pelo Mangue e, a
partir daí, o veículo passa a se travestir com uma
nova dignidade: Titio Arrelia se ajeita, acerta o nó da DE PADEIROS, DE EMPREGADAS,
gravata, não diz mais pilhérias, deixa o timbre em paz DE MOTORISTAS
e não assovia mais. Uma nova urbanidade se impõe E DE VASSOUREIROS
a todos através do grosso silêncio que passa a pairar
sobre o veículo, como se este estivesse entrando em Em crônica datada de 1946 e intitulada “O padei-
propriedade alheia. A viagem chega ao fim e o alegre ro”, Braga conta que se lembrou de um padeiro que
motorneiro vai incorporando uma nova natureza ao quando vinha deixar o pão à porta das casas e tocava
seu jeito suburbano de ser. Diante disso, só resta o a campainha para avisar ao morador de sua chega-
seu silêncio. da, já ele ia gritando lá para dentro: “não é ninguém,
é o padeiro”! Certo dia, interpelando o homem do
pão, Braga perguntou-lhe como tivera a ideia de gri-
DA CIDADE, DA PEQUENA tar aquilo? Então, você não é ninguém? O padeiro,
URBANIDADE E DA DEMOCRACIA então, explicou que aprendera com as empregadas
que, ao serem perguntadas, ao ouvirem a campainha,
Para melhor aquilatar a relação entre a cidade e a quem lá estava, respondiam para a patroa: “Não é
narrativa, no sentido de entender como a pequena ninguém não, é só o padeiro”. Diz Braga: “ele me
urbanidade fundamenta os afetos sociais e como esses contou isso sem mágoa nenhuma e ainda se despediu
afetos dão fundamento à democracia, vou tomar a sorrindo”. E Braga, que era jornalista e saía da reda-
obra do cronista Rubem Braga, considerado o grande ção de madrugada, arrematou: “o jornal e o pão esta-
narrador do fugaz, do instante, das migalhas, das mi- riam bem cedinho na porta de cada lar; e dentro do
núcias da cidade e de suas gentes. meu coração eu recebi a lição de humildade daquele
A crônica, constata Ana Karla Dubiela no livro homem, entre todos, útil e entre todos alegre; “não é
“As cidades de Rubem Braga”, anda a pé pela cidade, ninguém, é o padeiro!”.
é “o passeio contemplativo e ao mesmo tempo inte- A banalidade da história e sua cotidianidade
rativo, de troca entre o indivíduo e a cidade, entre apontam para um fato corriqueiro na vida da cidade,
o sentimento de representação coletiva e o urbano”, e nos traz uma questão candente sobre a identidade
donde se conclui que esta faz da metrópole a protago- do sujeito e seu não-lugar social. Sua fala é o silêncio,
nista do fato (DUBIELA, 2017, pp. 44-45). a mudez daqueles que não são, nem no mundo e nem
Quando Renato Janine alega que a democracia na cidade. Segundo Rancière (1996, p. 37), “aquele
é algo que vem de baixo, desdenhado desde a Anti- que não tem nome, não pode falar, da boca da plebe
guidade como o empenho insolente dos pobres em não saem palavras, apenas ruídos”.
invadir o espaço de seus superiores, nos lembramos Outra crônica de padeiro, essa de 1946, intitula-
da crônica que, sempre próxima dos leitores, pega o da “Louvação”, fala de um padeiro do subúrbio ca-
miúdo e mostra sua grandeza. A cidade, dirá o con- rioca que foi autuado, por estar fabricando pão com
tista Rubem Fonseca em um de seus contos, “não é farinha pura, já que a Prefeitura, por falta de trigo,
aquilo que se vê do Pão de Açúcar”, querendo nos passou a obrigar as padarias a fazerem misturas de fa-
alertar que o drama é mais embaixo e que este anda rinha. O padeiro será punido por sua desobediência,
de mãos dadas com o repertório urbano de cada um. mas antes o cronista o louvará: “Glória a ti padeiro de
A profunda ligação entre cidade e narrativa leva-nos a Brás de Pina, padeiro do pão puro”. Segue o cronista,
Entre o falso leite, a falsa arte... a falsa palavra do operários, empregados em padaria, engraxates, jor-
político… e a falsa democracia - glória a ti. Mer- naleiros, lavadeiras, cozinheiras, uma massa torpe e
gulhamos no frenesi das falsificações; nossos panos enorme desfilando num bloco de carnaval, que toma
são de falso tecido, os sapatos de falso couro… as o asfalto, que dança e canta de tal maneira que pare-
palavras de falsa moral. Há orquestras tocando cem exigir Igualdade, Liberdade e Fraternidade. E o
falsas músicas e oradores com a voz embargada, cronista vê nesse espetáculo popular, não uma bata-
pela falsa emoção e o chefe de Polícia resolve punir lha de confete, mas uma batalha de roncos e soluços,
falsos crimes. Os partidos fazem uma falsa coali- uma grande insurreição armada de soluços.
zão ou se colocam em falsa oposição… De tudo No livro “O conde e o passarinho”, Braga divaga
nos queixamos aos falsos amigos… quando tudo sobre o bonde e relembra o aviso que vinha inscrito
piora, o povo nas ruas promove falsos distúrbios… na cabine do motorneiro e que dizia: “Fale ao motor-
Tu, só tu, fazes o puro pão. Às escondidas, nesta ci- neiro somente o necessário”. Ao que o cronista con-
dade pecaminosa; é alí, na penumbra, que formas testa e propõe: “O essencial é falar ao motorneiro.
a tua massa pura e a levas ao forno de verdadeiro O povo deve falar ao motorneiro. Se o motorneiro
fogo do ideal, ao fogo de teu coração. Glória a ti, se fizer surdo, o povo deve puxar a aba do paletó do
verdadeiro padeiro, último preparador da branca motorneiro. Em geral, nessas circunstâncias, o mo-
hóstia da verdade eterna e terrena do pão dos ho- torneiro dá um coice. Então o povo deve agarrar o
mens: glória a ti. motorneiro, apoderar-se da manivela, colocar o bon-
de a 9 pontos (velocidade máxima), cortar o motor-
neiro em pedacinhos e comê-lo com farofa”.
Embora diferente da primeira crônica “O padei- Em “Luto da família Silva” trata-se da morte sú-
ro”, cuja identidade era colocada em suspenso, numa bita de um trabalhador, João Silva, na rua e Rubem
espécie de eclipse do ser, em “Louvação”, Braga nos Braga convoca todos os Joões Silva da cidade para
traz um padeiro que confirma sua profissão e se im- prestar-lhe homenagem, afirmando que:
põe à autoridade e aos costumes vigentes, tentando
resgatar aquilo que dá sentido ao seu estar na cidade:
Nossa família, João, vai mal em política. Sempre
a pureza de seu pão. O primeiro padeiro sai de cena
por baixo. Nossa família, entretanto é que trabalha
como uma espécie de “Zé ninguém”, assoviando, o
para os homens importantes… Nossa família que-
segundo sai de cena sendo alguém, rebelde que se
bra pedra, faz telhas de barro, laça os bois, levanta
mostrava.
os prédios, conduz os bondes, enrola o tapete do
Quase que numa arenga religiosa, Braga prega
circo… Nossa família… faz tudo. Apesar disso,
contra a falsidade dos negócios da cidade, contra
João Silva, nós temos que enterrar você é mesmo
os vendilhões do templo, convocando para a
na vala comum. Na vala comum da miséria… Por-
verdade, convocando pela crença no verdadeiro
que nossa família um dia há de subir na política.
pão e pela própria verdade do pão, alimento básico
que congraça e congrega todos em torno da mesa.
Lutando pela pureza das coisas, Braga impreca Na crônica “O motorista do 8-100”, Braga põe
contra a cidade “pecaminosa”, contra as posturas em cena um motorista de caminhão de lixo, que,
municipais e contra os costumes. Glorificando um enquanto os lixeiros fazem a coleta, “pega um espa-
padeirinho suburbano, o cronista acaba pregando nador e um pedaço de flanela, e faz seu carro ficar re-
a desobediência civil, tentando recuperar um ideal brilhando de limpeza. Esse motorista que limpa seu
perdido de pureza. caminhão, conta Rubem Braga, não é um confor-
Seria demasiado afirmar o quanto essas crônicas mado, é um herói silencioso que lança um protesto
performam o que a cidade é, e como elas arremetem superior. A vida o obrigou a catar lixo e imundície;
contra a Política como negação da utopia de uma ele aceita sua missão, mas a supera com esse protesto
feliz-cidade, no sentido que lhe dá Jacques Rancière? de beleza e dignidade… O motorista do caminhão
Nas crônicas “Batalha no Lgo. do Machado”, “O 8-100 parece dizer aos homens da cidade: “O lixo é
conde e o passarinho”, “Luto na família Silva” e “O vosso: meus são esses metais que brilham, meus são
motorista do 8-100”, o que escorre da pena de Braga esses vidros que esplendem, minha é essa consciência
é um cronista decididamente implicado com os pe- limpa”.
quenos gestos da urbanidade, com as pequenas cau- Juntando essas quatro crônicas, o que temos? Um
sas, com a baixa política, com o sofrimento popular. retrato do miúdo da democracia, de como suas de-
Na “Batalha do Lgo. do Machado” trata-se de mandas sobem dos chãos da cidade para os cumes da
Representações
fronteiriças da cidade
A arte de rua como direito à cidade em Curitiba
ˆ
Curitiba, Alto da XV, 2015
A
s imagens deste ensaio foram teiriças: nas fronteiras entre a apropria-
produzidas ao longo de dois ção e o entendimento, entre a fruição e
anos da minha pesquisa de o registro, entre o pensar e o sentir, en-
mestrado em Geografia na UFPR (de tre a ciência e a arte, entre a realidade
2014 a 2016), na qual me dediquei a e a representação, entre o pesquisador
entender a arte de rua enquanto uma e o cidadão, a criação e a destruição, o
expressão da luta pelo direito à cida- permanente e o efêmero, os fixos e os
de em Curitiba (PR). O ensaio é uma fluxos. Em tempos de pandemia, iso-
seleção entre muitos registros de fo- lamento social e obscurantismo, olhar
tografias rotuladas como “aleatórias”, para estas imagens é um anseio pelas
tiradas com celular e em momentos ruas, mas também uma maneira de re-
diferentes dos trabalhos de campo ou visitar a vida urbana e a sua qualidade
entrevistas da pesquisa. Entretanto, de encontro, de conflito, de devir, de
talvez elas tenham sido as imagens que
mais contribuíram para a compreensão
possível. ▪ Curitiba, São Francisco, 2015
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Curitiba, Mossunguê, 2015
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Curitiba, Centro, 2015 ˆ
Curitiba, Centro, 2015
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Curitiba, São Francisco, 2014 ˆ
Curitiba, Alto da XV, 2014
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Curitiba, Centro, 2014
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Curitiba, São Francisco, 2015 ˆ
Curitiba, Centro, 2015
Curitiba,
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Centro, 2015
Curitiba,
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Centro, 2015
Curitiba,
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Curitiba, Jardim
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Botânico, 2015
Curitiba,
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Centro, 2016
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