Um Estudo Crítico Da Obra de José Carlos Mariátegui
Um Estudo Crítico Da Obra de José Carlos Mariátegui
Um Estudo Crítico Da Obra de José Carlos Mariátegui
Bibliografia
ISBN 978-85-88072-09-1
Vinicius de Figueiredo
Marcelo Carvalho
Apresentação 3
Além desse aspecto, há também outros a serem assinalados nesta apresenta-
ção. O índice dos volumes possibilitará que pesquisadores descubram no trabalho de
colegas até então ignorados novos interlocutores, produzindo o resultado esperado
de novas interlocuções, essenciais para a cooperação entre as instituições a que per-
tencem. Também deve-se apontar que essa iniciativa possui um importante sentido
de documentação acerca do que estamos fazendo em filosofia neste momento.
Nesta direção, a consulta dos Livros da ANPOF abre-se para um interessante
leque de considerações. É perceptível a concentração dos trabalhos apresentados
nas áreas de Filosofia Moderna e de Filosofia Contemporânea. Caberá à reflexão so-
bre a trajetória da consolidação da filosofia no Brasil comentar esse fenômeno, exa-
minando suas razões e implicações. Como se trata de um processo muito dinâmico,
nada melhor do que a continuidade dessa iniciativa para medir as transformações
que seguramente estão por vir.
Cabe, por fim, agradecer ao principal sujeito dessa iniciativa – isto é, a todos
aqueles que, enfrentando os desafios de uma publicação aberta como essa, apresen-
taram o resultado de suas pesquisas e responderam pelo envio dos textos. Nossa
parte é esta: apresentar nossa contribuição para debate, crítica e interlocução.
4 Apresentação
Filosofia Contemporânea:
Ética e política contemporânea
Adauto Lopes da Silva Filho (UFC)
A Indústria Cultural: Regressão do Esclarecimento e Mistificação
da Consciência...................................................................................................................................................11
Sumário 5
Ana Paula Silva Pereira (UFPB)
As origens do totalitarismo e a crítica de Hannah Arendt aos
direitos humanos......................................................................................................................................... 109
6 Sumário
Everton Miguel Puhl Maciel (UFPel)
Teoria da justiça utilitarista............................................................................................................... 235
Sumário 7
João Eudes Rocha de Jesus (GT Filosofia e Direito)
A contemporaneidade do jusnaturalismo tomista na Filosofia do
Direito de John Finnis................................................................................................................................ 381
8 Sumário
Maria José Pereira Rocha (GT Pragmatismo e Fil Americana)
O silêncio que fala, a emergência da subjetividade................................................................. 537
Sumário 9
Renata Schlumberger Schevisbiski (Filosofia Politica Contemporânea)
O político e a política em Claude Lefort....................................................................................... 681
10 Sumário
A indústria cultural:
regressão do esclarecimento
e mistificação da consciência
Resumo
Introdução
A
atualização do conceito de fetichismo da mercadoria em Marx encontra-se,
na teoria de Adorno, principalmente na sua tematização acerca da indústria
cultural que, para ele, se torna uma forte arma para a manutenção do poder
dominante. Segundo Adorno, o fetichismo se expressa, aqui, no valor de troca do
bem cultural. Sem excluir outros escritos, Adorno faz uma exposição sobre esse as-
sunto principalmente no seu ensaio A indústria cultural, contido no livro Dialética
12
Adauto Lopes da Silva Filho
cultural, além de anular a cultura e dominar os homens, contribui também para o
progresso da barbárie. Esses “momentos repressivos da cultura produzem e repro-
duzem a barbárie nas pessoas submetidas a essa cultura” (ADORNO, 1995, p. 157).
Em Mínima Moralia, Adorno repete essa idéia ao mencionar que a tecnificação anu-
la a linha que separa a cultura da barbárie. Segundo ele, “progresso e barbárie es-
tão hoje, como cultura de massa, tão enredados que só uma ascese bárbara contra
esta última e contra o progresso dos meios seria capaz de produzir de novo a não-
-barbárie” (ADORNO, 1992, p. 43). Portanto, além dos fatores subjetivos, também
existe uma razão objetiva da barbárie: a falência da cultura, que vai desembocar na
semicultura, e, portanto, na semiformação do homem2.
Disso resulta a falsa democratização da cultura e “a regressão do esclareci-
mento à ideologia... O esclarecimento consiste aí, sobretudo, no cálculo da eficácia
e na técnica de produção”. (ADORNO, 1985, p. 16). Existe na ideologia burguesa
da cultura, uma verdade atenuada, quer dizer, sob uma ideologia aparentemente
eficaz ao povo, a burguesia “tenta se furtar à responsabilidade pela mentira que
difunde” (ADORNO, idem, p.16)3.
Tal mentira consiste na promessa da burguesia, no seu desenvolvimento
revolucionário, de uma sociedade racional e livre na qual seria proporcionado a
todos uma formação cultural, pois nas sociedades pré-capitalistas poucas pessoas
tinham acesso às manifestações artísticas, mas, com a transformação para o capi-
talismo todos teriam iguais oportunidades, quer dizer, todos teriam acesso à arte,
à literatura, à música etc. Desse modo, o mundo cultural burguês postulava a re-
alização da liberdade e da felicidade para os indivíduos. A promessa da ideologia
burguesa da cultura era a de valorizar a dimensão subjetiva; a interioridade dos
sentimentos, dando ênfase aos valores espirituais e, assim, realizava-se a sedução
das massas. No entanto, a grande maioria da população não teve de fato acesso
nem aos bens materiais, nem aos bens culturais4. Nesse sentido, a igualdade não se
deu pela formação cultural, pelo acesso à cultura, e sim pela massificação da cul-
tura mercantilizada, industrializada. Sobre essa objetivação da ideologia cultural
burguesa, comenta Adorno:
2
Para Adorno, a semicultura ou a semiformação cultural diz respeito à formação limitada, reificada
pelo sistema capitalista. Portanto, a semiformação ou a semicultura é resultante dos mecanismos das
relações político-econômicas dominantes, pois, nesse caso, os momentos de formação são reificados
pela indústria cultural, atribuindo a essa formação o caráter de mercadoria.
3
No aforismo A criança com a água do banho, Adorno retoma essa questão da mentira da burguesia,
em relação à cultura, dizendo que “entre os temas da crítica da cultura, o da mentira é de longa data
central: que a cultura simula uma sociedade digna do homem, que não existe; que ela encobre as
condições materiais sobre as quais se ergue tudo que é humano; e que ela serve, com seu consolo e
apaziguamento, para manter viva a má determinação econômica da existência. Esta é a concepção de
cultura como ideologia...” (ADORNO, 1992, p. 36).
4
Tanto Marcuse como Adorno fazem uma distinção entre cultura e civilização. A cultura estaria relacio-
nada com as idéias e os sentimentos, com os bens espirituais; ao passo que a civilização diz respeito ao
mundo da reprodução material, quer dizer, dos bens materiais. A esse respeito ver o ensaio de Marcuse
“Sobre o Caráter Afirmativo da Cultura”, publicado no livro Cultura e Sociedade, volume I (1997).
5
Segundo Adorno a não-cultura pode elevar-se à consciência crítica através do desenvolvimento das
potencialidades do homem; mas a semicultura bloqueia essa consciência, pois os que já se conside-
ram educados se mantêm na produção do conformismo.
14
Adauto Lopes da Silva Filho
com a quantidade de bens a ela destinados6. A elevação do padrão de vida
das classes inferiores, materialmente considerável e socialmente lastimável,
reflete-se na difusão hipócrita do espírito. Sua verdadeira aspiração é a nega-
ção da reificação. Mas ele necessariamente se esvai quando se vê concretiza-
do em um bem cultural e distribuído para fins de consumo. A enxurrada de
informações precisas e diversões assépticas desperta e idiotiza as pessoas ao
mesmo tempo (ADORNO, 1985, p. 14-15).
6
Podemos fazer uma analogia aqui com aquela posição de Marx quando diz que “com a valorização
do mundo das coisas aumenta em proporção direta a desvalorização do mundo dos homens” (MARX,
1975, p. 159).
7
No debate Educação e Emancipação, Adorno menciona uma contradição que percorre toda a his-
tória burguesa: “de um lado, o vigoroso individualismo, que não admite preceito, e, de outro lado, a
idéia da adaptação assumida do darwinismo por intermédio de Spencer...” (ADORNO, 1995, p.175).
16
Adauto Lopes da Silva Filho
A sobrevivência da subjetividade exige a frieza por parte dos indivíduos, até
mesmo dos mais pobres. “A frieza apodera-se de tudo o que fazem da palavra amis-
tosa que permanece impronunciada, da consideração que não é praticada. Essa
frieza acaba repercutindo naqueles de que emana” (ADORNO, 1992, p. 36). Mas, a
deformação não é uma doença do homem e sim da sociedade que o transforma em
objeto, “tornando a priori comensuráveis cada um dos seus impulsos, como uma
variante da relação de troca...” (ADORNO, 1992, p. 201). Portanto, a frieza e a cruel-
dade não fazem parte da natureza do indivíduo e sim são produzidas socialmente9.
No ensaio Educação após Auschwitz, Adorno comenta que seria preciso, até
mesmo com o auxílio da psicologia e da psicanálise, conhecer as condições inter-
nas e externas da consciência coisificada, pois, geralmente o estado de consciência
e de inconsciência daninhos é apreendido equivocadamente como fazendo parte
do seu ser-assim, da sua natureza, quer dizer, “como um dado imutável e não como
resultado de uma formação” (ADORNO, 1995, p. 132). Além disso, no que se refere
à consciência coisificada é preciso examinar ainda a sua relação com a técnica, uma
vez que a personalidade é produzida de acordo com o período histórico.
9
Assim como para Marx, também para Adorno a personalidade do homem é social. Para ambos, o homem não
nasce bom ou cruel, mas se torna de um modo ou de outro, de acordo com as circunstâncias sócio-históricas.
Por outro lado, essas condições são criadas por ele próprio, pois, para Marx, a consciência não é um simples epi-
fenômeno da reprodução biológica, mas tem um papel ativo na sua processualidade histórica. Trata-se de uma
relação recíproca. Para lembrar aquela frase de Marx: “as circunstâncias fazem os homens assim como os homens
fazem as circunstâncias” (MARX, 1984, p. 56). Em outra passagem Marx diz que “os homens ao desenvolverem
sua produção material e seu intercâmbio material, transformam também, com esta sua realidade, seu pensar e os
produtos do seu pensar” (MARX, idem, p. 37). Daí porque na sociedade industrial avançada, segundo Marcuse e
Adorno, o pensamento tornou-se um instrumento da tecnologia que ampara a lógica do capitalismo monopolista,
tornou-se uma razão instrumental.
Referências
ADORNO, Theodor W. Mínima Moralia (1992). Tradução de Luis Eduardo Bicea. São Paulo:
Ática.
________,__________. Educação e Emancipação (1995) tradução de Wolfgang Leo Maar, São Pau-
lo: Paz e Terra.
ADORNO, Theodor W. e HORKHEIMER, Max. Dialética do Esclarecimento: fragmentos filosó-
ficos (1985). Tradução de Guido Antonio de Almeida. Rio de Janeiro: Zahar, 1985.
FREITAG, Bárbara. A Teoria Crítica Ontem e Hoje (2004). São Paulo: Brasiliense.
MARCUSE, Herbert. Cultura e Sociedade, Volume I (1997). Tradução de Wolfgang Leo Maar...
[et. al]. Rio de Janeiro: Paz e Terra.
MARX, Karl. Manuscritos Econômico-Filosóficos (1975). Tradução de Artur Mourão. Lisboa:
Edições 70.
____,_____. A Ideologia Alemã (1984). Tradução de José Carlos Bruni e Marco Aurélio Noguei-
ra. 4ª ed., São Paulo: HUCITEC.
18
Adauto Lopes da Silva Filho
Egoísmo racional:
possibilidades e limites de
uma ética do interesse próprio
GT – Ética e Bioética
Resumo
O egoísmo racional será apresentado como uma teoria que sustenta que dian-
te de questões morais o agente, racionalmente, rejeitará as opções que impli-
quem em sacrifício, adotando a postura mais vantajosa para seus próprios
interesses. Argumentar-se-á ainda que a existência individual e separada das
pessoas leva ao surgimento incontornável do egoísmo em situações morais. O
aspecto ético da teoria remete à seguinte questão: o que significa realmente
agir conforme os próprios interesses e, ao mesmo tempo, respeitar os interes-
ses dos outros? A hipótese subjacente às reflexões que propõe o artigo é de
que, para além de uma absolutização de um egoísmo puro, é possível defender
um egoísmo tamanho econômico, segundo o qual o comportamento egoísta
do agente não é contraditório com a consideração genuína pelos interesses
dos outros.
Palavras-chave: ética, egoísmo, interesse próprio.
O
tema desta comunicação insere-se na discussão mais ampla a ser desen-
volvida na dissertação de mestrado a respeito das possibilidades e limites
de uma ética egoísta. O objetivo aqui é de caracterizar o egoísmo racional
a partir de autores que defendem a teoria destacando dois elementos: a existência
separada das pessoas como fato originador do egoísmo e o aspecto ético do egoís-
mo entendido como as ações orientadas para o interesse próprio. A análise a seguir
discutirá esses dois pontos com o intuito de mostrar alguns argumentos a favor do
egoísmo racional.
1
A relação entre interesse e racionalidade é analisada por David Gauthier (1986). Gauthier constrói
uma teoria contratualista a partir da noção de ‘racionalidade maximizadora’ associada à teoria dos
jogos e à escolha racional, cujo objetivo é demonstrar que é racional restringir os interesses pessoais
desde que os demais membros da sociedade façam o mesmo e com isso os indivíduos tornem-se só-
cios num sistema de cooperação (GAUTHIER, 1998, p. 36; 1986, p. 10). (Ver também NAPOLI, 2012,
p. 05).
2
Esta expressão é utilizada por Brink (1997, p. 103), porém não consta na obra de Sidgwick.
3
“I am concerned with the quality of my existence as an individual in a fundamentally important sense
in which I am not concerned with the quality of the existence of anyone else” (Todas as traduções de-
sta comunicação foram feitas livremente).
4
Esta passagem no texto de Sidgwick é chamada por Robert Shaver the distinction passage (SHAVER,
1999, p. 84). Shaver sugere três interpretações para a passagem: the personal identity interpretation
(Id., p. 84-9), the point of view interpretation (Id., p. 89-95) e the separateness of persons interpretation
(Id., 95-8).
5
“…fundamental in fixing the ultimate goal of an individual’s rational action.”
20 Adelino Montenegro
uma vez que agimos, na maior parte das vezes, tendo em mira nossos interesses ou
desejos pessoais, não seria razoável fazer sacrifícios que não fossem compensados.
Por exemplo, se me encontro em uma situação que exige de mim um sacrifício pre-
sente ou futuro parece razoável que eu deseje ser compensado uma vez que meu
objetivo inicial de algum modo foi restringido. Além disso, Brink acredita que a
tese de Sidgwick e o princípio da compensação explicam a assimetria entre distri-
buição intrapessoal e distribuição interpessoal. A assimetria se revela na medida
em que a compensação intrapessoal é automática posto que benfeitor e beneficiá-
rio são a mesma e única pessoa. Obviamente, o mesmo não ocorre na compensação
interpessoal o que explicaria as relações que Sidgwick parece ver entre separação
de pessoas e demandar que sacrifícios sejam compensados (Id., p.105).
Finalmente, cabe ressaltar que pouco importa para a presente discussão se
a compensação ocorrerá ou não. A crença e o desejo do agente de ser compensado
por um eventual sacrifício é o que importa uma vez que isso repercutirá no seu
comportamento ético diante das relações interpessoais.
6
“In fact, my concern for those to whom I stand in special relationships shapes my conception of my
own interests and the standards by which I judge my life to be a success.”
7
“Selfish actions are allowed (according to Smith), but one must also be directed at other people. Pure
selfishness, in other words, is wrong.”
8
“…but a person who cultivates his regard for other people to the extent that best fulfils his interests.”
9
Egoísmo como motivação parcial ou egoísmo tamanho econômico são postos como termos intercam-
biáveis e, até o momento de nossa pesquisa, assemelham-se ao que Gauthier chama “maximizador
constrangido” (constrained maximizer) (1986, p. 167-70) ou “egoísta incompleto” em oposição ao
“egoísta puro”(1998, p. 38).
10
Trata-se de um paralelo com a tese de Dwight Furrow que defende um “altruísmo tamanho eco-
nômico”. A acusação de que o egoísmo racional negligencie os relacionamentos no agir ético, leva
Furrow a formular o que ele chama “altruísmo tamanho econômico”: “agir, ao menos em parte, se-
gundo uma genuína preocupação para com os outros.” (FURROW, 2007, p. 21). O “altruísmo tamanho
gigante” seria aquele em que o agente se sacrificaria totalmente pelo outro, por exemplo, sacrificar
a própria vida.
22 Adelino Montenegro
A universalização da busca do interesse próprio pode ser formalmente defi-
nida pela proposição I abaixo sugerida por Kalin:
A proposição I pode ser assim descrita: uma pessoa deve fazer uma ação es-
pecífica, se e somente se esta ação está nos interesses desta pessoa. Nesse sentido,
o egoísta deve aceitar que todos, sem exceção, tenham o direito, ou mesmo estejam
obrigados, a agir conforme a proposição I, caso contrário o egoísta estaria agindo
contra a regra de universalização. Ir de encontro à regra, em linguagem popular,
levaria o egoísta a dizer, “Faça o que eu digo (porque me beneficia), mas não faça
o que eu faço.”
Além da exigência de universalização contida na proposição I, Kalin ainda ar-
gumenta que toda teoria moral deve oferecer dois critérios para julgamentos morais:
1. Critérios para julgamentos morais na primeira pessoa: “Eu devo fazer S
em C.”
2. Critérios para julgamentos morais na segunda e terceira pessoas: “Fula-
no deve fazer S em C.”
Expostas tais condições Kalin dialoga com dois oponentes da teoria. Num
primeiro momento, William Frankena, partindo dos critérios acima, afirma que a
única interpretação possível para a proposição I está contida nos princípios (a) e
(b) a seguir:
a) Se A esta julgando a si mesmo, então A usa o seguinte critério: A deve
fazer Y se e somente se Y está nos interesses de A.
b) Se A é um expectador julgando outra pessoa, digamos B, então usará o
seguinte critério: B deve fazer Y se e somente se Y está nos interesses de A.
Isto é, A é o egoísta e age conforme seus interesses e espera que B também
aja em defesa dos interesses de A. Assim sendo, A romperia com a regra da univer-
salização expressa pela proposição I e o egoísmo se mostraria inconsistente como
pensa Frankena. (FRANKENA, apud KALIN, 1970, p.67-70).
Kalin, no entanto, diz que a única forma de escapar das inconsistências de-
correntes de (a) e (b) é substituir (b) pela proposição (c):
c) Se A é um expectador julgando outra pessoa, digamos B, então usa o se-
guinte critério: B deve fazer Y se e somente se Y está nos interesses de B.
Com esta solução, diz Kalin, o egoísmo atende aos critérios 1 e 2 acima e
não há dificuldades em reconhecê-lo como teoria moral que ofereça critérios de
julgamentos e funcione como guia de conduta. Claro está que a teoria não remove
possíveis conflitos entre A e B, porém, conflito não é o mesmo que contradição
interna da teoria.
Conclusão
24 Adelino Montenegro
como guia de conduta. Para tanto apresentamos uma concepção alternativa ao ‘ego-
ísmo puro’ compatível com o interesse pelo outro sem, contudo, desnaturar o funda-
mento da teoria que é a defesa do agir moral a partir do interesse próprio do agente.
O egoísmo racional não pretende remover os conflitos por ventura existen-
tes entre os agentes, mas tão somente oferecer uma teoria de razões para a ação. A
razão primordial para a ação é o interesse próprio do agente. A tensão que parece
existir entre as diversas teorias morais e a necessidade humana de remoção ou
diminuição dos conflitos remete à concepção material de valor ou à atribuição de
valor intrínseco a um bem ou conjunto de bens que deveriam ser perseguidos por
todos. Por outro lado, ao defender uma concepção formal de valor, o egoísmo racio-
nal afirma que não há um bem ou conjunto de bens que valham por si mesmos e,
consequentemente, possuam autoridade normativa independente do agente como
que pairando sobre sua cabeça. O que resta, então, com valor em si mesmo, é o
próprio interesse do agente em cada caso particular (KALIN, p.76-80; LABUKT, p.
121,130,134; SIDGWICK, p.92).
Referências
BRINK, David. Rational egoism and the separatness of persons in DANCY, J. Reading Parfit,
Blackwell Publishers: Oxford, p.96-134,1997.
DOOMEN, Jasper. Smith’s Analysis of Human Actions. ethic@,Florianópolis,v.4,n.2, p.111-
122,Dez. 2005.
FURROW, Dwight. Ética: conceitos-chave em filosofia. Porto Alegre: Artmed, 2007.
GUATHIER, David. Egoísmo, moralidad y sociedad liberal. Barcelona: Paidós, 1988.
_______________ . Morals by agreement. New York: Oxford, 1986.
KALIN, Jesse. In Defense of Egoism in GAUTHIER, David P. Morality and Rational Selfinterest,
Prentice-Hall: New Jersey, pp. 64-87, 1970.
LABUKT, Ivar R. Hedonistic egoism: A theory of normative reasons for action. University of
Bergen, Noruega, 2010. (tese de doutorado).
MEDLIN, Brian. “Ultimate Principles and Ethical Egoism” in GAUTHIER, David P. Morality
and Rational Selfinterest, Prentice-Hall: New Jersey, pp. 56-63, 1970.
NAPOLI, Ricardo Bins di. Moral e Racionalidade: elementos da discussão entre Gauthier e
Rawls. Artigo em PDF encontrado na internet em janeiro de 2012. [Artigo publicado na
íntegra em: Dutra, L. H. e Mortari, C. A. (orgs.). Ética: Anais do IV Simpósio Internacional,
Principia- Parte 2. Florianópolis: NEL/UFSC, pp. 173-194.]
RAND, Ayn. The virtue of selfishness. New York: Signet, 1964.
SHAVER, Robert. Rational egoism: a selective and critical history. Cambridge: Cambridge
university Press, 1999.
SIDGWICK, Henry. The methods of ethics. Editado por Jonathan Bennett, 2011. Livro em
PDF encontrado na internet em janeiro de 2012.
Resumo
1
Ao longo do texto, enredo e intriga são tratados como sinônimos.
2
Em O si-mesmo como um outro, Ricoeur faz a opção de chamar a problemática da subjetividade de
ipseidade (ipse) com objetivo de estabelecer uma distinção entre as filosofias do cogito, ou do sujeito.
Neste sentido seu ponto de partida deixa de ser o Eu da primeira pessoa (Eu penso, Eu sou, etc.), e
passa a ser o Si, pronome reflexivo de todas as pessoas gramaticais. Em síntese podemos afirmar que
a mesmidade, designa o ser idêntico a si e imutável, designa o caráter objetivo, identificável e estável
de um sujeito. Enquanto ipseidade designa a identidade pessoal e reflexiva constituída de uma alteri-
dade intrínseca, designa a unicidade irrepetível do sujeito.
3
O primeiro volume da obra foi publicado em 1931. Robert Musil escritor Austríaco, contemporâ-
neo de escritores germânicos como Thomas Mann ou Kafka, nascido em 1880 e falecido em 15 de
abril de 1942 no exílio suíço.
A narratividade ética
As narrativas literárias e as histórias de vida não se excluem, mas se comple-
mentam segundo Ricoeur. Este movimento nos faz lembrar que a narrativa faz par-
te da vida antes de se exilar em alguma forma de escrita. E num segundo momento
então, ela retorna à vida através das vias de apropriação de um sujeito.
Exatamente por isto a narrativa literária contém diversas implicações de na-
tureza ética. Até porque não haveria possibilidade da qualificação ética da vida de
alguém caso não fosse efetivamente objeto de uma estruturação narrativa. Isto é, a
humanidade acontece no tempo, desenrola-se na relação com os outros, e se atesta
Considerações finais
Retomando aquilo que foi dito ao longo do texto sobre a identidade narrativa
e a dialética da ipseidade mesmidade temos que esta é uma leitura que se constitui
como importante fonte inspiradora para a vida, uma vez que todo aquele que lê, re-
colhe dos heróis das suas leituras, ensinamentos sobre atitudes, valores e escolhas
de vida, que o ajudam a compreender-se melhor a si mesmo e a orientar a sua
ação. Ricoeur não ignora, apesar disso, as dificuldades que se levantam e parecem
tornar problemática a ideia de uma aplicação da ficção narrativa à vida real. É certo
que, é do próprio ato de ler que aparecem os empecilhos no retorno da ficção à vida.
Alguns desses empecilhos sintetizados por Ricoeur podem ser seqüenciados
em número de quatro, assim: equivocidade da noção de autor; inacabamento narra-
tivo da vida; enredamento das histórias de vida umas nas outras, inclusão das narra-
tivas de vida numa dialética de rememoração e da antecipação. Porém, apesar destas
objeções serem aceitáveis, elas não impedem a noção de aplicação da ficção à
vida, realidades que, já o sabemos, se interpenetram e complementam, pelo que,
mais do que para refutá-las, no quadro da luta entre “o texto e o leitor”, devem ser
integradas numa inteligibilidade mais sutil e mais dialética, de apropriação.
É assim que, no que respeita à equivocidade da noção de autor (vejam-se
as dificuldades inerentes às relações entre autor, narrador e personagem. Será que
quando me interpreto em termos de narrativa de vida, como acontece nas narra-
tivas autobiográficas, eu sou os três ao mesmo tempo?), Ricoeur tem a opinião
que ela enriquece a noção de “potência de agir” (agency), pelo que deve ser
preservada e não resolvida pela unicidade. Portanto é assim que, por exemplo, ele
próprio considera que ao fazer a narrativa de uma vida da qual não sou o autor
quanto à existência, faço-me seu co-autor quanto ao sentido. Esta ideia é reforçada
pela concepção estóica, que vê o ato de viver de alguém como uma espécie de de-
sempenho de um papel numa peça de teatro, da qual ele não é o autor.
Referências
ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. 2. ed. Brasília: Editora da UNB, Brasília, 1992.
ANDRADE, Abrahão Costa. Ricoeur e a Formação do Sujeito. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2000.
HONNETH, A. Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. Tradução
de Luiz Repa. São Paulo: Editora 34, 2003.
MARCONDES, Constança César (Org). Paul Ricoeu – Ensaios. PAULUS, 1998.
PEGORARO, A. Olinto. Ética é Justiça. Petrópolis RJ: Vozes, 1995.
Greisch Jean. Paul Ricoeur, L’itenérance du sens. Editions Jérôme Millon, Grenoble, 2001.
Resumo
N
a tradição da teoria crítica, dois princípios são centrais, a saber, que a teó-
rica ou teórico crítico faça um diagnóstico de tempo presente com o objeti-
vo de apontar as tendências ou bloqueios para emancipação. Em Adorno, o
diagnóstico de tempo presente da década de 1960 indica um bloqueio para eman-
cipação, sem que se mostrem as tendências para superar esse bloqueio. Este está
prefigurado principalmente por aquilo que ele denominou de princípio de identi-
dade, o qual imprime uma marca específica na dominação no capitalismo tardio
industrial. O diagnóstico de tempo aponta, não obstante, para potenciais de resis-
tência à dominação social fundada no princípio de identidade.
38
Adriano Januário
O tema da conferência Tempo Livre é desenvolvido a partir da relação entre
o tempo livre e seu oposto, o tempo ocupado pelo trabalho. O tempo livre é deter-
minado pelo modo como a sociedade se organiza, isto é, “dependerá da situação
geral da sociedade”, diz Adorno. Esta sociedade vive “numa época de integração
total sem precedentes” e “fica difícil de estabelecer, de forma geral, o que resta das
pessoas, além do determinado pelas funções” (ADORNO, 1995, p71). As funções
sociais, afirma Adorno, estariam determinadas no mais das vezes pelo tempo ocu-
pado pelo trabalho.
Mas ele acaba por indicar nesse texto sobre tempo livre a revisão de sua
posição frente ao diagnóstico da década de 1947, aquele diagnóstico da Dialética
do Esclarecimento. Adorno recorda que ele e Horkheimer havia “há mais de vinte
anos” cunhados o termo indústria cultural com a particularidade de ser “um meio
de domínio e de integração” da “consciência das pessoas” (ADORNO, 1995, p79). E
essa integração se dá numa sociedade altamente contraditória, pois o capitalismo
tardio industrial resguarda as injustiças e desigualdades sociais próprias do modo
de produção capitalista. Embora algumas indicações do diagnóstico da década de
1940 ainda estariam operando, Adorno se esmera em “destacar um problema es-
pecífico de que não conseguimos dar-nos conta na ocasião” (ADORNO, 1995, p80).
Segundo Adorno (ibidem), o crítico da ideologia se depara com a indústria
cultural e percebe que os mesmos “padrões” estão operando, de tal forma que ela
tenderia a controlar a consciência e inconsciência daquelas pessoas para as quais
os produtos dessa indústria estão direcionados, e de cujo, “o gosto ela procede”.
Isso se deve também à produção nas condições “atuais” da sociedade capitalista,
que acaba por determinar o “consumo” tanto de um ponto de vista material quanto
“espiritual”, ainda mais quando esses últimos se aproximam do “material”, como é
o caso da indústria cultural (ibidem). Do ponto de vista do “crítico da ideologia”,
para Adorno, sua “opinião” é sustentada pela expectativa de que a indústria cultu-
ral e seus consumidores sejam “adequados uns aos outros” (ibidem).
Mas, o problema que Horkheimer e Adorno não tinham se dado conta no mo-
mento em que eles teriam formulado o termo indústria cultural insurge contra tal
expectativa: A indústria cultural “tornou-se totalmente fenômeno do sempre-igual
(Immergleichen), do qual promete afastar temporariamente as pessoas” (Ibidem).
Adorno menciona o resultado de uma pesquisa realizada pelo Instituto de
Pesquisa Social de Frankfurt que tinha como objeto o casamento do diplomata ale-
mão Claus von Amsberg com a princesa Beatriz da Holanda no verão de 1964, e a
reação do “povo alemão” quanto a este evento. Adorno e os outros pesquisadores
envolvidos no projeto esperavam certos resultados:
40
Adriano Januário
cia à integração total está alocada nos “interesses reais do indivíduo”, que são
“suficientemente fortes”:
1
Sobre a posição de Adorno com respeito à identidade e sua relação com a dominação no capitalismo
tardio industrial, o livro de Marcos Nobre sobre o motivo da ontologia do estado falso é seminal. Cf.
NOBRE, M. A dialética negativa de Theodor W. Adorno: a ontologia do estado falso. São Paulo: Iluminu-
ras, 1998. Na obra de Adorno, pode-se indicar aqui de modo geral a conferência Capitalismo Tardio ou
Sociedade Industrial (cf. COHN, G. Theodor W. Adorno: sociologia. 2ª ed. São Paulo: Ática, 1994) para
especificar melhor o conceito de capitalismo tardio industrial, e a Dialética Negativa (cf. ADORNO, T. W.
Dialética Negativa. Tradução de Marco Antonio Casanova. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2009) para
especificar o que consiste a dominação pelo princípio de identidade.
Essa contradição se opõe ao status quo, contra aquilo que é imediato. Mais
que isso, essa contradição é essência do pensar; ela é uma “lei inevitável e fatal”: “A
identidade e a contradição do pensamento são fundidas uma a outra” e a contradi-
ção “é não-identidade sob o encanto que também afeta o não-idêntico” (ibidem).
O pensar possui uma contradição insolúvel. Ele tem que se referir ao que não é
42
Adriano Januário
pensar: “a contradição presente no próprio pensar é o índex da não-identidade”
(THYEN, 1989, p115). O elemento que não se deixa identificar é o que Adorno cha-
ma de não-idêntico (Nichtidentische). Ele está presente no pensar, na formação do
conceito. No conceito, por mais que ele o veículo do princípio de identidade, encon-
tra-se algo que não é passível de ser identificado, é “o não-idêntico no pensar iden-
tificante” (ibidem). Mostrar que há essa conformização forçada, seria o momento
de protesto do não-idêntico, isto é, o momento de resistência da não-identidade
com relação às pretensões identificantes do princípio de identidade.
Mas o não-idêntico não se apresenta apenas na relação entre pensar e pensa-
do, entre conceito e conceituado. Antes, ele surge como resistência ao sempre-igual
produzido pelo princípio de identidade. A possibilidade de resistência está distri-
buída em vários âmbitos sociais; ela está, por assim dizer, espalhada na sociedade.
E está presente mesmo naquele âmbito social que Adorno e Horkheimer denomi-
naram de “indústria cultural”.
Por isso que Adorno passa elaborar um conceito de experiência [Erfahrung]
amplo a partir da década de 1960. Este conceito pretende apontar para a possibili-
dade de resistência ao princípio de identidade dominante. Para Adorno haveria, en-
tão, um potencial de resistência na experiência de não-identidade. Essa experiência
fornece as bases para a resistência à dominação no capitalismo tardio industrial.
Referências
ADORNO, T. W. (1972-86). Gesammelte Schriften in 20 Bänden. Frankfurt am
Main: SuhrkampVerlag.
_________. (2009). Dialética Negativa. Tradução de Marco Antonio Casanova. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Editor.
_________. (1971). Drei Studien zu Hegel. Band 5, Frankfurt am Main: Suhrkamp.
_________. (1995). Palavras e sinais: modelos críticos 2. Petrópolis: Vozes.
_________. (1998). Prismas: crítica cultural e sociedade. Trad. Augustin Wernet e Jorge Mattos
Brito de Almeida. São Paulo: Ática.
_________ & HORKHEIMER, M. (1985). Dialética do Esclarecimento. (Trad: Guido A. de Almei-
da). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.
BENJAMIN, W. (1984). Origem do Drama Barroco Alemão. Tradução, apresentação e notas:
Sergio Paulo Rouanet. São Paulo: Editora Brasiliense.
COHN, G. (1994). Theodor W. Adorno: sociologia. 2ª ed. São Paulo: Ática.
DUBIEL, H. (1985). Theory and Politics. Studies in the Development of Critical Theory, Cam-
bridge, Ma., The MIT Press.
___________. (1983) Die Aktualitär der Gesellschaftstheorie Adornos in FRIEDEBURG, L.; HA-
BERMAS, J. Adorno-Konferenz1983. Frankfurt am Mein: Suhrkamp Verlag.
NAEHER, Jürgen (Hrsg.). (1984). Die Negative Dialektik Adornos: Einführung - Dialog. Opla-
den: Leske und Budrich.
44
Adriano Januário
Jurisdição Constitucional e
sua função de mediação entre
Autonomia Pública (Soberania
Popular) e Autonomia Privada
(Direitos Humanos)
Alexandro Rodeguer Baggio
não fosse isso, era ilimitado; era impensável que pudesse haver um regime de justiça dentro da so-
ciedade inteiramente “privada” dos próprios escravos, que, por definição, se situavam fora do âmbito
da lei e sujeitos ao domínio dos respectivos senhores. Somente o senhor dos escravos, na medida em
que era também um cidadão (ARENDT, 2011, pág. 41).
O sentimento de que tudo o que está sendo realizado no mundo, existe com o
fim de estabelecer um bem-estar a todos, inclui as gerações vindouras.
Caso contrário, seríamos tomados por um sentimento de desesperança2, de
que nossa pífia participação na construção de um ambiente civilizatório ocorre em
2
DESESPERANÇA: (in. Desesperation; fr. Désespoir, al. Verzwiflung; it Disperazione). Segundo Kierk-
gaard, é “a doença mortal”, a doença própria da personalidade humana e que a torna incapaz de
realizar-se. Enquanto a angústia se refere à relação do homem com o mundo, a desesperança refere-
-se à relação do homem consigo mesmo, em que consiste propriamente o eu. Nessa relação, se o eu
quiser ser ele mesmo, pois é finito, logo insuficiente a si mesmo, não chegará jamais ao equilíbrio e
ao repouso. E se não quiser ser ele mesmo chocar-se-á também contra uma impossibilidade funda-
mental. Em um outro caso tropeçará na desesperança, que é “viver a morte do eu”, isto é, a negação
da possibilidade do eu na vã tentativa de torná-lo auto-suficiente ou destruí-lo em sua natureza (A
doença mortal, 1849, esp. parte I, C). Também para Jaspers a desesperança é um dos aspectos funda-
mentais da existência (Phil., II, 266 ss.; II, 225 ss.) – (ABBAGNANO, 2000, pág. 242).
3
ESPERANÇA: (in. Hope, fr. Espérance; al. Hoffnung; it. Speranza). 1. Uma das emoções fundamentais.
2. Uma das virtudes teologais (ABBAGNANO, 2000, pág. 354).
6
ARENDT, Hannah. Reflexões sobre Little Rock. In: ARENDT, H. Responsabilidade e Julgamento. Tradu-
ção Rosaura Jerome Kohn. São Paulo. Companhia das Letras. 2004. Pág. 261-281.
7
Dizer o direito como poder, é a manifestação estatal como capacidade de decidir imperativamente.
Já como função, a manifestação estatal tem por escopo pacificar os conflitos interindividuais. E como
atividade, é a manifestação do Estado-juiz no exercício dos seus atos no processo (CINTRA, GRINO-
VER e DINAMARCO, 2011, pág. 145).
8
Acesso em 20/01/2012: HTTP://pt.wikipedia.org/wiki/Hist%C3%B3ria_dos_Estados_Unidos_
(1945-1964)#Brown_v._Board_of_Education_e_Resist.C3.AAncia_massiva
Como igualar o que por natureza e origem é diferente, senão tratando “os de-
siguais, de forma desigual, na medida de sua desigualdade”, integrando-os à nova
vida, e não tratando-os simplesmente como iguais, como se fossem aceitar e ser
aceitos sem nenhum tipo de resistência.
A integração que foi proposta possuía dados negativos no que tange a garan-
tia de Direitos Fundamentais e dados positivos no que refere a Soberania Popular,
como mostra uma pesquisa de opinião pública realizada na Virgínia.
10
REPÚBLICA: A classificação mais antiga das formas de governo que se conhece é a de ARISTÓTE-
LES, baseada no número de governantes. Distingue ele três espécies de governo: a realeza, quando
é um só indivíduo quem governa; a aristocracia, que é o governo exercido por um grupo, relativa-
mente reduzido em relação ao todo; e a democracia (ou república, segundo alguns tradutores), que
é o governo exercido pela própria multidão no interesse geral [...] A classificação de MAQUIAVEL, já
então mais precisa e atenta para as características que se iam revelando na organização do Estado
Moderno. Nos “Discursos sobre a Primeira Década de Tito Lívio”, publicados em 1531, MAQUIAVEL
desenvolve uma teoria procurando sustentar a existência de ciclos de governo [...] Mais tarde MON-
TESQUIEU, em sua obra que tanta influência prática exerceu, apontaria três espécies de governo: o
republicano, o monárquico e o despótico, esclarecendo: “O governo republicano é aquele em que o
povo, como um todo, ou somente uma parcela do povo, possui o poder soberano”. (DALLARI, 2009,
pág. 225-227).
Referências
ABBAGANANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. 4ª. Edição. São Paulo. Martins Fontes. 2000.
ARENDT, Hannah. A condição humana. 11ª. Edição. Tradução Roberto Raposo. Revisão téc-
nica e apresentação Adriano Correia. São Paulo. Forense Universitária. 2011.
______. Reflexões sobre Little Rock. In: ARENDT, H. Responsabilidade e Julgamento. Tradução
Rosaura Jerome Kohn. São Paulo. Companhia das Letras. 2004. Pág. 261-281.
A manifestação social-histórica
da autonomia no pensamento
ético-político de Cornelius
Castoriadis
* Mestrando / UFRN.
Alfran Marcos Borges Marques
Resumo
A pesquisa consiste em apresentar as noções mais importantes para Corne-
lius Castoriadis que permitem elucidar o papel da ação política na busca pela
autonomia coletiva e individual. A partir da delimitação histórico-conceitual
da reflexão filosófica sobre a autonomia, demonstrar as principais críticas de
Castoriadis dirigidas ao determinismo histórico, às tendências totalitárias
presentes na história da filosofia e à alienação promovida pela ideologia capi-
talista. Para tanto, é essencial compreender as categorias usadas por ele em
todo o seu percurso filosófico: sociedade, imaginação radical, imaginário so-
cial, linguagem e social-histórico. Castoriadis opõe-se a qualquer concepção
da história que apele para um plano pré-determinado, seja de origem natural,
racional ou divina.
Palavras-chave: Social-Histórico; Autonomia; Imaginário; Democracia; Cor-
nelius Castoriadis.
Referências
CASTORIADIS, Cornelius. As encruzilhadas do labirinto II: os domínios do homem. Trad. de
José Oscar de Almeida Marques. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.
______. As encruzilhadas do labirinto III: O mundo fragmentado. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1992.
______. As encruzilhadas do labirinto IV: A ascensão da insignificância. Trad. de Regina Vas-
concellos. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002.
______. As encruzilhadas do labirinto V: Feito e a ser feito. Trad. de Lílian do Valle. Rio de
Janeiro: DP&, 1999.
______. A instituição imaginária da sociedade. 6. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2007.
______. A Polis grega e a criação da democracia. São Paulo: Paz e Terra, 1987.
______. Sociedade à deriva. 90 graus editora: Lisboa, 2006.
68
Redistribuição e Reconhecimento:
uma análise filosófica acerca do
processo de construção de
Estados multiculturais
* Doutoranda – Universi-
Aline Cristina Oliveira do Carmo* dade do Estado do Rio de
Janeiro - UERJ.
Resumo
Pretende-se apresentar o atual processo de construção de Estados multicul-
turais, sob uma perspectiva pós-colonial. Para tanto, parte-se da análise de
alguns pensadores do colonialismo (como Frantz Fanon e outros), considera-
do um regime de exploração econômica e dominação cultural dos povos colo-
nizados. Os estudos de N. Fraser e A. Honneth evidenciam que o conceito de
justiça na contemporaneidade abrange tanto políticas de redistribuição equi-
tativa de recursos, como políticas de reconhecimento. Com isso, pretende-se
demonstrar: 1) O papel do Brasil e demais países no processo de construção
de um novo modelo de Estado, não mais baseado no antigo paradigma do
Estado-nação, e 2) a importância da inserção de uma abordagem pós-colo-
nial nos estudos de filosofia política contemporânea, ainda profundamente
marcados pela leitura de autores de línguas e perspectivas exclusivamente
europeias.
Palavras-chave: Pós-colonialismo; Estado Multicultural; Redistribuição; Re-
conhecimento.
Introdução
E
ste trabalho consiste em uma apresentação das ideias iniciais de um projeto
de pesquisa que pretende ser desenvolvido ao longo de quatro anos, atra-
vés do curso de doutorado em filosofia da Universidade do Estado do Rio
de Janeiro. Sendo assim, as ideias aqui expostas devem ser compreendidas ainda
como hipóteses iniciais, cujo aprofundamento se dará principalmente através da
leitura de Frantz Fanon, Axel Honneth e Nancy Fraser, autores que pensam, res-
Redistribuição e Reconhecimento 69
pectivamente, importantes questões filosóficas relacionadas ao fenômeno do colo-
nialismo, bem como ao conceito de justiça na contemporaneidade. Neste sentido,
pretendo identificar quais os efeitos que uma análise crítica da situação histórica
colonial pode provocar, tanto na concepção de Estado ora vigente, quanto na prá-
tica filosófica atual.
A filosofia nos últimos anos vem refletindo a crise vivida pela atual moder-
nidade, na qual o indivíduo se encontra envolto de inúmeras possibilidades e esco-
lhas de estilos de vida, religiões e de até mesmo culturas disponíveis. O fato do plu-
ralismo, já bem demarcado por John Rawls (1993), irrompe nos dias atuais como
condição mesma da filosofia na contemporaneidade. Nesse contexto, observamos
uma necessidade e consequente esforço dos pensadores e críticos da modernidade
em desenvolver tais problemas que nos afetam no cotidiano como objeto de estu-
do, intervenção e reflexão, a fim de compreender e solucionar crises que envolvem
conceitos problemáticos como os de paz, justiça e liberdade. Naturalmente, tais
problematizações implicam em considerações tácitas e às vezes explícitas sobre as
ideias de progresso e o desenvolvimento da humanidade.
Dessa forma, partimos da intuição de que, com base nas recentes alterações
dos textos constitucionais de determinados países latino-americanos, essa região
vive um momento de grandes possibilidades de produzir um impacto no atual pro-
cesso de desenvolvimento das políticas de direitos humanos, notadamente no que
se refere às normas relativas à consolidação democrática e à proteção da diversida-
de cultural (especialmente no tange à proteção das chamadas “culturas nacionais”).
É preciso destacar que tal processo não se assemelha de todo com os proces-
sos de consolidação dos Estados nacionais nos princípios da modernidade, uma vez
que esses processos visavam à exclusão de minorias em favor de um ideal de unidade
nacional. Já o continente africano vive um processo semelhante, mas que, no entanto,
possui características próprias em razão de muitos de seus países ainda estarem vi-
vendo o primeiro século de suas independências. Assim, nossa hipótese é que a Amé-
rica Latina fornece material e vive um momento histórico que permite uma profunda
reflexão acerca do desenvolvimento de políticas de proteção à dignidade humana.
Por outro lado, cabe enfatizar que este trabalho consiste em um aprofunda-
mento de uma pesquisa de mestrado na qual uma de suas conclusões destacou o
entendimento de que os direitos do multiculturalismo – i.e., de proteção à diversi-
dade cultural – constituem políticas garantidoras de direitos humanos (como a li-
berdade, por exemplo) e não propriamente novos direitos. Além disso, ressaltou-se
a notável diversidade de justificativas a respeito da defesa de tais direitos, sendo
importante a objeção segundo a qual as políticas multiculturalistas ameaçariam a
segurança das sociedades liberais modernas, baseadas na garantia do princípio da
igualdade dos seres humanos.
Nesse sentido, pretende-se demonstrar que é necessário buscar a constru-
ção de sociedades democráticas a partir de uma perspectiva pós-colonial, uma vez
I – Fanon e a descolonização
A luta de libertação não restitui à cultura nacional seu valor e seus contor-
nos antigos. Essa luta que visa uma redistribuição fundamental das relações
entre os homens não pode deixar intactas as formas nem os conteúdos cultu-
rais desse povo. Após a luta não há apenas desaparecimento do colonialismo;
há também desaparecimento do colonizado. Esta nova humanidade, para si
e para os outros, não pode deixar de definir um novo humanismo (FANON,
1979, p.205).
Redistribuição e Reconhecimento 71
A descolonização, sabemo-lo, é um processo histórico, isto é, não pode ser
compreendida, não encontra a sua inteligibilidade, não se torna transparen-
te para si mesma senão na medida em que se faz discernível o movimento
historicizante que lhe dá forma e conteúdo. A descolonização é o encontro
entre duas forças congenitamente antagônicas que extraem a sua originalida-
de precisamente dessa espécie de substantificação que segrega e alimenta a
situação colonial (Ibid., p.26).
Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, lín-
guas, crenças e tradições e os direitos originários sobre as terras que tradicio-
nalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respei-
tar todos os seus bens (BRASIL, 1988).
Redistribuição e Reconhecimento 73
uma vez que não se ajustam ao modelo de imigrantes voluntários, de tal forma
que sua integração às instituições da cultura majoritária, quando estimulada, se
deu através do desprezo e subjugação dos elementos culturais que traziam de sua
terra natal. Tampouco se poderia atribuir a eles, segundo o autor, a noção de povos
nacionais, já que não possuiriam terra natal na América ou uma língua histórica
comum (KYMLICKA, 2005, p.24) 3. Assim, cabe ressaltar a importância da inclusão
nesse debate da questão relativa ao fenômeno das diásporas, enquanto processos
de deslocamento forçado de grandes massas populacionais que, em razão disso,
experimentam profundos desafios de inserção dentro dos Estados constitucionais
em que atualmente se encontram.
No contexto africano, o que se observa é que inicialmente são oficializadas
as línguas europeias e só posterior e gradativamente as línguas nativas são reco-
nhecidas oficialmente pelos Estados. Logo, o debate sobre neocolonialismo e pós-
-colonialismo torna-se bastante presente entre intelectuais africanos4. Por outro
lado, as atuais políticas de determinados países latino-americanos também vêm
refletindo uma preocupação com o tema, uma vez que tais políticas públicas po-
dem ser compreendidas como uma tentativa de tradução dessas preocupações re-
lativas ao neocolonialismo em medidas concretas de proteção às culturas e povos
tradicionais desses países.
Essas alterações, acredito, refletem um lento desenvolvimento em torno de
uma nova concepção de Estado, na qual a identidade nacional deixa de ser pro-
pagada como algo homogêneo e adota um caráter multicultural. Na atual Consti-
tuição brasileira, como visto, é a primeira vez em que são reconhecidas as línguas
indígenas e os territórios quilombolas, enquanto matéria de direito. O que essas
mudanças representam?
Minha resposta é que expressam na contemporaneidade o desenvolvimen-
to de um novo modelo de Estado; não mais o Estado nacional tal como forjado na
história pela modernidade europeia sob o ideal de “um Estado, uma nação”5, mas
um Estado multicultural, isto é, que entende como matéria de interesse público o
desenvolvimento de políticas de proteção à sua diversidade cultural. Dessa forma,
o surgimento de Estados multiculturais – cujos indícios já são mostrados por mu-
danças legislativas e mobilizações sociais e políticas em todo o mundo -, está longe
de ser um debate pontual em nosso país.
3
Para uma análise de políticas assimilacionistas aplicadas na educação brasileira, Cf. DÁVILA, Jerry
(2006). Diploma de brancura: política social e racial no Brasil - 1917 - 1945. Tradução de Clau-
dia Sant’Ana Martins. São Paulo: Editora UNESP.
4
Cf., por exemplo, APPIAH, Kwame Anthony (1997). Na casa de meu pai: a África na filo-
sofia da cultura. Tradução de Vera Ribeiro. Contraponto: Rio de Janeiro.
5
Ao narrar sobre o processo de construção de Estados nacionais europeus, Habermas enfatiza que,
apesar de ser um fator de legitimação democrática, a nação política logo adquire igualmente a capa-
cidade de gerar estereótipos, uma vez que “essa nova compreensão que as pessoas tinham de si como
nação funcionava no sentido de rechaçar tudo o que era estrangeiro, rebaixar outras nações e discrimi-
nar ou excluir minorias nacionais, étnicas e religiosas”. Cf. HABERMAS, Jürgen: Realizações e limites do
Estado Nacional Europeu. In: BALAKRISHNAN, Gopal (org.) (2000). Um mapa da questão nacional.
Rio de Janeiro: Contraponto, p.299.
No man or woman can choose their biological nationality. The conflict be-
tween peoples cannot be explained in terms of that which is fixed (invaria-
bles). Otherwise the problems between any two peoples would always be
the same at all times and places; and further, would never be any solution to
social conflicts except through a change in that which is permanently fixed,
for example through genetic or biological transformation of the actors (WA
THIONG’O, 1986, pp.1-2).8
Assim, apesar de admitir o fato de que ninguém possa escolher sua nacionali-
dade, sua análise da África na atualidade parte de uma crítica ao imperialismo, no-
tadamente expresso pela dominação de línguas europeias em países africanos, de
forma que, enquanto escritor africano, resolve abandonar a escrita em inglês e passa
a escrever seus livros em língua materna, o gĩkũyũ. Isso porque ele entende que
6
Cf., por exemplo, WILLIAMS, Patrick & CHRISMAN, Laura (ed.) (1994): Colonial Discourse and Post-
colonial Theory: A Reader. Ed. Patrick Williams and Chrisman. Columbia University Press, New York.
7
Em sua defesa de uma teoria social normativa, brevemente analisada no item III desta investigação,
Axel Honneth apresenta um conceito de pessoa baseado nas três formas de reconhecimento (o amor,
o direito e a estima) que contêm em si o respectivo potencial para a motivação dos conflitos sociais,
seguindo as linhas argumentativas delineadas por Hegel. Cf. HONNETH, Axel. Luta por reconheci-
mento. A gramática moral dos conflitos sociais (1992). São Paulo: Editora 34, 2009 pp.23 e 24.
8
[Nenhum homem ou mulher pode escolher sua nacionalidade biológica. O conflito entre populações
não pode ser explicado em termos do que é fixo (invariantes). Caso contrário, os problemas entre os
dois povos, seriam sempre os mesmos em todos os tempos e lugares, e mais, nunca haveria uma so-
lução para os conflitos sociais, exceto através de uma mudança no que está fixado permanentemente,
por exemplo através da transformação genética ou biológica dos atores ] Tradução minha.
9
[a maior arma empunhada e de fato diariamente desencadeada pelo imperialismo contra esse de-
safio coletivo é a bomba cultural. O efeito de uma bomba cultural é aniquilar a crença de um povo em
seus nomes, em suas línguas, em seu ambiente, em sua herança de luta, em sua unidade, em suas ca-
pacidades e, finalmente, em si próprios. Faz com que eles queiram se identificar com o que está mais
afastado de si, por exemplo, com as línguas de outros povos, em vez da sua própria]. Tradução minha.
Redistribuição e Reconhecimento 75
Como exemplo, wa Thiong’o cita o fato de que os países africanos, como
colônias e mesmo hoje como neocolônias, vieram a ser definidos e continuam a
definir a si próprios com base em línguas europeias, dividindo-se entre aqueles
que falam inglês, português ou francês (Ibid. p.5). De modo mais provocativo,
Frantz Fanon, ao descrever as diferenças entre a cidade do colono e a cidade do
colonizado, afirma que o colonizado é um invejoso que, ao menos uma vez por
dia, sonha em se instalar no lugar do colono (FANON, p.1979, p.29). Ao longo da
história, o reiterado processo de diminuição e negação de uma identidade coleti-
va e mesmo de uma humanidade aos africanos e seus descendentes na diáspora
levou a práticas que forçaram o esquecimento e, muitas vezes, o apagamento de-
liberado de sua história. Por isso, reconstruir e resgatar a memória e dignidade
desses povos tornou-se um elemento profundo e de fundamental importância
em sua luta pela descolonização.
10
Em um de seus livros em que defende sua teoria liberal do multiculturalismo, Will Kymlicka afirma
que o modelo de construção nacional dos Estados liberais modernos, constitui um processo de pro-
moção de uma língua comum, de um senso de pertencimento comum e de igual acessibilidade às
instituições sociais que se baseiam nessa única língua. Decisões com relação à definição de línguas
oficiais, ao currículo escolar padrão e aos requisitos para a aquisição da cidadania têm a intenção
de difundir uma cultura particular por toda a sociedade, promovendo uma determinada identidade
nacional baseada na participação em uma mesma cultura societal. O problema é que tais políticas,
apesar de sua inegável importância para a consolidação da unidade estatal, geralmente terminam
por excluir as demais línguas e práticas culturais de grupos minoritários por ventura existentes no
Estado. Cf. KYMLICKA, Will. Politics in the vernacular: nationalism, multiculturalism and citizenship.
Oxford: Oxford University Press, 2001, p. 27.
Redistribuição e Reconhecimento 77
histórico e político da descolonização, quanto sobre a necessidade de uma des-
colonização das “histórias” e “verdades” que foram produzidas nesse período no
âmbito da Filosofia, enquanto disciplina acadêmica, e das ciências em geral11.
Com relação às ciências naturais, o primeiro conceito a ser enfrentado é o
de raça, e o seu uso começou a parecer tão suspeito que sua presença nos textos
de autores clássicos da filosofia como Kant e Hegel passou a ser silenciado. Com
efeito, escreveu Kant:
mesmo que o colonialismo político tenha sido eliminado, a relação entre a cul-
tura europeia, chamada também de “ocidental”, e as outras segue sendo uma
relação de dominação colonial. Não se trata somente de uma subordinação das
outras culturas a respeito da cultura europeia em uma relação exterior. Trata-se
de uma colonização das outras culturas, mesmo que, sem dúvida, em diferente
intensidade e profundidade segundo os casos. Consiste, inicialmente, em uma
colonização do imaginário dos dominados. Isto é, atua na interioridade desse
imaginário. Em alguma medida, é parte de si (QUIJANO,1992, p.2).
It is only from this second position that we can properly understand the trau-
matic character of ‘the colonial experience’. The way in which black people,
black experiences, were positioned and subject-ed in the dominant regimes
of representation were the effects of a critical exercise of cultural power and
normalization. Not only, in Said’s ‘Orientalist’ sense, were we constructed as
different and other within the categories of knowledge of the West by those
regimes. They had the power to make us see and experience ourselves as ‘Oth-
er’. Every regime of representation is a regime of power formed, as Foucault
reminds us, by the fatal couplet ‘power/knowledge’. But this kind of knowled-
ge is internal, not external. It is one thing to position a subject or set of peoples
as the Other of a dominant discourse. It is quite another thing to subject them
to that of ‘knowledge’, not only as a matter of imposed will and domination,
by the power of inner compulsion and subjective con-formation to the norm.
That is the lesson – the somber majesty – of Fanon’s insight into the coloniz-
ing experience in Black Skin, White Masks. (HALL, 1994, pp. 394-395) 13
13 [É somente a partir desta segunda posição que podemos compreender corretamente o
caráter traumático da “experiência colonial”. A maneira em que as pessoas negras, experiências ne-
gras, foram posicionados e sujeitados nos regimes dominantes de representação foram os efeitos de
Redistribuição e Reconhecimento 79
Entretanto, historicamente a luta por uma distribuição equitativa de recur-
sos teve um lugar mais privilegiado nas disputas políticas modernas em torno do
conceito de justiça.
um exercício crítico de poder cultural e normalização. Não só, no sentido “Orientalista” de Said, fomos
construímos como diferente e outro dentro das categorias de conhecimento do Ocidente por esses re-
gimes. Eles tinham o poder de nos fazer ver e experimentar a nós mesmos como ‘Outro’. Todo regime
de representação é um regime de poder formado, como Foucault nos lembra, através do fatal binômio
“poder / saber” . Mas esse tipo de saber é interno, não externo. Uma coisa é a posicionar um objeto
ou um conjunto de povos como o Outro de um discurso dominante. É uma coisa completamente
diferente submetê-los ao “saber”, não apenas como uma questão de vontade imposta e dominação,
pelo poder de compulsão interna e subjetiva con-formação para a norma. Essa é a lição - a majestade
sombria - da percepção de Fanon sobre a experiência colonizadora em Pele negra, máscaras brancas
] . Tradução minha.
Hegel parece ter sido convencido em seus primeiros trabalhos de que a tran-
sição entre esses vários domínios de reconhecimento é alcançada através de
uma luta, travada entre os sujeitos pela aceitação de sua autopercepção em
desenvolvimento gradual. A reivindicação para ter cada vez mais dimensões
da personalidade de alguém reconhecida de certa forma leva ao conflito in-
tersubjetivo, que só pode ser resolvido através do estabelecimento de campos
de reconhecimento progressivamente maiores (Ibid., p 84).
Redistribuição e Reconhecimento 81
A diferença de seu posicionamento com relação à visão apresentada por Nancy
Fraser consiste na sua noção de que a luta por reconhecimento está inerentemente
ligada às demandas por distribuição, enquanto que a filósofa norte-americana pare-
ce compreender ambas as dimensões como distintas, porém complementares.
Redistribuição e Reconhecimento 83
sua relação com a Filosofia. Ao contrário do que se pode pensar (ou do que tra-
dicionalmente se ensina no que tange à relação entre mito e filosofia), a filosofia,
embora diversa, sempre manteve relações com conhecimentos religiosos e muitas
vezes foi - e ainda é - utilizada como instrumento para defender e reforçar deter-
minados dogmas religiosos.
Por outro lado, a reflexão acerca da experiência dos povos em diáspora pode
nos ajudar a compreender melhor os desafios do mundo atual, em que proliferam
diversos tipos de relações transnacionais entre indivíduos e povos que desafiam a
permanência e a estabilidade do modelo de Estado-nação. A partir dessas mudan-
ças, a Filosofia tal como produzida e reproduzida tradicionalmente desde a Aca-
demia platônica, não pode sair ilesa. Isso porque o que se busca é uma redefinição
e liberação total do ser humano pelos próprios seres humanos, enquanto seres
histórica e socialmente construídos.
Diáspora, palavra de origem grega que significa dispersão, é o deslocamen-
to, normalmente forçado ou incentivado, de grandes massas populacionais origi-
nárias de uma zona determinada para várias áreas de acolhimento distintas. Muito
embora esse termo seja usado com mais frequência com relação à dispersão do
povo hebreu no mundo antigo, existem também reflexões destinadas ao estudo da
diáspora grega, processo que teria ocorrido justamente no período anterior ao que
ficou conhecido como o nascimento da filosofia na Grécia antiga16.
Tudo isso nos leva a crer que é mais do que necessário descolonizar a filosofia,
especialmente no que tange aos estudos de ética e filosofia política, de forma a consi-
derar o fato histórico do colonialismo como a própria negação daquilo que devemos
entender por Justiça, entendida como a realização dos princípios da liberdade e da
igualdade entre todos. Portanto, torna-se fundamental em matéria de Justiça o com-
bate contra a permanência dos efeitos do colonialismo na contemporaneidade.
Referências
APPIAH, Kwame Anthony (1997). Na casa de meu pai: a África na filosofia da cultura. Tra-
dução de Vera Ribeiro. Contraponto: Rio de Janeiro.
ARAUJO, Luiz Bernardo Leite (2007). Liberalismo, identidade e reconhecimento em Haber-
mas. Veritas, Portugal, v.52, n.1, p. 120-136.
BALAKISHNAN, Gopal (Org) (2000). Um mapa da questão nacional. Rio de Janeiro: Contra-
ponto.
BRASIL (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, Senado Federal.
Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>
Acesso em 25.11.2012.
BOLÍVIA(2009). Contitución Política del Estado. Gaceta Oficial del Estado Plurinacional de
Bolivia. Edicion de 07.02.2009. Disponível em: < http://www.gacetaoficialdebolivia.gob.
bo/edicions/view/NCPE >. Acesso em 25.11.2012.
16
Cf. < http://pt.wikipedia.org/wiki/Di%C3%A1spora> Acesso em 22.09.2012.
Redistribuição e Reconhecimento 85
86
Princípio de troca e
pensamento identitário
no pensamento adorniano
Resumo
O presente trabalho lida com a relação entre o princípio de troca e o pensa-
mento identitário na obra de Theodor W. Adorno. Mostrando a imbricação
entre estes dois conceitos, aponto para o fato de a Dialética Negativa ser tanto
uma obra de teoria crítica da sociedade, em que a crítica à dominação e ao
sofrimento ocupa um papel central, quanto uma obra de metacrítica da teoria
do conhecimento, em que se revela o entrelaçamento da troca mercantil com
a ratio burguesa e se projeta, ainda que apenas em seus traços mais gerais, a
ideia de uma racionalidade alternativa que estaria na base de um comporta-
mento contestatório ao estado de coisas vigente.
Palavras-chave: Theodor W. Adorno; Dialética negativa; Teoria crítica; Prin-
cípio de identidade; Princípio de troca.
E
mbora a literatura sobre a obra tardia de Theodor W. Adorno tenha crescido
muito nos últimos anos, quase nenhuma atenção tem sido dada à questão,
a meu ver central, da relação entre o princípio de troca e o pensamento
identitário1. Comentários tais como o livro de Brian O’Connor, Adorno’s Negative
Dialectic (2004), e o livro de Yvonne Sherrat, Adorno’s positive dialectic (2002), por
exemplo, ignoram o papel constitutivo do princípio de troca na disseminação do
pensamento identitário. Assim, O’Connor desacopla a crítica ao conhecimento do
restante da crítica social feita por Adorno, hipostasiando sua crítica à racionalida-
de em um terreno bastante longínquo da crítica dirigida diretamente à sociedade
1
Uma exceção, o que talvez apenas confirme a regra, é a obra de Deborah Cook: Adorno, Habermas
and the search of a rational society (2004).
88 Amaro Fleck
Na Fenomenologia do espírito, Hegel havia apontado para o fato de a histó-
ria do espírito dar-se por uma sucessão de momentos, formas de consciência, que
são superados sempre pela via do negativo, pela crítica radical. Marx, por sua vez,
afirma que “a razão sempre existiu, mas nem sempre de forma racional” (MARX,
2010, p. 71), de tal forma que o crítico social devia se concentrar na crítica às for-
mas de consciência dadas, e desta crítica deveria sair sendas para se chegar a uma
sociedade mais racional.
Mas é com Weber que a crítica da racionalidade atinge um novo patamar. Em
distintas obras, Weber caracterizou a modernidade por uma crescente racionaliza-
ção, um desencantamento das mais distintas esferas da vida. Esta racionalização,
no entanto, faz com que as ações sejam cada vez mais previsíveis, que tendam cada
vez mais a obtenção dos interesses individuais daqueles que atuam sem que, con-
tudo, haja um maior processo de reflexão acerca das metas escolhidas. Na verdade,
o ethos ascético-capitalista faz com que todas as ações se dirijam ao ganho, mas o
próprio ganho não garante nem ajuda a garantir a felicidade ou utilidade daqueles
que o adquirem. Nas palavras de Weber:
90 Amaro Fleck
uma metacrítica do conhecimento, que consiste justamente em investigar quais as
experiências tornam as categorias epistemológicas possíveis. No centro da Dialéti-
ca Negativa, portanto, está a tese de que é a troca mercantil, com a aniquilação das
diferenças qualitativas dos objetos, que torna possível o princípio de identidade,
ideia norteadora da ratio burguesa que Adorno crítica. É isto que permite que a
crítica ao conhecimento feita por Adorno seja também uma crítica social: a forma
de racionalidade que Adorno critica está ancorada em uma prática social que é
também criticada, e vice-versa.
Gostaria de deixar isto em suspenso para voltar à questão da proposta epis-
têmico-social de Adorno, ou melhor, do potencial emancipador que permitiria
transcender os limites desta forma de racionalidade que, como vimos, lesa os indi-
víduos, mantendo a dominação existente na sociedade.
Referências
ADORNO, Theodor. (2009). Dialética Negativa. Tradução de Marco Antonio Casanova. Rio
de Janeiro. Jorge Zahar Ed.
_____. (1996). “Zu Subjekt und Objekt”. In: ______, Gesammelte Schriften, Bd 10/2: Kulturkritik
und gesellschaft II. Frankfurt am Main: Suhrkamp.
_____. (2007). Vorlesung über Negative Dialektik. Frankfurt am Main: Suhrkamp.
COOK, Deborah. (2004). Adorno, Habermas and the search of a rational society. London/
New York: Routledge.
JARVIS, Simon. (1998). Adorno: A Critical Introduction. New York: Routledge.
LUKÁCS, Georg. (2003). História e consciência de classe. Tradução de Rodnei Nascimento.
São Paulo: Martins Fontes.
MARX, Karl. (2010). “Cartas dos Anais Franco-Alemães (de Marx a Ruge)”. In: _____, Sobre a
questão judaica. Tradução de Nélio Schneider. São Paulo: Boitempo.
_____. (1985). O Capital. Tradução de Flávio Kothe e Regis Barbosa. São Paulo: Nova Cultural.
O’CONNOR, Brian. (2004). Adorno’s Negative Dialectic. London: MIT Press.
SHERRAT, Yvone. (2002). Adorno’s Positive Dialectic. Cambridge: Cambridge University
Press.
WEBER, Max. (2004). A ética protestante e o “espírito” do capitalismo. Tradução de José M.
M. de Macedo. São Paulo: Companhia das Letras.
92 Amaro Fleck
Problemas sobre a
concepção fenomenológica
de valores morais
Resumo
Poderíamos dizer, a princípio, que o existencialismo provocaria uma quebra
em todos os valores morais de forma irreversível. É como se a superação do
fenômeno sobre a desintegração da essência exigisse admitir que os valores
morais enquanto universais não fossem mais possíveis. Realmente, a partir
da Fenomenologia, já não é possível supor princípios essenciais ou ainda con-
ceber a razão como algo separado e contrário às paixões para, a partir de um
domínio estritamente racional e, portanto, não exposto ao erro, erigir crité-
rios universais e necessários para a ação moral. Entretanto, o pensamento de
Sartre, ainda que inserido na fenomenologia, sobretudo em sua obra O ser e o
nada, parece nos oferecer a possibilidade de pensar a constituição de valores
passíveis de serem universalizáveis e, portanto, de assumirem-se efetivamen-
te como imperativos – mesmo no interior do próprio existencialismo, isto é,
mesmo a partir de uma filosofia que não admite de modo algum a concepção
de uma essência como fundamento da existência. E esse é o foco principal de
nossa investigação: pensar a possibilidade da constituição de valores como
imperativos universalizáveis a partir da filosofia da existência de Jean-Paul
Sartre. Embora, a partir da obra de Sartre, seja possível explicitar valores de
aprovação da autenticidade e de reprovação da má-fé, o interesse maior des-
se estudo é investigar o modo como Sartre procura fundamentá-los. Ou seja:
mais do que procurar expor a importância que Sartre confere a valores que
projetam um modo de existência autêntico em detrimento de todo modo de
existir em má-fé, a intenção aqui é investigar como Sartre fundamenta a elei-
ção da autenticidade. A partir de então, surgem indagações, mesmo que suas
respostas ainda não estejam definitivamente acabadas. O fato de que a condi-
ção existencial inexorável de o homem ser livre justifica que tenha de eleger
para si ou projetar-se irrevogavelmente segundo um modo de ser autêntico?
Por outras palavras, a autenticidade é um modo de ser necessário ao homem
em razão de sua liberdade ou é meramente uma escolha do autor? Enquanto
N
ão podemos utilizar de forma adequada as palavras de valor sem apontar-
mos a finalidade a qual está sendo buscada. Não existe “bom”, “mal”, “certo”
ou “errado” absoluto. Não posso dizer se um carro 1.0 é melhor ou pior que
o 2.0 sem saber para qual uso o carro se destina. Mas, se a necessidade for de um
carro veloz, logo podemos afirmar com objetividade que o 2.0 é melhor que o 1.0.
Por outro lado, se precisarmos de um carro econômico, diremos objetivamente que
o 1.0 é melhor que o 2.0.
A partir dessa analogia, podemos entender que a moral deve ser entendida
simplesmente como uma finalidade, assim como a velocidade ou a economia. Uma
ação não é boa absolutamente, mas pode ser boa para a moralidade. E moralidade
tem sua propriedade descritiva específica, assim como a velocidade e a economia.
Optamos por descrever a propriedade da moral da seguinte forma: uma ação é
moral quando – na existência de conflito de interesses entre duas ou mais pessoas,
a partir da investigação e da aplicação de regras éticas (utilitárias, deontológicas,
ou da ética das virtudes), com suas contraposições, ampliações ou sínteses – o jul-
gamento é o mesmo independentemente das posições em que se encontram as
pessoas envolvidas, ou seja, o julgamento é imparcial. Assim, ainda que os juízos
morais sejam investigados objetivamente, a escolha por esse tipo de investigação é
subjetiva e depende do indivíduo.
Defendemos que essa formulação dos valores, relativa à finalidade, mas rigo-
rosamente objetiva, decorre da forma de entender o humano a partir da descons-
trução da essência e da recusa aos imperativos comportamentais, concretizada
pela fenomenologia. Primeiramente, mostraremos a que se dirigiu a crítica feno-
menológica, especificamente, em Sartre, para depois mostrarmos como a forma
de se entender o humano é determinante para o estudo da moral. Ou seja, será
mostrado como a ontologia, que investiga como o homem é, interfere no estudo da
moral, que pesquisa como o homem pode orientar sua conduta. Posteriormente,
mostraremos imperativos implícitos no livro “O ser e o nada” de Sartre, sobre como
o homem deve agir, que, a partir de nossa interpretação é contraditória à proposta
do próprio autor.
Desde o início da obra, Sartre (2011) critica a dualidade corporal e espiri-
tual de tudo que existe no mundo, na tradição filosófica, em que o suprassensível
apresenta uma superioridade de verdade e dificuldade de acesso em relação ao
sensível. Critica especialmente a ideia de essência, pois ao denominá-la e fazê-la
coincidir com sequência de aparições, tira todo o caráter da essência platônica –
superior e anterior ao sensível.
1
A prescrição é a característica (compactuada pelos juízos de valor e pelas sentenças imperativas)
que pode ser de aprovação, recomendação, sugestão, ou de desaprovação. Essa característica não
está presente em sentenças descritivas.
Pois é preciso inverter aqui a opinião geral e convir que não é a rigidez de uma
situação ou os sofrimentos que ela impõe que constituem motivos para que
se conceba outro estado de coisas, no qual tudo sairá melhor para todos; pelo
contrário, é a partir do dia em que se pode conceber outro estado de coisas
que uma luz nova ilumina nossas penúrias e sofrimentos e decidimos que são
insuportáveis. O proletário de 1830 é capaz de se rebelar se lhe baixam os
salários, pois concebe facilmente uma situação em que seu miserável nível
de vida seja menos baixo do que aquele que querem lhe impor. Mas ele não
retrata seus sofrimentos como intoleráveis: acomoda-se a eles, não por resig-
nação, mas por lhe faltarem cultura e reflexão necessárias a fazê-lo conceber
um estado social em que tais sofrimentos não existam. Consequentemente,
não age. (SARTRE, 2011, p. 538)
Isso seria uma espécie de contradição em sua teoria, pois, de um lado, mos-
tra a condição inegável da liberdade humana, e de outro lado, induz o leitor ao que
é certo (autenticidade) ou errado (má-fé) de maneira absoluta, como se a autenti-
cidade fosse capaz de elevar o homem a uma dignidade ontológica maior.
Referências
HARE, R. M. (1996). A linguagem da moral. Tradução Eduardo Pereira e Ferreira. São Paulo:
Martins Fontes.
______. (1972). Essays on the moral concepts. Londom: Macmillan.
______. (2003). Ética: problemas e propostas. Tradução de Mário Mascherpe e Cleide Antônio
Rapucci. São Paulo: Editora UNESP.
HUME (1999). “Investigação acerca do entendimento Humano” in: Os Pensadores. Tradu-
ção de Anoar Aiex. São Paulo: Editora Nova Cultural.
______ (2009). Tratado da natureza humana. Tradução de Déborah Danowski. Rio de Janei-
ro: Editora Unesp.
KANT (1994). Crítica da razão pura. Tradução de Manuela Pinto dos Santos e Alexandre
Fradique Morujão. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.
KANT (2009). Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Tradução de Guido Antônio de
Almeida. São Paulo: Barcarolla.
PLATÃO (1949). A república. Tradução de Maria Helena da Rocha Pereira. Lisboa: Fundação
Calouste Gulbenkian.
SARTRE (2011). O ser e o nada. Tradução de Paulo Perdigão. Petrópolis: Vozes.
A
CAPES. Pós-doutorado
concepção de crise é largamente estudada e definida pelos marxismos na Universitá degli Studi
di Roma, (2008). Douto-
contemporâneos, embora nem todos tenham tido o rigor necessário para
rado em Educação pela
compreendê-la na perspectiva do materialismo histórico, principalmente Universidade Estadual
como o fez Antonio Gramsci, na perspectiva marxiana, avançando na compreensão de Campinas (2006).
Mestrado em Filosofia da
do capitalismo atual, que ele denomina “avançado”. Educação pela Universi-
Tentaremos nessa reflexão aprofundar a compreensão de crise no sistema dade Estadual de Campi-
nas (1989). Graduada em
capitalista, as suas reais possibilidades de superação, e sua relação com a noção de
Filosofia pela Pontifícia
Estado, no pensamento marxiano-engelsiano e gramsciano. Universidade Católica de
Campinas (1980). Bol-
Bebemos em Marx, porque ainda vivemos a contradição básica do modo de
sista da CAPES. Publicou
produção capitalista (Capital X trabalho social) que ele desnuda em sua obra O Uma estratégia para o
Capital, de final de século XIX, e em Engels, em A origem da família, da propriedade ocidente: o conceito de
democracia em Gramsci e
privada e do Estado, principalmente. Também em Gramsci, já que a concepção de o PCB, (2009).
crise orgânica no capitalismo avançado (como ele chama todo desenvolvimento
de forças produtivas no século passado, com as conseqüentes transformações nas
relações sociais) não se desvincula da concepção de Estado alargado1, em sua pro-
posição de estratégia: a guerra de posição. Na contemporaneidade a primazia do
econômico não é imediata e espontânea e, sim, mediada pela sociedade civil e a
política. Salientamos que, para desenvolvermos nossa proposta de análise, a con-
cepção de Estado e, assim, de sociedade civil em Gramsci, é fundamental. Partimos
da definição de Marx em A Ideologia Alemã. Segundo Marx:
1
Estado = sociedade política + sociedade civil, isto é, hegemonia fortalecida pela coerção.
A atualidade da reflexão sobre crise orgânica, sociedade civil e estado, no materialismo histórico 99
A estrutura social e o Estado nascem constantemente do processo de vida de
indivíduos determinados, mas destes indivíduos não como podem aparecer
na imaginação própria ou alheia, mas tal e como desenvolvem suas atividades
sob determinados limites, pressupostos e condições materiais, independen-
tes de sua vontade. (MARX, 1987, p. 36).
A questão que aqui nos interessa é que o Estado, na fase atual do capitalismo,
é parte constituinte da base material do sistema abrangente do Capital, configu-
rando-se como pré-requisito indispensável para a permanência do funcionamento
do sistema capitalista.
Mészáros afirma, em seu livro A Crise estrutural do Capital (2011), que a crise
do Estado moderno como já antevia Gramsci quando desenvolveu sua estratégia, é
a crise das estruturas que integram o sistema que reproduz a lógica contraditória
de desenvolvimento do Capital, que é seu próprio sistema de comando, mesmo
com sua dimensão política que o integra. (cf. MÉSZÁROS, 2002, p. 124).
O Estado é enraizado em uma sociedade determinada, com classes sociais
determinadas, mas dinâmicas em sua dialética, não engessadas por sua determi-
nação. O Estado também é dinâmico, embora continue instrumento da classe que
domina materialmente.
Embora não possamos desenvolver nesse artigo, pela limitação do tema, como
se dá a contradição no sistema capitalista, em sua abrangência, o que determina nos-
sa estrutura social no mundo atual, o que Marx analisa exaustivamente em O Capital,
devemos ressaltar para fins de nossa reflexão, o caráter do desenvolvimento capita-
lista que tem como pilares de sustentação o regime de propriedade privada, o traba-
lho estranhado e a expansão e interdependência da produção em nível global. Marx
apreende que “essas distintas influências se fazem valer ora justapostas no espaço,
ora sucessivamente no tempo; periodicamente o conflito entre os agentes antagôni-
cos se desafoga em crises” (MARX, 1988, p. 179) As crises são condição estrutural
de perpetuação para o sistema de reprodução do Capital, restabelecendo constante-
mente o equilíbrio tênue entre expansão e valorização do próprio, manifestando-se
como explosões violentas, como guerras, ou deterioração da vida humana.
Marx, no Livro 3 de O Capital, finaliza o que acabamos de ponderar:
A atualidade da reflexão sobre crise orgânica, sociedade civil e estado, no materialismo histórico 101
Por isso, o mercado precisa ser constantemente ampliado, de forma que suas
conexões e as condições que as regulam assumam sempre mais a figura de
uma lei natural e independente dos produtores, tornando-se sempre mais
incontroláveis. A contradição interna procura compensar-se pela expansão
do campo externo da produção. Quanto mais, porém, se desenvolve a força
produtiva, tanto mais ela entra em conflito com a estreita base sobre a qual
repousam as relações de consumo. Sobre essa base contraditória não há, de
modo algum, nenhuma contradição no fato de que excesso de capital esteja
ligado com crescente excesso de população; pois mesmo que se juntassem
ambos, a massa de mais-valia produzida iria aumentar, aumentando com isso
a contradição entre as condições em que essa mais-valia é produzida e as con-
dições em que é realizada. (MARX, 1988, p. 176).
(...) todo Estado é ético na medida em que uma de suas funções mais impor-
tantes é elevar a grande massa da população a um determinado nível cultural
e moral, nível (ou tipo) que corresponde à necessidade de desenvolvimento
das forças produtivas e, portanto, aos interesses das classes dominantes. A es-
cola como função educativa positiva e os tribunais como função educativa re-
pressiva e negativa são as atividades estatais mais importantes nesse sentido:
mas, na realidade, para tal fim tende uma multiplicidade de outras iniciativas
e atividades ditas privadas, que formam o aparelho da hegemonia política e
cultural das classes dominantes. (GRAMSCI, 1975, p. 1049)
A atualidade da reflexão sobre crise orgânica, sociedade civil e estado, no materialismo histórico 103
A conquista hegemônica de uma classe representa a transformação, a cons-
trução de uma nova sociedade, de uma nova estrutura, de uma nova organi-
zação política e, também, de uma nova orientação ideológica e cultural. Tem
conseqüências no nível material da economia, da política, da moral, do conhe-
cimento e da filosofia. E, para isso se faz fundamental uma reforma intelectual
e moral, pois, sem ela, não se mantém a transformação. (SAID, 2009, p. 87-88).
Para resolver uma crise orgânica3 no sistema capitalista, para além da to-
mada do poder político e econômico, com a hegemonia da classe assalariada, uma
nova maneira de viver e de ser deverá ser criada, uma nova cultura, uma “nuova
civiltà”. É o que possibilita um mundo novo, uma nova organização, sem prescindir
de um programa de reforma econômica. É esse projeto que deverá guiar a classe
trabalhadora na superação da crise orgânica em que vivemos. Porque toda trans-
formação econômica e política, segundo ele, é também uma profunda revolução
cultural, uma transformação profunda na maneira de conceber o mundo e a moral.
Afirma Gramsci que, mesmo os socialistas utópicos e os escritores de política
de Seiscentos, inclusive Maquiavel, acreditavam “que não pode existir igualdade
política, completa e perfeita, sem igualdade econômica”. O que existia de utopia
neles, é que pensavam que se pudesse introduzir a igualdade econômica com leis
arbitrárias, com um ato de vontade, etc. Mas, segundo ele, o fato de que isso não
seja possível praticamente, não invalida o fato de que o conceito continua exato,
isto é, que não pode existir igualdade política sem igualdade econômica. (GRAMS-
CI, 1975, p.693).
O conceito de revolução passiva, original em Gramsci, permite explicar como
o capitalismo tem conseguido sobreviver às crises orgânicas, que são cada vez
maiores e mais difíceis de serem superadas.
A revolução passiva, a forma de guerra de posição da classe dominante,
(como no fascismo e no americanismo) são mudanças que vêm do alto para baixo,
impostas, que comportam conquistas necessárias para a classe trabalhadora, mas
sempre uma coerção maior também, e a continuidade da hegemonia e do poder
burgueses, ainda mais acirrados, também na sociedade civil.
Para a classe trabalhadora, na guerra de posição, é a sociedade civil colocada
entre a estrutura econômica e o Estado que deve ser controlada hegemonicamente
ou “deve ser radicalmente transformada realmente e não sobre a carta da lei e dos
livros dos cientistas”. (GRAMSCI, 1975, p. 1253-1254). Segundo Gramsci,
3
Crise orgânica é sempre uma crise das estruturas, também uma crise de hegemonia que atinge o
poder e a direção de classe no conjunto da sociedade, atingindo o Estado integral (ditadura +hege-
monia), as superestruturas e toda a sociedade.
O Estado tem e pede o consenso, mas também “educa” este consenso atra-
vés das associações políticas e sindicais, que, porém, são organismos priva-
dos, deixados à iniciativa privada da classe dirigente. (GRAMSCI, 2011, vol
3, pág. 119)
Deve ser uma máxima de governo tentar elevar o nível de vida material do
povo ultrapassando um certo nível. Para isso não precisamos pesquisar um
motivo especial “humanitário” e nem uma tendência “democrática”: mesmo o
A atualidade da reflexão sobre crise orgânica, sociedade civil e estado, no materialismo histórico 105
governo mais oligárquico e reacionário deve reconhecer a validade “objetiva”
desta máxima, isto é, o seu valor essencialmente político (universal na esfera
da política, na arte de conservar e fortalecer a potencia do Estado). Nenhum
governo pode prescindir da hipótese de uma crise econômica e, especialmen-
te, não pode prescindir da hipótese de ser constrangido a fazer uma guerra,
isto é, ter que superar a máxima crise a que esteja submetida uma estrutura
estatal e social. E porque toda crise significa um recuo de teor de vida popular,
é evidente que ocorre a preexistência de uma zona de recuo suficiente para
que a resistência “biológica” e, portanto, psicológica do povo, não desmoro-
ne no primeiro embate com a nova realidade. O grau de potência real de um
Estado deve ser, portanto, medido também pelo critério deste elemento, que
é depois coordenado com os outros elementos de juízo sobre a solidez estru-
tural de um país. Se realmente as classes dominantes de uma nação não con-
seguem superar a fase econômico-corporativa que leva a explorar as massas
populares até o extremo consentido das condições de força, isto é, reduzi-los
somente à atividade biológica, é evidente que não possam falar de potência de
Estado, mas somente de mascara de potência. (GRAMSCI, 1975, p. 743)
Mas é bastante difícil vislumbrar uma solução factível para nossa crise global
se não se assume a total responsabilidade pelos desdobramentos dessa cri-
se, especialmente num sistema globalmente interconectado e em interação.
As personificações do Capital, seguindo os imperativos da lógica perversa do
seu sistema, jamais poderiam fazer isso no interesse da sociedade como um
todo. Somente uma alternativa hegemônica dos trabalhadores, com um modo
planificado e historicamente sustentável de reprodução societária, é capaz de
responder a tão urgente necessidade na atual conjuntura de crise sistêmica
em agravamento. (MÉSZÁROS, 2011, p. 150).
A atualidade da reflexão sobre crise orgânica, sociedade civil e estado, no materialismo histórico 107
Considerações finais
Isso nos lembra que temos que pensar em alternativas, não somente econô-
micas, assim como Gramsci pensa a guerra de posição para organizar uma nova
ordem de vida humana, o que ainda está posto para nós, ainda mais agudamente,
com a atual crise. Como nos lembra constantemente a vida e a obra de Antonio
Gramsci, à nossa espreita temos sempre o fantasma dos totalitarismos. Contra-
ditoriamente, a crise orgânica que Mészáros define como o conjunto do sistema
aproximando-se de certos “limites estruturais” do Capital, é hoje percebida muito
mais intensamente que aquelas do passado, e permite o desenrolar da guerra de
posição, até a conquista da hegemonia da classe operária, tarefa a se desenvolver
lentamente, mas inexoravelmente até a vitória .
Gramsci nos inspira a pensar que a conquista do Estado não é pura e simples-
mente um momento negativo, de destruição, mas sim o processo de crescimento
de um novo tipo de Estado, que começa a organizar-se ainda antes da conquista do
poder, através da organização da classe trabalhadora, como Partido, que traz em si
o germe da nova sociedade, da igualdade e da liberdade verdadeiramente huma-
nos, pois sem dominação de classes.
Referências
CARCANHOLO, R. (Org.). Capital: essência e aparência. São Paulo: Expressão Popular, 2011.
ENGELS, F. El origen de la família, la propriedade privada y el Estado. Moscou, Ed. Progresso, 1979.
FERNANDES DIAS, E.; SECCO, L.; COGGIOLA, O.; MASSARI, R.; BRAGA, R. O Outro Gramsci.
São Paulo: Xamã, 1996.
GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere. Volume 1. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2001.
_________. Maquiavel, a Política e o Estado Moderno. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1980.
_________. Quaderni del Carcere: A cura di Valentino Gueratana. Seconda Edizione. Volume pri-
mo, secondo, terzo e quarto. Edizione Critica dell’Istituto Gramsci. Torino: Ed. Einaudi, 1977.
_________. A. Obras escolhidas. São Paulo: Martins Fontes, 1978.
MARX, K.; ENGELS, F. Manifesto do Partido Comunista. [s. l.: s. n], 1998.
______. A Ideologia Alemã. São Paulo: Hucitec, 1980.
______. Grundrisse: manuscritos econômicos de 1857-1858: esboço da crítica da economia
política. São Paulo: Boitempo Editorial; Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 2011.
______. O Capital: Crítica da economia política. Vol. 1 tomo 1. São Paulo: Abril Cultural, 1983.
______. O Capital. Crítica da economia política. 2. ed. Vol. 1 tomo 2. São Paulo: Nova Cultura, 1985.
______. O Capital. Crítica da economia política. 3. ed. Vol. 4 tomo 1. São Paulo: Nova Cultura, 1988.
MÉSZÁROS, I. A teoria da alienação em Marx. São Paulo: Boitempo Editorial, 2006.
______. A crise estrutural do capital. São Paulo: Boitempo Editorial, 2009.
______. Para além do capital: rumo a uma teoria da transição. Campinas: Editora da UNI-
CAMP; São Paulo: Boitempo Editorial, 2002.
SAID, A. M. Uma estratégia para o Ocidente: o conceito de democracia em Gramsci e o PCB.
Uberlândia: Edufu, 2009.
ZIZEK, S. Discurso para o movimento “Ocupar Wall Strett”, Nova York, 2011.
Resumo
No ensaio que diz respeito ao imperialismo, contido em seu livro Origens do To-
talitarismo, Arendt faz críticas aos Direitos Humanos que, mesmo depois de 60
anos da publicação de sua obra, ainda soam muito atuais para nós. A situação
de apátridas e refugiados colocados à margem da sociedade representou para
Arendt uma fonte de inquietação filosófica. As pessoas que simplesmente per-
diam sua cidadania ou eram obrigadas a refugiar-se em outro país, sem ser, des-
se modo, assimiladas nesse novo território e sem poder voltar para o seu ter-
ritório de origem, sentiam-se constantemente ameaçadas por não possuírem
mais um lugar onde se sintam em casa no mundo. Mas, como podemos dizer
que esses apátridas e refugiados eram uma constante apenas no século passa-
do, se todos os dias, ainda hoje, pessoas continuam fugindo de seus países para
refugiar-se em outro lugar? Ora, mesmo após o término da Segunda Guerra, as
guerras civis continuaram a existir no mundo. Desta maneira, faz-se necessária
uma distinção entre apátridas e refugiados. Os apátridas, termo freqüentemen-
te utilizado para identificar os judeus do período do Terceiro Reich, são aqueles
indivíduos que perderam a sua cidadania, ou a sua naturalização, ou seja, eles
não pertencem mais a nenhum Estado-Nação e, portanto, ninguém tem jurisdi-
ção sobre eles. Já os refugiados são aqueles que fugiram para um outro país, ou
então foram expulsos do seu país de origem, sendo obrigados a buscar abrigo
em outro território. É muito comum, ainda hoje, encontrarmos refugiados, seja
por motivos políticos ou por conta das guerras. A crítica de Arendt aos direitos
humanos consiste em afirmar que os tais “direitos inalienáveis” nunca foram
eficazes na proteção nem de apátridas, nem de refugiados. Com efeito, os direi-
tos que defendemos como inalienáveis em nossa sociedade, demonstram não
passar de uma retórica vazia em outras sociedades onde a declaração dos direi-
tos humanos não foi assimilada. Deste modo, podemos entender que a crítica
que Arendt fez quanto à eficácia dos direitos humanos continua sendo atual
pois ainda hoje só a Declaração dos Direitos Humanos não bastam para garantir
minimamente os direitos de algumas minorias.
Palavras-chave: Totalitarismo, Direitos Humanos, Hannah Arendt, Apátri-
das, Refugiados
Mesmo que não tenha um vintém, pode agora conseguir advogado, queixar-se
contra os carcereiros e ser ouvido com respeito. Já não é o refugo da terra: é
suficientemente importante para ser informado de todos os detalhes da lei sob
a qual será julgado. Ele torna-se pessoa respeitável. (ARENDT. 2009, p.320)
Referências
ADLER, Laure. Nos Passos de Hannah Arendt, Rio de Janeiro: Record, 2007
AGAMBEN, Giorgio. 2008Estado de exceção, São Paulo: Boitempo, 2004
________. O que resta de Auschwitz, São Paulo: Boitempo, 2008
________. Homo Sacer. O poder soberano e a vida nua I, Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010
AGUIAR, Odilio Alves (Org.). Origens do totalitarismo 50 anos depois, Rio de Janeiro: Relume
Dumará, 2001
________ (Org.). Filosofia e Direitos Humanos, Fortaleza: Editora UFC, 2006.
________. Filosofia, Política e Ética em Hannah Arendt, Ijuí: Ed. UNIJUÍ, 2009
ARENDT, Hannah. Vita activa: La condizione umana, Milano: Bompiani, 1994 ________. A con-
dição humana, Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2002
________. Entre o passado e o futuro, São Paulo: Perspectiva, 2003
________. Crises da república, São Paulo: Perspectiva, 2004
________. Homens em tempos sombrios, São Paulo: Companhia das Letras, 2008
________. A promessa da política, Rio de Janeiro: DIFEL, 2008
________. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal, São Paulo: Compa-
nhia das Letras, 2009
________. Origens do totalitarismo, São Paulo: Companhia das letras,2009
________. Sobre a violência, Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2009
CORREIA, Adriano. Hannah Arendt, Jorge Zahar Ed., 2007
________. Hannah Arendt: Entre o Passado e o Futuro, Juiz de Fora: UFJF, 2008
LAFER, Celso. Hannah Arendt: pensamento, persuasão e poder. São Paulo: Paz e Terra, 2003
________. A reconstrução dos direitos humanos- um diálogo com Hannah Arendt. São Paulo:
Companhia das letras, 2009.
RUIZ, Castor Bartolomé (org.) Justiça e memória: para uma crítica ética da violência. São
Leopoldo: Editora Unisinos, 2009
* Doutor em Filosofia e
Anor Sganzerla* Professor do Curso de
Filosofia da PUCPR.
Resumo
A ampliação do universo ético para todo o reino da vida, e não somente como
privilégio humano, promovido por Hans Jonas, permitiu que sua filosofia fos-
se associada em defesa de uma moral naturalista. Embora o autor recorra à
própria biologia como fundamento da ética da responsabilidade, esta reflexão
quer mostrar que Jonas se afasta da moral naturalista, classificada também de
falácia naturalista, pois para o filósofo o dever ser no homem se fundamenta
de modo ontológico, e não moral, o que faz com que o homem tenha que ser
responsável porque ele é responsável ontologicamente. Assim sendo, Jonas
não busca extrair uma ética da ontologia, pois para ele a ética já está contida
na própria vida, na medida em que a própria vida diz um sim à sua continui-
dade. Este dever ser já está inserido no Ser, como resultado de uma liberdade
que é ontológica e não racional, e por ser ontológica, portanto, não constitui
privilégio humano. Reinserido na natureza, o homem reafirma-se numa es-
pécie de ontobiologia, o que faz com que sua proposta ética se classifica como
uma biologização do ser moral, e não uma biologização da natureza, visto que
a responsabilidade é essencialmente ontológica.
Palavras-chave: Ética; natureza; responsabilidade; ontologia; ontobiologia.
J
onas inicia sua maior obra O princípio responsabilidade afirmando que todas as
éticas até hoje compartilharam alguns pressupostos em comum, com destaque
para o caráter antropocêntrico da esfera moral (JONAS, 2006, p. 29). Ao mos-
trar a necessidade de se proteger eticamente não mais somente a vida humana,
mas também a vida extra-humana, o autor ampliou o universo moral, o que facili-
1
George Moore em sua obra Principia éthica afirma que a possibilidade de usar da natureza como
modelo para o pensamento ético constitui uma falácia naturalista. David Hume também em Tratado
da natureza humana afirma que não é possível passar do que pertence ao domínio do dever ser para
o domínio do ser, pois se estaria buscando conclusões não presente nas premissas e ficou conhecido
como a guilhotina de Hume.
2
Embora a posição de Comín seja aceitável sob este ponto de vista, ela está limitada à posição de que
a Responsabilidade é tratada apenas como uma questão ética, e não como um princípio ontológico.
Desse ponto de vista, sua afirmação de que Jonas “incorre no que costumamos chamar de ‘falácia
naturalista’” (2001, p. 22) não leva em conta o caráter ontológico afirmado pelo autor. A citação da
autora demostra esse limite: “O homem é o único ser que pode ser responsável e, na medida em que
pode sê-lo, deve ser e o é. De um factum incontestável, que o homem tem uma capacidade de ser res-
ponsável, se infere um dever ser responsável. Tanto neste argumento como em todo o livro – pois a
partir da mera observação e descrição do ser, da existência do ser, se infere não somente sua afirma-
ção, mas um dever, o de cuidar da sobrevivência e permanência - Jonas incorre no que chamamos de
falácia naturalista”. Nota-se como a responsabilidade é vista apenas como um elemento ético, retirado
- e não contido – pelo ser. Essa é também a posição de Theis (2008, p. 11) quando afirma: “Ele [Jonas]
procura o princípio da ética numa metafísica via uma ontologia na qual a ideia de homem forma par-
te, opondo-se, assim, àquilo que constitui, pelo menos desde Hume, um dos axiomas da reflexão ética
e cometendo deliberadamente o pecado da naturalistic fallacy, da passagem do ser ao dever ser”. A
mesma visão limitada ao campo ético transparece aqui.
Para Jonas o homem nem mesmo tem direito de falar de uma moral natura-
lista, visto que diante do longo trabalho da natureza, incluindo a nossa existência
e, que hoje a sua continuidade está entregue às nossas mãos, requer do homem o
reconhecimento de que a natureza tenha que ser protegida como um bem em si e,
não para atender o homem compreendido como o único sujeito digno de moral.
O giro proposto por Jonas é de que a natureza deve existir, não porque sem ela o
homem não poderia garantir a vida humana autêntica, mas porque “a natureza em
si tem um direito inalienável à vida e a sua conservação” (COMIN, 2001, p. 21) e o
homem como ser capaz de responsabilidade deve responsabilizar-se pela conti-
nuidade desse direito.
Em O princípio vida, Jonas afirma que não se trata de salvar o abismo entre
o homem e a natureza, mas reconhecer que a superação do dualismo converteu-se
numa exigência moral, e numa condição de possibilidade para uma ética da re-
ponsabilidade com o futuro. Com isso Jonas busca fundamentar ontologicamente
um direito inalienável da natureza à existência. Trata-se de estabelecer de maneira
fundamentada uma série de normas de conduta a partir de uma filosofia da nature-
za. Afirma o autor, que essa filosofia da natureza deve distanciar-se da perspectiva
das ciências naturais, pois suas explicações causais e mecânicas não expressam
toda a verdade sobre a mesma. Esclarece Wolin que as teses especulativas de Jonas
em referência à vida orgânica “se não podem ser provadas também não podem ser
refutadas” (2003, p. 177), ao contrário, requisitam a suspensão da objetividade das
ciências naturais para possibilitar um novo olhar diante da vida.
A autoconservação é um fim em si mesmo para todas as formas de vida, afir-
ma o autor, e em suas diferenças há uma teleologia inerente, desde as formas mais
simples até o homem. Desse modo, o autor busca identificar uma teleologia da na-
tureza como um todo, sem recorrer ao plano espiritual ou mesmo a sua raciona-
lidade interna. Afirma Comín que “trata-se de um querer, de um querer ir além, o
que explica que a evolução seja um avançar para as formas mais complexas” (2001,
p. 22). Não se trata de um fim último e supremo, mas de uma orientação para um
fim, para um aperfeiçoamento de modo que a vida possa continuar sendo. O sim à
vida é o valor fundamental de todos os valores, um bem em si mesmo, afirma Jonas,
por isso que o ser é preferível ao nada. A responsabilidade do homem, portanto,
vai além do aqui e agora, mas dirige-se ao futuro, na medida em que devemos ser
responsáveis pela continuação da própria responsabilidade ontológica no homem
no futuro, para que o sim à continuidade da vida possa se perpetuar.
É o homem, como um destruidor potencial do trabalho teleológico da natu-
reza, que deve se encarregar, enquanto querer, dar um sim ao ser da natureza e um
não ao não-ser, por isso, a identificação do princípio responsabilidade com uma
Referências
COMÍN, I. G. Introducción. In Más acerca del perverso fin y otros diálogos y ensayos. Coleción
Clásicos del pensamento crítico. Madrid: Catarata, 200.
______ . Introducción a la edición española. In Hans Jonas: poder o impotência de la subjetivi-
dad. Coleção Pensamento Contemporâneo. Barcelona/Buenos Aires/México: Paidós, 2005.
FROGNEUX, N. Hans Jonas ou la vie dans le monde. Bruxelles: De Boeck Université, 2001.
HUME, D. Tratado da natureza humana. São Paulo: UNESP, 2001.
JONAS, H. O princípio responsabilidade: ensaio de uma ética para a civilização tecnológica. Tradu-
ção de Marijane Lisboa e Luiz Barros Montez. Rio de Janeiro: Contraponto e Ed. PUC-RJ, 2006.
______. O princípio vida: fundamentos para uma biologia filosófica. Tradução de Carlos Al-
meida Pereira. Petrópolis: Editora Vozes, 2004.
______ . Técnica, medicina y ética: lá práctica del princípio responsabilidad. Tradução de Car-
los Fortea Gil. Barcelona: Ediciones Paidós Ibérica, 1997.
______. Pensar sobre Dios y otros ensayos. Tradução de Ângela Ackermann. Barcelona: Helder, 1998.
MOORE, G. E. Principia ethica. São Paulo: Editora Ícone, 1998.
OLIVEIRA, M. A. Ética, direito e democracia. São Paulo: Paulus, 2010.
THEIS, R. Jonas: habiter le monde. Paris: Edicions Michalon, 2008.
RICOEUR, P. A religião dos filósofos. São Paulo: Loyola, 1996.
WOLIN, R. Los hijos de Heidegger: Hanna Arendt, Karl Löwith, Hans Jonas e Hebert Marcuse.
Madrid: Cátedra, 2003.
Resumo
No presente trabalho pretende-se expor, ainda que sumariamente, os prin-
cipais lineamentos teóricos que sustentam o projeto de pesquisa intitulado
“Revisão Crítica-Materialista da Bioética”. Essa proposta de investigação tem
como objetivo proceder a um exame crítico dos conceitos e temas centrais
da reflexão bioética a partir da tradição filosófica materialista, tendo por re-
ferência o pensamento marxiano. A exercitação dessa revisão é a posição do
edifício teórico da bioética sobre novas bases. Põe-se sob um olhar crítico
rigoroso os pressupostos, de cunho predominante metafísico (transcenden-
tal e/ou religioso), que até o momento sustentam, preponderantemente, os
discursos e análises que têm por telos a compreensão filosófica das conse-
quências e dos dilemas do desenvolvimento das tecnociências que intervêm
na existência dos homens.
Palavras-chave: Ciência, Ética, Bioética, Materialismo.
N
o presente trabalho pretende-se expor, ainda que sumariamente, os princi-
pais lineamentos teóricos que sustentam o projeto de pesquisa intitulado
“Revisão Crítico-Materialista da Bioética”. Essa proposta de investigação
tem como objetivo proceder a um exame de caráter crítico dos conceitos e temas
centrais da reflexão bioética a partir do arcabouço categorial produzido no interior
dos quadros da tradição filosófica materialista, em especial tendo por referência
o pensamento marxiano. Nesse sentido, a produção marxiana, em suas diferentes
fases de elaboração se constitui no arrimo básico da propositura em tela e isto por-
quanto o conjunto dessa elaboração forneça alguns dos subsídios conceituais de-
cisivos para empreitada de uma renovação no que respeita à reflexão acerca dos
problemas e questões levantados pela relação da ciência com a vida humana ou não.
1
Alles gesellschaftliche Leben ist wesentlich praktisch. Alle Mysterien, welche die Theorie zum
Mystizism[us] veranlassen, finden ihre rationelle Lösung in der menschlichen Praxis und im Begrei-
fen dieser Praxis.
[...] por conseguinte, está totalmente determinado pela sociedade; que isso
pressupõe, ademais, a divisão do trabalho etc., na qual o indivíduo já é posto
em outras relações distintas daquelas de simples trocador etc. Que, portanto,
o pressuposto não só de maneira alguma resulta da vontade e da natureza
imediata do indivíduo, como é um pressuposto histórico e põe desde logo o
indivíduo como determinado pela sociedade (MARX, 2011, p. 190-191).
De certa maneira, acontece aos homens como com as mercadorias. A não ser
que ele venha ao mundo com um espelho, como filósofo fichteano: eu sou
eu, o homem deve primeiro espelhar-se em outros homens. Primeiramente,
por meio do relacionamento com os homens, com Paulo seu semelhante que
o homem Pedro se relaciona consigo como homem. Assim vale também para
Paulo, em corpo e alma, em sua corporalidade paulina, como forma de apari-
ção do gênero humano3 (MARX, 1998, p. 67).
Referências
MARX, K. Das Kapital, erster Buch. In: Marx-Engels Werke, Band 23. Berlin: Dietz Verlag,
1998.
_________. Grundrisse: esboços da crítica da economia política. São Paulo: Boitempo Editorial,
2011.
_________. Ökonomisch-philosophische Manuskripte 1844. In Marx-Engels Werke, Ergänzungs-
band, 1. Berlin: Dietz Verlag, 1971.
_________. Thesen über Feuerbach. In Marx-Engels Werke, Band 3,. Berlin: Dietz Verlag, 1969.
SÉVE, L. Para uma crítica da razão bioética. Lisboa: Instituto Piaget, 2000.
Resumo
Um campo possível para o estudo do surgimento dos saberes psicológicos é
o das práticas de governo, conforme delineadas por Foucault. Por práticas de
governo entendem-se as formas como se estrutura a condução da conduta
alheia, desde as formas pastorais do cristianismo primitivo até os modos atu-
ais do Estado contemporâneo. O ponto chave dessa história encontra-se no
século XVI, quando surge um conjunto de novas técnicas de governo, emba-
sadas na necessidade de registro e disciplinamento constante das ações dos
governados, caracterizando o “Estado de polícia”. Contudo, no século XVIII
surgem novas tecnologias de governo, patrocinadas pelos fisiocratas; a po-
pulação passa a ser vista como um ente natural a ser governado não mais se
intervindo em todos os detalhes de sua vida, mas acompanhando de modo
científico todas as suas flutuações livres. Para Rose, a psicologia passa
a ter especial importância no século XX, atuando através da constituição de
políticas múltiplas para governo de indivíduos em sociedades democráticas.
Nosso objetivo é avaliar os modos de governamentalidade engendradas no
contexto das Reformas Psiquiátricas brasileira e italiana, por meio dos con-
ceitos de cidadania e liberdade. A hipótese central é que co-existem não ape-
nas os antigos dispositivos disciplinares-asilares (e as formas de resistência
a estes), mas modos liberais de gestão, presentes em algumas figuras como a
empresa social (e toda uma nova configuração do usuário como trabalhador
e consumidor). Trata-se de formas de gestão pela liberdade e voltadas para
uma ação mais flexível em que o usuário-cidadão deve agora ser capacitado
para sua auto-gestão.
Palavras-chave: Governamentalidade – Reforma psiquiátrica Brasileira –
Psiquiatria Democrática – Liberdade – Cidadania.
1
Um bom exemplo desta situação ocorreu em março de 2011, quando houve um assassinato de 14
estudantes de uma escola pública no Rio de Janeiro. O assassino, que se suicidou depois do crime,
deixou uma carta onde justificava o crime dada a necessidade de purificar as vítimas. Quase instan-
taneamente surgiu nas grandes redes de televisão um grande número de especialistas apresentando
os mais diversos diagnósticos sobre a doença mental do assassino (e sua família), assim como planos
para controle destes casos.
Conclusão
Nosso principal objetivo não é afirmar que os principais atores da reforma
brasileira não fizeram nada mais que incluir a loucura numa forma liberal de ges-
tão. Antes disto, o que gostaríamos de destacar é a possível presença das formas
liberais de gestão nos dispositivos reformistas, especialmente no momento em que
estes dispositivos se institucionalizam, quando o vigor do conceito cede espaço ao
automatismo da prática cotidiana. Neste sentido é necessário recordar que as prá-
ticas de contra-conduta podem se transformar em técnicas positivas de governo.
E que estas não existem em estado puro e distinto; sempre estão mescladas em
nossos dispositivos. Este caráter mutante e múltiplo das formas de governo é um
aspecto a que todo o movimento reformista deve permanecer atento.
Para este combate, é crucial repensar a cidadania e a libertar em outro sen-
tido. Especialmente, seria crucial despojar a palavra liberdade de suas conotações
Referencias
BASAGLIA, F. (1979) Psiquiatria alternativa: contra o pessimismo da razão, o otimismo da
prática. São Paulo: Editora Brasil Debates.
BASAGLIA, F. (1985) A Instituição negada: relato de um hospital psiquiátrico. Rio de Janeiro:
Edições Graal.
BASAGLIA, F. (2005) A destruição do hospital psiquiátrico como lugar de institucionaliza-
ção. Em: AMARANTE, P. (Ed). Escritos selecionados em saúde mental e reforma psiquiátrica.
Rio de Janeiro: Garamond.
BEZERRA JR., B. (1992) Cidadania e loucura: um paradoxo? Em: BEZERRA JR., B. E AMA-
RANTE, P. (Eds.). Psiquiatria sem hospício: Contribuições ao estudo da reforma psiquiátrica.
Rio de Janeiro: Relume-Dumará.
BIRMAN, J. (1992). A cidadania tresloucada: notas introdutórias sobre a cidadania dos do-
entes mentais. Em: BEZERRA JR., B. e AMARANTE, P. (Eds.). Psiquiatria sem hospício: Con-
tribuições ao estudo da reforma psiquiátrica. Rio de Janeiro: Relume-Dumará.
BRASIL (2002). Lei n° 10.216. Em Legislação em Saúde Mental. Brasília: Ministério da Saúde.
FOUCAULT, M. (1978) História da Loucura. São Paulo: Perspectiva.
FOUCAULT, M. (1984) O que é o iluminismo? Em: ESCOBAR, C. H. (Org.), Dossier Foucault.
Rio de Janeiro: Taurus.
FOUCAULT, M. (1995) Michel Foucault entrevistado por Hubert L. Dreyfus e Paul Rabinow.
Em: H. DREYFUSS & P. RABINOW (Orgs.). Michel Foucault: uma trajetória filosófica. Rio de
Janeiro, Forense Universitária
FOUCAULT, M. (2006) Seguridad, territorio, población. Buenos Aires: Fondo de Cultura Eco-
nómica.
FOUCAULT, M. (2007) Nacimiento de la biopolítica. Buenos Aires: Fondo de Cultura Eco-
nómica.
Resumo
O artigo apresenta a análise de Hannah Arendt sobre o modo como se apre-
senta à modernidade secular o desafio de prescindir da autoridade, da re-
ligião e da tradição para a instauração, a conservação e a compreensão do
mundo comum, reivindicando um outro modo de fundamentar e preservar a
esfera pública.
Palavras-chave: Hannah Arendt; Autoridade; Secularização; Modernidade .
O
propósito primordial deste artigo consiste em apresentar e discutir a re-
flexão de Hannah Arendt sobre o grande desafio da modernidade secular,
qual seja: prescindir da autoridade, da religião e da tradição para a ins-
tauração, a conservação e a compreensão do mundo comum. Pretendo evidenciar
como, na análise arentiana, o processo de secularização foi importante para o sur-
gimento de um outro modo de fundamentar e preservar a esfera pública. Noutros
termos, trata-se de analisar de que modo Arendt, sensível ao fato de que passamos
a viver em um mundo secular no qual o presente nos foi entregue sem um come-
ço sagrado, buscou pensar a possibilidade de uma outra forma de autoridade no
mundo moderno.
Para Arendt, a era moderna, processo histórico de transformação que “surge
com as Ciências Naturais no século XVII, atinge o seu clímax político nas revoluções
do século XVIII e desenrola suas implicações gerais após a Revolução Industrial do
século XIX” (ARENDT, 2007, p. 54), buscou elaborar um conceito de razão emanci-
pado das autoridades tradicionais, livre das hierarquias pré-estabelecidas e seus
fundamentos teológicos, caracterizando-se, portanto, pelo desejo de demolir tudo
quanto viera do passado, pela vontade de romper com toda verdade dada, evidente
Referências
ADVERSE, Helton Machado. Uma república para os modernos: Arendt, a secularização e
o republicanismo. Revista de Filosofia da Unisinos, São Leopoldo, v. 13, n. 1, p. 39-56, jan/
abr 2012.
AMIEL, Anne. A não-filosofia de Hannah Arendt. Trad. João C. S. Duarte. Lisboa: Instituto
Piaget, 2001.
ARENDT, Hannah. A condição humana. Trad. Roberto Raposo. 10.ed. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 2009.
______. Compreender: formação, exílio e totalitarismo. Trad. Denise Bottmann. São Paulo:
Companhia das Letras; Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008.
______. Entre o passado e o futuro. Trad. Mauro W. Barbosa de Almeida. 6.ed. São Paulo: Pers-
pectiva, 2007.
______ . Origens do totalitarismo. Trad. Roberto Raposo. São Paulo: Companhia das Letras,
2004.
______ . Sobre a revolução. Trad. Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
______ . Sobre Hannah Arendt. Trad. Adriano Correia. Revista Inquietude, Goiânia, vol. 1, n° 2,
ago/dez 2010, p. 123-163.
AVRITZER, Leonardo. Ação, fundação e autoridade em Hannah Arendt. Lua Nova - Revista
de cultura e política, São Paulo, v. 1, p. 147-167, 2006.
BIGNOTTO, Newton. Hannah Arendt e a Revolução Francesa. O que nos faz pensar. cadernos
do departamento de filosofia da PUC-Rio, Rio de janeiro, no 29, p. 41-58, 2011. BLUMEN-
BERG, Hans. The legitimacy of the modern age. Trad. R. Wallace. Cambridge: Cambridge
University Press, 1983.
Resumo
Esse texto tem como objetivo analisar a controvérsia em torno da relação
entre legalidade e legitimidade, através da discussão feita por Habermas so-
bre o conceito weberiano de autoridade racional. Refaremos primeiramente
a argumentação habermasiana do concito weberiano. Através desse exame,
iremos realizar uma apreciação da crítica de Habermas ao decisionismo, além
da associação que ele estabelece entre o decisionismo de Luhmann e de Sch-
mitt. Por fim, iremos esboçar o que pensamos ser a descrição mais correta
da relação entre legalidade e legitimidade na contemporaneidade, a saber, a
separação completa entre esses dois âmbitos, o que acarreta o inevitável as-
pecto decisionista do direito.
Palavras-chave: legalidade, legitimidade, decisionismo, imanência, trans-
cendência
H
abermas inicia seu texto1 sobre a discussão da relação entre legitimidade e
direito com o tema da motivação. Baseando-se em Freud, Mead e Durkheim,
ele afirma que a motivação para determinada ação é construída através
da internalização das estruturas de expectativas representadas simbolicamente.
Inúmeros trabalhos empíricos confirmaram e aprofundaram o conhecimento do
processo de internalização da motivação. Se essa é uma questão mais próxima do
campo da sociologia, o outro aspecto do problema da legitimação aponta para uma
outra direção. Embora Habermas trate dos dois aspectos, é nesse segundo ponto
1
A discussão que vamos analisar ocorre no livro Legitimation Crisis, em sua terceira parte, On the
Logic of Legitimation Problems.
3
O livro é Legitimação pelo Procedimento. Luhmann reconhece o valor de Weber na criação do concei-
to, autoridade racional, mas quer ir além de Weber.
4
O livro é Legalidade e Legitimidade. Schmitt se coloca contra o que ele percebe como a ideia central
do conceito de autoridade racional, a saber, a redução da legitimidade à legalidade.
Referências
HABERMAS, J. (1975) Legitimation Crisis. Boston: Beacon Press.
LUHMANN, N. (2001). Legitimation durch Verfahren. 6. Auflage. Frakfurt am Main: Suhr-
kamp.
SCHMITT, C. (2004). Legality and Legitimacy. Durham: Duke University Press.
SCHMITT, C. (1996). Politische Theologie. Vier Kapitel zur Lehre der Souveränität. 7. Auflage
Berlin: Duncker & Humblot.
Daiane M. Rocha*
Resumo
O presente trabalho busca argumentar, a partir do modelo de beneficência-
-na-confiança, que a defesa do suicídio assistido é, dentro da perspectiva,
imoral e indesejável. O suicídio assistido não é uma opção moralmente viável,
embora seja sustentada sob a ideia da “morte com dignidade”. O que mos-
tramos nesse trabalho é que eliminar o sofrimento e eliminar a pessoa que
sofre são coisas distintas, de modo que o procedimento de suicídio assistido,
muitas vezes chamado de morte “por compaixão”. Por meio da análise dos
princípios da autonomia e da beneficência, conforme apresentados por Enge-
lhardt (sob a forma de princípio do consentimento) e Pellegrino (sob a forma
do princípio da beneficência-na-confiança), mostraremos quais nuances de
cada um desses modelos contribui para práticas mais adequadas em bioética,
ao que acrescentaremos a discussão acerca do cuidado paliativo, que perce-
bemos como sendo uma resposta que corrobora para uma humanização da
medicina e ética aos dilemas no fim da vida.
Palavras chave: Sociedade Pluralista. Autonomia. Beneficência. Cuidados Pa-
liativos. Suicídio assistido.
Introdução
P
rimeiramente cabe uma observação acerca do título desse trabalho. Por
‘absolutização da autonomia’ entendemos o uso feito por Pellegrino, que
ressalta que “os filósofos que defendem a absolutização da autonomia do
paciente rejeitam o fato de que a tomada de decisões entre seres humanos é uma
transação interpessoal”(PELLEGRINO & THOMASMA, 1989, 14). O autor apre-
senta várias críticas ao modelo autonomista, por isso o usaremos para contrapor
(1) O bem biomédico, (2) o bem como entendido nas circunstâncias particu-
lares pelo paciente, (3) o bem do paciente enquanto ser humano, (4) o mais
alto bem do paciente (como entendido pelo próprio paciente) (PELLEGRINO
& SULMASY In: CHOCHINOV & BREITBART (Ed.), 2009, 268, tradução nossa).
Cabe ainda salientar que essa concepção do bem do paciente, mesmo tendo
como elementos a própria visão do paciente acerca de seu bem e seu fim último, não
se configura como o triunfo da autonomia, como sugerem Beauchamp e Childress
(BEAUCHAMP & CHILDRESS, 2009, 207).
A diferença entre a abordagem autonomista e o modelo de beneficência é
que este aponta para o fim beneficente da medicina, para primazia da condição
existencial do paciente, bem como para a classificação não-automática de valores,
o consenso, o objetivo moral prudencial e os axiomas apresentados anteriormente.
Ou seja, todos esses elementos acabam regulando e limitando uns aos outros, para
que a relação médico-paciente não seja impessoal, mas ao mesmo tempo, que bus-
que um equilíbrio entre o que é medicamente indicado e as decisões do paciente
no que se refere à tratamentos.
No modelo de beneficência esses elementos são visados a fim de construir
uma relação saudável e equilibrada entre o profissional da saúde e o paciente, uma
relação de confiança e respeito mútuo, pois, sobretudo, trata-se de uma relação
humana, e não uma relação entre consumidor e produto.
Assim, embora, o bem como entendido nas circunstâncias particulares pelo
paciente, e o mais alto bem do paciente (como entendido pelo próprio paciente), se-
jam elementos do bem do paciente que podem ser traduzidos como respeito pela
autonomia, não fazem com que o modelo se limite a esse aspecto, já que a medicina
não é um produto como um carro, um móvel etc, que o paciente escolheria ao seu
bel prazer. É uma relação de cura, que deve ser baseada na confiança e no diálogo
entre médicos e pacientes, ou quando esses não tiverem condições para tal, entre
médicos e seus responsáveis. Ou ainda, quando nenhum familiar, amigo ou respon-
sável for localizado, o paciente precisa de uma ética que garanta que seus melhores
interesses serão a base das ações do médico, por isso a importância da confiança
nesse modelo, e pelo mesmo motivo, a autonomia enquanto princípio único não
daria conta de todas essas nuances da relação médico-paciente.
Pacientes afetados por doença fatal que ainda não estão em estágio terminal
sofrem com antecipação da dor. Pacientes terminais ou que estão morrendo
sofrem com medo da morte e medo do processo de morrer. Eles também so-
frem de um sentimento de culpa por estarem doentes, por se sentirem como
um fardo para outros, em termos físicos, financeiros e emocionais, ou por
fazer seus familiares sofrerem por eles.(...) Pacientes também sofrem com a
pena, medo, ou pela aversão que eles sentem por parte das pessoas saudáveis
que vem visitá-los. Médicos, enfermeiras, visitantes, familiares e amigos po-
dem, sem querer, induzir a sentimentos de invalidez, rejeição e alienação pelo
modo que eles agem na presença dos doentes e que estão morrendo (PELLE-
GRINO In: EMANUEL(Ed.), 1998, 75, tradução nossa).
Conclusão
O ponto sustentado por Engelhardt e que buscamos questionar aqui, é o de
que não teríamos, segundo ele, autoridade moral para impor uma concepção de
bem aos chamados “estranhos morais”, de modo que o consentimento dos indiví-
duos seria a única forma de ética possível na sociedade pluralista, ou seja, pres-
supondo a ausência de uma autoridade moral que provenha de Deus, e após o
iluminismo, da razão, o único fundamento de uma ética entre estranhos morais
seria o consentimento.
Por outro lado, mostramos que para Pellegrino, ainda que aceitemos o plu-
ralismo moral como pano de fundo das discussões bioéticas contemporâneas, no
contexto das práticas médicas é possível e desejável se falar em um “bem”, que
seria o bem do paciente.
Esse seria avaliado de acordo com os quatro elementos apontados pelo au-
tor: o bem biomédico; o bem como entendido pelo paciente naquela circunstância
particular; o bem enquanto ser humano, e; a concepção do paciente do bem en-
quanto fim último.
Referências
BEAUCHAMP, T.L. & CHILDRESS, J.F. (2009). Principles of Biomedical Ethics. Sixth Edition.
New York: Oxford University Press.
FLEMING; HAGAN, Ed. (2005). Care of the Dying Patient. Columbia: University of Missouri Press.
PELLEGRINO, E.D. and THOMASMA, D.C. (1988). For the Patient´s Good: The Restoration of
Beneficence in Health Care. Nova York: Oxford University Press.
PELLEGRINO, E.D.; THOMASMA, D.C. (1987). The conflict Between Autonomy and Benefi-
cence in Medical Ethics: a Proposal for a Resolution. Journal of Contemporary Health Law
and Policy. Spring; 3: 23-46.
PELLEGRINO, E.D. The False Promise of Beneficent Killing. In: EMANUEL, L.L. (Ed.).(1998).
Regulating how we die: the ethical, medical, and legal issues surrounding physician-assis-
ted suicide. Cambridge: Harvard University Press.
PELLEGRINO, E.D.; SULMASY, D.P. Ethical Issues in Palliative Care. In: CHOCHINOV, H.M.;
BREITBART, W.(Ed.).(2009). Handbook of Psychiatry in Palliative Medicine. 2ndedition. New
York: Oxford University Press.
POST, S.G. (Ed.) (2004). Encyclopedia of Bioethics, 3rd edition. Vol. 4, New York: Thomson
Gale, Macmillian Reference USA.
Resumo
Em grande parte daquilo que escreveu sobre o tema da política, Max Weber
se posicionou como político e não como cientista. A 1ª Guerra Mundial e os
problemas que decorreram do conflito constituíram o objeto mais freqüente
de seus textos sobre o assunto. Sua maneira de avaliar os acontecimentos da
época caracterizou-se, contudo, pelo uso de idéias formadas em seu traba-
lho como cientista. Embora o envolvimento de Weber com a política estives-
se ligado a questões específicas do momento, sua compreensão sobre a ética
na atividade política já havia sido delineada através de estudos históricos e
sociológicos escritos antes da guerra. O objetivo do artigo que se segue é dis-
cutir a centralidade do tema da guerra naquilo que Weber, movendo-se tanto
por interesse científico como por interesse político, pensava sobre a ética.
Palavras-chave: Max Weber, política, ética, guerra
U
ma das particularidades da obra de Max Weber é seu caráter fragmenta-
do. Desde sua morte, em 1920, diferentes editores têm procurado conferir
unidade a sua produção através de coletâneas. Durante muito tempo as
principais edições de seus textos foram organizadas a partir de divisões temáticas,
dando origem a extensos volumes. Nas últimas décadas, a edição crítica das obras
de Weber interrompeu em parte essa tendência ao apresentar sua produção em
volumes menores, a maioria trazendo apenas um texto por vez. Essa mudança de
estratégia editorial reflete a percepção cada vez mais difundida de que Weber foi
um autor assistemático e que o esforço de organizar a publicação de sua obra deve
ter o cuidado de não sugerir o contrário. Mesmo reconhecendo essa característica
Alguns pressupostos
É difícil dizer até que ponto Weber pretendia desenvolver uma teoria do valor.
Sua recusa em assumir uma tarefa que acreditava pertencer à filosofia, não às ci-
ências sociais, impediu que buscasse uma apresentação sistemática de suas idéias.
Contudo, a certeza de que vivia numa época em que qualquer ação importante, isto
é, qualquer ação que mereça uma justificativa, coloca-se num contexto de tensões
inconciliáveis entre pontos de vista e deve significar a escolha de um deles, foi algo
que acompanhou Weber em grande parte de sua obra. Presente em diversos mo-
mentos de sua produção intelectual, essa perspectiva ganharia um significado prá-
tico mais evidente em seus textos políticos. Em geral, Weber não manifestou a pre-
ocupação de abordar um tema universal quando os escreveu. Seus textos dedicados
à política foram quase todos produzidos na época da 1ª Guerra Mundial ou imedia-
tamente depois, destinando-se a tratar de questões importantes naquele momento.
Expressão mais conhecida do pensamento político de Weber, o discurso Po-
lítica como Vocação foi produzido nesse contexto e se concentrou em avaliar a si-
tuação instável da Alemanha após o fim da guerra. Através dele, Weber expressou
seu ceticismo em relação às negociações que resultariam no Tratado de Versalhes,
criticou as tentativas de revolução socialista em seu país e, principalmente, posi-
cionou-se contra a visão separatista e pacifista que então ganhava força na Bavária.
Contudo, apesar de direcionado para a discussão desse contexto específico, seu
discurso contém idéias que ele havia desenvolvido anos antes. Três pressupostos
são particularmente interessantes porque mostram uma continuidade entre a vi-
são política que Weber assumiu nos últimos anos de sua vida e aquilo que havia
argumentado em textos escritos antes da guerra: 1) o conflito entre as nações não
pode ser definitivamente superado e o político deve defender os interesses de uma
delas; 2) a ação da liderança influencia o desenvolvimento da história, mas a ma-
neira como isso ocorre é irracional; 3) a política se fundamenta na violência. Im-
portantes em 1919, tais idéias ganharam forma em outros momentos de sua obra.
A mais contundente manifestação nacionalista produzida por Weber data de
1895, ano em que proferiu seu conhecido “discurso inaugural” na Universidade de
Freiburg. Beneficiando-se do prestígio alcançado por seu ensaio sobre a situação
do trabalho rural no leste da Alemanha, ele então assumia a cadeira de economia
1
“Aber es gibt auch keine volkswirtschaftspolitische Arbeit auf der Grundlage optimistischer Glückshoff-
nungen” (WEBER, 1980, p. 12). Sobre a crítica ao marxismo: “der modernen Überschätzung des ‘Öko-
nomischen’…” (WEBER, 1980, p. 18). Segundo Wolfgang Mommsen, em 1895 também era importante
a crítica ao “socialismo de cátedra” (MOMMSEN, 1990, p. 38).
2
“Sie ist eine Dienerin der Politik, nicht der Tagespolitik der jeweils herrschenden Machthaber und Klas-
sen, sondern der dauernden machtpolitischen Interessen der Nation” (WEBER, 1980, p. 14).
3
A discussão sobre o nacionalismo de Weber tem sido polêmica desde a publicação do livro de Wolf-
gang Mommsen sobre “Max Weber e a política alemã”, em 1959. O episódio mais conhecido dessa dis-
cussão ocorreu em 1964, no congresso comemorativo dos 100 anos de nascimento de Weber promo-
vido pela Associação Alemã de Sociologia. No evento, houve intenso debate entre os que, estimulados
pela perspectiva aberta por Mommsen, ressaltavam a importância do caráter nacionalista e cesarista do
pensamento político de Weber, argumento este em que se destacou a participação de Raymond Aron,
e aqueles que, por outro lado, observavam na obra de Weber uma tendência à democracia, como foi o
caso de Eduard Baumgarten, por exemplo. Sobre esse debate, ler Bahrdt (1965, pp. 793-96).
Ética e guerra
Max Weber proferiu o discurso Política como Vocação em janeiro de 1919, ain-
da no período que ficaria conhecido como “inverno da revolução”. Havia grande pos-
sibilidade de mudança no campo das idéias que orientavam a política alemã. Falando
para um auditório de jovens que pretendiam romper com a tradição das fraternida-
des acadêmicas alemãs, Weber iniciou seu discurso anunciando que desapontaria
7
“Die ganz universelle Erfahrung: daß Gewalt stets Gewalt aus sich gebiert…” (WEBER, 2002, p. 357).
8
“die Relativierung und Differenzierung der Ethik in Form der ‘organischen’ (im Gegensatz zur aske-
tischen) Berufsethik” (WEBER, 2002, p. 360).
9
“aus Gutem kann nur Gutes, aus Bösem nur Böses folgen” (WEBER, 1980, p. 554).
10
O problema da percepção da irracionalidade ética do mundo está presente na tese central de A
Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo, exemplificada na conhecida imagem do manto que se
transforma em “jaula de ferro”: “Aber aus dem Mantel ließ das Verhängnis ein stahlhartes Gehäuse wer-
den” (WEBER, 1978, p. 203). Mas está principalmente nas considerações de Weber sobre a “teodicéia
do sofrimento” (Theodizee des Leidens) a partir de 1913 (WEBER, 1978, p. 244).
11
Geralmente se considera a atuação política de Kurt Eisner como o principal foco das críticas feitas por
Weber em Política como Vocação. Relata-se que Weber havia de início recusado o convite para a confe-
rência de 1919, sugerindo que Friedrich Naumann fosse chamado em seu lugar, mas mudou de idéia
quando soube que, estando Naumann doente, Eisner poderia seria convidado (SCHLUCHTER, 1980, p.
237; 2009, p. 88; BRUUN, 2007, p. 263). Até ser assassinado por um extremista de direita em fevereiro
de 1919, Eisner era a principal liderança social-democrata do período revolucionário na Bavária, onde
ocupava o cargo de primeiro ministro desde a derrubada do regime monárquico em novembro de 1918.
Num texto da época, Weber se referiria a Eisner como intelectual iludido por seu “sucesso demagógico”
(demagogischen Erfolgen) (WEBER, 2002, p. 140). Apesar das evidências de que Weber estava preocu-
pado sobretudo com a influência de Eisner sobre os “estudantes livres”, foi ao pensamento de Foerster
que ele efetivamente recorreu em Política como Vocação para identificar o pacifismo bávaro. Isso faz
sentido quando notamos que no discurso de 1919 lhe interessava em particular uma associação, carac-
terística da visão política de Foerster, entre pacifismo e fraternidade cristã.
12
“Aber die Frage ist nun für ihn: durch welche Qualitäten...” (WEBER, 1980, p. 545).
13
“Der nach dem Evangelium handelnde Pazifist wird die Waffen ablehnen oder fortwerfen (…) Der
Politiker wird sagen…” (WEBER, 1980, p. 551).
14
“für sein Handeln es nicht wahr ist: daß aus Gutem nur Gutes, aus Bösem nur Böses kommen könne,
sondern oft das Gegenteil” (WEBER, 1980, p. 554).
15
“Der Staat ist (…) ein auf das Mittel der legitimen (das heißt: als legitim angesehenen) Gewaltsamkeit
gestütztes Herrschaftsverhältnis von Menschen über Menschen” (WEBER, 1980, p. 507).
16
“Das spezifische Mittel der legitimen Gewaltsamkeit…” (WEBER, 1980, p. 556).
17
“Oder: ‘Halte den anderen Backen hin!’ (…) Eine Ethik der Würdelosigkeit - außer: für einen Heiligen”
(WEBER, 1980, p. 550).
18
“Denn wenn es in Konsequenz der akosmistischen Liebesethik heißt: ‘dem Übel nicht widerstehen mit
Gewalt’, - so gilt für den Politiker umgekehrt der Satz: du sollst dem Übel gewaltsam widerstehen, sonst
- bist du für seine Überhandnahme verantwortlich” (WEBER, 1980, p. 550).
19
Para Wolfgang Schluchter, quando temos em mente a maneira como Weber percebeu o contraste
entre uma postura de fuga do mundo e outra de envolvimento com o mundo, a verdadeira oposição
de termos ocorre entre ética da convicção e a simples “adequação ao mundo” (Weltanpassung) à ma-
neira da Realpolitik (SCHLUCHTER, 1980, pp. 37-38; 2009, pp. 105-06). Nessa interpretação, a ética
da responsabilidade assume um caráter intermediário entre as duas alternativas.
20
“Wir müssen uns klarmachen, daß alles ethisch orientierte Handeln unter zwei voneinander grund-
verschiedenen, unaustragbar gegensätzlichen Maximen stehen kann...” (WEBER, 1980, p. 551).
21
“Insofern sind Gesinnungsethik und Verantwortungsethik nicht absolute Gegensätze, sondern Ergän-
zungen, die zusammen erst den echten Menschen ausmachen” (WEBER, 1980, p. 559).
22
“Er wird gewonnen durch einseitige Steigerung eines oder einiger Gesichtspunkte…” (WEBER,
1973, p. 191).
23
“eine andere Form des Kampfes des Menschen mit dem Menschen, bei der nicht Millionen, sondern
Hunderte von Millionen jahraus, jahrein an Leib und Seele verkümmern” (WEBER, 1980, p. 144).
24
“Denn alles, was an den Gütern des Machtstaates teilnimmt, ist verstrickt in die Gesetzlichkeit des
‘Macht-Pragma’, das alle politische Geschichte beherrscht” (WEBER, 1980, p. 145).
25
“unserer Verantwortung vor der Geschichte” (WEBER, 1980, p. 142). “wir ohne Schande der Wahl,
die wir einmal getroffen hatten - damals, als wir das Reich schufen -, und den Pflichten, die wir dadurch
auf uns nahmen, uns nie mehr entziehen konnten und können, auch wenn wir wollten” (WEBER, 1980,
p. 144). Já em 1895 a imagem da responsabilidade histórica tinha importância na visão política de
Weber: “unserer Verantwortlichkeit vor der Geschichte” (WEBER, 1980, p. 24).
26
“Denn das alles, erstrebt durch politisches Handeln, welches mit gewaltsamen Mitteln und auf dem
Wege der Verantwortungsethik arbeitet, gefährdet das ‘Heil der Seele’” (WEBER, 1980, p. 558).
Referências
BAHRDT, H. (1965). Max Weber und die Machtpolitik. Kölner Zeitschrift für Soziologie und
Sozialpsychologie, Köln, v. 17, n. 4.
BRUUN, H. H. (2007). Science, Values and Politics in Max Weber’s Methodology. Hampshire:
Ashgate Publishing.
MOMMSEN, W. (1990). Max Weber and German Politics. 1890-1920. Chicago: The University
of Chicago Press.
SCHELTING, A. (1934). Max Webers Wissenschaftslehre. Das Logische Problem der historis-
chen Kulturerkenntnis. Die Grenzen der Soziologie des Wissens. Tübingen: Mohr Siebeck.
SCHLUCHTER, W. (1980). Rationalismus der Weltbeherrschung. Studien zu Max Weber.
Frankfurt am Main: Suhrkamp.
Diogo Ramos*
Resumo
Em nossa comunicação, discutiremos a influência de Franz Leopold Neumann
sobre Hannah Arendt, realçando o modo como algumas das principais teses
de Neumann foram adotadas pela autora de Origens do Totalitarismo. Mas
para tal, defenderemos a importância de uma leitura “genética” da obra, aten-
ta à sua evolução e a certos traços do pensamento de Arendt sobre o assunto.
Em particular, destacaremos a presença de certas temáticas “hegelo-marxis-
tas” nos textos arendtianos da década de 1940 para uma melhor compreen-
são da sua teoria sobre o totalitarismo.
Palavras-chave: Arendt, Neumann, Estado, totalitarismo, nazismo.
O
rigens do Totalitarismo é uma obra reconhecidamente difícil de apresentar
sucintamente, devido à grande quantidade de material por ela abordado
e à sua estrutura algo enigmática, decorrente da obscuridade da relação
entre as suas três partes (dedicadas ao antissemitismo, ao imperialismo e ao to-
talitarismo). Creio que em grande medida por causa desta dificuldade de compre-
ensão, as tentativas de interpretação por parte de comentadores e leitores tendem
a fazer uma leitura seletiva sua, quase sempre a partir de um olhar retrospectivo,
à luz das ideias e temáticas trabalhadas por Arendt em obras posteriores, desta
forma negligenciando parte considerável sua. Em particular, a seção final sobre o
totalitarismo acaba sendo o trecho mais comentado, principalmente naqueles seus
aspectos mais próximos da filosofia política “madura” desenvolvida posteriormen-
te por Arendt.
O hegelianismo arendtiano
É seguramente possível fazer uma leitura geral de Origens do Totalitarismo
tomando a crise do Estado como chave de leitura. Ao contrário de certas teorias
liberais que tendem a ver no totalitarismo a expressão máxima de uma tendência
inerente de expansão desmedida do Estado, ou de uma politização total da socieda-
de, de modo a destruir completamente a liberdade, Arendt tende a enxergar totali-
tarismo e Estado como dois fenômenos independentes, até mesmo incompatíveis.
Esta tendência arendtiana creio poder dizer ser uma nítida influência hegeliana.
Esta última afirmação pode ser espantosa aos leitores d’A Condição Huma-
na e de outros escritos posteriores, nos quais em geral Arendt demonstra grande
aversão não só pelas teorias marxistas como também pelas hegelianas. Contudo,
ela passou boa parte dos seus anos de exílio em Paris tendo como amizade o cír-
culo de hegelianos franceses, numa época em que renascia o interesse francês por
Hegel, num tipo de leitura fortemente marcado pelo existencialismo e pelo surre-
alismo. Arendt tinha então por amigos intelectuais como Alexandre Koyré, Jean
Wahl e Eric Weil, além de ter assistido aulas de Alexandre Kojève. De espantar seria
Neumann e o nazismo
Apesar de hoje em dia pouquíssimo conhecido, Franz Neumann teve um
importante papel nos estudos sobre o nazismo, influenciando consideravelmente
muitas das pesquisas sobre o assunto. Seu livro, Behemoth: estrutura e prática do
nacional socialismo, foi publicado em 1942, mas já tinha seu esboço pronto em
1941, antes de Hitler invadir a União Soviética e dar início à Segunda Guerra Mun-
dial. Behemoth é não só o primeiro tratado sistemático sobre o nazismo como tam-
bém uma obra visionária (e às vezes precoce) em suas teses; a principal das quais,
que influenciaria Arendt em Origens do Totalitarismo, é a ideia de que não havia
propriamente um Estado na Alemanha nazista.
Utilizando-se da metáfora hobbesiana do Estado como o Leviatã e a guerra
civil/anarquia/caos como o Beemote, Neumann tenta demonstrar como os nazis-
tas sistematicamente violaram os princípios constitutivos do Estado moderno, tais
como tematizados e debatidos pela tradição filosófica ocidental. O regime nazista
não seria um governo legal, mas sim uma clique, um gangsterismo, que destrói não
só o ideal do império da lei, como também a própria soberania estatal, ao fazer
degenerar sua estrutura numa pluralidade de aparelhos burocráticos orientados a
interesses exclusivos.
Aquele regime seria composto, ainda de acordo com o autor, por quatro
grandes grupos (a saber, a burocracia estatal, as forças armadas, a grande indústria
e o partido), com interesses próprios mas mutuamente dependentes, empenhados
numa política imperialista que levaria a Alemanha a um expansionismo ilimitado.
Para angariar suporte popular e manter a população submissa, o regime precisa-
ria empregar ideologia e terror em níveis inauditos, promovendo uma completa
burocratização e atomização da sociedade, mascarada sob a ideia abstrata da “co-
munidade popular”. A necessidade desta mobilização total da sociedade devia-se à
situação histórica alemã que, apesar do grande potencial de sua indústria pesada,
Totalitarismo e Estado
Seguramente há fortes diferenças entre as posições de Neumann e Arendt;
como, por exemplo, o marxismo bem mais convencional dele, diferentemente da
metodologia mais psicológica de Arendt, fortemente presente nos textos da década
de 1940 (período em que rotineiramente lidava com temáticas marxistas, apesar
de mesmo então não ter qualquer real interesse por economia). Ainda mais, as
menções a Neumann em Origens do Totalitarismo são relativamente poucas e am-
bivalentes; algumas críticas, outras positivas.
Contudo, o fato do próprio Neumann enfatizar não só o caráter informe do
regime, como também sua profunda incompatibilidade com as categorias tradicio-
Resumo
O presente trabalho tem como finalidade expor a origem e o conceito em que
se fundamentam os regimes totalitários para Karl Popper. A Sociedade Fecha-
da, forma como Popper nomeia o totalitarismo, tem como principal alicerce
na crença em um método pseudocientífico conhecido como historicismo, que
pretende estabelecer os padrões dos movimentos da temporalidade históri-
ca, que elimina a liberdade individual e acorrenta tudo a princípios determi-
nistas. A gêneses desse pensamento foi na Grécia, inicialmente com Heráclito
que estabeleceu no Logos a razão, que permanecia através das mudanças his-
tóricas, e, era necessário visualizá-lo para entender todo o sentido do movi-
mento temporal. Posteriormente, o historicismo cristaliza-se com a República
de Platão que teoriza um Estado ideal, onde, todos deveriam viver sob a tutela
de um rei-filósofo. Ambos os filósofos, Heráclito e Platão, nutrem sentimentos
antidemocráticos, e suas ideologias ameaçam a sociedade livre, nomeada por
Popper de Open Society.
Palavras-chave: Totalitarismo. Historicismo. Close Society. Open Society.
Introdução
P
ara realização deste trabalho foram utilizadas as duas principais obras polí-
ticas de Karl Popper: A Pobreza do Historicismo e A Sociedade Aberta e Seus
Inimigos. Na primeira são estabelecidos, segundo ele, os princípios funda-
mentais do totalitarismo, e, na segunda, os seus principais mentores. Popper acusa
o historicismo de gerar a metodologia ideológica que irá dar suporte as sociedades
totalitárias. Ensina que o historicismo divide-se em dois tipos com característi-
cas próprias: naturalistas e antinaturalistas. O primeiro tipo identifica-se, na mo-
A Inviabilidade do Historicisimo
A compreensão sobre o surgimento do totalitarismo tem grande importân-
cia para o entendimento da rota direcional que vem sendo tomada pelos ventos
políticos da contemporaneidade. Dos filósofos que buscaram por essa compreen-
são, o pioneiro foi o filosofo austríaco Karl Popper. Em 1936, ele elaborava seu
primeiro escrito, que publicariam posteriormente como livro, nomeado A Pobreza
do Historicismo. Nessa obra o autor dedicou as vítimas do fascismo e comunismo,
que fincam suas crenças na “Inexorável Lei do Destino Histórico” (1964 p. 4). Para
Popper, esse é o objeto de estudos do método historicisita, utilizado pelas ciências
sociais, e por ele acusado como a principal causa do totalitarismo.
Já no começo do livro, Popper define claramente o método historicisita como
uma crença supersticiosa no destino, onde o tempo apresenta leis imutáveis que
não perecem no percurso das transformações históricas. É colocado como a ciência
capaz de realizar previsões de fenômenos sociais futuros. Popper a afirma catego-
ricamente que a superstição historicista “é um método pobre – método que não
produz fruto algum”. (1980, p. 5). A proposta da existência de um método lógico,
racional e seguro para realizar previsões históricas são impossíveis e ilógicas, pois,
da forma como não é possível um indivíduo realizar uma previsão sobre o que ele
irá saber no outro dia, também o mesmo não pode ocorrer com as predições so-
ciais. Nas palavras de Popper:
É antiga a ideia de que a predição pode exercer influência sobre o evento pre-
dito. O Édipo da lenda mata o pai que nunca havia visto, resultado direto da
profecia que tinha levado o pai a abandoná-lo. Esse o motivo por que sugiro
a denominação «efeito de Édipo” para indicar a influência da predição sobre
o acontecimento predito (ou, de modo mais geral, para indicar a influência
de uma peça de informação sobre a situação a que a mesma informação faz
referência), independentemente de essa influência tender a provar o evento
predito ou impedi-lo. (POPPER, 1980, p. 13).
Esse argumento é válido para todos os campos do estudos sociais, como exem-
plo na economia. Se hipoteticamente for previsto que o prestígio em uma determi-
nada ação na bolsa de valores vai ser elevado durante três dias consecutivos, tendo
depois, uma queda. Evidentemente, todos os acionistas, ao saber disso, vão realizar
as vendas no terceiro dia, desvalorizado a ação da empresa. Todas as revisões nas
ciências sociais são autorrealizáveis, e, por essa é característica central que todas
não constituem o caráter científico de tentar prever os fatos, mas sim, de causá-los.
“Assim, a física social deve fundar-se num corpo de observações diretas que
lhe seja próprio, atentando, como convém, para sua íntima relação necessária
com a fisiologia propriamente dita.” (COMTE, 2000, p. 60)
Ainda, seguindo por essa linha, Karl Marx irá desenvolver uma metodolo-
gia para análise sociológica, também sob a abordagem do historicismo naturalis-
ta, construindo uma teoria da história social, tomando como base a infraestrutura
econômica da sociedade e as transformações sociais geradas pelas lutas de classes.
Tal método viria a ser conhecido como Materialismo Histórico, que foi sintetizado
por Friedrich Engels na terceira parte do livro Do Socialismo Utópico ao Científico:
1
ENGLES; Frederick. Do Socialismo Utópico ao Científico. Disponível em: <http://www.marxists.org/
portugues/marx/1880/socialismo/cap03.htm>. Acesso em: 17 de nov. de 2012 às 04h00 min.
Platão foi um dos primeiros cientistas sociais, e, sem dúvida o de mais exten-
sa influência. No sentido em que o termo “sociologia” é compreendido por
Comte, Mill e Spencer, foi ele um sociólogo; isto é, aplicou com sucesso sue
método idealista a uma análise da vida social do homem e das leis de seu
desenvolvimento, assim como das leis e condições de sua estabilidade. (PO-
PPER, 1998, p. 48).
Considerações finais
A tentativa criar um método científico para o estudo da história humana,
para Popper, com objetivo de realizar previsões, é uma tentativa malograda. Por-
que nenhuma previsão sociológica é possível devido todas elas serem profecias
autorrealizáveis (Efeito de Édipo). Por isso, o historicismo é uma pseudociência,
por tentar se constituir falsamente como um método cientifico. Quando as ciên-
cias sociais se norteiam por esse método a consequências política é a ascensão das
formas totalitárias de Estado. Pois, se valendo das premissas de que o tempo, ou a
história, são sustentadas por leis universais, e a ciência busca realizar previsões,
com o conhecimento prévio dessas leis, a sociedade passa por uma compreensão
de que tudo é voltado para um determinismo histórico, onde os fatos podem ser
antecipados pela razão cientifica.
Todas as sociedades primitivas, pré-científicas, eram extremamente fecha-
das (Close Society) e de estratificação social era fortemente delimitada, pois, ba-
seavam-se no mito do destino, tal com é exposto por Hesíodo no Trabalho e os
Dias, quando trata sobre as eras e a degeneração da sociedade. Segundo Popper, os
2
Segundo essa obra, desde a criação do mundo, a humanidade passou por cinco momentos, conhe-
cido como Eras do Homem. Cada uma tinha uma raça humana correspondente. Hesíodo narra como
estava destinado a decadência da humanidade seguindo uma análise histórica. Os cinco momentos
são: Era de Ouro, Prata, Bronze, Heróis e do Ferro.
Referências
COMTE, Augusto. Curso de Filosofia Positiva, trad. José Arthur Giannotti e Miguel Lemos.
Colp. Os Pensadores. São Paulo: Nova Cultural,2000.
ENGELS; Frederick. Do Socialismo Utópico ao Científico. Frederick Engels. Disponível em:<
http://www.marxists.org/portugues/marx/1880/socialismo/cap03.htm>. Acesso em: 17
de nov. de 2012 às 04h01min.
POPPER, Karl. Miséria do Historicismo; trad. Octany S. da Mota & Leonidoas hegenberg, São
Paulo, Edusp, 1980.
____________. The Poverty of Historicism; New York, Harper & Row, Publishers, 1964.
____________. A Sociedade Aberta e seus inimigos; tradução de Milton Amado. Belo Horizonte,
Ed. Itatiaia; São Paulo, 1987.
“
A razão então comanda a vontade?” (ARENDT, 2004, 135) Esta é a pergunta que
Arendt faz a Kant quando se ocupa em analisar Algumas questões de filosofia
moral; texto escrito em 1969, quando ela refletia acerca das questões morais
que dizem respeito ao comportamento e à conduta individual, isto é, as poucas re-
gras e padrões que as pessoas consideradas mentalmente sãs utilizam para distin-
guir entre o certo e o errado, e cuja validade supunha-se fazer parte da lei natural ou
divina. Normas que se encontravam vivas no início do século XX, mas que, segundo
Arendt, colapsaram durante as décadas de 1930 e 1940, e que deram vez ao único
princípio que chegou aos tempos modernos: a negação da moralidade como tal.
A razão comanda a vontade? Aspectos dissonantes entre Hannah Arendt e Kant 205
Já não é novidade o fato de que Arendt sentiu-se atraída por este tipo de ques-
tão após ter participado do julgamento do oficial nazista Adolf Eichmann, ocorrido
em 1961, posto que ela própria tenha admitido isto em vários momentos de seus es-
critos tardios; e também que o julgamento ocorrido no tribunal em Jerusalém não di-
zia respeito a nenhum criminoso comum, mas, que se tratava de uma pessoa comum
que havia cometido crimes, pelo simples motivo de estar obedecendo a ordens, e que
agia com entusiasmo. Contudo, o aspecto a ser enfatizado é que este tipo de julga-
mento tocou em “uma das grandes questões morais de todos os tempos” (ARENDT,
1999, 318), que diz respeito à natureza e à função do juízo humano: não havia mais
regras às quais pudessem conformar os casos particulares que apareciam, pois as
máximas morais – “não matarás”, por exemplo – haviam desaparecido. Este contexto
desperta em Arendt a necessidade de ocupar-se, de forma mais efetiva, com questões
relativas à ética ou à moralidade. A partir de então, guiada pela questão do “fazer-o-
-mal”, Arendt ocupa-se com questões relativas à vida interior: desejou compreender
como o ser humano pensa, já que diagnosticou no oficial nazista a ausência de refle-
xão; quis saber se nossa faculdade de distinguir o certo e o errado está conectada à
nossa capacidade de pensar; e quis entender a dinâmica da faculdade espiritual da
vontade, se realmente existe, se é livre, e/ou o que a faz ativa. E nesse âmbito, não há
como prescindir à filosofia kantiana da vontade, muito embora, Arendt não aceite a
solução encontrada por Kant para resolver o “embaraço” causado pelo problema da
liberdade da vontade, aspecto que abordaremos no que segue.
II
Causalidade pela liberdade (da vontade)
A definição kantiana da causalidade pela liberdade transcendental (da von-
tade) encontra-se na Crítica da razão pura, em B 476, no momento em que Kant
faz sua “observação sobre a terceira antinomia”1. Grosso modo, Kant investiga se a
causalidade produtora dos fenômenos é segundo as leis naturais ou é proveniente
da liberdade. A causalidade por liberdade, apresentada por Kant em seu esquema
teórico, parece anunciar uma preocupação em assegurar certeza ao conhecimento,
bem como uma tentativa teórica de garantir uma futura teoria da moralidade. Des-
se modo, na solução à terceira antinomia, Kant apresenta como problemas: conci-
liar uma causalidade por liberdade incondicionada com a causalidade da natureza,
e também estabelecer aquela causalidade como causa espontânea na determina-
ção da vontade (PERIN, 2001,15).
1
Cabe ressaltar que Kant utiliza o termo “antinomia” no sentido de afirmações contraditórias (ou
conflitos transcendentais), definidas por tese e antítese, que são igualmente provadas como válidas
pela razão. Assim sendo, a terceira antinomia apresenta como afirmações supostamente contradi-
tórias, a tese de que “a causalidade segundo as leis da natureza não é a única de onde podem ser
derivados os fenômenos do mundo em seu conjunto. Há ainda uma causalidade por liberdade que
é necessário admitir para explicá-los” com a antítese de que “não há liberdade, mas tudo no mundo
acontece unicamente em virtude das leis da natureza” (KANT, CRP: B 472/473).
A razão comanda a vontade? Aspectos dissonantes entre Hannah Arendt e Kant 207
soluto, observa Arendt, remonta à doutrina bíblica da criação ex nihilo, ou vinda do
nada. E a esse respeito, suas palavras são enfáticas:
Teria Kant feito uma omissão em seu exemplo? Nesse caso, ele poderia ter
claro para si o “poder de espontaneamente começar”, se estivesse preocupado com
uma possível reconciliação entre uma “nova série de atos e estados” e o contínuo
do tempo que esta nova série irrompe. Mesmo assim, a solução possível para a épo-
ca teria sido a distinção de Aristóteles entre potência e ato, a qual Arendt também
não concorda e argumenta, por exemplo, não ser possível alguém sustentar que a
sinfonia produzida por um compositor fosse possível antes de ser real. Para Aren-
dt, a ideia de a sinfonia ser possível, isto é, de não ser impossível realizá-la, é bem
diferente da possibilidade de esta sinfonia existir em potencialidade, esperando
por algum compositor que a tornasse real.
Todo ato livre, ao se tornar parte da realidade em que vivemos, passa a ser
um fato realizado e inseparável desta realidade; terá o aspecto de necessidade e
será impossível de ser removido do pensamento. De acordo com Arendt, a contin-
gência irrompeu como realidade apenas nos primeiros séculos da Era Cristã por
causa da doutrina bíblica, posto que para a filosofia clássica tenha sido o máximo
da falta de sentido. A doutrina bíblica opunha a contingência à necessidade, a par-
ticularidade à universalidade e a vontade ao intelecto, assegurando desse modo
um lugar para o contingente. Para Arendt, o preconceito original contra a contin-
gência, a particularidade e a vontade sobreviveu profundamente ao desafio até a
Era Moderna. A filosofia religiosa e medieval, assim como a secular e a moderna
encontraram diversas maneiras de assimilar a vontade, o órgão da liberdade e do
futuro, à ordem mais antiga das coisas.
A vontade livre concebida como livre escolha, ou entendida como a liber-
dade de começar algo novo, na concepção arendtiana, parece ser absolutamente
incompatível não apenas com a divina Providência, mas também com a lei da cau-
salidade. Nossa autora acredita que a liberdade da vontade não pode ser provada,
mas pode ser pressuposta pela força ou pela fraqueza da experiência interior, ou
melhor, por uma força de afirmação ou de negação. Está claro para Arendt que a
faculdade necessária para se executar estes comandos é a vontade, e que a não
plausibilidade deste pressuposto deve-se às nossas experiências externas no mun-
do das aparências, onde, a despeito do que disse Kant, raramente começamos uma
nova série. Ressalta-se que apesar da crença arendtiana na espontaneidade livre,
Arendt constata que os atos livres são mesmo excepcionais. É Bergson que ela refe-
Que admira que, perdidos nos seus ciclos, não encontram nem entrada nem
saída. Ignoram quando começaram e quando devem acabar o gênero humano
e a nossa condição mortal, incapazes que são de penetrar a sublimidade de
Deus – Ele próprio eterno e sem começo – [que] fez surgir o tempo a partir
de um começo, e ao homem, que ainda não tinha feito, fê-lo no tempo, em vir-
tude, não de uma decisão nova e imprevista, mas imutável e eterna. [...] Deus
[...] instituiu no tempo o homem temporal e de um só homem multiplicou o
gênero humano (AGOSTINHO, 2000, 1115).
A razão comanda a vontade? Aspectos dissonantes entre Hannah Arendt e Kant 209
dança e movimento como um novo começo porque sabe que tem um começo e que
terá seu fim” (ARENDT, 2002, 266); e já que é um ser que possui um começo e que
corre para seu fim, o homem pôde ser dotado da capacidade de querer ou não que-
rer. Nesse ponto, as especulações arendtianas se dirigem ao pensamento de Santo
Agostinho, pois se ele tivesse levado a cabo as suas próprias especulações, teria
definido os homens não como mortais, como pensavam os gregos, mas sim como
“natais”, e teria definido a liberdade da vontade não como o livre arbítrio entre
querer e não querer, mas como a liberdade expressa por Kant em sua Crítica da ra-
zão pura, ou seja, a liberdade “de começar espontaneamente uma série no tempo”.
Considerando, obviamente, que este começo não caísse numa rede de causalidade
e de determinismo, mas que representasse verdadeiramente algo novo, espontâ-
neo e inusitado: um ato livre.
Ao ato livre, Arendt concede uma “espontaneidade desconcertante”, pois
acredita que um ato só pode ser chamado de livre se não for afetado ou causado
por alguma coisa que o preceda, e que exija que este ato seja transformado em uma
causa do que quer que venha a seguir. Se considerado desta forma, e se obtiver
êxito, todo ato livre será a continuação de uma série precedente, o que para Arendt
representa a negação da experiência de liberdade e novidade, ou seja, segue um
caminho oposto ao que ela acredita que seja um novo começo.
Arendt sugere a palavra “revolução” para dissolver o “embaraço de Kant
ao lidar com um poder de começar espontaneamente uma série de coisas ou es-
tados sucessivos”, ou seja, o embaraço kantiano em lidar com um “começo abso-
luto, que em virtude da inquebrantável sequencia do contínuo do tempo segui-
rá, entretanto, sendo sempre a continuação de uma série precedente” (ARENDT,
2002, 339). Ela explica que a palavra “revolução” mudou de significado durante
as últimas décadas do século XVIII: não possui mais o sentido astronômico e as-
sumiu o sentido de um acontecimento sem precedentes. Como exemplos: a revo-
lução francesa, que tentou estabelecer um novo começo para a história humana
quando os revolucionários decidiram que o ano de 1792 inauguraria o ano I; e
a revolução norte-americana que deu aos pais fundadores a consciência de que
poderiam efetivamente postular uma nova ordem. Mesmo que, nesse sentido,
tenham sido tentativas fracassadas, já que os franceses não viram a contagem
anual retroceder no calendário, e que os pais fundadores ao invez de estabele-
cer um novo começo, foram buscar nas lendas uma explicação para seus feitos.
Arendt localiza, nestes eventos, possíveis novos começos para a história humana,
e explica que a dificuldade em reconhecê-los advém do “abismo do nada” que se
abre após a quebra da cadeia causal e que obrigaria os seres humanos a “pensar o
impensável”, que não seria um “novo começo”, mas, representaria um “fim abso-
luto.” Para Arendt, o abismo da espontaneidade pura foi coberto pelo mecanismo
típico da tradição ocidental, que considera a liberdade a razão da política, mas
localiza esta liberdade em um “reino” utópico e ilusório.
Com efeito, considerando tudo o que foi dito até agora, como resposta à ques-
tão que abre esta exposição, Arendt responderia a Kant: não, a razão não comanda
a vontade; apenas a vontade pode ser sua própria causa. De acordo com as análises
arendtianas, desde sua descoberta em um contexto religioso, a vontade tem rei-
vindicado a honra de abrigar todas as sementes da ação e o poder de decidir o que
fazer, e não meramente o que não fazer. É em Santo Agostinho que Arendt encon-
tra, pela primeira vez, a definição da vontade como fonte de ação; provavelmente,
inspirada em passagens como esta em que Santo Agostinho diz: “Fazemos efectiva-
mente muitas coisas que, se não quiséssemos, decerto não faríamos. E em primeiro
lugar o próprio querer: se queremos, o querer existe, se não queremos, não existe
porque não queremos se não quisermos. [...] As nossas vontades são pois nossas;
elas próprias fazem tudo o que fazemos quando queremos e que não se faria se não
quiséssemos” (AGOSTINHO, 1991, 493-494). Disso, Arendt infere que a vontade
prepara o terreno no qual a ação pode se dar, pois orienta a atenção dos sentidos,
A razão comanda a vontade? Aspectos dissonantes entre Hannah Arendt e Kant 211
controla as imagens impressas na memória e fornece ao intelecto o material para a
compreensão, e que a vontade ou é sua própria causa, ou não é uma vontade.
Pela análise arendtiana, “Kant transformou algumas proposições presentes
em sua Crítica da razão prática em imperativos para lhes dar um caráter de obriga-
toriedade” (ARENDT, 2004, 134-135). Embora o conteúdo seja derivado da razão,
adverte Arendt, considera-se que a forma imperativa é necessária, uma vez que
a proposição racional se dirige à vontade. Arendt lembra que Kant, em sua Fun-
damentação da metafísica dos costumes, disse que a concepção de um princípio
objetivo, na medida em que coage uma vontade, é uma ordem (da razão), e que a
fórmula dessa ordem é chamada de imperativo. Sob esta perspectiva, a vontade já
não seria livre, mas estaria sob o ditame da razão.
Se para Kant, a vontade não passa de um órgão executivo para a razão, o seg-
mento da execução das faculdades humanas, isto estaria em flagrante contradição
com suas primeiras palavras da Fundamentação da metafísica dos costumes: “neste
mundo, e até também fora dele, nada é possível pensar que possa ser concebido
como bom sem limitação a não ser uma só coisa: uma boa vontade” (KANT, 2008a,
21). Arendt observa que não apenas em Kant, mas em toda a filosofia depois da
Antiguidade, existe a dificuldade de como persuadir a vontade a aceitar o ditame
da razão. Para ela, é evidente que Kant pensou na boa vontade como aquela que ao
escutar a pergunta “farás?”, responderá “sim, farei!” E conclui que para descrever
esta relação entre duas faculdades que claramente não são a mesma coisa, e, além
disso, que não se determinam uma a outra de modo automático, ele introduziu a
forma do imperativo categórico e sorrateiramente retomou o conceito de obedi-
ência. De acordo com as reflexões arendtianas, Kant sabia que a vontade poderia
dizer não à razão e introduziu uma obrigação. Entretanto, cumpre constatar que
o caso do oficial nazista Eichmann, que agiu de forma explicitamente irrefletida e
irresponsável, mostrou a Arendt que esta noção kantiana de dever pode ser brutal-
mente deturpada, posto que este oficial, ao ser interrogado pela polícia israelense,
tenha respondido que havia conduzido toda sua vida de acordo com os preceitos
morais de Kant, e que havia agido segundo uma definição kantiana de dever.
As análises que Allen Wood (2008) faz da filosofia kantiana interessam aos
intentos desta pesquisa, pois têm o sentido de esclarecer que a liberdade é um pro-
blema para Kant, que a considera essencial para a possibilidade da razão prática,
ou para a moralidade. Pois, em Kant, a validade da lei moral depende diretamente
do fato de o sujeito ter liberdade prática. De acordo com Wood, o problema está em
pensarmos que podemos ser livres no âmbito prático, pois isso nos levaria a uma
autocontradição teórica, já que para Kant, todas as nossas ações, como eventos
no mundo fenomênico, estão sob a lei da causalidade natural, ou seja, são deter-
minadas causalmente por eventos naturais precedentes no tempo; e em Kant não
há a possibilidade de sermos praticamente livres, a não ser que sejamos aptos a
começar uma série de eventos no mundo natural, independentemente de qualquer
causa natural que nos poderia influenciar. É exatamente neste ponto que reside
A razão comanda a vontade? Aspectos dissonantes entre Hannah Arendt e Kant 213
tifique “dizer mentiras consoladoras sobre nós mesmos com vistas a evitar o senti-
mento autoalienado” (Ibid. 125). Wood lembra ainda que no Cânone da razão pura,
Kant sustenta que a liberdade prática – a capacidade de não sermos determinados
de imediatos por impulsos sensíveis, mas de escolher como e se agir incentivados
por esses impulsos – pode ser provada empiricamente a medida que os seres huma-
nos mostram a si mesmos ter essa capacidade, diferentemente dos animais. Muito
embora, este aspecto empírico não elimine os fundamentos metafísicos para duvi-
dar da liberdade da vontade, como ele abordou em sua terceira antinomia. De acor-
do com Wood, se há problemas em reconciliar a liberdade com nosso conhecimento
dos seres humanos no âmbito empírico, sob princípios kantianos, esses problemas
também podem ser resolvidos empiricamente. Todavia, Wood admite que o próprio
Kant não se ocupou muito profundamente com estas questões, talvez, pelo fato de
ele ter pensado que a liberdade da vontade fosse apenas uma questão de metafísi-
ca transcendente. Esta defesa metafísica de Kant é considerada inconsistente por
Wood, pois parece que Kant a ligou à nossa habilidade de nos concebermos como
membros de uma ordem sobrenatural de coisas, e como se o fato de nos conside-
rarmos como partes da natureza fosse incompatível com a descoberta dos valores
morais em nós mesmos. Para Wood, “Kant nunca perdeu tanto o bom senso quanto
ao declarar que podemos encarar-nos desse modo somente do ponto de vista da
primeira pessoa, ou ao pensar que essa bizarra declaração poderia constituir uma
solução para o problema da liberdade da vontade” (WOOD, 2008, 126).
Com efeito, as análises de Wood possibilitam a compreensão dos motivos
pelos quais Arendt considera que a liberdade da vontade, em Kant, existe apenas
no pensamento. Porém, é necessário salientar que, obviamente, esta exposição não
esgota a temática proposta, e que é mister que se tenha presente que “o proble-
ma da liberdade constitui o núcleo central da filosofia de Immanuel Kant” (AZAIS,
2008, 193). Muito embora, as objeções que Arendt dirige a Kant sejam frutos de
uma intimidade com a sua obra que fora construída desde seu despertar filosófico,
pela leitura da Crítica da razão pura, até suas últimas reflexões presentes em sua A
vida do espírito, pois estar na companhia do “velho e bom Kant” era sempre um op-
ção ao alcance de sua escolha e de seu gosto. Porém, aqui, e apesar disso, é preciso
reconhecer que para que se tenha a real dimensão da filosofia kantiana da vontade
seria necessário considerar o conjunto dos escritos de Kant, já que em seu desen-
volvimento intelectual o Filósofo de Königsberg deparou-se desde muito cedo com
o problema da liberdade, questão complexa que não apenas orienta o curso de
suas reflexões, mas da filosofia em geral. Complexidade enfrentada também por
Hannah Arendt, que em sua busca pela compreensão do mundo, dos homens, e da
vida interior, não se intimidou diante da magnitude da filosofia kantiana, questio-
nando-a, e dando mostras que a independência e a autonomia que ela reivindica ao
querer, são características que podem ser conferidas à sua própria filosofia. Moti-
vo pelo qual aponta-se para a necessidade de se problematizar alguns aspectos da
interpretação que Arendt faz da filosofia kantiana, pois, para além de reconhecer
Referências
AGOSTINHO, Santo A cidade de Deus. Vol. 1 (Livro I a VIII). Tradução J. Dias Pereira. Lisboa:
Fundação Calouste Gulbenkian, 1991.
______. A cidade de Deus. Volume II, Livro IX a XV. Tradução J. Dias Pereira, 2. ed. Lisboa, Fun-
dação Calouste Gulbenkian, 2000.
ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém – um relato sobre a banalidade do mal. Tradução
José Rubens Siqueira. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
______. Responsabilidade e julgamento. Tradução de Rosaura Eichenberg. São Paulo: Compa-
nhia das Letras, 2004.
______. A vida do espírito. Tradução de Helena Martins (2 vol). Rio de Janeiro: Relume Duma-
rá, 2002.
AZAIS, Suzanne Islas. El descubrimiento del problema de la libertad en el proyecto filosó-
fico de Kant. Studia Kantiana – Revista da Sociedade Kant Brasileira. N. 6/7, p. 193 – 205,
março de 2008.
BERGSON, Henri. Ensaio sobre os dados imediatos da consciência. Tradução João da Silva
Gama. Lisboa: Edições 70, 1988. (Textos Filosóficos)
KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. 6. ed. Tradução de Manuela Pinto dos Santos e Ale-
xandre Fradique Morujão. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2008.
______. Fundamentação da metafísica dos costumes. Tradução de Paulo Quintela. Lisboa: Edi-
ções 70, 2008a.
KRISTEVA, Júlia. O gênio feminino: a vida, a loucura, as palavras – Tomo I Hannah Arendt.
Tradução de Eduardo Francisco Alves. Rio de Janeiro: Rocco, 2002.
PERIN, Adriano. MORAES, Solange. A teoria kantiana da causalidade por liberdade na Crí-
tica da razão pura. Disciplinarum Scientia – Série Ciências Sociais e Humanas, Santa Maria,
v.2, n.1, p. 15-35, 2001.
WOOD. Allen W. Kant. Tradução Delamar José Volpato Dutra. Porto Alegre: Artmed, 2008.
A razão comanda a vontade? Aspectos dissonantes entre Hannah Arendt e Kant 215
Esclarecimento, Revolta
da natureza e Liberdade
Resumo
O artigo desenvolve a crítica de Adorno e Horkheimer a respeito da dupla
implicação do processo que esses autores chamam de “esclarecimento”, dan-
do foco a relação entre a racionalidade instrumental e dimensão estética do
homem, buscando analisar saídas presumíveis para os problemas que esta
racionalidade ocasiona para a liberdade – entre estas, as tentativas de respos-
ta de Marques de Sade e do filósofo alemão Friedrich Nietzsche, entendidas
como fundamentação das ações no corpóreo, além de uma imaginável rejei-
ção de qualquer tipo de racionalidade, que Horkheimer chamaria de revolta
da natureza. Assim, o objetivo central é demonstrar que a idéia da liberação
de todos os impulsos naturais como condição para a liberdade é fruto da pró-
pria dominação da natureza e está fadada ao erro por esperar a liberdade no
seu contrário, além de ser muito menos desejável que o estado atual.
Palavras-chave: Liberdade, esclarecimento, impulsos corpóreos, revolta da
natureza.
O
artigo pretende desenvolver a conhecida crítica de Adorno e Horkheimer
a respeito da dupla implicação do processo que esses autores chamam de
“esclarecimento”, demonstrando que a denominada racionalidade instru-
mental, por sua relação de dominação com tudo aquilo que no sujeito se conside-
ra “natureza”, é incompatível com uma liberdade humana total, isto é, com uma
liberdade não meramente espiritual ou formal, mas também corpórea. Para isso,
seguimos o caminho tomado pelos filósofos na Dialética do Esclarecimento, bus-
cando explicitar seus argumentos, e analisamos as tentativas de resposta do ro-
mancista francês Marques de Sade e do filósofo alemão Friedrich Nietzsche, tais
Ou seja, o que se apresenta em tal tese é um estudo que pretende ir até a base
da constituição do Estado, da sociedade e até da espécie humana, ao invés de fazer
somente uma espécie de diagnostico social, de um estudo da justificativa ou não do
Estado, da vida em sociedade e da civilização como um todo. Adorno e Horkheimer
deslocam a questão para algo que pensam ser anterior ao formato que tal socie-
dade assume: o esclarecimento, ou o surgimento e desenvolvimento da razão. Ou
como preferem, da racionalidade. Assim, os filósofos apontarão a relação entre o
esclarecimento e o uso da racionalidade com a sobrevivência da humanidade pe-
rante as forças naturais, além da afinidade entre as bases racionais que constituem
a sociedade e a forma que esta adquire.
Embora a tese que se apresente aí, possa nos parecer razoavelmente óbvia,
esta é a novidade que Adorno e Horkheimer pretendem introduzir ao assunto, e
que os permite o desenvolvimento posterior de estudos originais a respeito do
problema da liberdade na sociedade atual e a idéia de uma teoria crítica.
Enquanto que o termo “esclarecimento” tem seu significado mais usual à seme-
lhança do uso realizado por Kant no seu famoso O que é Esclarecimento, como
“saída do homem de sua menoridade intelectual, da qual ele próprio seria cul-
pado” (KANT, 2005, p. 63) e se refere a uma autonomia da razão em relação a
elementos heterônomos se referindo ainda a um curto espaço de tempo, Ador-
no e Horkheimer ampliam o alcance do termo que ressurge em sua obra como
uma resposta da humanidade às terríveis intempéries da natureza que tanto a
afligiam. Trata-se aqui de sair de um estado de escravidão em relação à nature-
za para investir-se da “posição de senhores” (ADORNO, 1985, p. 17).
2
Como diz Gabriel Cohn, na apresentação na Apresentação à Edição Brasileira da Introdução à so-
ciologia (ADORNO, 2008, p. 25), o termo “vida digna” cumpre um papel fundamental no pensamento
de Adorno e Horkheimer, uma vez que estes viam atuando no cerne do pensamento moderno “o
princípio de preservação a qualquer preço (...) Daí a exigência de um princípio adicional que permita
converter a mera vida em vida digna”. Nesse contexto, a liberdade representa o elemento diferencial
de uma sociedade que permita uma vida humana digna e, portanto, é uma meta a ser perseguida pela
teoria e pela práxis política.
3
Para análise dos argumentos em defesa da não rejeição da razão, conforme encontrados na Dialética
do Esclarecimento de Adorno e Horkheimer (1985) e na Dialética Negativa de Adorno (2009), Cf. o
primeiro capítulo de minha dissertação de mestrado.
Exigir da força que não se expresse como força, que não seja um querer-domi-
nar, um querer-vencer, um querer-subjugar, uma sede de inimigos, resistên-
cias e triunfos, é tão absurdo quanto exigir da fraqueza que se expresse como
força (NIETZSCHE, 1998, 36).
Por isto, ao invés do indivíduo “moralmente bom” – aquele que aceita a moral
imposta externa –, Nietzsche encontra a figura da liberdade nos poderosos, na sua
“sua crueldade exercida ‘para fora, onde começa a terra alheia’, quer dizer, perante
tudo o que não pertence a eles próprios” (ADORNO, 1985, p. 83). Ou seja, trata-se
da liberação da violência, da vontade e das barreiras socialmente postas. Isto fica
mais claro nas palavras de Nietzsche, a respeito dos “poderosos”:
6
Esta citação da Genealogia da Moral de Nietzsche, bem como a anterior, é feita por Adorno e Horkhei-
mer na Dialética do Esclarecimento, respectivamente nas páginas 84 e 83, tal como as reproduzimos
aqui. Entretanto optamos por tomar o texto diretamente da tradução de Paulo César de Souza.
7
Um espírito de pensamento a que Adorno se manteve fiel, dando continuidade e radicalizando o
posicionamento de Nietzsche (ALVES JR., 2005, p. 225).
8
Os que de fato são, e aqueles que é injusto que sejam considerados assim.
Referências
ADORNO, Theodor W (2009). Dialética Negativa. Trad. Marco Antonio Casanova. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Ed.
________ (2008). Introdução à sociologia. Tradução Wolfgang Leo Maar. São Paulo: Editora
UNESP.
________ (1995). Palavras e Sinais: modelos críticos 2. Trad. de Maria Helena Ruschel. Petró-
polis (RJ): Vozes.
ADORNO, Theodor W, e HORKHEIMER, Max (1985). Dialética do esclarecimento: fragmen-
tos filosóficos. Trad. de Guido de Almeida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.
ALVES JUNIOR, Douglas Garcia (2005). Dialética da Vertigem: Adorno e a filosofia moral. São
Paulo: Escuta; Belo Horizonte: Fumec/FCH.
HORKHEIMER, Max (2002). Eclipse da Razão. Tradução Sebastião Uchoa Leite. São Paulo:
Centauro.
KANT, Immanuel (2005). Resposta à Pergunta: O que é esclarecimento? In: Textos Seletos.
Tradução Floriano de Sousa Fernandes. Editora Vozes: Petrópolis, RJ.
MARCATTO, E. M. Arte e Liberdade: reflexões acerca da concepção de resistência a partir de
Adorno e Horkheimer / Enrique Marcatto Martin – s.d. (Dissertação/UFOP).
NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm (1998). Genealogia da Moral: uma polêmica. Tradução, no-
tas e posfácio de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras.
SCHWEPPENHÃUSER, Gerhard (2003). A filosofia moral negativa de Theodor W. Adorno.
Educação & Sociedade: Revista de Ciência da Educação. Campinas: Vol. 24, n. 83. (319-415)
Disponível em http://www.cedes.unicamp.br
SEARLE, John (1999). Racionalidade e Realismo: o que está em jogo? In: Disputatio, Interna-
cional Journal of Philosophy. Trad: Desidério Murcho. Vol. 7. Disponível em:
http://www.dpi.inpe.br/cursos/ser212/artigos/Disputatio%20%20Racionalidade%20
e%20Realismo.htm
Resumo
Em O direito da liberdade, Honneth afirma que é possível ver a forma de reco-
nhecimento recíproco horizontal no esquema lógico hegeliano da Filosofia do
direito e o adota para desenvolver a sua tese de que é somente através das ins-
tituições livres que os indivíduos conseguem alcançar a verdadeira liberdade
que é aquela do tipo social. Se em Sofrimento de indeterminação Honneth
ainda lamentava o abandono daquela primeira intuição hegeliana de um in-
tersubjetivismo forte de base aristotélica, nesta última obra Honneth parece
estar convencido de que não há nenhuma perda no conteúdo da doutrina filo-
sófica de Hegel mesmo se as relações recíprocas de reconhecimento somente
podem ser garantidas no contexto da sua doutrina da liberdade através de
instituições ancoradas no decorrer de um processo histórico.
Palavras chave: reconhecimento, Honneth, liberdade social.
A título de introdução
O
novo livro de Honneth, que persegue sua investigação a cerca do papel do
reconhecimento para a emancipação de uma sociedade a qual ele havia
iniciado em Luta por reconhecimento (1992), não pode deixar de ser consi-
derado, nas passagens em que a reatualização de Hegel se faz presente, como uma
evolução da sua interpretação a respeito da teoria hegeliana do reconhecimento.
No presente trabalho apresentarei as ideias principais a cerca da última obra de
Honneth, O direito da liberdade (2011), na parte em que o autor trabalha mais uma
vez o conceito de reconhecimento em Hegel. O intuito é mostrar que uma crítica
que vinha sendo feita - primeiramente em Luta por reconhecimento, e mais tarde
Nesta nova obra Honneth está convencido de que Hegel com os seus mo-
delos distintos de reconhecimento não abandona aquela sua primeira intuição da
juventude segundo a qual o amor do tipo romântico remete para uma instituição
que é pensada como pressuposto social para que a relação de reconhecimento cor-
respondente possa surgir. Mas, a família monogâmica moderna, como berço deste
amor, é apenas a primeira instituição na vida dos indivíduos onde eles podem “ex-
perienciar” o reconhecimento recíproco. Com o esquema lógico desenvolvido na
Filosofia do direito Hegel completa as esferas do reconhecimento incluindo a so-
ciedade civil e o Estado. Para Honneth, é a estrutura da própria sociedade moderna
Com certeza a análise que acabamos de seguir neste último texto de Honneth
encontra as relações de reconhecimento recíproco imbricadas nesses três modelos
da eticidade. Honneth sem dúvida considera nessa sua última leitura que a Filosofia
do direito não somente abarca aquele tipo de reconhecimento vertical, a saber, en-
tre os indivíduos e as instituições, mas também parece aceitar um reconhecimento
horizontal, isto é, entre os próprios indivíduos, na medida em que traz à tona essa
afirmação de que as finalidades de cada indivíduo se complementam nas respectivas
finalidades do outro. As instituições de reconhecimento são apenas o médium no
interior da qual é possível esta relação recíproca de reconhecimento horizontal.
Referências
HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Filosofia do direito. Trad. Paulo MENESES, Agemir BAVA-
RESCO, Alfredo MORAES e outros. São Leopoldo, RS: UNISINOS, 2010.
__________ . Principes de la philosophie du droit. Trad. Jean-Louis VIEILLARD-BARON. Paris:
Flammarion, 1999.
_________. O Sistema da Vida Ética. Trad. Artur MORÃO. Lisboa: Edições 70, 1991.
_________. Système de la vie éthique. Trad. Jacques TAMINIAUX. Paris: Payot, 1992.
_________. La Philosophie de l’esprit 1805. Trad. Guy PLANTY-BONJOUR. Paris: PUF, 2002.
HONNETH, Axel. Luta por Reconhecimento. Trad. Luiz REPA. São Paulo: Editora 34, 2003.
___________. Das Recht der Freiheit. Berlim: Suhrkamp, 2011.
___________. Sofrimento de Indeterminação. Uma Reatualização da Filosofia do Direito de He-
gel. Trad. Rúrion Soares Melo. São Paulo: Esfera pública, 2007.
THINLAND, Olivier. La reconnaissance: par les moeurs ou par les institutions? In www.lavie-
desidees.fr/IMG/pdf/20081114_honneth.pdf. Acessado em 31/08/2009.
Resumo
esse trabalho tem o objetivo central de percorrer o último capítulo da obra Uti-
litarianism, de John Stuart Mill, e apresentar os elementos prescritivos e des-
critivos que o filósofo inglês administrou para a elaboração desta parte da sua
filosofia ética e política. Iniciaremos nosso texto apresentando os motivos que
levaram o autor a estabelecer a utilidade no campo dos fatos e a justiça no am-
biente dos valores. Apresentaremos, ao longo da exposição, o mapeamento da-
quilo que sugerimos ser o caminho percorrido para que o autor não incorresse
no problema da dicotomia fato-valor. Ao final, tentaremos deixar claro porque a
filosofia prescritiva/descritiva proposta pelo utilitarista não é arbitrária.
Palavras-chave: utilitarismo, justiça, moralidade, política, fato, valor
Considerações Iniciais
N
o projeto teórico da justiça de John Stuart Mill, a imparcialidade é tanto
uma descrição de um comportamento jurídico indispensável para o
funcionamento da justiça, quanto uma prescrição de “como” o jurista deve
se comportar no exercício da sua função. Boa parte da teoria de Mill é tanto descri-
tiva quanto prescritiva. Para as questões envolvendo o seu conceito de justiça, po-
demos notar a normatividade como evidente contraponto à deontologia alemã. Isso
fica evidente quando observamos que é justamente nesse ponto que Mill rebaterá o
imperativo categórico kantiano (CW X:249)1. No entanto, a simples contraposição ao
1
Neste trabalho, faremos de próprio punho as traduções das passagens estudadas de Mill, assim
como traduziremos as passagens pertinentes de livros e artigos dos comentadores relevantes para
nosso tema. Usaremos como parâmetro, para os principais textos de Mill, as traduções brasileiras
e lusitanas, referenciadas ao final do trabalho. Nosso padrão de citação obedecerá os 33 volumes
do Collected Works, editados por John Robson (Toronto: University of Toronto Press, 1963-91), por
exemplo: (CW I:13), para Collected Works, Volume 1, página 13.
Quando Mill busca estabelecer a conexão entre justiça e utilidade, ele procura
resgatar a ligação entre fatos e valores. O problema central da dicotomia tem origem
em uma ontologia realista que carrega consigo uma epistemologia fundamentalis-
ta bastante forte para a ideia de justiça. Em Mill, se a justiça e a utilidade podem
ser conectadas, basicamente elas são elementos diferentes dentro do mesmo corpo
teórico. Justiça e utilidade respeitam os mesmos critérios teóricos, mas são ideias
diferentes dentro do utilitarismo preconizado, como se representassem diferentes
registros dentro do mesmo aparato cognitivo. A utilidade é um fato descritivo que
depende da mente humana; e, neste sentido, Mill se opõem a tradição de pensadores
que tratam a justiça como algo de natureza absoluta: o jusnaturalismo prescritivo
não encontra espaço em uma teoria em que a justiça, assim como a conveniência, de-
pende da mente do sujeito, e sem ela não existiria. Distinções ontológicas e realistas,
entre justiça e utilidade, são diferentes daquela que Mill faz no sentido que o primei-
ro parágrafo do último capítulo tenta elucidar, a saber: justiça e utilidade diferem em
grau, nunca em gênero. São elementos cognitivos dissociados, não na sua ontologia,
mas em sua capacidade de aferirem direitos e deveres aos envolvidos. Colocar a jus-
tiça meramente no âmbito das virtudes ou, em contraposição, das leis é traçar uma
separação diametral e irreconciliável entre ela e a utilidade. Mill não está disposto a
fazer uma concessão deste tipo.
2
“In all ages of speculation, one of the strongest obstacles to the reception of the doctrine that Utility
or Happiness is the criterion of right and wrong, has been drawn from the idea of Justice. The power-
ful sentiment, and apparently clear perception, which that word recals with a rapidity and certainty
resembling an instinct, have seemed to the majority of thinkers to point to an inherent quality in
things; to show that the Just must have an existence in Nature as something absolute – generically
distinct from every variety of the Expedient, and, in idea, opposed to it, though (as is commonly ac-
knowledged) never, in the long run, disjoined from it in fact” (CW X:240).
por princípio, esse interesse de cada um consiste em que a sociedade lhe garan-
ta segurança. Formulando de forma diferente, podemos dizer: justiça é a ten-
tativa de evitar que aconteça algum dano ao indivíduo. Somente a expectativa
legítima de que os outros e a sociedade se esforçarão para atingir essa meta
cultiva o sentimento de comunhão necessário à preservação da coletividade
dos indivíduos que vivem em sociedade (2006, p.220).
poderíamos supor com isso que, sobre questões de justiça, não haveria con-
trovérsia; que, se fizéssemos disso nossa regra, essa aplicação a qualquer caso
Para Mill, essa é uma limitação natural, ou seja, na mente de um mesmo indi-
víduo, a justiça não se traduz por uma regra, princípio ou máxima, mas por muitas
regras. Evidentemente, isso influencia muito qualquer teoria pretensamente pres-
critiva.
Diferente da utilidade geral, em si, a justiça não possui um caráter objetivo,
enquanto fato social. Todo o esforço de Mill busca mostrar que a justiça não precisa
de uma resposta objetiva especial para ter sua validade confirmada. Podemos colher
no próprio autor um excelente exemplo de um elemento descritivo (fato social) que
se tornou prescritivo (norma jurídica), ao longo da história do próprio liberalismo:
a questão da justiça distributiva, uma evolução natural dos nossos sentimentos de
justiça que se materializaram em ações sociais específicas e foram positivados ao
longo dos anos. Mais uma vez, Mill tenta resolver o problema a partir de um caso
presente na modernidade: em uma sociedade liberal, com características de coope-
ração e produção industrial, é ou não justo que o talento ou a habilidade roguem um
direito a uma remuneração mais elevada a um determinado indivíduo em detrimen-
to de outros que desempenham a mesma atividade? (CW X:253s). Os que respondem
afirmativamente essa pergunta a respeito do mérito, para Mill, são detentores de
argumentos tão ou mais caros do que aqueles que se negam a aceitar essa condição:
Justiça, nesse caso, tem dois lados entre os quais é impossível levar harmonia
interna, e os dois que disputam escolheram lados opostos; aquilo que preocupa
um é apontar o que é justo ao indivíduo poder receber; ao outro, o que é justo
a comunidade poder dar4.
Esse é o dilema. Dilemas, pela definição que sugerimos aqui, não podem ter
soluções. Em filosofia, a característica de um dilema é ser insolúvel; diferente de um
problema que deve ter, ao menos, uma solução possível. Um caso como esse que é
sugerido por Mill só pode ter solução se transformado em um problema utilitarista
genuíno, ou seja: é informando as consequências sociais; as circunstâncias em que a
situação ocorre; e outros elementos do contexto nos quais podemos verificar a utili-
dade geral nos diferentes casos. Para estabelecer um critério de julgamento que ul-
trapasse essa rasa compreensão de justiça, Mill reclama a utilidade social. Só assim,
3
“One would suppose from this that on questions of justice there could be no controversy; that if we
take that for our rule, its application to any given case could leave us in as little doubt as a mathemati-
cal demonstration. So far is this from being the fact, that there is as much difference of opinion, and as
fierce discussion, about what is just, as about what is useful to society” (CW X:251).
4
“Justice has in this case two sides to it, which it is impossible to bring into harmony, and the two dis-
putants have chosen opposite sides; the one looks to what it is just that the individual should receive,
the other to what it is just that the community should give” (CW X:254).
Ter um direito é, então, eu penso, ter algo que a sociedade deve defender a pos-
se. Se o objetor me perguntará por que deve fazer isso, eu não posso dar a ele
outra razão que não a utilidade geral. Se essa expressão não parece exprimir
um sentimento suficiente da força da obrigação, nem explicar a energia desse
sentimento, é porque há, na composição do sentimento, não apenas racionali-
dade, mas também um elemento animal, e sede de retaliação; e essa sede deriva
sua intensidade, bem como sua justificação moral, do extraordinariamente im-
portante e impressionante tipo de utilidade ao qual diz respeito. O interesse en-
a ética de Mill mostra de um modo evidente algo que Hume já adiantou: é im-
possível fundamentar uma ética sem conhecer o que os homens desejam quan-
do possuem esse sentimento moral peculiar [...] o que implica que é configu-
rado pela imparcialidade nas apreciações, sem que nos deixemos cegar pelos
objetos mais próximos, subvalorizando os mais distantes, ou seja, o que os
seres humanos desejam quando possuem esses desejos chamados sociais por
Mill, que se inscrevem neste tipo de desejo que já é “poderoso desde o princípio
da natureza humana e afortunadamente um dos que tendem a fortalecer-se”
(1998, p.116).
A preferência dada a Mill pela atividade racional, como admite Irwin, pode aju-
dar a resolver esse problema no campo dos valores:
Mill está fazendo a questão quantitativa interagir com a valorativa. Isso aconte-
ce porque fatos e valores podem estar unidos. Podem. Não necessariamente devem.
Não é imperativo que fatos e valores estejam sempre conjugados para as questões de
desejos e prazeres. A decisão sobre a questão dos prazeres mais elevados, em Mill,
não é uma mera questão de sufrágio, com sugere Sandel comparando Hamlet e Os
Simpsons (2011, p.69ss). Inferir que o entretenimento prazeroso gerado, na maioria
das pessoas, ao ver um episódio do desenho animado americano é superior ao pra-
zer artístico de alguém suficientemente esclarecido que admira uma boa interpreta-
ção da peça de Shakespeare é falso. O argumento estético pode ser substituído, com
naturalidade, pelas questões envoltas a um programa progressista de esclarecimen-
to permanente do gênero humano que Mill tinha em mente.
quence. The rational preference for an activity explains why we prefer pleasure taken in that activity;
it is a higher pleasure, because it is taken in that preferable activity” (2009, p.402).
10
“Of two pleasures, if there be one to which all or almost all who have experience of both give a de-
cided preference, irrespective of any feeling of moral obligation to prefer it, that is the more desirable
pleasure. If one of the two is, by those who are competently acquainted with both, placed so far above
the other that they prefer it, even though knowing it to be attended with a greater amount of discon-
tent, and would not resign it for any quantity of the other pleasure which their nature is capable of,
we are justified in ascribing to the: preferred enjoyment a superiority in quality, so far outweighing
quantity as to render it, in comparison, of small account” (CW X:221).
Cumpridas essas condições, o ditado de Bentham “todo mundo conta por um,
ninguém por mais de um”, pode ser escrito debaixo do princípio da utilidade
com um comentário explicativo. Todos os homens têm igual direito de exigir a
felicidade, igual direito de exigir meios para alcançá-la; menos quando as ine-
vitáveis condições da vida humana e os interesses gerais que dizem respeito a
cada indivíduo incluem limites à máxima, limites que devem ser interpretados
com severidade11.
Considerações Finais
No campo dos desejos, tudo o que Mill fez foi contestar a máxima relativista
“gosto não se discute”. Para ele, essa seria uma afirmação frágil e bastante contro-
versa. Admitir o pluralismo, inerente ao liberalismo, como o autor fez com muito
entusiasmo, não significa ignorar outros elementos essenciais ao liberalismo, como
o caso já citado da educação. Desejos não são só discutíveis, mas podem ser aprimo-
rados e polidos no liberalismo de Mill. Nosso objetivo, a partir do próximo capítulo,
será compreender o princípio da liberdade. A importância que isso tem para o mo-
delo judicial proposto pelo autor é auto-evidente. Se Mill criou um manual jurídico
para prescrever e descrever o comportamento dos juristas do seu tempo, precisa-
mos compreender de qual tempo ele fala. Veremos que o liberalismo e os preceitos
da democracia não são legítimos em si mesmos, mas representam um nicho valioso
do mundo político em que vivemos. Em um mundo com outras características sociais
e econômicas, isto é, com uma descrição da realidade como não sendo liberal e de-
mocrática, por exemplo, a teoria da justiça precisaria ser revista. Em virtude disso,
teorias da justiça liberais consistentes têm alicerçado suas bases sobre uma descri-
ção de pluralidade e liberdade, necessárias para a manutenção do corpo teórico cen-
tral. O princípio da utilidade, por sua vez, conecta fatos e valores de qualquer ordem
histórica. Mesmo que os fatos e valores se alterassem bruscamente, o princípio da
utilidade se manteria inalterado. Mesmo assim, precisamos compreender a impor-
tância do liberalismo democrático para a construção da teoria da justiça de Mill.
Referências
Fontes Primárias
MILL, John Stuart. Utilitarianism / Three Essays on Religion et al. In Collected Works, v.10.
Toronto: Toronto University Press; ROBSON, John (Ed.), 1969.
___________. On Liberty. In Collected Works, v.18. Toronto University Press; ROBSON, John
(Ed.), 1977.
Fontes Secundárias
ARAUJO, Marcelo. Como Deliberar Sobre o Tipo de Pessoas que Queremos Ser. Argumentos.
Fortaleza: Universidade Federal do Ceará, a.3, n.3, jan., 2011, pp.23-34.
BENTHAM, Jeremy. Uma Introdução aos Princípios da Moral e da Legislação. Tradução: Luiz
João Baraúna. Coleção Pensadores, v.34. São Paulo: Abril Cultural, 1974.
BOUTON, Clark W. John Stuart Mill: on liberty and history. The Western Political Quarterly.
Salt Lake City: University of Utah, v.18, n.3, set., 1965, pp.569-578.
Brink, David O. Mill’s Deliberative Utilitarianism. Philosophy & Public Affairs. Princeton:
Princeton University Press (Wiley-Blackwell Publishing), v.21, n.1, inverno, 1992, pp.67-
103.
Brink, David O. Mill’s Moral and Political Philosophy. The Stanford Encyclopedia of Philoso-
phy (Fall 2008 Edition), Edward N. Zalta (ed.), URL = http://plato.stanford.edu/archives/
fall2008/entries/mill-moral-political/ acessado em 2.10.11.
CARVALHO, Maria Cecília Maringoni de. John Stuart Mill: para além do hedonismo. In PIZZI,
Jovino; GHIGGI, Gomercindo (org.). Pensamento Crítico III: utilitarismo e responsabilidade.
Pelotas: UFPel, 2011, pp.25-43.
Clark, Barry S.; Elliott, John E. John Stuart Mill’s Theory of Justice. Review of Social Econ-
omy. Londres: Taylor & Francis, v.59, n.4, dez., 2001, pp.467-490.
CLÉRO, Jean-Pierre. Jeremy Bentham (1748-1832) e o Princípio da Utilidade. John Stuart
Mill (1806-1873): um utilitarista antiutilitarista? In CAILLÉ, Alain; LAZZERI, Christian; SE-
NELLART, Michel (org.). História Argumentada da Filosofia: a felicidade e o útil. São Leop-
oldo: Unisinos, 2006, pp.476-495. pp.549-556.
CRISP, Roger. Mill on utilitarianism. Londres: Routledge, 1997.
DONNER, Wendy. Mill’s Utilitarianism. In SKORUPSKI, John (org.). The Cambridge Compan-
ion to Mill. Cambridge: Cambridge University Press, 1998, pp. 255-292.
GUISÁN, Esperanza. Esperando por Mill. Tradução: Rita de Cássia Lana. In PELUSO, Luiz
Alberto (org). Ética & Utilitarismo. Campinas: Alínea, 1998, pp111-130.
___________. Manifesto Hedonista. Barcelona: Anthropos, 1990.
IRWIN, Terence. Mill: earlier utilitarianism and its critics / Mill: a revised version of utili-
tarianism. The Development of Ethics. v.3. New York: Oxford University Press, 2009, pp.364-
425.
Introdução
N
ossa pesquisa tem como objetivo analisar, de maneira ensaística, a relação
entre filosofia, política e mundo. Para isso, procuraremos demonstrar, em
alguns de seus elementos constitutivos, o conceito de mundo de Hannah
Uma análise acerca da relação entre Filosofia, Política e Mundo em Hannah Arendt 251
Arendt, demonstrando como esses elementos levam a uma superação do hiato en-
tre filosofia e política. Além disso, procuraremos demonstrar que o conceito de
mundo perpassa as obras de Arendt, constituindo um pano de fundo sem o qual
as reflexões dessa autora não podem ser compreendidas em sua inteireza. Para
refletir acerca do conceito de mundo arendtiano abordaremos as análises fenome-
nológicas de Husserl e Heidegger, mestres com os quais Arendt manteve contato
ao longo de sua vida, demonstrando o quanto a formação filosófica dessa pensado-
ra irá acompanhá-la no transcorrer de suas reflexões políticas. Assim, objetiva-se,
com o desenvolvimento deste texto, demonstrar como Hannah Arendt explicita em
seu pensamento o conceito de mundo e como este se constitui como um passo para
uma nova relação entre filosofia e política. Para efetuar essa demonstração, vamos
privilegiar o estudo do diálogo de Arendt com textos fundamentais da fenomeno-
logia e identificar como esta pensadora traz os conceitos fenomenológicos para o
terreno da filosofia política. O intuito deste estudo é lançar luz sobre um campo
analítico que, em nosso entendimento, é pouco explorado e que, por isso, faz com
que a compreensão do pensamento de Arendt fique comprometida, uma vez que
nossa autora, em vários momentos, alerta que a política tem como tarefa principal
o cuidado com o mundo e não com o homem, pois visar o homem sem o mundo é
uma contradição, na medida em que somos seres no e do mundo.
Sócrates, fato este que fica comprovado quando “Arendt afirma que ‘o abismo entre filosofia e política
abriu-se historicamente com o julgamento e a condenação de Sócrates [...] Nossa tradição do pensa-
mento político teve início quando a morte de Sócrates fez Platão desencantar-se com a vida da polis e,
ao mesmo tempo, duvidar de certos princípios dos ensinamentos socráticos’” (DUARTE, 2000, p. 162).
Uma análise acerca da relação entre Filosofia, Política e Mundo em Hannah Arendt 253
existe no singular. Segundo Arendt: “É apenas na desolação que me falta a compa-
nhia dos seres humanos e apenas a consciência aguda de tal privação garante re-
almente a existência do homem no singular”. (ARENDT, 1997, p. 91). O sentimento
de desolação impede que no futuro haja qualquer tipo de construção ou de pre-
servação do já existente, pois faz com que os homens não se sintam pertencentes
a um mundo comum, habitado por eles e pelos seus pares. Com isso, desvanece o
sentimento de preservação e cuidado com o mundo. Nessa perspectiva, o diálogo
do dois-em-um preserva os homens desse sentimento de deserto, ao asseverar que
“a pluralidade é a lei da Terra”. O diálogo do eu consigo mesmo ratifica a certeza de
que a diversidade é a característica principal do mundo, pois não somos somente
um quando ativamos o pensar, mas somos dois-em-um, em interação com os de-
mais indivíduos ao antecipar diferentes pontos de vista, demonstrando haver uma
relação entre filosofia e política.
Assim, na esteira arendtiana, vislumbrar o mundo pela ótica da pluralidade
significa dotar de um estatuto de dignidade próprio o espaço de encontro e de
realização da diferenciação humana, pois demonstra que o mundo não deve ser
compreendido como o lar de um único povo, mas sim como a morada de uma mul-
tiplicidade de etnias e culturas, pois, segundo Arendt, “quanto mais povos, mais
mundos”. (ARENDT apud COURTINE-DENAMY, 2004, p. 114). Sendo assim, esse
espaço da diversidade deve ser recuperado e preservado como locus da vida dos
homens, para que o ente que nele habita possa continuar a ser descrito usando-
-se o substantivo “homem” no plural. Esses “plurais” vivem o intervalo de tempo
entre sua epifania e seu desaparecimento em um lar que os precederam e que irá
continuar a existir após suas partidas. Nessa perspectiva, a mais importante tarefa
do mundo é oferecer aos mortais um abrigo mais permanente e estável que eles
mesmos. Assim, a durabilidade do mundo permite que os homens possuam uma
identidade, algo de permanente em meio às constantes mudanças da vida, um abri-
go diante das intempéries de suas existências, ou seja, uma morada a partir da qual
possam reconhecer-se como humanos, pois o mundo é a marca indelével de que
somos seres que constroem história e cultura.
Como acima apontamos, dentro do quadro teórico que procuramos construir
neste ensaio, é imprescindível apontar para a importância de haver um diálogo
entre as concepções filosóficas de Arendt com os fundamentos fenomenológicos a
partir dos quais nossa autora construiu seu quadro teórico acerca do conceito de
mundo. Estes fundamentos se encontram, essencialmente, nas obras de Husserl4 e
4
O “retorno às coisas mesmas”, preconizado por Edmund Husserl, influenciará diretamente as refle-
xões arendtianas, servindo de fio condutor para o desmantelamento da metafísica, pois essa reflexão
husserliana pôde fazer com que nossa autora percebesse que o importante e o significativo não es-
tavam escondidos nos recônditos do ser, mas na pura presença de um objeto em um mundo de apa-
rências. Isso se deve ao fato de que o “retorno às coisas mesmas” significa um reaprendizado do olhar
para o mundo, que vai além do olhar científico, procurando orientar a visão primordial do mundo, a
qual é dada na experiência perceptiva.
Uma análise acerca da relação entre Filosofia, Política e Mundo em Hannah Arendt 255
a própria vida”. (ARENDT, 2010. p. 08). Com esta frase, percebe-se a existência de
certa relação recíproca de condicionamento. De um lado, a condição da obra é a
mundanidade, e de outro lado, é pela atividade da obra do homo faber que o mundo
se torna possível. “O que quer que toque a vida humana ou mantenha uma dura-
doura relação com ela, assume imediatamente o caráter de condição da existência
humana”8. (ARENDT, 2010, p. 11). Nesse sentido, segundo Zuben:
9 “[...] dans le christianisme, l’homme faisait consciemment em sorte d’être presque un apatride sur
la terre, c’est-à-dire la perte de la patrie immortelle des mortels, s’est pourtant accomplie” (ARENDT,
2007, p. 165).
Uma análise acerca da relação entre Filosofia, Política e Mundo em Hannah Arendt 257
Devemos ressaltar que o fundamento deste ensaio teve como base a asserti-
va arendtiana, contida em sua obra A dignidade da política na qual a autora diz que:
Considerações Finais
Diante do que procuramos demonstrar nesse ensaio, ou seja, de que o con-
ceito de mundo arendtiano possui profundas influências do pensamento fenome-
nológico de Husserl e Heidegger, nossa hipótese apontou para uma reconciliação
entre filosofia e política, a partir do conceito de mundo de Arendt, e para uma pos-
tura de conservação e preservação do lar do homem sobre a Terra, o qual leva à
epifania do sentimento de amor mundi13 que, segundo nossa autora, está ausente
13
Segundo Young-Bruehl, na tese de doutorado de Arendt há uma mudança no que diz respeito à
concepção do amor como appetits para o amor como um sentimento fundamentado na memória que,
ao enraizar-se no presente, demonstra que os homens estão com os outros constantemente. Assim,
se em um primeiro momento “A noção de amor como desejo se afunda quando a ‘vida feliz’ desejada
é projetada para o futuro absoluto e o eu presente é visto como um simples meio de atingi-lo, o obstá-
culo a ser superado”, a mudança torna-se evidente quando nos deparamos com a citação que Arendt
faz de uma passagem de Píndaro: “Torna-te o que és – isto é, reconhece com gratidão o que o fato de
ter nascido te proporciona” (YOUNG-BRUEHL, 1997, p. 431).
Uma análise acerca da relação entre Filosofia, Política e Mundo em Hannah Arendt 259
dos corações humanos, fundamentalmente na Modernidade. Essa postura consti-
tui uma contribuição para o pensamento filosófico-político, pois, segundo Odílio
Alves, “a novidade do pensamento de Arendt [...] está no apelo ético embutido na
ideia de recuperação, na refundação do mundo comum, sem o qual todas as posi-
ções alcançadas pelo homem podem se reverter contra ele mesmo”. (In: CORREIA,
2006, p. 80).
Referências
ARENDT, Hannah. A Condição Humana. Trad. Roberto Raposo. Revisão e Apresentação
Adriano Correia. 11ª Ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010.
________. A Dignidade da Política. Trad. Antônio Abranches e Helena Martins. Rio de Janeiro:
Relume Dumará, 2002.
________. A vida do espírito: o Pensar, o Querer e o Julgar. Trad. Antônio Abranches e Helena
Martins. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2002b.
________. Entre o Passado e o Futuro. Trad. Barbosa. São Paulo: Perspectiva, 1997.
________. Reflextions on Literature and Culture. California: Stanford Press, 2007.
CANOVAN, Margareth. Hannah Arendt: A Reinterpretation of her Political Thought. Cambrid-
ge: University Press, 1992.
CORREIA, Adriano (org). Hannah Arendt e A condição humana. Salvador: Quarteto, 2006.
COURTINE-DENAMY, Sylvie. O cuidado com o mundo: Diálogo entre Hannah Arendt e Alguns
de seus contemporâneos. Trad. Maria Juliana Teixeira. Belo Horizonte: UFMG, 2004.
DUARTE, André. O Pensamento à Sombra da Ruptura: Política e Filosofia em Hannah Aren-
dt. São Paulo: Paz e Terra, 2000.
DUARTE, LOPREATO & BREPOHL Marion (Org). A banalização da violência: a atualidade do
pensamento de Hannah Arendt. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2004.
HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. 2ª ed. Petrópolis: Vozes, 1988.
ZUBEN, Newton Aquiles von. O «Homo Faber» e a Mundanidade no Pensamento Político
de Hannah Arendt. Filosofia, Educação e Sociedade. João Francisco Regis de Morais (org.).
Editora Papirus: Campinas, 2010.
YOUNG-BRUEHL, Elisabeth. Hannah Arendt: Por Amor ao Mundo. Trad. Antônio Trânsito.
Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1997.
Resumo
Nesta breve comunicação pretendo considerar alguns aspectos da teoria da
justiça de Amartya Sen tal como proposta em sua obra de 2009, A ideia de jus-
tiça, na qual, além de sumariar o seu percurso intelectual (tratando de alguns
temas recorrentes, como a teoria da escolha social e a abordagem das capa-
cidades), amplia a abrangência de sua crítica a Rawls. Gostaria de enfocar
particularmente esta característica do pensamento recente de Sen, tentando
situá-la no âmbito da sua abordagem comparativa da justiça.
Palavras-chave: justiça; Amartya Sen; John Rawls; abordagem comparativa.
1.
N
esta breve comunicação pretendo considerar alguns aspectos da teoria da
justiça de Amartya Sen tal como proposta em sua obra de 2009, A ideia
de justiça, na qual, além de sumariar o seu percurso intelectual (tratando
de alguns temas recorrentes, como a teoria da escolha social e a abordagem das
capacidades), amplia a abrangência de sua crítica a Rawls. Gostaria de enfocar par-
ticularmente esta característica do pensamento recente de Sen, tentando situá-la
no âmbito da sua abordagem comparativa da justiça.
2.
Pressagia-se o caráter provocativo da obra de Sen desde as primeiras linhas:
3.
Sen enfatiza particularmente três diferenças entre o tipo de teoria da justiça
ao qual a sua se filia e aquele ao qual se filiam as demais teorias da justiça ainda
predominantes na atualidade (Cf. Sen, 2010 [2009], pp. ix-xi).
A primeira diz respeito à aptidão a servir como base do raciocínio prático.
Teorias da justiça que apenas pretendam caracterizar sociedades perfeitamente
justas são incapazes de servir a este propósito. Somente uma teoria da justiça que
1
Sen cita Isaiah Berlin e Bernard Williams como exemplos de pensadores que exploraram extensa
e poderosamente a importância da pluralidade avaliativa. E cita Michael Walzer, Charles Taylor e
Michael Sandel como exemplos de pensadores que discutiram variações de valores entre povos em
diferentes comunidades.
4.
Sen discerne duas linhas básicas e divergentes de raciocínio acerca da justiça
surgidas no contexto do Iluminismo europeu, às quais denomina, respectivamente,
institucionalismo transcendental e abordagem comparativa focada em realizações.
O institucionalismo transcendental seria a abordagem pioneiramente adota-
da por Hobbes, e depois por filósofos como Rousseau, e assumiria basicamente a
tarefa de identificar arranjos institucionais justos para a sociedade. Tal abordagem
teria duas características básicas. A primeira consistiria justamente no enfoque
na identificação da justiça perfeita, e não em comparações relativas de justiça e
injustiça; enquanto a segunda concerniria ao fato de que, na busca da justiça per-
feita, o institucionalismo transcendental se concentraria, principalmente, em obter
a correção das instituições, não estando diretamente focado nas sociedades reais
que acabariam por surgir.
Segundo Sen, ambas as características referem-se ao modo “contratualista”
de pensar, que Hobbes teria inaugurado, e Locke, Rousseau e Kant teriam desenvol-
vido. Um “contrato social” hipotético, presumidamente escolhido, está claramente
preocupado com uma alternativa ideal para o caos que, de outro modo, poderia
caracterizar uma sociedade; e os principais contratos discutidos pelos autores li-
davam principalmente com a escolha de instituições. O resultado geral, segundo
Sen, teria sido a concepção de teorias da justiça centradas na identificação trans-
cendental de instituições ideais.
Em franco contraste com o institucionalismo transcendental, Sen propõe
que outros teóricos do Iluminismo adotaram abordagens comparativas, preocu-
padas com realizações sociais (resultante de instituições e comportamentos reais,
5.
Creio que haja elementos intrínsecos, comuns a todos os conceitos hodier-
nos de justiça distributiva, que podem ser coligidos nestas poucas palavras: cada
ser humano possui uma concepção particular do bem que merece (ou, dito de ou-
tra maneira, é digna de) ser respeitada: eis porque o Estado lhes deve a salvaguarda
de certos direitos fundamentais (racionalmente justificáveis mediante argumentos
exclusivamente seculares) que lhes garantam a possibilidade de ao menos tentar
obter a realização desse bem (Cf. Fleischacker, 2006, p. 12).
Sen não se preocupa em defender essa ideia de justiça das objeções de quem
por ventura não a endosse. Muito embora ainda haja quem não considere a neces-
sidade uma possível justificativa para uma reivindicação de propriedade, ou a dis-
tribuição de recursos escassos uma questão de justiça, ou ainda que nem todos os
seres humanos sejam igualmente dignos de consideração independentemente de
possuírem algum mérito, mas pelo simples fato (considerado em si mesmo uma
dignidade) de serem humanos, não é contra estes que Sen argumenta. E ele talvez
não o faça simplesmente porque uma argumentação em defesa dessa ideia seria re-
dundante: já houve quem o demonstrasse de modo bastante convincente, e dentre
os que o fizeram, não houve quem o tenha feito mais minuciosamente do que Rawls.
Sen não parece, portanto, empenhado em propor uma teoria da justiça que
seja propriamente nova, mas em analisar quais aspectos das teorias existentes têm
impedido, ou pelo menos não têm favorecido a efetiva obtenção da justiça que elas
mesmas preconizam. Que todas as pessoas tenham, independentemente de mérito
ou status, direito a uma vida livre de carências que as impeçam de realizar as suas
potencialidades; e que, portanto, as suas necessidades básicas devam ser satisfei-
tas; e que não sejam simplesmente negativas (isto é, não se limitem à prevenção
de danos) a liberdade e a justiça que lhes são devidas pelo Estado, mas positivas
(ou seja, compita ao poder público conferir o quanto baste para a sua efetiva rea-
6.
Somos facilmente deslumbrados pelos espantosos e iniludíveis avanços tec-
nológicos recentemente registrados nos anais da humanidade. Sem dúvida, quem
deles pode usufruir vive em uma opulência maior do que a dos mais abastados
nobres de outrora. Nunca houve geração mais privilegiada do que a nossa. E é tão
grande o nosso encanto com o progresso, que naturalmente enchemo-nos de oti-
mismo e distraímo-nos das novas e hediondas agruras que o acompanham. É bem
verdade que, dentre as mais admiráveis inovações tecnológicas, destacam-se aque-
las nos âmbito da medicina e da agricultura: procedimentos profiláticos e terapêu-
ticos têm permitido um prolongamento cada vez maior de uma vida saudável, e a
mecanização da agricultura teve como efeito um aumento exponencial da nossa
capacidade de produzir alimentos. Não obstante o fato de sermos capazes de viver
mais e melhor, e de produzir comida suficiente para uma quantidade maior do que
as atuais sete bilhões de pessoas, mais de um bilhão delas passa fome ou encontra-
-se cronicamente subnutridas, outras tantas vivem em estado de extrema pobreza,
e a grande maioria sequer acalanta a esperança de um dia usufruir das benesses do
nosso admirável mundo novo.
A globalização tornou o mundo mais rico, cabe agora à justiça torná-lo menos
iníquo. Para tanto, segundo Sen, é preciso que se abandonem todas as formas de
contratualismo, nomeadamente o rawlsiano, que circunscreveria aos limites de uma
nação organizada os arranjos necessários à busca da justiça, sem necessariamente
demonstrar alguma sensibilidade quanto aos efeitos causados sobre os indivíduos
de outros povos e nações, todos igualmente dignos de consideração e respeito.
Há que se questionar a possibilidade de uma teoria política ou do direito
conceber a estrutura básica de uma sociedade prescindindo de alguma concepção
mínima de contrato social. A teoria da justiça de Sen, eminentemente marcada por
um dinamismo característico do pensamento econômico, com seu método com-
parativo, focado nas realizações efetivamente viáveis nas sociedades tais como se
apresentam no tempo em que são consideradas, provavelmente carece de elemen-
tos que possibilitem a concepção de uma estrutura institucional mínima para um
Estado em fase de constituição. Parece-me que a teoria rawlsiana é eminentemente
uma teoria do direito constitucional, e como tal deve ser interpretada. Os limites
desta breve comunicação não me permitem o desenvolvimento deste tema, mas
cumpre dizer que a teoria da justiça de Sen, a despeito do seu louvável pragma-
tismo, ao invés de apresentar-se como uma alternativa à teoria da justiça de Ra-
wls, seria mais bem considerada como seu importante, e até mesmo indispensá-
vel complemento. Parece-me que o contratualismo, designadamente o rawlsiano,
funcione como uma espécie de necessário princípio regulativo da justiça social em
uma determinada sociedade. Mas suas pretensões de “perfeição” (no dizer de Sen)
devem ser compensadas por uma análise imparcial e objetiva das situações con-
cretas das sociedades em questão, e das realizações passíveis de serem alcançadas
no sentido de um avanço efetivo da justiça, conquanto precário, porque a realidade
sempre impõe limites às nossas mais nobres pretensões. O método mais adequado
a uma análise deste tipo parece-me, de fato, como quer Sen, ser o comparativo;
mas a sua aplicação não dispensa a adoção de um arcabouço teórico mais abstrato,
como o proposto por Rawls. Ao contrário, penso que, na verdade, o pressuponha.
Entretanto, as considerações de Sen a respeito da necessidade de o alcance da jus-
tiça ser mais abrangente do que os limites territoriais de um Estado, ou comunida-
de de Estados, é extremamente urgente e imprescindível para que as pessoas mais
necessitadas tenham satisfeitos os seus direitos fundamentais, mesmo quando au-
sentes de sociedades cuja estrutura mínima não seja constituída por instituições
justas. Conceber uma teoria da justiça que leve em conta as particularidades, e
seja capaz de compensar as injustiças próprias do nosso mundo globalizado talvez
Referências
Fleischacker, S. (2006) Uma breve história da justiça distributiva. São Paulo: Martins
Fontes.
Sen, A. (1992) Inequality Reexamined. Cambridge, MA: Harvard University Press.
Sen, Aa (2010 [2009]) The idea of justice. London: Penguin.
Sen, A.; Kliksberg, B. (2010) As pessoas em primeiro lugar: a ética do desenvolvimento e os
problemas do mundo globalizado. São Paulo: Companhia das Letras.
Resumo
Assim como Marx, Lukács admite a possibilidade de uma verdadeira determi-
nação do sujeito na sua práxis social capaz de superar o dualismo indivíduo
e sociedade, sem sacrificar um ou outro, de tal modo que haja uma conver-
gência entre o eu e a alteridade. Para Lukács, a ética resulta dos atos teleo-
lógicos dos indivíduos num determinado contexto sócio-histórico. Portanto,
as possibilidades de superação dos bloqueios, que se exprimem como estra-
nhamentos, à plena explicitação do gênero humano não estariam descartadas
de se efetivarem na prática. As contradições que aí tem lugar só poderão ser
superadas quando os dois pólos do ser social deixarem de atuar um sobre o
outro de modo antagônico. Este será o segundo grande salto do ser social: o
salto da generidade em-si à generidade para-si, cuja realização ocorre por
uma mediação ética na qual é eliminado o dualismo indivíduo e sociedade.
Palavras-chave: Ética, Consciência, Estranhamento, Para-Si, Vida Cotidiana.
Introdução
O
atual dualismo indivíduo e sociedade, no seu aspecto contraditório, é de-
corrente dos bloqueios à plena explicitação do gênero humano que se ex-
primem como estranhamentos, presentes no capitalismo, cuja gênese ocor-
re no processo do trabalho, mas que se espalham para alem dele. Nesse processo
há vários tipos de estranhamentos que tendem a levar os indivíduos a se manter
na sua particularidade e tende a levar a sociedade capitalista a comandar os atos
desses indivíduos como se fossem totalmente separados um do outro e vice-versa.
1
O termo para-si em Lukács diz respeito ao fazer-se individualidade do homem na relação com o
outro, ou seja, refere-se à saída do eu singular, no sentido da formação do gênero humano, e, portanto,
do seu ser social, cujo caminho se encontra na superação do gênero mudo e no alcance de ser digno
do homem, da sua autêntica generidade humana mediada pela ética. Segundo Lukács, “cada tomada
de posição individual (da generidade em-si) tem uma relação de possibilidade – ainda que, muitas
vezes, praticamente mínima – com a história do gênero humano’ (LUKÁCS, 1981, p. 586. O acréscimo
é nosso).
2
Tanto Marx como Lukács reconhecem que o desenvolvimento das forças produtivas proporcionadas
pelo capitalismo – mesmo com suas contradições e também por conta delas – leva ao desenvolvimen-
to das capacidades humanas e, portanto, pode levar também ao desenvolvimento da personalidade,
proporcionando ao homem a formação de uma consciência cada vez mais crítica. Daí porque o capi-
talismo abre espaço “para a auto-liberação do indivíduo do seu estágio estranhado” (LUKÁCS, idem,
p. 801).
3
Vê-se que Lukács fala aqui do segundo salto do ser social. O primeiro salto diz respeito à passagem do
ser meramente biológico ao ser social através do trabalho. Neste ponto, porém, “temos unicamente
o homem particular que, com, efeito já foi separado por meio de um salto da generidade, meramente
biológica, dos seres viventes da natureza. Esta nova generidade, todavia, manifesta-se diretamente
com a realidade somente no seu em-si. Ela contém em si (no sentido da dynamis aristotélica), uma
intenção dirigida ao ser-para-si do gênero humano” (LUKÁCS, idem, p. 407).
4
O homem no seu fazer histórico, mediante o trabalho, produz incessantemente o novo (suas idea-
ções e objetos) para a satisfação das suas necessidades. Dessa forma, o objeto criado – a transforma-
ção de uma causalidade natural em causalidade posta – torna-se natureza humanizada, ao mesmo
tempo em que o homem se autotransforma, fazendo-se ser social. Essa transformação da natureza
em objetos sociais por meio da atividade do homem, do seu por teleológico, é o processo de objeti-
vação do objeto e, ao mesmo tempo, de alienação, quer dizer, a exteriorização do sujeito da ação. A
objetivação diz respeito à mudança no mundo dos objetos socialmente construídos pelos homens e,
no ato dessa construção, ocorre a alienação do sujeito, a sua exteriorização, o seu fornar-se, ao mes-
mo tempo, individual e social. Lukács menciona que “todo ato de objetivação do objeto da práxis é ao
mesmo tempo um ato de alienação do sujeito” (LUKÁCS, 1981, p. 402. O grifo é nosso).
7
Lukács menciona, em seguida, que, pelo fato de o estranhamento ser um fenômeno universal, ele
deve ser extinto em suas bases, daí porque a superação de alguns estranhamentos no terreno indi-
vidual, mesmo sendo heróica, “deixa ontologicamente intactos os estranhamentos mais basilares”
(LUKÁCS, idem, p. 735).
8
Nos Prolegômenos, Lukács repete esse exemplo: “pense no caso de bons militantes, inteligentes
e prontos para o sacrifício, que chegam coerentemente a combater o estranhamento no trabalho,
mas na relação com a própria mulher não ocorre nem sequer de pensar em tirar-lhe as correntes”
(LUKÁCS, 1990, p. 208).
9
Em outra passagem Lukács diz que nos “movimentos de interação entre pessoa singular e gênero
humano está, portanto, contida a tendência à superação do estado de estranhamento pessoal sem,
todavia, que isso exclua a geração do estranhamento de novo gênero” (LUKÁCS, idem, p. 761).
Resumo
Para responder à questão sobre como podemos classificar os prazeres como
superiores e inferiores, Mill recorre à figura dos juízes competentes, que se-
riam os únicos agentes capazes de ajuizar sobre sua qualidade. Para ser con-
siderado um juiz competente o agente precisa satisfazer a, pelo menos, três
condições: ter experimentado ambos os tipos de prazer; ser capaz e apreciar
e se deleitar com ambos os tipos; ter hábitos de consciência e observação de
si. Destaco e tento responder a duas objeções levantadas contra essa defesa
dos juízes competentes. Uma, é que ela é elitista, pois propõe que apenas al-
guns agentes são capazes de ajuizar sobre os prazeres. Outra objeção é que,
admitindo que os juízes possuam inclinações naturais e sejam culturalmente
influenciados, eles não podem ser imparciais o bastante para julgar a quali-
dade dos prazeres.
Palavras-chave: Hedonismo. Mill. Juízes competentes. Autonomia. Igualita-
rismo.
1. O hedonismo de Bentham
E
m Utilitarismo1 (1861) John Stuart Mill se propõe a responder a uma série
de objeções levantadas contra a teoria utilitarista. Dentre elas, está a obje-
ção de que o utilitarismo seria uma teoria digna de porcos. Essa objeção foi
proposta por Thomas Carlyle em Latter-Day Pamphlets (1850) e dirigia-se direta-
mente ao aspecto hedonista do utilitarismo2 – sobretudo, da versão de utilitarismo
1
As obras (livros, artigos, etc.) que possuem tradução completa em português serão grafadas nesta
língua. Do contrário, elas serão grafadas conforme o idioma original.
2
Embora o hedonismo seja um traço característico das versões clássicas de utilitarismo, sobretudo
das de Bentham e Mill, nem todas as teorias utilitaristas são hedonistas como é o caso das teorias de,
2. O hedonismo de Mill
Enquanto hedonista Mill sustentava que o prazer e a dor são as únicas coi-
sas desejáveis (dignas de serem desejadas) como fins e que tudo o mais que fosse
desejável o seria ou pelo prazer inerente em si mesmo ou enquanto meio para
promover o prazer e prevenir a dor14. Como Bentham, ele pensava que um indiví-
duo (ou sociedade) seria feliz na medida em que sua vida tivesse um saldo mais
positivo de prazer do que de dor. Porém, não pensava que apenas fatores quanti-
14
Cf. Mill (1861, cap. II, §2).
3. Juízes competentes
A questão que se põe imediatamente à defesa da superioridade intrínseca
dos prazeres é: como sabemos quais prazeres são intrinsecamente mais valiosos
do que outros? No caso do hedonismo de Bentham, basta recorrer à intensidade
e à duração dos prazeres para dizer qual é o prazer mais valioso. Mas, se o que
determina o valor dos prazeres é a sua qualidade intrínseca, como esse valor pode
ser identificado? Para responder a essa questão Mill recorre à figura dos juízes
competentes, os quais seriam os únicos agentes21 capazes de ajuizar sobre a qua-
lidade dos prazeres e dos quais o veredito consensual seria irrevogável22: “De dois
prazeres, se houver um ao qual todos ou quase todos aqueles que tiveram a experi-
ência de ambos derem uma preferência decidida, independentemente de sentirem
qualquer obrigação moral para o preferir, então será esse o prazer mais desejável.”
(MILL, 2005, p. 50)23.
Ao propor a figura de tais juízes, Mill não pressupõe que a superioridade
ou inferioridade dos prazeres é baseada no juízo arbitrário de certos agentes que
determinam a seu bel-prazer quais prazeres são de um tipo e quais são de outro. O
19
Cf. Mill (1835; 1869).
20
Cf. Mill (1861, cap. II, §10; 1874).
21
Por agente entenda-se todos os indivíduos capazes de tomar decisões morais, sejam elas quais forem.
22
Cf. Mill (1861, cap. II, §5-10).
23
Cf. Mill (1861, cap. II §5).
28
Cf. Mill (1843, Livro VI, cap. IV).
29
A questão da autonomia será discutida mais adiante.
30
A questão se o princípio de utilidade serve como critério para julgar ou decidir o que é moralmente
correto realizar não será discutida neste trabalho.
31
Cf. Mill (1861, cap. II, §10)
32
Cf. Mill (1843, Livro VI, cap. IV).
33
Cf. Mill (1843, Livro VI, cap. IV; 1861, cap. II, §7)
34
Cf. Mill (1861, cap. II, §18).
Referências
BENTHAM, Jeremy. (1789). An Introduction to Principles of Moral and Legislation. In: The
Works of Jeremy Bentham, published under the Superintendence of his Executor, John Bo-
wring (Edinburgh: William Tait, 1838-1843). Vol I.
_______. (1817). A Table of the Springs of Action. In: The Works of Jeremy Bentham, published
under the Superintendence of his Executor, John Bowring (Edinburgh: William Tait, 1838-
1843). Vol I.
_______. (1825) The Rationale of Reward. In: In: The Works of Jeremy Bentham, published
under the Superintendence of his Executor, John Bowring (Edinburgh: William Tait, 1838-
1843). Vol II.
BERGER, Fred. Happiness, Justice, and Freedom: The Moral and Political Philosophy of John
Stuart Mill. EUA: University of California Press, 1984.
CARLYLE, Thomas. Latter-Day Pamphlets. London: [s/e] 1850.
CRISP, Roger. Routledge Philosophy Guidebook to Mill on Utilitarianism. London: Routledge,
1997.
GRAY, John. Mill’s Conception of Happiness and the Theory of Individuality. In: GRAY, John;
SMITH, G. W. (Ed.). J. S. Mill’s On Liberty: In focus. London: Routledge, 1991.
HARE, Richard. Moral Thinking. Oxford: Oxford University Press, 1981.
HARSANYI, John. Morality and the Theory of Rational Behaviour. In: A. SEN; WILLIAMS, B.
Utilitarianism and Beyond. Cambridge: Cambridge University Press, 1982.
MILL, James; MILL, John Stuart. Analysis of the Phenomena of the Human Mind. London:
Longmans, Green, Reader, and Dyer, 1869.
MILL, John Stuart. (1865). An Examination on Sir William Hamilton’s Philosophy. In: Collec-
ted Works of John Stuart Mill, ed. J.M. Robson. Toronto: University of Toronto Press, London:
Routledge and Kegan Paul, 1963-1991. 33 vols. Vol. IX.
35
Cf. Gray (1991, p. 194).
I. Introdução
J
osé Carlos Mariátegui é considerado por vários autores um expoente do pensa-
mento marxista latino-americano. Nesse sentido, o intelectual marxista argen-
tino José Aricó afirma que os Sete ensaios de interpretação da realidade perua-
na, principal obra de Mariátegui, publicada em 1928, seria “o maior esforço teórico
realizado na América Latina para introduzir uma crítica socialista aos problemas e
à história de uma sociedade concreta e determinada” (ARICÓ, 1982, p.21). Segundo
Michel Löwy, em Sete ensaios... Mariátegui apresenta uma das primeiras tentativas
“de análise marxista de uma formação latino-americana concreta” (LÖWY, 2006,
pp. 17-18). Para Löwy, o pensamento de Mariátegui “caracteriza-se justamente por
uma fusão entre os aspectos mais avançados da cultura européia e as tradições mi-
lenares da comunidade indígena, e por uma tentativa de assimilar a experiência so-
cial das massas camponesas numa reflexão teórica marxista” (Idem, p. 18). Bellotto
e Corrêa concordam com Löwy ao afirmarem que Mariátegui seria responsável por
uma forma de pensamento socialista original para a América Latina, cujas raízes
estariam nas antigas civilizações andinas (BELLOTTO & CORRÊA, 1982, p. 7).
Durante sua breve vida, interrompida precocemente aos 35 anos em conse-
qüência do agravamento de um problema de saúde, Mariátegui refletiu sobre diver-
sos temas de filosofia política vinculados à história do Peru e a toda a América de
colonização espanhola. Mariátegui abordou problemas relacionados ao colonialis-
mo, sua influência nas relações entre as classes, as formações econômicas daí resul-
tantes, o papel do intelectual engajado, a crise da democracia representativa, etc..
Logo em seguida a este trecho Marx não deixa dúvidas de que, para ele, a
sociedade inca correspondia a uma formação semelhante à do México, dos Celtas
e de tribos da Índia. Nesse sentido, ele afirma que essa unidade superior, o Estado,
“pode envolver uma organização comum do trabalho tal que se constitui num ver-
dadeiro sistema, como no México e, especialmente, no Peru, entre os antigos Celtas
e algumas tribos da Índia” (Idem, p. 436; Idem, p. 381).
Parece evidente, portanto, que para Marx a sociedade inca corresponderia a
uma formação de tipo asiática. A comparação entre a afirmação de Mariátegui e os
trechos dos Grundrisse citados acima indica algumas diferenças fundamentais na
caracterização da sociedade inca por parte dos dois autores. Enquanto Mariátegui
1
Mariátegui se apóia no estudo feito por César Antonio Ugarte, segundo o qual a terra cultivável
era propriedade do ayllu, um conjunto de famílias consangüíneas, ainda que a posse da terra fosse
dividida em lotes individuais intransferíveis. Segundo Ugarte, a tribo, composta por uma federação
de ayllus estabelecidos em volta de uma mesma aldeia, era proprietária coletiva das águas, das ter-
ras destinadas ao pastoreio e dos bosques. Enquanto o trabalho era comum, baseado na coopera-
ção, as colheitas eram apropriadas individualmente. UGARTE, César Antonio. Bosquejo de la historia
econômica Del Perú. Citado por idem, p. 79.
Com base no exposto até aqui, cabe ainda perguntar, do ponto de vista filo-
sófico, qual seria a forma assumida pelo mais-trabalho produzido pelos nativos
nas lavouras, nos campos e nas minas americanas, sob o domínio dos espanhóis?
Seriam as formas servis, como a corveia ou a talha? Seria o mais-trabalho escra-
vo? Ou o fato dos trabalhadores americanos produzirem para o mercado mundial
capitalista transformaria seu mais-trabalho naquele da forma capitalista, a forma
da mais-valia? Poderíamos colocar a mesma questão de outro modo: qual seria a
relação de determinação entre o geral, isto é, o mercado mundial capitalista, e o
Referências
ARICÓ, José. (Introdução) In: BELLOTTO, Manoel L. & CORRÊA, Ana Maria M. (Orgs.), Mari-
átegui: política. São Paulo: Ática, 1982.
BELLOTTO, Manoel L. & CORRÊA, Ana Maria M. (Orgs.), Mariátegui: política. São Paulo:
Ática, 1982.
BENOIT, Hector. “O Programa de Transição de Trotsky e a América”. In: Revista Crítica Mar-
xista, nº 18. São Paulo: Revan, 2004.
LÖWY, Michael (org.) O marxismo na América Latina: uma antologia de 1909 aos dias atu-
ais. São Paulo: Editora da Fundação Perseu Abramo, 2006.
MARIÁTEGUI, José Carlos. Obras. Havana: Casa de lãs Americas, 1982, tomos I e II.
MARX, Karl. Grundrisse der Kritik der politischen Ökonomie, Zweiter Teil, Berlin: Dietz Ver-
lag, 1981.
____ Das kapital: kritic der politischen Ökonomie. Berlin: Dietz. Verl., 1988.
Resumo
Rawls foi o maior pensador político da segunda metade do século XX e fa-
leceu em 2002 quando ainda não haviam estudos sobre o aprimoramento
moral mas já havia o debate sobre o enhancement, onde entre os bioconser-
vadores e os pós-humanistas ele se manifestou1 várias vezes a favor dos pós-
humanistas. O aprimoramento moral tem sua primeira citação com o artigo
de Thomas Douglas em 2008 e desde então a questão se tornou extremamen-
te fértil. Soma-se a isso a grande efervescência das pesquisas em neurociên-
cia e as descobertas que apesar de não oferecerem resultados imediatos tem
grandes perspectivas. O pensamento de Rawls ora é utilizado para a defesa
do aprimoramento genético, ora é demonstrado como insuficiente para esse
próprio aprimoramento e para outros, como o aprimoramento cognitivo. E
o presente artigo pretende pretender apresentar essa discussão e a posição
de Rawls sobre o enhancement. Um dos autores é William Soderberg que em
Genetic enhancement of a child’s memory – a search for a private and public
morality propõe o véu de ignorância de Rawls como um critério para julgar
a justiça do aprimoramento genético da memória dos filhos realizada pelos
pais. Outra é Eva Orlebeke Caldera que em Cognitive enhancement and theo-
ries of justice visa apresentar as relações do aprimoramento cognitivo com
as teorias da justiça disponíveis: contratualismo social (Rawls), libertarismo
(Nozick) e comunitarismo (Sandel). Um terceiro é David DeGrazia que em
Enhancement Technologies and human identity (2005) apresenta um concei-
to de identidade que se aproximaria ou seria compatível com o conceito de
pessoa de Rawls, que permitiria o enhancement. O quarto é Colin Farrelly que
em “Genes and social justice: a rawlsian reply to Moore”, através de vários
conceitos de Rawls, apresenta a posição de Adam Moore sobre a manipulação
genética. E, por fim, Fritz Allhoff em Germ-Line Genetic Enhancement and Ra-
wlsian Primary Goods defende o aprimoramento genético de ‘germ-line’ para
1
Rawls, 1971, p. 108.
R
awls faleceu em 2002 quando ainda não haviam estudos sobre o aprimo-
ramento moral mas já havia o debate sobre o ‘enhancement’, onde entre
os bioconservadores e os pós-humanistas ele se manifestou várias vezes a
favor dos pós-humanistas. O aprimoramento moral tem sua primeira citação com
o artigo de Thomas Douglas em 2007 e desde então a questão se tornou extrema-
mente fértil. Soma-se a isso a grande efervescência das pesquisas em neurociência
e as descobertas que apesar de não oferecerem resultados imediatos tem grandes
perspectivas. O pensamento de Rawls ora é utilizado para a defesa do aprimora-
mento genético, ora é demonstrado como insuficiente para esse próprio aprimora-
mento e para outros, como o aprimoramento cognitivo. E aqui mais uma vez o que
se confirma é que ele continua sendo uma referência para se pensar as questões
éticas relacionadas à justiça e a relação indivíduo – sociedade. O presente artigo
tem como objetivo apresentar uma bibliografia secundária e analisar vários arti-
gos que tratam do ‘enhancement’ percebendo as diferentes contribuições que o
pensamento de Rawls pode dar.
O primeiro texto é “Genetic enhancement of a child’s memory – a search for
a private and public morality” de William Soderberg. O texto tem uma linguagem
simples e apresenta o véu de ignorância de Rawls como um critério para julgar a
justiça do aprimoramento genético da memória dos filhos realizada pelos pais. O
texto está dividido em três partes. Na primeira ele apresenta o liberalismo moral
e dentro dele o libertarismo e o utilitarismo. E demonstra que o libertarismo le-
varia a uma tirania da minoria uma vez que a posição de respeito aos interesses
individuais levaria a indivíduos profundamentamente individualistas não se im-
portando com a condição do outro, permitindo o sacrifício de indivíduos, ou seja, a
penalização dos que precisam da ajuda do outro para exercer seus direitos básicos
e, além disso, a posição de não intervenção do Estado na sociedade levaria a um
agravamento das diferenças sociais e assim a condicionamento das minorias. O
utilitarismo parece cometer um erro contrário, favorece o princípio da maioria e
isso acarretaria no erro tão criticado por Rawls: o sacrifício da minoria em função
dos interesses de uma maioria. Feito isso se percebe que o véu de ignorância de Ra-
wls que, na interpretação de Ronald Gree (1986), se compara a um jogo de cartas,
onde as cartas estão abaixadas, seria uma alternativa para resolver a questão do
aprimoramento genético da memória dos filhos. O véu de ignorância seria tomar
as decisões com as cartas abaixadas, onde não se conhece as suas capacidades,
classe social e talentos. É importante lembrar que o véu de ignorância é um re-
Referências
FARRELLY, COLIN. (2002). Genes and social justice: a rawlsian reply to moore. BIOETHICS.
Vol. 16, number 1, 2002. ISSN 0269-9792.
CALDERA, EVA ORLEBEKE. (2008). Cognitive enhancement and theories of justice: contem-
planting the malleability of Nature and self. JOURNAL OF EVOLUTION AND TECHNOLOGY.
Volume 1, issue 1, may 2008, pgs. 116-123.
DEGRAZIA, DAVID. (2005). Enhancement technologies and human identity. JOURNAL OF
MEDICINE AND PHILOSOPHY. Vol. 30, p. 261-283. 2005.
Introdução
N
ossa pesquisa desenvolve uma leitura sobre a proposta de Walter Benjamin
acerca da filosofia crítica de Immanuel Kant, especificando a importância
de seu pensamento para a fundamentação de uma metafísica do tempo
presente. Partimos do estudo do que se pretende resgatar do legado kantiano para
servir de referencial filosófico, como indicado no projeto de Walter Benjamin, para
suscitar o debate sobre a vitalidade de uma ontologia da atualidade que assuma os
contornos de uma filosofia vindoura. Também levantamos a reflexão sobre a via-
bilidade de tal projeto mesmo quando muitos filósofos contemporâneos propõem
criticamente o fim da metafísica e a inversão paradigmática da filosofia.
Como saber algo a priori acerca das coisas em si mesmas, antes mesmo que elas
nos sejam dadas, se nosso conhecimento só é possível quando os conceitos do
entendimento se apoiam em intuições de objetos dados na experiência?
Até hoje admitia-se que o nosso conhecimento se devia regular pelos objetos;
porém, todas as tentativas para descobrir a priori, mediante conceitos, algo
que ampliasse o nosso conhecimento, malogravam-se com este pressuposto.
Tentemos, pois, uma vez, experimentar se não se resolverão melhor as tarefas
da metafísica, admitindo que os objetos se deveriam regular pelo nosso co-
nhecimento. (KANT, 2001, B XVI - pp. 19-20)
Também com isto Kant não reproduz o argumento dos dogmáticos que ad-
mitem unicamente a origem a priori do conhecimento e sua apreensão como coisa
em si que prescinde da experiência. Para Kant a experiência move e desperta pela
faculdade da sensibilidade a capacidade de acessar o conhecimento dado a priori e
ordenado pela faculdade do entendimento.
Nesse caso não seria absurdo dizer que o ‘entendimento’ reprocessa as im-
pressões sensíveis fornecidas por objetos. Todavia, a dificuldade seria outra,
que aparece na primeira edição (A2) e permitiria justificar a mudança ocorri-
da na segunda (B2): na primeira edição Kant fala de conceitos a priori e juízos
gerados a partir deles; o que pareceria reduzir todo o conhecimento a prio-
ri a conceitos do entendimento, desprezando o papel essencial da intuição,
sem a qual dificilmente se compreende a possibilidade de conceitos puros. As
condições que perfazem a forma da experiência não brotam meramente do
entendimento, mas também (e sobretudo) dos sentidos. Na segunda edição,
ao modificar essa passagem, Kant fala de ‘conhecimento independente das
Assim, a experiência, que significa impressão sensível que temos das coi-
sas, como condição de possibilidade do conhecimento no tempo, é a pedra-de-to-
que para o que Kant define como reviravolta copernicana no modo de pensar e co-
nhecer os objetos; visto que, “só conhecemos a priori das coisas o que nós mesmos
nelas pomos.” (KANT, 2001, p. 47 - B XVIII) Desta forma, com Kant podemos ter um
caminho seguro para uma metafísica enquanto ciência, que requer elementos de
demonstração empírica (realidade objetiva) com fundamentos e princípios neces-
sários e universais.
A analítica da razão pura teórica trata do conhecimento dos objetos que pos-
sam ser dados ao entendimento, devendo, portanto, iniciar-se pela intuição,
e por isso (já que esta é sempre sensível), pela sensibilidade, avançando só
depois aos conceitos (dos objetos desta intuição) para, após essa dupla pre-
paração, terminar com princípios. (KANT, 1959, p. 71)
Referências
ALLISON, Henry E. Kant’s transcendental idealism: an interpretation and defense. New Ha-
ven/London: Yale University Press, 1983.
BENJAMIN. Walter; ADORNO, T. W.; HORKHEIMER, M.; HABERMAS, J. Textos Escolhidos. São
Paulo: Abril Cultural, 1980. (Os Pensadores).
BENJAMIN, Walter. A Modernidade e os Modernos. Rio: Tempo Brasileiro, 1975.
_____. Discursos Interrumpidos I. Madrid: Taurus, 1973.
_____. Illuminations: essays and reflections. New York: Schocken Books, 2007.
_____. La metafísica de la juventud. Barcelona: 1993.
_____. O Conceito de Crítica de Arte no Romantismo Alemão. São Paulo: EDUSP/ Iluminuras, 1993.
_____. Origem do Drama Barroco Alemão. São Paulo: Brasiliense, 1984.
_____. A vida dos estudantes. In.:_____. Documentos de Cultura - Documentos de Barbárie (Es-
critos Escolhidos). São Paulo: EDUSP, 1986. pp. 151-159
6
Adorno, em um curso de palestras sobre os “Problemas de Filosofia Moral”, aponta para a busca por
uma forma correta de política enquanto uma questão de organização do mundo; estas palestras são
transcritas na obra Problems of Moral Philosophy (SCHRÖDER, 2001).
7
Este significado contém resquícios do projeto do Esclarecimento. Esta noção será rejeitada por Adorno
que, ao percebê-la, procura caracteriza-la como um falso problema na reflexão sobre a liberdade.
8
Adorno compartilha com Herbert Marcuse a crítica à falácia da escassez de recursos que justifica
o continuum progresso através da manipulação do humano e a introjeção de novas necessidades em
detrimento das suas necessidades vitais. (MARCUSE, 1999.)
Tudo pode tornar-se prazer como novo com renúncia de si próprio, tal como,
anestesiados, adeptos da morfina lançam mão de qualquer droga, até atro-
pina. Com a distinção das qualidades todo julgamento se perde na sensação:
é propriamente isso que faz da sensação a agente da regressão catastrófica.
13
Adorno, no prefácio da obra Dialética Negativa, afirma que sua “filosofia de modelos” quer contra-
por o “uso de exemplos como algo em si indiferente; um procedimento introduzido por Platão que a
filosofia vem repetindo desde então” (ADORNO, 2009, p. 8).
14
Adorno critica a liberdade formulada pela filosofia moderna e visualiza em Kant o “ponto central
desta reflexão sobre as condições de inteligibilidade da autonomia moral do sujeito”; entretanto, é em
Kant que Adorno, em contrapartida, percebe os “indícios germinais” de uma “dialética da liberdade”
(ALVES JÚNIOR, 2005. p.23).
Referências
ADORNO, Theodor W. Dialética Negativa. Rio de Janeiro: Jorge Zohar, 2009.
_____. Educação e Emancipação. São Paulo: Paz e Terra, 2010.
_____.; HORKHEIMER. M. Dialética do Esclarecimento: fragmentos filosóficos. Rio de Janeiro:
Jorge Zohar, 2006.
_____. Mínima Moralia: reflexões a partir da vida lesada. Lisboa: Edições 70, 1951.
_____. Problems of Moral Philosophy. Edited by Thomas Schroder. Translated by Rodney Liv-
ingstone. California: Stanford University Press: Stanford, 2001.
_____. Teoria Estética. Tradução de Artur Morão. Lisboa: Edições 70, 1970.
ALVES JÚNIOR, Douglas Garcia. Dialética da Vertigem: Adorno e a Filosofia Moral. São Paulo:
Escuta, 2005; Belo Horizonte: Fumec/FCH, 2005.
ARENDT, Hannah. A condição humana. São Paulo: Forense, 2007.
CHIARELLO, Maurício. Natureza-Morta: Finitude e Negatividade em T.W. Adorno. São
Paulo: Edusp, 2006.
16
Esta noção do “mundo como lugar comum de convivência humana” é compartilhada por Hannah
Arendt e expressa na obra A condição humana (ARENDT, 2007).
17
Para Adorno, segundo Gagnebin (2006, p.74), o emblema do que não pode acontecer é “Auschwitz”.
Assim, “a instância ética nasce da indignação diante do horror”.
Resumo
Abordaremos nesse trabalho o conceito de razão pública proposta por Ra-
wls e os limites do privado e do público. A partir de fatos reais buscaremos
aproximações com a teoria, abordando os confrontos entre visões de mundo,
a função da ciência na sociedade e interesses envolvidos, e os valores morais
religiosos e suas respectivas tentativas de se sobrepor a razão pública, valores
privados que entram em confronto com as atribuições do político e do exercí-
cio da política como função pública.
Palavras-chave: Justiça Social, Liberalismo, Público, Privado, Razão Pública
Introdução
J
ohn Rawls, foi professor em Harvard, alcançou notoriedade com a publicação,
em 1971 de Uma Teoria da Justiça com a hipótese de que a justiça diria respei-
to ao conjunto da vida humana (as instituições, o povo e a sociedade). Teoria,
como aqui a chamaremos, é contemporânea dos movimentos sociais e dos direi-
tos humanos, em um mundo conturbado com guerras e ditaduras, sendo recebida
Conclusão
Cremos, que toda a introdução a obra de um determinado pensador não
seja algo fácil, partimos do principio que da virada de um discurso psicanalítico
ao discurso do político possui um trabalho de apropriação de uma linguagem.
No discurso do político não se trata de inconsciente, mesmo que a explicação
Referências
ARAÚJO, C. República e Democracia. In: Lua Nova, n.51, p.5-30, 2000.
___________.Legitimidade, justiça e Democracia: o novo contratualismo em Rawls. In: Lua
Nova, n. 57, p.74-85, 2002.
FREEMAN, S. (Edit.) The Cambridge Companion to Rawls. Cambridge University Press, 2003
GARGARELLA, R. Teorias de Justiça depois de Rawls. São Paulo: Martins Fontes, 2009.
SHAPIRO, I. Os fundamentos morais da política. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
LOIS, Cecília Caballero (org.) Justiça e Democracia – entre o universalismo e o comunitaris-
mo. A contribuição de Ronald Dworkin, Ackerman, Raz, Walzer e Habermas. Para a moderna
Teoria da Justiça, São Paulo, Landy, 2005.
RAWLS, John. Uma Teoria da Justiça. Trad. de Jussara Simões. São Paulo: Martins Fontes, 2008.
____________. Justiça como equidade. Uma reformulação. Trad. de Claudia Berliner. São Paulo:
Martins Fontes, 2003.
_____________. O Liberalismo Político. Trad. Dinah de A. Azevedo. São Paulo: Ática, 2000.
REIS, G.S.A. Uma reflexão crítica – As relações possíveis entre contratualismo e a ética do dis-
curso. In: ÍTACA -Revista dos alunos da pós-graduação em Filosofia – UFRJ, n. 20, 169-190, 2012.
_________. A era do mal entendido para uma reflexão sobre o reconhecimento e justiça In:
ÍTACA - Revista dos alunos da pós-graduação em Filosofia – UFRJ, n. 16, 169-191, 2011.
SANDEL, M. O liberalismo e os limites da justiça. Lisboa: Calouste Gulbekian, 2005.
__________. Justiça. Trad. Heloísa Matias e Maria Alice Máximo. São Paulo: Civilização Brasi-
leira. 2011.
VERGNIERES, S. Ética e Política em Aristóteles: Physis, Ethos, Nomos. São Paulo: Paulus, 1999.
VITA, A.de. A justiça igualitária e seus críticos. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
_________. O liberalismo igualitário. Sociedade democrática e justiça internacional. São Paulo:
Martins Fontes, 2008.
_________.Liberalismo Igualitário e Multiculturalismo. In: Lua Nova, n.55 e 56, p.5-27, 2002.
_________.Uma concepção liberal – igualitária de justiça distributiva In: Revista Brasileira de
Ciências Sociais, Vol. 14 no.39, p.41-59,1999.
_________. Pluralismo Moral e Acordo Razoável. In: Lua Nova, n.39, p.125-200, 1997.
_________. Justiça Liberal – Argumentos liberais contra o neoliberalismo, São Paulo: Paz e Ter-
ra, 1993.
Resumo
Através do capitalismo tardio, e de sua lógica cultural, podemos observar a
capacidade de análise e atualidade da dialética marxiana acerca dos fenô-
menos sociais contemporâneos. Em Modernidade Singular, Fredric Jameson
demonstra como as tentativas de desconstruções das grandes narrativas des-
cambaram num retorno à filosofia tradicional e às disciplinas antes conside-
ras anacrônicas. As críticas pós-modernas ao marxismo vão perdendo força
à medida que a crise do capitalismo remete-nos a necessidade de uma crítica
dialética, histórica e materialista à totalidade do sistema dominante.
Palavras-chave: Fredric Jameson - Dialética – Pós-modernidade – Marxismo
– Cultura
A
definição de Fredric Jameson para o pós-moderno não pode ser confundida
com os alardes anti-marxistas do fim da história, nem tampouco com as rea-
ções moralistas às transformações econômicas e culturais inerentes à nova
configuração do capitalismo tardio. Nem a filosofia tradicional, nem os modismos
desconstrucionistas são capazes de pensar criticamente o cenário ideológico atual,
marcado pelas tentativas de mascaramento das lutas de classes e pela descrença em
projetos políticos que questionem a ordem social em sua totalidade. Longe de pro-
por uma ruptura entre modernidade e pós-modernidade, Jameson desvela o quanto
estas categorias estão cada vez mais imbricadas entre si, refletindo os interesses eco-
nômicos que seus respectivos ideólogos tanto insistem em negar.
Ao refletir o lugar do cultural no capitalismo tardio, Frederic Jameson não
pretende dar ênfase ao mascaramento da lógica econômica que ainda norteia os
1 JAMESON, Fredric. As Marcas do Visível. Rio de Janeiro: Edições Grall, 1995, p. 23.
2
JAMESON, Fredric. O Inconsciente Político. São Paulo: Editora Ática, 1992, p.55
6
ANDERSON, Perry. Prefácio. In: A Virada Cultural. Civilização Brasileira: Rio de Janeiro, 2006, p. 10.
7
JAMESON, Fredric. Marxismo e Pós-Modernidade. In: A Virada Cultural – reflexões sobre o pós-moder-
no. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006, p. 70.
Referências
JAMESON, Fredric. As Marcas do Visível. Rio de Janeiro: Edições Grall, 1995
_______________. Espaço e Imagem –Teorias do pós-moderno e outros ensaio. Rio de janeiro:
Editora da UFRJ, 2006, p. 154
_______________. O Inconsciente Político. São Paulo: Editora Ática, 1992
_______________. Marxismo e Pós-Modernidade. In: A Virada Cultural – reflexões sobre o pós-
-moderno. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006
________________. Pós-Modernismo – A lógica cultural do capitalismo tardio. Editora Ática, 1997
Resumo
Nos últimos 30 anos, defensores das causas dos animais, dos deficientes men-
tais e das crianças vêm cada vez mais se utilizando da linguagem dos direitos
para embasar suas reivindicações, mesmo estando tais grupos de fora das
teorias políticas tradicionais, herdeiras do contratualismo clássico, e que em
sua maioria trabalham com um modelo de agente racional do qual tiram boa
parte de sua força normativa. Mas como embasar filosoficamente medidas
que os protejam como concernidos por considerações de justiça? São essas
questões que investigarei, sob o prisma da abordagem das Capabilities de
Martha Nussbaum que, partindo da ideia basal de dignidade e qualificando-a
com sua lista das dez Capabilities centrais, consegue estender o escopo dos
concernidos pelas teorias de justiça, incluindo os três grupos citados sem
abrir mão de certos valores centrais ao liberalismo.
Palavras-chave: Nussbaum; Direitos dos Animais; Direitos dos Deficientes;
Capabilities.
Introdução
N
o processo de confecção de teoria política, uma das questões de maior in-
teresse teórico e de mais amplas consequências práticas é, sem dúvida, a
que diz respeito ao escopo dos concernidos por ela. Assim, por exemplo,
a ideia de contrato social como base para a formulação das questões de justiça
foi fundamental para a inclusão de indivíduos no escopo da teoria em uma escala
sem precedentes na história humana. Tal, inclusão, entretanto, não ficou restrita ao
campo teórico, já que as revoluções europeias do final da modernidade a levaram,
1
DIAS, M. C. (Acessado em 31/01/2012) “Direitos Humanos e a Crise Moral: em defesa de um cos-
mopolitismo de Direitos Humanos”. Disponível em: http://www.mariaclaradias.net/publicaccedilo-
tildees.html.
2
Casos diversificados, que vão desde a atual política dos países ricos em relação aos países pobres, até
a situação deplorável dos manicômios no passado, são bons exemplos aqui.
Objeções
Entretanto, a perspectiva da autora não está livre de críticas. Desde antes da
publicação de Frontiers of Justice, Nussbaum já enfrentava objeções pesadas, prin-
cipalmente em relação ao intuicionismo da teoria, como veremos a seguir. Mostra-
rei as mais comuns e interessantes, e finalizarei insistindo na adoção da perspecti-
va da autora, apesar das críticas.
A que mais frequentemente se faz à autora diz que, mesmo que estabeleçamos
o ponto de partida da dignidade como sólido o bastante, a derivação da lista se faz de
maneira puramente intuitiva9. Isso levanta uma série de questões. A mais profunda
é o que conta como uma Capability a ser protegida. Por que dez, e não oito, ou doze,
ou trinta? Isso leva a duas críticas importantes. A primeira é taxonômica: A segunda
8
Sobre a expansão da abordagem de modo a incluir os animais, ver: NUSSBAUM, (2007). Cap. 6. Ver
também NUSSBAUM, M. (April 24, 2007). Palestra: “Facing Animal Complexity”. Disponível em: http://
www.hcs.harvard.edu/~hrp/lecture/facing_animals-nussbaum.pdf (acessado em 06/06/2011) e
NUSSBAUM, M. (2006). “The Moral Status of Animals”. Chronicle of Higher Education, v52 n22 pB6-B8,
especialmente a comparação feita pela autora entre os méritos de sua abordagem com os méritos e
dificuldades do utilitarismo, como o de Peter Singer, com relação aos animais. Ver também a resposta
de Singer em SINGER, Peter. (2002) “A Response to Martha Nussbaum”. Disponível em: http://www.
utilitarian.net/singer/by/20021113.htm (acessado em 06/06/2011).
9
Sobre a acusação de intuicionismo, ver: Corrado, M. (2008). “Review of “Frontiers of Justice: Dis-
ability, Nationality, Species Membership”,” Essays in Philosophy: Vol. 9, Iss. 1. Article 4. Disponível em:
http://commons.pacificu.edu/eip/vol9/iss1/4 (Acessado em 19/01/2012)
uma má leitura, pois a autora diz explicitamente o contrário, e dá casos de deficiente que não podem
desenvolver a capability da razão prática, por exemplo. De fato, uma das funções da ideia de usar
como parâmetro de medição das capabilities o funcionamento “normal” da espécie é justamente pro-
ver aos que não podem desenvolver alguma delas a chance de, ao menos indiretamente, ter acesso
aos seus frutos (caso da participação política, por exemplo). Mas isso gera uma questão: E quem não
nem quase nenhuma? Nussbaum diz explicitamente, como exemplo ilustrativo da dignidade humana,
que a vida uma pessoa em estado vegetativo já foi tão atrofiada que já não pode ser chamada de “ver-
dadeiramente humana”. Mas ela, de fato, possui ao menos uma capability (vida). O problema, portan-
to, é: Se a posse de todas não é necessária, mas a posse de uma não é suficiente, onde se estabelece a
linha divisória? Esse problema, porém não encontra resposta em Frontiers of Justice.
14
Estender a teoria a seres não-vivos certamente exigiria alterações profundas na teoria, já que o
conceito de dignidade que a embasa é uma atributo de seres vivos. Mas assim como esse atributo já
foi apenas de seres humanos, me parece que uma nova expansão seria possível, até porque uma das
características dele no pensamento de Nussbaum (a ideia de “florescimento”) parece ocorrer quando
um Rio corre sem ser poluído, ou as neves do Kilimanjaro crescem sem derreter devido ao aqueci-
mento global. Mas e se elas derretem por causas naturais? Essa dificuldade possui uma correlata no
caso dos animais, que será analisada adiante.
15
LEUKAN, (2011) e CORRADO, (2008).
16
Fora o fato óbvio de que, sem regras para mediar tais conflitos, aparentemente nossa única saída é
usar nossas intuições para fazê-lo, o que gera uma nova acusação de intuicionismo. Ver: Corrado, 2008.
Referências
CORRADO, M. (2008). “Review of “Frontiers of Justice: Disability, Nationality, Species Mem-
bership”,” Essays in Philosophy: Vol. 9, Iss. 1. Article 4. Disponível em: http://commons.paci-
ficu.edu/eip/vol9/iss1/4 Acessado em 19/01/2012
DIAS, M. C. (Acessado em 31/01/2012). “Direitos Humanos e a Crise Moral: em defesa de
um cosmopolitismo de Direitos Humanos”. Disponível em: http://www.mariaclaradias.
net/publicaccedilotildees.html.
LEUKAN, M. (2011). “Dignified Animals: How “Non-Kantian” is Nussbaum’s Conception of
Dignity?” Philosophy Theses. Paper 89. Disponível em http://digitalarchive.gsu.edu/philo-
sophy_theses/89 Acessado em 23/01/2012.
NUSSBAUM, M. (2011). Creating Capabilities. The Belknap Press of Harvard University
Press. Cambridge (Mass.), London (Eng.).
______. (2007). Frontiers of Justice: Disability, Nationality, Species Membership. Cambridge
(Mass.) e Londres: The Belknap Press of Harvard University Press.
______. (2000). Women and Human Development The Capabilities Approach. Cambridge:
Cambridge University Press.
______. (1999). Sex and Social Justice. New York, Oxford: Oxford University Press.
______. “Facing Animal Complexity”, at 9-10 (April 24, 2007). Disponível em: http://www.
hcs.harvard.edu/~hrp/lecture/facing_animals-nussbaum.pdf (acessado em 06/06/2011)
______. (2006). “The Moral Status of Animals”. Chronicle of Higher Education, v52 n22 pB6-B8.
RAWLS, J.(2005). Political Liberalism: Expanded Edition. New York: Columbia University
Press.
SEGALL, S. (2009). Review: Martha C. Nussbaum. Frontiers of Justice: Disability, Nationality,
Species Membership. Utilitas, 21.
SINGER, P. (2002). “A Response to Martha Nussbaum”. Disponível em: http://www.utilita-
rian.net/singer/by/20021113.htm (acessado em 06/06/2011).
Resumo
Nosso texto objetiva compreender a concepção de história em Marx, como
teria ele percebido a história em sua totalidade. Pretendemos compreender
como teria Marx refletido sobre a historicidade do modo de produção capita-
lista, e de como este modo, ao constituir-se em modo de produção universal,
teria destruído todas as formas de sociedades tradicionais baseadas no valor-
-de-uso, criando ao mesmo tempo o mercado mundial baseado no valor-de-
-troca. Para tal, partiremos da oposição entre história como luta de classes e
história como relações de imutabilidade, tal como pensamos teria Marx ope-
rado. Ao final, analisaremos a inflexão posta por Engels nesta concepção de
história, bem como as apropriações (im)postas pelo stalinismo, estabelecen-
do uma interpretação deformada e ideologizada, baseada na nova concepção
engelsiana da história e não mais naquela compreendida por Marx.
Palavras-chave: Marx, Engels, história, luta de classes, imutabilidade, etapis-
mo.
A
história, para Marx, é movida pela luta de classes e tem como resultado a se-
paração do trabalhador da propriedade dos meios de trabalho. Deste modo,
nosso texto objetiva compreender a concepção de história em Marx, como
Marx compreendia a história em seu movimento de totalidade, já que ele próprio não
escreveu um texto onde isso aparecesse exposto de modo totalmente claro. Desde já,
no entanto, afirmamos que não pertence ao autor deste texto a originalidade dessa
interpretação. Tal interpretação já foi desenvolvida in toto pelo professor Hector Be-
noit (1998), que em seu artigo A luta de classes como fundamento da história mostra
muito bem como para Marx o processo multimilenar de apropriação e concentração
Marx e a história como separação entre trabalhador e propriedade dos meios... 371
das condições objetivas de existência em um número cada vez mais reduzido de in-
divíduos aparece como o leitmotiv do desenvolvimento das forças produtivas. Benoit
mostra, ainda, que para Marx tal processo concentrador da riqueza somente poderia
ser rompido com a revolução proletária mundial.
Promover a superação teórica e ao mesmo tempo apontar o caminho para
uma possível superação prática do modo de produção capitalista através da crítica
da Economia Política parece ter sido o grande objetivo das pesquisas de Marx ao lon-
go de mais de quatro décadas. Tal horizonte teórico-prático de superação da socie-
dade burguesa aparece expresso sobretudo nos quatro volumes que compõem sua
obra máxima O capital: crítica da Economia Política. Com esta obra, Marx pretendia
apresentar tanto os fundamentos do modo de produção capitalista quanto as contra-
dições inerentes ao mesmo, contradições que abririam a possibilidade da revolução
comunista levada a cabo pela classe operária, a classe que aparece ao mesmo tempo
como a criação mais original do capital e também como a sua negação.
Para Marx, o pressuposto fundamental da produção capitalista é a existência
dos trabalhadores como livre vendedores de sua própria força de trabalho. Para que
o capitalista encontre no mercado de trabalho estes livres vendedores de força de
trabalho faz-se mister, segundo Marx, outro pressuposto: que esses trabalhadores
estejam totalmente desprovidos das condições objetivas de existência e não possu-
am outra forma de suprir sua subsistência senão a de vender-se diariamente no mer-
cado de trabalho. Tal pressuposto, segundo Marx, teria como base a dissolução das
várias formas históricas de produção nas quais os trabalhadores se apresentavam
não como vendedores de força de trabalho, mas, de alguma maneira, como livres
proprietários de suas próprias condições objetivas de existência. Como diz ele:
Conforme Marx, o homem é, por natureza, um ser social, um ser tribal, gre-
gário. Seu isolamento, como na sociedade burguesa atual, somente teria ocorrido
no transcorrer do processo histórico. Por isso, o que a História precisaria explicar,
segundo Marx, não seria a união originária, natural, do homem com a natureza.
Mas o que necessitaria de uma explicação, ou seja, o que deveria ser o objeto da
investigação histórica, na concepção de Marx, seria exatamente este processo de
separação entre o homem e suas condições objetivas de existência: a separação –
histórica – entre homens e condições materiais de existência:
Nas origens da humanidade, diz Marx, os homens aparecem como seres in-
tegrados à natureza. Os produtores, ali, teriam uma relação de propriedade com as
condições objetivas de existência. A natureza aparecia como a extensão objetiva
da subjetividade humana; o trabalhador teria ali uma existência objetiva, indepen-
dentemente do trabalho; cada indivíduo se comportaria consigo mesmo como pro-
prietário, como senhor das condições de sua realidade.
Os homens, em seu processo histórico teriam como pressuposto a natureza
como extensão de sua subjetividade, como corpo inorgânico para sua objetividade.
Conforme Marx, se, por um lado, este pressuposto estiver posto como derivado da
entidade comunal, originada por um processo natural, que a todos agrega e lhes
dá uma identidade, então, todos os seus membros aparecem como copartícipes
da apropriação comum das condições objetivas, aparecem como encarnações da
própria entidade comunal (como no caso da propriedade comunal asiática anti-
ga). Se, por outro lado, o pressuposto deriva não mais da apropriação comunal
das condições objetivas de existência, mas das famílias individuais constituintes
da comunidade, então, cada membro da entidade comunitária comporta-se agora
como indivíduo autônomo, como proprietário privado de suas próprias condições
objetivas de existência. A propriedade comum, a qual antes o absorvia e o domi-
nava, como no caso oriental, diz Marx, é posta agora na forma particular da terra
pública, diferenciada, pois, da terra individual. Assim, segundo Marx, esta forma
privada de apropriação da natureza aparece como o elemento que nega o elemento
comunal da própria comunidade, nega a forma pela qual estavam antes natural-
mente determinadas as relações de apropriação da riqueza social como riqueza
de todos os membros originários da entidade comunal. Na Antiguidade clássica,
esta entidade comunal aparecia na forma desenvolvida da polis grega ou do estado
romano propriamente dito, como entidade representativa dos interesses dos cida-
dãos-proprietários contra o exterior. No caso germânico, segundo Marx, a entidade
comunal estaria apenas pressuposta – e não efetivamente posta, como nos casos
oriental e antigo – na ascendência comum, pois a comunidade enquanto unidade
efetiva não existiria entre estes povos pré-romanos.
Nas formas pré-capitalistas de propriedade (comunas oriental e eslava, bem
como sociedade greco-romana e forma feudal-europeia), porém, segundo Marx,
os indivíduos não se comportam como trabalhadores (no sentido moderno da pa-
lavra, isto é, como homens livres), mas como proprietários – e membros de uma
entidade comunal dada. A terra aparece como o grande laboratório, o arsenal na-
tural que proporciona tanto os meios de trabalho como o material deste mesmo
Marx e a história como separação entre trabalhador e propriedade dos meios... 373
trabalho. A terra proporciona também, diz Marx, a sede, a base da entidade comu-
nitária. A apropriação real através do processo de trabalho, segundo Marx, ocorre-
ria somente sob estes pressupostos, os quais não seriam eles mesmos produtos do
trabalho, mas apareceriam nestas formas pré-burguesas de produção como seus
pressupostos, naturais ou divinos. Conforme Marx, o objetivo do trabalho nestas
diversas formas de comunidade não seria a criação de valor, mas a manutenção
da apropriação das condições objetivas de subsistência e da entidade comunitária
global sob o mesmo princípio fundante. Por isso, originariamente, ser proprietá-
rio significava pertencer a uma tribo, ter relação com as condições objetivas de
existência como algo que lhe pertencia, ter na natureza uma existência subjetiva
e objetiva ao mesmo tempo. Esta propriedade podia ser reduzida ao comporta-
mento do indivíduo frente às condições de produção, mas não do consumo, pois
mesmo ali onde o homem tinha apenas que encontrar e descobrir estas condições
originárias de produção, elas rapidamente requeriam um esforço, trabalho, um de-
senvolvimento de certas capacidades por parte do sujeito. O conceito de proprie-
dade, portanto, conforme Marx, em sua forma originária – sendo aplicável tanto à
forma asiática, eslavo/germânica, antiga e feudal – significa o comportamento do
sujeito que trabalha como produtor ou que produz as condições de sua produção
ou reprodução como algo seu e mediado pela comunidade. Esta propriedade, con-
sequentemente, aparece historicamente na forma de diferentes configurações, em
conformidade com os pressupostos determinados pelo caráter do modo de produ-
ção que representa.
Compreender este movimento geral do processo histórico de formação e
manutenção de relações imutáveis por séculos e até mesmo por milênios entre as
sociedades asiáticas aparecia como de fundamental importância para Marx com-
preender o próprio modo de produção capitalista e sua possível derrocada, pois
estas sociedades formadoras do modo de produção asiático (localizassem-se elas
na Ásia, na Europa ou mesmo na América pré-colombiana), na concepção dele, so-
mente poderiam ser destruídas do exterior, por povos conquistadores, enquanto
que as sociedades fundadas no princípio da luta de classes geravam suas próprias
contradições e sua destruição viria das convulsões de seu interior, imanentes a seu
próprio modo de existência.
Para Marx, o modo de produção capitalista aparece como um modo de pro-
dução historicamente determinado, sendo ele o resultado de um longo processo
de separação da unidade originária entre trabalhador e condições objetivas de
existência; um processo de dissolução das diversas formas pretéritas de unidade
entre homem e natureza. Assim, para Marx, o modo de produção capitalista apa-
rece como a história da separação, sobretudo, do produtor direto da terra como
fundamento da apropriação da riqueza social, bem como arsenal natural das con-
dições originárias de existência. Separação também com relação à propriedade do
instrumento de trabalho em que o trabalhador não aparece ainda como totalmente
despido de propriedade, mas ainda tem a posse deste meio de produção. Sepa-
Uma coisa [...] é clara, a Natureza não produz de um lado possuidores de di-
nheiro e, de outro, meros possuidores das próprias forças de trabalho. Essa
relação não faz parte da história natural nem tampouco é social, comum a
todos os períodos históricos. Ela mesma é evidentemente o resultado de um
desenvolvimento histórico anterior, o produto de muitas revoluções econô-
micas, da decadência de toda uma série de formações mais antigas da produ-
ção social (Marx, 1985, p.140).
Marx e a história como separação entre trabalhador e propriedade dos meios... 375
apenas na Europa Ocidental, desde o final do século XV, porém, com a expansão
comercial e colonial européia, esta contradição havia começado a ampliar-se para
todas as áreas do globo. A América e a Ásia, que, segundo Marx, estariam até então
mais ou menos isoladas e distanciadas desta história contraditória, teriam sido
agora forçadas a abandonar suas velhas formas de relações, tanto sociais quanto
com a natureza, e obrigadas a converter-se em prolongamentos da civilização oci-
dental. A esta ampliação da história da Europa para além de seu continente Marx
teria denominado história universal (Weltgeschichte).
Na Ásia, segundo Marx, o processo de desenvolvimento das forças produti-
vas, apesar de multimilenar, havia transcorrido de forma bem mais lenta que em
relação à Europa ocidental. As sociedades orientais teriam se desenvolvido até cer-
to estágio cultural e não mais evoluído social e economicamente: as forças produti-
vas simplesmente teriam ficado estagnadas ali durante milênios. Esta estagnação,
em parte, se devia ao isolamento natural entre as comunidades aldeãs e, em parte,
ao sistema de castas, característico das sociedades orientais antigas, que teria im-
pedido o livre desenvolvimento das forças produtivas tanto no nível social quanto
no individual. O nexo entre as aldeias se daria por intermédio do Estado despótico
centralizado, que aparecia como organizador do processo produtivo, sobretudo no
que se referia às obras de irrigação artificial dos campos.
Conforme Marx, ainda que originalmente as histórias ocidental e oriental
pareçam ter uma comum-unidade, as sociedades asiáticas, no entanto, teriam pro-
duzido formas de produção radicalmente diferente daquelas formas de produção
desenvolvidas ao longo da história da Europa Ocidental. No Oriente, pois, segundo
Marx, teria se estabelecido um modo de produção em conformidade com as con-
dições sócio-naturais ali encontradas: o modo de produção asiático. A conquista e
submissão da Ásia pelos ocidentais teriam, no entanto, destruído tal modo de pro-
dução e estabelecido lá formas de propriedade e relações de produção conformes
à sociedade burguesa ocidental, integrando, assim, o Oriente ao Ocidente.
Teria sido neste mesmo processo de expansão da civilização européia para
além de si, conforme Marx, que a América teria sido integrada também na história
da luta de classes. De modo geral, o processo colonizador do novo continente teria
seguido os princípios do desenvolvimento econômico da Europa Moderna. Na Amé-
rica, conforme Marx, teriam sido assentados os mesmos princípios da produção/
exploração mercantil existentes na Europa Ocidental, ou seja, a produção e distribui-
ção mercantil voltada para a acumulação originária de capital, ainda que a extração
de mais-valia na América Colonial não tenha seguido os pressupostos de sua forma
clássica. Conforme Marx, durante pelo menos três séculos espanhóis, portugueses,
holandeses, franceses e ingleses teriam disputado, na América, a primazia pela posse
das riquezas naturais ou produzidas já por intermédio da intervenção humana.
Com a consolidação da organização industrial da Europa no século XIX, a
forma burguesa consolida-se como forma predominante em todo o Ocidente e em,
1
No prefácio de sua obra Engels diz estar “executando o testamento de Marx”, pois estaria de posse
dos fichamentos de Marx relativos à obra de Morgan (Cf. MARX, 1988), lida pelo amigo pouco tempo
antes de morrer. No entanto, ao analisarmos o fichamento de Marx sobre Ancient society, de Mor-
gan – e estudei este texto em minha Dissertação de Mestrado (ANTUNES, J., 2003) – percebemos
claramente a não corroboração de Marx em relação às afirmações de Morgan em torno de sua teoria
antropológica da evolução e sobretudo da suposta universalidade das etapas trilhadas por todos os
povos em todos os lugares e temporalidades diversas.
Marx e a história como separação entre trabalhador e propriedade dos meios... 377
do surgimento da família monogâmica burguesa, da apropriação privada da rique-
za e concentrada nas mãos de poucos indivíduos e, sobretudo, da origem do estado
como órgão garantidor e justificador desta apropriação privada e da exploração da
classe proprietária da não-proprietária. Este esquema de Morgan também permite
“naturalizar” a escravidão-mercadoria (como a escravidão greco-romana clássica)
e tornar o modo de produção escravagista, bem como o modo de produção basea-
do na servidão feudal (como desenvolvido na Europa ocidental) como formações
sociais de alcance histórico universal, como se elas tivessem se desenvolvido, tal
qual ocorrido no ocidente, também nas formações sociais asiáticas, africanas, na
América pré-colombiana, etc.
Ao lermos, no entanto, A origem da família, da propriedade privada e do es-
tado percebemos o esquecimento (im)posto por Engels ao não enquadrar aqueles
povos que não haviam desenvolvido relações de apropriação privada da riqueza
em larga escala na categoria de modo de produção asiático, desenvolvida por ele
conjuntamente com Marx décadas antes, como descrito acima, acarretando assim
uma nova compreensão da história, a qual “equaliza” todas as sociedades como
sendo potencialmente capazes de desenvolver as contradições da luta de classes a
partir de si próprias, como de certo modo teria ocorrido no devir histórico euro-
peu clássico. É como se cada comunidade primitiva possuísse desde sempre, como
finalidade interna a si, a criação da sociedade burguesa e sua superação inevitável,
a sociedade comunista.
Pensamos, porém que esta interpretação posta por Engels em A origem da
família, da propriedade privada e do estado não teria certamente maiores conse-
quências não fosse o destino notório e ao mesmo tempo trágico ao qual estava
reservada a enorme inflexão teórica ali posta, com consequências profundas na
interpretação marxista da história ao longo do século XX. Afirmamos isto porque,
contra a vontade de Engels, obviamente, sua “nova” tese, emprestada da Antropo-
logia Evolucionista, tornou-se a base para toda a dogmatização da teoria marxista
pelo stalinismo.
Afirmamos isto porque percebemos que a reinterpretação (ou inflexão teóri-
ca, como sugerimos aqui) posta por Engels em A origem da família, da propriedade
privada e do estado sobre a compreensão da história marxista abriu um campo
novo e sobretudo “fértil” para Stalin e sua trupe apresentarem uma nova leitura em
torno da perspectiva marxista da história mundial.2 O intuito desta nova interpre-
tação era utilizá-la para justificar a política do estado soviético nos países orientais
e africanos, bem como na conduta das ações dos PCs ocidentais. A fonte desta nova
perspectiva é claramente a obra de Engels supracitada, pois, como dissemos, a te-
oria engelsiana “justifica” a passagem de um modo de produção a outro como um
movimento progressivo, linear, necessário, universal e interno (endógeno) a todas
2
Cf. Benoit, A luta de classes como fundamento da história, onde ele mostra bem como o Stalin baseia
seu famoso texto Sobre o materialismo histórico e o materialismo dialético, de 1938, em A origem da
família, da propriedade privada e do estado, de Engels (BENOIT, 1998, p.50).
Marx e a história como separação entre trabalhador e propriedade dos meios... 379
superada há muito. Esta história que completou há muito, em sua sede originária,
a separação entre homem e condições objetivas de existência, contém em seu fun-
damento o capital como o elemento patrocinador desta separação.
Contraditoriamente, como bem percebido por Marx, esta mesma sociedade
que aparece como a forma mais alta e mais bem acabada da história da luta de clas-
ses, contém também em seu ventre a possibilidade de sua derrocada por um elemen-
to produzido por suas próprias entranhas, por aqueles elementos que no passado
haviam sido expropriados e negados em seu direito de propriedade, por um elemen-
to que poderia, então, vir agora a expropriar e negar os antigos expropriadores.
Referências
MARX, K. O Capital: Crítica da Economia Política. Dois Volumes. Coleção Os Economistas.
Trad. Regis Barbosa e Flávio R. Kothe. São Paulo: Nova Cultural, 1985.
_____. Grundrisse: Elementos fundamentales para la critica de la economia politica. (Borra-
dor) 1857-1858. Volume I. Buenos Aires: Siglo XXI, 1971.
_____. Grundrisse der Kritik der politischen Ökonomie. MEW. Band 42. Berlin: Dietz Verlag
(em especial a parte intitulada Formen, die der kapitalistischen Produktion vorhergehn –
S.383-421), 1983.
_____. Los apuntes etnologicos de Karl Marx. Madrid. Ed. Siglo Veintiuno. (editado por Law-
rence Krader), 1998.
MARX, K. & ENGELS, F. O manifesto do partido comunista. In: Marx & Engels, Obras Escolhi-
das. Vol. 1. Rio de Janero: Editora Vitória, 1963.
____. A ideologia alemã. São Paulo: Editora Moraes, 1984.
BENOIT, H. (1998). “A luta de classes como fundamento da história”. In: TOLEDO, C. N de.
(Org.). Ensaios sobre o Manifesto comunista. Campinas: Xamã/Editora da Unicamp. pp. 45-69.
ANTUNES. J. (2003). Marx e o último Engels: o modo de produção asiático. 159 f. Disserta-
ção (Mestrado em Filosofia)-Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP. (Referência:
An 89m). Campinas, 2003.
Resumo
A busca de um fundamento para o direito que se afirme acima das arbitrarie-
dades humanas, sendo evocado na proteção da dignidade da pessoa humana
tem sido uma constante ao longo da história. Não obstante, nem sempre os
pensadores estiveram de acordo entre si sobre a questão. Inicialmente defen-
dia-se o Direito Natural como fundamento do sistema jurídico, mas tal ideia
foi contestada na modernidade pelos pensadores juspositivistas, contudo tal
critica mostrou-se limitada uma vez que estes se referiam apenas à concep-
ção jusnaturalista moderna. Os juspositivistas não levaram em consideração
o jusnaturalismo clássico, especialmente, o de Tomás de Aquino que a nosso
ver pode trazer a uma compreensão pertinente e atual acerca da temática do
Direito Natural.
palavras-chave: Direito Natural; Direito Positivo; Razão Prática; Tomás de
Aquino. John Finnis
Introdução
O
presente trabalho de pesquisa pretende demonstrar a atualidade e a per-
tinência do jusnaturalismo tomista na contemporaneidade, tendo como
referência a obra de John Finnis, importante pensador jusnaturalista con-
temporâneo cuja fundamentação teórico-reflexiva encontra-se respaldada no pen-
samento de Tomás de Aquino.
De acordo com John Finnis, o Direito Natural foi mal compreendido e distor-
cido pelos juspositivistas por focarem a atenção apenas sobre a questão da valida-
de jurídica como fundamentação do direito. Na perspectiva do positivismo jurídi-
não menos entre aquele filósofos que veem oferecendo uma resposta amplamente sadia ao ceticismo
radical acerca do valor e da obrigação. Uma resposta que é mais verdadeira e mais humana do que a
de Kant, Bentham ou seu (no sentido mais amplo) sucessores”
2
“Em matéria de direito natural, são Tomás costuma seguir, portanto, o sistema aristotélico [...] em
termos gerais, escolhe, no tocante ao direito natural, o esquema de Aristóteles, e podemos adotar
para ambas as doutrinas a mesma ordem de exposição” (VILLEY, 2005, 140).
Uma sólida teoria do direito natural é uma teoria que explicitamente [interes-
sa-se pela prática] a fim de distinguir o que não é razoável na prática do que
é razoável na prática e, assim, diferenciar o que realmente é importante da-
quilo que não é importante ou é importante apenas por sua oposição ao que é
realmente importante ou por sua aplicação desarrazoada do que é realmente
importante (FINNIS, 2006, 30-31).
De acordo com Finnis (2006, p. 44), a reflexão tomista sobre a razão teóri-
ca e razão prática refuta a ideia de que os fundamentos do Direito Natural se en-
quadrem numa perspectiva idealista: por que o “bem e mal” não derivam de uma
metafísica ou de fatores empíricos a serem aplicados na moral, mas dos primeiros
princípios. Ainda segundo Finnis:
[...] quanto aos primeiros princípios da lei da natureza, a lei da natureza é to-
talmente imutável. Quanto, porém, aos preceitos segundos, que dizemos ser
como que conclusões próprias próximas dos primeiros princípios, assim a lei
natural não muda sem que na maioria das vezes seja sempre reto o que a lei
natural contém. Pode, contudo, mudar em algo particular, e em poucos casos,
em razão de algumas causas especiais que impedem a observância de tais
preceitos [...] (S. T, I- II, q. 94, art. 5)
5
O Direito assim posto seria perfeito, uma vez que foi estabelecido por Deus e o Direito Positivo seria
imperfeito já que seria um produto da ação do homem que é imperfeito (KELSEN, 1998, p. 72-76).
6
Tendo como premissa os dados da natureza não se pode concluir, com certeza, o fato de que alguma
coisa seja, ou que ela deva ser ou deva ser feita. “Não existe nenhuma inferência lógica partir do “é”
para o “dever-ser”, da realidade natural, para o valor moral ou jurídico (KELSEN, 1998, 80). uma dou-
trina que pretende deduzir o direito natural, isto é, o direito justo da natureza do homem, não pode
ver esta ‘natureza, em todos os possíveis impulsos; é evidente que ela tem de fazer, e efetivamente
faz, uma distinção entre os impulsos que se apresentam na realidade fatual: entre os impulsos sobre
os quais se pode fundar uma norma que prescreva uma conduta conforme como os mesmos e aque-
les sobre os quais não pode ser fundada uma tal norma – quer dizem entre impulsos que devem ser
seguidos e impulsos que não devem ser seguidos, entre impulsos bons e maus (KELSEN, 1998, p 81).
Portanto, concepção do que certo e do que é errado, do que é injusto e injusto não é objetivo, depende
muito das convicções pessoais de cada um
É inegável o valor das leis positivas para que a sociedade seja virtuosa, mas
é também inegável um ordenamento jurídico puramente formalista onde somente
as leis e normas são os critérios de discernimento para as decisões jurídicas. O
objetivo das leis é a preservação do bem comum e a promoção das virtudes huma-
nas que lhes são favoráveis (ST, q.96, art. 1-3, FINNIS, 2007, p 72). O bem comum
é o bem, não é o bem de uma classe, de um grupo A ou B, de país A ou B, mas efe-
tivamente o bem de todos, o bem da comunidade política (comunidade política
genericamente ou bem público). Temos aqui a ideia de uma comunidade política
internacional iniciada por Tomás de Aquino e posteriormente desenvolvida por
seus seguidores no século XVI, trazendo as ideia de um bem comum universal, que
envolve todos os seres humanos (FINNIS, 2007, p. 61).
O Estado é o responsável por criar as leis e aplicá-las, como também tem o
poder de força para impô-las à sociedade por meio da coerção e da aplicação de
7
ST, I-II, q. 96 art. 5, Tomás admite não só coercitividade da lei, mas também a punição daqueles que
a violam perturbando a harmonia da convivência social e neste caso a pena seria o meio da efetivação
justiça (ST I-II, q.95, art.)
O Direito Natural tem sido reivindicado sempre que uma lei humana se faz
arbitrária. Apesar de suas variadas versões, muitas vezes divergentes entre si, ao
longo da história, mas sempre se apresentou como um critério limitador das ar-
bitrariedades contra os mais fundamental da pessoa humana. No tribunal de Nu-
remberg em 1945, os criminosos de guerra alemães tiveram que ser julgados por
um tribunal internacional. A legitimidade moral de tal instância julgadora se deu
a partir da evocação dos princípios do Direito Natural e seus princípios bastante
concretos e evidentes por si mesmo: o bem humano, que se impõe como critério
da razão prática. Os criminosos foram acusados de “crime contra a humanidade,
crime contra o bem humano (FINNIS, 2007, 105).
O Direito Positivo, tomado na sua perspectiva puramente formal, é reducio-
nista e bastante prejudicial e perigoso, não servindo à sua missão maior de estabe-
lecer a harmonia social e pacífica entre os homens, uma vez que não leva em consi-
deração a complexidade das relações humanas e seus conflitos, a realidade jurídica
fica restrita puramente à norma. O Direito Positivo sozinho é insuficiente para dar
conta da complexa realidade da convivência entre os homens, são os próprios Po-
sitivistas que constatam isso (MOREJO, 2004). O direito é uma instituição social, e
como tal precisa de uma metodologia apropriada capaz de compreender o que real-
mente é bom para as pessoas, fazendo valer aqui a necessidade da razão prática, já
que a razão puramente teórica fica presa as suas próprias valorações, tornando-se
insuficiente para tratar da multiplicidade das ações e práticas humanas existentes.
O direito não consiste apenas em regras, envolve disputas e decisões cujas normas
não respondem dada a complexidade em questão (FINNIS, 2006, 21). A decisão ju-
rídica, portanto, não se reduz a evocação e aplicação das normas jurídicas, mas en-
volve também aspectos de fora do direito como a questão da moral, e aqui o Direito
Natural pode oferecer os critérios de discernimento e grande é a contribuição de
Tomás de Aquino, quando nos faz recordar a questão da razão prática como elemen-
to orientador das ações humanas, em vista de seu fim último.
Conclusão
O Direito Natural, apesar das críticas e da sua rejeição nos meios jurídicos
ainda é pertinente para os nossos dias, capaz de ser evocado contra as arbitrarie-
referências
ALVAREZ, Alejandro B. Teses básicas do Juspositivismo e suas críticas ao Jus naturalismo.
Lex Humana, n. 2 dez. 2009. Disponível em http://www.ucp.br/html/joomlaBR/lexhuma-
na/lexhumana.htm. Acesso 22 jul 2012.
BITTAR, E.; ALMEIDA, G. A. Curso de Filosofia do Direito. 6 ed. São Paulo: Atlas, 2008.
BOBBIO, Sulla rinascita del giusnatutalismo. Centro de Estudios Filosóficos. Symposio so-
bre Derecho Natural y Axiologia. XIII Congreso Internacional de Filosofia - UNAM, Mexico,
1963, p. 49-63.
BUNNIN, N; TSUI-JAMES, E.P. et alli. Compêndio de Filosofia. 2.ed. São Paulo: Loyola, 2007.
CIANCIARDO, J. Modernidad Jurídica y “falácia naturalista”. Dikaion, Colombia, v.18, n. 013,
p. 27-42, 2004.
COSTA, J.S. Tomás de Aquino. In: BARRRETO, V.P. Dicionário de Filosofia do Direito (org.).
São Leopoldo/Rio de Janeiro: Unisinos/Renovar, 2006, pp. 824-226.
A
imparcialidade é uma exigência indispensável para concepções de justiça
independentemente de seus objetivos específicos porque diz respeito às
suas condições de aceitação por parte daqueles a quem ela é dirigida. Por
outro lado, ela é também o critério ao qual diferentes reivindicações de vantagens
(direitos e bens sociais) se submetem como teste de validade. Considerando então
que a imparcialidade é o ponto de partida para uma teoria da justiça, problemati-
zá-la é uma boa maneira de enquadrar as diferenças entre as concepções apresen-
tadas por John Rawls e Amartya Sen.
ingressam não com árbitros, mas como pessoas cuja leitura e avaliação nos
ajudam a alcançar uma compreensão menos parcial da ética e da justiça de
um problema, em comparação com a limitação da atenção apenas às vozes
daqueles que estão diretamente envolvidos (SEN, 2009, p. 162)
Essa opção teórica, embora coerente com as pretensões que Rawls coloca
para a justiça como equidade, enfrenta problemas no enfrentamento de questões
de justiça do mundo de hoje. Dentre elas estão os desafios da justiça global, desa-
fios envolvendo etnias, gêneros e culturas vínculos além de uma dada sociedade.
Então, considerando a comparação entre os dois modelos de imparcialidade,
Sen resume suas objeções à “imparcialidade fechada” de Rawls apontando três limi-
tações desse modelo. São elas: 1) “Paroquialismo procedimental”; 2) “Incoerência na
inclusão” e; 3) “Negligência da exclusão” (SEN, 2002; 2006; 2010, 2011). Por razões
de tempo abordarei somente a primeira crítica e, de modo mais breve, a terceira.
Por paroquialismo procedimental, Sen entende a incapacidade que a aborda-
gem do contrato social (no caso, a P.O. de Rawls) possui em eliminar os preconcei-
tos e valores particulares do grupo que delibera acerca dos princípios. Nos termos
de Sen, a Posição Original de Rawls é bem sucedida em “eliminar a influência dos
interesses pelo próprio benefício e as inclinações pessoais dos diversos indivíduos
dentro do grupo focal” (SEN, 2011, p. 156). Não obstante, por se abster de invocar
a avaliação pelos “olhos do resto da unanimidade”, a abordagem não consegue eli-
minar os preconceitos e inclinações do próprio grupo focal. Essa tarefa não seria
satisfeita pelo “véu de ignorância” como artifício que encobre apenas as identida-
des das partes envolvidas na decisão dos dois princípios.
Essa crítica não implica na acusação de que Rawls seja paroquialista, e não
consiste disso. Sen reconhece propósitos universalistas na concepção de justiça de
Rawls. O problema surge quando Rawls sustenta que “nossos princípios e convic-
ções morais são objetivos na medida em que tenham sido alcançados e testados
através da pressuposição de [um] ponto de vista geral” (SEN, 2011, p.157). Segun-
do Sen, essa pretensão por objetividade é atendida de modo apenas parcial quando
seu ponto de partida é “a posição original territorialmente isolada”. Desse modo, a
concepção recebe o adjetivo ‘paroquial’ porque fica aquém de suas pretensões uni-
versalistas, pois não oferece o devido tratamento teórico dos “valores locais, que
podem, através de um exame minucioso adicional, revelar preconceitos e vieses
que são comuns em um grupo focal” (SEN, 2011, p. 158; 2002, p. 447).
A segunda crítica, a incoerência na inclusão, afirma que no exercício da im-
parcialidade fechada as “decisões tomadas por qualquer grupo focal alteram o ta-
manho e a composição do próprio grupo focal” (SEN, 2002, p. 449). Frente a isso,
segundo Sen, o modelo contratual poderia adotar um ponto fixo de x membros, mas
mesmo isso não impede que as regulamentações prescritas pelo grupo negociador
fixo (de x membros) se tornem incoerentes com o tamanho e composição do grupo
afetado, que no modelo contratual também é identificado com o grupo negociador.
Conclusão
Acredita-se ter demonstrado que a concepção de justiça rawlsiana oferece
boas respostas às três objeções feitas recentemente por Sen no que diz respeito à
sua concepção de imparcialidade. Ainda assim, há muitas outras críticas pertinen-
tes levantadas pelo filósofo-economista com respeito ao que se deve esperar de
uma teoria da justiça, como as expectativas de justiça dos concernidos devem ser
levadas em conta e como uma concepção de justiça deve encarar as diferentes es-
colhas distributivas que se apresentam na realidade política. Embora este espaço
seja insuficiente para tal incumbência, admite-se que as respostas a essas questões
contribuem para a compreensão da justiça e do que ela pode fazer pelas pessoas.
Referências
FRASER, Nancy. Reframing Justice in a Globalizing World, In: Reimagining Political Space in
a Globalizing World. Cambridge: Polity Press, 2008, p 12-29.
RAWLS, John. Justice as Fairness: Political not Metaphysical, In: Philosophy & Public Affairs,
Vol. 14, No. 3 (Summer, 1985), pp. 223-251.
________. O liberalismo Político. Trad. Álvaro de Vita. Ed. Ampliada. São Paulo: Martins Fontes,
2011.
SEN, Amartya K. Open and Closed Impartiality, In: The Journal of Philosophy, Vol. 99, No. 9
(Sep., 2002), pp. 445-469.
________. Normative evaluation and legal analogues, in: DROBAK, John N. (ed.). Norms and
the law. Cambridge: Cambridge University Press, 2006.
________. Adam Smith and the contemporary world, In: Erasmus Journal for Philosophy and
Economics, Volume 3, Issue 1, Spring 2010, pp. 50-67.
________. A Ideia de Justiça. Trad. Denise Bottmann e Ricardo Doninelli Mendes. Rio de Janei-
ro: Companhia das letras, 2011, cap. 17, pag. 397.
Considerações iniciais
O
tema da fundação, trabalhado por Hannah Arendt à luz dos acontecimentos
das Revoluções Francesa e Americana, constitui-se como um tema crucial e
de aspectos relevantes. Trata-se de um tema, que, por um lado, nos coloca
diante do problema do novo; por outro, traz à tona a necessidade de recorrer ao
passado. O nosso propósito é examinar a relevância que o tema da fundação de
Roma teve no processo de criação da República Americana.
1
Um traço relevante da raiz do espírito romano, que Hannah Arendt (1990) enfatiza, encontra-se na
expressão “Pais Fundadores.” Segundo a autora, a utilização dessa expressão pode parecer à primeira
vista um tipo de arrogância. Interpretar a expressão “Pais Fundadores” constitui-se em uma tarefa
muito simples. “Eles se consideraram fundadores porque se dispuseram, conscientemente, a imitar e
a reproduzir o exemplo e o espírito romanos” (p. 163).
2
A relevância de Roma para as fundações na modernidade constitui-se como algo com a capacidade
de encher o deserto político que antes existia. Sylvie Courtine-Denamy (2004) confirma isso, dizen-
do: “É ao povo romano, o povo político por excelência – cujo gênio na legislação e na fundação serão
celebrados pela autora em A Condição Humana – que devemos o nascimento do mundo. Foram os
romanos, ‘povo gêmeo dos gregos, que, politicamente falando, deram nascimento ao mundo: ‘exis-
tem inúmeras civilizações extremamente ricas e grandes antes dos romanos, mas apenas um deserto
através do qual, no melhor dos casos, estabeleciam-se laços como fios tênues, como atalhos numa
paisagem inabitada e que, e no pior dos casos, degenerava em guerras de extermínio que arruinavam
o mundo existente’. O aparecimento do político é, portanto, a garantia da constituição do mundo por
oposição ao deserto antes existente” (p. 105).
3
Quanto ao interesse dos colonos pela literatura política da Antiguidade romana clássica, salienta
Bernard Bailyn (2004): “O que prendia suas mentes, o que conheciam com detalhes, e o que formava
sua visão de conjunto do mundo antigo era a história política de Roma desde as conquistas no Oriente
e as guerras civis, no início do primeiro século a.C. até o estabelecimento do Império sobre as ruínas
da República, no final do segundo século d.C. Para o conhecimento desse período eles tinham em
mãos, e precisavam apenas de Plutarco, Lívio e, sobretudo, Cícero, Salústio e Tácito – escritores que
viveram ou quando a República estava ameaçada em seus fundamentos ou quando seus grandes dias
já haviam passado e suas virtudes morais e políticas decaído. Eles haviam odiado e temido as tendên-
cias de seu próprio tempo, e em sua escrita haviam contrastado o presente com um passado melhor,
que eles dotavam de qualidades ausentes de sua própria era corrupta. O passado longínquo fora re-
pleto de virtude: simplicidade, patriotismo, integridade, amor à justiça e à liberdade, o presente era
venal, cínico e opressivo” (p. 43-44).
Considerações finais
Em nossa démarche argumentativa, constatamos que, para Hannah Arendt,
mesmo que o processo de fundação de um corpo político se apresente como algo
inteiramente novo e sem qualquer precedente na História, ele se faz amparando-se
em fundações passadas. Os elementos inerentes ao processo da fundação da cida-
de de Roma são apresentados por Hannah Arendt por meio de diretrizes que foram
capazes de nortear a fundação dos Estados Unidos da América.
O homem, ao fundar novas realidades políticas, apresenta ao mundo a no-
vidade que lhe é inerente pelo fato de ele um dia ter vindo a este mundo. Esse
segundo nascimento do homem o lança no abismo da liberdade, alimentado pela
sua vocação de iniciador.
É por meio da articulação entre fundação e preservação que as Revoluções
conseguem enraizar a fundação no tempo. No caso da Revolução Americana, nota-
-se que é tarefa de uma Constituição tornar possível que as instituições que surgi-
ram na História como uma inovação se perpetuem no tempo.
Jovino Pizzi* *
Universidade Federal de
Pelotas (PPGs em Educa-
ção e em Filosofia),
N
as últimas décadas, a filosofia sofreu transformações significativas: trata-
-se dos giros analítico, linguístico, epistemológico, ético e, se quisermos,
podemos acrescentar também o giro aplicado. Todos eles estão relacio-
nados, de uma forma ou de outra, ao abandono da filosofia da consciência. Sem
adentrar nessa discussão, eu apenas gostaria de salientar, como ponto de partida,
algumas mudanças que o ethical turn introduziu. Isso evidencia que a orientação
do agir não se resume à resolução de conflitos entre seres humanos, mas de uma
pragmática vinculada a políticas deliberativas envolvendo também os seres não
humanos. Essa transformação indica que as normas válidas para todos não é fruto
da reflexão individual, nem se restringem ao aspecto antropocêntrico. Em razão
disso, a ética não pode reduzir-se ao âmbito privado ou ao horizonte familiar, mui-
to menos ao fato de garantir ao sujeito (individual) as aspirações de suas inclina-
ções, mas em um dever moral. Trata-se, portanto, de compromissos entre todos,
com áreas especiais como a economia, as empresas, a ecologia etc. e, inclusive, na
redefinição das relações com a natureza, o meio ambiente e o cosmos.
Referências
BECK, Ulrich. Un nuevo mundo feliz. La precariedad del trabajo en la era de la globalización.
Barcelona; Buenos Aires; México: Paidós, 2000.
DEMENCHONOK, Edward. Introduction. In: DEMENCHONOK, Edward (Ed.). Between Glob-
al Violence and the Ethics of Peace: Philosophical Perspectives. Malden and Oxford: John Wily
& Sons Ltd, 2009.
DOMINGUES, I. O grau zero do conhecimento. O problema da fundamentação das ciências
humanas. Loyola: São Paulo, 1991.
FORNET-BETANCOURT, R. (Hrsg.). Dokumentation des XIV. Internationalen Seminars des
Dialogprogramms Nord-Süd. Verlagsgruppe Mainz: Aachen, 2010, p. 193-201.
Grüner, Eduardo. La oscuridad y las luces. Capitalismo, cultura y revolución. Buenos Aires:
Adhasa, 2010.
HABERMAS, J. Teoría de la acción comunicativa. Madrid: Taurus, 1988.
HABERMAS, J. Teoría de la acción comunicativa. Complementos y estudios previos, Madrid:
Taurus, 1989.
MERLEAU-PONTY, M. O olho e o espírito. In: Coleção Os Pensadores. 2 ed., São Paulo: Abril
Cultural, 1984, p. 85-111.
MERLEAU-PONTY, M. Sobre a fenomenologia da linguagem. In: Coleção Os Pensadores. 2
ed., São Paulo: Abril Cultural, 1984, p. 129-140.
PLATÓN. Obras completas. Aguilar: Madrid, 1972.
SCHIMITT, Jean-Claude. “Corpo e alma”. In: LE GOFF, J. & SCHMITT, J.-C. Dicionário temático
do Ocidente Medieval. Bauru: EDUSC, 2006 (dois volumes).
TAYLOR, Ch. Uma era secular. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2010.
GT Filosofia e Direito
Resumo
O trabalho investiga os conceitos de direito e violência em Hannah Arendt e
Walter Benjamin, especialmente em suas obras Sobre a violência e Crítica da
violência, buscando encontrar semelhanças e diferenças nas definições dos
conceitos nos pensamentos destes filósofos. A hipótese de pesquisa parte da
pressuposição de que os conceitos de direito e violência em Hannah Arendt
são muito diferentes, enquanto que por outro lado, os conceitos de direito e
violência em Walter Benjamin parecem ser o mesmo.
Palavras-chave: Direito – violência – filosofia.
“A prática da violência, como toda ação, muda o mundo, mas a mudança mais
provável é para um mundo mais violento.” (Arendt, 2011, p. 101)
“Um dia passado nas favelas de qualquer grande cidade teria sido suficiente.”
(Arendt, 2011, p. 77)
Introdução
O
objetivo deste trabalho é analisar os conceitos de direito e violência no
pensamento de Hannah Arendt e Walter Benjamin. Pretende-se compreen-
der, principalmente, as semelhanças e diferenças destas conceituações, em
especial nas obras Sobre a violência e Crítica da Violência, de H. Arendt e W. Benja-
min, respectivamente. Para tanto, os pensamentos destes filósofos e suas concei-
tuações são analisadas em um diálogo com outros pensadores e comentadores de
suas obras dentro de um contexto internacional e suas repercussões no tratamento
do tema, por autores atuais da filosofia brasileira e internacional.
“Não há dúvida de que é possível criar condições sob as quais os homens são
desumanizados – tais como os campos de concentração, a tortura, a fome -,
mas isso não significa que eles se tornem semelhantes a animais; e sob tais
condições, o mais claro indício da desumanização não são a raiva e a violên-
cia, mas a sua ausência conspícua.” (Arendt, 2011, p. 81)
Para Hannah Arendt, agimos com raiva quando nosso senso de justiça é ofen-
dido em certas circunstâncias; a violência, isto é, o agir sem argumentar, sem o
discurso ou sem contar com as consequências, é o único modo de reequilibrar as
balanças da justiça. O recurso à violência diante de acontecimentos e condições
ultrajantes é sempre uma experiência tentadora em razão de sua inerência imedia-
tista e sua prontidão. A urgência de uma ação deliberada, segundo Hannah Aren-
dt, é contrária à natureza da violência, porém não é isso que a torna irracional.
Ao contrário, tanto a vida privada como a vida pública possuem exemplos que a
Seja como for, Hannah Arendt diz desconhecer algum corpo político que fora
fundado diante da igualdade da morte e realizado na prática da violência. Porém,
ela afirma que fortes sentimentos de fraternidade originados pela violência coleti-
va já desencaminharam muitas pessoas boas pela esperança de, a partir dela, sur-
girem uma nova comunidade política e um homem novo.
No pensamento de Hannah Arendt, a compreensão de poder e violência em
termos biológicos pela tradição organicista ocidental é o que há de mais teorica-
mente perigoso. Da mesma forma que estes termos são interpretados atualmente
com fundamento na vida e sua criatividade, a violência é justificada com funda-
mento na criatividade. As metáforas orgânicas que atravessam as discussões con-
temporâneas sobre poder e violência, de forma especial sobre os tumultos, como
a noção de uma “sociedade enferma” na qual os tumultos são os sintomas, todavia,
só podem promover ainda mais a violência. Assim, de acordo com o pensamento
de Hannah Arendt, a discussão entre aqueles que propõem meios violentos para a
restauração da “lei e ordem” e aqueles que propõem reformas não violentas soam
como um debate entre médicos que discutem as condições de uma intervenção
cirúrgica ou um tratamento clínico de um paciente. Nesse sentido, quanto mais
doente estiver o paciente, maior é a chance de o cirurgião estar com a razão.
Hannah Arendt também lembra que, a partir do momento em que se começa
a falar de violência e poder em termos não políticos, mas biológicos, os exaltado-
res da violência podem fazer apelação ao fato de que na natureza, criar e destruir
são partes do processo natural, onde a ação de violência coletiva possa parecer tão
natural como condição de vida em sociedade da humanidade, quanto à luta para so-
breviver e “a morte violenta para continuação da vida animal.” (Arendt, 2011, p. 95)
Para Hannah Arendt, a violência, tendo natureza instrumental é racional na
medida em que se torna eficiente em atingir o fim que deve ser justificada. E, con-
siderando que quando em ação não se sabe ao certo quais as consequências ao
final serão alcançadas, a violência só terá aparência de racionalidade se objetivada
em curto prazo. A violência não propõe causas, não propõe a história e tão pouco
a revolução, muito menos o progresso ou o retrocesso, porém, pode servir para a
dramatização de reclamações e levá-las a público.
O perigo da violência, mesmo quando é movida dentro de uma consciente
margem de estrutura e objetivos de curto prazo de caráter não extremo será sem-
pre aquele que os meios se sobrepõem aos fins.
Assim sendo, para Hannah Arendt, nem o poder nem a violência são fenô-
menos naturais, ou seja, “uma manifestação do processo vital”. (Arendt, 2011, p.
103) O poder e a violência pertencem ao espaço político que envolve os negócios
humanos, a qual a característica de essência humana está garantida pela faculdade
do ser humano de ação, a propensão a iniciar algo novo.
Silvia Gombi Borges dos Santos em sua obra Em busca de um lugar no mun-
do: o conceito de violência em Hannah Arendt, em um capítulo dedicado à distinção
arendtiana entre violência e poder ressalta o reconhecimento de Hannah Arendt
que, embora a violência tenha exercido um papel muito importante na história e
na política humana, os estudiosos tenham lhe dedicado pouca atenção, enquanto
objeto de investigação teórica (Santos, 2011, 1). No capítulo referido, Silvia Gom-
bi Borges dos Santos sustenta a hipótese de distinção entre violência e poder no
pensamento de Hannah Arendt:
De acordo com Silvia Maria Gombi Borges dos Santos, Hannah Arendt recusa
a ideia de que existe no ser humano um instinto inato de dominação e agressivi-
dade, bem como a ideia de que existem de modo natural pessoas mais dispostas à
obediência e outras com disposição maior a mandar. Segundo Silvia Gombi, Arendt
busca fundamento para sua posição no pensamento da Antiguidade clássica greco-
-romana, principalmente no que se refere às concepções de lei e direito. Para Silvia
Gombi, a tese sustentada por Hannah Arendt é a de que:
Por sua vez, André Duarte, em seu ensaio crítico Poder e violência no pensa-
mento político de Hannah Arendt: uma reconsideração, inicialmente observa que a
obra de Hannah Arendt, Sobre a violência:
“Seu argumento [de Hannah Arendt] é que toda civilização está assentada
sobre uma estrutura de estabilidade que proporciona o cenário para o fluxo
de mudança. As leis e o direito circunscrevem cada novo começo trazido ao
mundo por meio da ação, devendo assegurar um espaço de liberdade e movi-
mento ao mesmo tempo em que impõe limites à criatividade humana. Assim,
os limites das leis positivas constituem a garantia de um mundo comum capaz
de durar para além da fugaz duração individual de cada geração, absorvendo
e alimentado a possibilidade de novidade.” (Duarte, 2011, 146)
Bibliografia secundária:
AGAMBEN, G. Homo sacer. Il potere sovrano e la nuda vita. Torino: Einaudi, 1995.
__________. Homo sacer: Sovereign power and bare life. Stanford: Stanford University Press,
1998.
__________. Homo sacer: O poder soberano e a vida nua. Belo Horizonte: UFMG, 2002.
Resumo
Hans Jonas (1903-1993), autor de O Princípio Responsabilidade (1979), nessa
obra, que o tornou mundialmente conhecido, tem muito a nos ensinar com
sua “ética para civilização tecnológica”. De fato, cabe a Jonas o mérito de ser
um dos pioneiros a propor uma reflexão ética no âmbito da técnica moderna.
Grande prova desse esforço é seu trabalho posterior, Técnica, Medicina e Éti-
ca, publicado em alemão em 1985, reunindo vários ensaios sobre questões
de ética prática no âmbito das ciências médicas, notadamente no campo das
pesquisas envolvendo seres humanos, abordando temas candentes como a
responsabilidade médica, a aplicação de novas biotecnologias - entre as quais
a clonagem e a eugenia - e, ainda, questões altamente polêmicas como o con-
ceito de morte cerebral e sua relação com os transplantes de órgãos e a euta-
násia. Boa parte de sua reflexão anterior já fora dedicada à técnica. Trata-se,
portanto, de apontar os textos em que ele discute o tema, verificar sua pro-
ximidade e distanciamento com a visão heideggeriana sobre a técnica para
avaliar o que a concepção jonasiana tem de original.
Palavras-chave: Hans Jonas, Martin Heidegger, técnica, ética.
Introdução
E
m outras diferentes ocasiões, tive a oportunidade de abordar o tema da téc-
nica no pensamento e obra do filósofo alemão. A primeira delas, no II Co-
lóquio Internacional Hans Jonas, realizado pela PUCPR em agosto de 2011,
onde questionei se Jonas responsabilizaria a técnica moderna pela atual crise am-
biental. A segunda, numa palestra oferecida na UTFPR, em março de 2012, fiz uma
exposição geral sobre o que poderia ser identificado como a filosofia da técnica
A técnica em Hans Jonas como objeto da reflexão filosófica e da preocupação ética 455
jonasiana. Ainda num terceiro momento, numa conferência proferida na Semana
Filosófica realizada pelos alunos do ISTA, em BH, em maio de 2012, propus um
“diálogo” entre Jonas e seu mestre Martin Heidegger sobre o tema da técnica. Além
disso, no presente semestre, estou lecionando uma disciplina no Curso de Especia-
lização em Filosofia na UFMG, intitulada “Ética e técnica em Hans Jonas”.
Considero, portanto, essa ocasião como uma possibilidade de iniciar uma
tentativa de “amarrar” os aspectos mais importantes discutidos nos momentos
anteriores, visando responder a uma questão oportunamente levantada: se Jonas
teria se inspirado na visão sobre a técnica de Heidegger e, na medida do possível,
esboçar a concepção jonasiana, identificando a posição defendida e o modo pelo
qual é introduzido esse relevante tema no interior de seu pensamento e sua obra
como um todo.
Para alcançar tais fins, a exposição está dividida em três diferentes momentos,
cujos respectivos objetivos seriam: 1. Apontar as obras em que Jonas discute pri-
vilegiadamente o tema da técnica; 2. Mostrar até que ponto Jonas se aproxima e se
distancia da reflexão de Heidegger sobre a técnica e 3 Discutir a relevância e espe-
cificidade do tema da técnica no interior de seu pensamento e de sua obra.
456
Lilian Simone Godoy Fonseca
Já os textos “Technology and responsibility: Reflections on the New Tasks of
Ethics” (1973) (PhE) e “Technology as a Subject for Ethics” (1982) (TME) têm em
comum o fato de abordarem a técnica moderna visando explicitar suas implicações
para a reflexão ética, num diálogo direto com o seu livro maior o Princípio Respon-
sabilidade (1979).
A seguir, no segundo momento, buscaremos mostrar...
1
A importante entrevista concedida a Der Spiegel, só foi publicada, seguindo o desejo manifestado
pelo filósofo, ao concedê-la, de que aparecesse postumamente. Ela foi realizada em 23 de Setembro
de 1966, na casa de Heidegger em Freiburg e no seu refúgio em Todtnauberg, foi conduzida pelo dire-
tor e editor de Der Spiegel, Rudolf Augstein, em presença de George Wolff e H. W. Petzet.
A técnica em Hans Jonas como objeto da reflexão filosófica e da preocupação ética 457
1. A diferença entre a técnica e a questão da técnica:
Basicamente, sobre a técnica pode-se dizer que ela funciona ou não. Já a
questão da técnica - enquanto questão filosófica - implica em buscar a essência
da técnica, que ele define como Ge-stell (armação ou com-posição); com o objeti-
vo de compreender a relação do homem com a técnica, colocando, a partir daí, a
questão do futuro.
2. A diferença entre saber operativo, que se refere à técnica e reflexão, que diz
respeito à filosofia.
3. A técnica não é neutra, mas é ambígua: segundo Heidegger, seu aspecto
positivo é indissociável do negativo e vice-versa.
4. Além disso, a técnica independe da vontade, do controle ou do domínio
humanos. Noutras palavras, a técnica é um “saber operativo” autônomo.
5. Por fim, Heidegger considera que é a técnica que confere ao homem sua
“especificidade”.
No texto “Já só um deus nos pode ainda salvar”, os pontos mais relevantes
mencionados por Heidegger são:
1. A técnica moderna se tornou um movimento planetário.
2. A técnica, na sua essência, é algo que o homem por si mesmo não domina
(no sentido de que não a controla).
3. A técnica moderna não é um “instrumento”.
4. Embora não pense que estejamos a ela subjugados, constata que ainda não
encontramos um caminho que “co-responda” à essência da técnica.
5. Heidegger declara, por fim, que a técnica arranca o homem da terra e des-
enraíza-o cada vez mais. (...) Nós já só temos relações puramente técnicas. Já não é
na Terra que o homem hoje vive.
Apesar dessa dura avaliação, Heidegger, ali, critica a tendência a se
2
Alusão de Heidegger a um verso do poema de Hölderlin – No azul sereno floresce – “Ora, onde mora
o perigo - É lá que também cresce - O que salva.” - “A Questão da técnica”. p. 31.
458
Lilian Simone Godoy Fonseca
“DER SPIEGEL: Na sua opinião, tem que ser justamente nesse lugar em que o
mundo técnico surgiu, que este... [E Heidegger prossegue:]
M.H.: ... seja superado, sem sentido hegeliano (não eliminado, mas sim supe-
rado). Mas o homem não pode consegui-lo sozinho.” (Ibidem.)
Essa constatação talvez possa explicar a célebre declaração que dá título à
entrevista: “Já só um deus nos pode ainda salvar”. (Ibidem. p. 30)
A técnica em Hans Jonas como objeto da reflexão filosófica e da preocupação ética 459
1. Ambivalência dos efeitos (pp. 33-34)
Mesmo quando a técnica (moderna ou tecnologia) é, num primeiro momen-
to, benéfica, ela, invariavelmente, apresenta um efeito “residual” negativo.
2. Automatismo da aplicação (p. 34)
Todo conhecimento produzido é transformado em técnica para ser imedia-
tamente aplicado.
3. Dimensões globais do espaço e tempo (p. 35)
Não só o alcance da técnica, mas o efeitos das ações realizadas graças à ela
foram enormemente ampliados espaço-temporalmente.
4. Ruptura do antropocentrismo (pp. 35-36)
Com efeito, para acompanhar a expansão do alcance das ações humanas sob
a égide da técnica moderna, a reflexão ética precisa, não apenas expandir o seu
alcance espaço-temporal, mas, fazer outra ampliação, no sentido de ultrapassar as
fronteiras antropocêntricas, bastante suficientes para a ética tradicional, mas to-
talmente insatisfatórias no momento atual, uma vez que, para “superar o horizonte
da proximidade espaço-temporal, essa ampliação nos alcances do poder humano
rompe o monopólio antropocêntrico da maioria dos sistemas éticos anteriores,
quer sejam religiosos ou seculares.” (Ibidem, p. 35)
5. Colocação da questão metafísica (pp. 37-39)
Eis o último aspecto apontado por Jonas para justificar a “novidade” que a
atual reflexão ética apresenta em relação à ética tradicional. Porém, a menção à
metafísica, dá a impressão de um recuo e não de um avanço de sua formulação éti-
ca em relação a outras concepções que, atentas às críticas realizadas na transição
entre os séculos XIX e XX, aboliram toda menção à metafísica. Entretanto, aqui é
importante ter em mente que
Cabe ainda lembrar que no PR, cujo objetivo é propor uma “ética para uma
civilização tecnológica”, o ponto de partida de Jonas é o reconhecimento da técnica
como vocação do homem, ele acrescenta que a técnica moderna, tanto possibilitou
a ampliação espaço-temporal dos efeitos das ações humanas, quanto promoveu o
sucesso desmedido na realização do ideal baconiano (ou do Programa de Bacon).
Jonas atribui à técnica moderna a concessão de uma nova dimensão do po-
der humano. Ele identifica, então, três diferentes âmbitos de poder. O primeiro,
460
Lilian Simone Godoy Fonseca
consoante com o ideal bacon-cartesiano, é o poder exercido pelo homem sobre a
natureza que, num primeiro momento, não conduzia ao desequilíbrio ou à destrui-
ção irreversível dos implicados no processo. O segundo, (já apontado por Heide-
gger), resulta do êxito descomunal obtido na execução desse projeto, emergindo
como um poder monstruoso, cujo melhor exemplo é a Bomba Atômica, que re-
presenta a força destrutiva despertada pelo homem com o uso abusivo da técnica,
que se tornou um poder “descontrolado”3. Daí, conforme Jonas, a necessidade do
terceiro poder, ou poder de terceiro grau, cuja tarefa é, precisamente, controlar
esse segundo poder (ou poder de segundo grau).
Assim, na visão jonasiana, os traços mais relevantes da técnica seriam:
1. A Técnica torna-se objeto da filosofia e da ética.
2. Distinção entre técnica moderna e pré-moderna: como vimos, “a técnica
moderna é um empreendimento e um processo, enquanto a anterior era uma pos-
se e um estado”. (JONAS, 1979 p. 16)
3. A nova técnica (ou tecnologia), de saída, apresenta aspectos extremamen-
te antagônicos: por um lado, a promessa utópica e, por outro, a ameaça apoca-
líptica. Ambos, porém, como afirma Jonas, trazem em comum um traço “quase”
escatológico.
4. A técnica é (ou confere ao homem) um “poder de segundo grau” o que
implica a necessidade de um “poder de terceiro grau” = um poder sobre o poder.
5. A técnica constitui, conforme Jonas, uma “vocação do homem”.
Podemos, agora, indicar as semelhanças e diferenças entre as visões de Hei-
degger e Jonas sobre a técnica.
3 Essa perda de controle sobre a técnica foi também detectada por Heidegger em sua entrevista de
1966.
A técnica em Hans Jonas como objeto da reflexão filosófica e da preocupação ética 461
3. Relevância e especificidade do tema da técnica no interior
do pensamento e da obra de Jonas:
Com efeito, Jonas vê a técnica não somente como instrumentos e objetos (tra-
ço privilegiado pelo filósofo da técnica francês Gilbert Simondon), nem como
pura essência (Heidegger), mas como um fazer e operar concretos e completa-
mente inéditos: como as técnicas de prolongamento da vida, de manipulação
genética e de alteração do comportamento humano (PR. Cap. I. pp. 50 a 57)4
Considerações finais
Que podem ser resumidas em três tópicos:
1) Cabe reconhecer que o tema da técnica ocupa lugar de destaque na última
4
Que ele cita no PR, mas aborda mais detidamente, sobretudo, nos ensaios que compõem o TME.
462
Lilian Simone Godoy Fonseca
fase do pensamento/obra jonasianos, período em que encontramos diversos e im-
portantes textos a ela dedicados.
2) Se houve alguma influência de seu antigo mestre, não se pode afirmar
ou negar taxativamente. Talvez, fosse possível conceder a Heidegger o mérito de,
através da entrevista publicada no ano de sua morte (1976)5, ter despertado em
Jonas o desejo de oferecer uma resposta que seu antigo mestre não teria oferecido.
Todavia, embora PR tenha sido publicado em 1979, (três anos, portanto, após a
publicação da entrevista), quem lê o texto “Technology and Responsibility: Reflec-
tions on the New Tasks of Ethics”, publicado em 1973, (portanto, três anos antes
da publicação da entrevista) encontra ali quase um esboço do PR. Desse modo, não
se poderia afirmar que o Heidegger de “Já só um deus...” teria motivado a reflexão
jonasiana do PR. Ela já havia nascido três anos antes, quando o texto póstumo de
Heidegger veio à luz. Nesse sentido, é preciso reconhecer que a forma pela qual Jo-
nas aborda a técnica, embora com algumas semelhanças, é inegavelmente distinta,
própria e singular.
3) O que se comprova, sobretudo, pelas consequências que Jonas extrai de
sua reflexão histórico-substancial sobre a técnica:
a) - pelas consequências éticas: tanto nos textos publicados em PhE, PR e
TME;
b) - pela percepção arguta de Jonas do lugar e importância que a técnica
moderna assumiu na vida humana como um todo (especialmente no texto “PQ a
técnica é objeto da filosofia”);
c) - mas, principalmente, pela especial atenção concedida à técnica no âmbito
da medicina: reconhecendo que ela trouxe benefícios incontestáveis, mas também
introduziu inúmeras questões éticas absolutamente inéditas em toda a tradição
filosófica, relativas, principalmente, aos temas como: experimentação com seres
humanos, o conceito de morte encefálica, a eutanásia, a engenharia genética, etc.
Por tudo isso, pode-se finalizar, dizendo que a técnica em Jonas é, certamen-
te, um tema capital, reconhecido como objeto da reflexão filosófica em geral e da
preocupação ética em particular; a partir do qual nos legou a parte, seguramente,
mais expressiva e substancial de sua reflexão e sua obra.
Destarte, a expressão que serve de subtítulo ao PR: “uma ética para [nossa]
civilização tecnológica”, ganha todo um sentido; muito mais consistente, oportuno
e, por que não dizer, valioso.
5
Já que os demais textos, da década de 1950, estariam muito distantes do início das reflexões de Jonas
sobre a técnica, no começo da década de 1970.
A técnica em Hans Jonas como objeto da reflexão filosófica e da preocupação ética 463
Referências
FROGNEUX, Nathalie. Hans Jonas ou la vie dans le monde. Bruxelles: De Boeck & Larcier,
2001. 384 p.
GIACOIA Junior, Oswaldo. “Notas sobre a técnica no pensamento de Heidegger”. Veritas,
Porto Alegre, v. 43, n. 1, 1997, pp. 97-108.
- HEIDEGGER, Martin. “A questão da técnica”. In Ensaios e conferências. Petrópolis: Vozes,
2010. 269p.
__________________. “Já só um deus pode nos salvar”. Entrevista concedida a Der Spiegel, em
setembro de 1966, publicada em 1976. Tradução em português disponível no site: http://
www.lusosofia.net/textos/heideggeer ja so um deus pode ainda nos salvar der spiegel.pdf
JONAS, Hans. Le Principe Responsabilité. Paris: Flammarion, 1990, 470p.
___________. Técnica, medicina y ética – la práctica del principio de responsabilidad. Barce-
lona: Paidós, 1997. 206p.
___________. “Seventeenth century and after: the meaning of the scientific and technological
revolution.” In Philosophical Essays: From Ancient Creed to technological Man. New Jersey:
Englewood Cliffs, Prentice-Hall. Reediting University of Chicago Press, Midway reprints,
1980 (1971). Cap. 3, pp. 45-80.
___________. “Technology and Responsibility: Reflections on the New Tasks of Ethics”. In Phil-
osophical Essays: From Ancient Creed to technological Man. New Jersey: Englewood Cliffs,
Prentice-Hall. Reediting University of Chicago Press, Midway reprints, 1980 (1973). Cap. 1,
pp. 03-20.
___________. “Por qué la técnica moderna es objeto de la filosofía?” In Técnica, medicina y
ética – la práctica del principio de responsabilidad. Barcelona: Paidós, 1997 (1985) Cap. 1,
pp. 15-31.
___________. “Por qué la técnica moderna es objeto de la ética?” In Técnica, medicina y ética
– la práctica del principio de responsabilidad. Barcelona: Paidós, 1997 (1985) Cap. 2, pp.
31-39.
SIQUEIRA, José Eduardo de, “Ética e tecnociência – uma abordagem segundo o princípio
de responsabilidade de Hans Jonas”. In Ética, ciência e responsabilidade. São Paulo: Centro
Universitário São Camilo, Loyola, 2005, pp. 101-200.
SCHOEFS, V. Hans Jonas : écologie er démocratie. Paris : L’Harmattan, 2009, 180p.
464
Lilian Simone Godoy Fonseca
Hegel leitor de Aristóteles:
a Ideia que a Si retorna, o motor imóvel,
o movimento circular e teleologia
Resumo
Sob a concepção filosófica sistemática de Hegel, a História da Filosofia ex-
põe em cada um de seus momentos o único pensar, a razão, evidenciando
sua necessidade e conexão interna, enquanto desdobramentos da totalida-
de, que segundo Hegel, é o verdadeiro. Em suas Preleções sobre a História
da Filosofia, Hegel reconhece que esses desdobramentos de si da totalida-
de filosófica que se exprimiram nos sistemas de filosofia que se sucederam
na exterioridade do tempo não excluiriam uns aos outros, mas exprimiriam
uma vinculação interna que seria reconhecida e incorporada pela filosofia
hegeliana. De acordo com Alfredo Ferrarin (2001, p. 55), é possível obser-
var uma importante correspondência dada por Hegel entre seu sistema e o
pensamento de Aristóteles. Em termos conceituais, Hegel interpreta e assi-
mila diversos conceitos e aspectos do pensamento aristotélico, dentre eles, o
Primeiro motor, a concepção de movimento circular e a teleologia, elementos
do pensamento aristotélico que tomaram determinação peculiar sob a inter-
pretação hegeliana. Diante disso, cabe questionarmos qual o sentido desses
conceitos sob a ótica do sistema de Hegel. Nesta exposição, analisamos como
Hegel interpreta esses conceitos e noções do pensamento aristotélico e os
incorpora ao seu sistema sob seus termos. A noção aristotélica de Primeiro
Motor, eterno e imóvel, é concebida por Hegel como a Ideia que move, mas
permanece idêntica a si mesma. O movimento, outro elemento importante do
pensamento aristotélico, é diferenciado pelo estagirita em movimento linear
e movimento circular. O movimento circular, para Aristóteles, exprimiria o
movimento em sua perfeição. Para Hegel, esse movimento circular se exprime
nos desdobramentos da Ideia. Sinteticamente, o sistema hegeliano expressa
os desdobramentos da Ideia em sua interioridade na Ciência da Lógica, em
sua exterioridade na Filosofia da Natureza e em seu retorno a Si na Filosofia
do Espírito. Como para Hegel a finalidade da Ideia é sua autodeterminação,
seu movimento perfeito, circular, se expressaria em seu retorno a si mesma,
Introdução
A
perspectiva de História da Filosofia de G. W. F. Hegel (1770-1831) parte de
uma concepção sistemática de Filosofia, que por sua vez, é expressão dos
desdobramentos de Si do Espírito que se reconhece na própria História do
pensar verdadeiro, que, para Hegel é um só. Mas, a história é algo que expressa su-
cessão de determinações finitas. Nesse sentido, expressar a verdade una em deter-
minações históricas finitas seria contrário a essa perspectiva de uma única verdade.
De acordo com Hegel [2005 (1820), p. 24], embora a história da filosofia apre-
sente aparentemente oposições entre perspectivas filosóficas distintas, a verdade
é uma só e a história da filosofia tratará do conhecimento do desenvolvimento da
totalidade do si espiritual, da verdade enquanto totalidade. Portanto, a história da fi-
losofia, para Hegel, deve ser concebida enquanto desenvolvimento dessa totalidade:
[...] É uma ideia no todo e em todos os seus membros, do mesmo modo que
num indivíduo palpita, em todos os membros, uma vida e se ouve uma pul-
sação. Todas as partes que nela sobressaem e a sistematização das mesmas
provêm da Ideia única; todas estas especificações constituem somente espe-
lhos e cópias de uma vitalidade; têm a sua realidade efetiva unicamente nesta
unidade, e as suas diferenças, as suas diversas determinidades são em con-
junto apenas a expressão e a forma contida na Ideia. Como a Ideia é o centro,
que é ao mesmo tempo a periferia, a fonte luminosa, que em todas as suas
expansões não vai para fora de si, mas em si permanece presente e imanente;
portanto ela é o sistema da necessidade e da sua própria necessidade, que é
assim igualmente a sua liberdade. Como a filosofia é sistema em desdobra-
mento; igualmente o é também a história da filosofia, e este é o ponto central,
o conceito fundamental, que esta abordagem da história irá expor. [HEGEL,
2006 (1820), p. 32, grifos do autor]
[...] A sua vida [a vida do Espírito] é ação. A ação tem como pressuposto um
material prévio, a que se dirige e que ela não aumenta simplesmente, ou am-
plia mediante a adição de material, mas essencialmente refunde e transforma.
Uma tal herança é ao mesmo tempo recepção e tomada de posse e legado; e
simultaneamente reduz-se a material, que é metamorfoseado pelo espírito. O
que se recebeu foi deste modo modificado e enriquecido e, ao mesmo tempo,
preservado. [HEGEL, 2006 (1816), p. 18, grifos do autor]
[...] essa obrigação de fidelidade a Aristóteles nos faz tomar melhor consciên-
cia que o hegelianismo não se reduz à dialética. Não é, com efeito, o dialético
propriamente dito que se reconhece em Aristóteles, mas o pensador especula-
tivo. [...] . O especulativo é o momento “positivamente racional”, graças ao qual
aquilo que podia parecer um exercício cético e niilisante é entendido como
sendo a manifestação de uma totalidade orgânica. [...] (LEBRUN, 2006,p. 276,
grifos do autor)
[...] ao existir um motor que existe ele mesmo como ser imóvel, ser em ato,
este não pode de nenhuma maneira mudar, porque o primeiro dos movimen-
tos é o de translação, e destes o primeiro é o circular. E o ser que produz este
movimento é o motor imóvel. O motor imóvel é necessariamente um ser. E
na ordem de sua necessidade, é também um ser da ordem do belo, e dessa
maneira é um princípio. [ARISTÓTELES, 1967, p. 1054-1055 (Met. L. 12, 7
1072 b / 1073 a)].
Em Hegel esse imóvel que move ganha novo sentido, é concebido enquanto
a Ideia que move a si mesma no movimento circular, tendo por finalidade sua
própria realização. O imóvel movente - considerado por Hegel enquanto razão
pensante - será uma consideração fundamental a Hegel no que tange à concepção
de Ideia que a si retorna enquanto Espírito Absoluto num movimento circular.
Nas palavras de Hegel:
[...] “a razão é o agir conforme a um fim”. A forma do fim em geral foi levada ao
descrédito pela exaltação de uma pretendida natureza acima do pensamento
– mal compreendido -, mas, sobretudo pela proscrição de toda a finalidade
externa. Mas importa notar que – como Aristóteles também determina a na-
tureza como um agir conforme a um fim - o fim é o imediato, o-que-está-em-
-repouso, o imóvel que é ele mesmo motor e que assim é sujeito. Sua força-mo-
triz , tomada abstratamente, é o ser-para-si ou negatividade pura. Portanto, o
resultado é somente o mesmo que o começo, porque começo é fim; ou, [por
outra], o efetivo só é o mesmo que seu conceito, porque o imediato como fim
tem nele mesmo o Si, ou a efetividade pura. [HEGEL, 2002 (1807), FE, §22, p.
37, grifos do autor]
Essas determinações aristotélicas que Hegel toma para si são chaves concei-
tuais centrais para a compreensão do pensamento hegeliano, sendo que essas ca-
racterísticas já podiam ser observadas na Fenomenologiado Espírito, sua primeira
grande obra, e permaneceram no pensamento hegeliano.
No entanto, é fundamental considerar que essa interpretação hegeliana do
pensamento aristotélico tem caráter muito peculiar porquanto é possível observar
muitas discordâncias acerca dessa interpretação, como bem analisa Ferrarin (2001,
p. 15-27) ao questionar se Energeia (ato) pode ser entendida como Subjetividade.
Portanto, Hegel refunde e transforma os conceitos aristotélicos preservan-
do-os, mas sob seus termos, a partir de sua concepção sistemática de filosofia e de
sua História. Sob a concepção hegeliana, o Espírito tem a si mesmo como finalidade
racional livre; seu movimento perfeito é um movimento teleológico de retorno a si,
que no sistema hegeliano se expressa na Ideia em si e para si na Ciência Lógica, na
Ideia na exterioridade, em seu Outro-de-Si, na Filosofia da Natureza e na Ideia em
seu retorno a si enquanto Espírito. Desse modo, o movimento da Ideia é um movi-
mento circular que expressa o movimento em sua perfeição, pois é o movimento
teleológico da Ideia para si mesma em seu retorno a si enquanto Espírito.
Resumo
A proposta desta comunicação é responder a questão, à luz do pensamento de
Bobbio, de até que ponto a ideia kantiana de um progresso político e jurídico
da humanidade pode se realizar nesse conturbado período histórico marcado
pela globalização. Bobbio admite a atualidade da ideia iluminista de progres-
so a partir de uma reinterpretação da tradição kantiana do progresso como
uma possibilidade aberta à humanidade. Um sinal deste progresso seria para
Bobbio a expansão do Estado democrático de direito que torna cada vez mais
evidente a afirmação dos direitos humanos. Este é um sinal de que o proble-
ma do sentido da história é possível para Bobbio e oferece a possibilidade de
uma avaliação contemporânea da proposta kantiana à luz dos acontecimen-
tos históricos dos dois séculos.
Palavras-chave: Filosofia da História. Progresso. Kant. Bobbio.
O
s escritos de Kant sobre a Filosofia da História1 buscam pensar o homem
em uma constante evolução que vai do estado de rudeza à cultura, adqui-
rida ao longo da vida como outra natureza que passa a fazer parte da sua
natureza humana e é transferida às gerações futuras. A narração dessa evolução
é uma conjectura do começo da história humana, que tenta pensar a liberdade do
homem a partir das disposições naturais que há no próprio homem. Esta inter-
1
Entre 1784 e 1786, Kant publica os seguintes artigos: “Ideia de uma história universal de
um ponto de vista cosmopolita (1784); Resposta à pergunta: o que é esclarecimento? (1784);
Apreciação da obra de Herder: Ideias em vista de uma filosofia da história da humanidade
(1785); e o Começo conjectural da história humana (1786)” (MENEZES, 2010, p. 7).
Coloco esse casal num lugar seguro contra o ataque das feras e provido em
abundância pela natureza dos meios de subsistência, quer dizer, numa espé-
cie de jardim sob um clima sempre benigno. E, o que é mais, considero ape-
nas depois que já tenha avançado de modo considerável na habilidade de se
servir de suas forças. Por conseguinte, não parto de sua natureza em estado
absolutamente rude [...]
O homem a partir daquele momento foi condenado a ser livre, porque viu-
-se obrigado a entrar no mundo moral e a controlar as paixões que podiam levá-lo
a um estado de vida igual ao dos outros animais. Aquele casal, através da razão,
renunciou aos instintos e estabeleceu seus ideais. A razão pode “[...] com a ajuda
da imaginação, provocar de modo artificial novos desejos que, além de não se fun-
darem numa necessidade natural, estão com ela em contraste direto [...]” (KANT,
2010, p. 17). Essa descoberta feita por aquele primeiro casal tornou possível a cria-
ção de artifícios necessários para suas ações além dos instintos e o ajudou a esta-
belecer regras de convivência com os outros. A partir desse momento o homem
podia se tornar um ser moralmente educado e projetar seu futuro. Essa passagem
permitiu ao homem dar um passo para além da rudeza.
[...] a saída do homem do Paraíso, que a razão lhe apresenta como a primeira
instância de sua espécie, não significa outra coisa que a passagem da rude-
za de uma criatura puramente animal para a humanidade, dos domínios nos
quais prevalecia o governo do instinto para aquele da razão; numa palavra, da
tutela da natureza para o estado de liberdade (KANT, 2010, p. 24).
[...] ou ao menos a constante aproximação dela, esta última sendo, com efeito,
na ideia o fim, embora de fato aquela primeira (a discórdia) seja, no plano da
natureza, o meio de uma sabedoria suprema, imperscrutável para nós: reali-
zar o aperfeiçoamento do humano mediante cultura progressiva, ainda que
com muito sacrifício da alegria de viver (KANT, 2006, p. 216).
A opção de Kant pela república se deve ao fato da separação dos poderes que
essa forma de governo comporta. O republicanismo separa os poderes executivo, o
governo, do legislativo. Esses poderes limitam um ao outro. O executivo cumpre as
leis que o legislativo cria, e o legislativo obedece às execuções das leis por parte do
executivo. O despotismo é divergente de tudo isso, porque o Estado executa as leis
que ele mesmo cria, podendo manejar o destino da sociedade de acordo com o seu
direcionamento. O Estado como um todo passa a ser uma propriedade do governo.
Também vai nessa mesma direção a crítica de Kant à democracia:
[...] o conceito de “república” ao qual se referia Kant não coincide com o con-
ceito atual de “democracia”, mas a ideia de que a constituição interna dos Esta-
dos viesse a ser um obstáculo à guerra foi uma ideia forte, fecunda, inspirado-
ra de muitos projetos pacifistas elaborados ao longo dos dois últimos séculos
(e importa pouco que eles tenham permanecido, na prática, letra morta).
A Revolução Francesa, como símbolo, tem uma força que não desapareceu até
hoje e seu exemplo, segundo o pensamento de Bobbio sobre a democracia, talvez
seja o caminho para se apresentar na contemporaneidade uma interpretação sobre
o futuro da humanidade, apesar da ambiguidade da história. A questão sobre o “sen-
tido da história” encontra, assim, lugar na filosofia de Bobbio, que redescobre o sen-
tido dessa questão ao querer encontrar o sentido da democracia (BOBBIO, 2004).
Objeto da história profética pensada por Kant em O conflito das faculdades
(1798) foi um fato histórico, a Revolução Francesa, mas o objeto do sentido da
história para Bobbio também é uma realidade: o crescimento da democracia. Kant
Referências
BOBBIO, Norberto. (2000). O futuro da democracia. 11ª ed. Trad. Marco Aurélio Nogueira.
São Paulo: Paz e Terra.
______. (2004). A era dos direitos. Trad. Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Elsevier.
______. (2009). O Terceiro Ausente: ensaios e discursos sobre a paz e a guerra. Trad. Daniela
BeccacciaVersiani. Barueri: Manole.
KANT, I. (1992). A Paz Perpétua e outros opúsculos. Trad. Artur Morão. Lisboa: Ed. 70.
KANT, I. (1993) O conflito das faculdades. Trad. Artur Morão. Lisboa: Ed. 70.
KANT, I. (1999). Sobre a Pedagogia. Trad. Francisco Cock Fontanella. Piracicaba: UNIMEP.
KANT, I. (2006). Antropologia de um ponto de vista pragmático. Trad. Clélia Aparecida Mar-
tins. São Paulo: Iluminuras.
KANT, I. (2010). Começo conjectural da história humana. Trad. Edmilson Menezes. São Pau-
lo: UNESP.
LÖWITH, Karl. (1990). O sentido da história. Trad. Maria Georgina Segurado. Lisboa: Edi-
ções 70.
Resumo
O pensamento de Adorno exerce ainda hoje grande influência sobre a reflexão
estética, devido, em parte, à amplitude que o mesmo apresenta, abarcando a
totalidade das relações entre arte, filosofia e sociedade. Ainda assim, tal for-
ma de estruturação totalizada incide em um problema que respeita à adequa-
da acepção de suas idéias, pois, na medida em que a sua reflexão sobre arte
se soma a outras de caráter filosófico e sociológico, reconstruir a coerência da
estética crítica por ele empreendida consiste em tarefa de grande dificuldade.
Sob uma abordagem histórica e com a finalidade de elucubrar sobre a relação
entre a filosofia crítica e a teoria estética adorniana, este trabalho considera a
existência de uma inter-relação entre filosofia e arte a partir da compreensão
de que esta última atua como forma de conhecimento e, portanto, de apreen-
são crítica do mundo.
Palavras-chave: Estética, Filosofia, Teoria Social.
P
ensada enquanto uma dialética negativa, a filosofia de Adorno se baseia em
uma realidade destituída de conceitos, uma filosofia que se apóia no não-
-conceitual, constituída enquanto paradoxos: “dizer o que não se deixa di-
zer”, por meio de fragmentos que consistem na reconstrução de significados como
um simples trabalho pré-filosófico, buscando superar o caráter conceitual aproxi-
mando-se do que é destituído de conceitos (o indizível). Sob uma forma de escrita
que remete à construção do pensamento, Adorno pensa no sentido de tentativas, o
que reflete em muito o próprio sentido construtivo do discurso artístico, buscando
deliberadamente dar uma dimensão não-conceitual àquilo que caracteriza a filoso-
fia em sua obrigação conceitual, conforme ele mesmo assinalou em carta dirigida a
Alban Berg, referindo-se à «intenção secreta» de formular seus ensaios filosóficos
Referências
ADORNO, T. W. Crítica de la cultura y sociedad: Prismas, Parva aesthetica, Intervenciones.
Volumes I-II. Madrid: AKAL, 2008-2009.
__________. Dialética negativa. Rio de Janeiro: Zahar, 2009.
__________. Educação e emancipação. São Paulo: Paz e Terra, 1995.
Resumo:
Os focos principais da investigação sobre a questão da religião na esfera pú-
blica, uma das mais discutidas da filosofia política nas últimas duas décadas,
incidem nos problemas de legitimidade política e de ética da cidadania. Par-
tindo de uma tipologia ideal que separa em duas categorias –inclusivista e
exclusivista – as respostas à questão sobre se, e em que medida, a religião
deveria desempenhar um papel na política democrática, o trabalho apresenta
as principais questões envolvidas nesse debate tão complexo quanto atual.
Palavras-chave: Esfera Pública, Religião, Rawls, Habermas, Taylor
A
questão da religião na esfera pública é uma das mais discutidas da filosofia
política nas últimas duas décadas. E há motivos práticos e teóricos para o
crescente interesse no tema do significado e do papel da religião na esfera
pública. Do ponto de vista prático, os discursos religiosos destacam-se pela estri-
dência e eficácia nas controvérsias morais e políticas atuais. Em princípio negociá-
veis à luz de normas constitucionais estabelecidas, tais desacordos são usualmente
tidos como conflitos intratáveis, dando lugar a fortes reações cristalizadas em ver-
tentes intelectuais e em movimentos políticos que caminham em sentido contrá-
rio, como o fundamentalismo religioso e o chamado “novo ateísmo”. Do ponto de
vista teórico, os pontos controversos giram em torno da interpretação correta das
consequências da secularização oriundas de um processo de racionalização social
e cultural, ao qual estão tradicionalmente vinculadas a separação entre os poderes
religioso e secular, a instauração do pluralismo religioso, a tolerância mútua en-
tre credos, doutrinas e visões de mundo incompatíveis e a autocompreensão não
religiosa da modernidade. Desse modo, os debates contemporâneos em filosofia
1
A passagem é extraída do último escrito de John Rawls, publicado em 1997 e intitulado “A ideia
de razão pública revisitada”, o qual compõe agora a quarta parte da edição ampliada, em 2005, da
obra O Liberalismo Político, publicada originalmente em 1993 e acrescida da conferência “Resposta
a Habermas” em 1996. Há outras formulações do princípio de legitimidade política no liberalismo
político (cf. RAWLS, 2011, p. 161 e p. 255), sem que a ideia central seja modificada, embora a menção
às autoridades públicas só apareça nesse artigo de 1997.
Referências
ARAUJO, L. B. L. (2010). Pluralismo e justiça: estudos sobre Habermas. São Paulo: Loyola.
---. (2011a). John Rawls e a visão inclusiva da razão pública. Dissertatio, v. 34, p. 91-105.
---. (2011b). A ordem moral moderna e a política do secularismo. Ethic@, v. 10, n. 3, p. 39-53.
HABERMAS, J. (2007). Entre naturalismo e religião: estudos filosóficos. Trad. Flávio Siebe-
neichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro [2005].
MENDIETA, E.; VANANTWERPEN, J. (eds.) (2011). The power of religion in the public sphere.
New York: Columbia University Press.
RAWLS, J. (2011). O liberalismo político. Trad. Álvaro de Vita. Edição ampliada. São Paulo:
Editora WMF Martins Fontes [1993].
TAYLOR, C. (2010) Uma era secular. Trad. Nélio Schneider e Luzia Araújo. São Leopoldo
(RS): Editora UNISINOS [2007].
4
Procurei tratar da política do secularismo como um componente essencial da ordem moral mo-
derna, contrapondo a caracterização da secularidade em Taylor às abordagens do tema na ideia de
razão pública em Rawls e na concepção pós-secular de democracia em Habermas, no seguinte artigo:
ARAUJO, 2011b. O diálogo recente entre Habermas e Taylor acerca do secularismo e do pós-secula-
rismo encontra-se em: MENDIETA; VANANTWERPEN, 2011.
Resumo
O presente trabalho tem por objetivo tratar de um pequeno aspecto do per-
curso do pensamento de Walter Benjamin que o levam da esfera da teoria do
conhecimento e da linguagem à esfera da filosofia política. Tentaremos colo-
car a questão da “vida” como uma ideia que pode ser apresentada no empre-
endimento filosófico benjaminiano. Para tanto, retomaremos criticamente a
discussão dos escritos: “Para uma crítica da violência” de 1921 e, principal-
mente, o prefácio da obra “Origem do Drama Barroco Alemão” de 1928. Este
último considerado frequentemente como a base epistemológica e metodo-
lógica para o entendimento da maneira singular do fazer filosófico proposto
e vivenciado pelo pensador berlinense. Uma proposta que pode ser utilizada
para a compreensão de diversos temas da filosofia contemporânea, com des-
taque para a esfera política da crítica do poder e da crítica da violência.
Palavras-chave: Walter Benjamin, vida, ideia, apresentação, crítica.
A
ntes de qualquer dissertação sobre o tema proposto nesse trabalho convém
realizarmos uma breve explicação, de caráter epistemológico, ou ainda de
exposição metodológica, sobre as noções de “apresentação” e de “ideia” no
pensamento benjaminiano. Tais noções são fundamentais para a compreensão de
todo o projeto filosófico do pensador berlinense. Um projeto que relaciona, entre
outros, história, política e religião com a crítica cultural e que liga o autor a uma
tradição do pensamento iniciada por Nietzsche no século XIX.
O percurso da crítica do conhecimento à crítica do poder nos escritos de Walter Benjamin 503
As noções de “apresentação” e de “ideia” vinculam-se a um conjunto de ou-
tros conceitos da obra de Benjamin que costumam ser identificados como parte de
uma continuidade na trajetória da construção do pensamento do autor. Aparecem de
modo, por vezes confusos ou simplórios, ainda em escritos “rebeldes” e “metafísicos”
da juventude do pensador e começam a ganhar contornos mais definidos principal-
mente a partir de O conceito de crítica de arte no romantismo alemão (1919) e, sobre-
tudo, em A origem do drama barroco alemão (1928). Neste último trabalho, mais es-
pecificamente no chamado prefácio epistemológico-crítico deste escrito “insolente”
e de uma “audácia desmesurada”1, é que vamos localizar indispensáveis observações
sobre a forma original de trabalho filosófico proposto por Benjamin.
O prefácio apresenta uma controversa junção de crítica do conhecimento
com teoria da linguagem, algo que tinha ocupado Benjamin em outros trabalhos
anteriores (como Programa para uma filosofia futura (1918) e Sobre a linguagem
em geral e a linguagem dos homens (1916), mas que agora ganha definições mais
claras e argumentações mais precisas. Nesse prefácio Benjamin propõe uma cor-
reção da tradição ocidental do logos oferecendo um retorno estratégico ao mito, à
história e à linguagem (sem aderir ao movimento da chamada virada linguística do
pensamento ou ao historicismo corrente em sua época). Provoca assim uma ruptu-
ra com a tradição moderna cartesiana e kantiana e destaca o papel da fugacidade e
a característica histórica do procedimento filosófico contemporâneo. Reabilita, de
modo excêntrico, a relação entre beleza e verdade oriunda do pensamento platô-
nico, a monadologia leibziana, o enfoque na singularidade do fragmento proposto
pelo romantismo, a opção pela estética alegórica do período barroco e propõe de
modo ousado e controverso, que a filosofia não é discurso do método. Em outro
momento posterior, mas ainda nesse sentido, assumirá mais enfaticamente que
método é desvio.
Nesse sentido, no prefácio da obra sobre o drama barroco, que para muitos
comentadores é considerado um dos textos mais densos de todo o século XX, Wal-
ter Benjamin constrói, ou ainda resgata, a compreensão da filosofia como obra de
arte. A filosofia trata apenas da apresentação (Darstellung) da verdade. A filosofia,
como forma apenas, que apresenta a verdade em dada condição fugaz e histórica
da linguagem. Diferentemente do uso kantiano do conceito de apresentação, a fi-
losofia não é representação mental de algo, não é mera atividade de conceituação
1
Conforme carta de 1919 de Walter Benjamin ao amigo G. Scholem sobre o trabalho sobre o drama
barroco.
O percurso da crítica do conhecimento à crítica do poder nos escritos de Walter Benjamin 505
ao esquematismo de uma dialética transcendental do conhecimento que vincula
ideia ao universal abstrato do conceito. E ainda difere da noção hegeliana de ideia
por divergir quanto à maneira específica de relacioná-la com a história e de modo
a compreendê-la com um universal concreto dado em um processo no tempo. Para
Benjamin os conceitos são elementos mediadores entre os fenômenos e as ideias
e estas são, resgatando o pensamento de Leibniz, mônadas. Para uma mônada, ou
uma “ideia-mônada”, em cada fenômeno singular, de conteúdo material, é possível
expor a totalidade, de conteúdo de verdade, tendo o conceito apenas como elemen-
to mediador da linguagem.
Dessa maneira, assim como o colecionador que destrói a ordem tradicional
das coisas e cria uma nova ordem, que dá “origem” à ideia sobre algo, é possível
superar a dicotomia metodológica da indução-dedução pela opção da imersão.
Mergulhar no conteúdo material de uma época até reconhecer nela o conteúdo
de verdade “eterno” que dela pode ser apresentado. O todo pode ser reconhecido
em cada pequeno detalhe do cotidiano devido à natureza monadológica da ideia.
Devemos lembrar que o que caracteriza uma mônada é justamente o fato de não
“possuir partes” (monas) o que configura a unicidade da ideia que ela carrega e
que pode apenas, assim como o cálculo infinitesimal leibziano, ser “infinitamente”
apresentado pela filosofia. Procedimento este que favorece a imersão na unida-
de, na particularidade para dele “retirar” a universalidade. Ou em outras palavras,
salvar os fenômenos na ideia. A imersão oferece a quebra da linearidade, da or-
dem historicista de algo, uma ideia, por sua qualidade eterna, pode ser também
reconhecida em qualquer momento da história. E, precisamente, os detalhes mais
díspares, os elementos históricos mais extremos é que podem oferecer as possibili-
dades de “leitura” mais significativas. Pois a oposição desses fenômenos, através de
uma dialética benjaminiana dos extremos, é que pode oferecer as regiões limítro-
fes de uma ideia. E para Benjamin (2011a, p. 121) tentar estabelecer esses limiares
é justamente a tarefa da crítica. Ciente, obviamente, que esta é uma tarefa sempre
inconclusa, sempre a ser novamente apresentada.
Uma das analogias mais impressionantes elaboradas por Benjamin para ex-
plicar sua proposta filosófica de “apresentação das ideias”, e que posteriormente
foi apropriada por vários autores, tendo como exemplo mais significativo Theodor
Adorno, foi a noção de constelação. A apresentação de uma ideia se torna “legível”,
se presentifica, em uma configuração de conceitos. Lembrando que estes concei-
tos, por sua vez, são apenas mediação entre os fenômenos e as ideias e esgotam-se
nessa tarefa. Benjamin compara esse aspecto, a relação das ideias com os fenôme-
nos com a relação de uma constelação com suas estrelas.
O percurso da crítica do conhecimento à crítica do poder nos escritos de Walter Benjamin 507
tema “vida” em trabalhos ainda da juventude do autor. Textos estes cheios de ímpe-
to, muitas vezes densos, esotéricos e confusos, mas não menos dispensáveis para
a compreensão da elaboração de grande parte da terminologia benjaminiana. Em
Experiência (1913), Benjamin esbraveja certa ira contra a imposição de um tipo
de “experiência de vida” dos adultos sobre a juventude. Sobre forte influência da
leitura de Nietzsche e inflamado pelas questões do movimento estudantil concla-
ma a luta os jovens por outra forma de vida mais espiritual contra a “experiência”
filisteica sem espírito do adulto contemporâneo.
Dois anos mais tarde, a mesma rebeldia, agora aliada à preocupação com a
investigação filosófica, pode ser conferida na discussão sobre a vida dos jovens ale-
mães do início do século XX na fase de estudos universitários. Em A vida dos estudan-
tes (1915) pode ser observada a crítica de certa concepção da história, defensora da
noção de progresso, que impõe a compreensão da vida como “grande vida” através
das atividades de formação universitária voltadas unicamente para o mundo do tra-
balho e para as habilidades de interesse do Estado. Conforme Benjamin (2002, p.
39) “a falsificação do espírito criador em espírito profissional [...] apossou-se por
inteiro da universidade e a isolou da vida intelectual criativa e não enquadrada ao
funcionalismo público”. Uma tendência ao pragmatismo e ao direcionamento úni-
co para a formação profissional reduziu as possibilidades de compreensão de uma
vida “mais elevada” ou de uma “vida mais profunda” entre os estudantes. Esses ter-
mos utilizados por Benjamin ao longo do referido texto demonstram o movimento
progressivo de preocupação do autor com a temática da vida e, no caso específico,
encontra, nessa fase, subsídio na leitura da doutrina judaica em contraposição a
tradição filosófica grega conforme destacam alguns comentadores.2
No período de 1917 a 1921, as preocupações com a temática da vida pa-
recem encontrar espaços por entre as frestas das preocupações com a temáticas
relacionadas à linguagem, de preocupações, por exemplo, com a tradução e com
a crítica de arte. Apenas “parecem” encontrar espaço por que uma pesquisa mais
aprofundada sobre o tema mereceria ser realizada. O que pode ser destacado desse
período e a elaboração da tese de doutoramento de Benjamin, intitulada O concei-
to de crítica de arte no romantismo alemão (1919), onde conceitos indispensáveis
para todo o empreendimento filosófico do autor começam a alcançar a maturidade.
As noções de “ideia”, de “origem”, de “tempo do agora”, de “crítica” e de “verdade”
2
É o que pode ser conferido na apresentação da tradução brasileira da obra de Benjamin O conceito
de crítica de arte no romantismo alemão realizado por Márcio Seligmann-Silva.
O percurso da crítica do conhecimento à crítica do poder nos escritos de Walter Benjamin 509
tuições do Estado, resgata as origens míticas e religiosas das teorias sobre o poder
e a soberania e, por fim, para fundamentar suas observações traz conceituações
bastante profundas sobre a temática da vida como “mera vida”, a noção da vida
despida de todo suplemento, de toda roupagem ou retórica. Em várias passagens
do texto Benjamin traz observações sobre a relação, ou os limites, do direito e seu
poder, ou violência, sobre a vida enquanto “mera vida”.
É falsa e vil a proposição de que a existência teria valor mais alto do que a
existência justa, quando existência significar nada mais do que a mera vida
[...]. Mas a proposição contém uma verdade poderosa, se “existência”, ou me-
lhor, “vida” [...] significar a condição de composto irredutível do “homem”. Se a
proposição quer dizer que o não-ser do homem é algo de mais terrível do que
o ainda-não-ser (portanto, necessariamente, mero) do homem justo. [...] Pois
o homem não se reduz à mera vida do homem, tampouco à mera vida nele
mesmo, nem qualquer de seus outros estados e qualidade, sim, nem sequer à
singularidade de sua pessoa física (BENJAMIN, 2011a, p. 154).
Referências
BENJAMIN, Walter. Escritos sobre Mito e Linguagem (1915-1921). Organização, apresenta-
ção e notas de Jeanne Marie Gagnebin e Tradução de Susana Kampf Lages e Ernani Chaves.
São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2011a.
________. Origem do Drama Trágico Alemão. Edição e Tradução de João Barrento. Belo Hori-
zonte: Autêntica Editora, 2011b.
________. Obras Escolhidas I. Magia e Técnica, Arte e Política. Tradução de Sérgio Paulo Roua-
net e prefácio de Jeanne Marie Gagnebin. São Paulo: Brasiliense, 1994.
________. O Conceito de Crítica de Arte no Romantismo Alemão. 3. ed. Tradução, introdução e
notas de Márcio Seligmann-Silva. São Paulo: Iluminuras, 2002.
________. Reflexões sobre a Criança, o Brinquedo, a Educação. Tradução, apresentação e notas
de Marcus Vinicius Mazzari. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2002.
O percurso da crítica do conhecimento à crítica do poder nos escritos de Walter Benjamin 511
Moralidade: relação fundamental
entre indivíduo e sociedade
Resumo
Henrique Cláudio de Lima Vaz afirma que a relação fundamental entre Indi-
víduo e Sociedade se expressa na experiência da moralidade, enquanto ato
consciente da interligação intrínseca entre interioridade e exterioridade, isto é,
fenômeno que exprime a decisão livre da pessoa em tornar-se cidadã, partíci-
pe co-responsável da construção de uma sociedade solidária. Ele problematiza
as relações truncadas pela separação entre indivíduo e sociedade e resgata o
perfil eidético da sociabilidade humana. O objetivo deste artigo é apresentar a
reflexão vaziana sobre os elementos constitutivos desta sociabilidade a fim de
compreender a relação fundamental entre indivíduo e sociedade.
Palavras-chave: Lima Vaz, Ethos, Moralidade, Sociedade, Comunidade.
Introdução
O
problema da moralidade vem despertando atualmente o interesse dos fi-
lósofos que direcionam a sua reflexão para os fundamentos antropológico-
-filosóficos do ser humano e da sua ação. O questionamento se justifica
frente ao niilismo ético que esvazia o sentido das relações humanas ocasionando o
fenômeno do individualismo, enquanto sistema de costumes, sentimentos e ideias
constituídas a partir do conceito de Indivíduo, ou o ser humano abstrato, sem vín-
culos com as comunidades naturais e absolutamente livres para competir em uma
sociedade organizada com fins lucrativos. Todavia, o homem é um indivíduo abs-
trato? A sociedade é uma máquina produtora de objetos? Como superar as relações
mecanicistas entre Indivíduo e Sociedade?
O primeiro momento do encontro com o outro como ato ético exige como
primeira condição de sua possibilidade ou como primeiro momento de seu
movimento dialético, o reconhecimento do horizonte comum de universalida-
de no qual o Eu acolhe o Outro como Outro Eu. (VAZ, 1993, p. 70)
2
“Sistema das significações com que a sociedade e o indivíduo representam e organizam o mundo
como mundo humano”. (VAZ, 1993, p. 37).
3
“Isso se verifica, em primeiro lugar, porque o ethos é o modo especificamente humano, inseparavel-
mente individual e social, de existir no mundo; em segundo lugar porque a cultura não é mais que a
criação de um mundo propriamente humano, tanto pela produção material de bens que garantam a
sobrevivência dos grupos humanos como pela produção de obras que atestam o empenho dos gru-
pos humanos na luta pelo sentido a ser dado à sua existência; e, em terceiro lugar... porque as formas
mais elementares do que veio a ser a ética como ciência do ethos não são mais do que transcrições
racionais, sob a forma de códigos de conduta, do ethos vivido pelas comunidades históricas. Se é ver-
dadeiro o pressuposto da identidade entre ethos e cultura, dele se segue necessariamente a afirmação
de que toda cultura é constitutivamente ética.” (Cf. Marcelo PERINE, Ética e sociedade, p. 52.
4
“Enquanto mundo objetivo de realidades simbolicamente significadas e que tende, pela tradição,
a perpetuar-se no tempo, a cultura mostra, assim, toda uma face voltada para o dever-ser do indiví-
duo e não apenas para a continuação do seu ser: nela o indivíduo encontra, além do sistema técnico
que assegura a sua sobrevivência, ainda e sobretudo o sistema normativo que lhe impõe a sua auto-
-realização”. (VAZ, 1993, p. 39.)
5
“No ethos tem lugar uma necessidade instituída, e é justamente a tradição que suporta e garante a
permanência dessa instituição e se torna, assim, a estrutura fundamental do ethos na sua dimensão
histórica. Entre a necessidade natural e a pura contingência do arbítrio, a necessidade instituída da
tradição mostra-se como o corpo-histórico no qual o ethos alcança sua realidade objetiva como obra
da cultura. A própria significação literal do termo tradição (parádosis, traditio) indicando entrega ou
transmissão de uma riqueza simbólica que as gerações se passam uma à outra, denota a estrutura
histórica do ethos e a sua relação original ao fluxo do tempo.” (VAZ, 1993, p. 17-19.)
6
“A noção de consciência moral, no sentido que acabou prevalecendo na tradição ética do Ocidente
reconhece a sua gênese histórica em duas fontes do nosso sistema de normas e valores: a fonte greco-
-romana e a fonte bíblico-cristã.” (Cf, VAZ, Crise e verdade da consciência moral, p. 464).
7
Lima Vaz segue o pensamento tomásico: “A consciência moral é, pois, definida como um ato que
reflete o agir moral para testificar, julgar e acusar ou escusar, reunindo pois, em síntese vital, além
do momento cognitivo expresso no juízo, o momento volitivo presente na responsabilidade diante de
si mesmo livremente assumida. Em Tomás de Aquino harmonizam-se, portanto, equilibradamente
a tendência intelectualista da tradição grega e a tendência voluntarista da tradição cristã”. (Cf. VAZ,
Crise e verdade da consciência moral. p. 466).
A gênese dialética da lei está justamente nessa relação moral entre o singu-
lar-universal, na qual a consciência, pela educação, reconhece o cumprimento da
lei como exercício necessário à sua felicidade e consente em viver segundo o bem.
“O bem assume, a partir daí, um caráter normativo e prescritivo, assume a forma
da lei”, (Ibid, p. 97) e se manifesta, primeiramente como lei natural no interior da
consciência, e só depois será erigida juridicamente na sociedade, como o bem co-
mum. A lei é, enfim, intrínseca à consciência moral e faz parte da essência do ato
moral: “A lei é a pátria nativa, a terra nutriz da liberdade”. (Ibid, p. 97).
Da dialética liberdade-bem, a pessoa se torna um ser moral e passa a convi-
ver socialmente com outras pessoas no mundo humano, e, nesse espaço ético, ela
vivencia a dinamicidade de sua liberdade entre outras liberdades e vai se afirman-
do como sujeito histórico e ético. A moralidade é, portanto, a gênese propriamente
humana que expressa, por meio do encontro entre seres espirituais, o fundamento
consensual, notadamente diferente da interpretação que coloca o “sistema das ne-
cessidades” preso aos limites do interesse como origem da sociedade.
Esse fundamento consensual expressa o exercício da razão prática na comu-
nidade, como pensaram Aristóteles e Tomás de Aquino. A razão prática tem um
caráter essencialmente teleológico, cujo movimento interno volta-se para o bem
do indivíduo e para o bem comunitário: “é nessa universalidade que se funda igual-
mente a possibilidade do encontro com o outro como encontro de natureza ética
ou moral, que é a forma mais alta da relação intersubjetiva”. (VAZ, 2000, p. 69). À
razão prática se submetem todas as outras formas de encontro.
O que se evidencia no exercício da razão prática, por meio do processo edu-
cativo, é a conscientização da intercausalidade entre o ethos e a práxis, levando a
pessoa a “reconhecer a aparição do outro no horizonte universal do Bem e consentir
em encontrá-lo em sua natureza de outro Eu”. (VAZ, 2000, p. 71). O reconhecimento
e o consenso social são, com efeito, as formas universais da relação intersubjetiva e
expressam a racionalidade prática no intercâmbio interativo entre o Eu e o Outro:
O ato nega o objeto em seu teor plenamente empírico ou indiferente, pois com
ele se relaciona justamente sobre a razão do bem; e o objeto nega a autonomia
do ato - ou do sujeito- na gênese total do bem, pois só ele confere ao bem um
conteúdo real. (VAZ, 2000, p. 104).
Referências
LIMA VAZ, H. C. de. Escritos de Filosofia II: ética e cultura. São Paulo: Loyola, 1993.
_____. Escritos de Filosofia IV: introdução à ética filosófica I. São Paulo: Loyola, 1999.
_____. Escritos de Filosofia V: introdução à ética filosófica II. São Paulo: Loyola, 2000. 246 p.
_____. Moral, sociedade e nação. Revista portuguesa de Filosofia, Braga, Portugal, n. 53, p.
343-375, 1964.
_____. Crise e verdade da consciência moral. Síntese Nova Fase, Belo Horizonte, CES: Loyola,
v. 25, n. 83, p. 461-466, 1998.
ARISTÓTELES, Ética a Nicômaco, Coleção Os Pensadores, Abril Cultural, 1973
PERINE, Marcelo. Ética e Sociedade: razão teórica versus razão técnica. Síntese nova fase, v.
29. n. 93, p. 49-68, 2002.
U
ma série de acontecimentos violentes perturbavam o mundo, principal-
mente ao final da década de 1960, entre eles destacam-se: a rebelião es-
tudantil, que iniciou na França e percorreu o mundo; os confrontos raciais
inspirados nos movimentos dos estudantes nos Estados Unidos; a introdução de
meios violentos – guerrilha – como arma de resistência e luta dos novos militantes;
Por detrás da aparente confusão subjaz a firme convicção à luz da qual todas
as distinções seriam, no melhor dos casos, de pouca importância: a convicção
de que o tema político mais crucial é, e sempre foi, a questão sobre ‘quem
domina quem’. Poder, vigor, força, autoridade e violência seriam simples pala-
vras para indicar os meios em função dos quais o homem domina o homem;
são tomados por sinônimos, porque têm a mesma função. Somente quando
os assuntos públicos deixam de ser reduzidos à questão do domínio é que as
informações originais no âmbito dos assuntos humanos aparecem, ou, antes,
reaparecem, em sua autêntica diversidade. (ARENDT, 1994, p. 36).
3
Arendt apresenta como exemplo a rebelião estudantil na França ao final dos anos 60. Os jovens
universitários revelaram a fragilidade do sistema político do governo e o sistema de burocracias
partidárias que vieram abaixo, com a simples, inofensiva e não-violenta revolta dos estudantes, que
desafiavam o duro sistema universitário. Não houve uma revolução, naquele momento, porque não
havia nenhum estudante preparado para assumir o poder, tampouco esta era a intenção dos estudan-
tes. (ARENDT, 1994, p. 39 e 40).
4
“A noção aristotélica de enérgeia (efetividade) designava todas as atividades que não visam um fim e
não resultam numa obra acabada, ou seja, são atividades que esgotam todo seu significado no próprio
desempenho. Dessa experiência de total efetividade advém o significado original da paradoxal ideia
do ‘fim em si mesmo’. Na ação e no discurso não se busca um fim (télos), mas este reside na própria
atividade que se converte em entelécheia (realidade); a obra não sucede e extingue o processo, mas
está contida nele. A grandeza, ou o significado específico de cada ato, só pode residir no próprio come-
timento, e não nos motivos que o provocaram ou no resultado que produz”. (ARENDT, 1989, p. 218).
Referências
ARENDT, H. A condição humana. Tradução de Roberto Raposo; Revisão e apresentação de
Adriano Correia. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010.
______. Crises da república. Tradução de José Volkmann; Revisão de Antenor Celestino de
Souza. 2. ed. 1 reimpressão. São Paulo: Perspectiva, 2004.
______. Sobre a violência. Tradução de André Duarte. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994.
______. Entre o passado e o futuro. Tradução de Mauro W. Barbosa de Almeida. 3. ed. São
Paulo: Editora Perspectiva, 1992.
______. Da revolução. Tradução de Fernando Dídimo Vieira. 2. ed. São Paulo: Editora Ática.
Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1990.
Resumo
A idéia desse artigo é refletir sobre a narrativa do filme O artista que retrata
a Hollywood de 1927, destacando o astro do cinema mudo George Valentin
(Jean Dujardin) que vive o dilema da chegada do cinema falado, aconteci-
mento que fará com que ele perca espaço e acabe caindo no esquecimento.
Concomitantemente, a bela Peppy Miller (Bérénice Bejo), jovem dançarina
por quem ele se sente atraído, recebe uma oportunidade para trabalhar no
mesmo lugar em que ele reinava como ídolo absoluto. O filme traz o conflito
e o medo das mudanças provocadas pela introdução de novas tecnologias e
o fracasso do projeto antigo do cinema mudo. Apostar nessa narrativa insti-
gante como uma nova modalidade de análise é uma descoberta que articula
subjetividade e gênero na ótica do pragmatismo como teoria ad hoc, entendi-
da como corrente filosófica que privilegia a conversação.
Palavras-chave: subjetividade, cinema, neopragmatismo
O
caminho para refletir sobre o sujeito ou subjetividade aponta diversas pos-
sibilidades. O que é o sujeito? O que é a subjetividade? Essas perguntas são
difíceis de dar uma resposta. Fiquei pensando o que diria se meus alunos
ou outra pessoa qualquer me questionasse a respeito.
Começaria dizendo que de acordo com alguns autores essa noção pode ser
compreendida como:
Diferentemente dessa noção concebida por Chauí, Stuart Hall (2011) amplia e
expõe a problemática do sujeito da seguinte forma: sujeito do iluminismo, sujeito so-
ciológico e sujeito pós-moderno. Com a relação ao primeiro e segundo ele afirma que
(...) O sujeito não é alguma coisa que possa ser visto em sua nudez ontológica
ou pesado e medido em sua materialidade. O sujeito é apenas - e é muito,
muitíssimo - uma rede linguística de crenças e desejos. Então, o que sou eu,
nesta concepção? Eu sou, basicamente, um ser de linguagem. Sou, basicamen-
te, um conjunto de crenças que eu tenho sobre mim; de definições que eu dou
sobre mim; de interpretações, de versões, de imagens que crio sobre o que,
supostamente, seria “a minha, a nossa natureza”. Só que todas estas versões
são construtos linguísticos. O sujeito só existe e já existe, compulsoriamente,
“sob descrição”.
Quando aceitamos a idéia sugerida por Rorty de que o sujeito é “uma rede de
crenças e desejos, postulado como causa interior dos atos de fala dos orga-
nismos humanos”, pois bem, quando aceitamos esta idéia, também estamos
aceitando uma idéia provisória; uma idéia “sob descrição”; uma idéia “até se-
gunda ordem”; uma boa idéia até que surja uma melhor! Toda idéia que temos
de nós mesmos só pode ser linguísticamente construída, e toda linguagem
traz a marca de seu tempo, da forma de vida da qual faz parte e da qual é,
ao mesmo tempo, uma expressão, impressão de estar fazendo o uso correto”,
sem, de fato, estar utilizando corretamente as palavras.
O sujeito é aquele que faz a ação sobre o objeto. A ação pode ser um ato de fala
ou um comportamento corporal mais amplo que o falar. Aquele que age, fala,
qualifica, predica, avalia, interpreta e cria – este é o sujeito. A sociologia ele-
geu “a sociedade” como sendo seu sujeito. A psicologia elegeu o “indivíduo”
como sendo o sujeito (2006, p. 40).
Ghiraldelli (2006) também explica que a noção de identidade foi sendo apro-
priada e vai corresponder por um lado às respectivas noções psicológicas e socio-
lógicas do sujeito, dependendo da situação: “identidade social” ou “identidade de
grupo” serviu para que os sociólogos falassem em “atores sociais”, por outro lado
a “identidade psíquica” ou a “identidade individual” serviu para que os psicólogos
viessem a falar em “eu” e/ou “si-mesmo”.
Karl Marx (1818-1883) disse que o sujeito, o responsável pelos atos, não era o
homem individual, e sim “o capital”, e que o homem individual nem era com-
pletamente consciente, uma vez que estava sob o jugo da “ideologia do capi-
talismo”. Sigmund Freud (1856-1939), por sua vez, ao usar a idéia de “mente”
como tendo “consciente” e “inconsciente”, elaborou a célebre frase “O eu não
é senhor em sua própria casa”, aliando-se a Marx na crítica das possibilida-
des de o homem poder assumir a condição de sujeito. Esse movimento crítico
continuou no século XX. Martin Heidegger (1889-1976), na esteira de Friedri-
ch Nietzsche (18844-1900), fustigou a noção de sujeito acoplada à noção de
“Homem” da doutrina do “Humanismo”. Willard Quine (1907-2000) solapou
a noção de mente como receptáculo de significados que seriam referências de
objetos não-lingüísticos. Michel Foucault (1926-1981), por sua vez, declarou
a inexistência da noção de autor (...).
Este contexto tomado por estes embates teóricos foram traçando um percur-
so situado no paradigma moderno em direção ao paradigma pós-moderno.
Nesse espaço teórico em que se criavam novos discursos sobre essa proble-
mática, o neopragmatismo tenta fazer uma redescrição do que é o “sujeito”. Deixa
de usar o termo “sujeito” ou “indivíduo” ou “identidade” e se fixa na noção de “fa-
lante” (2006, p.43). No que tange a formulação da subjetividade Rortyana como
rede de crenças e desejos, tanto Costa quanto Ghiraldelli assume essa construção
de subjetividade como teoria ad hoc.
Mais tarde os neopragmatistas elaboram a ideia de que uma “rede de crenças
e desejos” se mostra por numerosas narrativas e quando conseguimos ver quais
narrativas que, ao longo da história, permanecem coerentes e constantes, temos
então o que Rorty atualmente, segundo Daniel Dennett, chama de “centro de gra-
vidade” (ou centros de gravidade – no plural) de conjunto de narrativas. Ghiral-
delli ainda menciona que Arthur Danto oferece indicações ao comentar as relações
entre estética e ética. O que se traduz no que ele chama de “espelho”. “O espelho
que fornece, para “alguém” que procura o psicólogo, o sociólogo (ou é procurado
por eles) ou que está sob as diretrizes do pedagogo, as melhores imagens desse
“alguém”? Finalizando esse indicativo Ghiraldelli conclui dizendo que “o psicólogo,
o sociólogo e o pedagogo neopragmatistas são apenas construtores de bons espe-
lhos (2006, 47).”
Após muitas dúvidas sobre como vincular essa discussão da subjetividade
moderna e o filme o artista, selecionei alguns recursos que podem fazer a diferen-
ça. O primeiro refere-se ao filme Un homme de têtes de Mieles(1898). O segundo
relaciona com a poesia Auto-retrato de Cecília Meireles e por último o quadro “As
duas fridas” de Frida Kahlo que remetem para a singularidade da emergência da
No que se refere “As duas Fridas”, a pintura é concebida pelos seus biógrafos
e críticos como sendo um auto-retrato que enfatiza a metade européia (pelo pai
alemão) e metade mexicana (por parte da mãe), seu auto-retrato de 1939 é defi-
nitivo quanto ao sentimento que tem quanto a esta mistura. Ali, ela trata emoções
envolvidas na sua separação e crise matrimonial com Diego, porém revela nitida-
mente a Frida mexicana, com roupa tehuana, que é a mais amada, enquanto a ou-
M
ostrar a subdivisão do expediente didascálico-mistico da arte figurativa
medieval em símbolo a alegoria, designações de onde derivam respecti-
vamente o símbolo teosófico dos românticos e seu legado – o fenômeno
do Jugendstil (Artnouveau) da passagem do século XIX-XX em contraposição à ale-
goria reconceituada como armadura da modernidade – reconhecida na poesia bau-
delaireana e posteriormente na estética expressionista – estudo esse que pretende
investigar, em primeiro lugar, não só a origem da alegoria barroca na emblemática
dos antigos, mas a descendência da arte seiscentista no expressionismo que tem
como patrono o pintor El Grego;
• em segundo lugar, a reflexão sobre a análise benjaminiana do Jugendstil
que denuncia a antecipação, na estética da Belle Époque, de condicionan-
tes míticos utilizados pelo nacional socialismo para seduzir as massas,
por se basear no cânon da impessoalidade do artista, permitindo assim,
ao eliminar a unidade do singular, a contaminação de preceitos doutriná-
rios imperativos, estabelecidos na política ideológica da eugenia ariana;
• em terceiro lugar, investigar, no movimento estético da cristalização
simbólica que tenta a todo custo dissimular, na ausência de tonalidade
afetiva da acedia, a vertigem do desmoronamento de valores da época
bismarquiana, no caso alemão, mas que deixa seu rastro na lividez alar-
mante da infertilidade das figuras femininas do Jugendstil e que encon-
tra na alegoria de Baudelaire seu adversário mais forte, na nobreza de
rejeitar a opção fácil de camuflar a história do poder;
Referências
AGAMBEN, Giorgio, O que é o contemporâneo? e outros ensaios. Chapecó, SC: Argos, 2009.
BAUDELAIRE, Charles. Obras Estéticas – Filosofia da imaginação criadora. Tradução de Edi-
son Darci Heldt. Petrópolis, RJ: Vozes, 1993.
. As Flores do Mal. Tradução de Ivan Junqueira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.
BENJAMIN, Walter. Origem do drama barroco alemão, Tradução de Sérgio Paulo Rouanet,
São Paulo: Brasiliense, 1984.
. Gesammelte Schriften, Frankfurt am Main: Suhrkamp Verlag, 1993.
A
empreitada lançada em A Estrutura do Comportamento (1942) é a de
compreender a noção de comportamento por meio da reestruturação da
relação entre a natureza e a consciência. O comportamento, para o feno-
menólogo, não se localiza no sistema nervoso central, como acreditavam algumas
psicologias, mas sim no debate do organismo com seu ambiente físico e no caso do
homem, também com seu ambiente social. Conforme BIMBENET (2000, 59, minha
tradução) “o comportamento não é nem uma coisa nem uma ideia, nem um amon-
toado de reflexos cegos, nem invólucro de uma pura consciência; em sua neutrali-
dade é possível perceber o ‘debate’ perpétuo do homem com um mundo psíquico e
social”. Tendo como pano de fundo o debate da localização “do significado do lugar
na substância nervosa”, uma vez que o autor mostra que a organização do sistema
nervoso não é garantida pelos aspectos anatômicos, é que se começa indiretamen-
te uma abordagem da “função simbólica” ou da “atitude categorial”; pois ao refutar
os reflexos como fenômenos isolados, bem como ao refutar o cérebro enquanto
centro organizador do sistema nervoso, o autor aponta para uma ambivalência do
espaço corporal, e é aqui que aparece o ápice da forma simbólica.
O que lhe possibilita precisar a crítica à ideia de natureza como pura exterio-
ridade, submetida às categorias rígidas da visão objetiva/intelectualista, como por
exemplo: a categoria de quantidade, medida, ou mesmo a de causalidade, etc. Para
o autor, a natureza é concebida como um conjunto de estruturas que se organizam
segundo parâmetros perceptivos, cujo sentido dos fenômenos apreendidos não se
destaca dos eventos materiais expostos, consequentemente, a natureza ganha uma
concavidade onde os comportamentos aparecem, apresentando assim, um contato
da consciência com a realidade concreta. Resignificando a noção de natureza, o fi-
2
Tal como pensa como pensa RAMOS (2009, 2), que “o surgimento da ordem humana inaugurada
pela percepção era por si só o aparecimento ruidoso de um simbolismo inédito”.
3
De acordo com outra citação de RAMOS, entendemos melhor o significado atribuído ao simbólico,
como se ele fosse exclusivamente humano, ignorando a própria afirmação merleaupontiana de que
o simbólico já começa na adaptação do animal ao seu meio, uma vez que para RAMOS (2009, 3) “o
filósofo permanece preso a uma concepção tradicional de natureza, o que obriga a creditar todo o
simbolismo à ação humana”. Tal afirmação da autora implica numa não atribuição da expressividade
à natureza, cabendo a esta apenas a repetição e a monotonia de seus termos. Quando, para MERLE-
AU-PONTY (2006, 312) “fomos remetidos da ideia de uma natureza como omnitudo realitatis à de
objetos que não poderiam ser concebidos em si, partes extra partes, e se definem apenas por uma
ideia da qual participam, um significado que se realiza neles”.
Referências
BIMBENET, É. (2000). La structure du comportamento: l’ordre humain (chap. III, 3). Paris:
Ellipses.
FERRAZ, M. S. A. (2006). O transcendental e o existente em Merleau-Ponty. São Paulo: Asso-
ciação Editorial Humanitas – Fapesp.
4
Por a priori da espécie MERLEAU-PONTY (2006, 194) entende “a orientação do organismo em direção
a comportamentos que tenham um sentido biológico, em direção a situações naturais, isto é, um a priori
do organismo. Existe pois uma norma inscrita nos próprios fatos”. Entretanto, não devemos tomar esta
norma imbricada no comportamento do organismo como sendo somente da ordem da natureza, como
se ela estivesse apartada da cultura. Para o filósofo a natureza e a cultura são dadas simultaneamente,
não há nada que seja pura natureza que já não se encontre imbricada na cultura e vice-versa.
Resumo
A Dialética Negativa (1966) de Theodor Adorno estabelece como tarefa da
Filosofia a aproximação ao não-idêntico e não-conceitual. Desse modo ins-
taura-se uma relação antinômica entre seu projeto e a atividade conceitual:
ora de crítica do conceito forjado sob o princípio de Identidade; ora de valori-
zação do conceito como organon necessário do conhecimento. Como resposta
a esse impasse encontramos a necessidade de um desencantamento do con-
ceito como via de reconfiguração da atividade conceitual e, com ela, da pró-
pria filosofia. Este artigo tem por objetivo delimitar o problema configurado
como desencantamento do conceito, pretendendo responder sobre o que leva
Adorno a concluir, em face do problema do conceito, pela necessidade de seu
desencantamento; como se desenvolve propriamente este processo; e, por
fim, quais seus resultados e seu papel dentro do projeto da Dialética Negativa.
Palavras-chave: Adorno; Dialética Negativa; Conceito; Não-idêntico.
C
onsiderada uma das mais importantes obras de Theodor Adorno do ponto de
vista de seu diálogo com a tradição, a Dialética Negativa, de 1966, inicia-se
no confronto com a questão sobre a possibilidade e a legitimidade de conti-
nuação da própria filosofia, enquanto atividade intelectual. Esta questão se coloca à
medida que o fracasso dos projetos filosóficos marcados pela promessa de coincidir
com a realidade terminou, senão por deslegitimar, ao menos pôr sob suspeita o papel
da teoria. De fato, para Adorno, a situação da Filosofia de seu tempo estaria marcada
por essa impossibilidade, ou bloqueio, de adequação entre pensamento e realidade,
A ratio que, para se impor como sistema, eliminou virtualmente todas as de-
terminações qualitativas às quais se achava ligada caiu em uma contradição
irreconciliável com a objetividade que violentou, pretendendo compreendê-
-la. Ela se distanciou tanto mais amplamente dessa objetividade quanto mais
plenamente a submeteu aos seus axiomas, por fim, ao axioma da identidade.
(ADORNO, 2009, p.27)
Referências
Obras de Theodor W. Adorno
______. Actualidad de la filosofia. Barcelona: Ediciones Paidos, 1991.
______. Palavras e sinais. Modelos críticos 2. Petrópolis, RJ: Vozes, 1995.
______; HORKHEIMER, Max. Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos. 2.ed. Rio de
Janeiro: Zahar, 2006.
______. Lectures on Negative Dialetics. Cambridge: Polity Press, 2008.
______. Dialética negativa. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2009.
Bibliografia Secundária
BUCK-MORSS, Susan. The Origin of Negative Dialectics. New York: Free Press, 1979.
CHIARELLO, M. Natureza-morta: finitude e negatividade em Adorno. São Paulo: Edusp, 2006.
Resumo
A hipótese a ser desenvolvida é a de que por meio do senso comum possi-
bilita-se a intersubjetividade, a qual é imprescindível para a constituição da
esfera pública, no pensamento de Hannah Arendt. Em A Condição Humana,
Arendt compreende a realidade como o produto da manifestação pública das
opiniões. Já em A vida do Espírito, o senso comum é a faculdade humana que
unifica as experiências advindas dos sentidos ao mesmo tempo em que, pelo
diálogo entre diferentes pessoas, permite a confirmação das percepções de
cada uma delas. Depreende-se como o senso comum é a pré-condição para
uma vida política autêntica, na qual há espaço para o diálogo, sem uso da vio-
lência, donde a necessidade de analisa-lo. Pois, para Arendt, a política depen-
de radicalmente da pluralidade humana, preservada apenas enquanto houver
livre discurso entre os participantes.
Palavras-chave: Hannah Arendt; senso comum; intersubjetividade; esfera
pública; política.
O
conceito de senso comum é central na arquitetura teórica de Hannah Aren-
dt. A hipótese que irei desenvolver é a de que por meio dele possibilita-se
a intersubjetividade, a qual é imprescindível para a constituição da esfera
pública. A realidade do mundo, isto é, a certeza da existência de um mundo exterior
e de sua objetividade, só é possível graças à “comunidade de sentido” instituída
pelo senso comum.
Um obstáculo, contudo, deve ser superado antes de proceder nesse plano de
trabalho. Ocorre que uma leitura atenta dos textos de Arendt revela não ser esta
expressão, “senso comum”, utilizada pela autora de forma tal que seu significado
seja unívoco. Na linguagem cotidiana, quando afirmo que alguém está falando em
aquilo que [...] nós chamamos de senso comum, o sensus communis, é uma
espécie de sexto sentido necessário para manter unidos os meus cinco senti-
dos e garantir que é o mesmo objeto que eu vejo, toco, sinto o gosto, cheiro, e
escuto [...] Este mesmo sentido, um misterioso “sexto sentido”, porque ele não
pode ser localizado como um órgão corporal, ajusta as sensações dos meus
cinco sentidos estritamente privados – tão privados que as sensações em suas
meras qualidades e intensidades sensitivas são incomunicáveis – a um mun-
do comum compartilhado com os outros.
A pensadora relaciona, nessa passagem, a operação do sensus communis com
a intersubjetividade. Mediante essa relação, esse sentido permite a comunicação
2
Esse perigo é presente na resenha, publicada em 1946, relativa à obra Problems of men, de John
Dewey. Este pensador estadunidense, segundo Arendt, manteve-se na “torre de marfim” do senso co-
mum, tornando-se inconsciente da radicalidade dos eventos políticos do século XX e da consequente
impropriedade de se utilizar as categorias “tradicionais” para analisar esses fenômenos. Por esse
motivo, para ela é difícil de se concordar com Dewey, mas também ainda mais difícil de divergir de
suas ideias, posto que são o senso comum “personificado” (ARENDT, 2005).
A tradição, absorvida pelo senso comum, impõe os limites daquilo que pode
ser dito, especialmente em relação à política. Os conceitos e juízos transmitidos
“tradicionais” têm a capacidade de moldar as experiências dos seres humanos. O
perigo, como Arendt já apontara nas Origens (1989), é chegar assim à incapacidade
de compreender adequadamente os eventos quando estes não se adéquam à mol-
dura da tradição, podendo mesmo alcançar a impossibilidade de se articular qual-
quer discurso que a contrarie: “A simples tendência de excluir tudo aquilo que não
fosse consistente transformou-se num grande poder de exclusão, que a manteve [a
tradição] intacta contra todas as experiências novas, contraditórias e conflitivas”
(ARENDT, 2008, p. 93).
Essa mesma perspectiva positiva é mantida na obra A condição humana, de
1958. Afirma-se ali que
O único atributo do mundo que nos permite aferir sua realidade é o fato de ser
comum a todos nós, e o senso comum ocupa uma posição tão alta na hierar-
quia das qualidades políticas porque é o único sentido que ajusta à realidade
como um todo os nossos cinco sentidos estritamente individuais e os dados
rigorosamente particulares que eles percebem (ARENDT, 2010, p. 260).
Referências
ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. 5 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
ARENDT, Hannah. A condição humana. 11 ed, Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010.
______. A dignidade da política. Rio de Janeiro: Relumé-Dumará, 1993.
______. A promessa da política. Org. e introdução de Jerome Kohn. Rio de Janeiro: DIFEL,
2008.
O
grau de diferenciação que um ser humano pode atingir em relação a outro
não tem paralelo em nenhum outro gênero de existência. A variação obser-
vada entre as diversas culturas humanas na história sugere que o homem
se encontra em uma condição singular no universo: ele compartilha com as outras
espécies necessidades biológicas que o ligam inequivocamente à natureza, mas
uma parte dele parece estar fora dela, transcendê-la; essa parte, que torna os ho-
mens e as culturas tão diferentes entre si, é em si mesma vazia, desprovida de um
conteúdo determinado, cabendo ao próprio homem preenchê-la. Para usar uma
imagem orteguiana, o homem parece ser mesmo um centauro ontológico, com
uma porção imersa na natureza e outra porção fora dela, e o que há de humano
neste estranho animal é precisamente aquilo que cabe a ele mesmo inventar. (Cf.
GASSET, 1957b, p.38).
É possível que uma maior quantidade de indivíduos, por assim dizer, “origi-
nais”, fosse benéfica à sociedade, pois isso significaria uma maior riqueza de for-
mas de vida, culturas, pensamentos, idéias, que provavelmente se refletiria na di-
minuição dos preconceitos e da intolerância. Mas não se pode esquecer que idéias
como as de que os homens em certo sentido são iguais, que todos compartilham o
mesmo mundo, que a resolução de certos problemas que afligem um determina-
do estrato da sociedade resultaria em um benefício para a humanidade como um
todo, etc., são fecundas na medida em que estimulam em cada um a sensação de
pertencimento ao corpo social e consequentemente a solidariedade indispensável
a uma sociedade relativamente sadia.
1
Um autor não estranho a Ortega já tinha apontado essa característica dos nossos tempos. Afirma
Nietzsche no aforismo 48 de A gaia ciência que “Talvez nada diferencie tanto os homens e as épocas
como o grau diverso de conhecimento que eles têm da aflição, tanto da alma como do corpo. No que
toca a essa última, talvez sejamos todos nós, modernos, apesar de nossas enfermidades e fragilida-
des, ignorantes e fantasiadores ao mesmo tempo, por falta de uma rica experiência própria – em
comparação a uma era de temor – a mais longa das eras –, em que o indivíduo tinha de se proteger da
violência e, em nome desse objetivo, era obrigado a tornar-se ele próprio um ser violento. Naquele
tempo, um homem perfazia um rico treino em privações e tormentos físicos, e compreendia até mes-
mo uma certa crueldade consigo, um deliberado exercício da dor, como recurso necessário para a sua
preservação; naquele tempo, cada um educava os seus para suportar a dor, gostava de infligir dor e
via nas mais terríveis coisas do gênero sucederem a outros, sem outro sentimento que não o da pró-
pria segurança. [...] A inexperiência geral nas duas formas de dor e a pouca frequência da visão de um
sofredor têm uma importante consequência: hoje a dor é muito mais odiada que antigamente, mais
do que nunca fala-se mal dela, considera-se difícil de suportar até mesmo a presença da dor como
pensamento, e faz-se dela um caso de consciência e uma objeção a toda a existência.” (NIETZSCHE,
2002, pp.88-89) O pensador alemão está se referindo à filosofia pessimista, que segundo ele seria o
resultado não de um tempo de perigos e privações, mas, ao contrário, de épocas refinadas nas quais
até mesmo “picadas de mosquito” tornam-se sofrimentos de primeira ordem. Seu remédio para a
“aflição” dos tempos modernos seria, então, justamente, a aflição, a verdadeira.
No vale hablar de ideas u opiniones donde no se admite una instancia que las
regule, una serie de normas a que en la discusión cabe apelar. Estas normas
son los principios de la cultura. No me importa cuáles. Lo que digo es que no
hay cultura donde no hay normas a que nuestros prójimos puedan recurrir. No
hay cultura donde no hay principios de legalidad civil a que apelar. No hay cul-
tura donde no hay acatamiento de ciertas últimas posiciones intelectuales a
que referirse en la disputa. No hay cultura cuando no preside a las relaciones
económicas un régimen de tráfico bajo el cual ampararse. No hay cultura donde
las polémicas estéticas no reconocen la necesidad de justificar la obra de arte.
Cuando faltan todas esas cosas, no hay cultura; hay, en el sentido más estricto
de la palabra, barbarie. (GASSET, 1983, 97)
A cultura para Ortega é uma espécie de solo onde se pode pisar, é o firme
diante do vacilante. E esse terreno é formado justamente por um conjunto de nor-
mas; onde elas faltam, há a barbárie. A barbárie é precisamente a ausência de nor-
mas e possíveis instâncias de apelação. O que está em jogo no texto de Ortega é a
ameaça de surgimento – ou retorno – de um tipo de sociedade onde os homens
tenham perdido a capacidade de contar uns com os outros, conviver uns com os
outros, e os usos e normas de convivência tenham retrocedido a um primitivismo
próximo da barbárie, o que não é contraditório imaginar, afinal, sob quais normas
vive o homem contemporâneo?
Para tentar uma aproximação do autor ibérico com um pensador atual que
aborda o problema do individualismo, afirma o filósofo Gilles Lipovetsky que
Vê-se então que o autor, ao se referir à democracia liberal como a mais alta
vontade de convivência e de respeito às minorias, está se referindo antes ao libera-
lismo que à democracia, ou seja, no conceito de democracia liberal é o liberalismo
que representa esta ideia de convivência legal. Mais ainda, Ortega introduz aqui
a noção de “hiperdemocracia” como uma espécie de degeneração da democracia,
onde a ação direta – imposição direta das aspirações – substitui a ação indireta –
convivência legal, trâmites para fazer valer os próprios interesses.
A democracia liberal, ao se colocar a ênfase no elemento liberal, representa
para Ortega um regime em que a ação legal, ou ação indireta, substitui a ação dire-
ta. Em um texto anterior à Rebelião, España invertebrada, afirma Ortega que
4
“La tesis era que la civilización del siglo XIX ha producido automáticamente el hombre-masa. [...] Esta
civilización del siglo XIX, decía yo, puede resumirse en dos grandes dimensiones: democracia liberal y
técnica.” (GASSET, 1983, p.127)
Por eso, lo ‘nuevo’ es en Europa ‘acabar con las discusiones’, y se detesta toda
forma de convivencia que por sí misma implique acatamiento de normas obje-
tivas, desde la conversación hasta el Parlamento, pasando por la ciencia. Esto
quiere decir que se renuncia a la convivencia de cultura, que es una conviven-
cia bajo normas, y se retrocede a una convivencia bárbara. Se suprimen todos
los trámites normales y se va directamente a la imposición de lo que se desea.
[...] Toda la convivencia humana va cayendo bajo este nuevo régimen en que
se suprimen las instancias indirectas. En el trato social se suprime la ‘buena
educación’. La literatura, como ‘acción directa’, se constituye en el insulto. Las
relaciones sexuales reducen sus trámites. (GASSET, 1983, pp.99-100.)
Referências
KANT, Immanuel. Fundamentos da metafísica dos costumes. Trad. bras. Lourival de Queiroz
Henkel. Rio de Janeiro: Tecnoprint, s/d.
LIPOVETSKY, Gilles. A sociedade pós-moralista: o crepúsculo do dever e a ética indolor dos
novos tempos democráticos. Trad. bras. Armando Braio Ara. Barueri, SP: Manole, 2005.
MARCUSE, Herbert. Razão e revolução: Hegel e o advento da teoria social. Trad. bras. de
Marília Barroso. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.
NIETZSCHE, Friedrich. A gaia ciência. Trad. de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia
das Letras, 2002.
ORTEGA Y GASSET, José. España invertebrada. Madrid: Revista de Occidente, 1957.
_____.La rebelión de las masas. Madrid: Revista de Occidente en Alianza Editorial, 1983.
_____. Meditación de la técnica. Madrid: Revista de Occidente, 1957.
SCHMITT, Carl. A crise da democracia parlamentar. Trad. Inês Lohbauer. São Paulo: Scritta,
1996.
Resumo
A insistência de Hannah Arendt pela análise fenomênica da vita activa cor-
responde ao intento de recuperar as bases encobertas pela própria tradição
filosófico-política. Faz-se necessária uma hermenêutica capaz de desobstruir
o passado e a tradição de seus escombros metafísicos. A inspiração para tal
estratégia vem de Martin Heidegger, que, na busca pelo caráter genuíno dos
conceitos tradicionais da filosofia, propôs a sua desconstrução crítica. Para
ele, seria possível apropriar-se de forma positiva da tradição uma vez que se
procedesse com ela de modo radical, isto é, desconstruindo suas categorias
já consagradas. Arendt, do mesmo modo, pretende despir a tradição de seus
preconceitos a fim de recuperar aquelas experiências políticas esquecidas
sob os sedimentos das categorias consagradas, o que traria à tona novas pos-
sibilidades contidas nessa mesma tradição e nesse mesmo passado.
Palavras-chave: Hannah Arendt. Tradição. Passado. Política.
A
obra de Hannah Arendt é atravessada pela constatação do caráter ambi-
valente da ruptura da tradição político-filosófica ocidental. Se a tradição é
o que nos vinculava ao passado, estabelecendo entre ele e o presente um
verdadeiro elo hermenêutico, a sua perda acarretou dois problemas imediatos. O
primeiro deles é o empobrecimento do mundo humano, pois perder a tradição é
perder o acesso ao passado, é ser privado de memória, o que equivale, por sua
vez, à perda de profundidade: “Pois memória e profundidade são o mesmo, ou
antes, a profundidade não pode ser alcançada pelo homem a não ser através da
recordação” (ARENDT, 2002c, p. 131)1. O segundo problema diz respeito à perda
dos critérios e das categorias que a tradição fornecia para fins de interpretação e
1
Veja também A Promessa da Política, p. 87 e 88.
2
Para uma explicação pormenorizada a esse respeito, veja A Dignidade da Política, p. 91 a 98.
3
Uma explicação detalhada acerca do que Arendt entende por “o social” é encontrada em A Condição
Humana, p. 26 a 32 e 46 a 60. Para uma melhor compreensão da política convertida em administração
econômica, veja os capítulos II, III e IV da mesma obra. Um exame mais detalhado sobre a sociedade
de massas se encontra na terceira parte de Origens do Totalitarismo, em especial nas p. 355 a 389.
4
Arendt é enfática em afirmar que o esgotamento teórico das categorias tradicionais, tal como se
expressa, em especial, nas obras de Kierkegaard, Nietzsche e Marx, não deve ser tomado como causa
do totalitarismo, fornecendo antes os elementos a partir dos quais os regimes totalitários puderam
adquirir forma. Veja Essays in Understanding 1930-1954, p. 325 ou p. 471 de Compreender – Forma-
ção, Exílio e Totalitarismo – Ensaios (1930-1954).
Referências
ARENDT, Hannah. A Condição Humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010.
_______. A Dignidade da Política. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2002.
_______. A Promessa da Política. Rio de Janeiro: DIFEL, 2008.
_______. A Vida do Espírito. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2002b.
_______. Compreender: Formação, Exílio e Totalitarismo (ensaios). Trad. Denise Bottman, org.
Introdução e notas Jerome Kohn. São Paulo: Companhia das letras; Belo Horizonte: Editora
UFMG, 2008b.
_______. Entre o Passado e o Futuro. São Paulo: Editora Perspectiva, 2002c.
_______. Essays in Understanding: 1930-1954. Edited by Jerome Kohn. New York: Harcourt,
Brace & Co. 1994.
_______. Origens do Totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
DUARTE, André. O Pensamento à Sombra da Ruptura. São Paulo: Paz e Terra, 2000.
HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo – Parte I. Petrópolis, Rio de Janeiro: Editora Vozes, 2004.
_______. The Basic Problems of Phenomenology. Tradução de Albert Hofstadter. Bloonin e In-
diana: Indiana University Press, 1982.
MORAES, Eduardo Jardim de; BIGNOTTO, Newton, org. Hannah Arendt: diálogos, reflexões,
memórias. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2001.
TAMINIAUX, Jacques. La fille de Thrace et le penseur professionnel, Arendt et Heidegger. Pa-
ris: Payot, 1992.
Sistematicidade na escrita e
no pensamento do antissistema
ensaístico de Theodor Adorno
Resumo
Para Theodor Adorno, a forma do ensaio é a única forma de apresentação
do pensamento filosófico capaz de questionar a autoridade do método lógi-
co dedutivo e indutivo, sendo, portanto, a única forma de apresentação do
pensamento capaz de responder satisfatoriamente à tarefa imposta para a
filosofia desde 1925 por Walter Benjamin, que no prefácio epistemo-crítico
de sua tese de livre-docência Origem do Drama Barroco Alemão apontava
para a necessidade de se recuperar uma tarefa fundamental da filosofia que
havia sido esquecida especialmente depois de Descartes: a da apresentação
(Darstellung) da verdade. O objetivo deste artigo é discutir a teoria do ensaio
elaborada por Adorno em “O ensaio como forma”, tentando compreender a
sistematicidade, em certo sentido artística, de um modo de apresentação que
se opõe ao sistema.
Palavras-chave: Adorno, escrita, pensamento, Benjamin.
Introdução
E
scrito por Adorno entre 1954 e 1958, “O ensaio como forma” parece anteci-
par, de certo modo, algumas noções que serão apresentadas pelo pensador
na introdução de sua Dialética Negativa, publicada em 1966. Contudo, como
seria comum pensar, a convergência dos textos não se dá na crítica ao método e ao
sistema, anunciada tanto no Prefácio à Dialética como em boa parte do texto sobre
a escrita ensaística.
Este artigo tem como pressuposto e objetivo o extremo oposto dessa con-
cepção. Parto das ideias de que o ensaio tal como Adorno o pensa está incluído no
O espírito sistemático
A ideia de ensaio como sistema estaria em consonância com o que o próprio
Adorno postula como sendo o modo necessário de se contrapor ao sistema dominan-
te. Segundo afirma, é preciso superar a lógica discursiva “no interior de suas próprias
formas, por força da insistência da expressão subjetiva” (ADORNO, 2008, p. 43). Mas
há ainda dois pontos que a corroboram. Um está no interior do próprio texto sobre
ensaio como forma e o outro é apresentado na introdução do trabalho de 1966.
O primeiro argumento está relacionado com o fato de que ao longo do texto
torna-se claro que a escrita ensaística procede a partir de pelo menos um critério
fundamental, apresentado por Adorno como sendo a promessa que a ciência não
cumpriu: iluminar os objetos desde dentro. Essa postulação é fruto de uma das diver-
sas heranças conceituais que lhe foram deixadas pelo jovem Benjamin. Ela refere-se,
sobretudo, à exigência da crítica de arte imanente trabalhada na tese de doutora-
do sobre os românticos alemães, e aos princípios do conceito de origem trabalhado
na tese de livre-docência sobre o Trauerspiel. Aliás, na base do critério fundamental
apontado por Adorno está um aspecto central do conceito de origem, que, em um
trecho das Passagens, Benjamin (2009, p. 504) reconhece ser uma transposição do
conceito goethiano de fenômeno originário (Urphänomen). De um modo bastante rá-
pido, podemos dizer que o fenômeno originário é um conceito botânico ligado à ideia
de que todos os vegetais do mundo foram formados respeitando leis inerentes a uma
planta primordial, que não existe em lugar nenhum, mas participa de todas as plantas
que conhecemos. Essas leis seriam códigos secretos a serem desvendados por aque-
les que quisessem estudar os vegetais. Na esteira deste pensamento, toda pesquisa
deveria 1) levar em conta o fato de haver leis internas ao objeto estudado que servi-
riam de norte ao procedimento que pretendesse conhecê-lo e 2) simultaneamente
aceitar que essas leis são desconhecidas e que elas irão se mostrar apenas por meio
da imersão na materialidade dos objetos encontrados no mundo. A eficiência da pes-
quisa proposta está em sua capacidade de iluminar o objeto desde dentro, nunca em
iluminá-lo de fora para dentro a partir de um método ou de um sistema qualquer.
A crítica ao sistema e ao método é uma das implicações diretas deste critério
fundamental estabelecido por Adorno. Seu foco é principalmente a lógica carte-
siana que opera por meio do binômio dedução-indução. Por ora, contudo, importa
atentar para a caracterização adorniana do que seria uma investigação sistemáti-
ca. A sistematicidade permanece quando há o estabelecimento de condições pré-
Da sistematicidade do ensaio ou
como proceder metodicamente sem método
Proponho agora que nos voltemos para a teoria adorniana do ensaio pro-
priamente dita para que seja possível observar o processo que acompanha a escri-
Unidade do objeto
Antes de expor o procedimento ensaístico, contudo, gostaria de destacar um
dos critérios que lhe serve de pilar e que diz respeito ao modo como nos relaciona-
mos com a constituição da estrutura da própria realidade: o da unidade do objeto.
Segundo Adorno, o objeto tem uma harmonia interna e uma coerência pró-
prias que devem ser respeitadas pelo pesquisador. Mas o método lógico, sobretudo
o cartesiano, impõe ao objeto a harmonia e a coerência da cadeia lógica dedutiva,
predeterminada antes mesmo do encontro com o objeto para garantir a constru-
ção de uma exposição totalizante, em que tudo faça sentido, em que nada escape.
Esses critérios são apresentados exatamente ao longo do desenvolvimento da crí-
tica que Adorno faz à quarta regra cartesiana, para a qual é necessário “‘fazer em
toda parte enumerações tão completas e revisões tão gerais’ que se esteja certo de
‘nada omitir’” (ADORNO, 2008, p. 33).
A relação com a realidade pode ser entendida se retomarmos aqui o par
conceitual totalidade - unidade apresentado por Lukács (2009) em sua Teoria do
Romance, ao qual Adorno parece se referir. Segundo Lukács, a totalidade é uma
unidade natural que aparece de forma espontânea quando o mundo é homogêneo,
quando todos seus elementos se relacionam substancialmente. Eles formam efeti-
vamente um todo uno. A unidade é aquilo que surge quando a natureza se torna um
caos e a possibilidade daquela relação desaparece. O mundo deixa de ser um todo
e se torna um conjunto de fragmentos, um grande mosaico. Tanto o objeto como
o sujeito são fragmentos. A unidade é o conjunto que eles formam quando unidos,
nunca um todo, mas um conjunto de elementos heterogêneos e descontínuos.
Apesar de fazer parte da realidade da unidade, a forma tradicional de ex-
posição do pensamento acaba por apresentar seu mundo como se ele fosse total a
partir do momento que ela respeita a ordem lógica. Ela aplaina a fratura do mundo
no texto coeso e coerente, com início, meio e fim. O ensaio não. Ele deve assumir
a unidade em sua forma, que deve ser descontínua, fragmentada e sempre aberta
aos imprevistos. Como afirma Adorno, “ele precisa se estruturar como se pudes-
se, a qualquer momento ser interrompido” (ADORNO, 2008, p. 35). É na assunção
dessa estrutura que o ensaio busca a totalidade. “O ensaio deve permitir que a
totalidade resplandeça em um traço parcial, escolhido ou encontrado, sem que a
presença dessa totalidade tenha de ser afirmada” (ADORNO, 2008, p.35).
Resta ver agora como se organiza essa estrutura.
O procedimento ensaístico
Para tratar do procedimento ensaístico é preciso retomar o princípio de res-
peito à autonomia do objeto decorrente da pretensão de iluminá-los desde dentro.
Considerações finais
Para finalizar, gostaria de retomar a definição de pensamento enciclopédia
apresentada por Adorno em sua Dialética Negativa, a que me referi no início dessa
exposição. Atrelado ao espírito sistemático, ele é apresentado como “algo racional-
mente organizado, e não obstante descontínuo, assistemático e mais espontâneo”
(ADORNO, 2009, p.33). Se por um lado temos nessa sentença a negação do esprit
de système, por outro, temos a razão reafirmada. Mas a razão assistemática. A de-
finição dada por Adorno explicita a abertura do pensamento da filosofia buscada
por ele, abertura que está na base do procedimento ensaístico. Esta escrita, assim
como o pensamento que a produz não se deixa encerrar em uma mentalidade an-
titética, para a qual o mundo divide-se simploriamente em um lado racional - para
o que está resguardada a precisão científica capaz de capturar a verdade, capaz de
levar ao conhecimento - e em um lado irracional - reduto da arte, tradicionalmente
vista como incapaz de se relacionar com a verdade. O que importa ao pensamento
enciclopédia e à escrita ensaística é o leque de possibilidades que existe entre um e
outro; em última instância, a tarefa é encontrar no caminho um modelo que permi-
ta abandonar o sistema e o método, que permita, com isso, imergir no objeto, sem
nunca deixar de ser razão organizada.
Justiça, Globalização
e Conhecimento Retórico
Introdução
N
o trecho da letra de Rita Lee e Roberto de Carvalho acima, fica explícito
o preconceito que em geral se tem, no ocidente judaico-cristão, contra
os inúmeros seguidores da fé islâmica. Para além das controvérsias pro-
priamente religiosas ou teológicas, há, como bem se sabe, um choque cultural
Nessa dobra, a função transcendental vem cobrir com uma rede imperiosa, o
espaço inerte e sombrio da empiricidade; inversamente, os conteúdos empí-
ricos se animam, se refazem, erguem-se e são logo subsumidos num discurso
que leva longe sua pretensão transcendental. Eis que nessa dobra a filosofia
adormeceu num novo sono; não mais o do dogmatismo, mas o da antropolo-
gia (FOUCAULT, 1999, 471)
Para termos uma Declaração, ela deveria ser uma Declaração Universal dos
Direitos e deveres, na qual a realidade toda seria englobada. Obviamente, isso
demandaria outra antropologia, mas também uma cosmologia diferenciada e
uma teologia totalmente distinta, a começar pelo nome. O fato de que somen-
te os seres humanos, e não os animais, seriam capazes de fazer essa decla-
ração a invalidaria apenas no mesmo grau no qual a Declaração dos Direitos
Humanos poderia ser contestada em função dos Naga e dos Masai não terem
participado de sua discussão e elaboração (PANIKKAR, 2004, 234)
2
O filme retrata a evasão escolar no interior da China.
Conclusão
O que se procurou mostrar aqui é que na ausência de concepções comuns,
no mundo globalizado atual, do que seja a justiça ou a dignidade protegida nos do-
cumentos internacionais que tratam dos direitos humanos não cabe mais a busca
por fundamentos racionais ou teorias melhores que seriam capazes de pacificar
essas controvérsias, porque sempre se tem, como resultado direto dos processos
globalizantes, perspectivas culturais divergentes que não podem ser inferiorizadas
ou subalternizadas ou mesmo desconsideradas, sob pena de se desrespeitar justa-
mente o sentimento de equidade que se quer promover e implementar. No âmbito
dos direitos humanos, as experiências históricas recentes e as produções teóricas
em torno desse assunto apontam para um divórcio entre universalização e legiti-
mação, entre conhecimento, puro e simplesmente, e reconhecimento, entre o con-
vencimento racional e a persuasão retórica. Fazendo desta, ou mais precisamente,
do conhecimento retórico a grande esperança de se ter, num futuro próximo, um
mundo mais justo, mais solidário, mais humano. Se sua composição e auxílio para
o tema não nos leva nunca a um quadro perfeito nesses quesitos, por sua intrínseca
4
O sentido de auxese ou auxesis é variável no tempo. Hoje entendido como um tipo de hipérbole ou
exagero, outrora compunha o que alguns autores reconhecem tratar-se da alma da retórica, pois toda
argumentação persuasiva quer estender-se ao maior número de auditórios possíveis, a tal ponto que
a quantidade de ouvintes persuadidos foi critério, em diferentes contextos, para se medir o sucesso
do discurso retórico. Cf. REBOUL, Olivier. Introdução à Retórica. Trad. Ivone Castilho Benedetti. São
Paulo: ed. Martins Fontes, 2004, p. 253
Referências
COMPARATO, F. (2005).A Afirmação Histórica dos Direitos Humanos. 4ª ed. São Paulo: ed.
Saraiva.
FERRAZ Jr., T. (1997).Direito, Retórica e Comunicação: Subsídios para uma Pragmática do
Discurso Jurídico. 2ª ed. São Paulo: Ed. Saraiva.
FOUCAULT, M. (1999). As Palavras e as Coisas. Trad. Salma TannusMuchail. 8ª ed. São Paulo:
ed. Martins Fontes.
GADAMER, H. (1997). Verdade e Método: Traços Fundamentais de uma Hermenêutica Filosó-
fica. Trad. Flávio Paulo Meurer. Petrópolis: ed. Vozes.
LYOTARD, J. (2004). A Condição Pós-Moderna. Trad. Ricardo Correa Barbosa. 8ª ed. Rio de
Janeiro: ed. José Olympio.
MARSILLAC, N. (2007). Direitos Humanos e Comunidade Internacional de Espíritos. In: Re-
vista Ethica, v.14, n.1, 87-105.
MOOTZ, F. (2003). A Future Foretold: Neo-Aristotelian Praise of Post-Modern Legal Theory.
Brooklyn Law Review. Vol. 68, n.3, 683 – 719.
_______. (2011). Conhecimento Retórico na Prática e na Teoria Crítica do Direito. Trad. Luzia
Araújo. São Leopoldo: Ed. UNISINOS
PANIKKAR, R. (2004). Seria a noção de direitos humanos um conceito ocidental? In: Baldi,
Cesar. Direitos Humanos na Sociedade Cosmopolita. Rio de Janeiro: ed. Renovar.
PERELMAN, C. (1996). É possível fundamentar os direitos do homem? In: Ética e Direito.
Trad. Maria Ermantina Galvão. São Paulo: ed. Martins Fontes.
_______. (1970). Le Champ de l´Argumentation. Brussel: ed. PUB.
_______. (2002). Tratado da Argumentação: A Nova Retórica. Trad. Maria Ermantina Galvão.
São Paulo: Ed. Martins Fontes.
_______.(1996). A Salvaguarda e o Fundamento dos Direitos Humanos. In: Ética e Direito. Trad.
Maria Ermantina Galvão. São Paulo: ed. Martins Fontes.
PLEBE, A.(1992). Manual de Retórica. São Paulo: ed. Martins Fontes.
REBOUL, O. (2004). Introdução à Retórica. Trad. Ivone Castilho Benedetti. São Paulo: ed.
Martins Fontes.
RÉGIS, A. (2006). Intervenções nem sempre humanitárias: O Realismo nas relações Interna-
cionais. João Pessoa: ed. Universitária/UFPB.
SANTOS, B. (2011). Para um novo Senso Comum: A Ciência, O Direito e a Política na transição
paradigmática. 8ª ed. São Paulo: ed. Cortez.
VATTIMO, G. (1996). O Fim da Modernidade: Niilismo e Hermenêutica na Cultura Pós-Moder-
na. Trad. Eduardo Brandão. São Paulo: ed. Martins Fontes.
Resumo
O texto pretende apresentar uma leitura específica da obra da filósofa italiana
Adriana Cavarero, buscando interpretar as conotações ético-políticas de sua
posição feminista ligada ao pensamento da diferença sexual. A partir dessa in-
terpretação, busca apontar as aproximações e distanciamentos entre o conceito
de unicidade encarnada, defendido pela filósofa, e um conceito de singularida-
de, ambos colocados como alternativa teórica ao conceito universal Homem.
Palavras-chave: feminismo, diferença sexual, unicidade encarnada, singula-
ridade, Homem.
A
diferença sexual como um paradigma, ou melhor, o ponto de vista segundo
o qual a diferença sexual marca paradigmas de superioridade e inferiori-
dade, é uma alternativa de leitura do trabalho da filósofa italiana Adriana
Cavarero. Sua filosofia da diferença sexual evidencia a não-neutralidade do concei-
to universal Homem, criticando conceitos abstratos que acabam por estabelecer
hierarquias, definindo os sujeitos e os objetos do conhecimento.
Seu trabalho é notadamente influenciado de um lado pelo pensamento da
estudiosa belga Luce Irigaray, que sustenta a necessidade de se pensar a diferen-
ça sexual como um discurso legitimo, que coloque a subjetividade feminina como
foco de entendimento e interpretação do mundo, em contraposição a se pensar a
mulher somente como o outro do homem1, porque, segundo a pensadora belga, a
mulher está inserida apenas teoricamente – mas não praticamente – no universal
1
A referência critica é a obra de Simone de Beauvoir.
2
“Para Irigaray, a relação com a alteridade, como foi concebida pela psicanálise, é intrinsecamente
falseada a partir de um ponto de vista masculino que se (im)põe como falsamente universal. Seja o
discurso psicoanalítico (que para Irigaray é identificado com Freud), seja o discurso filosófico (aqui
representado por Platão e Aristóteles) cancelaram a diferença sexual. E ainda, esse cancelamento
da diferença, isso removido – para dizer em termos psicoanalíticos – é funcional à manutenção dos
limites da unicidade e da pureza do “Sujeito”, que se apresenta como humano, mas que é, em reali-
dade, sempre e somente masculino. Esse sujeito neutro universal torna-se o receptáculo dos valores
mais altos da civilização ocidental: é o sujeito racional, cientifico, público, democrático, incorpóreo;
o sujeito que conhece e que cria conhecimento. Dada essa ordem das coisas, a contraproposta de
Irigaray se configura como uma ética da diferença sexual, vale dizer, um movimento de transformação
da subjetividade da mulher, um movimento em busca daquelas práticas políticas e daquelas práticas
do inconsciente que a permitem fazer-se sujeito, a partir da diferença inscrita no corpo sexuado.”
(GUERRA, 2008, 198).
3
Ver principalmente A Condição Humana e a coletânea Responsabilidade e Julgamento.
4
Um diálogo entre as pensadoras que mostra as aproximações e distanciamentos entre seus posicio-
namentos teóricos pode ser lido em GUARALDO (2007).
5
“Desafiar a pretensão de que se possa falar do ‘homem’ em geral, como se tal termo automaticamen-
te incluísse os homens e as mulheres. Isso significa, então, atribuir ao elemento corpóreo da sexua-
lização um primado, o qual, em certo sentido, prepara e orienta cada análise e discussão sucessiva.”
(GUARALDO, 2009, 91).
Isso quer dizer que Cavarero, como representante da posição teórica femi-
nista mais recente, não coloca o pensamento masculinista – e, em certa medida mi-
sógino – como centro de sua reflexão, pois, estaria ainda refletindo o ponto de vista
masculinista como central, ao invés, destaca o papel do corpo e exatamente nele
encontra a oposição fundamental a um pensamento universalizante – essencialis-
ta – que, ao fim e ao cabo, não encontra nada além de si mesmo para refletir, pois
que não é e nunca foi neutro, mas sempre sexuado. Dito de outra forma, Cavarero
chama à atenção quanto a um pensamento que se apresenta como formal, mas que
na realidade está por um tipo de ser com predicados muito específicos, ao qual se
remete e sobre o qual elabora todo o arcabouço teórico, a conotação, se analisado
dessa forma, remete-nos a pensar o homem como protótipo do Homem7. Cavarero,
então, pensa a mulher como sujeito e repensa a política à luz da corporeidade8.
6 Um exemplo clássico, para que marquemos ao menos um, é o mito das almas caídas encontrado no
Timeu 41d-42d, que atesta uma visão de Platão acerca da condição de mulher bastante diferente da-
quela tão propalada que encontramos na República. Cavarero trata de forma recorrente o exemplo da
serva Trácia relatado no Teeteto 174c, onde vemos a representação da diferença do sábio daquela que
não vislumbra o que é. Cavarero trata desse exemplo tanto para mostrar o pensamento masculinista
de Platão, quanto para demonstrar a importância de se abandonar o pensamento absolutamente
puro, metafísico, no qual a diferença sexual aparentemente desaparece. Ver principalmente CAVARE-
RO, 2009a, pp. 40-64.
7
Esse entendimento é muito explicito nas seguintes palavras de Cavarero: “[...] o Homem é contempora-
neamente a espécie humana inteira e um dos seus dois gêneros. É neutro e macho. É todos os dois, ne-
nhum dos dois e um dos dois. Escrito com a inicial maiúscula ou minúscula, invocado nos textos filosó-
ficos ou na linguagem cotidiana, o efeito de sua prepotência não muda. A tradição ocidental inteira, com
a filosofia em primeiro plano, torna-se o seu campo de autorrepresentação.” (CAVARERO, 2009b, p.67)
8
“A questão não é apenas política, mas principalmente filosófica: para repensar a política, diz Cavare-
ro, temos de repensar a ontologia. Não apenas uma ontologia – feminina – separada, mas uma ontolo-
gia que aprendeu do pensamento da diferença sexual a importância constitutiva da esfera simbólica:
sem uma ordem simbólica capaz de articular a diferença sexual corporal – não apenas diferença bio-
lógica – não há possibilidade de excluir os paradigmas reificadores do discurso político e filosófico.”
(GUARALDO, 2007, p. 664). Penso que Guaraldo adverte, nessa passagem, de que Cavarero, ao longo
dos seus estudos, também teve que construir seus próprios conceitos, de modo a escapar do univer-
salismo – essencialista – que envolve o conceito de Homem, a questão, em um primeiro momento que
podemos colocar é: não acontece a troca de uma essência por outra? Ao longo do trabalho espero que
minha posição a esse respeito se torne clara.
Muito tempo depois, velho e cego, caminhando pelas estradas, Édipo sente
um odor familiar. Era a Esfinge. Édipo disse: ‘Quero fazer-lhe uma pergunta:
Por que não reconheci minha mãe?’ ‘Havias dado a resposta errada’, disse a
Esfinge. ‘Mas foi justamente a minha resposta que tornou possível cada coisa’.
‘Não’, disse ela. ‘Quando te perguntei o que caminha com quatro pernas pela
manhã, com duas ao meio-dia e com três a noite, tu respondeste o Homem.
Às mulheres não fizeste menção’. ‘Quando se diz o Homem’, disse Édipo, ‘se
inclui também as mulheres. Isso todos sabem’. ‘Isso é o que tu pensas’, disse a
Esfinge. (CAVARERO, 2009b, p. 67)
Para Cavarero, Édipo erra duas vezes, não sabe que está errando, porque está
por demais envolvido naquilo que se tornou um ponto indiscutível (nas minhas pa-
lavras, um paradigma) do saber filosófico, qual seja, que podemos simplesmente
falar acerca do Homem. Os erros de Édipo, como de resto de todo o pensamento
filosófico abstrato, são: 1°- incluir no universal Homem cada um e todos, ou seja,
aceitar uma abstração que engloba todos como se fossem, cada um, parte de uma
mesmidade; 2° - aceitar que se possa pensar a mulher como incluída em um con-
ceito universal de essência notadamente masculina9.
De acordo com Cavarero, em primeiro lugar o que se coloca é a necessidade
da mesmidade, ou seja, a essência do Homem é pensada como partilhada, incluin-
do todos no mesmo – e assim, fazendo de todos o mesmo -. Nesse ponto, Cavarero
quer destacar a necessidade de se pensar o outro como único e não mais como o
um que pode ser substituído por qualquer outro um, porque seriam equivalen-
tes. Dentro desta interpretação que apresento, antes de tratar especificamente
da questão da diferença sexual – ponto crucial da filosofia de Cavarero -, pode-se
perceber o destaque que é dado ao que a pensadora chama de unicidade. Não faz
sentido pensar, então, qualquer ser, seja ele homem ou mulher como substituível
9
Uma contraposição rápida aqui poderia ser apresentada, a saber, que o conceito de Homem foi sem-
pre concebido como um universal formal, ou seja, que é uma referência que não está por um ser ou
que indique predicados reais. Contudo, quando analisamos o modo como os homens são pensados na
história da filosofia e, por outro lado, como são as mulheres, vemos que conceitos definitórios como
por exemplo: “o Homem é um animal racional” de Aristóteles - ao analisarmos o continuum da obra
do autor - realmente não inclui as mulheres e que há uma essência em jogo, da qual as mulheres
não participam. O que pretendo sugerir é que podemos pensar o Homem – e segundo minha hipó-
tese é a via mais satisfatória – como a enunciação de um conceito formal, mas que, de fato, ele não é
tradicionalmente pensado dessa maneira. Como afirma Cavarero: “[...] era ele, o sujeito masculino, a
pensar-se e repensar-se, a fazer-se e desfazer-se, a provocar, reconhecer e teorizar sua crise, e, nele,
o sentido do self (sé) encontrado ou perdido.”(CAVARERO, 1987, p. 174)
Uma célebre pintura em vaso ilustra Édipo diante da Esfinge no ato de re-
solver o enigma. Ele não fala, indica com o dedo a si próprio. A resposta não
é verbal e não nomina o Homem, senão que consiste na tácita palavra ‘eu’. A
situação é, assim, realmente paradoxal. Ainda quando não sabe quem ele
próprio é*, Édipo se reconhece na definição do Homem: na descoberta do
objeto, se indica. Mais que um paradoxo, parece, então, novamente, o enési-
mo jogo cruel do monstro. Porque é precisamente porque ele não sabe quem
é, que Édipo pode se identificar no Homem ao qual se relaciona a definição.
São, de fato, os filósofos – esses cuidadosos funcionários do universal – a nos
ensinar como o saber do Homem determina que a particularidade de cada
um, ou seja, a unicidade do existente humano, seja incognoscível. O saber do
universal, que retira do seu estatuto epistêmico a unicidade encarna-
da, tem precisamente sua máxima perfeição no pressupor a ausência.
O que é o Homem se pode conhecer e definir, nos assegura Aristóteles, quem
é Sócrates, ao contrário, escapa aos parâmetros do conhecimento, enquanto
escapa à verdade da episteme. (CAVARERO, 2009b, p. 18) – grifo meu.
10
Cabe destacar que em Nonostante Platone, Cavarero traça toda uma reflexão acerca da ontologia do
humano , procurando demonstrar que a filosofia, desde Parmênides, busca a abstração porque tem
como ponto inicial de reflexão o fato da morte – e a busca por um modo de ultrapassá-la - , enquanto
a pensadora, ao longo de suas obras, defende a necessidade de atentarmos à categoria arendtiana da
natalidade, fugindo da abstração e passando a enfocar a unicidade que se apresenta em cada novo
nascimento, portanto, não mais focada em conceitos universalizantes (abstratos/formais). Contudo,
penso que, ainda que por vias um pouco diversas, a conotação de importância política ressaltada pela
pensadora pode ser interpretada como concordante com aquilo que apresento como hipótese de
entendimento, a saber, que a essência universal Homem é concebida a partir daqueles tipos humanos
que instanciam essas propriedades e não o contrário, isto é, que o universal seja vislumbrado pelo
entendimento e a partir desse conhecimento reconheçamos aqueles que partilham daquela essência.
Dito em termos heideggerianos, o ontológico é concebido a partir do ôntico, com intenções de pre-
ponderância espiritual e politica.
Com essencial e originário diferir pretendo dizer que para as mulheres o ser
sexuada na diferença é algo de imprescindível, é, para cada uma que nasce
mulher, um para sempre já dado desta forma e não de outra, que se radica no
seu ser não como alguma coisa supérflua ou um a mais, mas como aquilo que
ela necessariamente é: justamente mulher. (CAVARERO, 1987, pp. 180-181)
11
A questão da intersexualidade não é colocada pela pensadora.
Assim, quem cada qual é, é indefinível, pode ser descrito e indicado, mas
sempre que se tenta uma definição, acaba-se voltando a dizer o que ele(ela) é de
acordo com a carga valorativa de preponderância, espiritual e política, naquela
época e naquele lugar, em resumo, de acordo com paradigma, ao qual a classifica-
ção se refere, sem nada haver dito sobre aquele ser único.
Para concluir a apresentação da filosofia de Cavarero, penso que seja neces-
sário fazer uma observação bastante sutil, mas que em termos ético-políticos mos-
tra sua importância.
Entendo que apesar de estar construindo sua obra como uma negação do
essencialismo, a filósofa italiana não consegue libertar-se dessa perspectiva, re-
caindo no que contemporaneamente é chamado de feminismo mainstream, ou seja,
branco, de classe média, heterossexual e plenamente hábil física/mentalmente
(aqui a contraposição é, claro, a todo tipo de deficiência), ou seja, a partir de um
tipo bastante especifico de “mulher” que é oprimida por um tipo bastante especí-
fico de “homem”.
Esta interpretação, pode ser sustentada por uma passagem de um de seus textos:
(...) as mulheres não são nem um grupo étnico, nem um grupo de identidade
religiosa ou social, nem um grupo de interesse. O ser sexuada na diferença é
um elemento originário e essencial da criatura humana, verdadeiro em cada
lugar geográfico e em cada tempo histórico. Se pode certamente dizer que
as mulheres têm dividido com as chamadas minorias o triste fenômeno da
opressão, mas a categoria comum da opressão não consente de as assimilar
segundo uma lógica, tanto simplista quanto incorreta, aos negros da América,
aos pele-vermelha (pellirossa) e aos pobres. Em todas essas assimilações dos
oprimidos, o fator sobre o qual joga a lógica associante da assimilação é o
opressor. De novo o sujeito dominante, o homem ocidental com sua história,
15
Há um debate bastante forte sobre essa questão. Esse debate é resumidamente tratado em CHANTER
(2011), principalmente pp. 15-36. A crítica mais contundente a esse tipo de pensamento é realizada por
bell hooks. Segundo seu pensamento, mesmo as feministas da terceira onda mantém o foco de atenção
nas “mazelas” da mulher branca, heterossexual, de classe média e com estudos de nível superior. Essas
feministas, segundo hooks, querem denunciar o abuso dos homens brancos e buscar espaço no mundo
deixando seus filhos aos cuidados das mulheres negras (ou latinas), pobres e com pouca escolaridade,
sem que as “mazelas” dessas mulheres sejam discutidas. Ver hooks et. al., (2004), pp. 33-50.
16
É claro que aqui originário e essencial não está por uma essência, mas por um fato, seguindo o
pensamento de Cavarero.
17
Nesse contexto, como alternativa ao conceito cavareriano de unicidade encarnada.
Referências
BONO, P. and KEMP, S. (ed.). (1991) Italian feminist thought: a reader. 1a. Edição. Oxford:
Basil Blackwell.
CAVARERO, A. (1987a.) Per una teoria della differenza sessuale. In. Diotima: Il pensiero della
differenza sessuale, pp. 43-79. Milão: La Tartaruga.
_________ (1987b.) L’elaborazione filosofica della differenza sessuale. In.: La ricerca delle don-
ne, pp. 173-187. Torino: Rosenberg.
A
ihr Einfluss im lateiname-
propósito de nosso delineamento podemos iniciar nossa reflexão afirman-
rikanischen Denken, Edu-
do com Ernst Bloch de que “não há verdadeira instituição dos direitos hu- cação: direito fundamental
manos sem o fim da exploração, não há fim verdadeiro da exploração sem a universal, Não-simultanei-
dade e Multiversum contra
instituição dos direitos humanos” (BLOCH, Ernst. Naturrecht und menschliche Wür- um Totum Cultural. E-mail:
hahnpaulo@gmail.com
2
Para Bloch, a utopia jurídica de Marx carregará a herança tricolor da dignidade humana (MASCARO,
2008, p. 159).
4
Do jusnaturalismo antigo, lhe interessa a herança heroica dos mitos gregos, autêntica idade de
ouro da comunidade primitiva, sem propriedade privada, sem guerras e sem direito escrito. Ademais
a herança herética de Antígona e sua afirmação de homem acima do Estado. Os sofistas são os que
primeiro que repulsam da tradição e da autoridade, inclinados ao subjetivismo e ao individualismo,
é a cultura do eu, que conduz a uma reafirmação dos direitos subjetivos do homem e da ideia de
dignidade humana. Dos estoicos lhe interessa a luta contra o despotismo dos gregos e dos imperado-
res romanos, representando a primeira utopia social com seu ideal de uma humanidade universal,
cidadania universal; no entanto, sua união com o Direito romano supôs sua aniquilação por parte
das exigências de classe social e da defesa da propriedade privada, positivando pela primeira vez os
princípios desse direito natural. Do jusnaturalismo cristão lhe interessa o direito natural das seitas
do cristianismo primitivo e messiânico, antecedente do ideal comunista. Porém mais tarde Tomás de
Aquino o converteu em um mero instrumento de poder político e eclesiástico, convertendo-o em um
mero direito natural relativo, dado que o poder absoluto correspondia a Deus ou ao Estado: a justiça
de cima para baixo. Thomas Münzer será o autêntico cristão revolucionário, frente a um Lutero que
justifica ao Deus do direito penal, ao Estado repressivo, apesar de sua defesa da liberdade individual.
Quiçá por isso não lhe interessa Calvino, dado que justificou um direito para o capitalismo. É o poder
debaixo para cima que interessa a Bloch. Mas a grande revolução foi assumida pelo jusnaturalis-
mo racionalista que supõem a desaparição da ideia do pecado original e do legislador divino, para
suplantá-la por uma natureza racional ilustrada e burguesa. O discurso da igualdade formal e da
universalidade do direito subjetivo é chave para a defesa dos direitos humanos. E a ideia de contrato
social é chave para o assentamento definitivo do individualismo social; o poder da razão. Mas acima
de todos, destaca a Hobbes como o pensador mais agudo e representa a face mais pesada do caráter
capitalista do direito natural moderno, tendo em vista que o pensamento hobbesiano aposta num
‘tortuoso’ jusnaturalismo, não-democrático por essência. Falta a Hobbes, segundo Bloch, a pureza das
origens, do estado de natureza, e daí a carência de uma utopia que seja plena na dignidade do homem.
É sua concepção egoísta de homem o que lhe interessa e sua obsessão pela seguridade e paz. Para Blo-
ch, Thomasius e Rousseau conseguem, mesmo saídos da classe burguesa, transcender os interesses
da dominação econômica. (Ver MASCARO, 2008, p. 137-154).
6
Ver HAHN, Paulo. A “não-simultaneidade” e “multiversum” contra um Totum cultural: uma possível
aproximação de Ernst Bloch com a filosofia intercultural In: Pontes Interculturais. São Leopoldo: Nova
Harmonia, 2007, p. 139-149.
7
Conforme Dietschy, referindo-se a obra Erbschaft dieser Zeit, poderíamos extrair os seguintes ma-
teriais heterogêneos: 1) A não-simultaneidade de estruturas mentais, de racionalidade, de níveis de
consciência e de imaginação; 2) As estruturas de classe, que não podem ser reduzidas simplesmente
a um esquema de duas classes ou classes antagônicas, e seus tempos sociais; 3) As tendências desi-
guais de desenvolvimento em esferas espacialmente restringidas, como por exemplo: na cidade e no
campo, em regiões e nações, e no âmbito dos modos de produção; 4) As estruturas heterogêneas do
tempo no âmbito político, legal e cultural; 5) Anacronismos, o arcaico e as formas de regressão no
sujeito, a esfera do nível inconsciente. (DIETSCHY, 1988, p. 124-152).
O conteúdo dessa lei da humanidade, desse nomos anthropos, como ressurgido no direito
natural estoico, era a igualdade inata de todas as pessoas (a abolição da diferença de
valor entre escravos e senhores, bárbaros e gregos) e a unidade de todos os povos en-
quanto membros de uma comunidade internacional, isto é, do império racional do amor.
(BLOCH, NLHD, 1988, 13).
Referências
AINSA, Fernando. Espacios de encuentro y mediacion. Sociedad civil, democracia y utopía en
América Latina. Montevideo: Nordon, 2004.
ALBORNOZ, Suzana. Violência ou não-violência: um estudo em torno de Ernst Bloch. Santa
Cruz do Sul: EDUNISC, 2002.
_____. Enigma da Esperança. Ernst Bloch e as margens da história do espírito. Petrópolis:
Vozes, 1999.
_____. Ética e Utopia. Ensaio sobre Ernst Bloch. Santa Cruz/Porto Alegre: FISC/Movimento,
1985.
BENHABIB, Seyla. Critique, Norm and Utopia: A Study of the Foundations of Critical Theor.
New York: Columbia University Press, 1986.
_____. Dignity in adversity: human rights in troubled times. Cambridge: Polity, 2011.
_____. The Generalized and Concrete Other: The Kohlberg-Gilligan Controversy and Moral
Theory, in Situating the Self: Gender, Community and Postmodernism in Contemporary Eth-
ics. New York: Routledge, 1992, pp.148-78.
_____. Utopia e Distopia em Nossos Tempos, in: http://cadernos.iesp.uerj.br/index.php/CESP/ar-
ticle/download/71/50, 2012. Consultado em: 27/03/2013.
BICCA, Luiz. Marxismo e Liberdade. São Paulo: Loyola, 1987.
BLOCH, Ernst. O Princípio Esperança. Vol. 1. Rio de Janeiro: Ed. UERJ: Contraponto, 2005.
_____. O Princípio Esperança. Vol. 2. Rio de Janeiro: Ed. UERJ: Contraponto, 2006.
_____. O Princípio Esperança. Vol. 3. Rio de Janeiro: Ed. UERJ: Contraponto, 2006.
_____. Naturrecht und menschliche Würde. Frankfurt a. M.: Suhrkamp, 1985.
Ideologia e Filosofia
Resumo
O presente estudo tem por fim investigar, ainda que de forma incipiente, a
questão da ideologia suscitada por Karl Marx no continuum de sua obra re-
lacionando-a com seus mais diversos conceitos. Propor-se-á uma discussão
acerca de sua gênese, ramificações e características assumidas dentro do
modo capitalista de produção buscando demonstrar, mais especificamente,
sua concretude diante de fenômenos factuais como resultado das condições
materiais de vida dos indivíduos; irredutível, portanto, à consciência em si.
Do todo às partes que o compõe – a elas não se restringindo – e destas no-
vamente àquele, explicita-se o movimento que amplia-os e aprofunda-os no
saber acerca do objeto e do próprio sujeito que o cria. Assim é que, nesta
tentativa de se desvelar e identificar o fenômeno estabeleceremos, ainda,
análise mais acurada a respeito de uma – identidade de classe da - elite inte-
lectual na utilização do saber de forma ideologizada, em especial, no campo
filosófico. Trazer à baila a ideologia dominante que permeia, seja de forma
grosseiramente direta ou dotada de finas sutilezas metafísicas, uma faculda-
de de filosofia é depreender que, em forma e conteúdo, estaremos abordando
intrinsecamente a elite intelectual brasileira em sua versão contemporânea
como substrato maior na formação de seus sucedâneos. A eleição do fenôme-
no concreto é exigência metodológica, assente na crítica materialista dialética
e, acima de tudo, ética. A elevação dos valores hegemônicos à categoria de
universalidade, longe de se constituir como totalidade, ao ser descortinada
filia-se a um único e mesmo aspecto parcializante: a manutenção e reprodu-
ção do sistema. Não sendo a consciência que determina a vida quais, então, os
sujeitos que ora determinam a filosofia? Imparcialidade e neutralidade como
características de há muito desconstituídas em certas áreas do conhecimento
podem tal e qual o serem quando aplicadas a determinadas áreas filosófi-
cas, ou a independência torná-las-ia, decerto, imunes? O desvelamento das
mais diversas formas assumidas pela racionalidade instrumental e totalitária
Ideologia e Filosofia
P
artindo da forma mais simples e mais diretamente observável na realidade
do trabalhador – a mercadoria – para analisar o sistema capitalista de pro-
dução, K. Marx, em O Capital, completa sua dialética materialista expressa
na relação particular-concreto e universal-abstrato que será aqui mantida. Assim,
para um estudante, a forma mais concreta a ser considerada traduz-se pelo próprio
ambiente no qual se encontra inserido: o meio acadêmico. É esta, portanto, a base
material e ideológica a ser analisada na tentativa de se explicitar um fenômeno
cujo movimento, iniciando-se no universal, nos remeterá, novamente, à totalidade
histórica que se pretende abarcar.
Seja nos países centrais ou nos periféricos o novo século se inicia de forma
abrupta em uma continuidade ainda mais incisiva de subordinação do trabalho
ao capital. A reprodução ampliada do modo de produção capitalista – único modo
de manutenção do sistema – aumenta a produção e a concentração privada da
riqueza ao mesmo tempo em que, necessariamente, dissemina a miséria. Com a
reestruturação das relações de produção pela expansão de caráter monopolista-
-financeiro visando à retomada de sua capacidade acumulativa reestruturam-se,
na mesma medida, as relações capital-trabalho e as próprias relações sociais. O
nível de desenvolvimento alcançado pelo sistema, suas modificações contingen-
ciais, crises permanentes, expansão crescente de um mercado mundial e grandes
transformações político-econômicas, especialmente nas últimas décadas, resulta-
ram, da mesma forma, em alterações ideológicas profundas na cultura e valores,
contribuindo para um aceleramento em seu processo acumulativo e explorador. `A
1
A transgenia tem início na década de 70 do século XX com a técnica de se recombinarem DNAs de
organismos diversos, tendo sido patenteada por grandes empresas transnacionais como a Monsan-
to, Cargill, Bunge. Consiste na manipulação genética de organismos nos quais são inseridos artifi-
cialmente genes de outro organismo ou produto (herbicida, agrotóxicos) a ele estranho, recriando-o
como um outro essencialmente distinto de sua procedência. Alguns transgênicos, dotados do genoma
terminator impedem sua reprodução, inexistindo qualquer fertilidade em suas sementes – fato que
constitui verdadeira ameaça à soberania alimentar dos povos. A ideia, aqui, é utilizar-se da categoria
“intelectual orgânico” criada por Gramsci e produzir uma diferenciação tal que, analogica e metoni-
micamente possibilite sua colocação em termos antitéticos. Dialeticamente, teremos: os intelectu-
ais orgânicos como advindos e mantendo-se em sua classe social respectiva e cujas relações sociais
travadas influenciam e por ela são influenciadas; e os intelectuais transgênicos surgidos no seio do
proletariado e que, por meio de processos sociais complexos, são transladados às classes dominan-
tes (estranhas à suas origens). O processo inverso – intelectuais orgânicos burgueses cujo trabalho
é revertido às classes dominadas – não permite, contudo, a mesma denominação. Por se tratar de
totalidade concreta destinada à síntese constitutiva da classe em si e para si, seu próprio movimento
histórico composto e fruto de relações sociais contraditórias volta-se contra o estranhamento alie-
nado, compelindo-se, constantemente, a rever-se em co-criações abertas às diversas possibilidades
colocadas pela luta de classes.
“Nesse sentido, queremos sugerir que o jogo que se busca vencer é o “jogo”
competitivo do mercado com elementos e regras compatíveis Realmente,
importa destacar nesta breve análise do artigo como mercadoria a noção de
valor de uso perceptível – relativo à utilidade específica deste “artigo” para
seus consumidores/ leitores em relação à capacidade de contribuir para o
que se supõe ser o avanço do conhecimento dentro do respectivo campo dis-
Referências
BENOIT, Hector. Sobre a crítica (dialética) de O Capital. Crítica Marxista, Campinas, Editora
Unicamp, n. 3, 1996.
BIANCHI, Álvaro. A mundanização da filosofia: Marx e as origens da crítica da política. Trans/
Form/Ação, Marília, v. 29, n. 2, 2006. Disponível em <http://www.scielo.br>. Acesso em
10 jul. 2012.
BOGO, Ademar. Identidade e luta de classes. 2ª edição. Ed. Expressão Popular. São Paulo,
2010.
CASTIEL, Luis David; SANZ-VALERO, Javier. Entre fetichismo e sobrevivência: o artigo cien-
tífico é uma mercadoria acadêmica?. Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 23, n. 12, dez.
2007. Disponível em <http://www.scielo.br>. Acesso em 28 jun. 2012.
FONTES, Virginia. Interrogações sobre o capitalismo na atualidade – trabalho e capital, eco-
nomia e política. In: 3º Colóquio Marx e Engels – Marxismo e socialismo no século XXI – Ce-
marx/Unicamp. Anais: Campinas, Nov., 2003.
GRAMSCI, Antonio. Os intelectuais e a organização da Cultura. Tradução de Carlos Nelson
Coutinho. 4. ed.. Editora Civilização Brasileira. Rio de Janeiro, 1982.
__________. Cadernos do Cárcere. Volume 2: Os intelectuais. O princípio Educativo. Jornalismo.
Tradução de Carlos Nelson Coutinho. Editora Civilização Brasileira. Rio de Janeiro, 2002.
HIRANO, Sedi. Política e economia como formas de dominação: o trabalho intelectual em
Marx. Tempo soc., São Paulo, v. 13, n. 2, nov. 2001. Disponível em <http://www.scielo.
br>. Acesso em 10 jun. 2012.
KONDER, Leandro. A questão da ideologia. Mimio. Rio de Janeiro, [2002?].
__________. Marxismo e Alienação. Contribuição para um estudo do conceito marxista de alie-
nação. 2ª Edição. Editora Expressão Popular. São Paulo, 2009.
LUXEMBURGO, Rosa. O segundo e o terceiro volumes d´O Capital. Crítica Marxista. V 29, p.
135-146. Editora UNESP. São Paulo, 2009.
MARX, Karl. O Capital. Volume: 1. 2. ed. Tradução de Regis Barbosa e Flávio R. Kothe. Nova
Cultural. São Paulo, 1985.
__________. Crítica da Filosofia do Direito de Hegel. Tradução de Rubens Enderle e Leonardo
de Deus. Boitempo Editorial. São Paulo, 2005.
__________. Miséria da Filosofia. Resposta à Filosofia da Miséria, do Sr. Proudhon. Tradução de
José Paulo Neto. Editora Expressão Popular. São Paulo, 2009.
___________; ENGELS, Friedrich. A Ideologia Alemã. Tradução de Marcelo Backes. Ed. Civiliza-
ção Brasileira. Rio de Janeiro, 2007.
MÉSZÁROS, István. Filosofia, Ideologia e Ciência Social – ensaios de negação e afirmação.
Tradução de Ester Vaisman. Boitempo Editorial. São Paulo, 2008.
Resumo
o objetivo deste trabalho consiste em analisar a discussão sobre a impor-
tância da imparcialidade, na ética, a partir da noção de identidade pessoal.
Para tanto, iremos, inicialmente, expor aqueles que nos parecem ser os prin-
cipais elementos contidos na tendência contemporânea em aproximar ética e
identidade pessoal. Depois, em um segundo momento, abordaremos a discus-
são acerca da imparcialidade, procurando identificar os principais problemas
contidos neste debate. Finalmente, na terceira parte, avaliaremos a contribui-
ção que a noção de identidade pessoal pode trazer para o tema.
Palavras-chave: identidade pessoal; moral; ética; imparcialidade; parcialida-
de; internalismo.
Introdução
A
crescente importância da noção de identidade pessoal dentro da ética é
uma tendência da filosofia contemporânea. Podemos enxergá-la em todas
as principais correntes morais, como, por exemplo, em Parfit no caso do
utilitarismo, Christine Korsgaard entre os neo-kantianos, MacIntyre nas Éticas da
Virtude, além de diversos autores da Ética do Cuidado.
O objetivo deste trabalho consiste em avaliar a relevância desta aproximação
no caso de um problema específico da ética: a centralidade da imparcialidade. Tra-
ta-se de um debate que costuma opor, por um lado, teorias utilitaristas e kantianas
– muitas vezes chamadas de “éticas da justiça” – a propostas como as das Éticas da
Virtude e da Ética do Cuidado, que enfatizam a relevância moral de preferências e
relacionamentos pessoais. Podemos nos perguntar, assim, em que medida o papel
II – Imparcialidade e Parcialidade
Os conceitos de parcialidade e imparcialidade são mais difíceis de definir do
que pode parecer à primeira vista. Existem diversas noções “associadas”, por assim
dizer, que em geral confundem mais do que ajudam a entendê-los, como “pessoal”
e “impessoal”, “egoísmo” e “altruísmo”, “agente-relative” e “agente-neutral”, “subje-
tivo” e “objetivo”, entre outros.
Como comenta Brian Feltham, a relevância deste debate para a ética está no
fato de que a moralidade parece ser, por natureza, imparcial, o que contrasta com
a importância que tendemos a conferir, no dia-a-dia, a nossos relacionamentos e
projetos pessoais (2010, p. 2). Será que esta importância deve ser considerada
apenas como “permissível”, devendo ser abandonada tão logo o olhar imparcial da
moral lança suas exigências sobre nós? Será que é possível conferir uma dimensão
ética a alguns elementos ligados à parcialidade, como o amor dos pais por seus
filhos? Se isso for possível, como avaliar situações em que estes elementos entrem
4
Cf. NAGEL (1978, p. 7-12); WILLIAMS (1981, p. 101-113).
8
É preciso considerar que o utilitarismo se baseia em um princípio agregador de maximização da
felicidade que não está necessariamente contido na concepção de um espectador imparcial. Mas mes-
mo a maximização utilitarista está estreitamente ligada à ideia de imparcialidade, como vemos na
famosa fórmula “cada um conta como um, e ninguém como mais de um” (Cf. SINGER, 2002, p. 19-20).
9
Kant, de fato, considera que as razões nas quais baseamos nossas ações devem poder ser endos-
sadas por todos os seres racionais. Mas isso simplesmente traduz a ideia de que “razões para agir”
devem ser válidas para todo agente na mesma situação – não se trata, assim, de um “contrato” no sen-
tido contratualista. O pensamento político de Kant, no entanto, se aproxima de forma mais explícita
deste movimento (ver, por exemplo, A Paz Perpétua).
10
GODWIN (1985, p. 169-170, tradução nossa). Na sequência, Godwin toca em um ponto importante
dessa discussão: “Meu irmão ou meu pai podem ser um tolo, ou um libertino, malicioso, mentiroso
ou desonesto. Se o são, que consequências pode haver de serem meus?” (ibid, p. 170, tradução nossa).
De fato, ainda que se possa argumentar que certas relações parciais possam ter uma dimensão ética,
obviamente não se trata de qualquer parcialidade (por exemplo, a lealdade entre membros de uma
quadrilha de traficantes). Tocaremos neste ponto no decorrer de nossa discussão.
11
Estamos deixando de lado, aqui, a discussão filosófica sobre o estatuto destes “mundos” (que pos-
sivelmente devem ser entendidos como pontos de vista diferentes – mas isso não é relevante aqui).
12
É preciso considerar que os deveres de virtude imperfeitos – que prescrevem fins sem especificar
ações – permitem que haja uma mistura de motivações empíricas e morais quando agimos. Kant, as-
sim, aceitaria a ideia de que, ao contribuir para a felicidade dos outros (que é um dos deveres imper-
feitos prescritos pela Lei moral), eu leve em conta – entre outros fatores - minhas relações pessoais.
Mas, ainda que possa haver esta “mistura” de motivos, a dimensão propriamente moral destas ações
é de origem pura, ou seja, não empírica (Cf. KORSGAARD, 1996, p. 21).
Referências
ANSCOMBE, G. E. M. “Modern Moral Philosophy” IN CRISP, R.; SLOTE, M. (2007). Virtue Eth-
ics. Oxford: Oxford University Press.
ARISTÓTELES. (2008). Ética a Nicômaco. São Paulo: Editora Atlas.
______________ (1984). “Politics” IN The Complete Works of Aristotle v2. New Jersey: Princeton
University Press.
BUTLER, J. “Of Personal Identity”. IN PERRY, J. (2008). Personal Identity. Berkeley: Univer-
sity of California Press.
CRISP. R. “Modern Moral Philosophy and the Virtues” IN CRISP. R (ed). (1999) How Should
One Live? Essays on the Virtues. Oxford: Oxford University Press.
FELTHAM, B. & COTTINGHAM, J. (eds). (2010). Partiality and Impartiality – morality, spe-
cial relationships, and the wider world. Oxford: Oxford University Press.
FINNIS, J. (1998). The Ethics of Aquinas: moral political and legal theory. Oxford: Oxford
University press.
FOOT, P. (2002a). “A Reply to Professor Frankena” IN Virtues and Vices. Oxford: Oxford Uni-
versity Press.
________ (2002b). “Are Moral Considerations Overriding?” IN Virtues and Vices. Oxford:
Oxford University Press.
GILLIGAN, C. (1997). Uma Voz Diferente: Teoria Psicológica e Desenvolvimento da Mulher.
Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.
GODWIN, W. (1985). Enquiry Concerning Political Justice and its Influence on Modern Morals
and Happiness. Londres: Penguin.
HELD, V. (2006). The Ethics of Care: personal, political and global. Nova Iorque: Oxford Uni-
versity Press.
HERMAN, B. (1993). The Practice of Moral Judgment. Cambridge: Harvard University Press.
HEYD, D. (1994). Genethics: moral issues in the creation of people. Berkeley: University of
California Press.
HUME, D. (2001). Tratado da Natureza Humana. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.
HUTCHESON, F. (2005). An Inquiry into the Original of Our Ideas of Beauty and Virtue. Lon-
dres: Elibron Classics, Adamant Media.
KORSGAARD, C. (1996). Creating the Kingdom of Ends. Cambridge: Cambridge University
press.
_________________ (2009). Self-Constitution. Nova Iorque: Oxford University Press.
LOCKE, J. (1999). Ensaio Sobre o Entendimento Humano. Lisboa: Fundação Calouste Gul-
benkian.
O político e a política em
Claude Lefort
Resumo
Os ensaios de Claude Lefort trazem a marca de uma singular interrogação
sobre o político. O termo que em sua grafia masculina denota um modo de
compreensão dos fenômenos relacionados ao poder nasce e se mantém pela
consciência que Lefort adquire acerca dos limites advindos de uma visão ex-
tremamente objetivista e positivista da realidade, tal como perpetrada pelo
marxismo e pela ciência e sociologia políticas, cujo foco se atém à política, ao
invés do político. Para o autor, houve um recalcamento da questão do políti-
co pela vertente marxista de pensamento, o que contribuiu, inclusive para a
denegação do fenômeno Totalitário por parte desta parcela da intelligentsia
francesa do período pós-Segunda Guerra. Este trabalho discute o significado
deste conceito, abordando o contraste conceitual que o autor opera em rela-
ção à noção de política, a fim de evidenciar um tipo de reflexão que prima pela
interrogação dos fenômenos políticos, que visa o significado da denegação
nas sociedades modernas, tanto a que diz respeito ao Totalitarismo, como à
Democracia.
Palavras-chaves: Claude Lefort, o político, a política, Democracia, Totalitarismo.
D
esde os anos 1950, Lefort buscou um modo de pensar o político. Naque-
le período, esteve movido pela ideia de que somente a inteligibilidade do
político engendraria uma via alternativa ao positivismo daquelas ciências,
bem como ao marxismo. Desde muito cedo, ainda em sua militância trotskista, Le-
fort afirma que jamais desposou a concepção cientificista e economicista, a qual le-
vou Marx a descobrir as leis que regem o funcionamento da sociedade e a evolução
da humanidade (LEFORT, 1978c, p. 359). Neste período, suas críticas organizam-se
de modo a apontar para a existência de uma função mítica inerente ao discurso
Pois, é bem verdade, como afirma a ciência social, que o poder deixa de dar
sinal de um fora, de se articular a toda potência outra que seja figurável, e,
nesse sentido, existe desintrincamento com o religioso; é bem verdade que
o poder deixa de se remeter a uma origem que coincidiria com as origens da
Lei e do Saber e, nesse sentido, em seu pólo, um tipo de ação e de relação se
distingue de outros tipos de ações e de relações, particularmente jurídicas,
econômicas ou culturais; em conseqüência, é verdade que algo se circunscre-
ve como a política. De qualquer modo, permanece dissimulado ao observador
científico a forma simbólica que, sob o efeito de uma mutação do poder, torna
possível essa nova distinção, apenas fica-lhe dissimulada a essência do políti-
co. (idem, p. 265)
1
Essa reflexão sobre a relação entre o religioso e o político está muito presente na obra de Marcel
Gauchet que foi aluno de Claude Lefort. Para tanto ver, entre outros trabalhos, “La religion dans la
démocratie. Parcours de la laïcité” (GAUCHET, 1998).
A República – da qual é preciso lembrar que era guiada pela busca do que
seria, em teoria, o bom regime -, longe de fixar os limites da política, exigia
uma interrogação que incidisse, a um só tempo, sobre a origem do poder e
sobre as condições de sua legitimidade, sobre a relação mando-obediência
em toda extensão da sociedade, sobre as relações entre Cidade e exterior, so-
bre as necessidades sociais e a repartição das atividades profissionais, sobre
a religião, sobre os fins respectivos do indivíduo e do corpo social – até levar
ao reconhecimento de uma analogia entre a constituição da psique e a cons-
tituição da polis, e finalmente, o que não é menos notável, até sugerir que o
discurso sobre a politeia, mais geralmente o diálogo, punha em causa relações
de caráter político. (LEFORT, 1991, p. 11)
2
Registramos que a obra de Lefort se faz também em torno das reflexões da historiografia da Revo-
lução Francesa, destacando-se os estudos de Michelet, Quinet, François Furet; de antropólogos como
Marcel Mauss e Pierre Clastres.
3
No caso da sociedade democrática, o conflito político se projeta numa espécie de encenação. A re-
presentação política constituiria esta cena, onde se expressam os conflitos cujos interesses afetam
a sociedade em seu conjunto. Trata-se da exibição de todos os conflitos diante de todos, permitindo
que a sociedade adquira sentido de unidade e de diferença. A representação política inaugura uma
verdadeira cena política. Ela tem o efeito de produzir a imagem da unidade e da pluralidade ao mes-
mo tempo. A mise en scène, portanto, torna visível todo o esquema diretor da sociedade, tornando
inteligíveis todos os princípios que a regem, que regem a mise en forme do social.
Referências
ABENSOUR, M. (1993). Réflexions sur les deux interprétations du totalitarisme chez Clau-
de Lefort. In: HABIB, C. & MOUCHARD, C. La démocratie à l’oeuvre: autour de Claude Lefort.
Turriers: Ed. Esprit.
FRANÇA, F. C. T. (1998). Obra de Pensamento e Democracia: um diálogo com o pensamento
de Claude Lefort. São Paulo, 1998. 212 f. Tese (Doutorado em Filosofia) – FFLCH, Universi-
dade de São Paulo.
GAUCHET, M. (1998). La religion dans la démocratie. Parcours de la laïcité. Paris : Folio.
LEFORT, C. (1972). Le Travail de l’oeuvre Maquiavel. Paris: Gallimard.
_____. (1978a). Prefácio. In: LEFORT, Claude. As formas da história: ensaios de Antropologia
Política. São Paulo: Brasiliense, 1979.
_____. (1978b). Repenser le politique: entretien avec E. A. El Maleh. In: LEFORT, Claude. Le
Temps Présent: écrits 1945-2005. Paris: Éditions Belin, 2007.
_____. (1980). Pensando a Revolução na Revolução Francesa. In: LEFORT, Claude. Pensando o
político: ensaios sobre democracia, revolução e liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991.
_____. (1981a). Prefácio. In: LEFORT, Claude. A invenção democrática: os limites da domina-
ção totalitária. São Paulo: Brasiliense, 1983.
_____. (1981b). Permanência do Teológico-Político? In: LEFORT, Claude. Pensando o político:
ensaios sobre democracia, revolução e liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991.
_____. (1983). A questão da democracia. In: LEFORT, Claude. Pensando o político: ensaios
sobre democracia, revolução e liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991.
_____. (1991). Prefácio. In: LEFORT, Claude. Pensando o político: ensaios sobre democracia,
revolução e liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991.
SOLJENÍTSIN, A. (1975). Arquipélago Gulag. São Paulo: Difel.
Resumo
Na filosofia alemã dos últimos anos pode-se observar o surgimento de pro-
jetos filosóficos que abordam a questão das alternativas para a filosofia no
contexto da crise do conceito de “consciência de si”. Entre essas posições se
encontra a teoria da linguagem de Walter Benjamin. No seu artigo “Sobre a
linguagem em geral e sobre a linguagem humana”, o filósofo compreende a
linguagem como o que sustenta toda racionalidade. Para ele, antes da razão
já se está na linguagem, e a própria razão é linguisticizada. Quando Benjamin
desenvolve sua teoria da linguagem, ele está colocando as questões do conhe-
cimento através da descrição de uma unidade de onde as questões surgem.
O acesso ao mundo só se dá via sentido e não há experiência e conhecimento
que não seja mediado pela linguagem. Trata-se da forma como o homem lida
com as coisas, como o homem chega às coisas dentro de seu mundo, como
elas aparecem para a compreensão humana e para seu lidar. Não se chega às
coisas porque as coisas são entes, mas se chega nelas porque elas são com-
preendidas em seu sentido. Há, portanto, uma comunicação primeira entre o
homem e o mundo que lhe rodeia e que possibilita o discurso sobre as coisas.
Se o sentido é inerente ao mundo, a compreensão dessa realidade linguísti-
ca depende da linguagem humana que nomeando pode traduzir a linguagem
em geral e assim formar o mundo. Nessa nomeação se dá o conhecimento
humano. Isso quer dizer que só se conhece porque um significado inerente
ao objeto conhecido se expressa. O que Benjamin mostra com sua teoria da
linguagem é que o homem desde sempre se realiza num processo de sentido.
Nele, linguagem é o elemento organizador da experiência. E ele não estaria
preocupado com esse elemento organizador se não estivesse preocupado
com a questão do conhecimento, e mais precisamente com a questão de sua
fundamentação. É dentro desse processo de sentido que se pode conhecer as
coisas, a natureza e os fenômenos. Há essa experiência originária na lingua-
gem que permite que a Filosofia se situe em relação com o conhecimento dos
A teoria da linguagem de Walter Benjamin no texto “Sobre a linguagem em geral e sobre... 689
objetos. Abre-se, assim, o espaço prévio onde se dão os objetos. E, então, em
qualquer coisa que se pesquise, que se diga em Filosofia, também já se está
envolvido pelo caráter antecipador da compreensão do sentido no mundo
que se dá na linguagem.
Palavras-chave: Benjamin, linguagem, consciência de si, justificação, meta-
física.
Introdução
N
a filosofia alemã dos últimos anos se pode observar o surgimento de pro-
jetos filosóficos que abordam a questão das alternativas para a Filosofia no
contexto da crise do conceito de “consciência de si” (STEIN, 1997, p.25).
Entre essas posições que nascem da crise das filosofias da subjetividade se encon-
tra a teoria da linguagem de Walter Benjamin. A “consciência de si” não é qualquer
noção que se perdeu, mas sim a principal e mais importante para a construção de
sistemas filosóficos na modernidade e que pretendia resolver o problema do co-
nhecimento. Foi isso que se perdeu na Filosofia, e para além dela.
No seu texto “Sobre o programa da filosofia vindoura”, Walter Benjamin mostra
que não se pode entender seu projeto filosófico sem vinculá-lo ainda ao pensamen-
to transcendental de Kant. Porém, ele submete o pensamento kantiano a uma crítica
radical. E constata que Kant, por razões metodológicas, não chegou à linguagem
como lugar que constitui o sentido e a validade de todo filosofar. Para Benjamin, a
filosofia transcendental de Kant fracassou por que não foi capaz de, após construir
seu castelo de categorias do entendimento, retornar às fontes originárias do co-
nhecimento. E como a Filosofia seria capaz de dar conta dessa dimensão originária
pressuposta? Primeiro, se trata de compreender que as filosofias da subjetividade
não são o quadro teórico adequado para se pensar essa questão. O que implicou
num deslocamento da questão da justificação do sujeito para a linguagem.
Benjamin, neste seu trabalho, deixa claro que parte do quadro teórico da
filosofia transcendental de Kant, mas, no entanto, já aponta para a superação dessa
forma de pensar quando mostra que a subjetividade não determina o sentido do
ser, mas experimenta e participa dele. Tem-se, se isso for válido, uma forma que
até então era nova de se fazer Filosofia: todos os conceitos utilizados para pensar
e para justificar as teses são transferidos para o centro da linguagem. Aqui Filosofa
se faz num entrelaçamento entre história e linguagem. Tem-se como central o fato
de a linguagem, o sentido, a história, a tradição, serem o a priori com os quais se
trabalha. E, então, o modelo da filosofia da consciência deve ser substituído pelo
modelo da filosofia da linguagem.
Ainda que Benjamin tenha reconhecido as contribuições kantianas, trata-
va-se de superar o paradigma kantiano, mas indo numa direção oposta daquela
tomada por Hegel, que pretendeu superar a subjetividade fazendo uma teoria do
Absoluto. Daí porque a referência de Benjamin no seu texto “Sobre a linguagem
A teoria da linguagem de Walter Benjamin no texto “Sobre a linguagem em geral e sobre... 691
Dentro desta concepção de linguagem, o homem não apenas constrói o sen-
tido, mas experimenta e participa dele. Se é no seio da linguagem que a realidade
é dada, a exigência básica para o pensamento filosófico é o pensamento da lingua-
gem com suas possibilidades de sentido. A linguagem não surge aqui apenas como
a linguagem natural humana, mas como a instância universal de expressão de to-
das as coisas e, assim, coextensiva ao mundo. Ela, como instância de articulação de
tudo, não pode ser entendida como algo subjetivo. Isso é o início da superação do
quadro teórico da subjetividade em direção a uma nova forma de pensar.
No primeiro parágrafo de seu texto, Benjamin diz:
Toda manifestação da vida espiritual humana pode ser concebida como uma
espécie de linguagem, e essa concepção leva, em toda parte, à maneira de ver-
dadeiro método, a novos questionamentos. (...). Resumindo: toda comunica-
ção de conteúdos espirituais é língua, linguagem, sendo a comunicação pela
palavra apenas um caso particular (...). (BENJAMIN, 2011, p.50).3
3
A tradução que disponível entendeu que o termo alemão “Sprache” pode ser traduzido por língua
ou por linguagem dependendo de seu contexto. Nessa passagem citada os dois termos são utilizados.
O que comunica a língua? Ela comunica a essência espiritual que lhe corres-
ponde. É fundamental saber que essa essência espiritual se comunica na língua
e não através da língua. Portanto, não há falante das línguas, se entender por
falante aquele que comunica através dessa língua (BENJAMIN, 2011, p.52).
A teoria da linguagem de Walter Benjamin no texto “Sobre a linguagem em geral e sobre... 693
abismo no qual ameaça precipitar-se toda teoria da linguagem, e sua tarefa
é manter-se em suspenso, precisamente acima desse abismo. A diferenciação
entre essência espiritual e essência linguística, na qual aquela comunica, é a
distinção primordial em uma investigação de caráter teórico sobre a linguagem
(BENJAMIN, 2011, p.51).
A teoria da linguagem de Walter Benjamin no texto “Sobre a linguagem em geral e sobre... 695
Para pensar a essência da linguagem humana, Benjamin faz uso dos primei-
ros capítulos de Gênesis4. O autor quer trazer a questão de como a linguagem seria
“dada” ao homem. Segundo a segunda versão da Criação, o homem não foi criado
pela palavra divina, mas foi feito do barro e tem em sua boca soprado o hálito divi-
no. Assim Deus teria transmitido ao homem sua capacidade de criar falando. Isso
implica que a linguagem é dada para o homem com certa autonomia e legalidade
própria. Deus não criou o homem a partir da palavra, ele não o nomeou. Pode-
-se entender com isto que, ao contrário das demais coisas da natureza, que estão
capturadas pelo mundo, o homem pode fugir deste fechamento e constantemente
criar o mundo. A metáfora quer dizer que o homem não está subjugado a uma
ordem material ou espiritual, pois é criador de mundo na medida em que compre-
ende e nomeia o mundo. Segundo a metáfora da Criação, Deus descansou após ter
depositado no homem seu poder criador, e isso quer dizer aqui que todo o poder e
que toda responsabilidade de formar o mundo após a Criação Original é humano,
não havendo mais uma divindade absolta que se pudesse responsabilizar e para a
qual se pudesse recorrer nos momentos de angústia. A linguagem, com essa me-
táfora da criação, significa para o homem certo destino que lhe é historicamente
imposto, com a qual o individuo que fala e nomeia segue com a tarefa de criar o
mundo na e pela linguagem.
Portanto, a criação do mundo nunca estará completa enquanto houver nome-
ação participativa humana. O mundo humano não é um mundo fechado. É sempre
possível enriquecer o próprio mundo da nomeação, ampliando os horizontes signi-
ficativos desse mundo. Assim se pode sempre abrir o olhar para novas dimensões,
para novas nomeações. O homem segue com a criação que nunca terá fim ao nomear
a si mesmo e as coisas do mundo em múltiplas perspectivas. Essa nomeação Benja-
min entende com a linguagem das linguagens porque abarca as outras linguagens
do mundo. Deus, como totalidade, soprou o hálito no homem, isso logo indica que o
homem está destinado a ser formador de mundo em sua participação no todo.
Os nomes significam a abertura constante para a criação contínua, eles signi-
ficam o processo de abertura para além das repetições cegas da vida. A linguagem
dos nomes ainda possibilita que se dê conta que qualquer absolutização feita só
funciona como nova participação expressiva, e não como solução definitiva. A for-
ça de qualquer grande teoria, tese, ideologia, cresce e diminui na medida em que
cresce e diminui o entusiasmo do exército de seus seguidores, pois sempre será
4
É bom fazer algumas ressalvas no que se refere ao uso benjaminiano dos mitos da Criação na sua
teoria da linguagem. O recurso ao mito na Filosofia não pode significar nenhuma concessão do rigor
filosófico em favor de um pensamento mítico. Quando na Filosofia se faz referência a alguma narrati-
va mítica, isso não significa que se está transformando-a em princípio de realidade. O que a Filosofia
faz, ou pelo menos é isto que Benjamin faz, é justamente reconhecer o teor do mito como genuina-
mente humano, e assim assumir sua discussão no âmbito humano, e não mais no sagrado. Benjamin
identifica nos mitos de Gênesis problemas e perguntas fundamentais da humanidade, que devem ser
debatidas filosoficamente, e isto não significa que se assumam as orientações e as soluções dadas
pela visão mística do mundo.
A teoria da linguagem de Walter Benjamin no texto “Sobre a linguagem em geral e sobre... 697
Conclusão
Se a Filosofia pudesse encerrar o mundo numa formula, se ela fosse capaz
de fazer um mapa no qual se configurasse perfeitamente o mundo humano, que
vantagem se teria para o conhecimento e para a vida neste mundo? (STEIN, 1987,
p.113). Muitas vezes a Filosofia se enveredou por caminhos com pretensões se-
melhantes. E não foram tentativas de ficcionistas como Borges e Kafka, mas de
filósofos como Kant e Hegel, que pretendiam que seus enunciados fossem funda-
mentados e fizessem sentido. Por detrás destas pretensões está a noção de que a
mente do filósofo é o ponto privilegiado capaz de espelhar o mundo exterior, e,
assim, ter o entendimento adequado da realidade. Essa é a convicção filosófica de
que a relação do homem com o mundo se dá através de uma correspondência em
que o pensamento representa as coisas do mundo.
Mas, pensa Benjamin, de alguma forma o próprio Kant abriu o caminho para
uma nova postura. Com sua substituição da estrutura do mundo pela estrutura
do entendimento, Kant deu início a substituição da estrutura dos conceitos pela
estrutura dos diferentes sistemas de significações. Esse é o movimento de um sen-
tido único (de um mundo já encontrado e pronto) para um mundo em constan-
te processo de gestação, que permite versões até mesmo em conflito. Benjamin
reconhece os méritos de Kant nessa questão. Ele, com isto, retoma a questão da
fundamentação como uma questão central. Contudo era necessário superar, em
um único movimento, tanto a metafísica realista quanto a filosofia transcendental
da subjetividade e ir em direção à metafísica da linguagem.
Uma nota de rodapé do texto de Benjamin sobre a linguagem chama a aten-
ção. Ela diz: “Ou será antes a tentação de colocar a hipótese no início, que constitui o
abismo de todo filosofar?” (2011, p. 52). A história da filosofia, e, mais precisamen-
te, a metafísica, se revela como o processo de aparecimento e desaparecimento de
hipóteses, de fundamentos. Colocando a hipótese no início, a Filosofia sempre no-
meou o fundamento: telos, ousia, consciência, Deus. Já em Benjamin não há um cen-
tro e não é possível esgotar a totalidade. O filósofo sempre manteve essa totalidade
diante de si. Seu limite é que ele não foi capaz de expressá-la com clareza metódica.
Mas o importante é notar com isso que Benjamin tem consciência que o problema
da fundamentação não foi decidido por Kant. Por isso não tem sentido um simples
retorno a ele. Mas antes se trata de pensar isso que pode e deve ser pensado pela
Filosofia. Esse evento da totalidade foi chamado de Deus.
Então, Benjamin fez o que propôs? Ele pensou Deus? A Filosofia que pensa
Deus pensa o fundamento de toda a realidade. A tarefa da Filosofia que só pensa
Deus é fazer manifestar-se a unidade básica de tudo, que possui aqui uma forma
linguística. Todo pensamento de Benjamin é um desdobramento do que ele cha-
mou de “pensar Deus”. Ele nunca explicou a estrutura desse tipo de pensamento,
nem seus fundamentos lógicos e semânticos. Seu objetivo foi mostrar que se os
A teoria da linguagem de Walter Benjamin no texto “Sobre a linguagem em geral e sobre... 699
ção. Portanto, a luta de classes marxiana, no pensamento benjaminiano, se torna
uma crítica à própria ideia de civilização que se pretende conduzida por um pro-
cesso universal e hegemônico.
Aqui não se pode apelar para nenhuma instância que esteja além das referên-
cias lingüísticas humanas: o modo-de-ser humano no mundo não possui mais uma
instância ou um ser absoluto. As conseqüências disso para a Filosofia são radicais:
não há mais nenhum fundamento absoluto privilegiado e nenhuma verdade última
abarcada pelo entendimento, mas sim apenas aberturas históricas, participações e
nomeações. Isso quer dizer que ninguém pode nunca sair da linguagem, das suas
próprias crenças e conjecturas, e propor um critério que seja independente dos
seus sistemas interpretativos. E, com isso, a autoridade epistêmica se desloca de
um sujeito que representa um mundo para uma multiplicidade de participações de
sujeitos nomeadores, que podem se entender entre si por estarem submersos no
mesmo todo-Deus.
O que não se pode fazer aqui é falar de uma realidade em si, uma vez que
a realidade se apresenta sempre como sentido. Ela é sempre contingente. Ela é
sempre produto das constantes nomeações humanas. A realidade é sempre rea-
lidade descrita, traduzida, nomeada de alguma forma. E isso implica que não há
uma realidade fora das interpretações da realidade para se ter acesso de forma ab-
soluta. Essa nova forma de pensar as questões na metafísica da linguagem supera
qualquer espécie de nostalgia pelo pensamento metafísico que veio antes, no caso,
o kantiano. Agora nada fora do seio da linguagem pode ser conteúdo da Filosofia.
Mas não se quer dizer que agora se está num relativismo absoluto. Ainda é possível
estabelecer algo que exerça um controle racional sobre os pensamentos e crité-
rios para se comparar as diferentes posições. O que não há mais são esconderijos
filosóficos fora da linguagem para alguém se abrigar com segurança. Agora que
nenhum discurso é soberano, todos podem e devem prestar contas de si publica-
mente, dando suas razões e mostrando por que seriam mais convincentes.
Referências
BENJAMIN, Walter. (1984). Origem do Drama Barroco Alemão. Trad. Sergio Paulo Rouanet.
São Paulo: Brasiliense.
________________. (2006) Passagens. Trad. Irene Aron. Belo Horizonte: Editora UFMG.
________________. (2011). “Sobre a linguagem em geral e sobre a linguagem do homem”. In:
Escritos sobre mito e linguagem. Trad. Susana Kampf. São Paulo: Duas Cidades.
_______________. (1977). “Über das Programm der Kommenden Philosophie”. In: Gesammelte
Schriften II. Frankfurt am Main: Suhrkamp Verlag,.
_______________.(1977). “Über Sprache überhaubt und über die Sprache dês Menschen”. In: Ge-
sammelte Schriften II. Frankfurt am Main: Suhrkamp Verlag.
SCHNEIDER, Paulo Rudi. (2008). A Contradição da Linguagem em Walter Benjamin. Ijuí:
Editora Unijuí.
STEIN, Ernildo. (1997). A caminho de uma fundamentação pós-metafísica. Porto Alegre:
EDIPUCRS.
_______________. (1987). Paradoxos da racionalidade. Caxias do Sul – Porto Alegre: PyR Edições.
Identidade, Capacidade e
responsabilidade ética do juiz
de direito: em busca dos
sentidos da Justiça
* Doutor em Filosofia,
Universidade Metodista
Ricardo Rossetti* de São Paulo – UMESP
Resumo
Paul Ricoeur elabora um percurso hermenêutico em torno do que constitui a
tarefa do juiz de direito. Nesta reflexão identifica-se quem é o juiz de direito
enquanto eu julgador no nível das instituições políticas. Ricoeur sustenta que
o juiz de direito é, antes de tudo, alguém capaz de agir e falível na efetivação
de suas ações, isto é, um ser humano, como qualquer outro: frágil, falível, li-
mitado. Nessa direção, o autor recupera a temática da falibilidade como uma
categoria que encontra seu registro na dimensão das instituições de justiça,
das quais o juiz de direito é fundamento: articulador, agente de decisão, des-
tinatário de um juízo. A compreensão de sua identidade deve prescindir de
uma reflexão acerca da capacidade de agir do eu julgador no nível das institui-
ções, à luz de uma ética da diferença e da responsabilidade. Trata-se da busca
do significado das ideias de justiça.
Palavras-chave: justiça; identidade; responsabilidade; ética; hermenêutica.
O
tema que se traz à reflexão diz respeito à identidade, a capacidade e a res-
ponsabilidade do juiz de direito, numa discussão que se desenvolve a par-
tir de uma hermenêutica da justiça em Paul Ricoeur. Trata-se de um estudo
acerca das ideias de justiça – o injusto e o justo –, que podem ser compreendidas
em face do ato de julgar praticado por quem exerce o juízo de valor no âmbito das
instituições sociais, políticas e judiciárias. Propõe-se, assim, uma reflexão acerca da
figura do eu julgador que, na filosofia ricoeuriana, origina-se na hermenêutica do si
a partir da indagação sobre “quem é o sujeito que julga uma ação?”. O objetivo deste
percurso é chegar aos sentidos da justiça a partir da abordagem de dois conceitos
prementes na filosofia do autor: o conceito de identidade narrativa e o de narrativa
jurídica. O entendimento a respeito do conceito de identidade narrativa dependerá
1
Diz o autor: “Como e até qual ponto o historiador e o juiz satisfazem a essa regra de imparcia-
lidade inscrita em suas deontologias profissionais respectivas?” (“Comment et jusqu’à quel point
l’historien et le juge satisfont-ils à cette règle d’impartialité inscrite dans leurs déontologies pro-
fessionelles respectives?”).
2
Diz o texto: “La justice argumente, et d’une façon très particulière, en confrontant des raisons pour
ou contre, supposées plausibles, communicables, dignes d’être discutées par l’autre partie. Dire, com-
me je l’ai suggéré plus haut, que la justice est une partie de l’activité communicationelle prend ici
tout son sens: la confrontation entre arguments devant un tribunal est un tribunal est un exemple
remarquable d’emploi dialogique du langage. Cette pratique de la communication a même son éthi-
que: audi alteram partem... l’exercice de la justice n’est pas simplesment un cas d’arguments, mais de
prise de décision. C’est ici la lourde responsabilité du juge, dernier anneau de châine de procédures,
à quelque degré que ce soit”.
Referências
RAWLS, John. Justiça como eqüidade: uma reformulação (2003). Trad. Claudia Berliner. São
Paulo: Martins Fontes.
_______________ (2002). Uma teoria da justiça. Trad. Almiro Pisetta e Lenita Maria Rímoli Es-
teves. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes.
RICOEUR, Paul (2008). Amour et justice. Paris: Points.
_______________ (2007). A memória, a história, o esquecimento. Trad. Alain François et. al. Cam-
pinas: Editora da Unicamp.
_______________ (2000). La mémoire, l’histoire, l’oubli. Paris: Editions du Seuil.
_______________ (2001). Le juste 2. Paris: Seuil.
_______________ (2005). Le juste, la justice et son échec. Paris: L’Herne.
_______________ (1995). O justo ou a essência da justiça. Trad. Vasco Casimiro. Lisboa: Instituto
Piaget.
_______________ (2006). Percurso do reconhecimento. Trad. Nicolas Nyimi Campanário. São
Paulo: Loyola.
_______________ (1996). Soi-même comme um autre. Paris: Editions du Seuil.
3
Assim como Wittgenstein, outros autores notabilizaram-se no estudo da filosofia analítica, sob a
denominação do Círculo de Viena, do qual teria participado Hans Kelsen, o principal nome que repre-
senta essa tradição na esfera dos estudos jurídicos. Seu trabalho mais polêmico é a Teoria pura do
direito. Porém, é nos estudos acerca da justiça onde o autor procura demonstrar a incompatibilidade
dos juízos de valor, como são os da justiça, com a concepção de uma teoria pura do direito, segundo a
qual o objetivo é possibilitar um discurso jurídico erigido ao nível de conhecimento científico.
Resumo
Na teoria política desenvolvida por Hannah Arendt a autoridade é compreen-
dida a partir da tradição iniciada por Platão, o qual estabeleceu uma relação
de dependência da política para a filosofia. Posteriormente, esta tradição, no
encontro com o Cristianismo, uniu metafísica e religião na fundamentação da
autoridade, de modo que, por muitos anos, a política ocidental foi pautada
pela aliança entre Igreja e Estado. O fim desta aliança teve implicâncias na
compreensão da autoridade. Segundo Arendt, uma das principais consequên-
cias da secularização foi o absolutismo europeu, concretizado na figura do
soberano. Contra este absolutismo lutavam os revolucionários, que esbarra-
vam na dificuldade de encontrar um novo absoluto para substituir a vontade
do soberano. Os franceses teriam deslocado a soberania do rei para a nação,
o que significa dizer que a vontade da nação se tornou a fonte do poder e das
leis. Quanto aos americanos, embora se diferenciem dos franceses no desfe-
cho da revolução, não conseguiram se livrar do problema do absoluto na fun-
damentação da autoridade. Isto ocorreu devido à falta do desenvolvimento
de um novo pensamento que acompanhasse a nova fundação. Os revolucioná-
rios americanos acertaram na prática, mas erraram na interpretação da ação
política que realizaram. Arendt procura mostrar que, após a secularização, a
autoridade permaneceu na experiência revolucionária americana, mas a sua
existência não dependeu de um absoluto transcendente, e sim, do próprio ato
de fundação de um novo corpo político.
Palavras chave: Autoridade, secularização, modernidade, tradição, fundação.
O
tema da autoridade perpassa vários escritos de Hannah Arendt, quase
sempre relacionado à tradição e à secularização. Em suas análises, a autora
utiliza-se de referenciais gregos e romanos, demonstrando uma rejeição da
proposta platônica e certo respeito pela experiência romana. As Revoluções Ame-
ricana e Francesa são analisadas sob a ótica da autoridade política, que é abalada
com a perda da sanção religiosa. Mas é, sobretudo, no século XX que Arendt loca-
liza o fim da autoridade. Que tipo de autoridade chegou ao fim? Qual a reação de
Arendt diante disso? Em alguns momentos, ela parece satisfazer-se com o conceito
de poder na política, deixando a autoridade para o campo da educação. Em outros,
temos a impressão de que ela defende a recuperação de uma autoridade, baseada
na fundação, de acordo com o modelo romano. Nossa intenção não é mostrar que
Arendt, de algum modo, defende o papel de uma autoridade para o futuro da polí-
tica, mas compreender se é possível estabelecer uma relação entre a autoridade e
a pluralidade humana.
1
As outras definições que Arendt apresenta no livro Sobre a Violência, citamos aqui: “O vigor, de modo
inequívoco, designa algo no singular, uma entidade individual; é a propriedade inerente a um objeto ou
pessoa e pertence ao seu caráter, podendo provar-se a si mesmo na relação com outras coisas ou pes-
soas, mas sendo essencialmente diferente delas. [...] A força, que frequentemente empregamos no dis-
curso cotidiano como um sinônimo da violência, especialmente se esta serve como um meio de coerção,
deveria ser reservada, na linguagem terminológica, às ‘forças da natureza’ ou à ‘força das circunstâncias’
(la force des choses), isto é, deveria indicar a energia liberada por movimentos físicos ou sociais” (AREN-
DT, 2010b, 61). “Finalmente, a violência, como eu disse, distingue-se por seu caráter instrumental. Fe-
nomenologicamente, ela está próxima do vigor, posto que os implementos da violência, como todas as
outras ferramentas, são planejados e usados com o propósito de multiplicar o vigor natural até que, em
seu último estágio de desenvolvimento, possam substituí-lo” (ARENDT, 2010b, 63).
Não foi nenhuma teoria, teológica, política ou filosófica, mas a decisão de sair
do Velho Mundo e se arriscar num empreendimento por conta própria que
levou a uma sequência de atos e ocorrências, em que teriam perecido se não
tivessem refletido sobre o assunto com dedicação e tempo suficiente até des-
cobrir, quase inadvertidamente, a gramática elementar da ação política e sua
sintaxe mais complicada, cujas regras determinam a ascensão e a queda do
poder humano (ARENDT, 2011b, 226).
Arendt procura mostrar que o poder não depende da sanção religiosa, pois
está fundamentado no acordo mútuo entre as pessoas. Neste sentido, a seculariza-
ção não interfere em sua existência. Porém, iniciamos nossa reflexão sobre a secu-
larização, chamando a atenção para a sua implicância no conceito de autoridade.
Ora, depois de ter feito uma análise sobre o conceito de poder dos americanos,
Arendt diz o seguinte: “o principal problema da Revolução Americana, depois de
cortada a fonte de autoridade do corpo político colonial no Novo Mundo, passou a
ser o estabelecimento e a fundação não do poder, e sim da autoridade” (ARENDT,
2011b, 232). O poder não era suficiente para dar estabilidade ao corpo político, e
as leis também não, porque elas dependiam “do poder do povo e de seus repre-
sentantes nas legislaturas; mas esses homens não podiam representar ao mesmo
2. A Perda da Autoridade
No questionamento inicial que Arendt faz em seu texto “Que é Autorida-
de?” ela diz que a pergunta correta deveria ser “o que foi a autoridade?”, pois isto é
um fato do passado, que desapareceu no mundo moderno. Esta é uma crise de ori-
gem política que “acompanhou o desenvolvimento do mundo moderno em nosso
século” (ARENDT, 2011a, 128). Entendendo que Arendt se refere ao século XX, logo
percebemos que não podemos confundir a era moderna com o mundo moderno.3
Portanto, nos séculos XVII e XVIII, que marcaram o fenômeno da secularização,
ainda não é o período para se identificar o fim da autoridade. Então, faz sentido
que os revolucionários americanos tenham mantido a autoridade, dando a ela uma
nova configuração. Porém, o que queremos entender é como esta autoridade foi se
perdendo ao longo dos anos, ou o que teria provocado a sua crise.
2
Utilizamos aqui o termo “Supremo Tribunal”, presente em Sobre a Revolução, na tradução de Denise
Bottmann. No livro Crises da República, com a tradução de José Volkmann, encontramos o termo “Cor-
te Suprema” (Cf. ARENDT, 2010a, p. 53).
3
Em seu livro A Condição Humana, Arendt faz a seguinte distinção: “a era moderna não coincide com
o mundo moderno. Cientificamente, a era moderna começou no século XVII e terminou no limiar
do século XX; politicamente, o mundo moderno em que vivemos surgiu com as primeiras explosões
atômicas” (ARENDT, 2007, 13-14).
Isso faz com que passem por alto a diferença de princípio entre a restrição
da liberdade em regimes autoritários, a abolição da liberdade política em ti-
ranias e ditaduras, e a total eliminação da própria espontaneidade, isto é, da
mais geral e elementar manifestação da liberdade humana a qual somente
visam os regimes totalitários, por intermédio de seus diversos métodos de
condicionamento (ARENDT, 2011a, 133).
4
Anne Amiel comenta a concepção de ‘autoridade’, em Arendt, mostrando que ela não aceita o abso-
luto transcendente, mas também não assume completamente a concepção romana de autoridade: “O
que Arendt procura sob o termo ‘autoridade’, é a estabilidade e a moderação de um regime que não
se funda nem num alicerce religioso definitivamente não pertinente politicamente, nem sobre uma
reverência indevida para com um ato de fundação privando os atores presentes da liberdade dos
fundadores” (AMIEL, 2001, 106).
Resumo
O texto analisa o dilema de como determinar a origem e a fonte da legitimidade
do poder e da lei. Tal problema é pensado pela autora no contexto da secula-
rização, isto é, no contexto da emancipação da política diante da religião, e da
perda de uma fonte transcendente a sancionar as leis humanas. Argumentamos
que se por um lado a perda deste fundamento último gera uma profunda insta-
bilidade dos corpos políticos modernos por outro lado, aparece também como
a condição de possibilidade das revoluções modernas, que têm como principal
tarefa fundar uma nova fonte de autoridade para as republicas seculares nas-
centes. Por fim, analisamos como Arendt faz uma releitura das revoluções fran-
cesa e americana ilustrando como cada uma lidou com este dilema. A hipótese
defendida é a de que Arendt recusa a noção de soberania e encontra em um
conceito republicano de autoridade possíveis respostas.
Palavras-chave: Fundação; Autoridade; Secularização; Lei; Constituição; Le-
gitimidade.
O
problema da autoridade consiste na tarefa de fundar um corpo político an-
gariando legitimidade e autoridade para este. Tal dilema aparece na feitura
das “leis primeiras” de uma comunidade, ou seja, da Constituição. Diz res-
peito à origem e à fonte última da autoridade e da legitimidade do ato fundador dos
constituintes, uma vez que este momento de ruptura entre uma velha ordem e uma
nova supõe uma espécie de vácuo normativo e aqueles que se propõe a constituir
uma nova república são eles mesmos, necessariamente, inconstitucionais. Onde
então ancorar a autoridade e a legitimidade da fundação de uma república para
além da pura arbitrariedade e contingência dos atores? Apesar de este tema per-
passar boa parte da obra da autora é, sobretudo, no livro Sobre a revolução que
1
Arendt chega mesmo a afirmar que as maiores consequências do secularismo só se fizeram sentir
com a emergência dos regimes totalitários no século XX, cuja denegação de todos os valores e tradi-
ções propiciou a crença niilista de que ‘tudo é possível’ e “permitido” em nome de um suposto movi-
mento histórico ou natural. Cf. Arendt, 2007b, p.128
2
Em outras palavras, “as revoluções colocavam em relevo, com incomparável perspicácia, o velho
problema, não do direito e do poder per se, mas da fonte do direito que iria atribuir legalidade ao
direito positivo, estatuído, e da origem do poder que iria atribuir legitimidade aos poderes existentes”.
(ARENDT, 2001, p.196-197).
Arendt lembra ainda que teóricos anteriores já haviam comparado este pro-
blema “de colocar as leis acima dos homens [...] ao de realizar a quadratura do cír-
culo em geometria” (ARENDT, 2001, p.227). Problema que Sieyès, no seio da revo-
lução francesa, havia descrito como um “círculo vicioso”, pois “aqueles que se unem
para constituírem um novo governo são, eles próprios, inconstitucionais, não têm
autoridade para fazer aquilo que se propuseram levar a efeito” (Idem, p.227). Com
efeito, para Arendt, as revoluções são momentos paradigmáticos onde nos depa-
ramos diretamente “com o problema do começo”. Pois, se por um lado a fundação
é a expressão máxima da liberdade e da ação humana de trazer ao ser algo novo e
imprevisível, por outro, “o começo traz em si, uma certa dose de total arbitrarieda-
de; não está preso numa segura cadeia de causa e efeito e não tem, por assim dizer,
nada a que se manter fiel” (Idem, p.254).
4
Cf. Arendt (2001, p.226-227), “a reivindicação da monarquia absoluta, que pretendia basear-se nos
‘direitos divinos’ havia construído o domínio secular à imagem de um deus que é, ao mesmo tempo,
onipotente e legislador do universo, ou seja, à imagem do Deus cuja vontade é Lei. A ‘vontade geral’ de
Rousseau ou Robespierre continua a ser esta Vontade Divina, a quem basta querer para estabelecer
uma lei”.
5
Já em A condição humana Arendt (2010a, p.295-296) afirmava que a faculdade humana de fazer e
cumprir promessas era o único remédio para a imprevisibilidade e contingência da política, que é
inerente à própria ação e à pluralidade humana. O papel que desempenha na política estabelece um
conjunto de princípios orientadores diametralmente opostos aos padrões “morais” e “transcenden-
tes” à esfera da interação humana.
Não obstante, Arendt parece não ver as promessas e os pactos como instân-
cias suficientemente sólidas e estáveis para fundar uma nova fonte normativa de
autoridade7 recorrendo, então, à noção complementar de princípios de ação ima-
nentes ao próprio ato constituinte de fundação. Arendt não elabora uma teoria
sistemática do que seriam esses princípios, tampouco demonstra pormenoriza-
damente como eles se relacionariam com a autoridade da constituição. Contudo,
são várias as passagens em que ela se refere a esses princípios de ação, sobretudo
a partir de uma reapropriação de Montesquieu, indicando uma relação intrínseca
entre princípio, autoridade e constituição que merecem atenção8. Arendt parece
encontrar uma correspondência de sua teoria dos princípios, se podemos assim
6
Vale lembrar que Arendt estabelece uma distinção entre uma versão contratualista vertical baseada
no princípio da soberania e na divisão entre governantes e governados, onde o soberano monopoliza
o poder de todos, à qual filia Hobbes, e uma versão horizontal, ou republicana, baseada na recipro-
cidade e no autogoverno dos cidadãos onde o poder permanece com os mesmos, que ela identifica
em parte com a teoria de Locke, mas principalmente com as próprias práticas dos colonos america-
nos. Sobre isso ver Arendt (2001, p.209/210/211) e Arendt (2006a, p. 77-78). Ver também Adverse
(2012, pp.48-49).
7
Como fica claro na seguinte passagem: “Contudo, enquanto o poder, enraizado num povo que havia
estabelecido os seus próprios laços através de compromissos mútuos e que vivia em organismos
constituídos por meio do acordo, era suficiente para “atravessar uma revolução” (sem libertar a vio-
lência desenfreada das multidões), não era de modo algum suficiente para estabelecer uma “união
perpétua”, ou seja para fundar uma nova autoridade. Nem o acordo, nem o compromisso, no qual
se baseiam os acordos, são suficientes para assegurarem a perpetuidade, isto é, para conferirem
aos problemas dos homens a medida de estabilidade sem a qual eles seriam incapazes de criar um
mundo para sua posteridade, destinado e projetado para perdurar para além das suas vidas mortais
(ARENDT, 2001, p.225).
8
Já em seu ensaio O que é liberdade? Arendt afirmava que a ação livre não é determinada por motivos
ou por imperativos racionais-morais, mas que emerge de “um princípio inspirador” imanente que
“torna-se plenamente manifesto somente no próprio ato realizador” (2007c, pp.198-199, grifo nosso).
Em outro ensaio, ela comenta que um princípio inspirador se refere a “convicção básica que um gru-
po de homens compartilha entre si [que] induzem os homens ao agir e de cuja origem seu agir se ali-
menta sem cessar” (ARENDT, 2006b, p.128). Seguindo Montesquieu ela associou os princípios com o
espírito das leis de cada forma de governo, como, por exemplo, a honra e a distinção numa monarquia
bem como a virtude, a igualdade e a liberdade em uma república (ARENDT, 2010b, p.112-113). Aqui
Arendt define esses princípios como sendo “mais exatamente, os critérios orientadores que inspiram
as ações de governantes e governados e pelos quais todas as ações na esfera pública são julgadas”.
(Idem, p.112-113, grifo nosso).
[...] possui, dentro de si, o seu princípio, ou, para sermos mais exatos, que o
início e o princípio em sentido de norma, principium e princípio, não só se rela-
cionam entre si, mas são coevos. O “absoluto” do qual o início vem a derivar a
sua própria validade é o princípio que, juntamente com ele, faz a sua aparição
no mundo (ARENDT, 2011, p.263, grifo nosso) 9.
9
Assim também na língua grega a palavra Arché significa, ao mesmo tempo, começo e fundamento e
em português a palavra princípio, significa tanto início quanto preceito.
10
Como sugere Kalyvas “a elaboração constitucional parece, então, mais como um processo de des-
coberta, escavação e reconstrução do que de criação original. [...]. Ao realizá-lo, eles percebem que
deviam primeiro incluir no novo documento constitucional as mesmas normas que eles tinham pra-
ticado durante todo o tempo, que são pressuposições implícitas da elaboração constitucional. Estas
incluem os direitos e obrigações que eles garantiram uns aos outros durante a performance do pro-
cesso de constituir uma nova ordem política e legal. Os sistemas de direitos e os princípios do estado
constitucional podem ser desenvolvidos daqueles meios de realizar a prática que tinham sido inseri-
dos no primeiro ato de autoconstituição de uma tal ordem legal” (2008, p.249-250).
11
Com isso discordamos das interpretações mais pós-modernas de autores como Honig, Hilb e Villa,
que, por distintos modos, procuram ancorar o conceito de autoridade de Arendt na pura performati-
vidade da ação prometedora e numa espécie de esteticismo político antifundacionista. Como obser-
vou Duarte, tais interpretações baseadas numa ação autorreferenciada “desconsideram o importante
vínculo estabelecido pela autora entre a ação e a manifestação dos ‘princípios’ em função dos quais
ela tem de ser julgada e avaliada” (2000, p.225).
A indeterminação do político:
Hannah Arendt e Roberto
Esposito
Resumo
O pensamento arendtiano encontra-se firmemente ancorado em uma opo-
sição cara à tradição filosófica: a separação entre a mera vida (zoé) e a vida
especificamente humana (bíos). Separação descrita em uma série de oposi-
ções, tais como natureza x mundo, próprio x comum, privado x público. Parte
significativa de seus leitores tem debatido a validade e as implicações desta
cisão, considerando em que medida Arendt a teria tomado como um dado
irrefutável e apreendido o político como um campo fechado e essencialmente
determinado. Cumpre aqui indicar outra leitura, aproximando Hannah Aren-
dt e Roberto Esposito, a fim de pensar a política como tarefa irrealizável, aves-
sa à toda determinação e acabamento. Veremos em um primeiro momento
como ambos se coadunam a este respeito para, em seguida, apontar a distân-
cia tomada por Esposito em relação à tradicional cisão entre vida natural e
vida humana.
Palavras-chave: vida; biopolítica; impolítico; limite; distinção.
Introdução
E
ntre as reflexões de Hannah Arendt sobre o totalitarismo e sua descrição da
modernidade como época do esquecimento da política encontramos o mes-
mo diagnóstico: a redução dos seres humanos à mera vida biológica. Vida
que pode ser morta nos campos de concentração ou gerenciada estatisticamente
pela administração de empresas e governos burocráticos; que pode ser substituída
ou descartada. De modo geral, esta impiedosa redução poderia ser explicada como
1
Certamente existem diferenças essas leituras e nenhuma delas refuta o pensamento arendtiano
como um todo, procurando valorizar justamente aqueles aspectos que possibilitariam tornar as dis-
tinções móveis, permeáveis e operativas na atualidade.
Duarte chama a atenção para isto em sua pesquisa recente, em que procu-
ra aproximar Arendt e o que chama de “pensadores da comunidade”, entre eles
Roberto Esposito. Ele relembra a relação tramada por Arendt entre a política e as
artes de desempenho, tais como a dança, o teatro e a apresentação musical. Elas
“se esgotam na própria performance, já que não são orientadas por um telos que
lhes seja exterior, motivo pelo qual não deixam um objeto tangível ao final da ati-
vidade”, assim como “o caráter performático da atividade política constituinte de
espaços de compartilhamento” (DUARTE, 2011, p. 29). Ao invés de tomarmos o
político como um lugar específico ou a partir do interesse em um objeto qualquer,
podemos pensá-lo como puro meio, a abertura que torna possível a instauração de
um lugar para o debate, onde todo objeto pode então aparecer e ser compreendido.
Sendo assim, parece totalmente viável compreendermos aquilo que fica entre os
homens na compreensão arendtiana da política (seu inter-esse, o ser-entre), do
modo como Jean-Luc Nancy sugere que seja compreendido o com da comunidade,
referindo-se ao conceito de communitas na obra de Roberto Esposito:
A redução dos homens à vida biológica é a condição para seu controle e ma-
nipulação nos campos de concentração ou nos quadros estatísticos de nossas em-
presas e governos, que desqualificam, uniformizam e reduzem os homens à uma
equivalência geral, transformando-os em recurso que pode ser calculado com exa-
tidão. A politização da vida é a naturalização da política, o fechamento do ser que
se caracteriza pelo diálogo e pela persuasão. Por isso a lembrança recorrente da
definição grega do espaço privado, em que se conserva e reproduz a vida, como lu-
gar da necessidade e do domínio. O dominus, assim como o eugenista, não fala: “As
palavras, nesse caso, eram meros substitutos do fazer algo, na verdade de algo que
supunha o uso da força e ser coagido” (ARENDT, 2008, p. 173). A fala baseada em
necessidades e fatos naturais não é fala, mas coação lógica. Violação que explica a vi-
gilante aversão de Arendt a toda metáfora orgânica aplicada aos assuntos humanos.
A primeira parte deste texto foi uma tentativa de esboçar este caminho de
aproximação entre os dois autores. A ideia de que não compartilhamos, enquanto
seres políticos, nenhuma propriedade fundamental. E como consequência desta
falta de fundamento, uma noção muito particular da relação entre liberdade e po-
lítica. Trata-se agora de apresentar, de maneira muito breve, o distanciamento to-
mado por Esposito em relação à apreciação da vida natural.
Como dito acima, todo o edifício conceitual arendtiano está construído so-
bre a tradicional distinção entre zoé e bíos, a vida comum a todos os seres e a vida
especificamente humana. Desde a compreensão do fenômeno totalitário, que inau-
gura seu pensamento propriamente político, até as análises das democracias, das
revoluções e das ciências modernas, ela segue utilizando esta ferramenta. Quanto a
Esposito, a articulação entre communitas e immunitas, entre a dívida que expõe os
homens aos riscos da vida em comum e a imunidade que os isenta e protege, não
parece invalidar o problema da redução biopolítica que Arendt (juntamente com
Foucault) teria vislumbrado.
Aqui está a contradição que eu tentei iluminar: aquilo que salvaguarda o cor-
po – individual, social, político – é também aquilo que impede seu desenvol-
vimento. E aquilo que também, passado certo ponto, ameaça destruí-lo. (...)
a imunização em alta dose é o sacrifício do vivente – isto é, de toda forma de
vida qualificada – à simples sobrevivência. A redução da vida a sua nua base
biológica (ESPOSITO, 2009, p. 18).
Referências
ARENDT, H. (2008). A Promessa da Política. Rio de Janeiro: DIFEL.
_______. (1973). “Da Violência”. In: Crises da República. São Paulo: Perspectiva.
_______. (2010). “Sobre Hannah Arendt”. Trad.: Adriano Correia. Revista Inquietude, Goiânia,
v. 1, n. 2. Disponível em: www.inquietude.org/index.php/revista/article/viewArticle/45.
Acesso em: 03/06/2011.
_______. (1998). The Human Condition. Chicago: University of Chicago Press.
1. Introdução
P
retendo apresentar e discutir neste artigo a relevância da distinção entre
mundo e vida efetuada por Hannah Arendt, tendo em vista extrair as impli-
cações políticas presentes na crescente indiferenciação entre tais dimen-
sões fundamentais da condição humana ao longo da modernidade. Muitos intér-
pretes da obra arendtiana desenvolvem atualmente estudos que empreendem a
aproximação entre a reflexão da autora e a recente discussão em torno do conceito
de “biopolítica”, ou seja, a respeito das consequências e dos desdobramentos da
crescente politização da vida vigente nas sociedades contemporâneas. Ainda que o
termo e o conceito de “biopolítica”1 estejam completamente ausentes do vocabulá-
1
O conceito de “biopolítica” tem sido muito investigado, sobretudo a partir da reflexão genealógica
de Foucault sobre o poder concentrado nas políticas públicas governamentais, ou seja, na figura do
Estado, não mais simplesmente voltado para a docilização e utilização dos corpos individualizados
Esse mundo, que se instaura entre os homens quando estão juntos na mo-
dalidade da ação e da fala, é tão real quanto o mundanidade artificial de coisas e
instituições que visivelmente se interpõe entre eles e a natureza. É, portanto, com
palavras e atos que, para Arendt, inserimo-nos no mundo propriamente humano.
Como esclarece Arendt:
“O mundo não é humano simplesmente por ser feito por seres humanos e
nem se torna humano simplesmente porque a voz humana nele ressoa, mas
apenas quando se tornou objeto de discurso. Por mais afetados que sejamos
pelas coisas do mundo, por mais profundamente que possam nos instigar e
estimular, só se tornam humanas para nós quando podemos discuti-las com
nossos companheiros” (2003, p. 31).
Por esta via, o mundo é também o “espaço da ação” (Arendt, 2001, p. 210),
ou seja, a esfera pública criada entre os homens por meio da ação e da fala. A loca-
lização própria desse “espaço” prescinde da mediação dos objetos ou da matéria,
visto que se exerce somente a partir da convivência e do intercurso entre os ho-
mens, envolvidos uns com os outros na realização de interesses comuns. “Esses
interesses constituem, na acepção mais literal da palavra, algo que inter-essa, que
está entre as pessoas e que, portanto, as relaciona e interliga” (Arendt, 2001, p.
195). Assim, a inserção no mundo comum por meio da ação e da fala é um se-
gundo nascimento depois do nascer corpóreo, pois depois de “começados” pelo
nascimento corpóreo, podemos começar algo novo por nossa própria iniciativa,
imprimindo movimento a processos espontâneos e imprevisíveis. Se no trabalho
a necessidade de subsistência do movimento circular de nossas funções corporais
nos impõe sempre começar tudo de novo, pela iniciativa de agir e falar podemos
começar algo novo na teia pré-existente de relações humanas.
Na esfera pública, por atos e palavras, os homens concordam e discordam de
determinados propósitos, comprometem-se com realizações e interesses comuns,
rompem com a pequenez e o conforto da esfera privada, em nome de algo cuja
grandeza valha mais que qualquer satisfação que a felicidade pessoal possa lhes
proporcionar. Portanto, somente quando confia que a realidade do mundo depen-
de de uma pluralidade de seres singulares o homem expressa a coragem de aban-
donar o esconderijo da vida privada para assumir e suportar as grandezas e os
perigos inerentes à iniciativa de agir e falar. Na pólis, “quem quer que ingressasse
na esfera pública deveria, em primeiro lugar, estar disposto a arriscar a própria
vida. (...) A coragem, portanto, tornou-se a virtude política por excelência” (Aren-
dt, 2001, p.45). Quando ingressa na esfera política da existência, a presença do
“tem a ver com o artefato humano, com o produto de mãos humanas, com os
negócios realizados entre os que, juntos, habitam o mundo feito pelo homem.
Conviver no mundo significa essencialmente ter um mundo de coisas inter-
posto entre os que nele habitam em comum, como uma mesa se interpõe en-
tre os que se assentam ao seu redor, pois, como todo intermediário, o mundo
ao mesmo tempo separa e estabelece uma relação entre os homens” (Arendt,
2001, p. 62).
2
Deixar a organização da vida doméstica e a família para “abraçar alguma empresa aventureira e
gloriosa” ou para “dedicar a vida aos negócios da cidade” exige coragem, isto é, a ousadia de superar o
servilismo expresso na auto-preservação da vida realizada no esconderijo do lar, onde o homem está
resguardado e engajado basicamente em atividades desempenhadas em nome das carências vitais
ou das exigências da utilidade. Para dizer com Arendt: “É preciso coragem até mesmo para deixar a
segurança protetora de nossas quatro paredes e adentrar o âmbito político, não devido aos perigos
específicos que possam estar à nossa espreita, mas por termos chegado a um domínio onde a preo-
cupação para com a vida perdeu a validade. A coragem libera os homens de sua preocupação com a
vida para a liberdade do mundo. A coragem é indispensável porque, em política, não a vida, mas sim
o mundo está em jogo” (2007, p. 203).
“Ora, onde a vida está em jogo, toda ação se encontra, por definição, sob o jugo
da necessidade, e o âmbito adequado para cuidar das necessidades vitais é a
gigantesca e sempre crescente esfera da vida social e econômica, cuja admi-
nistração tem obscurecido o âmbito político desde os primórdios da época
moderna” (2007, p. 202).
Quando a vida está em jogo, o ingresso na esfera política passa a ser limitado
ao mero processo biológico, vinculando-se às necessidades do mero viver. Neste
sentido, a ascensão da biopolítica, na era moderna, revela o fato de que já não se
percebe a diferença objetiva e tangível entre ser livre e ser forçado pela necessida-
de. Passa a imperar um tipo de sociedade que transformou a esfera pública em fun-
ção da economia doméstica de subsistência, e esta se tornou a única preocupação
comum que sobreviveu entre os homens, pois a esfera da convivência e das inte-
rações humanas passam a significar a dependência mútua dos homens em prol da
subsistência biológica. É nessa medida que não vivemos hoje propriamente em um
mundo, mas engolfados e impelidos por um processo em cujos ciclos perenemente
repetidos, as coisas surgem e desaparecem, manifestam-se e somem, sem jamais
durar o tempo suficiente para fazerem parte do mundo.
A sociedade do trabalho e do consumo paralisa, assim, o potencial imprevisí-
vel e espontâneo da ação e do discurso, desprezando o seu potencial de iniciar algo
novo, pois se interessa somente pela capacidade do indivíduo em se adaptar àquilo
que está dado. E quando os homens se tornam absolutamente supérfluos e despro-
vidos de um mundo comum, passa a ser dispensável a opinião e qualquer auxílio
humano para a instituição e a preservação do mundo, qualquer traço de esponta-
neidade e imprevisibilidade. Assim, a existência de um mundo comum como espa-
ço intermediário da ação e da fala é a condição para que possamos estar livremente
Referências
Agamben, G. Homo Sacer. O poder soberano e a vida nua. Trad. Henrique Burigo. Belo Ho-
rizonte: Editora UFMG, 2002.
Arendt, H. A condição humana. Trad. R. Raposo. Rio de Janeiro: Forense Universitária,
2001.
_____. A vida do espírito – O pensar, o querer, o julgar. Trad. Antônio Abranches, César Augus-
to, Helena Martins, Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 2002a.
_____. A dignidade da política. A. Abranches (Org.). Trad. H. Martins. Rio de Janeiro: Relume-
-Dumará, 2002b.
_____. Origens do totalitarismo. Trad. R. Raposo. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
_____. “Trabalho, obra, ação”. Trad. Adriano Correia. Em: Cadernos de Ética e Filosofia Políti-
ca, 7, 2/2005, p. 175-201.
_____. Entre o passado e o futuro. Trad. Mauro W. B. de Almeida. São Paulo: Perspectiva, 2007.
_____. Homens em tempos sombrios. Trad. Denise Bottman. São Paulo: Companhia das Letras,
2003.
_____. A Promessa da Política. Trad. Pedro Jorgensen. Rio de Janeiro: DIFEL, 2008.
_____. Totalitarismo. Trad. A. Correia. In: Inquietude: Goiânia, v. 2, n° 2, ago/dez, 2011a.
_____. Sobre a revolução. Trad. D. Bottmann. São Paulo: Companhia da Letras, 2011b.
Birmingham, Peg. The Predicament of Common Responsibility. Indianápolis: Indiana Uni-
versity Press, 2006.
Braun, K. Biopolitics and temporality in Arendt e Foucault. In: Time and Society, v. 16, nº1,
2007, pp. 5-23.
Deleuze, G. Post-Scriptum: sobre sociedades de controle. Conversações. Rio de Janeiro: Ed.
34, 1996.
Duarte, A. Vidas em risco: crítica do presente em Heidegger, Arendt e Foucault. Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 2010.
Duarte, A., Lopreato, C., Magalhães, M. B. (Orgs.). A banalização da violência: a atuali-
dade do pensamento de Hannah Arendt. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2004.
Resumo
Pretendemos refletir, a partir do pensamento de Paul Ricoeur, sobre a dimen-
são política da memória em sociedades oriundas de regimes de exceção. Para
tanto, enfatizaremos o papel que o filósofo atribui ao testemunho. No percur-
so priorizamos o diálogo do autor com Sigmund Freud e Tzvetan Todorov.
Palavras-chave: violência, democracia, trauma, testemunho, reconhecimento.
Introdução
N
as sociedades com passado violento, o desvelamento das memórias do pe-
ríodo propicia a percepção crítica acerca do ocorrido e abre espaço para
novo agir. Contudo, quando o reconhecimento público permanece em sus-
penso há o bloqueio da política e da expectativa de outro devir. Parece-nos que
a assertiva pode ser confirmada quando refletimos acerca do modo com que as
novas democracias lidam com seu passado de terror.
Adotamos como foco argumentativo a relação que Ricoeur estabelece entre
violência, democracia e trauma. Nessa perspectiva, destacamos o valor exemplar
do testemunho, pois se o traumatismo remete ao passado, o valor exemplar orienta
para o futuro.
Por fim, salientamos que partimos da experiência do vivido: o caso brasilei-
ro. Advogamos que as estratégias adotadas pelo discurso oficial acerca do passa-
do recente seguem bloqueando o agir político e comprometendo o devir. Pois, se
num primeiro olhar ou em certo discurso, a “reconciliação nacional” e o “perdão”
1
Na gramática do eu posso a humanidade é mediada pela semiótica da cultura, onde o homem capaz
de falar, agir, narrar, se imputar, assumir a responsabilidade por seus atos não é um sujeito autônomo
em si mesmo, mas inserido em um corpo social, recheado de feridas, conflitos, discursos estratégicos
de legitimação de poder e autoridade, nem sempre acessíveis à consciência, somos determinados por
essa incapacidade originária.
[...] o que Freud quer é que o analisado, ao fazer seu o sentido que lhe é estra-
nho, alargue o seu campo de consciência, viva melhor e finalmente seja um
pouco mais livre e, se possível mais feliz. Uma das primeiras homenagens ren-
didas à psicanálise fala de “cura pela consciência”. A afirmação é justa. Com a
condição de se dizer que o analista quer substituir uma consciência imediata
e dissimulante por uma consciência mediata e instruída pelo princípio de re-
alidade (1988, 150).
5
Segundo Freud, a transferência é uma doença artificial que permite a intervenção do analista. São as
ações repetitivas exibidas na transferência que levam ao despertar das lembranças reprimidas. Para
o psicanalista, o principal instrumento para trazer a recordação a consciência reside no manejo da
transferência. Cf. Freud, Recordar, repetir, elaborar, [1996d].
O país sabe que nunca procurei o poder, quando o exerci jamais me agarrei a
ele e quando chegou o momento de entregá-lo, de acordo com a nossa Consti-
tuição [negociada sob pressão], o fiz lealmente [...] agi como governante infa-
tigável e irredutível no afã de evitar os conflitos armados, por buscar em todo
momento a paz para o Chile. [...] sou absolutamente inocente de todos os cri-
mes e dos fatos que irracionalmente se me imputam. (APUD PADRÓS, 2004)
em 1981, entre tantos outros fatos. Em abril de 2010, o Supremo Tribunal Federal reafirmou a versão
encobridora. Para STF, a lei foi resultado de uma negociação democrática e tem legitimidade como ins-
trumento imparcial de equilíbrio e justiça entre forças políticas e sociais em disputa.
11
A indignação ecoa como rastro, como demonstram os esculachos promovidos por jovens de países
que passaram por ditaduras, como Argentina, Chile e Brasil. Embora esses jovens não tenham vivido di-
retamente o período de terror, manifestam sua indignação pela injustiça e a existência de uma memória
coletiva impedida, quando denunciam publicamente torturadores que não foram presos ou julgados.
12
Para Ricoeur, o esquecimento de fuga diz respeito a uma omissão, um não querer saber, uma negli-
gência, um não agir. Cf. A memória, a história, o esquecimento, [2007].
13
O esquecimento libertador foi narrado por Semprún. Entretanto, como o próprio autor evidencia
os rastros não se apagaram, apenas fizeram com que, momentaneamente, experimentasse um senti-
mento libertador. Rompido, com o suicídio de Primo Levi, que o atravessou e impulsionou a fazer sua
própria narrativa acerca da dor sofrida. Cf. A escrita ou a vida, [1995].
14
Todas as traduções de Todorov são de minha responsabilidade.
15
O Estatuto de Roma, em seu artigo 7o, define os crimes contra humanidade como um “ataque contra
a população civil”, entendida como qualquer conduta que envolva a prática múltipla de atos como tor-
tura, desaparecimento, assassinato político etc; contra uma população civil, de acordo, com a política
de um Estado ou de uma organização de praticar esses atos ou tendo em vista a prossecução dessa
política. Para os signatários da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, como é o caso do
Brasil, esse tipo de crime é imprescritível. Clarifica-se novamente a lógica dicotomia do discurso e
da prática política e jurídica do Estado brasileiro, pois ao mesmo tempo em que assina convenções e
tratados, onde reconhece o crime e a punição e assim figura, internacionalmente, como um país preo-
cupado com a questão; no âmbito interno adota a impunidade como prática de Estado.
[...] embora a memória coletiva extraia sua força e duração do fato de que
um conjunto de homens lhe serve de suporte, são indivíduos que se lembram
enquanto membros do grupo. Agrada-nos dizer que cada memória individual
é um ponto de vista sobre a memória coletiva, que esse ponto de vista muda
segundo o lugar que nele ocupo e que, por sua vez, esse lugar muda segundo
as relações que mantenho com outros meios (APUD RICOEUR, 2007, 134).
Inferimos então que a capacidade do “eu posso” falar, contar, agir, imputar,
não elimina a suspeita e a confrontação entre testemunhos discordantes. Surge
então a questão: até que ponto o testemunho é confiável?
Para o filósofo francês, a testemunha pede crédito. Temos então três declara-
ções: “Eu estava lá”; “Acreditem em mim”; “Se não acreditam em mim, perguntem
à outra pessoa.” Todavia, a “autenticação do testemunho só será completa após
a resposta em eco daquele que recebe o testemunho e o aceita; o testemunho, a
partir daquele instante, está não apenas autenticado, está acreditado” (2007, 173).
Contudo, “ele é duramente afetado quando instituições políticas corrompidas ins-
tauram um clima de vigilância mútua, de delação, nos quais as práticas mentirosas
solapam as bases de confiança na linguagem” (2007, 175). Cabe então à história
corrigi-lo, por meio do confronto entre a memória declarativa e a arquivada. Nesse
sentido, a crise do testemunho nos autoriza a considerar o conhecimento histórico
como uma escola de suspeita. Essa “é a maneira rude que a história documental
encontra para contribuir com a cura da memória” (2007, 192). No entanto, dizer
historicamente não é sinônimo de imparcialidade, totalidade, acabamento, pois
história é seleção, escolha, valores, representação incompleta, parcial e inacabada
do passado, cuja matriz é a subjetividade do ser que se lembra. Dessa maneira:
16
A questão nos leva a refletir acerca do caso brasileiro. Embora o discurso de Estado adote o tom
do reconhecimento reconciliatório, o inviabiliza, pois impede que a sociedade se reconheça enferma,
quando faz com que o testemunho da vítima ecoe no espaço público apenas para atender ao objetivo
de legitimação do discurso governamental, que imobiliza o passado. A criação da Comissão Nacional
da Verdade com manutenção da Lei de Anistia clarifica assertiva. Pois, se por um lado, as vítimas,
seus familiares e ativistas de direitos humanos, são chamados a falar em prol da verdade história,
entendida aqui como aquela que estabelece a versão para um passado acabado e sem relação com o
presente; por outro, quando buscam espaços para o reconhecimento de seus pleitos por justiça, que
contradizem a política oficial têm suas vozes publicamente caladas; ora por meio da esfera jurídica,
que tem inviabilizado a ação penal contra os perpetradores; ora por meio da esfera política, como
ocorreu na cerimônia de formalização da Comissão Nacional da Verdade, quando Vera Paiva, filha do
deputado desaparecido Rubens Paiva, foi impedida de ler seu discurso e as vítimas ficaram mais uma
vez sem voz para suas demandas por justiça. Trata-se de uma lógica de governo baseada no cálculo,
onde se adota o conveniente e se rejeita o que deslegitima a prática e o discurso oficial.
18
Primo Levi, em Afogados e Sobreviventes, relata o caso de familiares que se recusavam a acreditar na
morte do ente querido, criando a ilusão de que ele havia sobrevivido aos horrores dos campos, embo-
ra nunca tenha reaparecido. [2004, 28]. No Brasil, há familiares que se recusam a mudar de casa, es-
perando ainda o retorno do ente querido desaparecido. Esse é o caso da “pernambucana Elzita Cruz,
uma senhora de 97 anos. Como boa parte das pessoas de idade, Elzita reluta em mudar de casa ou
de trocar o número de seu telefone. Contudo, seu comportamento não é motivado apenas em função
da idade. Elzita aguarda até hoje o retorno de seu filho Fernando, desaparecido na época da ditadura
militar (1964-1985). O caso de Elzita é apenas mais um exemplo de inúmeras mães que perderam
seus filhos, de crianças que ficaram órfãs e de viúvos e viúvas do regime discricionário brasileiro.”
Disponível em: <http://www.correiodopovo.com.br/blogs/juremirmachado/?p=2413>
Acesso em: 01. jun. 2012
19
No entanto, como desfazer a ilusão coletiva, quando ela é constantemente reafirmada, reforçada
por lugares invertidos de memória, como os nomes dos espaços públicos - ruas, viadutos, avenidas
- que infestam as cidades brasileiras com nomes dos agentes da repressão. Ou com monumentos
comemorativos, deliberadamente falhos, que imprimem a distorção como o caso ocorrido em 2011,
na USP, onde foi instalada uma placa no local onde será construído um monumento para lembrar o
período militar com os seguintes dizeres: “Monumento em homenagem aos mortos e cassados pela
Revolução de 1964”. O fato causou indignação e a placa retirada. Contudo, considerando a posição
adotada por João Grandino Rodas, reitor da universidade; no tempo em que era membro da Comissão
Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos (1995 -2002), a ação parece deliberada. Pois, de acordo
com o livro – relatório, de 2007: Direito à memória e a Verdade da Secretaria Especial de Direitos
Humanos, o atual reitor da USP votou contra a culpabilidade do Estado pela morte e desaparecimento
de vários presos políticos, como Zuzu Angel, morta por denunciar o assassinato, sob tortura, de seu
filho Stuart Edgard Angel Jones, na Base Aérea do Galeão em 1971 e Edson Luiz Lima Souto, as-
sassinado no restaurante Calabouço, no Rio de Janeiro em 1968, durante manifesta-
ção estudantil por melhores condições de ensino. Nos dois casos votou com o general
Oswaldo Pereira Gomes, representante das Forças Armadas.
Considerações finais
Para Ricoeur, na relação violência, democracia e trauma; a cura das feridas
possibilita que se instaure a justa distância, o lugar da vítima e do ofensor; propi-
ciando que a dor compartilhada e o visível do desejo de vingança sejam substitu-
ídos pela palavra que diz o direito. Não se trata da defesa de uma justiça baseada
no cálculo da punição, mas de reforçar o uso exemplar do passado para a ação do
presente, pois quando sentença reconhece que violência de Estado e crimes contra
a humanidade são atos passíveis de punição, indica que haverá consequência aos
que desrespeitarem o que a coletividade reconhece como injusto. Em outros ter-
mos, aqui a justiça não serve ao passado, mas ao presente, ao devir democrático
e ao viver em conjunto e bem. Pois, como ensina o filósofo, é no âmbito jurídico,
na formulação concreta da justiça que se evidencia uma ideia de querer viver bem
como ética fundamental para além de qualquer direito positivo. Onde o si, os ou-
tros e os distantes devem ser igualmente considerados:
[...] viver bem com os outros em instituições justas, [...] a ética judiciaria en-
contra na vontade de viver em instituições justas a exigência que liga o con-
junto das instituições judiciárias à ideia de vida boa. É esse querer viver em
instituições justas que encontra visibilidade e legibilidade na palavra de jus-
tiça proferida pelo juiz na aplicação das normas que, por sua vez, estão no
cerne da moralidade privada e pública (RICOEUR, 2008b, 62).
A ideia de um “mínimo
existencial” de Rawls
Resumo
O texto apresenta a ideia de um mínimo existencial como condição de possibi-
lidade para a realização dos direitos e liberdades fundamentais incluídos no
primeiro princípio de justiça de Rawls. Mostra, no entanto, a sua insuficiência
para o exercício pleno da cidadania. Daí decorre a necessidade de ampliação
da noção de “mínimo social” (mínimo existencial) para a ideia de “bens pri-
mários”, considerando a concepção política de justiça.
Palavras-chave: Dignidade humana. Direitos fundamentais. Mínimo existen-
cial. Bens primários.
A
dignidade da pessoa humana como preceito ético e fundamento constitu-
cional exige do Estado não só respeito e proteção, mas garantia de efetiva-
ção dos direitos dela decorrentes. Toda pessoa é sujeito de direitos e deve
ser tratada desse modo. Quando, do ponto de vista jurídico, falamos de um “míni-
mo existencial” estamos tratando de algo intrinsecamente ligado à realização dos
direitos fundamentais sociais, que representam a concretização do princípio da
dignidade da pessoa humana.
A ideia que o norteia refere-se à preservação e garantia das condições mate-
riais e exigências mínimas de uma vida digna. Isso significa dizer que o direito ao
mínimo existencial está alicerçado no direito à vida e na dignidade da pessoa hu-
mana. Que esta seja respeitada, protegida e promovida é dever do Estado. Porém,
o que é dignidade? Ela estará assegurada quando houver a realização efetiva dos
3
Entre as várias formulações dos princípios de justiça podemos encontrar uma que comporta os se-
guintes princípios: “a) cada pessoa tem um direito irrevogável a um esquema plenamente adequado
de liberdades básicas iguais, esquema este compatível com o mesmo esquema de liberdades para
todos; b) as desigualdades econômicas e sociais devem satisfazer duas condições: primeiro, devem
estar vinculadas a cargos e posições abertos a todos em condições de igualdade equitativa de opor-
tunidades; e, segundo, devem beneficiar ao máximo os membros menos favorecidos da sociedade (o
princípio da diferença)” (RAWLS, J. Justice as Fairness: A Restatement. Cambridge: Harvard University
Press, 2001, p.42).
4
Por sociedade bem-ordenada Rawls entende aquela “regulada por uma concepção política e pública
de justiça” (RAWLS, J. Political Liberalism. New York: Columbia University Press, 2005, p. 71). Trata-se
de uma sociedade na qual todos aceitam os mesmos princípios de justiça. O mesmo ocorre com suas
principais instituições políticas e sociais.
Bens primários são condições necessárias e exigidas por pessoas vistas à luz
da concepção política de pessoa, como cidadãos que são membros plenamen-
te cooperativos da sociedade e não simplesmente como seres humanos, in-
dependentemente de qualquer concepção normativa (RAWLS, 2001, p. 58).
7
Falar em mínimo existencial em Rawls é dar ênfase às condições sociais. Na ideia de bens primários,
no entanto, estão incluídos os direitos fundamentais sociais e individuais. Aspectos relevantes para
a justiça que dizem respeito à dotação natural das pessoas (talentos e contingências físicas) não são
importantes na construção dos princípios de justiça, mas devem ser considerados na aplicação dos
mesmos (estágios legislativo e judicial). Relevantes são as qualidades morais (senso de justiça e con-
cepção do bem) necessárias para a participação da sociedade cooperativa.
Resumo
O propósito é apresentar as leituras que Antonio Negri faz de Hegel, ou antes
da dialética hegeliana, em dois momentos distintos: na década de 1970 e, em
seguida, a partir da década de 1980, com ênfase no início do século XXI. Em
ambos os casos, trata-se de apreensões mediadas por outros pensadores: pri-
meiramente através da leitura que Lenin faz em seus Cadernos sobre a dialética
hegeliana; no segundo caso, a partir de um ponto de vista espinosista. Preten-
demos mostrar como a leitura de Negri passa de um momento simpático ao
discurso da dialética a um segundo momento em que esta é criticada e aban-
donada, e as dificuldades que o pensador encontra para desvencilhar-se dela.
Palavras-chave: Antonio Negri – Hegel – dialética – marxismo
N
osso objetivo é examinar as leituras que Antonio Negri faz de Hegel e da
dialética hegeliana. Pretendo mostrar que num primeiro momento Negri é
simpático a isso que podemos chamar de pensamento dialético, mas que,
posteriormente, fará sua crítica. Para ilustrar essa passagem, proponho começar
por apresentar dois extremos dessa leitura: o primeiro extraído de um texto de
1958 – Estado e Direito no jovem Hegel, sua tese de doutorado – e outro de Império,
de 2000. A ideia é mostrar como essa ruptura ou desligamento vai-se dando ao
longo da segunda metade do século XX.
Naquele primeiro momento, em 1958, o jovem Hegel aparecia ao jovem Ne-
gri como um revolucionário, situado entre o iluminismo e o romantismo. Segundo
Timothy Murphy, comentador americano de Negri, este, ainda não tendo lido Marx,
é bastante simpático a Hegel, como o era Lukács antes do marxismo (MURPHY,
Que os sujeitos desejem e ajam, que se empenhem, que o destino esteja aber-
to para os desejos e ações humanos, eis a colocação de Negri contra uma dialética
em que o fim estaria pré-ordenado. O tema do sujeito terá um papel importante
para Negri, como veremos adiante.
Entre o texto de 1958 e o de 2000 se passam 42 anos, e é preciso situar a
transição das leituras. Não há um momento único, mas uma longa passagem desde
a década de 1960.
Posteriormente à publicação de Estado e Direito no jovem Hegel, Negri lerá
Marx e o se envolverá com o movimento operário italiano, no início dos anos 1960.
A partir daí, Negri já começa a se desvincular de Hegel e a criticá-lo. Em 1970,
publica Rileggendo Hegel, filosofo del diritto, em que inverte sua interpretação da
abertura da dialética hegeliana mas ainda afirma que a filosofia do direito de Hegel
é o texto filosófico primário da modernidade. Em que sentido? Segundo Murphy,
“Negri coloca a filosofia do direito e do Estado de Hegel como a definição mais
perfeita da ‘política’ moderna, isto é, como expressão do projeto hegemônico de
dominação e exploração do trabalho vivo produzido pela burguesia”. A dialética he-
geliana agora não é mais a síntese entre real e racional, universal e individual, mas
a ferramenta de imposição da exploração sobre os trabalhadores. Ou seja, o Estado
como mediação entre comando e trabalho é exploração. Murphy diz que “essa é
essencialmente a mesma dialética que Negri descreveu em termos quase utópicos
Temos então uma “dialética pertencente ao mundo”: com isso quero dizer
que, ao menos no caso de Hegel (e da maneira como Lenin o apreende), não se
trata de um projeto idealista. Lenin chega a anotar que a Ciência da Lógica, ápice
do idealismo, é, no fundo, plenamente materialista. Não seria por outro motivo que
a Ciência da Lógica se inicia com a lógica objetiva. Lefebvre e Guterman escreve-
ram uma introdução à edição francesa dos Cadernos de Lenin e lá insistem no fato
de que é preciso que a Ciência da Lógica comece pelo ser, pelo objeto, e não pelo
conhecer, pelas ideias, porque desses não vem o ser. Ele insistem: “A contradição
está nas coisas e só está na consciência e no pensamento porque está nas coisas.
A consciência da contradição define uma atividade que se desenvolve com uma
coerência imanente: o pensamento dialético” (GUTERMAN e LEFEBVRE in LENIN,
1967 pp28-30).
Com relação a esse mundo material, no entanto, Negri afirmará que Lenin
inicialmente apropria de Hegel “um conceito de matéria que, por um lado, tende
a confundir-se e se aproxima muito do conceito de vida”. Neste momento, as difi-
culdades que ele detecta na leitura que Lenin faz da Ciência da Lógica se voltam
principalmente a esse aspecto vitalista da matéria. De início, diz Negri, a teoria
que Lenin apreende sobre a dialética é relacional, espinosana, mecanicista, e só
aos poucos vai se liberando, compreendo mais completamente a dialética como
processo do real.
No entanto, durante sua prisão, que durou de 1979 a 1983, Negri entra em
contato intenso com Espinosa e publica em 1981 a Anomalia Selvagem. Agora te-
remos uma revisão da dialética mediante um novo enfoque, com um viés adotado
de Althusser, o mesmo viés que visto em Império, que estabelece Espinosa como
precedente de Marx, e não mais Hegel. Segundo Néstor Kohan, esse rodeio a Al-
thusser é necessário a Negri para que possa submeter a dialética a uma crítica.
Diz o comentador:
“A recusa da teleologia significa que Espinosa não aceita que a realidade tenha
uma finalidade para além de si mesma, pré-assegurada de antemão, aonde se
dirigiria desde sua origem. (...) Em segundo lugar, o que Althusser toma de
Espinosa é sua concepção de realidade como um todo sem fechamento, ou
seja, como um processo de desenvolvimento que não se encerra ao final, que
não termina nunca. Ambos os núcleos espinosanos servem a Althusser para
questionar duramente a Hegel e sua filosofia dialética” (KOHAN, 2002, pp.
103-104).
Ou seja, está invertida a abertura teórica que o jovem Negri havia lido no
jovem Hegel. Murphy diz que, na prisão, com a leitura de Espinosa, bem como a do
poeta Leopardi e a do personagem bíblico Jó, Negri encontra os recursos necessá-
rios para limpar todo hegelianismo residual de seu período militante e aproximar-
-se “do universo conceitual nietzscheano de Deleuze, Guattari e Foucault” (MUR-
PHY, 2012, p. 119). O livro sobre Espinosa dará início à pars construens do projeto
filosófico de Negri, a ontologia constitutiva. Nele Negri apresenta uma distinção
entre poder e potência, que se aproximará, em sua leitura, à distinção entre for-
tuna e virtude feita por Maquiavel, ou à distinção entre trabalho morto e trabalho
vivo feito por Marx, e que viria a ser, em escritos posteriores, similar também à
distinção que ele mesmo faz entre poder constituído e poder constituinte, entre
biopoder e biopolítica. Em suma, os sujeitos têm potência, virtude, trabalho vivo,
poder constituinte, tudo isso num plano de imanência espinosano; o poder consti-
tuído, o biopoder, o trabalho morto e também podemos dizer o capital e o Estado
se impõem sobre ele de forma transcendental.
Unindo a hipótese operaísta (o ponto de vista do trabalhador) à imanência e
ao desejo espinosanos, Negri pretende apresentar uma ontologia constitutiva que
escapa do esquema formal dialético. Como é possível a Negri pensar num espino-
sismo pós-dialético sem cair num anacronismo? Espinosa teria negado a mediação
constitutiva – indivíduos atomizados contratam ou pactuam um poder soberano
Referências
Hardt, M., & Negri, A. Império. Rio de Janeiro: Record, 2003.
Kohan, Néstor. Toni Negri y los desafíos de Imperio, Madrid: Campo de Ideas, 2002.
Lenin. Cahiers sur La dialectique de Hegel. S/L: Gallimard, 1967.
Murphy, Timothy S. Antonio Negri. Cambridge: Polity Press, 2012.
Negri, Antonio. La fábrica de La estratégia: 33 lecciones sobre Lenin. Madrid: Ediciones Akal,
2004.
______. Stato e diritto nel giovane Hegel - studio sulla genesi iluministica dela filosofia giuri-
dica e politica di Hegel. Padova: Cedam, 1958.
N
este trabalho, pretendemos analisar as chamadas “ciências sociais” parti-
culares, mais precisamente, a “política”, com vistas a responder à questão:
existe uma teoria “política” marxista?
As “ciências sociais” particulares surgiram com a decadência ideológica da
burguesia (que Lukács analisou em artigo citado adiante) e representou o abando-
no de uma categoria fundamental para a apreensão do real: a totalidade. Com isso,
passou a se estudar a sociedade através de “ciências” isoladas umas das outras,
cujos objetos não se interseccionam.
Veremos, em um primeiro momento, a importância da categoria da totali-
dade não só para o marxismo, mas para a compreensão dos fenômenos sociais.
Depois, analisaremos o surgimento das “ciências sociais” particulares e como Gra-
msci, analisando-as, percebeu a necessidade de se utilizar seus resultados, mas
sempre tem em conta o método marxista.
Por fim, apresentaremos a resposta à pergunta proposta como conclusão de
nossa pesquisa.
2. A categoria da Totalidade
Segundo Lukács (1989, p. 41), “é o ponto de vista da totalidade e não a
predominância das causas econômicas na explicação da história que distingue
de forma decisiva o marxismo da ciência burguesa”. Esse recurso metodológico
foi tomado por Marx da dialética de Hegel e significa que a sociedade deve ser
concebida como uma realidade complexa, articulada, composta de mediações
e contradições. Exatamente porque é uma realidade articulada, o método mais
adequado para pensá-la é o que privilegia “a dominação do todo sobre as partes,
que é determinante e se exerce em todos os domínios” (LUKÁCS, 1989, p. 41).
Mas essa totalidade é hierarquizada, com momentos cujo peso ontológico é mais
marcante que outros e não uma totalidade indeterminada, no qual as partes não
estão explicitadas e bem definidas. Assim, metodologicamente, o que caracteriza
o pensamento marxiano (e marxista) é
3
Sobre a decadência ideológica da burguesia, cf. o artigo de G. Lukács, “Marx e o problema da de-
cadência ideológica”, in Marxismo e Teoria da Literatura, São Paulo: Expressão Popular, 2010, pp.
51-103.
O mesmo raciocínio poderia ser feito para todos os grandes pensadores pro-
priamente burgueses dessa etapa histórica, da etapa que antecede a plena
consolidação do capitalismo: figuras como Maquiavel, Hobbes, Locke, Mon-
tesquieu, Spinoza, Kant, Hegel e tantos outros dificilmente poderiam ser en-
quadrados nas muitas etiquetas que hoje dão nome aos vários departamen-
tos universitários em que se abrigam as chamadas “ciências sociais”. Todos
eles refletiram sobre a totalidade do social, em suas múltiplas e complexas
determinações. (COUTINHO, 1994, p. 95).
4
Para uma profunda crítica ao pensamento estruturalista de Althusser, cf. Carlos Nelson Coutinho, O
Estruturalismo e a miséria da razão, São Paulo, Expressão Popular, 2010, p. 175-231.
Este foi o caminho seguido pela evolução das distintas “ciências sociais”: a
economia estuda a vida econômica fazendo abstração de seus conteúdos so-
ciais e políticos; a sociologia estuda a sociedade despreocupada das distintas
manifestações do social nos terrenos da economia e da política; e os politicó-
logos se entretêm elaborando engenhosos jogos conceituais nos quais a polí-
tica é explicada por um conjunto de variáveis políticas. (BORÒN, 2006, p.178).
o homem afirma sua liberdade em face das estruturas sociais, revelando que
– embora condicionado pelas estruturas e, em particular, pelas estruturas
econômicas – é capaz, ao mesmo tempo, de utilizar o conhecimento dessas
estruturas como fundamento para uma práxis autônoma, para a criação de
novas estruturas, ou, como ele diz [Gramsci], para “gerar novas iniciativas”.
(COUTINHO, 1994, p. 106).
Referências
BORON, A. Teoria política marxista ou teoria marxista da política, in Boron, Atilio A.; Ama-
deo, Javier; Gonzalez, Sabrina (orgs.). A teoria marxista hoje – problemas e perspectivas.
Buenos Aires: Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales-CLACSO, 2006.
BOTTOMORE, T. (Org.). Dicionário do pensamento marxista. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Edi-
tor, 1988
CARVALHO, E. A totalidade como categoria central na dialética marxista. Disponível em:
http://orientacaomarxista.blogspot.com/2008/07/totalidade-como-categoria-central-da.
html. Acesso em: 10. jul. 2011.
COUTINHO, C. N. O estruturalismo e a miséria da razão. São Paulo: Expressão Popular, 2010.
________. Marxismo e política – a dualidade de poderes e outros ensaios. São Paulo: Cortez,
1994.
KOSIK, K. Dialética do concreto. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995.
LUKÁCS, G. História e consciência de classe. Rio de Janeiro: Elfos; Porto: Escorpião, 1989.
_________. Marxismo e teoria da literatura. São Paulo: Expressão Popular, 2010.
NETTO, J.P. & BRAZ, M. Economia política – uma introdução crítica. São Paulo: Cortez Edi-
tores, 2007.
Resumo
O presente artigo tem por objetivo apresentar uma discussão sobre a inclu-
são do outro em todos os campos da sociedade, a partir do pensamento de
Habermas. A partir do conteúdo racional de uma moral baseada no respeito
por todos e na responsabilidade solidária geral de cada um pelo outro, os in-
divíduos são portadores de direitos e precisam - através de articulação social
e do espaço público - reclamar tais direitos. Em uma sociedade competitiva e
globalizada, tal procedimento é essencial para garantir o direito em todas as
esferas da sociedade, principalmente o direito de produzir riqueza e ativida-
de produtora para garantir a sua sobrevivência.
Palavras-chave. Inclusão. Direito a diferença. Jurgen Habermas.
1. Introdução
O
texto tem por objetivo apresentar uma discussão dos argumentos de Ha-
bermas sobre a participação política e social e os critérios de inclusão, re-
cuperando o sentido originário do estado e dos princípios fundantes do
direito, nos quais os indivíduos são autores e coautores do direito. Habermas con-
cebe uma sociedade de jurisconsortes, a partir retomada do pensamento de Rous-
seau e Kant como uma concepção racional de leis, e a aplicação do “U” e “D” no uso
do espaço público, através da ação comunicativa como processo de viabilização
democrática, para o acesso à inclusão do outro na sociedade.
Habermas apresenta sua teoria nas obras “Direito e Democracia entre facti-
cidade e validade” (1997) e também em “A inclusão do outro: estudos de teoria
Por certo, o Estado moderno já vinha regulando desde o inicio seus limites
sociais sobre os direitos de nacionalidade, isto é, os direitos de integrar o Es-
tado. Mas integrar o Estado, no início, não significava mais do que a submis-
são ao poder estatal. É só com a transição ao Estado democrático de direito
que deixa de prevalecer esse caráter de concessão que se faz ao indivíduo, de
que ele possa integrar uma organização, para então prevalecer à condição de
membro integrante do Estado conquistado agora (ao menos pela anuência
implícita) por cidadãos participantes do exercício da autoridade política. Nes-
sa expansão do significado que o conjunto de membros experimenta a partir
da mudança do status dos que integram o Estado, e que passam então a ser
seus cidadãos, com certeza precisamos distinguir o aspecto político-jurídico
do aspecto verdadeiramente cultural. (HABERMAS, 2002, p. 128).
Kant reconhece que todo ser humano tem, como tal, o direito a ter direitos
e a regular comunitariamente a convivência com os outros, de tal modo que todos
possam usufruir a mesmas liberdades, segundo leis públicas e obrigatórias. (HA-
BERMAS, 2002, p. 159).
Há uma compreensão de que esse dilema poderá ser resolvido pelo discurso e
de que todos são parceiros e coautores do direito, que garante a autonomia pública
e privada. “Um programa jurídico é discriminador quando não leva em conta as limi-
tações da liberdade derivadas de desigualdades fáticas ou paternalistas, quando não
leva em conta as limitações da liberdade que acompanham as compensações ofere-
cidas pelo estado, tendo em vista essas desigualdades.” (HABERMAS, 1997, p. 157).
A universalização do direito na sociedade é fundamental para corrigir as in-
justiças, “pois a liberdade igual de cada cidadão independentemente de seus dons
6. Conclusão
Portanto, é nessa linha que trazemos à tona a questão da inclusão do outro
“a opressão e a dominação”. As leis têm, por objetivo, representar, no espaço públi-
co, os interesses individuais e discutir as distâncias entre a igualdade de direito e
a de fato; trazer para o espaço público os problemas da igualdade de tratamento
entre os cidadãos. Por exemplo, os grupos minoritários, “o feminismo insiste no
sentido emancipatório da igualdade de tratamento jurídico, porque se volta contra
estruturas de dependência encobertas pelo paradigma distributivo do estado de
bem-estar social.” (HABERMAS, 1997, p. 160).
O feminismo, no Brasil vem mudando passo a passo nas conquista sociais e
econômicas dos movimentos feministas. Hoje, as mulheres correspondem a 41%