Pluralismo em Filosofia e Psicanálise

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Pluralismo em Filosofia e Psicanálise

Conselho Editorial/Comitê Científico


Eduardo Ribeiro da Fonseca
Aline Sanches
Fernanda Correa
Weiny Freitas Pinto

Revisores
Eduardo Ribeiro da Fonseca
Maria Fernanda Fernandes
Pluralismo em Filosofia e Psicanálise

Eduardo Ribeiro da Fonseca


Maria Fernanda Fernandes
(Organizadores)
© 2024 ANPOF

Gerente Editorial
Junior Cunha

Editora Adjunta
Daniela Valentini

Produção Editorial
Amanda C. Schallenberger Schaurich
Mônica Chiodi

Instituto Quero Saber


www.institutoquerosaber.org
editora@institutoquerosaber.org

Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP)


Pluralismo em filosofia e psicanálise. /
P737 organizadores, Eduardo Ribeiro da Fonseca e
Maria Fernanda Fernandes. 1. ed. e-book –
Toledo, Pr.: Instituto Quero Saber, 2024.
234 p. (Coleção do XIX Encontro Nacional
de Filosofia da ANPOF)

Modo de Acesso: World Wide Web:


<https://www.institutoquerosaber.org/editora>
ISBN: 978-65-5121-012-9
DOI: https://doi.org/10.58942/eqs.79

1. Filosofia.

CDD 22. ed. 100


Rosimarizy Linaris Montanhano Astolphi – Bibliotecária CRB/9-1610

Este livro foi editado pelo Instituto Quero Saber em parceria com a ANPOF.
O teor da publicação é de responsabilidade exclusiva de seus respectivos autores.
ANPOF – Associação Nacional de Pós-Graduação em Filosofia

Diretoria 2023-2024
Érico Andrade Marques de Oliveira (UFPE), presidente
Eduardo Vicentini de Medeiros (UFSM), secretário-geral
Tessa Moura Lacerda (USP), secretária-adjunta
Judikael Castelo Branco (PROF-FILO/UFT), tesoureiro-geral
Francisca Galiléia Pereira da Silva (UFC), tesoureira-adjunta
Georgia Cristina Amitrano (UFU),diretora de comunicação
Solange Aparecida de Campos Costa (UESPI), diretora editorial

Conselho Fiscal
Taís Silva Pereira (PPFEN-CEFET/RJ)
Ester Maria Dreher Heuser (Unioeste)
Castor Bartolomé Ruiz (Unisinos)
Diretoria 2021-2022
Susana de Castro Amaral Vieira (UFRJ), Presidente
Patrícia Del Nero Velasco (UFABC), Secretaria Geral
Tessa Moura Lacerda (USP), Secretária Adjunta
Agnaldo Cuoco Portugal (UnB), Tesouraria
Cláudia Maria Rocha Oliveira (FAJE), Tesouraria Adjunta
Érico Andrade Marques de Oliveira (UFPE), Diretoria de Comunicação
Tiegue Vieira Rodrigues (UFSM), Diretoria Editorial

Conselho Fiscal
Juliele Sievers (UFAL)
Georgia Cristina Amitrano (UFU)
Cesar Candiotto (PUCPR)
Apresentação da Coleção do XIX Encontro
Nacional de Filosofia da ANPOF

Quando eu era criança, durante muito tempo pensei que os


livros nascessem em árvores, como pássaros. Quando descobri
que existiam autores, pensei: também quero escrever um livro.
Então, escrever é o modo de quem tem a palavra como isca: a
palavra pescando o que não é palavra. Quando essa não
palavra morde a isca, alguma coisa se escreveu.
Clarice Lispector

A Associação Nacional de Pós-graduação em Filosofia realizou


entre 10 e 14 de outubro de 2022 seu XIX Encontro Nacional. O evento foi
totalmente presencial, em Goiânia/GO, com apenas algumas poucas
conferências feitas de forma remota. Foi o primeiro da Associação na
região Centro-Oeste. Além disso, é importante salientar que a
presidência da ANPOF nesta gestão foi realizada pela professora Susana
de Castro (UFRJ), sendo ela a terceira mulher a presidir a Associação em
quase quatro décadas de sua existência.
O Encontro reuniu mais de 2 mil participantes em 70 Grupos de
trabalhos, 53 Sessões Temáticas e na V Anpof Educação Básica e ainda
ofereceu 10 minicursos, promoveu debates em seis mesas redondas e
lançou mais de 120 livros da comunidade filosófica. A Universidade
Federal de Goiás e seu Programa de Pós-graduação em Filosofia e a
Pontifícia Universidade Católica de Goiás foram as instituições anfitriãs
do evento.
A edição de 2022 também foi marcada pelo retorno presencial ao
encontro da ANPOF após a pandemia de COVID-19, o que tornou ainda
mais forte e necessário os afetos e debates produzidos no encontro. Vale
também frisar a marcante participação virtual de Ailton Krenak, Silvia
Federici e Françoise Vergès, que contribuíram para pensar questões
emergentes e atuais. Outra conferência marcante foi realizada
presencialmente pelo filósofo de Guiné Bissau, Filomeno Lopes, autor de
obras significativas sobre a Filosofia Africana, como Filosofia em volta do
fogo, Filosofia sem feitiço, E Se a África desaparecesse do Mapa Mundo?,
Uma reflexão filosófica e Da mediocridade à excelência: reflexões
filosóficas de um imigrante africano
Desde 2013, a ANPOF tem publicado os trabalhos apresentados
sob a forma de livros, com o objetivo não apenas de divulgar as pesquisas
de estudantes e professores e professoras, mas também de estimular o
debate filosófico na área. Esse esforço é particularmente relevante, pois
proporciona uma oportunidade única de reunir uma significativa
presença de colegas de todo o Brasil, conectando pesquisas e regiões que
nem sempre estão em contato. Dessa maneira, a Coleção ANPOF
representa um retrato do estado da pesquisa filosófica em um
determinado momento, reunindo trabalhos apresentados em GTs e STs.
Essa coleção desempenha um papel crucial também na
disseminação do conhecimento filosófico, tornando disponíveis
trabalhos acadêmicos de alta qualidade para um público mais amplo.
Essa disseminação é essencial para a formação de estudantes,
pesquisadores e entusiastas da filosofia. Além disso, ao publicar obras de
autores brasileiros vinculados às pesquisas realizadas nos programas de
pós-graduação filosóficos do país, a coleção destaca e enaltece a produção
nacional em filosofia, consolidando a presença do pensamento brasileiro
na cena filosófica internacional.
É importante registrar nesta “Apresentação” a dinâmica utilizada
no processo de organização dos volumes que são agora publicados, cuja
concepção geral consistiu em estruturar o processo da maneira mais
amplamente colegiada possível, envolvendo no processo de avaliação dos
textos submetidos todas as coordenações dos Grupos de Trabalho em
Filosofia. Em termos práticos, o processo seguiu três etapas: 1. Cada
pesquisador(a) teve um período para submissão dos seus trabalhos,
enviados diretamente para os GTs; 2. Período de avaliação, adequação e
reavaliação dos textos por parte das coordenações e membros dos GTs; 3.
Envio dos textos aprovados para a Diretoria Editorial, que nesta edição
teve o apoio essencial do Instituto Quero Saber, responsável pela
editoração dos textos.
Esperamos que o resultado final desse processo seja uma
expressão positiva e democrática dos debates que vêm sendo travados em
nossa comunidade e que o público leitor tenha nelas um retrato
instigante das pesquisas mais atuais da área.
Reiteramos nossos agradecimentos pelos esforços da
comunidade acadêmica, tanto no que diz respeito à publicação das
pesquisas em filosofia atualmente conduzidas no Brasil quanto à
colaboração intensiva para realizar, mesmo diante do considerável
trabalho envolvido, nossas atividades de maneira colegiada.
Boa leitura!

Diretoria ANPOF
Sumário

Apresentação .................................................................................. 13

O corpo como lugar de memórias: considerações sobre


obras de Frida Kahlo a partir de Heidegger e Freud
Caroline Vasconcelos Ribeiro & José Isaac Costa Júnior.......................... 15

Psicanálise, Entartung e Lasar Segall


Eduardo Ribeiro da Fonseca .................................................................... 41

Linguagem e pensamento na obra de Sabina Spielrein


Fátima Caropreso .................................................................................... 61

Da ontologia merleau-pontyana ao campo psicanalítico:


uma discussão sobre as sínteses passivas na transferência
Josiane Cristina Bocchi & Samuel Raymundo de Sousa ......................... 93

O erotismo em Bataille: um diálogo entre a pulsão de morte


em Freud e o gozo em Lacan
Adriano da Silva Moreira........................................................................ 115

Dos enunciados negativos “não há...” a uma lógica não toda:


as concepções de linguagem no ensino de Jacques Lacan
Izabela Loner .......................................................................................... 127

O gozo mudo e a violência: a clínica e a política


Fernanda Silveira Corrêa ....................................................................... 149
Pluralismo em Filosofia e Psicanálise

Política da falta: uma análise política a partir de Lacan


Allysson Alves Anhaia ............................................................................167

Schreber como um caso paradigmático em Freud


Eder Soares Santos ................................................................................. 181

A miséria do eu e a consciência exteriorizada


Tiago Carvalho Lombardi Tosta .............................................................195

Psicanálise e Educação: relações com o processo


ensino-aprendizagem
Vanessa Ribeiro Morelo & Fábio Santos Bispo.......................................219

12
Apresentação

O presente livro reúne importantes contribuições à Filosofia e à


Psicanálise, escritas pelos participantes do Encontro de nosso GT no
contexto do Encontro da ANPOF ocorrido em Goiânia, entre os dias 10 e
14 de outubro de 2022. O evento foi um marco em pelo menos dois
sentidos principais, pois, não apenas assinala o retorno aos encontros
presenciais, fato cercado de profundas e generosas alegrias dado o
reencontro com amigos e amigas queridos após um prolongado período
de isolamento social, mas também pelo fato de nosso GT Filosofia e
Psicanálise ter atingido os seus 20 anos de idade com ânimo renovado e
uma série de novas adesões em nossos quadros, que se confirmaram pelas
excelentes contribuições de jovens pesquisadores e pesquisadoras.
Agradecemos a todos os participantes e às participantes que
enviaram os seus trabalhos para compor a presente edição e convidamos
os leitores e leitoras para apreciarem as obras elencadas aqui, que em seu
conjunto expõem um importante recorte da pesquisa atual, mesclada
entre pesquisadores experientes e a novíssima geração que nos brinda
com importantes contribuições.

Eduardo Ribeiro da Fonseca 1


Maria Fernanda Fernandes 2

1 Professor do PPGF da PUCPR e Coordenador do GT Filosofia e Psicanálise da ANPOF entre


2019 e 2022. E-mail: eduardo.fonseca@grupomarista.org.br
2 Mestranda da PUCPR e Editora do selo Filosofia de Combate do PPGF da PUCPR.

E-mail: mariafer8277@gmail.com
Pluralismo em Filosofia e Psicanálise

14
O corpo como lugar de memórias:
considerações sobre obras de Frida
Kahlo a partir de Heidegger e Freud
Caroline Vasconcelos Ribeiro 1 & José Isaac Costa Júnior 2
DOI: https://doi.org/10.58942/eqs.79.01

1 Introdução

Este trabalho objetiva apresentar uma análise sobre a maneira


como Freud e Heidegger concebem e caracterizam a memória e o corpo
no horizonte de suas teorias, e examinar em que medida estas são
frutíferas para pensar o padecimento que se desvela em enfermidades
debilitantes, limitadoras e capazes de colapsar a familiaridade com o
mundo circundante (Umwelt). O ponto em comum entre o cientista e o
filósofo é a recusa em reduzir o corpo aos seus aspectos
anatomofisiológicos e a memória aos seus elementos cognitivos e
racionais. Desde o princípio de suas pesquisas, Freud nos revelou como
o corpo humano é uma espécie de tela, em que se inscrevem e se
canalizam memórias inconscientes. Heidegger, por sua vez, insistiu que
pensemos a dimensão existencial de nossa corporeidade, posto que o
corpo humano é um corpo vivido (Leib) 3 e não se reduz aos seus aspectos

1 Psicóloga (UFSJ), Mestre (UFPB) e Doutora em Filosofia (Unicamp). Professora Titular do


Departamento de Filosofia e Ciências Humanas (DFCH) e membro do Programa de Pós-
graduação em Memória, Linguagem e Sociedade (PPGMLS) da Universidade Estadual do
Sudoeste da Bahia (UESB). E-mail: carolinevasconcelos@hotmail.com
2 Graduado em Filosofia (UESB). Mestrando do Programa de Pós-graduação em Memória,

Linguagem e Sociedade (PPGMLS/UESB), bolsista CAPES. E-mail: zejr.013@gmail.com


3 Na obra Seminários de Zollikon, a tradução optou por verter Leib para corpo e marcar a

diferença com Körper, vertendo este termo para corpo material. Entretanto, nós optamos neste
Pluralismo em Filosofia e Psicanálise

materiais e orgânicos. A partir do exame de estudiosos da enfermidade


que se inspiram na fenomenologia heideggeriana, vamos articular a ideia
do corpo vivido a um conceito de memória corporal pré-reflexiva, que
orienta nossos modos de ser cotidianos. Nossa discussão teórica será
vinculada à análise de algumas telas de Frida Kahlo por entendermos que
elas oferecem carnalidade ôntica para pensar a maneira como o corpo e a
memória estão articulados em distintas experiências de padecimento. A
partir de obras da pintora mexicana, meditaremos sobre um corpo para
além da anatomia, uma memória para além da consciência, e sobre o
padecer humano pensado existencialmente. Para tanto, nos serviremos
da maneira como Freud pensa a relação entre corpo e trauma e como
Heidegger medita sobre o corpo vivido e o colapso do ser-no-mundo que
se anuncia na enfermidade.
Nossa hipótese central é que as enfermidades de Kahlo são
expressas de forma intensa em algumas de suas obras, nos oferecendo um
substrato plástico para entendermos a maneira como a filosofia de
Heidegger e a psicanálise de Freud conceituam corpo, memória e
padecimentos. Importante destacar que não visamos realizar uma
análise estética ou uma crítica de obras da pintora mexicana, mas tão
somente um exame sobre a maneira como elas podem dar carnalidade
pictórica para a maneira como os autores pensam a articulação entre
corpo, padecimento e memória.

trabalho em enfatizar o aspecto existencial do conceito de Leib e usamos a expressão corpo


vivido para o termo em alemão. Escolhemos essa opção nos ancorando em autores estrangeiros
estudiosos de Heidegger. Kevin Aho (2009), por exemplo, usa o termo “body” ou “lived-body”
para o alemão Leib e “corporeal thing” para o alemão Körper. Ciocan (2001), quando escreve
em francês, usa “corps vivant” para Leib e simplesmente “corps” para Körper. Quando escreve
em inglês, Ciocan usa “corporeal body” para Körper e para Leib usa “body” ou “living body”
(Ciocan, 2008). Numa linha diferente, Maxene Caron (2008) usa “chair” para Leib e
simplesmente “corps” para Körper.

16
O corpo como lugar de memórias: considerações
sobre obras de Frida Kahlo a partir de Heidegger e Freud

2 Corpo, trauma e memória em Freud

O corpo nem sempre ocupou lugar de destaque no pensamento


filosófico ocidental. Por vezes, foi entendido como uma fonte de erros ou
como algo a ser extirpado da problemática filosófica. A filosofia
contemporânea trouxe à tona a necessidade de se pensar sobre o tema do
corpo e isso pode ser constatado em diferentes horizontes de
investigação. Merece destaque a conceituação da experiência de corpo
vivido em Heidegger (2001) e em Merleau-Ponty (2017), a investigação
sobre a maneira como o biopoder domestica o corpo na sociedade
disciplinar (Foucault, 1987) e a análise sobre seu processo de
mecanização pela indústria cultural, feita por Adorno e Horkheimer
(2006). A psicanálise, por sua vez, desde os seus primórdios conferiu
destaque ao corpo, entendendo-o como palco de manifestação de
conflitos inconscientes. A partir do olhar de Freud (1996a) sobre a
histeria de conversão — cujos sintomas eram de natureza corporal, mas
não tinham referência anatômica que os explicasse —, o entendimento
do corpo para além da sua organicidade tornou-se um imperativo.
A ocorrência de uma patologia marcada por problemas corporais,
sem um substrato orgânico que oferecesse estofo para explicar os
sintomas, desafiava a neurologia do final do séc. XIX e acabou por
estimular o cientista Sigmund Freud a pensar, a partir da clínica da
histeria, a corporeidade humana sem reduzi-la aos seus aspectos
orgânicos (Florsheim, 2016; Freud; Breuer, 1996). Como entender um
ataque com características epileptoides sem uma epilepsia de fundo?
Uma cegueira sem lesão do nervo ótico? Uma paralisia de membros
inferiores sem traumas na medula ou fraturas ósseas? Contraturas
musculares sem base anatômica que as justificassem? Questões dessa
natureza forçaram Freud e Breuer a entenderem que aqueles corpos
carregavam uma memória de traumas que não estava disponível à
consciência, e, mesmo assim, tinham um efeito patogênico sobre a vida

17
Pluralismo em Filosofia e Psicanálise

dos enfermos. Ao passo que o corpo foi repensado, a memória também


foi. Isso porque, com Freud, foi postulada a existência de um tipo de
memória cujos conteúdos são fragmentos de experiências traumáticas
dolorosas e, por isso mesmo, são mantidos fora do alcance da luz da
consciência, como uma defesa para o psiquismo. Um corpo para além da
anatomia e uma memória para além da consciência são legados da
psicanálise freudiana.
Freud e Breuer (1996) indicam que o grande desafio imposto a
eles, enquanto neurologistas, consistia em explicar por que sintomas
como hemianestesia, contração do campo visual e convulsões
epileptiformes aconteciam mesmo sem um referente anatomofisiológico
para os explicar. Entenderam que o caminho a ser percorrido deveria
partir dos sintomas em direção regressa às suas causas. Eram
perturbações de natureza corporal que não apresentavam lesões ou
alterações orgânicas, o que tornava a sintomatologia um grande mistério.
A pesquisa mostrou que, subjacente aos sintomas, existiam situações
traumáticas que, na ocasião do surgimento da doença, estavam
esquecidas, mas, ainda assim, tinham forte potencial patogênico.
Lembranças de fatos traumáticos e afetos a eles vinculados não estavam
disponíveis à consciência, entretanto, não haviam sido submetidos ao
desgaste natural do tempo.
Se o paciente responde a uma situação dolorosa com uma reação
que pode ir das lágrimas a atos de vingança, os afetos nela envolvidos são
descarregados e perdem a capacidade de gerar sintomas de natureza
histérica (Freud, 1996a). Quando a reação a um evento doloroso não
acontece, ele passa a ter valor traumático, já que o afeto provocado pela
experiência permanece vinculado a ela. Por não haver ab-reação em
relação à situação traumática, ocorre um esquecimento dela, de modo a
proteger o psiquismo. Contudo, esquecer não é aniquilar a lembrança, é
apenas torná-la inacessível ou temporariamente inofensiva. Em casos de
ausência de ab-reação, o paciente fica exposto a “um excesso de tensão

18
O corpo como lugar de memórias: considerações
sobre obras de Frida Kahlo a partir de Heidegger e Freud

inassimilável e errante, que não consegue descarregar-se sob forma de


um grito de socorro, por exemplo, ou de uma ação motora de fuga”
(Nasio, 1991, p. 26).
Na histeria de conversão, a ausência de ab-reação e o
estabelecimento da força patogênica do trauma fazia com que o paciente
produzisse sintomas de natureza corporal, mas sem explicação
anatomofisiológica plausível. Lembranças aterradoras, que
correspondem a traumas que não foram suficientemente ab-reagidos,
quando acordadas, seguem oferecendo perigo ao psiquismo; por isso, um
mecanismo de repressão é acionado e o afeto despertado por elas é
escoado para alguma parte do corpo, provocando disfunções de natureza
histérica. A conversão é justamente a transformação de um problema
psíquico em algo da ordem do corporal. A produção do sintoma ocorre
mediante uma descarga do afeto — outrora reprimido quando da ocasião
do trauma — no corpo. Segundo Nasio (1991, p. 32-33):

Justamente, a região somática afetada pelo sintoma conversivo


corresponde à parte do corpo outrora afetada pelo trauma, e assim
transformada numa imagem determinada. Na conversão, a carga
energética abandona a imagem inconsciente para energizar o órgão do
qual essa imagem é reflexo.

No decorrer de sua pesquisa, Freud vai agregar ao conceito de


trauma os conceitos de fixação e repetição. Faz isso ao pensar o que
nomeia de neuroses traumáticas, decorrentes de acidentes envolvendo
riscos fatais. Essa neurose seria diferente das psiconeuroses, mas
guardaria em comum a força traumática da memória de um passado que
não se desgasta e não se suprime, ainda que se possa reprimi-lo no
inconsciente. O pai da psicanálise se perguntou por que pessoas que
sofreram acidentes e situações difíceis no passado seguem retomando
estas experiências dolorosas, seja em sonhos, seja em imagens que as
transportam para este tempo. Em casos assim, é como se a pessoa não
tivesse finalizado a situação traumática e a enfrentasse, frequentemente,

19
Pluralismo em Filosofia e Psicanálise

como tarefa ainda sem execução (Freud, 1996b). A repetição de


experiências dolorosas estaria ligada à economia do aparelho psíquico, à
sua maneira de administrar a energia que por ele circula. O excesso de
energia produzido por esta memória inconsciente é sentido como
adverso pelo psiquismo, que tenta manter constante e equilibrado o fluxo
energético que o perpassa. A quantidade de prazer e desprazer envolvida
nas produções psíquicas depende da economia relacionada com a energia
que circula no aparelho psíquico.
Em Além do Princípio de Prazer, publicado em 1920, Freud
detecta a repetição nas brincadeiras infantis e na compulsão em
reproduzir experiências danosas. Ao observar uma criança de 1 ano e
meio depois da saída de sua mãe do recinto, percebe que ela faz uma
brincadeira de “ir embora” com seus brinquedos (Freud, 1996c). Um
deles era um carretel de madeira com um cordão amarrado nele e, ao
invés de puxá-lo como se fosse um carrinho, gostava de fazê-lo sumir e
depois produzir seu reaparecimento. Quando fazia o carretel sumir,
entoava um “Fooooooort” (foi embora) e, ao fazê-lo retornar, emitia um
alegre “Da” (aí).
Visto que a criança não poderia ter sentido a partida da mãe como
algo agradável ou indiferente, Freud se intriga com a brincadeira que
ocorria assim que ela saía de casa. Ora, se o aparelho psíquico busca obter
prazer, restava saber por que repete algo que é doloroso, ainda que faça
isso de modo simbólico, como na brincadeira. Como cientista Freud
sempre demonstrou capacidade de questionar suas próprias teses e a
repetição dessa experiência aflitiva relacionada com a saída da mãe,
mesmo em forma de jogo, parecia não se harmonizar com o princípio de
prazer (Freud, 1996c). Diante do fenômeno em comento, postula que a
criança produz essa brincadeira porque, inicialmente, encontrava-se
numa situação passiva vendo a partida da mãe. Entretanto, ao repetir o
jogo de desaparecimento e retorno do carretel, assumia um papel ativo.

20
O corpo como lugar de memórias: considerações
sobre obras de Frida Kahlo a partir de Heidegger e Freud

Neste caso, ainda que a lembrança repetida não fosse agradável, um


instinto de dominação se fazia presente.
Tudo que nos impressiona e impacta retorna e é repetido como
uma tentativa de assumir uma posição diferente quando da ocasião do
acontecimento. Freud dá o exemplo da criança que no médico foi
submetida a um exame desconfortável da garganta e acaba por repetir
esse conteúdo na brincadeira, só que na função do médico; ou seja,
assume uma função ativa, e não passiva. Apesar da experiência repetida
ter sido dolorosa, a repetição nessa nova função traz um ganho de prazer
(Freud, 1996c).
Ainda que a clínica tenha mostrado que existe um “mais além” da
busca pura do prazer, que existe uma compulsão a repetir experiências
dolorosas, que nem sempre o trauma aconteceu na realidade empírica,
que ele também diz respeito à administração dos excessos de energia
psíquica provocado por fantasias e pela realidade psíquica, uma coisa não
mudou na forma freudiana de olhar o sintoma histérico: ele carrega
consigo uma descarga no corpo de problemas que são de natureza
psíquica. O que implica dizer que uma consequência decorrente da
clínica freudiana é o ensinamento de que o corpo não se reduz à
anatomia, que nosso modo de corporar não paga tributo ao estritamente
orgânico, sendo palco de memórias inscritas na carne e que se expressam
em dores, limites e disfunções que carregamos mesmo quando, do ponto
de vista anatomofisiológico, não tenhamos marcadores para explicar o
padecimento corporal.
Quanto ao entendimento da relação entre a infância e as
reminiscências, destacamos que há algo que mudou radicalmente na
teorização freudiana. Somente em 1905, quando vai tematizar a maneira
como a sexualidade se desenvolve da infância à vida adulta, e pensar o
que se chamava de perversões sexuais, é que Freud vai entabular uma
outra ideia: a sexualidade não se reduz ao coito sexual, à vida sexual

21
Pluralismo em Filosofia e Psicanálise

adulta, mas pode ser alargada e entendida como formas de erotização e


gratificações corporais que acontecem durante toda a vida. Vai falar,
então, de uma sexualidade pré-genital e autoerótica, que tem o próprio
corpo como fonte de prazer. Essa mudança confere novos contornos ao
corpo e à memória. Isso porque há, no corpo infantil, um autoerotismo
que estimula a obtenção de prazer através das zonas erógenas, mas como
isso ocorre na tenra infância, não se tem memória dessas atividades
pulsionais, a não ser de forma fragmentada. Por isso, Freud (1996d) nos
alerta que a clínica psicanalítica se depara, necessariamente, com o
terreno da amnesia infantil.
Tanto o corpo com sintomas conversivos que respondem ao
trauma psíquico a partir de disfunções que não possuem base
anatomofisiológica, quanto o corpo infantil repleto de zonas de
gratificação, são formulações freudianas que enriqueceram e
desconstruíram o modo biologizante de olhar para a corporeidade
humana. Freud nos mostrou que a memória inconsciente — seja relativa
ao trauma, seja relativa ao prazer — habita e se inscreve no corpo,
tornando-o palco da história do indivíduo. Seja em sua versão patológica,
seja em seu modo saudável de ser, o corpo, ensinou Freud, carrega
consigo memórias inconscientes que dizem muito do que somos. A porta
aberta por ele aponta para um “mais além” dos confins da anatomia.

3 A discussão heideggeriana sobre o corpo: um novo olhar sobre a


enfermidade e a memória

Em Carta sobre o humanismo, Heidegger (2009) nos fala de uma


diferença abismal entre o ser humano e o animal, e usa a questão do corpo
como marcador para esta diferença. Tal distinção equivale à diferença

22
O corpo como lugar de memórias: considerações
sobre obras de Frida Kahlo a partir de Heidegger e Freud

entre corpo (Leib) 4 e organismo. Para ele, ainda que a fisiologia e a


química fisiológica consigam examinar e explicar o ser humano como um
organismo, não se pode dizer que esta forma de explicação alcance o
modo como nós humanos, enquanto Dasein, corporamos5. Para o
filósofo, isso não prova que a essência do ser humano se reduza ao
“orgânico”, isto é, ao corpo explicado com base nestas disciplinas
científicas. Por isso, destaca Ciocan (2008), o filósofo alemão não apenas
evita o termo Leib quando ele descreve a animalidade do animal, mas
também contesta a legitimidade do conceito de “organismo”
(Organismus) em relação ao ser humano.
Na obra Seminários de Zollikon — que contém atas de seminários
que Heidegger ministrou a psiquiatras suíços — encontramos passagens
em que o filósofo afirma que a ciência médica, ao atentar para o corpo
humano apenas em seus aspectos materiais e orgânicos, não alcança o
fenômeno da corporeidade humana, não acessa o fenômeno originário
do Leib (Heidegger, 2001). Segundo Ciocan (2008), Heidegger nos faz ver
que o Leib tem de ser compreendido como um fenômeno originário do
existir e, portanto, irredutível a sistemas mecanicistas ou a explicações
causais e quantitativas. Como destaca Michel Haar, o ser humano não é
apenas um vivente como os demais animais, e sua diferença em relação a
eles não se deve ao fato de o primeiro ser portador de logos, de razão, mas
ao fato de o Dasein ser um existente (Haar, 1997). Quer dizer:
ontologicamente o ser humano carrega consigo a premência de sua

4 Carneiro Leão, tradutor de Carta sobre o Humanismo, traduz Leib apenas por corpo (cf.

Heidegger, 2009).
5 Dasein é o termo alemão utilizado por Heidegger para indicar o ser do ente que nós mesmos

somos, numa tentativa de distanciar-se dos sentidos tradicionalmente carregados por termos
como “ser humano”, “homem”, “pessoa”, etc. Esse termo é traduzido por vezes como “ser-aí”,
“ser-o-aí”, “presença”, entre outros, mas optamos por manter o termo em alemão. O filósofo
procura demarcar que não somos substâncias isoladas em si mesmas, sendo antes
caracterizados por um constante envolvimento com o nosso próprio ser e dos demais entes. O
Dasein é a cada vez tanto lançado no “aí”, no mundo enquanto horizonte de possibilidades,
como também é por sua vez o “aí” no qual o ser pode se mostrar e ser visto (Heidegger, 2009;
2015; cf. Inwood, 2002).

23
Pluralismo em Filosofia e Psicanálise

finitude, o imperativo de escolher, a capacidade de se angustiar e ser


afetado pela alteridade e por sua própria historicidade. Isso é mais do que
ser apenas vivente, é ser existente 6.
Nos seminários que mencionamos acima, Heidegger (2001)
estabeleceu uma distinção conceitual importante para compreender
nossa corporeidade, em outros termos, diferenciou os conceitos de corpo
material (Körper) e corpo vivido (Leib). Como já indicamos, embora o
nosso corpo possa ser encarado objetivamente como uma substância
marcada pela extensão, como um Körper, tal olhar não alcança aquilo que
nos distingue mais precisamente enquanto entes: a existência. Enquanto
existente, o Dasein não é um ente fechado em si mesmo, pois se constitui
projetando-se constantemente para fora de si, encontrando o mundo e
outros entes. Encontra-se envolvido com o mundo, aberto compreensiva
e afetivamente pra este enquanto horizonte antecipativo de
possibilidades. Nessa perspectiva, o Dasein é sempre ser-no-mundo
(Heidegger, 2015).
Para Heidegger, tal abertura já é desde sempre determinada pelo
corpo enquanto condição ontológico-existencial do Dasein. É a esse
caráter existencial que o corpo vivido se refere: aqui não se pensa o corpo
como uma coisa, mas como uma das estruturas do movimento existencial
que nos caracteriza enquanto entes. O limite do Körper encontra-se na
pele; os limites do Leib são o alcance do horizonte de ser no qual o Dasein
se move a cada vez em sua ocupação cotidiana (Heidegger, 2001). Nosso
corpo não é apenas uma coisa a ser acessada a partir de suas propriedades
materiais, pois é antes de tudo uma condição a priori da nossa
possibilidade de acessar o que quer que seja (Aho, 2009, p. 33). Nesse

6Michel Haar faz uma discussão extensa sobre a leitura heideggeriana do conceito de homem
— herdado do humanismo grego — como animal racional, como ζωον λόγον έχον. Ancorado
na obra heideggeriana Carta sobre o humanismo, o filósofo francês vai mostrar a crítica ao
modo como se concebe nossa animalidade. Por isso, destaca que não obstante tenhamos uma
animalitas e esta seja atrelada aos nossos instintos e elementos corporais, há uma diferença
abismal entre o Leib humano e o organismo dos animais (cf. Haar, 1997).

24
O corpo como lugar de memórias: considerações
sobre obras de Frida Kahlo a partir de Heidegger e Freud

sentido, a análise existencial que tem em vista o corpo vivido não se


ancora na observação do corpo material como um objeto, mas no olhar
fenomenológico voltado para o próprio existir, para o próprio ser que está
em jogo. Em outros termos, quando se fala da corporeidade humana, não
está em questão um “quê”, mas um “quem”.
Essa maneira de pensar o Dasein e a corporeidade humana fez
com que teóricos da enfermidade e da saúde se interessassem pela
fenomenologia heideggeriana. Segundo Reis (2016), o marco
fenomenológico de abordagem da enfermidade atribui uma maior
relevância para a perspectiva da primeira pessoa, apontando para o
exame das maneiras como o adoecer atinge nosso modo de ser-no-
mundo. Nesta perspectiva, importa investigar não apenas os aspectos
orgânicos envolvidos na enfermidade, mas, sobretudo, a maneira como
ela atua na experiência do corpo vivido (Leib). Uma vez que nossa
corporeidade não se reduz à dimensão orgânica e congrega os aspectos
de nossa trajetória, a perspectiva fenomenológico-existencial deixa de
abordar o adoecer como algo relativo apenas às suas características
anatomofisiológicas, como algo relacionado ao mau funcionamento da
máquina corporal. Nesse contexto teórico, o fenômeno da enfermidade é
encarado como uma ruptura na unidade do ser-no-mundo-
corporificado, de modo que todos os aspectos determinantes do corpo
vivido são afetados (Reis, 2016; 2020).
Aho (2009) destaca que o propósito de Heidegger, nos Seminários
de Zollikon, era justamente provocar uma crise no modo hegemônico de
os médicos pensarem a saúde e o adoecimento, e engajar as ciências
médicas — naquele contexto, mais detidamente a psiquiatria — numa
outra leitura sobre o ser humano, num entendimento deste como Dasein.
Isso porque, para Heidegger, a medicina de seu tempo adota uma
interpretação de corpo ancorada na dicotomia entre sujeito-objeto
estabelecida por Descartes, da qual decorre a ideia de corpo como

25
Pluralismo em Filosofia e Psicanálise

substância extensa (res extensa) que funciona mecanicamente, embora


se articule com a mente (res cogitans). Segundo Nogueira (2007, p. 2):

Em qualquer época a compreensão e o diagnóstico das enfermidades


sempre foram apoiados em algum tipo de ontologia, isto é, metafísica.
Embora os médicos de hoje não tenham consciência disso, sempre que
dizem que alguém apresenta a enfermidade x ou y, estão recorrendo à
concepção metafísica cartesiana, peculiar às ciências naturais
modernas, que se fundamentam na distinção na distinção entre sujeito
e objeto e na exigência de mensuração como critérios ontológicos para
identificar os fenômenos ônticos.

A empreitada heideggeriana nos seminários na Suíça consistiu


em mostrar essa herança ontológica subjacente ao modo como é
organizada a formação em medicina ocidental. Seu esforço em mostrar a
diferença entre Leib e Körper (corpo material) visava criar as condições
para que seus ouvintes passassem a pensar que tipo de ontologia está
subjacente à maneira como compreendiam a saúde e a enfermidade
humana. De variadas maneiras, o filósofo alemão tentou mostrar que a
corporeidade do ser humano não pode ser pensadas em analogia com
máquinas, reduzida a um organismo, a uma coisa material, a algo
simplesmente dado. Ele mostrou mais do que isso: ensinou que, em
hipótese alguma, a corporeidade humana deve ser pensada fora de seu
contexto no mundo, apartada da maneira como a pessoa está
familiarizada ou não com seus horizontes de afazeres no mundo
circundante.
Quando estamos bem, afirma Reis (2020), uma memória corporal
pré-reflexiva nos guia no mundo, organizando nossa abertura
procedimental como ser-no-mundo, em outros termos, organizando as
disposições e habilidades do ser-no-mundo corporificado. Daí decorre
uma confiança corporal, que não é representacional e nem reflexiva, mas
um modo de estar afinado ao mundo que não é marcado pela dúvida
sobre o que meu corpo pode ou não pode. Reis (2020) nos mostra como
a discussão heideggeriana sobre nossos modos pré-temáticos e pré-

26
O corpo como lugar de memórias: considerações
sobre obras de Frida Kahlo a partir de Heidegger e Freud

teóricos de ser-no-mundo e sobre a corporeidade que nos é própria,


permitiu que teóricos do campo da saúde e da memória pensassem no
conceito de memória corporal. O destaque é que nosso corpo vivido,
lançado no mundo, em sua cotidianidade de afazeres, possui uma forma
intrínseca de memória. Reis (2020, p. 108) esclarece:

A memória corporal pode ser definida, então, como a totalidade das


disposições corporais e habilidades que se estabeleceram no curso do
desenvolvimento de um indivíduo. Tais disposições e habilidades
tornam-se atuais por meio do corpo vivido, sem a necessidade de se
lembrar de situações anteriores, tratando-se de uma forma de
consciência pré-temática e de intencionalidade operativa do passado e
que se exibe num sujeito corporificado.

Em nossa familiaridade cotidiana pegamos o tempero no


armário, abrimos uma porta pesada, passamos entre duas cadeiras
dispostas na sala, sem precisar pensar nestes atos, sem calcular o tempo
de deslocamento, a força a imprimir: simplesmente corporamos no
mundo. Somos guiados por uma memória corporal que não é da ordem
da representação, nem de natureza declarativa ou enunciativa.
Simplesmente somos no mundo, sem precisar pensar sobre como isso se
dá, tampouco versar, enunciar o nosso modo de ser. Para Thomas Fuchs
(2012) e Edward Casey (2000), a memória corporal é constitutiva tanto
do nosso desempenho nos afazeres cotidianos quanto da nossa
identidade pessoal. Quando estamos enfermos, é toda a complexidade
de tramas cotidianas de meu existir que colapsa, e não apenas o corpo
material. Com isso, colapsa a minha memória corporal, as minhas
familiaridades, o meu “saber que posso”.
Como essa discussão sobre o colapso das familiaridades e da
memória corporal que se instala na enfermidade pode nos ajudar a
pensar obras e a própria biografia de Frida Kahlo? Em que medida a
discussão freudiana sobre corpo e trauma também pode lançar luz sobre
isso? Meditaremos sobre esse assunto no tópico seguinte.

27
Pluralismo em Filosofia e Psicanálise

4 O padecer de Frida Kahlo: um olhar a partir de Heidegger e


Freud

Em 1937, Frida Kahlo pintou a obra Recuerdo (el corazón) 7 — no


Brasil, às vezes o título é traduzido por Memória (o coração) ou por
Lembrança (o coração). Essa obra traz consigo a revelação da dor da
traição, pois foi feita na ocasião em que ela descobrira a relação entre seu
então marido, Diego Rivera, e a sua irmã Cristina. Como destaca Herrera
(2011), Frida está de cabelos curtos e sem braços, portanto, impotente e
frágil, tendo no peito um buraco no lugar do coração, atravessado por
uma flecha de metal. Ao seu lado, dois cabides pendurados em fios que
parecem veias em que correm sangue; neles, podemos ver dois tipos de
roupas: uma de colegial, um traje típico de seu tempo de escola —
certamente o traje que ela vestia quando sofreu o acidente no bonde e
teve uma barra de metal perfurando seu quadril —, e a outra com
características étnicas da cultura tehuana. Cada roupa tem um braço só.
No centro, está Frida, e o braço da roupa colegial tenta alcançá-la, mas
não consegue. Ela está retratada com a expressão fechada e tem lágrimas
no rosto. O outro braço, que sai do vestido tehuana, consegue tocar no
tecido da roupa que Frida veste, bem no lugar em que estaria seu braço,
mas não há nada a preencher o tecido, e vemos apenas o buraco de onde
deveria sair uma mão. Um dos pés, destaca a biógrafa, está enfaixado em
referência a uma cirurgia a que fora submetida em 1934 (Herrera, 2011).
O coração está ensanguentado, no chão. Fora do corpo, “o coração é uma
cascata, suas válvulas cortadas bombeiam rios de sangue na paisagem
desolada” (Herrera, 2011, p. 233).
Paisagens desoladas, áridas, desérticas e um corpo enfermo,
ferido, cortado e perfurado aparecem em muitos dos autorretratos de
Frida Kahlo. A artista não conseguia se ver encaixada na escola surrealista

7 A obra Recuerdo (el corazón), por Frida Kahlo (1937) pode ser observada em:

https://www.kahlo.org/memory-the-heart/.

28
O corpo como lugar de memórias: considerações
sobre obras de Frida Kahlo a partir de Heidegger e Freud

porque sabia que se retratava em sua obra, que a matéria de suas telas era
a sua história real, a sua vida trágica, o seu existir. O que a filosofia de
Heidegger teria a contribuir para pensar o horizonte existencial
desvelado em obras de Kahlo? De que modo as formulações de teóricos
da enfermidade que se ancoram na abordagem heideggeriana do corpo
poderiam lançar luz sobre a trajetória existencial manifesta nas obras da
pintora? Seguindo a indicação de Nogueira (2008), acreditamos que a
filosofia heideggeriana e o exame de pesquisadores ligados a ela, na
medida em entende que todo adoecimento e toda manifestação corporal
humana está vinculada ao nosso existir, é muito frutífera para pensar o
horizonte existencial que a artista revela em suas telas.
Frida Kahlo expressou, de forma brava e impactante, suas
mazelas corporais e existenciais. Na biografia de Frida, Herrera (2011, p.
9) destaca “a bravura e indomável alegria em face do sofrimento físico”
como características de sua pessoa. Além de suportar sequelas da
poliomielite que teve na infância, Frida, aos 18 anos de idade, sofreu um
acidente com o ônibus que a transportava e foi “literalmente empalada
por uma barra de ferro; sua coluna foi fraturada, a pélvis foi esmagada e
ele teve um dos pés quebrados” (Herrera, 2011, p. 9-10). Desse dia até o
fim de sua vida, ela usou diversos coletes ortopédicos, fez várias cirurgias,
conviveu com dores, recidivas de doenças e a “fratura na pélvis resultou
numa sucessão de abortos espontâneos e pelo menos três abortos
cirúrgicos” (Herrera, 2011, p. 10). A sua coluna partida, os abortos, as
cirurgias, as infindáveis internações, a amputação do pé, mas também
sua força e sua esperança, podem ser reconhecidas nas telas e em muitas
páginas de seu diário íntimo (Kahlo, 2015).
Muitas pinturas de Frida e desenhos esboçados em seu diário
trazem, em nossa perspectiva, a perda da confiança e da memória
corporal típicas de quando, na cotidianidade do mundo circundante,
estamos familiarizados com nossas potencialidades, com nosso modo de
ser. Ao colocar o corpo no centro de telas em que ao fundo se vê o deserto,

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Pluralismo em Filosofia e Psicanálise

a terra rachada, infrutífera e inerte, Kahlo torna seu padecimento um


foco temático 8. A artista devassa sua dor, derrama lágrimas, mesmo que
faça isso mantendo a altivez e, por vezes, a esperança. Esta se expressa,
claramente, na plaquinha que a Frida com traje tehuana segura, ao lado
da Frida que está na maca com vários pontos cirúrgicos na coluna.
Estamos nos referindo à tela Árvore da esperança (1946). Na plaquinha,
lê-se: “árvore da esperança, mantém-te firme!”
Estudiosos da fenomenologia de Heidegger, James Aho e Kevin
Aho nos lembram que não há nada que nos torne mais cientes de nosso
corpo do que a dor. Esta opera no Dasein um papel central de
encolhimento. Eles nos remetem a expressões que qualificam a dor como
algo que “aperta minha expressão facial numa careta” ou “contorce meus
músculos”, ou “meu nervo ciático belisca”, “meu estômago trava”. A partir
de relatos clínicos de dor de vários pacientes, concluem que esta é mais
complexa do que uma questão de neurotransmissores. Por isso uma
pessoa pode estar severamente ferida, mas livre ou com pouca dor, e
outra pessoa pode sofrer desconforto físico importante, sem evidência de
lesão corporal (Aho; Aho, 2008). Fuchs (2012, p. 16-18), ao classificar
diferentes manifestações da memória corporal, identifica dentre elas a
memória da dor e a memória traumática, que são capazes de gravar-se no
corpo vivido a partir de suas experiências. Isso porque:

Nos seres humanos não há propriamente a posse de um corpo,


configurando uma situação em que alguém teria uma identidade
pessoal e, adicionalmente, ainda possuiria um corpo. Antes disso, a
condição de ser-no-mundo é corporalmente determinada, isto é, a
inserção em uma estrutura holística de significações, que opera como
horizonte de individuação, acontece de modo corporificado (Reis, 2016,
p. 134).

8Isso pode ser visto “A coluna partida” (1944); “Raízes” (1943); “Sem esperança” (1945); e “Árvore
da esperança” (1946). O sangue e o coração exposto aparecem em “As duas Fridas” (1939). Em
O diário de Frida Kahlo: um autorretrato íntimo (Kahlo, 2015), destacamos o esboço cujo título
é “yo soy la desintegracíon”, em que partes de seu corpo estão caindo, separadas do tronco.

30
O corpo como lugar de memórias: considerações
sobre obras de Frida Kahlo a partir de Heidegger e Freud

Quando estamos bem, dizem James Aho e Kevin Aho (2008),


estamos engajados rítmica e saudavelmente em nossas ocupações
mundanas e sequer percebemos nosso corpo; é como se ele
“desaparecesse” na cotidianidade mediana, porque seguimos sendo nos
horizontes do mundo, sem pensar se podemos fazer isso ou aquilo em
função de alguma limitação corporal. Imersos em nosso mundo
circundante, mergulhamos nos afazeres cotidianos movidos por uma
memória corporal não reflexiva sobre o que podemos ou não fazer; essa
memória nos fornece confiança e nos sentimos em casa, familiarizados
com o clima rítmico e equilibrado que guia nossos modos de ser. Nesses
casos, nosso corpo não chama a nossa atenção. O Leib e o mundo se
articulam conforme subo escadas, cozinho, abro portas, sento-me à
mesa. Minha memória corporal me faz sentir que “eu posso”,
constituindo um “saber-como” tácito que não precisa ser tematizado
cotidianamente. É essa memória corporal que me guia, que me dá
segurança, dá certeza de como ir e vir, como levantar e abaixar, como
deslocar e descansar. Esse é o meu ser-no-mundo saudável. E quando
estamos enfermos e padecemos?
Casey (2000, p. 146) atenta para o fato de que a centralidade da
memória corporal se torna flagrante para nós, justamente, quando ela
nos falha. Quando o corpo-vivido (Leib) está adoecido, a confiança
corporal advinda desta memória muda para uma dúvida que veicula a
seguinte sensação: “acho que eu não posso”. Nesse contexto, o mundo já
não é mais aquele familiar, as possibilidades que se abrem não são mais
as velhas conhecidas. Uma infamiliaridade se instala. As escadas parecem
instransponíveis, os afazeres na cozinha me debilitam, a porta é muito
pesada, o sentar-se é doloroso. As referências de meu mundo cotidiano e
familiar colapsam em situação de severo sofrimento corporal e a memória
implícita, que dava ao meu corporar uma confiança, cede lugar para a
dúvida corporal (Reis, 2020). Entendemos que esse clima de estranheza

31
Pluralismo em Filosofia e Psicanálise

e infamiliaridade se revela nos fundos áridos e desérticos de telas de Frida


Kahlo.
Desde a perspectiva heideggeriana, não se pode pensar a
corporeidade humana sem meditar sobre a memória corporal. Assim,
estudiosos de seu pensamento nos apresentam uma ideia de memória
implícita, procedimental e pré-reflexiva que guia nosso ser-no-mundo
corporificado. Róbson Reis (2016) destaca que, com a enfermidade, a
nossa finitude é escancarada em intimidade com nossa corporeidade. A
natureza orgânica de nossa identidade corporal se impõe de modo
implacável, e nós somos lançados numa série de incertezas e dúvidas
corporais. O marco fenomenológico das teorias da saúde, que se serve
dessas discussões heideggerianas sobre o corpo para pensar o adoecer,
inscreve-se no que pode ser nomeado como paradigma do corpo vivido.
Nesta perspectiva teórica, conforme mencionamos anteriormente, a
enfermidade deve ser pensada como uma quebra nos modos de ser-no-
mundo corporificado (Reis, 2016). Como afirmam James Aho e Kevin Aho
(2008), as aflições longas, debilitantes e, por vezes, mortais são
reveladoras da precariedade e contingência da existência humana e
possuem o potencial de colapsar a familiaridade de nosso mundo.
Nós não portamos o corpo como portamos uma bolsa, ele não é
uma substância extensa (res extensa) acoplada a uma substância
pensante (res cogitans), que ocasionalmente constatamos como um ser
simplesmente dado que nos acompanha (Heidegger, 2007). Eu existo
lançado no mundo e sendo afetado por tudo que encontro, porque não
sou neutro, estou afinado ao que aparece em meu horizonte existencial.
Entendido como Leib, o corpo é um modo de ser do Dasein, não uma
massa orgânica, uma coisa simplesmente dada. Nesse sentido, como
Heidegger (2007) enfatiza, o corpo está desde o início co-inserido em
nosso si próprio, permeando a maneira como nos sentimos e somos
afetados pelo mundo.

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O corpo como lugar de memórias: considerações
sobre obras de Frida Kahlo a partir de Heidegger e Freud

Freud nos apresentou uma maneira de pensar o corpo que nos


aponta para um horizonte além do anatômico e o entende como um palco
de memórias. Em que medida esta forma de pensar o tema pode ser
frutífera para pensar a obra e a biografia de Frida? Vimos acima que as
crianças repetem, em seus jogos e brincadeiras, cenas que lhes causam
impacto, forte impressão. Fazendo isso, diz Freud (1996c), elas ab-
reagem a força impactante do fenômeno, saindo da posição de passivas e
tornando-se donas da situação. Ao sair da passividade e ter o jogo da cena
que lhe atinge no domínio do seu brincar, a criança transfere seu mal-
estar para um outro objeto — um brinquedo qualquer. Uma questão que
nos surge, diante da vida de Frida Kahlo, é se, ao pintar seus
padecimentos — decorrentes de sequelas de uma poliomielite aos 6 anos
e do acidente que sofreu aos 18 9 — não estaria tentando se colocar na
condição de ativa diante das circunstâncias que habitam sua memória,
aquela relativa a uma perna mais fina desde a infância e a uma barra de
ferro perfurando sua pélvis, o que implicou em 22 cirurgias e no uso de
diversos coletes (Herrera, 2011).
Em uma carta a Antonio Rodriguez, Frida (in Herrera, 2011, p.
384) afirma: “minhas pinturas são a mais franca expressão de mim
mesma, sem levar em consideração julgamentos ou preconceitos de
quem quer que seja”. Entendemos que, ao fazer da arte um caminho de
expressão sincera de suas vivências, importando-se menos com a
pertença a uma categoria estética do que com o uso da pintura como um
veículo que lança luz sobre si mesma, sobre suas mazelas corpóreas e
emocionais, sobre sua potência, sobre seu engajamento político, enfim,
sobre seu modo de existir e ser-no-mundo, Kahlo nos oferece um arsenal
pictórico capaz de elucidar e tornar transparente, em tintas e traços, a

9Segundo Nogueira e Mello Neto (2016, p. 35-36), “neste episódio, Frida teve fraturas por todo
o corpo e, além disso, sua pélvis foi atingida por uma barra de ferro, componente de algum dos
veículos envolvidos no acidente, que lhe atravessou o corpo e saiu pela vagina. Depois do
acidente, passou por um longo período de recuperação”.

33
Pluralismo em Filosofia e Psicanálise

leitura freudiana acerca da experiência humana de trauma, memória e


padecimento. Ponderamos — a partir de Freud — que é possível aventar
que Frida Kahlo, ao pintar-se, faz um gesto psíquico equivalente àquele
da criança que brinca com o carretel, qual seja, coloca-se na posição ativa
diante da memória que carrega do trauma de seu acidente e de suas
cirurgias, expelindo e elaborando suas dores. Hayden Herrera, biógrafa
da pintora mexicana, expressa uma análise que, apesar de não se servir
de um referencial psicanalítico, apresenta afinidades com essa
perspectiva. Sobre a pintura A coluna partida de Kahlo, Herrera (2011, p.
98) afirma:

Ela revirou seu corpo, colocando o coração na frente do seio e mostrando


sua coluna partida como se sua imaginação tivesse o poder de uma visão
de raios x ou o gume do bisturi de um cirurgião: se a fantasia de Frida
não viajava muito longe dos confins de si mesma, ela a sondava
profundamente. A menina cuja ambição era estudar medicina voltou-se
apara a pintura como uma forma de cirurgia psicológica.

Ao entender que Frida fez em A coluna partida uma cirurgia


psicológica de si mesma, Herrera nos faz ver o quanto a sua obra está a
serviço dela mesma, de sua tentativa de elaboração dos duros traumas de
sua biografia. Nogueira e Mello Neto (2016, p. 40) chamam a atenção para
o quanto há uma repetição de pinturas no molde do autorretrato em seu
legado. Nas 55 obras de autorretrato, seu corpo está exposto, por vezes
ferido, debilitado, por vezes apontando para uma esperança de
reabilitação, por vezes enraizado e impotente no deserto do existir. Para
os autores, “o corpo de Frida e sua recriação nas obras aparece, então,
como ponto crucial da relação do traumático com sua arte” (Nogueira;
Mello Neto, 2016, p. 40). Boss e Marsillac (2018, p. 33) nos fazem ver que
“Frida passou por muitas cirurgias, e também por abortos. Não só o corpo
possui papel central em seus atos de criação, como também é daí que
emerge o próprio ato de criação”. Esse corpo machucado, perfurado,

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O corpo como lugar de memórias: considerações
sobre obras de Frida Kahlo a partir de Heidegger e Freud

costurado, engessado, debilitado, reabilitado e traumatizado é pintado e


contornado como uma forma de ressignificação dos traumas.
A obra O diário de Frida Kahlo: um autorretrato íntimo (2015) foi
publicada postumamente e nos desvela a pessoa misturada com a artista.
Nela, Frida torna explícita a sua luta contra dores e padecimentos
decorrentes de suas múltiplas intervenções cirúrgicas. Frederico Morais,
no prefácio do referido diário, destaca que toda pintura de Kahlo é
autobiográfica, isso porque a sua vida — encharcada de traumas, dramas
e intensidades — é o tema central de sua obra. Afinal, diz Morais (in
Kahlo, 2015, p. 17), “tendo vivido boa parte de sua vida como pintora presa
a uma cama, ou a seu apêndice, a cadeira de rodas, o que ela tinha sempre
à mão era a si mesma”. Segundo Bloss e Marsillac (2018, p. 33):

Para Frida Kahlo, escrever com o corpo significa inscrevê-lo em suas


pinturas — na maioria autorretratos — e registros no diário. Através da
visceralidade, a artista expõe seus sofrimentos físicos, gritos de dor, suas
mutações e limites impostos pelo quarto de um hospital.

Por meio de textos e de desenhos tracejados no diário, Frida


expressa uma memória corporal que traz as marcas do traumático e dos
padecimentos decorrentes da lida cotidiana com a dor e com as
limitações corpóreas. Seus autorretratos apresentam, muitas vezes,
características comuns como uma mistura de força e dor, um solo
desértico que exala uma desesperança, elementos que machucam e
imobilizam sua carne (pregos, coletes, raízes). Essa repetição criativa e
imagética de eventos traumáticos nos parece ser uma ressignificação
ativa de intrusões vividas de modo passivo. O corpo de Kahlo está a
serviço de uma ressignificação de sua memória, cumprindo o papel de ser
o veículo que dá contorno à dor que se instala quando o imponderável, o
disruptivo, se inscreve na sua história pessoal.

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Pluralismo em Filosofia e Psicanálise

5 Considerações finais

Ao longo deste texto, indicamos que, desde a perspectiva do


paradigma do corpo vivido, uma enfermidade crônica, um diagnóstico de
um adoecimento severo, devem ser compreendidos como algo que traz
consigo a estranheza e a finitude de modo avassalador. Como destaca Reis
(2016, p. 126), “estar enfermo é estar desterrado no mundo, vivenciado
como uma experiência obstrusiva permanente ou recorrente, como uma
ênfase no desterro que se insinua na angústia”. Com Heidegger,
aprendemos que falar em padecer humano implica falar de seu existir
como um todo. Não é uma máquina corpórea que adoece, nem a mente
separada do corpo, mas é a nossa existência que padece como um todo.
Todo padecimento corporal, à medida que diz respeito ao corpo vivido, à
dúvida corporal e ao colapso da familiaridade cotidiana, é um
padecimento existencial e não se reduz aos aspectos
anatomofisiológicos. Ancorados na discussão empreendida por
Heidegger e teóricos da enfermidade, entendemos o padecimento como
uma experiência que não se reduz ao aspecto material, orgânico, da
corporeidade humana, mas a todo o seu existir, ao seu Leib, seus modos
corporificados de ser-no-mundo. Por isso sugerimos neologismo
padec(s)er para pensar a enfermidade humana, porque é todo o ser do
humano que sofre, colapsa e adoece. Entendemos que muitas obras de
Frida Kahlo possuem alto potencial plástico para mostrar este padec(s)er.
Quando o corpo vivido se contrai para dentro de própria pele, o mundo
circundante e cotidiano perde a familiaridade e a sensação de “estar em
casa” desaparece, estamos diante de um padecimento existencial que traz
consigo a atmosfera do estranho, do deserto, do que é árido. Isso
podemos ver em muitas telas da artista mexicana.
Ancorados em Freud, entendemos que Frida repete os signos dos
eventos dolorosos para ressignificar, de forma ativa, o que viveu
passivamente, quando não tinha recurso emocional para responder ao

36
O corpo como lugar de memórias: considerações
sobre obras de Frida Kahlo a partir de Heidegger e Freud

que se impôs intempestivamente. Ela se apossa do passado desolador e


dá sentido aos pesados acontecimentos de sua biografia. O que lhe
impactou fortemente é repetido a partir da pintura de seu corpo cheio de
marcas cirúrgicas, ferros, coletes, pregos, sangue e outros sinais que
aludem à história de seus tratamentos, reabilitações e intervenções. O
corpo que aparece é inscrito com as marcas dos traumas, mas também
reinscrito em uma virada na posição em que vive sua própria história. Tal
como a criança que, como destacou Freud, repete o exame doloroso no
médico com as bonecas, assumindo a posição de ativa diante da cena,
Frida faz alusões aos seus padecimentos corporais e aos eventos
traumáticos com o pincel estando ao seu lado, em sua mão. A partir de
Freud, acreditamos que podemos dizer que a artista se pinta
ressignificando a dor de modo ativo; repete o que foi traumático com o
fito de dar a ele contornos próprios, em primeira pessoa, e não ficar refém
da falta de contorno daquilo que é imponderável, que é imprevisível, que
faz colapsar o que se é familiar. A memória dos traumas, ao ser pintada,
de algum modo é elaborada, nomeada, contornada.

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39
Pluralismo em Filosofia e Psicanálise

40
Psicanálise, Entartung e Lasar Segall
Eduardo Ribeiro da Fonseca 1
DOI: https://doi.org/10.58942/eqs.79.02

1 Introdução

O título deste artigo é uma espécie de comentário irônico em


relação a uma acusação feita aos artistas modernos na virada do século
XIX para o XX, e, de um modo mais específico, ao modo como o pintor
Lasar Segall e sua obra se viram envolvidos no contexto dessa acusação.
A noção de degenerescência é utilizada historicamente de diversas
maneiras e conforme o modo como é tomada, adquire conotações
diferentes. Um desses vieses é o que faz a conexão entre degeneração
biológica, a questão racial e a degeneração cultural e artística. A tese
defendida a partir das obras específicas de Lombroso e Nordau é a de que
a obra de arte expressa a realidade psíquica de seu criador, que, por sua
vez expressa a sua condição fisiológica e biológica. Nesse caso, a
degeneração biológica implicaria necessariamente em uma expressão
também degenerada do ponto de vista cultural, filosófico e artístico.
Desse modo, a análise das obras de arte facilmente conduziria o
observador treinado a captar os detalhes sutis que comprovariam uma
visão degenerada de mundo e uma forma expressiva típica de formas
degeneradas de existência. A aplicação prática dessa noção específica de
degenerescência supostamente científica tinha como contrapeso uma
noção de cultura saudável, portanto superior, e também uma noção de
evolução orgânica que supostamente teria como ápice o homem branco,

1 Professor do PPGF da PUCPR. E-mail: eduardo.fonseca@grupomarista.org.br


Pluralismo em Filosofia e Psicanálise

europeu. Assim a raça e a cultura estariam intimamente relacionadas em


seu viés evolutivo tomado como superior e saudável e, do mesmo modo,
por oposição, em seu viés degenerado, composto por mistura de raças,
por tipos malogrados, e, por outro lado, pelas influências culturais e
artísticas consideradas primitivas, selvagens, bárbaras, deturpadas ou
involuídas. O contato com essas influências seria potencialmente
perigoso para a cultura superior, que delas deveria se defender a todo
custo.
Racismo é um termo com um duplo viés, de um ponto de vista
histórico e cultural. Ele serve tanto para descrever o que se pretende
segregar, quanto o que se pretende preservar em termos de uma pretensa
pureza racial e social. Tal concepção de pureza de uma forma considerada
elevada geralmente é confrontada com o risco da contaminação
envenenadora e degenerativa do ponto de vista biológico, através da
mistura do sangue puro com o que é considerado impuro, mas também,
de um ponto de vista cultural, a impureza é interpretada como
consequência de uma suposta ascensão de conceitos e formas de
pensamento que desviariam a cultura de sua pureza original,
promovendo expressões que pudessem depreciar os valores considerados
elevados e depurados. Esses valores “depurados” estariam em relação de
desenvolvimento com valores supostamente originários e, portanto,
considerados os únicos historicamente legítimos. Nesse sentido, a
consequência lógica decorreria implacável: tanto a degeneração cultural
promoveria a degeneração étnica, quanto a degeneração étnica é
considerada a causa das expressões culturalmente degeneradas.
O racismo aparece historicamente como uma abrangente
mundividência (Weltanschauung) específica que defende e aplica a
discriminação de uma ou mais etnias específicas no contexto do

42
Psicanálise, Entartung e Lasar Segall

“narcisismo das pequenas diferenças” (Freud, 2020, p. 81) 2, alegando,


entre outras coisas que somos inferiores ou superiores em função de uma
realidade da natureza ou espiritual, tais como a cor da pele ou um código
que discrimina diferentes castas por nascimento. Nesses casos, não é
necessário justificar o posicionamento ideológico, porque ele é aceito
com naturalidade e compartilhado como regra implícita ou explícita de
uma determinada cultura da tradição a ela ligada, que aparece então
como uma realidade essencial, pura e arquetípica, direcionada não
apenas a determinar o comportamento presente, como também o
destino comum previsto nessa tradição.
A palavra raça, por sua vez, consolida-se na Europa entre os
séculos XII e XVI, e torna-se um termo utilizado com finalidade científica
e filosófica precisa a partir do século XVIII, e, nesse contexto, podemos
citar uma extensa gama de pensadores tais como Buffon, Kant, Voltaire,
Hume, Fichte, Wagner, bem como os positivistas Nordau e Lombroso,
que nos interessam especificamente aqui. Nesse sentido mais
autoesclarecido ou autodeclarado, o racismo aparece como uma
ideologia justificada racionalmente que defende determinados
privilégios que tensionam e contradizem princípios de igualdade
universal. Até mesmo a própria igualdade universal é posta a serviço e
condicionada a uma marcha para o progresso onde se confunde
unilinearmente o elemento cultural e o biológico com um tipo ideal
tomado como modelo e que, em um duplo movimento, afasta de si toda
a complexidade étnica e cultural como expressão do atraso ou da
decadência das formas de existência social e que interpreta o termo
“racial” como um condicionante biológico e hierárquico do elemento
cultural. Raça e cultura, nesse contexto, pressupõem uma influência

2Esta expressão freudiana pode ser encontrada tanto em O mal-estar na civilização (1930),
como em O tabu da virgindade (1918). Se refere ao modo comunidades fronteiriças muito
próximas sob variados aspectos tendem a acentuar as mínimas diferenças existentes entre elas.
A hostilização daqueles que não estão ligados pelos laços comunitários de amor é tida por
Freud como um fator essencial para a preservação dos próprios laços afetivos.

43
Pluralismo em Filosofia e Psicanálise

recíproca e engendram certas prescrições que, à semelhança do racismo


em geral, condicionam tanto a pureza biológica quanto o
aperfeiçoamento sociocultural.
Freud, que não escapou totalmente dessa lógica unilinear em
suas formulações sociológicas, ainda assim apontou nelas o que lhes é
essencial, ou seja, a destrutividade humana, o pendor para a
agressividade. Em O Mal-estar na civilização (1930), o psicanalista
vienense nos adverte que por trás de todas as justificações racionais para
as nossas pequenas diferenças, esconde-se uma poderosa agressividade
que precisa ser desencadeada contra qualquer outra pessoa,
especialmente contra aquele que é percebido ou eleito como
absolutamente diferente de nós. Resulta disso que o nosso próximo é
visto não apenas um potencial apoiador de nossos objetivos ou um objeto
sexual, mas também como alguém sobre quem estamos sempre tentados
a dirigir a nossa hostilidade, bem como “explorar sua capacidade de
trabalho sem compensação, utilizá-lo sexualmente sem o seu
consentimento, apoderar-se de suas posses, humilhá-lo, causar-lhe
sofrimento, torturá-lo e matá-lo” (Freud, 2020, p. 77). Freud (2020, p. 77)
argumenta tomando como testemunho a nossa experiência da vida e da
história, advertindo que “essa cruel agressividade espera por alguma
provocação, ou se coloca a serviço de algum outro intuito, cujo objetivo
também poderia ter sido alcançado por medidas mais brandas”. Em
termos bastante similares aos de Schopenhauer acusa o ser humano de
ser “uma besta selvagem” (Freud, 2020, p. 77) a quem a consideração para
com seus semelhantes é algo estranho. Cito Freud (2020, p. 77):

Quem chamar à lembrança os horrores das migrações dos povos


[Völkerwanderung] 3 das invasões dos hunos, dos mongóis de Gêngis
Khan ou pelos povos conhecidos como mongóis sob a chefia de Gengis
Khan e Tamerlão, da conquista de Jerusalém pelos piedosos cruzados,

3 “Migração dos povos” é o modo como os alemães se referem ao que os não-alemães

denominam “invasão dos bárbaros”.

44
Psicanálise, Entartung e Lasar Segall

ou ainda as atrocidades da recente Guerra Mundial, terá de se curvar


humildemente à verdade dessa concepção.

A existência da inclinação para a agressão, que Freud afirma


podermos detectar em nossas próprias pessoas e supor que está presente
também em todas as outras, constitui o fator que perturba nossos
relacionamentos e força a civilização a um elevado dispêndio de energia
no sentido de resolver seus constantes conflitos. Em consequência dessa
mútua hostilidade primária dos seres humanos, a sociedade civilizada se
vê permanentemente ameaçada de desintegração, ainda que isso
permaneça no mais das vezes disfarçado até mesmo por intermédio da
objetividade científica e pela reflexão filosófica. Isto porque a demanda
destrutiva é mais forte que os interesses razoáveis. A civilização tem de
utilizar esforços supremos a fim de estabelecer limites para a
agressividade e manter suas manifestações sob controle por formações
psíquicas reativas. Por isso são empregados métodos que promovem
identificações e relacionamentos amorosos inibidos em sua finalidade,
do que resulta também a restrição à vida sexual e também o mandamento
ideal de amar ao próximo como a nós mesmos, que confronta de maneira
direta a nossa natureza agressiva originária. No entanto, esses métodos
presentes entre nós podem pouco contra as manifestações mais
cautelosas e refinadas da agressividade humana, que estão presentes, por
exemplo, no discurso político, científico e filosófico e possuem a perigosa
contraindicação de promoverem elas mesmas uma reação agressiva que
torna a besta humana um inimigo ainda mais declarado do processo
civilizatório. É nesse sentido que os efeitos sublimatórios que forçam na
direção da civilização são eles mesmos uma forma de pressão que
desencadeia a agressividade e a violência contra o próximo.
É levando em consideração essas advertências freudianas que nos
dedicaremos aqui a pensar acerca da noção de “degenerescência”,
Entartung, e os problemas que ela suscita, enfatizando as consequências
culturais desse conceito ligado à biologia e ao evolucionismo do século

45
Pluralismo em Filosofia e Psicanálise

XIX, que dizem respeito não apenas a certa visão acerca da evolução, que
nos remete ao preconceito em geral ligado ao êxito da Humanidade em
produzir um tipo considerado fundamental, o do homem europeu
branco, e ao racismo em particular implícito a ele, mas também às
questões ligadas à sexualidade e ao comportamento em geral que se
cercam de grande atualidade, seja em terras brasileiras, seja em outras
partes do mundo. Interessa-nos saber, de um ponto de vista psicanalítico,
o que poderia ser dito sobre a razão, ou sobre as razões ligadas ao horror
e ao ódio produzidos pela presença de elementos considerados grotescos
ou excitantes nas obras de arte, e em que sentido seriam então
considerados como formas de decadência e degenerescência de um
ponto de vista cultural e artístico.

2 Da arte e seu gesto fundamental

Nesse sentido, que o termo degenerado assume em seu contexto


artístico, tomamos como exemplo a trajetória e a obra do artista lituano-
brasileiro Lasar Segall (1889-1957) e a retórica dos críticos ao modernismo
encarado por eles como arte degenerada e, especialmente, como essa
visão de uma arte moderna degenerada se tornou política de Estado no
Regime Nazista a partir de 1937. Tal política foi responsável por retirar
dos museus e galerias de arte alemãs um grande número de obras
consideradas decadentistas e degeneradas, e por exibir em uma
exposição difamatória certo número delas, dentre as quais algumas obras
do período alemão de Lasar Segall. Este pintor teve cerca de 50 obras
confiscadas pelo regime nazista, sendo que 11 delas integraram a mostra
de Arte degenerada em Munique. Do mesmo modo, Segall foi perseguido
também no Brasil tanto por integralistas quanto por certa crítica
conservadora do ponto de vista dos costumes ligada ao Estado Novo. Isso
se justifica porque o racismo e o eugenismo foram muito populares
também no Brasil na virada para o século XX (Schwartz, 2018, p. 7).

46
Psicanálise, Entartung e Lasar Segall

Por suas decisões estéticas e políticas, Segall esteve na linha de frente de


movimentos que propunham reorientações nos fundamentos da
linguagem artística. Em muitas ocasiões, no Brasil e na Alemanha, foi
perseguido e criticado por suas convicções e escolhas. Durante toda a
sua vida experimentou a incompreensão por parte expressiva do público
e da crítica. Foi apontado como mau pintor, rotulado subversivo e
degenerado. Sofreu com o antissemitismo tanto na Alemanha quanto
no Brasil (Caires, 2018, p. 18).

Trata-se de um fenômeno que pode ser considerado ainda mais


amplo, pois diz respeito também à nossa época e a certo tipo de
pensamento dito “conservador do ponto de vista dos costumes” atual,
que prima pelo sentimento de ameaça atravessado pela paranoia da
pedofilia, pela homofobia, pela recusa da nudez em arte e pela repulsa
social e desprezo em relação aos miseráveis e às minorias que reivindicam
seus direitos civis. Temos aqui, portanto, aspectos fundamentais da
relação conflitiva entre arte e política, pois, se a perseguição a artistas e a
destruição de obras de arte praticadas pelo regime nazista foram
lastreadas por argumentos ligados à noção de degenerescência, sua
discussão se reveste de grande importância hoje, tendo em vista a
intolerância que levou aos recentes casos de tentativas de censura à arte
no Brasil (Schwartz, 2018, p. 6).

2.1 A noção de Entartung na Alemanha de Segall


Segall foi perseguido não apenas na Alemanha, mas também no
Brasil tendo como justificativa a recusa à modernidade em arte, que foi
lastreada diretamente nas obras de Nordau e Lombroso, que formularam
o conceito de degenerescência em arte, com toda a arbitrariedade das
conclusões a que chegaram quando incorporaram ao conceito de
degenerescência biológica a cultural, fazendo esta depender daquela
(Peters, 2014, p. 16).
Em termos gerais o problema de Segall na Alemanha está ligado
à dificuldade de unificação da nação alemã e, em um contramovimento,

47
Pluralismo em Filosofia e Psicanálise

à preferência pela noção de cultura nacional encarada como qualquer


coisa perfeita e acabada. Tal visão da arte fazia alusão a um passado
considerado como ponto não somente de origem, mas também de
retorno, em detrimento da noção de civilização, entendida, nessa
concepção, como qualquer coisa genérica e identificada com o ocidente
democrático e propagador de valores decadentes e essencialmente
antialemães. É lógico que há, nesse caso, uma deturpação da noção de
identidade, que deveria ser utilizada nos limites razoáveis da preservação
de valores, mas que é de fato utilizada com a intenção de formar um
espírito sectário, de elo e de amor entre os iguais e de ódio para com
aqueles que não compartilham de tal identidade, esboçada
primariamente através da remissão ao que se considerava como os mitos
originários do povo alemão, tais como aparecem na obra wagneriana, por
exemplo, e, em contraste com isso, a busca pelo combate aos inimigos
dessa cultura. O termo “Kultur” em alemão admite a tradução por cultura
ou civilização e já expressa o conflito íntimo dessa identidade que se
forma no contexto de sua própria fragmentação e se expressa também na
luta política e na própria variação dialetal em solo alemão. O apego à
“cultura nacional” em oposição a uma civilização que perigosamente a
submete e constrange a identidade alemã é o núcleo da posição de Hitler
em sua autobiografia programática intitulada Mein Kampf (Minha luta).
No mesmo sentido, e isso nos interessa sobremaneira aqui, ocorre a
adesão a um modelo de ciência que associa a “essência” do povo alemão
a um conceito biologizante de raça (Caires, 2019, p. 143). Nesse contexto,
tudo o que fosse considerado estrangeiro à cultura deveria ser combatido
e aniquilado, em prol da aglutinação da cultura alemã em torno daquilo
que se supunha serem as suas características originárias. Algo que seria
especialmente valioso para isso seria a noção de “degeneração artística”
formulada primariamente por Lombroso (1881) e Nordau (1892), ainda
que a noção tivesse algo dessa invasão estrangeira abominada pelos
nacionalistas alemães e um dos autores fosse judeu (Nordau),

48
Psicanálise, Entartung e Lasar Segall

considerando-se que o antissemitismo foi uma das formas de agregação


em torno desse tipo de nacionalismo que resultaria na ascensão do
nazismo e resultaria na perseguição aos pintores modernos, tais como
Egon Schiele e o imigrante lituano Lasar Segall. Este último, além de
artista moderno, é imigrante e judeu. Portanto, andava com um alvo nas
costas pronto para ser alvejado pelo discurso pseudocientífico da época.

2.2 A noção de Entartung


A noção de degeneração que foi introduzida por Morel e trazida
para a análise social por Lombroso, atinge com Nordau um novo patamar.
O conceito de degeneração (Entartung, em alemão) cultural conforme
formulado pelo médico húngaro Max Simon Nordau, aparece na
polêmica obra Degeneração, publicada pela primeira vez em alemão em
1892. A obra, um sucesso editorial, foi prontamente traduzida para
diversos idiomas europeus. Nela, Nordau pretende fazer uma análise e
uma crítica científicas da filosofia e da arte, tornando-as reféns de um
discurso científico fortemente amparado nas teses de Lombroso. Através
dessa apreensão pela linguagem científica em sua obra, o autor expõe a
suposta decadência de sua época através de um trocadilho em francês,
substituindo a noção de fin-de-siècle pela de fin-de-race. A humanidade
com todas as suas instituições e criações estaria “perecendo em meio a
um mundo moribundo” (Nordau, 1895, p. 3). O mundo teria, nessa
interpretação, enlouquecido. Às lesões obscuras do tecido social
corresponderiam lesões invisíveis do sistema nervoso individual, que
teriam como efeito a inversão da ordem natural das coisas, ordem essa
que teria sido lentamente constituída através de incontáveis gerações
(Caires, 2019, p. 49). Tal ordem determinaria que deveria haver controle
da mente sobre o corpo, da vontade sobre os impulsos, do consciente
sobre o inconsciente. À maneira platônica, considera que o degenerado e
a sociedade degenerada tornam-se escravos fisiopsicológicos e
intelectuais de instintos impuros e animalescos. A consciência do

49
Pluralismo em Filosofia e Psicanálise

degenerado seria preenchida por misticismo, por erotismo, por delírios e


alucinações. Ele se tornaria então uma simples marionete manipulada
por fios invisíveis de seu mundo íntimo conturbado, dando vazão de uma
forma ou de outra a essa tendência inelutável:

Os degenerados nem sempre são criminosos, prostitutas, anarquistas e


lunáticos declarados; muitas vezes são autores e artistas. Estes, no
entanto, manifestam as mesmas características mentais e, em sua
maioria, os mesmos traços somáticos, como os membros da família
antropológica acima mencionada, que satisfazem seus impulsos
doentios com a faca do assassino ou a bomba do dinamiter, em vez de
com caneta e lápis (Nordau, 1895, p. viii).

A tese implícita é a de que os degenerados que não possuem a


capacidade para empreendimentos mais práticos, dedicar-se-iam então
à filosofia, às artes visuais, à poesia, à literatura. Fazem parte, tanto uns
como outros, de uma mesma família antropológica insana. Por isso,
Nordau se dedica minuciosamente ao esclarecimento dos sinais da
loucura nas obras artísticas. É disso que se trata o texto de Degeneração
e é essa acusação que Segall vem a sofrer anos mais tarde, seja em solo
alemão, seja em solo brasileiro.
Nordau adverte que a crítica de arte científica pode ser vista como
um entusiasmado desdobramento da antropologia criminal de
Lombroso para o campo das produções culturais e artísticas, coisa que,
aliás, o próprio Lombroso já havia principiado, em 1888, no livro
intitulado O Homem de Gênio, no qual defendia a tese de que a
genialidade seria uma anomalia, e o gênio seria uma monstruosidade
pelo excesso. Nesse contexto, o gênio consistiria em “uma condição
mórbida especial”, uma “anormalidade mental congênita” (Lombroso,
1891, p. v). Para sustentar este argumento, Lombroso ampliou a categoria
de estigma para além dos aspectos físicos, anatômicos, postulando a
existência de estigmas fisiopsicológicos, portanto, morais (Caires, 2019,
p. 51). Além das formas peculiares dos corpos que haviam permitido a ele

50
Psicanálise, Entartung e Lasar Segall

encontrar as pistas físicas relacionadas ao “criminoso nato”, Lombroso


sugeriu que existiriam sinais igualmente mórbidos nas produções
filosóficas e artísticas. Ele associou as características das produções
culturais de loucos às dos gênios da Humanidade, aproximando-as então
do conceito de degeneração:

Talvez o estudo dessas peculiaridades da arte no insano, além de nos


indicar uma nova fase dessa misteriosa doença, possa ser útil em
estética, ou de alguma forma, à crítica de arte, por demonstrar que uma
predileção exagerada por símbolos, por minúcias nos detalhes, as
intrincadas inscrições, a excessiva proeminência dada a alguma cor (e é
bem sabido que alguns de nossos mais destacados pintores incorrem
neste pecado), a escolha de temas licenciosos, e mesmo um grau
exagerado de originalidade sejam pontos que pertençam à patologia da
arte (Lombroso, 1891, p. 208).

É nesse contexto que Max Nordau alguns anos depois publica o


seu Degeneração, que é dedicada a Lombroso. Nesta obra, a preocupação
com a disfunção social da cultura e da arte mal pode ser exagerada, pois
se as produções culturais e artísticas “são absurdas e anti-sociais, exercem
uma influência perturbadora e corruptora nas opiniões de toda uma
geração” (Nordau, 1895, p. viii). Portanto, trata-se, na opinião dele, de um
trabalho de profilaxia moral. A metodologia empregada, herdada de
Lombroso, investiga as obras de arte ali que ali aparecem a partir dos
vestígios dos estados psíquicos dos seus criadores. 4 Através dessa análise
patográfica, Nordau vai afirmar que muitos dos participantes das
famosas dissensões artísticas modernas deveriam ser classificados como
degenerados, especialmente de um ponto de vista fisiopsicológico, a
partir da detecção de estigmas que indicariam a degenerescência: “não é
necessário medir o crânio de um autor, nem observar o lóbulo da orelha

4 É uma crítica de arte que obedece a parâmetros patográficos e que mais tarde vai, de alguma
maneira, influenciar também o procedimento de psicanalistas, ainda que a análise dos artistas
e das obras passe a ser feita a partir de uma psicopatologia psicanalítica (Magritte foi um grande
crítico desse procedimento psicanalítico).

51
Pluralismo em Filosofia e Psicanálise

de um pintor, para reconhecer o fato de que ele pertence à classe dos


degenerados” (Nordau, 1895, p. 17). Bastaria observar o seu procedimento
estético, que remeteria por sua vez a um impulso fisiológico, que por sua
vez serviria como forma de forçar uma descarga de estímulos produtores
de tensões (Nordau, 1895, p. 324). E essas tensões seriam referentes a
determinados estados mórbidos, decadentes, tais como ele identifica,
por exemplo, em Baudelaire, cuja obra lhe parece ser “simplesmente uma
descrição da disposição da mente misticamente degenerada, com suas
ideias nebulosas mutáveis, seu fugaz pensamento sombrio e informe,
suas perversões e aberrações, suas tribulações e impulsos” (Nordau, 1895,
p. 300). Nordau faz, com evidente horror, a crítica de Baudelaire e de seus
admiradores e sucessores, enumerando “o diabolismo e o sadismo, a
depravação antinatural e uma predileção pelo sofrimento, doença e
crime”. Menciona também, em parágrafo de indizível desprezo à
modernidade na arte, “a egomania do decadentismo, seu amor pelo
artificial, sua aversão à natureza e a todas as formas de atividade e
movimento” (Nordau, 1895, p. 317). Em um argumento de óbvia extração
platônica, ele sugere uma correspondência mimética entre os estímulos
externos e as respostas fisiopsicológicas. A resposta psíquica
corresponderia a uma imitação daquilo que impressiona alguém,
mediante as condições do sistema nervoso que reage ao estímulo externo.
As peculiaridades do artista seriam a própria expressão da
degenerescência, enquanto a mediocridade indicaria precisamente a
saúde mental. Segundo Nordau (1895, p. 318), é acima de tudo um sinal
de egolatria antissocial irritar a maioria desnecessariamente, apenas para
gratificar a própria vaidade, ou a um instinto estético de pequena
importância e fácil de controlar. Se um artista se coloca em oposição à
maioria das pessoas, exibe um estigma moral da própria tendência
degenerada para o declínio e que exerce uma influência igualmente
patológica sobre o conjunto da sociedade.

52
Psicanálise, Entartung e Lasar Segall

Mesmo que a excitação tenha origem interna e não


necessariamente em um estímulo externo, tal como no caso de emoções
eróticas, alegres, pesarosas, ainda assim ela se manifesta através de
impulsos motores, tais como os que ocorrem na dança, no canto, na
declamação. Nessa concepção, a atividade artística tem um
funcionamento similar ao de outros processos orgânicos: arte é só mais
um resultado necessário da digestão dos estímulos que chegam ao
cérebro.
Portanto, assim são estabelecidos os rudimentos da crítica de arte
científica à maneira de Nordau: a arte é uma expressão fisiopsicológica
submetida aos imperativos do corpo e da natureza, tornando-se possível
colocá-la sob a tutela da ciência, e mais especificamente, da psiquiatria.
Seria então possível compreender os seus processos e, numa pirueta
lógica, instituir critérios e demarcar padrões do que seria um
funcionamento saudável ou doentio desses processos. O principal
critério é a coerência e o sentido lógico das obras que fogem das imagens
ininteligíveis, da liberdade de interpretação, comparadas por Nordau
(1895, p. 93) a um vazio absoluto, que se assemelha ao discurso dos
loucos, que inserem em suas falas palavras que “não têm absolutamente
nenhuma conexão com o objeto de que tratam”.
É nesse sentido de uma arbitrariedade no uso dos signos
linguísticos que poetas como Baudelaire foram então criticados. Do
mesmo modo as produções visuais e musicais que fogem da
representação dos objetos do mundo, ou que se apegam à representação
das emoções subjetivas também foram consideradas decadentes e
degeneradas.
Portanto, toda arte moderna é degenerada e imoral. Moralidade
é a “experiência racial hereditária organizada” (Nordau, 1895: 282) que
adverte os humanos considerados psicologicamente sadios para a

53
Pluralismo em Filosofia e Psicanálise

presença de uma influência nociva. É, portanto, uma espécie de


ortopedia moral que determina o gosto estético:

Náusea diante de gostos intoleráveis, repugnância a cheiros


desagradáveis, medo de animais perigosos e fenômenos naturais
ameaçadores etc. se tornaram instintos aos quais o organismo se
abandona sem reflexão, isto é, sem a intervenção da consciência. Mas o
organismo humano aprende a distinguir e evitar não apenas tudo o que
é prejudicial a si mesmo; ele age da mesma forma com relação àquilo
que o ameaça não apenas como indivíduo, mas como membro de uma
raça, partícipe de uma sociedade organizada; a antipatia às influências
injuriosas à manutenção da prosperidade da sociedade se torna nele um
instinto (Nordau, 1895, p. 282).

Nordau, utilizando os recursos da filosofia estética de seu tempo,


especialmente a referência a Burke, defende uma fisiologia da
normalidade que expressa uma forma de beleza moral, sustentada por
representações bem-consideradas de um ponto de vista social, e
ancoradas em certas formas de ver o que seria benéfico para os indivíduos
em particular e para a Humanidade como um todo. Ao padronizar de
forma unilateral a moralidade e o senso estético, Nordau os contrapõe às
formas desviantes expressas, no seu modo de entender, pela arte
moderna. Trata-se de uma verdadeira biologia da ética.
Se Schopenhauer foi atacado diretamente por Lombroso,
Nietzsche mereceu um longo capítulo na obra de Nordau. Ele foi atacado
exatamente no âmbito de seu pensamento genealógico. Baudelaire e
Nietzsche foram classificados como egomaníacos, condição de quem é
incapaz de romper o isolamento do mundo interior e se relacionar
plenamente com a realidade externa.

3 A pintura degenerada

O mesmo preconceito expresso em relação aos poetas, filósofos e


escritores é também expresso no contexto dos pintores, pois, para

54
Psicanálise, Entartung e Lasar Segall

Nordau, haveria uma correlação entre uma suposta psicopatologia


expressa pelos pintores e o seu estilo artístico manifesto:
“Impressionistas, pontilhistas, papilloteurs, coloristas espalhafatosos”
foram então classificados como portadores de lesões ópticas causadas
por efeito de degenerescência. Segundo ele, os pintores que nos
asseguram que são sinceros e reproduzem a natureza tal como a veem,
“falam a verdade”. O artista degenerado que “sofre de nistagmo, ou
tremor do globo ocular, perceberá, de fato, os fenômenos da natureza
trêmulos, inquietos, sem contornos firmes” (Nordau, 1895, p. 27). Eles
seriam, dessa forma, incapazes de se igualar ao pintor de visão normal, o
que é uma evidente desconsideração da história do pensamento ligado às
formas artísticas e ao modo como as mesmas avançaram no decorrer do
tempo através de gêneros artísticos e escolas. A depender de Nordau
(1895, p. 29), as pinturas modernas não se originariam de nenhum
aspecto observável da natureza, mas sim “de uma visão subjetiva devida
à condição nervosa do pintor”. E o mesmo poderia ser dito, e foi, dessa
vez pelos nazistas alemães e pelos integralistas brasileiros, com relação a
Lasar Segall. O jornalista Mário Guastini, citado por Daniel R. Caires
(2018, p. 22), atacou as obras de Segall num texto intitulado Alucinação
visual, no qual apontava a suposta morbidez de Segall:

Na pintura de Segall nada há de humano. A proporção não existe, a


anatomia nunca existiu, a cor, nas suas variegadas combinações, está
ainda por ser criada. A arte para ele está na aproximação berrante do
amarelo com o vermelho e do preto com o violeta... Apenas o contraste
violento.

A sugestão de que Segall seria um paranoico segue de modo


indelével a cartilha de Nordau. No fundo, a obra de Nordau expõe um
catálogo de preconceitos que depois seriam novamente revisitados no
contexto da ascensão do nazifascismo, para o qual Nordau seria muito
útil, pela sua teoria, apesar de ser, inadvertidamente, um judeu. Nordau
seria, dessa forma, um paradoxo vivo.

55
Pluralismo em Filosofia e Psicanálise

O contexto do problema da degenerescência no contexto da


acusação sofrida por Lasar Segall em solo alemão, que o fez ser incluído
na exposição que retratava a arte degenerada, diz respeito tanto ao
sentimento antimoderno alemão visto pela ótica dos nazistas e o que eles
pensavam sobre a arte moderna a partir da noção de degenerescência e
da visão que tinham acerca de uma suposta pureza cultural ligada às
origens do povo alemão, quanto com relação ao cosmopolitismo do
pintor e, ainda pior, ao fato de ser judeu. Ressalte-se em relação ao
espírito antimoderno a experiência específica de Segall no contexto de
sua formação como artista impressionista e sua lenta diáspora rumo ao
expressionismo, ao movimento secessionista em arte e ao
desenvolvimento de sua relação com as formas e cores, ao
desenvolvimento de sua peculiar paleta. Por outro lado, ressalte-se a
relação desse desenvolvimento com o judaísmo cosmopolita e como isso
foi percebido pelos nazistas como exemplificação tanto da tese da
degenerescência, quanto como uma prova de que os judeus tanto eram
degenerados como produziam deformidades culturais que afetavam
diretamente a pureza buscada e o retorno à pureza das origens da
supostamente pura cultura nacional alemã. Todos esses ingredientes
explosivos o levaram à acusação de degenerado. Por outro lado, seu
interesse e conexão com o Brasil, o contraste entre suas propostas
artísticas desenvolvidas em solo alemão e o que se fazia em arte no Brasil,
sua diáspora e a modificação de sua relação com a luz, mas sempre o forte
acento social de sua obra e a sensibilidade política de seus temas, que
abraçam a Humanidade de um modo especificamente judeu, por um
lado, mas, por outro, amplamente aberto à compreensão da experiência
humana como um todo, de um ponto de vista universal, tal como o
preconizado pelos modernos, o fizeram ser perseguido também pela
extrema-direita brasileira de seu tempo, já desde a sua primeira
exposição, quando ainda vivia na Alemanha e o regime nazista estava em
estado de gestação.

56
Psicanálise, Entartung e Lasar Segall

A perseguição ocorrida em solo brasileiro seguiu a mesma forma


argumentativa, devido à forte presença de movimentos eugenistas em
nosso país, bem como, num segundo momento, à influência de ideias
nazifascistas em nosso ambiente sociocultural. Durante o governo
Vargas, Lasar Segall foi investigado e foi produzido um dossiê com
informações sobre ele e suas supostas atividades políticas. Dentre os
papéis que compõem sua ficha, destaca-se o texto apócrifo “Propaganda
comunista pela arte”. Nele ficam claras as influências do pensamento
fascista, resultando até mesmo num elogio às ações de Hitler e de
Mussolini no campo da cultura e da arte, especialmente o combate aos
vanguardistas da pintura, que, de acordo com essa visão, pretenderiam
implantar a desordem na sociedade. No texto é denunciado também “o
plano oculto dos judeus-comunistas” visando destruir a arte “tradicional
latina” (Caires, 2018, p. 26).
Em contraste com tudo isso, vemos a notável experiência
específica de Segall no contexto de sua formação como artista
impressionista e sua lenta diáspora rumo ao expressionismo, ao
movimento secessionista em arte e ao desenvolvimento de sua relação
com as formas e cores, ao desenvolvimento de sua peculiar paleta, bem
como a relação desse desenvolvimento com o judaísmo, seu interesse e
conexão com o Brasil, o contraste entre suas propostas artísticas
desenvolvidas em solo alemão e o que se fazia em arte no Brasil, sua
diáspora e a modificação de sua relação com a luz, mas sempre o forte
acento social de sua obra e a sensibilidade política de seus temas, que
abraçam a Humanidade de um modo especificamente judeu, por um
lado, mas, por outro, amplamente aberto à compreensão da experiência
humana como um todo, de um ponto de vista universal, tal como o
preconizado pelos modernos. Só essa breve descrição já despertaria uma
comparação com o que aconteceu com Freud e com a Psicanálise em
Viena.

57
Pluralismo em Filosofia e Psicanálise

Pensar Lasar Segall e sua pintura guarda relação com a própria


situação da Psicanálise de Freud, acusada de ser uma “ciência judia” e
ecoa também a visão de Freud sobre o judaísmo, bem como também a
sua própria condição como judeu. Uma possível interpretação acerca da
relação de Lasar Segall com a pintura a partir da experiência freudiana
deveria considerar, mas isso excede o escopo dessa apresentação, o
peculiar aspecto de o que significa a pintura no contexto do judaísmo em
contraste com a escuta, já que no judaísmo o culto às imagens é
desprezado e há um forte acento sonoro na relação com Deus, que pode
ser escutado, mas não visto. Trata-se, no judaísmo não da face de um
Deus, mas de um Deus sem face. Um Deus que só pode ser percebido a
partir das sonoridades que evoca e suscita. São problemas diferentes e
complementares saber o que Segall pensava do judaísmo, e também em
que medida o judaísmo de Segall influenciou a criação de sua obra
pictórica, mediante a relação evocada anteriormente; também importa
destacar o que a sua pintura possa conter que possa ser chamado de
judaico; e o que pode ser dito a partir da Psicanálise acerca do judaísmo,
como sistema de crenças e de práticas — ou seja, quais dimensões do
inconsciente encontram uma expressão nestas práticas e crenças; outro
aspecto ou outra face do problema é saber como a psicanálise pode
ajudar-nos a compreender o que significa para um pintor judeu o ser
judeu, isto é, a compreender como uma pessoa determinada vive certo
aspecto de sua vida psíquica, emocional e intelectual, aspecto
possivelmente decisivo para a compreensão da temática do judaísmo e de
suas errâncias na obra de Segall, bem como também para a configuração
de sua identidade como pintor e como pessoa, assim como ocorre,
evidentemente, com o próprio Freud como criador da Psicanálise. Com a
diferença que a Psicanálise se aproxima mais do judaísmo pela sua
valorização da escuta e a obra pictórica de Segall o aproxima mais de uma
relação com a figura paterna, pois seu pai era um calígrafo da Torá, o que
subitamente, nos faz compreender esse elo peculiar com a cultura

58
Psicanálise, Entartung e Lasar Segall

judaica, se bem que a expandindo em uma direção inesperada, a não ser


pela universalidade das influências às quais estão expostos os judeus em
diáspora, incorporando elementos de uma cultura do ponto de vista
universal, o que novamente era repudiado pelos nazistas. Lasar Segall era
duplamente problemático, tanto por ser judeu quanto pelo
universalismo de sua proposta. Ora, o curioso é que o problema da
identidade judaica simplesmente coloca em termos gerais aquilo que é
formulado, em termos singulares, para os indivíduos Segall e Freud de
acordo com suas experiências muito diferentes. Mas, há uma diferença
crucial: um dos problemas só pode ser resolvido a partir das narrativas de
Segall e Freud acerca das próprias experiências, enquanto para resolver
as questões mais gerais sobre o nazismo e sua “concepção degenerada” da
degenerescência, bem como o sentido psicanalítico da condição judaica
de Lasar Segall e de sua obra artística e sobre a sua condição como judeu
frente ao antissemitismo podemos utilizar e refletir a partir dos conceitos
gerais da teoria psicanalítica, especialmente a partir do narcisismo das
pequenas diferenças e do sentimento antijudaico ligado ao ódio e da
destrutividade travestidos de crítica de arte.

Referências

CAIRES, D. R. Lasar Segall e a perseguição ao modernismo na Alemanha e no


Brasil. In: A “arte degenerada” de Lasar SEGALL: perseguição à arte moderna
em tempos de guerra. São Paulo: Museu Lasar Segall, 2018.

CAIRES, D. R. Lasar Segall e a perseguição ao modernismo na Alemanha e no


Brasil: Arte degenerada na Alemanha e no Brasil. Dissertação (Mestrado em
História) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de
São Paulo. São Paulo, 2019.

FREUD, S. O mal-estar na civilização. In: Obras Completas. Vol. 18, 2020.

LOMBROSO, C. The Man of Genius. London: Walter Scott, 1891.

59
Pluralismo em Filosofia e Psicanálise

NORDAU, M. S. Degeneration. London: William Heinemann Publisher, 1895.


PETERS, O. From Nordau to Hitler. In: PETERS, Olaf. (Org.). Degenerate Art –
The Attack on Modern Art in Nazy Germany, 1937. New York: Neue Galerie,
2014.

SCHWARTZ, J. Apresentação. In: A “arte degenerada” de Lasar SEGALL:


perseguição à arte moderna em tempos de guerra. São Paulo: Museu Lasar
Segall, 2018.

60
Linguagem e pensamento na obra de
Sabina Spielrein1
Fátima Caropreso 2
DOI: https://doi.org/10.58942/eqs.79.03

1 Introdução

Por um longo período, a contribuição da psicanalista russa Sabina


Spielrein (1885-1942) para a história da psicanálise e da psicologia foi
praticamente desconhecida. No entanto, nos últimos anos, tem surgido
um crescente reconhecimento da sua importância e do seu pioneirismo
em várias áreas. Apesar disso, ainda são poucos os trabalhos que se
dedicam a uma análise minuciosa de sua teoria, de forma que uma
compreensão satisfatória de seu pensamento e uma avaliação mais
precisa da sua contribuição teórica e clínica ainda não foram plenamente
alcançadas. Esse artigo tem como objetivo contribuir para a compreensão
da teoria sobre a linguagem formulada por Spielrein no início da década
de 1920, a partir da análise de seus principais textos que versam sobre o
tema (Caropreso, 2020).
Santiago-Delefosse e Delefosse (2002) comentam que Spielrein
foi a primeira psicanalista que demonstrou interesse pela linguagem
infantil. Segundo Fuentes Barco et al. (2008), Spielrein foi pioneira no
desenvolvimento da psicologia infantil e foi a primeira autora a vincular
as teorias freudianas à linguagem. Comentando sobre a palestra

1Esse trabalho foi financiado pelo CNPq, sob a forma de Bolsa de Produtividade em Pesquisa.
2Graduada em Psicologia. Doutora em Filosofia. Professora do Departamento de Psicologia e
do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Juiz de Fora. Bolsista
de Produtividade em Pesquisa do CNPq. E-mail: fatimacaropreso@uol.com.br
Pluralismo em Filosofia e Psicanálise

proferida por Spielrein no VI Congresso Internacional de Psicanálise,


realizado em Haia, em 1920, Launer (2011) observa que o pensamento de
Spielrein estava muito à frente de seu tempo e que ela antecipou ideias
que se tornaram centrais no campo da psicologia infantil nas décadas
seguintes. Outros autores (Cifali, 2001; Cromberg, 2006; Aldridge, 2014;
Noth, 2015; Harris, 2015) também apontam esse pioneirismo. No entanto,
sua contribuição e o papel por ela desempenhado na história da
psicanálise infantil parecem não ter recebido ainda o devido
reconhecimento.
Harris (2015) argumenta que os trabalhos da psicanalista
austríaca Hug-Helmuth e os trabalhos de Spielrein sobre linguagem
infantil precederam trabalhos similares de Melanie Klein e Anna Freud,
embora a maioria das histórias da psicanálise infantil inicie com essas
duas figuras. Cooper-White (2015) comenta que, apesar da admissão de
Spielrein na Sociedade Psicanalítica de Viena e de seus escritos terem
precedido em onze anos os de Anna Freud, geralmente a essa última é
dado o crédito de fundadora da análise de crianças. Nesse mesmo
sentido, Noth (2015) ressalta que as contribuições pioneiras de Spielrein
para a área de análise de crianças permanecem quase despercebidas até
hoje. Na concepção clássica da história da psicanálise, Anna Freud teria
sido a fundadora da análise infantil, enquanto que, no campo da teoria
das relações de objeto, os créditos são dados a Melanie Klein. Na opinião
da autora, a verdade sobre essa questão ainda está por ser estabelecida
(Caropreso, 2020).
O interesse de Spielrein pela linguagem está presente desde suas
publicações iniciais. Seu primeiro texto publicado, intitulado Sobre o
conteúdo psicológico de um caso de esquizofrenia (1911), consiste em uma
análise das falas de uma paciente esquizofrênica, a partir da qual ela
formula hipóteses sobre o funcionamento mental que estaria na base de
tal patologia. Em A destruição como causa do devir (1912b), também já
encontramos algumas formulações teóricas sobre a linguagem. Nesses

62
Linguagem e pensamento na obra de Sabina Spielrein

textos, contudo, o foco central da autora é a compreensão da


esquizofrenia e do funcionamento mental, em especial do
funcionamento mental subconsciente.
Segundo o que esclarece a própria Spielrein no texto O tempo na
vida psíquica subliminar (1923a), foi o interesse em compreender os
processos mentais subconscientes que a levou a investigar o pensamento
infantil e a linguagem, devido à constatação de que os processos
subconscientes apresentam as mesmas características do pensamento
infantil. A partir da publicação de Contribuições para a compreensão da
mente infantil (1912a), Spielrein se volta, então, para a psicologia infantil
e, a partir de 1920, época em que começa a trabalhar no Instituto Jean-
Jacques Rousseau, em Genebra, o desenvolvimento do pensamento e da
linguagem se tornaram os focos principais de suas investigações.
O Instituto Jean-Jacques Rousseau foi fundado por Édouard
Claparède, em 1912, com o objetivo de combinar o treino de professores
com pedagogia experimental e pesquisa sobre o desenvolvimento
infantil. Jean Piaget também trabalhava nesse instituto e se tornou um
importante interlocutor de Spielrein. Na época, Piaget era membro da
Sociedade Psicanalítica Suíça e a psicanálise era um elemento central de
seu mundo intelectual (Vidal, 2001). Spielrein encontrou nele uma
pessoa que compartilhava suas paixões científicas e com quem podia
conversar sobre as questões que mais a interessavam (Richebächer,
2005). Nesse contexto, é que ela formula as hipóteses apresentadas em
seus dois principais textos sobre a linguagem: A origem das palavras
infantis papai e mamãe, de 1922, e Algumas analogias entre o pensamento
infantil, o do afásico e o pensamento subconsciente, de 1923.
No texto A origem das palavras infantis papai e mamãe (1922),
principalmente a partir da reflexão sobre a origem das palavras “papai” e
“mamãe”, Spielrein busca compreender o processo de surgimento da
linguagem verbal, assim como as características psicológicas das

63
Pluralismo em Filosofia e Psicanálise

diferentes etapas do desenvolvimento da linguagem. As ideias aí


apresentadas dão continuidade às teses que ela apresentara na palestra
O surgimento e o desenvolvimento da fala articulada, proferida no IV
Congresso Internacional de Psicanálise, realizado em Haia, em 1920 3.
Pode-se dizer que, em seu texto de 1922, a autora acrescenta às teorias
fisiológicas sobre o surgimento da linguagem, uma série de hipóteses
sobre os processos “psicológicos” envolvidos em tal processo. Em
Algumas analogias entre o pensamento infantil, o do afásico e o
pensamento subconsciente (Spielrein, 1923b), a autora dá continuidade à
sua teorização e defende que, no subconsciente, o funcionamento
primitivo da linguagem e do pensamento é preservado e que esse é
retomado em alguns processos psíquicos normais e patológicos.
Nesse artigo, analisaremos a teoria de Spielrein sobre o
desenvolvimento da linguagem e sobre o pensamento a partir,
principalmente, da análise desses dois textos de Spielrein que acabamos
de comentar. Recorreremos também a algumas ideias que ela apresenta
em seus primeiros textos para tentar esclarecer certas presentes na teoria
sobre a linguagem elaborada no início da década de 1920.

2 As várias formas de linguagem

No início do texto A origem das palavras infantis papai e mamãe


(1922), Spielrein aponta a necessidade de diferenciar entre a linguagem
verbal e outros tipos de linguagens, como a linguagem rítmica ou
melódica, a linguagem gestual — qualificada como visual —, a
linguagem do ato, e assim por diante. Como meio de comunicação, as
linguagens baseadas em som — a melodia e, sobretudo, as palavras —
desempenham um papel predominante e tendem a serem consideradas

3 Um resumo da palestra foi publicado no volume 3, de 1920, do International Journal of

Psychoanalysis.

64
Linguagem e pensamento na obra de Sabina Spielrein

“as linguagens sociais”, argumenta a autora. Citando Moritz Lazarus


(1824-1903), ela comenta que as pessoas se tornam seres sociais
primariamente através da linguagem verbal e que a valorização dessa fez
com que as outras formas de linguagem permanecessem em segundo
plano e passassem à posição de linguagens auxiliares. No entanto,
geneticamente, tanto no mundo animal como no humano, a linguagem
verbal é precedida por outras formas de linguagens. O choro, por
exemplo, é uma forma de comunicação entre a criança e seu cuidador
muito antes do surgimento dos primeiros sinais da linguagem verbal.
Inicialmente, a criança expressa seu estado através de diferentes ritmos,
tons e intensidades de seu choro, ou seja, através de uma linguagem
melódica primitiva, comenta a autora.
As linguagens que visam à comunicação com outros indivíduos
não consistiriam nas únicas formas de linguagem. Spielrein (1922)
propõe a existência de três estágios do desenvolvimento da mesma: o
“estágio autístico”, o “estágio mágico” e o “estágio social”, os quais já
haviam sido descritos em sua palestra de 1920, acima mencionada.
No estágio autístico, fase inicial da linguagem, essa existiria por
si, ou seja, não teria como objetivo a comunicação ou a compreensão por
parte de outra pessoa. Nesse estágio, não haveria ainda a percepção do
mundo externo como algo diferenciado de si mesmo; a fantasia se
sobreporia à realidade. Spielrein especula que, quando o bebê produz
seus primeiros balbucios, ele o faz por várias razões fisiológicas
relacionadas à respiração, tensão muscular; os produz devido ao fato de
que o balbuciar lhe dá prazer.
No segundo estágio, o mágico, a linguagem passaria a ter uma
significação adicional, pois passaria a evocar a realidade. Nessa fase, ao
contrário da anterior, estaria presente a ideia de um mundo externo,
diferenciado do eu, que poderia ser influenciado. No entanto, o
pensamento da criança ainda teria como traço central a onipotência.

65
Pluralismo em Filosofia e Psicanálise

Pensar em algo seria suficiente para que o pensado se realizasse e esse


seria sempre a expressão de um desejo. Dessa forma, a criança teria a
ilusão de que a linguagem é capaz de evocar, de forma mágica, a realidade
desejada.
Apenas no estágio social, a linguagem passaria a ter a função
genuína de comunicação com os outros seres humanos e as palavras
passariam a ser compreendidas como símbolos dos objetos. Seria nesse
estágio que se consolidaria a diferenciação entre eu e objeto. Dessa
forma, como comentam Santiago-Delefosse e Delefosse (2002), Spielrein
propõe a existência de duas funções — o discurso individual e o discurso
dirigido ao outro — e três estágios do desenvolvimento da linguagem —
o autístico, o mágico e o social. A primeira função estaria presente no
primeiro desses estágios e a segunda nos dois últimos.
Spielrein (1922) explica que os três estágios do desenvolvimento
da linguagem correspondem à sequência do desenvolvimento do
princípio de realidade, descrita por Freud em Formulações sobre os dois
princípios do acontecimento psíquico (1911). Os estágios autístico e
mágico corresponderiam à fase do princípio do prazer. Nessa, o desejo se
sobreporia à realidade, a fantasia seria mais importante que o fato e, a
onipotência do pensamento reinaria suprema. Aos poucos, o princípio
do prazer cederia espaço ao de realidade, de forma que o mundo externo
passaria a ser levado em consideração e se sobreporia à fantasia. Nesse
processo, a onipotência seria gradualmente abandonada. O estágio social
da linguagem corresponderia à etapa do desenvolvimento psíquico em
que o princípio de realidade predominaria.

3 O surgimento da linguagem verbal e as palavras papai e mamãe

Spielrein (1922) se coloca a questão sobre se foi a criança ou o


adulto quem inventou a linguagem. Sua resposta é que ela foi criada a

66
Linguagem e pensamento na obra de Sabina Spielrein

partir do subconsciente, o qual sempre nos leva de volta à experiência e


aos processos de pensamento infantis, os quais, por sua vez, remetem às
experiências de nossos ancestrais. Diz ela: “nós devemos manter em
mente que o ancestral dorme na criança e a criança no ancestral. Se o
adulto realmente inventou a linguagem, ele a criou, em suas origens, a
partir do estágio infantil de sua psique” (Spielrein, 1922, p.291). Dessa
forma, uma vez que a linguagem teria se originado a partir do
subconsciente, ela teria sido criada pelo adulto a partir de um modo de
funcionamento primitivo do psiquismo, o qual caracterizaria o
pensamento infantil e o pensamento de nossos ancestrais.
No texto Sobre o conteúdo psicológico de um caso de
esquizofrenia, de 1911, a partir da análise de um caso de esquizofrenia
paranoide, Spielrein (p. 213) defende que herdamos “a sedimentação das
vivências de nossos ancestrais”. Modos de pensamento muito antigos
influenciariam nossa consciência do presente, argumenta a autora. Essa
hipótese é desenvolvida em A destruição como origem do devir (1912b),
artigo no qual Spielrein propõe a existência duas “psiques”: a “psique do
eu” (Ichpsyche) e a “psique da espécie” (Artpsyche). A primeira conteria
os registros de experiências do nosso passado individual, enquanto a
segunda conteria sedimentos de experiências de inúmeras gerações4. A
autora sustenta que a assimilação inconsciente de eventos vivenciados
por muitas gerações se encaixaria na cadeia de pensamentos do presente,
ou seja, que as experiências conscientes seriam moldadas pela psique da
espécie.
Essas primeiras hipóteses sobre o funcionamento mental,
elaboradas em 1911 e 1912, são repensadas nas cartas que Spielrein escreve
a Jung em 1917, nas quais a autora elabora uma nova concepção sobre a
estrutura e o funcionamento mental. Na carta de 20 de dezembro de 1917,

4 Alguns atores (Skea, 2006; Van Waning 1992) consideram que, com o conceito de “psique da

espécie”, Spielrein antecipa o conceito junguiano de “inconsciente coletivo”.

67
Pluralismo em Filosofia e Psicanálise

ela diferencia entre o “consciente” e o “subconsciente”. Esse último, por


sua vez, é dividido em um “subconsciente pessoal” e um “subconsciente
da espécie”. O subconsciente da espécie conteria o material de origem
filogenética do psiquismo, pressuposto desde seus primeiros trabalhos
(Spielrein, 2014). A partir dessas hipóteses, é que é possível compreender
a afirmação de Spielrein, em seu texto de 1922 sobre a linguagem, de que
o subconsciente contém processos de pensamento infantis, os quais
remetem às experiências de nossos ancestrais.
Retornando ao texto A origem das palavras infantis papai e
mamãe, outra questão que Spielrein levanta é se a criança é um ser social
que possui a capacidade de se comunicar. A autora responde a essa
questão dizendo que, através da fala e da mímica em sua presença, os
adultos ajudam a criança a desenvolver os mecanismos da fala para os
quais ela está preparada por hereditariedade. Dessa forma, seria possível
dizer que a criança tem uma necessidade herdada de se comunicar, tem
uma necessidade herdada de linguagem, que a leva tanto a buscá-la, a
partir do contato com outras pessoas falantes, como a inventá-la.
Vidal (2001) argumenta que, com tal questionamento, Spielrein
se coloca a questão sobre que necessidades a criança busca satisfazer
quando fala. O mesmo autor esclarece que esse é o mesmo problema
funcional que Piaget confronta em A linguagem e o pensamento da
criança, de 1923. Para Vidal (2001), Spielrein adota uma perspectiva
funcional que se aproxima daquela do psicólogo suíço Édouard
Claparède (1873-1940), fundador do Instituto Jean-Jacques Rousseau.
Como esclarece Launer (2014), Édouard Claparède iniciou sua
carreira como cientista natural, tendo sido influenciado pelas ideias de
Darwin, e, posteriormente, voltou-se para a área da psicologia e da
educação. Ele lançou as bases de uma abordagem educacional,
essencialmente evolucionista, que ficou conhecida como
“funcionalismo”. Essa abordagem buscava compreender aspectos da

68
Linguagem e pensamento na obra de Sabina Spielrein

psicologia a partir do ponto de vista de seu papel na vida; de seu lugar


dentro do padrão geral de comportamento em determinado momento.
Launer (2014) comenta que Spielrein simpatizava com a abordagem de
Claparède e que seu trabalho, apresentado no congresso de Haia sobre a
origem da linguagem, evidencia que ela estava adotando uma visão muito
mais abrangente do campo do que seus outros colegas puramente
psicanalistas.
Spielrein (1922) argumenta que os cuidadores se adaptam
instintivamente à linguagem que a criança é capaz de produzir. Eles
encontram nas profundezas de sua mente, nos estágios primários de seu
desenvolvimento, material que permite falar com a criança de forma
inconsciente. Para exemplificar como a criança e o cuidador colaboram
na formação da linguagem, ela cita um exemplo fornecido por Wilhelm
Stern (1871-1938). Com oito meses, a filha desse pesquisador começou a
pronunciar espontaneamente o som labial “p”. Diante disso, os adultos
começaram a dizer para a criança “papa” e ela começou a repetir apenas
o som “p”. No entanto, em pouco tempo, a criança passou a pronunciar
espontaneamente “pa-pa-pa”, embora sem entender o significado do que
estava dizendo. Spielrein explica que esse aprendizado foi modelado a
partir do som “p” produzido espontaneamente. Contudo, a criança não
repetia “papa”, mas sim “pa-pa-pa”, porque restringir a duas sílabas não
seria apropriado ao estágio de seu desenvolvimento. Essas seriam apenas
sílabas balbuciadas, sem qualquer significação verbal 5.
Spielrein (1922) comenta que, segundo a opinião geral, as palavras
“papai” e mamãe” são as primeiras empregadas pela criança. Em algumas

5 Wharton (2005) afirma que, quando Spielrein fala da mãe que se adapta instintivamente aos

tipos de linguagem que a criança é capaz de produzir, não se pode deixar de pensar em um
contexto mais amplo da descrição do jogo da espátula, que Winnicott faz em seu texto de 1941,
intitulado The observation of infants in a set situation. A mesma autora considera que também
não se pode deixar de pensar no profundo significado de sua percepção do “gesto espontâneo
da criança” para o desenvolvimento da personalidade e da capacidade de se relacionar com os
outros, o que foi abordado pelo mesmo autor em Ego distortion in terms of true and false self,
de 1960.

69
Pluralismo em Filosofia e Psicanálise

línguas, nas palavras usadas para designar papai, o som labial “p” é
substituído por outros sons labiais ou dentais geneticamente
relacionados. Ela exemplifica comentando que, no russo, o termo usado
é “papa”, mesma palavra do francês e do alemão. Contudo, em outras
línguas eslavas, os termos são “tate”, “tiatia”, em grego, “baba”, ou seja,
nesses casos, outros sons labiais ou dentais são empregados. A autora
ressalta que, em todos os casos em que aparecem palavras um pouco mais
complicadas essas não são as primeiras usadas pela criança. Ela aponta
que a palavra “mama” também permanece mais ou menos a mesma em
todas as línguas: “mama”, em russo; “maman”, em francês; “mama” em
alemão; “maty”, ou “mamo”, em ucrânio; “mama”, em grego. O som labial
“m” não parece mudar, no entanto, o que ocorre, em algumas línguas, é a
inversão da ordem dos sons. Por exemplo, em vez de “mama”, o termo
empregado pode ser “amam”.
Embora reconheça que o material sobre o assunto seja esparso,
Spielrein (1922) retoma algumas teorias fisiológicas que poderiam lançar
luz sobre a questão de se, de fato, as palavras “papai” e “mamãe” são as
primeiras usadas pela criança e sobre o porquê desse fato. Ela se posiciona
diante de tais teorias e acrescenta algumas hipóteses próprias, sobretudo,
sobre os aspectos psicológicos envolvidos no surgimento da linguagem.
A primeira teoria discutida é a “teoria do menor esforço físico”,
que, segundo a autora, poderia ser remontada a Pierre Maupertuis (1698-
1759). Entre outros autores que usaram tal teoria, ela menciona a hipótese
de George-Louis Leclerc (1707-1788), o qual aplicou a regra do menor
esforço físico à articulação e argumentou que, das vogais, o “a”, e, das
consoantes, o “p”, o “b” e o “m”, são as letras mais fáceis de se pronunciar.
Por esse motivo, as primeiras palavras da criança conteriam sons tais
como “baba”, “mama”, “papa”. Nesse mesmo sentido, discorre Spielrein
(1922), alguns pesquisadores argumentam que, na aquisição da
linguagem, as crianças iniciam usando sons que requerem menor esforço
físico e progridem gradualmente para palavras mais difíceis. A criança

70
Linguagem e pensamento na obra de Sabina Spielrein

substitui o som que ela não pode ainda pronunciar por outro
intimamente relacionado a ele e que possa ser falado com menor esforço
físico. Essa mesma suposição é defendida por Hermann Gutzmann (1865-
1922), comenta a autora. Ela aponta que objeções muito bem
fundamentadas foram levantadas contra a hipótese do princípio de uma
sequência de acordo com o menor esforço físico. No entanto, diz
concordar com outra das suposições de Gutzmann: sua hipótese de que é
o ato de sugar que pavimenta o caminho para as primeiras palavras, papa,
mama, baba etc.
Em consonância com essa hipótese de Gutzmann, com a qual
Spielrein diz concordar, estaria a teoria defendida por Wilhelm Ament
(1876-1956). Esse autor substituiu a hipótese da sequência de acordo com
o menor esforço físico pela teoria da sequência de acordo com a
preferência física. De acordo com essa teoria, mesmo já sendo capaz de
pronunciar sons mais difíceis, a criança prefere substituí-los por sons
labiais ou dentais e tal preferência se deve ao fato de que, ao mamar, tais
sons foram especialmente cultivados. Spielrein (1922) aponta que, apesar
de sua relevância, a hipótese de Ament também é exclusivamente
fisiológica, uma vez que, em sua concepção, a preferência física
desempenha um grande papel na escolha dos sons das primeiras palavras
das crianças.
Após apresentar as teorias acima citadas, além de outras,
Spielrein (1922) conclui que é certo que os sons labiais e dentais são
preferidos nas primeiras palavras das crianças porque esses sons são
produzidos no ato de sugar. Contudo, diz ela, tais teorias não explicam
como, em crianças de todas as raças, os mesmos termos para papai e
mamãe, ou termos muito próximos, são encontrados, assim como não
explicam como esses se tornam as primeiras palavras das crianças. A
autora aponta que tais teorias não abordam os aspectos psicológicos do
surgimento da linguagem e que a contribuição que ela pode trazer diz
respeito a esse último aspecto. Assim, às hipóteses fisiológicas

71
Pluralismo em Filosofia e Psicanálise

reconhecidas como significativas para a compreensão do surgimento da


linguagem, a autora acrescenta sua hipótese da “preferência psicológica”.
Spielrein (1922) argumenta que a observação da maneira como a
criança pronuncia as palavras em questão, demonstra que, inicialmente,
ela não diz “mama” e “papa”, mas sim “mö-mö-mö” e “pö-pö-pö”, de
forma que o som da vogal é aproximadamente “ö” e o número de sílabas
é ilimitado. Ela conclui que o movimento da boca realizado pelo bebê ao
dizer “mö-mö-mö” está intimamente relacionado àqueles movimentos
do ato de sugar, de forma que é possível dizer que esse ato está presente
na produção de tais sons. A autora formula a conjectura, então, de que,
após se alimentar, o impulso nervoso necessário para a sucção não é
imediatamente paralisado. Tais movimentos continuam, o que tem como
consequência a produção da palavra “mö-mö-mö”.
Spielrein (1922) especula que produzir “mö-mö-mö” deve ser
extremamente prazeroso para o bebê por razões fisiológicas — uma vez
que tais movimentos são modelados pelo ato de sugar e, portanto,
facilmente produzidos — mas, principalmente, por razões psicológicas.
Esse último seria o fator central. Ao reproduzir o ato de sugar em seus
movimentos, o bebê reviveria as sensações agradáveis vivenciadas
durante a alimentação. A partir disso, ela conclui que “quando o bebê
primeiramente pronuncia “mö-mö-mö”, sons que estão ligados a certos
movimentos de sugar, ele também vivencia as sensações prazerosas da
sucção” (Spielrein, 1920, p, 297).
No entanto, não é necessário supor que haja imagens claras na
mente do bebê, enfatiza a autora. Tais imagens não precisariam ser as da
mãe ou do sugar em si, mas poderiam ser imagens vagas de calor, da
suavidade vivida no contato com o corpo da mãe, de plenitude etc.
Naturalmente, o bebê desejaria reviver tais sensações e, então,
instintivamente, executaria os movimentos da boca que produzem os
sons em questão. A conexão entre os sons “mö-mö” e as sensações

72
Linguagem e pensamento na obra de Sabina Spielrein

correspondentes se tornariam crescentemente mais íntimas e o bebê, a


partir de certo momento, passaria a produzir esses sons para evocar certo
grupo de sensações desejadas e familiares. Dessa forma, afirma a autora:
“porque certos sons são agora ligados a conteúdos psíquicos bem
específicos, a sensações, talvez mesmo a ideias, nós podemos agora falar
sobre palavras que indicam tais conteúdos ou mesmo os representam”
(Spielrein, 1920, p. 297).
Quanto à palavra “pö-pö”, Spielrein (1920) aponta que a mesma é
produzida em circunstâncias diferentes daquelas em que é produzido o
som “mö-mö”. Baseando-se na observação de sua filha, ela comenta que
a palavra “mama” era produzida quando a criança estava infeliz ou
desejava algo. Já a palavra “papa” era pronunciada em situações de
contentamento. A mesma observação foi descrita por Stern, Hermine
Hug-Hellmuth (1871-1924) e outros pesquisadores, pontua a autora.
Spielrein formula a hipótese de que tais sons não resultam da mesma
posição da boca, mas surgem em diferentes fases do sugar. O “mö-mö”
reproduziria o sugar em seu sentido verdadeiro, enquanto “pö-pö”, “bö-
bö” e outros sons similares corresponderiam mais ao momento em que a
criança satisfeita está brincando com o seio. Dessa forma, quando o bebê
não estivesse com fome, ele tenderia a repetir os sons “pö-pö” e similares.
Spielrein (1922) ressalta que seu objetivo não é considerar todas
as fontes possíveis a partir das quais surge a linguagem, nem defender
que apenas o sugar dá origem à fala da criança. O que ela diz querer
defender é que, na esmagadora maioria dos casos, as primeiras palavras
das crianças consistem em sons labiais ou dentais, o que sugere uma
íntima conexão com o sugar.
No estágio autístico do desenvolvimento da linguagem, quando a
criança ainda não conhecesse um mundo separado dela mesmo, a palavra
visaria apenas à obtenção de satisfação. Assim, as primeiras palavras
empregadas pelas crianças seriam “autísticas”, ou seja, existiriam por si

73
Pluralismo em Filosofia e Psicanálise

mesmas. Com o desenvolvimento, o infante deveria se tornar consciente


de que há uma diferença essencial entre a “gratificação aparente”, que ele
obtinha dizendo as primeiras palavras, e a “gratificação real” obtida no
sugar (Spielrein, 1922).
Spielrein (1922) levanta a hipótese de que o primeiro fator que
contribuiria para essa diferenciação entre o eu e o mundo externo seria a
frustração, ou seja, o não apaziguamento da fome pela produção do
movimento de sugar. Remetendo-se a Gabriel Compayre (1843-1913), a
autora considera um segundo fator que poderia contribuir para tal
processo: o próprio contato com o seio da mãe. Ela levanta a hipótese de
que talvez seja pressionando o seio da mãe em sua boca que a criança
adquira a primeira noção confusa de exterioridade. A resistência
vivenciada em tal contato faria com que o bebê fosse percebendo-se
como separado do objeto. Ela argumenta:

[...] como nenhum outro, o ato de sugar é fundamental para as


experiências mais importantes da vida da criança: aqui ela começa a
conhecer a felicidade de ter a fome satisfeita, mas ela também aprende
que essa felicidade tem um fim e tem que ser alcançada novamente. A
criança experiência, pela primeira vez, o fato de que há um mundo fora
dela. Seu contato com o seio da mãe desempenha um papel nisso
oferecendo alguma resistência aos movimentos da boca da criança.
Finalmente, a criança aprende que há um refúgio no mundo externo, o
qual é desejado não apenas porque lá sua fome é satisfeita, mas porque
ele é quente e macio e o protege de todos os perigos [...] Aqui a criança
aprende, pela primeira vez, a amar, no sentido mais amplo da palavra,
ou seja, a experimentar o contato com outra pessoa,
independentemente da alimentação, como a maior felicidade
(Spielrein, 1922, p. 304).

No entanto, inicialmente, apesar de já possuir certa noção da


diferenciação entre ela e o mundo externo, a criança seria levada a crer
que é possível evocar a realidade atual através de uma ação aparente, tal
como pronunciar as palavras “mö-mö” e “pö-pö”. Isso seria propiciado
pelo fato de que, ao ouvir “mö-mö”, o cuidador compreenderia

74
Linguagem e pensamento na obra de Sabina Spielrein

instintivamente o desejo do infante e buscaria satisfazê-lo. Desse modo,


nessa fase, seria “suficiente pronunciar a palavra “mömö” para produzir o
conjunto de sensações correspondentes ao que é agora reconhecido como
mundo externo e nem sempre presente” (Spielrein, 1922, p. 299). Essa
seria a característica central do segundo estágio do desenvolvimento, o
“estágio mágico”.
A autora argumenta que, no estágio autístico, quando o bebê
pronuncia “mö-mö”, ele o faz inicialmente não porque essa palavra o
lembre de uma ação ligada a sensações prazerosas. Em sua origem, diz
ela, “a palavra não significava uma ação, ela era a ação em si mesma. É a
esse fato que a crença na mágica retorna: a palavra pode substituir uma
ação porque a primeira palavra era, originalmente, uma ação” (Spielrein,
1920, p. 298).
Spielrein (1922) considera que a emergência da palavra “mö-mö”,
já no estágio autístico, lança luz sobre a origem da mágica, ou seja, da
crença na onipotência das palavras e, especialmente, de um nome.
Originalmente, falar ou pensar em uma palavra daria origem às mesmas
sensações que a ação em si. Quando, com o desenvolvimento psíquico, a
ideia de um objeto — a mãe — se tornasse diferenciada, a partir de um
grupo mal definido de sensações, a conexão original entre palavra e ação
e o então diferenciado objeto “ma-ma” persistiria. Pronunciando o nome
seria possível realmente evocar certo grupo de sensações que,
posteriormente, passariam a ser representados por uma pessoa. Se o
nome fosse alterado ou danificado, o conteúdo psíquico a ele conectado
(no caso, uma pessoa) também o seria. Por isso, na mágica, o nome
representa a própria pessoa e está presente a crença de que, o que quer
que aconteça ao nome, acontecerá também à pessoa, explica a autora.
Com isso, Spielrein acrescenta à teoria apresentada por Freud em
Totem e Tabu (1913) sobre o pensamento mágico, uma hipótese sobre
como a emergência da linguagem assentaria as bases do mesmo. O fato

75
Pluralismo em Filosofia e Psicanálise

das palavras, inicialmente, consistirem em ações conduziria à fantasia de


uma onipotência das palavras, a qual estaria presente no estágio mágico
do desenvolvimento da linguagem. Em tal estágio, haveria a ilusão de que
as palavras podem evocar magicamente os objetos, o que estaria na base
da crença de que a alteração na palavra pronunciada é capaz de produzir
uma alteração no objeto representado por ela.
Cromberg (2006) observa que Spielrein se baseia nas hipóteses
de Freud sobre a passagem do princípio do prazer ao de realidade —
apresentadas em “Formulações sobre os dois princípios do
acontecimento psíquico”, e, especialmente, em “Totem e Tabu” — mas
vai além. A autora comenta que, se Freud termina esse último texto, após
falar do assassinato do pai primordial e da sua proibição geradora de
cultura, dizendo “no início era o ato” — em substituição a formulação
religiosa “no início era o Verbo” — Spielrein dirá, à sua maneira, “no
início do verbo era a ação”. Assim, ela vai além de Freud, a partir do
próprio Freud, defendendo que há um longo caminho positivo antes que
a linguagem substitua a coisa. Caminho sensório-motor e perceptivo,
marcado pela positividade do corpo (Cromberg, 2006).
Spielrein (1922) argumenta que a experiência original “palavra-
ação”, que faz o objeto desejado existir simplesmente desejando, não é
destruída rapidamente. Ela cita como exemplo o uso que sua filha Renata
fazia da palavra “abrir”. Com um ano e meio de idade, a menina obtinha
grande prazer ao abrir e fechar janelas, portas e outros objetos. Quando
executava tal ação, a mãe dizia “abre-fecha”. Depois disso, ela passou a
gritar muitas vezes “abre” em situações não apropriadas, nas quais
simplesmente algo era desejado. Spielrein especula que, para a criança,
dizer tal palavra significava um desejo de reviver a sensação prazerosa,
anteriormente vivenciada ao abrir e fechar os objetos. Nesse caso, falar
“abre” seria o mesmo que dizer: “deixe essa coisa boa acontecer agora”. Ela
observa que a palavra “abre” não é derivada diretamente de uma ação,
como o é a palavra “mö-mö”, mas a experiência original “palavra-ação”, de

76
Linguagem e pensamento na obra de Sabina Spielrein

certa forma, continuava influenciando o uso que a menina fazia da


linguagem.
Spielrein (1922) comenta que Piaget, em uma de suas
conferências, argumentou que, em sua atitude em relação à realidade, a
criança progride do absoluto ao relativo, o que, segundo ela, corresponde
à experiência psicanalítica 6. A dúvida, diz ela, se desenvolve tardiamente.
De início, quando a criança coloca uma questão, ela o faz para obter a
resposta desejada e não para, de fato, esclarecer algo. Apoiando-se nas
observações de Stern, a autora afirma que as primeiras sentenças da
criança são afetivas afirmativas, ou interjeicionais. Aos poucos, as
sentenças interjeicionais dos primeiros tempos tornam-se volicionais, ou
seja, passam a expressar desejos. Ao mesmo tempo, surgem as questões
“o que?”, “onde?” e questões confirmativas, as quais, muitas vezes, são
respondidas pelas próprias crianças.
A autora explica que, com a pergunta “o que é isso?”, inicialmente,
a criança quer conhecer o nome da coisa que, para ela, representa a coisa
em si. O surgimento da questão “onde?” consistiria em um grande
avanço, pois iniciaria o estágio ativo, no qual a criança se daria conta de
que o objeto não está sempre disponível; se daria conta de que é
necessário saber como encontrá-lo. De início, a procura por algo seria
apenas “aparente” porque a ideia seria superior à realidade
(Spielrein,1922).

6Spielrein se refere ao curso Pensamento autístico, ministrado por Piaget entre 1921 e 1922, no
Laboratório Psicológico de Genebra. Como comentamos anteriormente, o artigo de Spielrein
A gênese das palavras infantis papai e mamãe toma como ponto de partida a conferência que
ela realizara, em 1920, no Congresso Psicanalítico Internacional de Haia. Vidal (2001) esclarece
que esta conferência ocorreu antes de Spielrein encontrar Piaget e antes desse começar a
publicar suas pesquisas sobre a linguagem e o raciocínio da criança. No entanto, o texto de
Spielrein só é publicado em 1922 e, enquanto isso, Spielrein assistiu ao curso de Piaget sobre o
pensamento autístico, no qual ele abordou as diferentes atitudes das crianças em relação à
realidade, como ela relata. Tendo isso em vista, Vidal (2001) considera que o trabalho de Piaget
deu suporte às hipóteses e observações de Spielrein.

77
Pluralismo em Filosofia e Psicanálise

Como exemplo, Spielrein (1922) cita o fato de que, entre dois anos
e três anos e meio, diante de questões sobre “onde está um objeto”, sua
filha respondia “aqui”, sem se preocupar com a correspondência de sua
resposta com a realidade. Nessa fase, o mundo não seria para a criança
como ele é, mas como ele deve ser. Muitas vezes sentenças interrogativas
também são usadas pelas crianças como se fossem afirmativas. Por
exemplo, a pergunta “Você quer um biscoito?” pode ser usada para
expressar o desejo por um biscoito, não significando, portanto, realmente
uma interrogação, esclarece a autora.
Da mesma forma, quando surgem sentenças condicionais, essas
contêm para a criança um significado apropriado à sua fase de
desenvolvimento psíquico, explica Spielrein. Ela cita novamente uma fala
de sua filha como ilustração. Com dois anos e oito meses, ao brincar com
dois carros, Renata afirmara: “nós podemos dirigir ambos os carros agora,
se nós levarmos ambos os carros conosco”. Spielrein explica que a
segunda sentença, iniciada com “se”, na verdade, não é um condicional,
pois não é seguida por uma sentença adicional que dê suporte ao “se”. O
que a criança quer dizer é “agora quero dirigir ambos os carros” ou
simplesmente “agora ambos os carros estão indo”. A autora especula que,
possivelmente, o “se” signifique, nesse caso, “então” ou algo similar.
Para Spielrein (1922), a linguagem passaria a ser realmente
destinada a outros seres humanos no estágio social da linguagem, o qual
emergiria quando a distinção entre fantasia e realidade fosse consolidada
de maneira satisfatória e quando as palavras passassem a ter um
significado facultativo e não um significado imposto. Em suas palavras:

Apenas quando a realidade é conhecida ao lado da fantasia, quando os


outros semelhantes são reconhecidos ao lado de nós mesmos e quando
as palavras não contêm um significado imposto, mas um significado
facultativo é que emerge o que nós adultos geralmente entendemos
como linguagem. Esse é o terceiro estágio, o estágio social da linguagem
destinada aos outros seres humanos (spielrein, 1922, p. 301-302).

78
Linguagem e pensamento na obra de Sabina Spielrein

Para Spielrein (1922), como vimos, apenas vagarosamente, a


criança passaria a esboçar uma linha suficientemente clara entre ela e o
mundo externo, o que lhe permitiria enxergar-se do ponto de vista de
outro ser humano. A autora ressalta que nem todas as pessoas adquirem
completamente essa capacidade e que nós aprendemos, aos poucos, a
restringir nossos desejos e a agregar significados facultativos às palavras.
Com a consciência de nossa própria inadequação e dependência do
mundo externo, surgiria a necessidade de manter o apoio de nossos
próximos para se comunicar, sentir-se compreendido e, finalmente,
compreender. Assim, a linguagem ingressaria no estágio social.
Como comenta Vidal (2001), as observações de Spielrein sobre a
gênese das palavras “papa” e “mama” demonstram que expressões para as
quais os adultos dão um significado conceitual têm, para a jovem criança,
um sentido afetivo e quase mágico que precisa ser estudado enquanto tal.
Em seu comentário sobre o texto de Spilrein de 1922 que estamos
analisando, Barbara Wharton (2003) chama a atenção para o fato de que
Spielrein antecipou a questão da importância da relação da criança com
o seio, a qual seria, posteriormente, abordada por Melanie Klein, em seu
trabalho sobre o desmame, de 1936. Richebächer (2005) também
argumenta que Spielrein foi a primeira analista a descrever e investigar o
significado do ato de sugar como uma experiência fundamental na vida
da criança e que ela antecipou considerações sobre o “seio bom” e o “seio
mau”, que Melanie Klein tematizaria apenas a partir de 1936. A autora
observa que, nesse trabalho, Melanie Klein não menciona Spielrein,
embora muito provavelmente conhecesse suas ideias 7. A autora aponta
também que, em uma nota do texto “Para uma análise precoce”, de 1923,
Melanie Klein faz menção às “interessantes explicações” de Spielrein
sobre a importância dos atos orais para o desenvolvimento da linguagem

7Ambas estavam presentes no VI Congresso Internacional de Psicanálise, de 1920, onde


Spielrein apresentou a conferência O surgimento e o desenvolvimento da fala articulada,
mencionado acima (Richerbächer, 2005).

79
Pluralismo em Filosofia e Psicanálise

infantil e suas especificidades. Outros autores (Van Waning, 1992;


Cromberg, 2006; Launer, 2014; Noth, 2015; Kelcourse, 2015) também
apontam essa antecipação de ideias que viriam a ser desenvolvidas por
Melanie Klein.
Segundo Spielrein (1922), seria graças à palavra falada e
“socializada” que o pensamento se tornaria lógico, adaptado às demandas
da realidade. Como esclarecem Santiago-Delefosse e Delefosse (2002), a
fala tornaria o pensamento progressivamente lógico, o que permitiria a
adaptação à realidade. No entanto, mesmo com o desenvolvimento da
linguagem e o predomínio da linguagem socializada, os três estágios da
linguagem permaneceriam intimamente conectados. A linguagem social
não suprimiria as demais.
No texto Algumas analogias entre o pensamento da criança, o do
afásico e o pensamento subconsciente, de 1923, Spielrein argumenta que
as formas primitivas de linguagem permanecem no subconsciente e
voltam a prevalecer em certos fenômenos psíquicos. Vejamos algumas
das hipóteses apresentadas nesse texto.

4 A linguagem primitiva e o subconsciente

Em Algumas analogias entre o pensamento infantil, o do afásico


e o pensamento subconsciente (1923b) 8, Spielrein argumenta que o
pensamento não existe para nós de outra forma que em sua expressão e
que a linguagem que exprime o pensamento não deve, necessariamente,
ser uma linguagem de palavras, pois o mesmo pensamento pode ser
traduzido em melodia, em gestos, em imagens, etc. Assim, retomando as
ideias apresentadas anteriormente, ela afirma que a linguagem que
exprime nossos pensamentos pode ser destinada a nós mesmos ou pode

8 Esse texto foi apresentado em janeiro de 1923 à Sociedade Psicanalítica de Zurich e, em março

de 1923, ao grupo psicanalítico de Genebra. Foi publicado em francês, no mesmo ano, no


periódico Archives de Psychologie.

80
Linguagem e pensamento na obra de Sabina Spielrein

ser destinada aos outros. No entanto, diz ela: “de uma maneira ou de
outra, é sempre a linguagem que representa para nós o pensamento em
si; é de acordo com sua expressão em uma linguagem qualquer que nós
concluímos sobre os mecanismos do pensamento” (Spielrein, 1923b, p.
315).
Nesse texto, principalmente a partir da análise da linguagem
afásica, as características do pensamento primitivo e a relação existente
entre a linguagem e a inteligência são abordadas. Com isso, a autora
complementa a teoria apresentada em seus textos precedentes.
Apoiando-se nas hipóteses que Jung apresentara em
Metamorfoses e símbolos da libido, publicado em 1912, Spielrein defende
a existência de dois tipos de pensamentos: um direcionado e outro não
direcionado. O primeiro corresponderia ao nosso pensamento
consciente, que seria lógico, adaptado à realidade e no qual, portanto,
predominaria a linguagem verbal. O segundo seria um pensamento
subconsciente, simbólico, não adaptado à realidade. Spielrein argumenta
que o pensamento subconsciente é, principalmente, um pensamento
cinestésico-visual, orgânico, alucinatório. Dessa maneira, o pensamento
não direcionado, subconsciente, teria conservado características
primitivas, ou seja, as características do pensamento infantil. Nele, a
realidade seria transformada segundo os desejos9.

9 Kerr (1994) aponta que Freud tinha algumas objeções à hipótese de Jung sobre os

pensamentos direcionado e não direcionado. Ele não concordava com o contraste apresentado
entre os dois tipos de pensamento, o verbal e o simbólico, e escreveu seu próprio trabalho sobre
o tema, Formulações sobre os dois princípios do funcionamento mental, para propor uma visão
alternativa sobre os modos de funcionamento psíquico. Spielrein inclui, em sua teoria, as
hipóteses a esse respeito de ambos os autores. Como aponta Marchese (2015), após a ruptura
entre Freud e Jung, Spielrein manteve contato com ambos e até tentou reconciliá-los. Skea
(2006) argumenta que, diante da ruptura entre Freud e Jung, Sabina Spielrein se recusou a
tomar partido de qualquer um dos lados e continuou insistindo em sua admiração por ambos
e manifestando sua esperança em uma reconciliação. Segundo ele, isso fez com que ela fosse
vista como freudiana, pelos junguianos, e como junguiana, pelos freudianos, o que contribuiu
para que ela despertasse rejeição em ambos os grupos. Nas cartas que Spielrein escreve a Jung
entre os anos de 1917 e 1918, fica clara sua tentativa de conciliação da teoria dos dois autores.

81
Pluralismo em Filosofia e Psicanálise

Spielrein (1923b) sustenta que todo pensamento consciente


(direcionado) é acompanhado por um pensamento subconsciente (não
direcionado), o qual traduz o conteúdo do primeiro em uma linguagem
imagética primitiva. As imagens subconscientes cinstésico-visuais
forneceriam a força vital ao nosso pensamento consciente.
Essas hipóteses, que Spielrein apresente em 1923, já tinham
começado a ser gestadas em seus primeiros textos. Em Sobre o conteúdo
psicológico de um caso de esquizofrenia (1911, p. 213), ela argumentara
que:

O ser humano tem duas vivências, uma consciente e uma inconsciente.


A vivência inconsciente tem a importante função da criação da
tonalidade afetiva... Somente com a união do inconsciente à vivência
consciente essa última se torna uma experiência real. O inconsciente
acrescenta a ela todo o material de memória constelado
correspondente 10.

Para Spielrein (1923b), portanto, mesmo diante do predomínio do


pensamento direcionado, da linguagem verbal, as formas mais primitivas
de pensamento e de linguagem permaneceriam no subconsciente,
conectadas ao consciente. Como esclarece Cromberg (2006), a
linguagem social não suprimiria as formas mais primitivas de linguagem.
Essas se tornariam menos conscientes, no entanto, continuariam
participando da linguagem social.
Spielrein (1923b) argumenta que as formas primitivas de
funcionamento do pensamento e da linguagem voltam a prevalecer em
alguns tipos de funcionamento psíquico, como nas afasias. Ela recorre à
teoria do neurologista inglês Hughlings Jackson (1835-1941), assim como
de outros pesquisadores que formularam teorias semelhantes, para
sustentar essa hipótese.

10 Em seus dois primeiros textos publicados, Spielrein usa o termo “inconsciente”

(Unbewussten). Nos textos seguintes, ela passa a usar “subconsciente” (Unterbewussten).

82
Linguagem e pensamento na obra de Sabina Spielrein

Hughlings Jackson se opôs às teorias localizacionistas sobre a


linguagem que predominavam na época. De acordo com essas teorias, os
diversos segmentos dos hemisférios cerebrais seriam a sede de diferentes
funções da linguagem, as quais poderiam ter suas localizações precisas
estabelecidas a partir da correlação entre sintomas resultantes de lesões
cerebrais e a localização de tais lesões, ou seja, a partir do método clínico-
patológico. Essa visão passou a predominar, em grande parte, como
consequência das descobertas de Paul Broca (1824-1880) e de Carl
Wernicke (1848-1905) sobre a localização das funções motoras e
sensoriais da linguagem no córtex (Young, 1990).
Segundo as concepções localizacionistas da linguagem, haveria
no cérebro um centro sensorial responsável pela função sensorial da
linguagem; um centro motor, responsável pela função motora, e uma área
associativa que conectaria os dois centros. Os sintomas afásicos podiam
ser explicados diretamente a partir da localização da lesão cerebral, ou
seja, os sintomas resultariam da perda da função localizada na área
cerebral afetada. Uma lesão no centro sensorial produziria uma afasia
sensorial; uma lesão no centro motor produziria uma afasia motora, e
assim por diante (Caropreso, 2008).
Spielrein (1923b) aponta que, subjacente a essa concepção
localizacionista, estava a hipótese de que a perda da linguagem, nas
afasias, seria independente da inteligência, de modo que essa poderia
permanecer intacta, embora o doente perdesse a capacidade de exprimi-
la. Na afasia motora, por exemplo, o paciente poderia ter preservado a
ideia da palavra, a capacidade de ouvi-la, e não ter a imagem de sua
expressão motora. A autora discorda dessas concepções e se aproxima de
autores que interpretaram o funcionamento normal e patológico da
linguagem de forma diversa. Ela comenta que Hughlings Jackson
provavelmente foi o primeiro a propor uma explicação totalmente
diferente para o fenômeno da afasia.

83
Pluralismo em Filosofia e Psicanálise

Jackson (1884) aplicou a doutrina da evolução de Herbert Spencer


(1820-1903) ao sistema nervoso e propôs que os distúrbios nervosos
consistiriam em reversões do processo de evolução pelo qual o sistema
nervoso teria passado ao longo da evolução da espécie. Tais distúrbios
consistiriam, portanto, em dissoluções das funções constituídas ao longo
desse processo.
Evolução significa, para Jackson, a passagem do controle das
funções nervosas dos centros inferiores — os quais seriam mais
organizados, mais simples e mais automáticos — para os centros
superiores — que seriam menos organizados, mais complexos e menos
automáticos 11. A dissolução, sendo o reverso da evolução, seria um
processo que se encaminharia no sentido do menos organizado, mais
complexo e menos automático para o mais organizado, mais simples e
mais automático. As disposições nervosas superiores teriam evoluído a
partir das intermediárias, essas, a partir das inferiores e, essas, por sua
vez, a partir da periferia sensório-motora. Apesar disto, a partir de certo
momento, as disposições superiores passariam a controlar as inferiores,
assim como um governo evoluído a partir de uma nação passa a controlá-
la, exemplifica Jackson (1884). Assim, se o processo de evolução ocorreu
da maneira acima descrita, o processo reverso, de dissolução, não seria
apenas uma retirada do funcionamento superior, mas seria também uma
liberação do inferior, uma retomada de um modo mais primitivo de
funcionamento. Nos distúrbios nervosos, ocorreria a liberação de um
nível de funcionamento inferior devido à perturbação e, portanto, à
perda de controle, dos processos superiores em relação aos inferiores.

11 Não há inconsistência, para Jackson, em falar de centros como sendo, ao mesmo tempo, mais

complexos e menos organizados. Um centro constituído apenas por dois elementos sensoriais
e dois motores, no qual esses elementos estejam bem associados, de forma que a corrente
excitatória flua facilmente dos primeiros para os segundos, embora muito simples, é altamente
organizado. Por outro lado, um centro constituído por quatro elementos sensoriais e quatro
motores, no qual a articulação entre os elementos sensoriais e motores seja imperfeita e
dificulte a passagem da corrente nervosa, embora seja um centro mais complexo que o anterior,
não pode ser considerado mais organizado, explica Jackson.

84
Linguagem e pensamento na obra de Sabina Spielrein

Como diz Jackson (1884, p. 46): “a perda do menos organizado, mais


complexo e mais voluntário, implica a retenção do mais organizado,
menos complexo e mais automático”. Assim, as perturbações da
linguagem, decorrentes de lesões cerebrais, resultariam de um processo
de dissolução funcional, no qual formas primitivas de funcionamento da
linguagem seriam retomadas 12.
Spielrein (1923b) diz concordar com as concepções de Jackson. Ela
enfatiza a constatação desse autor de que, nas afasias, o doente muitas
vezes perde a linguagem intelectual, mais voluntária, e preserva a
linguagem emocional, mais automática. Por exemplo, o paciente perde a
capacidade de falar e sua mímica é muito simples, no entanto, ele sorri,
varia o tom de voz, gesticula, e pode até ser capaz de cantar. Essa
constatação apoia suas hipóteses sobre o processo de evolução da
linguagem, formuladas em suas publicações precedentes, assim como
indica que a patologia consiste em uma reversão desse processo
evolutivo.
Após descrever uma série de manifestações de sintomas afásicos,
Spielrein (1923b) argumenta, então, que, como demonstrou Jackson, a
afasia apresenta um fenômeno de involução no domínio da inteligência.
Um dos exemplos utilizados para apoiar essa hipótese é o de um caso
descrito por François Naville (1883-1968). O paciente, portador de afasia
motora, era capaz de indicar com sua mão o lugar da sua cabeça em que
deveria estar localizada sua lesão cerebral. Quando melhorou e voltou a
conseguir se expressar verbalmente, ele relatou que preservou sua
vontade, suas concepções, a memória exata das coisas, assim como
conservou o mecanismo motor da linguagem. O que ele perdeu, segundo
seu próprio relato, foi a aderência da ideia à palavra; perdeu a capacidade

12 No texto Sobre a concepção das afasias (1891), Freud faz uma análise crítica das teorias
localizacionistas sobre as afasias e formula uma teoria sobre o funcionamento normal da
linguagem e sobre as afasias, apoiando-se nas hipóteses de Hughling Jackson. No entanto,
Spielrein não menciona, em seu texto, a publicação de Freud.

85
Pluralismo em Filosofia e Psicanálise

de empregar a palavra como símbolo do objeto. Para Spielrein, esse caso


corrobora suas hipóteses sobre o desenvolvimento da linguagem. Após
comentar esse exemplo, ela argumenta que:

A palavra, como símbolo, principalmente como símbolo de um objeto,


é uma aquisição que a criança, como o primitivo, deve fazer durante o
seu desenvolvimento. As primeiras palavras são fenômenos reflexos ou
onomatopeicos. A incapacidade de se servir de símbolos verbais é,
portanto, uma falha de uma faculdade da inteligência (Spielrein, 1923b,
p. 317).

A partir da análise de desenhos produzidos por pacientes


portadores de afasia, Spielrein (1923b) argumenta que, em tal patologia,
o desenho apresenta um processo regressivo, que retoma formas mais
primitivas de pensamento, assim como ocorre com a fala. Esse fato
também apoiaria a hipótese de que a linguagem não é independente da
inteligência e de que, portanto, nas afasias, a perturbação da linguagem
expressa uma regressão da inteligência.
A autora sustenta, então, que, na criança, como no afásico, a
perturbação das palavras não é uma falha isolada, independente da
inteligência, e que as mesmas particularidades estão presentes em
ambos. Para ela, assim como para Jackson, as afasias consistiriam em um
processo de dissolução do funcionamento da linguagem e da inteligência,
no qual aquisições mais recentes seriam perturbadas e dariam lugar a
modos de funcionamento mais primitivos. Esse mesmo processo
regressivo se manifestaria em outros fenômenos, tais como os sonhos, os
fenômenos hipnagógicos e a esquizofrenia.

5 Considerações finais

Para Spielrein, a linguagem teria sido criada a partir do


subconsciente, o qual remeteria ao pensamento infantil e às experiências
de nossos ancestrais. No aprendizado da linguagem, os adultos

86
Linguagem e pensamento na obra de Sabina Spielrein

ajudariam a criança a desenvolver os mecanismos da fala para os quais ela


estaria preparada hereditariamente. A linguagem verbal seria precedida
por outras formas de linguagem e passaria a predominar, a partir de certo
momento, mantendo as demais formas de linguagem a ela subordinadas.
Em sua teoria sobre o surgimento das primeiras palavras,
Spielrein se baseia em algumas hipóteses fisiológicas, mais
especificamente na teoria da preferência fisiológica, mas acrescenta suas
próprias concepções sobre os aspectos psicológicos envolvidos em tal
processo. A autora argumenta que as primeiras palavras — que consistem
em ações — se originam a partir do ato de sugar e são reproduzidas
unicamente com o propósito de obter prazer. Nesse estágio inicial
autístico, não haveria a diferenciação entre o eu e o mundo externo e a
linguagem existiria por si só.
Com a descoberta da diferença entre a satisfação verdadeira, por
meio do sugar, e a satisfação aparente, através da fala, e com o surgimento
da percepção vaga de que existe um mundo externo a ser conquistado, a
criança ingressaria no estágio mágico. Nesse, estaria presente a crença de
que o desejado pode ser evocado a partir da produção de uma palavra-
ação. A fantasia ainda se sobreporia à realidade e o pensamento seria
marcado pela supervalorização do desejo e pela sensação de onipotência.
Os dois estágios iniciais do desenvolvimento da linguagem
corresponderiam à fase do princípio do prazer descrita por Freud e o
estágio seguinte, o social, corresponderia à fase do princípio de realidade.
Esse último estágio da linguagem seria alcançado quando se
consolidasse, de forma razoável, a diferenciação entre eu e mundo
externo e surgisse a consciência do outro como semelhante e do
significado facultativo das palavras. No estágio social, a linguagem,
predominantemente verbal, passaria a ser, de fato, destinada a outros
seres humanos e a adaptação à realidade se tornaria possível.

87
Pluralismo em Filosofia e Psicanálise

Em Algumas analogias entre o pensamento infantil, o do afásico


e o pensamento subconsciente (1923b), Spielrein argumenta que o
pensamento só existe para nós em sua expressão através de uma
linguagem e que essa não é independente da inteligência. Para ela, as
formas primárias de funcionamento do pensamento e da linguagem não
seriam suprimidas com a emergência da linguagem social, que
expressaria o pensamento direcionado. Tais modos de funcionamento
primitivos permaneceriam no subconsciente, cujo pensamento seria
essencialmente cinestésico-visual e alucinatório. Apoiando-se,
principalmente, nas hipóteses de Hughlings Jackson, Spielrein sustenta
que, nas afasias, há um resgate de modos primitivos de funcionamento
da linguagem, o que explica a similaridade entre as características da
linguagem afásica e aquelas da linguagem infantil. Esse mesmo processo
involutivo estaria presente em outros fenômenos psíquicos normais e
patológicos.
Spielrein formulou uma teoria original sobre a origem e o
funcionamento da linguagem e do pensamento. Suas formulações
teóricas elucidam os aspectos psicológicos envolvidos no surgimento da
linguagem, os quais eram negligenciados pelas teorias vigentes, que
enfatizavam os aspectos fisiológicos de tal processo. Com suas hipóteses
sobre as fases do desenvolvimento da linguagem, ela esclarece de que
maneira o desenvolvimento da linguagem acompanha e contribui para a
transição do princípio do prazer ao princípio de realidade. Sua teoria
auxilia a compreensão das patologias da linguagem, assim como de
outros fenômenos regressivos, tais como os estados hipnagógicos, os
sonhos e a esquizofrenia.
Ao vincular o conhecimento proveniente da fisiologia, da
linguística e da neurologia às hipóteses psicanalíticas e às suas próprias
observações, Spielrein adota uma perspectiva inovadora no âmbito da
psicanálise. A originalidade e a riqueza de sua teoria merecem um maior

88
Linguagem e pensamento na obra de Sabina Spielrein

destaque e reconhecimento na história da psicanálise, em especial na


história da psicanálise infantil.

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91
Pluralismo em Filosofia e Psicanálise

92
Da ontologia merleau-pontyana ao campo
psicanalítico: uma discussão sobre as
sínteses passivas na transferência
Josiane Cristina Bocchi 1 & Samuel Raymundo de Sousa 2
DOI: https://doi.org/10.58942/eqs.79.04

1 Introdução

Sabemos que a modalidade primordial de aquisição de novos


sentidos no tratamento psicanalítico não é exatamente o insight, um
acontecimento que nos chega através de uma ideia muito vívida, como
um lampejo cognitivo. Este é um dos modos de apreensão da apercepção,
mas não é o mais frequente no trabalho clínico. As ressignificações
advindas a partir de uma análise não têm a forma de uma ruptura,
tampouco derivam de uma progressão do trabalho de pensamento que
vai se complexificando. Pelo contrário, as ressignificações no tratamento
psicanalítico têm como condição a abertura do sujeito à experiência
direta do processo de análise, qual seja, aquele que concerne ao âmbito
das vivências intersubjetivas, interpessoais e afetivas da relação
terapêutica.
O método psicanalítico da associação livre, que dá acesso às
representações inconscientes em análise, é pensado, neste trabalho, de
forma correlativa às vicissitudes do uso da epochè, proposta por Husserl

1 Doutora em Filosofia. Professora do Departamento de Psicologia da Faculdade de Ciências e


do Programa de Pós-Graduação em Educação Sexual da Universidade Estadual Paulista “Júlio
de Mesquita Filho” – UNESP-Bauru. E-mail: josiane.bochi@unesp.br
2 Bolsista CNPq (PIBIC). UNESP-Bauru. E-mail: samuel.raymundo@unesp.br
Pluralismo em Filosofia e Psicanálise

na fenomenologia, e aplicada ao primado da percepção por Merleau-


Ponty. Guardadas as distinções epistêmicas, a associação livre freudiana
incorre em destinações comuns às do retorno ao nível pré-temático da
experiência perceptiva, sendo esta última uma via imersiva pela qual uma
intencionalidade operante age e é agida no campo da relação
transferencial. Assim, tendo como campo primordial o problema da
relação analítica e sua natureza clínica, este trabalho se propõe a discutir
como se dá a passagem de um estado psíquico ao outro, e a permanência
dessa mudança no tempo; para tanto, recorremos ao contexto das
investigações de Merleau-Ponty sobre em torno da corporeidade e
temporalidade.
Mas como pensar essa estrutura de trocas intersubjetivas, através
da qual o sujeito e uma intencionalidade originária agem e sofrem ações
na esfera primária da vida reflexiva? Ao discutir o perspectivismo da
percepção, Merleau-Ponty afirma que abertura do “Ser perspectivo” ao
que não é ele, justamente, confere um índice de realidade ao percebido.
É uma abertura ontológica que reassegura ao percebido que ele seja uma
coisa e que possa comunicar-se (agir) com o mundo real: “torna o
percebido real e a percepção uma abertura ao que não é ela” (Moura, 2018,
p. 53).
Em diferentes momentos da produção merleau-pontyana, ele
discute os casos da patologia, como a dor no membro fantasma, a afonia
de Elizabeth (proibida de ver seu namorado), o caso do marido que
esquece um livro na gaveta após a partida da sua esposa. Nestas situações,
ocorre uma reestruturação do comportamento diante de mudanças no
mundo vivido (interdições, separações, perdas). Nestes casos, ele diz que
a experiência do corpo retifica a psíquica, e vice-versa.

94
Da ontologia merleau-pontyana ao campo psicanalítico:
uma discussão sobre as sínteses passivas na transferência

2 As sínteses

O perspectivismo do corpo é uma via que realiza passagens para


uma reestruturação simbólica e temporal. Essa via-corpo, digamos,
permite uma conversão de índices de uma realidade sensível a um outro
nível da experiência, como um taxímetro converte quilômetro rodado em
valor da corrida). O filósofo fala da capacidade geral de síntese do corpo
próprio, que dá forma e o sentido aos comportamentos e à realidade das
coisas percebidas: “reencontramos na unidade do corpo a estrutura de
implicação que já descrevemos a propósito do espaço” (Merleau-Ponty,
1945/2011, p. 206). O corpo próprio é movimento que se realiza e unifica
em estruturas temporais de ação e percepção: (gesto) ao esticar a mão
para pegar um objeto, na percepção das cores (elas já são uma “conduta”),
o nível da apreensão sensorial já contém uma estesia, qual seja, esta da
sensibilidade presente nas formas imaginadas e no ato de desejar,
quando se trata ver os outros corpos ou se esticar em busca de um objeto.
Essa capacidade corporal de unificar o campo perceptivo através de
operações sensíveis que exprimam um ser de relações, tem como
fundamento uma capacidade geral de síntese do corpo próprio e sua
extensão afetiva:

[...] se em geral eu posso sentir o espaço de meu braço enorme ou


minúsculo, a despeito do testemunho dos meus sentidos, é porque
existem uma presença e uma extensão afetivas das quais a espacialidade
objetiva não é condição suficiente, como o mostra a anosognosia, e nem
mesmo condição necessária, como o mostra o braço fantasma. A
espacialidade do corpo é o desdobramento de seu ser de corpo, a
maneira pela qual ele se realiza como corpo. Ao procurar analisá-la,
apenas antecipamos aquilo que temos a dizer da síntese corporal em
geral (Merleau-Ponty, 1945/2011, p. 206).

A acepção do movimento, em Merleau-Ponty, não é o oposto de


ficar parado e não equivale apenas ao deslocamento no espaço físico, mas
é o tônus, são os ritmos automáticos, contrações e expansões da pele,

95
Pluralismo em Filosofia e Psicanálise

músculo, o olhar, as próprias hesitações da sexualidade. Para pegar um


objeto, o corpo todo converge até que “o campo perceptivo se apruma”
(Merleau-Ponty, 1945/2011, p. 338), capturado por uma síntese motora
“passiva” (pois independe da vontade deliberada do sujeito do
conhecimento), em busca da meta visada, uma busca de início
indeterminada — “uma certa falta”, um impensável que faz com que todo
o corpo se dirija à ação ou a outro uma verdadeira “recherche”. No caso da
criança que aprende a alcançar objetos, ela sequer se dá conta da sua mão
(“não olha jamais para a mão, olha só para o objeto que quer pegar”).
A noção de passividade, em Merleau-Ponty, não é o contrário de
atividade, indica um modo pré-reflexivo de relação com o mundo (como
no sono, no esquecimento e no próprio trabalho do sonho). São os
poderes de um corpo, e não da atividade de um cogito pensante. Faz-se
importante, contudo, um destaque para o fato de que

[...] aquilo que se chama de passividade não é a recepção por nós de uma
realidade estranha ou a ação causal do exterior sobre nós: é um
investimento, um ser em situação antes do qual nós não existimos, que
recomeçamos perpetuamente e que é constitutivo de nós mesmos
(Merleau-Ponty, 1942/2006, p. 572).

Esse corpo, capaz de sínteses gerais e de apreensões, depende da


sua Empfindbarkeit, termo que refere à habilidade de sentir e que o
filósofo utilizará anos mais tarde nos cursos do Collège de France 3. É
notório que em A Natureza (1995/2000), o autor afirma que a “carne”
como Empfindbarkeit não está localizada no corpo, evidentemente,
porém também não está em outra parte: “ela é o ponto singular onde
aparece outra dimensionalidade” (Merleau-Ponty, 1995/2000, p. 366),
precisamente,

3 A transcrição dos cursos remete ao período de 1957 a 1960, reunidos, postumamente, sob o
título de A Natureza (Merleau-Ponty, 1995).

96
Da ontologia merleau-pontyana ao campo psicanalítico:
uma discussão sobre as sínteses passivas na transferência

[Ela é percebida, pelo menos, num Spielraum] fora do qual ela nada é.
Mas ela surge por investimento na vida — por abertura de uma
profundidade, isto é, como não existente para o resto da vida, como um
outro-ser, um relativo não ser; o único não ser que cumpre considerar,
negatividade natural. Todas essas investigações são convergentes: é o ser
bruto, da percepção (Merleau-Ponty, 1995/2000, p. 366-367).

Dito de outro modo, o campo da existência corporal é uma


abertura para as coisas do mundo, mas que jamais repousa, nem sobre
ele mesmo, posto que a percepção se dá numa espécie de não-ser, num
espaço de intervalo ou margem (Spielraum). Este vazio — um “nada
ativo” — que não cessa de criar (formas, significados, coisas), a partir da
experiência sensível de ter um corpo que é vivido. O corpo investe
permanentemente na vida e é investido por ela, quando visto, tocado,
ouvido. As sínteses corporais operam sobre o fundo silencioso de uma
negatividade A sua presença, “ela é sempre trabalhada por um nada ativo,
continuamente ela me faz a proposta de viver, e o tempo natural, a cada
instante que advém, desenha sem cessar a forma vazia do verdadeiro
acontecimento” (Merleau-Ponty, 1945/2011, p. 228). Ainda a esse respeito,
lemos que mesmo na patologia,

O movimento da existência em direção ao outro, em direção ao futuro,


em direção ao mundo pode recomeçar, assim como um rio degela. O
doente recuperará a voz não por um esforço intelectual ou um decreto
abstrato da vontade, mas por uma conversão na qual todo o seu corpo se
concentra... (Merleau-Ponty, 1945/2011, p. 228, grifos nossos).

Mas como se dá o ver e o agir em um mundo que nos é opaco,


como o filósofo assinala em Visível e o invisível: “estou no âmago do visível
e dele me afasto: é que ele é espesso, e, por isso, naturalmente destinado
a ser visto por um corpo” (Merleau-Ponty, 1964/2014, p. 134). É por isso
que “em vez de rivalizar com a espessura do mundo, a de meu corpo é, ao
contrário, o único meio que possuo para chegar ao âmago das coisas,
fazendo-me mundo e fazendo-as carne” (Merleau-Ponty, 1964/2014, p.
134, grifos nossos).

97
Pluralismo em Filosofia e Psicanálise

O acesso à estesia das imagens, ao mundo das formas e às coisas


do mundo não se reduz — e nem se define — por aquilo que se vê (isto é,
o destino dos objetos no campo visual), mas sim de forma perspectiva e
no campo transcendental das aparições encarnadas e não dualistas.
Nem objetivo e nem subjetivo, o ato de perceber não admite
separação entre o Ser e sua aparição, diferente de como ocorre na
ontologia clássica, por isso, Merleau-Ponty diz que o braço visto e o braço
tocado, exprimem, em conjunto, um mesmo gesto (Merleau-Ponty,
1945/2011), indicando a unidade entre ambas as experiências, a visual e a
tátil, graças à síntese do corpo próprio. Anos depois, essa unidade do
corpo reaparece como reflexividade: quando uma mão toca a outra, qual
mão toca e qual mão é tocada?
Esta operação de síntese do corpo, não deliberada, é indissociável
do conceito de esquema corporal que é introduzido na Fenomenologia da
percepção (1945/2011). Nesta obra, o esquema corporal é concebido como
um sistema de equivalências intersensoriais que, no entanto, ainda não
porta, em seu sentido primário, uma referência aos outros esquemas
corporais, como adquirirá na fase final do pensamento do autor. É o
desenho da inteligência motora, mas é, sobretudo, individual, ainda que
a corporeidade seja concebida como sistema de trocas e equivalências
sensório-motoras entre sujeito e mundo vivido. Assim, a síntese do corpo
próprio e o esquema corporal constituem um meio do corpo exercer
nossa imersão pré-reflexiva, sensorial e significativa no mundo.
A carne não é o ser propriamente, mas é parte dele: “a carne é um
‘elemento’ do Ser. Não fato ou soma de fatos e, no entanto, aderência ao
lugar e ao agora. Ainda mais: a inauguração do onde e do quando”
(Merleau-Ponty, 1964/2014, p. 138). A carne é o instante presente, como
se fosse a face escondida do cubo que “irradia”, de algum lugar, tão bem
quanto as faces que me são visíveis no cubo.

98
Da ontologia merleau-pontyana ao campo psicanalítico:
uma discussão sobre as sínteses passivas na transferência

3 O tempo

Segundo Merleau-Ponty (1945/2011), no capítulo intitulado “A


temporalidade”, não existe uma substância fluente tempo; o tempo nasce
da relação que mantemos com as coisas. O instante presente, o agora, é
um fenômeno que parece existir previamente, no entanto, ele só
preexiste e dura eternamente como sentido para a consciência.
Em O visível e o invisível (Merleau-Ponty, 1964/2014), a propósito
da consciência transcendente e da fundação (Stiftung) de “todo um
sistema de índices temporais — o tempo (já como tempo do corpo,
tempo-taxímetro do esquema corporal) é o modelo dessas matrizes
simbólicas que são abertura ao ser” (Merleau-Ponty, 1964/2014, p. 171).
Quando estamos ausentes desta capacidade simbólica é como
estar “uma espécie de aderência ao atual, uma maneira curta e pesada de
existir” (Merleau-Ponty, 1942/2006, p. 197), uma falta que nos animais se
explica pela fixação aos a priori sensório-motores da espécie, ao passo
que no humano a função simbólica permite significar um
comportamento por uma “multiplicidade perspectiva” e faz com que um
novo acontecimento se abra para o valor próprio das coisas e abra-se à
intenção daquilo que ele visa. Para o filósofo, somente com as fórmulas
simbólicas, uma conduta deixa de ter um significado e torna-se ela
mesma o próprio significado. O símbolo autoriza que uma coisa seja
representada por outra, sobretudo pelo intermédio da linguagem
expressiva (a fala, a associação livre, a escrita, a leitura, a arte).
Em Fenomenologia da Percepção (1945/2011), Merleau-Ponty
afirma que a espacialidade, a sexualidade e a temporalidade são
concêntricas. Acessar cada uma dessas dimensões é acessar a
subjetividade: “somos convidados a fazer do tempo e do sujeito uma
concepção tal que eles se comuniquem do interior” (Merleau-Ponty,
1945/2011, p. 550), de modo que para o autor analisar a experiência
temporal nos dá acesso à estrutura concreta da subjetividade. O tempo

99
Pluralismo em Filosofia e Psicanálise

originário se institui no agora, como abertura e também como


negatividade do ser e do vir a ser. “É preciso [também] compreender o
tempo como sujeito e o sujeito como tempo” (Merleau-Ponty, 1945/2011,
p. 566).

O passado não é passado, nem o futuro é futuro. Eles só existem quando


uma subjetividade vem romper a plenitude do ser em si, desenhar ali
uma perspectiva, ali introduzir o não-ser. Um passado e um porvir
brotam quando eu me estendo em direção a eles. Para mim mesmo, eu
não estou no instante atual, estou também na manhã deste dia ou na
noite que virá, e meu presente, se se quiser, é este instante (Merleau-
Ponty, 1945/2011, p. 564).

A síntese do tempo é uma síntese de transição, “é o movimento de


uma vida que se desdobra”, e não há outra maneira de fazer essa síntese
se não a efetivando, vivendo essa vida. Não existe um presente, depois
outro, depois outros (ele recusa a tese da sucessão de agoras e a metáfora
de Heráclito do tempo como um rio). “Existe um só tempo que se
confirma a si mesmo, que não pode trazer nada à existência sem já tê-lo
fundado como presente e como passador por vir e que se estabelece por
um só movimento” (Merleau-Ponty, 1945/2011, p. 564).
Uma relação direta com o instante presente: “o tempo originário
não é nem decadência (retrocesso sobre si) nem antecipação (avanço
Sobre si mesmo), mas ele é agora, ele é o agora que é” (Merleau-PONTY,
1954-1955/2015, p. 48).
O núcleo do tempo é instaurado no ser do agora, e não no passado
ou no futuro (Moura, 2018). A consciência está presente a si mesma no
presente: ali o ser e a consciência coincidem. O que equivale dizer que
somente vivemos no presente.
Alex Moura (2018, p. 86-87) acrescenta que o tempo é diacrítico,

[...] uma ‘unidade que se ‘irradia’. Uma totalidade que, ao particularizar-


se, reafirma sua coesão processual. [...]. A unidade do tempo, sua ‘quase
eternidade’, não é um transcendental puro, passagem a uma ordem

100
Da ontologia merleau-pontyana ao campo psicanalítico:
uma discussão sobre as sínteses passivas na transferência

separada, mas como abertura que vincula cada parte à generalidade


mais ampla, confirmando-a por diferenciação.

Essa quase eternidade da unidade de tempo faz-se pelo fato de


que essa unidade não expressa o idêntico, não se fixa (ela vai se tornar
outra coisa logo a seguir): O ser que se institui no “agora” recusa a
identidade. Ela se institui pela troca entre “os tempos vividos”, uma trans
temporalidade, assinala Merleau-Ponty. Isso que ao se exprimir também
se presentifica. Assim, impede o conjunto de repousar sobre si,
modificando-se constantemente, por isso mesmo preservando-se,
porém sem se identificar-se. Subentendemos que uma coesão processual
do tempo é mantida por uma negatividade. Esta que não é negação do
Ser, mas o institui e logo convoca o Ser para outra coisa que não ele
mesmo.
As sínteses temporais — e sua coesão processual entre um estado
de consciência e outro — terão que ser pensados como transição, nos
entremeios, entre um e outra manifestação do que é no agora
(maintenant). Notemos que a relação entre os instantes imediatos é por
“parenté latérale de tous les ‘maintenant’”4, portanto uma filiação na qual
o nascimento se na ausência de um Eu. É justamente isso que distingue
o tempo instituinte (ou originário) da ideia de uma constituição.
Constituir, alerta o filósofo, é quase o contrário de instituir: “o instituir
tem um sentido sem eu, o constituir só tem sentido para um eu e para um
eu desse instante” (Merleau-Ponty, 1954-1955/2015, p. 48).
Dessa perspectiva, a concepção de memória é substancialmente
alterada. Para além da memória enquanto conjunto de informações
retidas, topologicamente localizadas na consciência ou inconsciente, a
memória passa a ser concebida como o próprio passado, como uma
passagem pela qual o sujeito efetua seu campo de presença. Passado e
porvir derivam diretamente desse campo de presença, tal como projetos

4 Parentesco lateral de todos os agoras (tradução nossa).

101
Pluralismo em Filosofia e Psicanálise

dos quais a memória padece e atua. Neste sentido, toda memória é


memória de uma presença. Toda história é história do Ser; sentido
convertendo-se em senciente.
Tomemos a maneira como o sujeito e o tempo se apropriam da
história. Que outro meio há para tanto senão pelo outro? Embora não
haja possibilidade de me deparar com seu ímpeto de temporalização,
uma temporalidade não se exclui frente ao outro: eu e outro, pelo
contrário, enlaçam-se em presença, e desse enlace deriva a possibilidade
de acesso a temporalidades que não se viveu, embora já as atravesse.
Considerando a Fenomenologia da Percepção (1945), a abertura
para o outro se dá na corporeidade, seja enquanto ser sexuado, seja como
fala e expressão. Frente a concepções que circunscrevem a afetividade
como um mosaico de prazeres e dores, fechados em si mesmos, ou que
defendem a representação cingida do afeto, Merleau-Ponty explicita que
a percepção objetiva é habitada “por uma percepção mais secreta”
(Merleau-Ponty, 1945/2011, p. 216). A intencionalidade está no nível do
corpo próprio e seus poderes de síntese; há uma estrutura erótica que
sistematiza percepção, motricidade e representação. A sexualidade,
desse modo, não é um epifenômeno da experiência existencial e
estesiológica, tampouco ela é um substrato instintivo que sinaliza
relações pré-concebidas e determinadas. Reintegrando o sexual ao
existencial, ambos coexistem: sua a cisão é um momento abstrato; sua
dissolução, como se nota na patologia, é a tentativa de mascarar a
ambiguidade constituinte do humano.
É de Freud que Merleau-Ponty extrai essas concepções (Manzi
Filho, 2007). A fim de demonstrar essa coexistência, recorre à significação
sexual dos sintomas, mas nesse movimento rearticula a própria
concepção de recalque. Enquanto (1) ato; (2) direcionado a uma região;
(3) determinado por algo de mais baixo do que a vontade, o recalque é
tido como fenômeno intersubjetivo (recusa do outro e fixação numa

102
Da ontologia merleau-pontyana ao campo psicanalítico:
uma discussão sobre as sínteses passivas na transferência

imago), fenômeno temporal (recusa do futuro e fixação num passado),


espacial (a esquizofrenia e sua vida estão em um mundo privado, em
espaço de paisagem, não mais em um mundo comum, espaço
geográfico), tal “como que uma certa via que incessantemente remete a
um engajamento de fixação ou a um certo tipo de comportamento que
não modifica sua estrutura”, uma ausência “que não cessa de repetir a si
mesma” (Manzi Filho, 2007, p. 56), permanentemente presente.
E se corpo próprio é tido como estrutura erótica que abre o ser ao
outro, a análise da fala se configura como análise da natureza enigmática
desse corpo, em seu poder de expressão, a partir do qual “tudo é natural
e tudo é fabricado” (Merleau-Ponty, 1945/2011, p. 257). A fala é dotada de
um duplo aspecto: constituída e constituinte. A esse primeiro aspecto,
fala falada, “desfruta as significações disponíveis como a uma fortuna
obtida” (Merleau-Ponty, 1945/2011, p. 267). A esse segundo aspecto, fala
falante, “em que a intenção significativa se encontra em estado nascente”
(Merleau-Ponty, 1945/2011, p. 266), “excesso de nossa existência sobre o
ser natural” (p. 267), “apoio empírico de seu próprio não-ser” (p. 267),
expressão autêntica, inovadora.
A instituição da fala (o que podemos chamar de linguagem ou de
simbólico) se dá, única e exclusivamente, em sua própria expressão. A
alma já é, só e necessariamente, encarnada, e o novo é, em última
instância, expressão da estrutura já dada. O instituído não precede o
instituinte, tampouco o contrário: há, sim, uma mútua determinação. O
pensamento se dá em sua expressão, o objeto se dá em sua percepção. E
se “é por meu corpo que compreendo o outro, assim como é por meu
corpo que percebo ‘coisas’” (Merleau-Ponty, 1945/2011, p. 253), é o corpo
tanto o que fala como o que mostra, desnecessária uma entidade terceira,
interior, que o sustente por detrás.
Frente a tudo isso, cabe esboçar o surgimento de um inconsciente
em Merleau-Ponty. Thamy Ayouch (2017) explicita as divergências entre

103
Pluralismo em Filosofia e Psicanálise

o inconsciente em Merleau-Ponty e na psicanálise. O inconsciente


fenomenológico é radicalmente divergente do inconsciente psicanalítico.
Husserl pensa um inconsciente em referência a uma percepção
primordial, lugar de sínteses passivas, correspondente à eliminação
gradual das impressões, que, primeiro consciente, passam
gradativamente a ser inconscientes. Freud e Lacan pensam um
inconsciente que se inscreve na instituição do simbólico, “que não
provém de nenhuma percepção, mais precisamente de lacunas, buracos
no sistema perceptivo”. Contudo, a defesa de um inconsciente em
Merleau-Ponty não parte da suposta formação de compromisso entre
concepções tão distantes, a problemática é outra.

4 A transferência na psicanálise e o mundo das formas


patológicas

Merleau-Ponty não se propôs a ser um psicanalista, o que se


comprova na especificidade de sua leitura. Se ela é preconceituosa, seja
da tentativa de dar continuidade ao “último” Husserl, seja dos
atravessamentos de Goldstein e Politzer, é porque diz respeito a seu
projeto próprio. Isso não passou despercebido pelos psicanalistas, todos
convergindo suas críticas em um ponto central, qual seja, “que o filósofo
falha em compreender o inconsciente freudiano ao reduzi-lo ao
implícito, o ambíguo, ou o sobredeterminado” (Manzi Filho, 2007, p.
236).
Essas críticas iniciais não implicam, contudo, numa leitura falha
da psicanálise, mas “tem [...] a função de nos permitir compreender o
desencadeamento do pensamento de Merleau-Ponty em direção ao seu
próprio conceito de inconsciente” (Coelho JR., 1991, p. 134).
E, frente a tudo, ainda mais uma vez, o problema da memória,
articulando-a ao estatuto da transformação psíquica na clínica

104
Da ontologia merleau-pontyana ao campo psicanalítico:
uma discussão sobre as sínteses passivas na transferência

psicanalítica. Na metapsicologia freudiana, a pulsão tem dois


representantes: a representação e o afeto. A possibilidade de lembrança
de uma representação deriva desta estar carregada afetivamente. Já a sua
impossibilidade resulta da ruptura desse laço, desfusão pulsional ou o
deslocamento da representação do afeto. O afeto tem como destinos
transformar-se em angústia ou submeter-se às operações típicas das
psiconeuroses (conversão histérica, deslocamento obsessivo e fixação na
fobia). O ponto a ser destacado aqui é a circulação permanente do afeto
entre os sistemas Ics (Inconsciente) e Pcs-Cs (percepção-consciência),
tramitação essa que deriva de uma “demanda de figuração” (Ayouch,
2012, p. 266). Este autor ilustra a presença deste funcionamento
psicodinâmico através da clínica contemporânea, em que há uma
recorrência de formas de sofrimento psicopatológicas em que o aspecto
comum é uma grande dificuldade em simbolizar, com o afeto irrompendo
diretamente em crises de angústia e toda uma ordem de sintomas com
pouca conectividade psíquica, menos ligados à ordem da castração e sim
à natureza da própria existência.

Portanto, os afetos aqui concernidos são ainda menos ligados a


representações, e o trabalho analítico não consiste em vinculá-los a
representações recalcadas, mas encaminhá-los em direção a uma
figurabilidade que nunca teve lugar. Isso se possibilita só por via de uma
intersubjetividade particular na transferência, implicando os corpos do
analista e do analisando e tentando fazer viver a intersubjetividade
primária do entorno, que não teve lugar (Ayouch, 2012, p. 267, grifos
nossos)

A direção do tratamento, nestes casos, demanda reconsiderar o


manejo da transferência, como pontua Thamy Ayouch (2012), neste
trabalho em que ele discute as contribuições de Merleau-Ponty para a
figuração do afeto recorrendo à psicanálise winnicottiana.

Para conseguir um duplo movimento de identificação do afeto na sua


psique, mas também na do analisando, o analista precisa de uma
empatia particular, vinculando as redes associativas do analisando com

105
Pluralismo em Filosofia e Psicanálise

as suas. Nesse contexto, a figuração do afeto é o objetivo essencial. Trata-


se de providenciar, nas “imagens autóctones” do analista, um material
sensorial, encarnado, corporal, suscetível a traduzir aquilo que nunca
recebeu forma nem figuração no analisando. Trata-se de providenciar
palavras resgatando vivências corporais não figuradas, levantando mais
capacidade sensorial (Ayouch, 2012, p. 268).

O problema da transferência no campo psicanalítico também


pode ser pensado como dispositivo de transmissibilidade, pois ela é um
fenômeno que atravessa barreiras temporais (múltipla temporalidade do
inconsciente) e barreiras físicas, no sentido de uma estrutura real que
tem temporalidade e corporeidade. Quando se chega a um analista, que
é aquele que se põe a escutar), eleva-se ao espaço das narrativas as
histórias suas e dos outros; de forma que, com a transferência, evoca-se
muitos “Eus’ e “Outros” a um mesmo ponto de convergência: a esse outro
a quem o sujeito fala.
Tanto um como outro ultrapassam o nominalismo formal da
relação médico-paciente para darem ouvidos aos fantasmas, para invocá-
los e lhes fazerem perguntas. Se existir uma psicopatologia em Merleau-
Ponty, e de modo não tão distinto de Freud, aquela também abarcaria um
movimento de implicação do sujeito com as formas e os sentidos do
sintoma.

O que é dado não é o eu e, por outro lado, outrem, meu presente e, por
outro lado, meu passado, a consciência sã com seu cogito e, por outro
lado, a consciência alucinada, somente a primeira sendo juiz da segunda
e estando reduzida, naquilo que concerne a esta, às suas conjecturas
internas — o que é dado é o médico com o doente, eu com outrem, meu
passado no horizonte de meu presente (Merleau-Ponty, 1945/2011, p.
452).

A patologia é a condição de presença do ser no horizonte de


mundo e da chegada de novos mundos no horizonte do ser. A patologia
não é uma disfunção a ser curada, através da suplência de seus déficits,
tampouco se define por uma ruptura com o mundo e com o outro, mas

106
Da ontologia merleau-pontyana ao campo psicanalítico:
uma discussão sobre as sínteses passivas na transferência

na especificidade dessa relação, fixada ativa e permanentemente. Padecer


de um sintoma é um congelamento de certas potencialidades, sobretudo
de abertura à manifestação do outro, do futuro, do não ser. A patologia,
em Merleau-Ponty, é necessariamente incompleta. E eis seu caráter
reconfiguração de sentido das relações do sujeito com o mundo: é a
própria estrutura erótica da percepção que está danificada.
Porém, o mais importante é que ao recorrer a uma ontologia para
refletir sobre o tratamento psicanalítico, isso requer que se assuma que
somos ultrapassados pelo que está além do modelo do conflito
intrapsíquico inconsciente (como fator de causalidades), em direção a
um modelo que comporta o avesso do visível e uma presentificação
permanente daquilo que não foi pensado, do indeterminado, do não
visto, do que existe em estado de latência.
Diz Merleau-Ponty, “não reconhecemos pela visão aquilo que
todavia vimos frequentemente e, ao contrário, reconhecemos de um só
golpe a representação visual daquilo que, em nosso corpo, nos é invisível
(Merleau-Ponty, 1945/2011, p. 207). Então, pergunto se mesmo algumas
transformações que se dão paulatinamente, gradualmente, se estas nos
chegam aparentemente por saltos, ora parecem como girar uma chave.
Esta parece ser a via principal das mudanças de estados psíquicos no
processo de análise, a ressignificação subjetiva que eu questionei no
início dessa fala. Seja a mudança de postura do sujeito ou de lugar no
campo discursivo, me parece que só podem ocorrer pela reorganização
do modo como o sujeito se engaja com o outro e com o mundo.
É muito interessante ver que Merleau-Ponty seu capítulo “A
temporalidade” (Merleau-Ponty, 1945/2011), dizendo que depois de
analisar bem a noção de presença e de temporalidade (essa que ilumina
as noções tratadas nos capítulos anteriores: espacialidade, corpo,
sentido), identifica o cogito como engajamento no mundo, ajudando a
encontrar o outro na origem virtual de seus comportamentos visíveis:

107
Pluralismo em Filosofia e Psicanálise

[...] duas temporalidades não se excluem como duas consciências,


porque cada uma só se sabe projetando-se no presente e porque aqui
elas podem enlaçar-se. Assim como meu presente vivo dá acesso a um
passado que eu não vivo mais, e um porvir que ainda não vivi,... ele
também, meu presente, pode dar acesso a temporalidades que eu não
vivo e que pode ter um horizonte social, de forma que meu mundo se
acha ampliado na proporção da história coletiva que minha existência
privada retoma e assume. [...] A solução de todos os problemas de
transcendência se encontra na espessura do presente pré-objetivo, em
que encontramos nossa corporeidade, nossa sociabilidade, a
preexistência do mundo, quer dizer, o ponto de desencadeamento das
“explicações” naquilo que elas têm de legítimo — e ao mesmo tempo o
fundamento de nossa liberdade (Merleau-Ponty, 1945/2011, p. 580, grifos
nossos).

Indagamos se o dispositivo da transferência psicanalítica, tal


como proposto por Freud como um fenômeno a ser trabalhado no
tratamento clínico, pode ensejar ou participar dos processos de
retificação subjetiva e produção de novos sentidos para o eu, exatamente
através de novas composições psíquicas e corporais. Notemos que para a
psicanálise, como Freud desenvolve o eu-corporal em O eu e o id
(1923/2011), o corpo e suas co-extensões afetivas e espaciais, a partir de
suas inserções sociais, foi uma fonte de sensações e percepções para a
constituição do próprio eu. A experiência do vínculo na transferência
poderia esboçar gestos de uma corporeidade capaz de oferecer novas
matrizes simbólicas para as memórias do sujeito. Criar outras
composições de sentido para as “séries psíquicas estereotipadas” do
paciente, seus “clichês”, que ele atualiza na figura do analista, como Freud
coloca em 1912. Seria algo como fazer do lúdico, um modo de escuta na
análise de crianças (e a associação livre na análise do adulto), uma
ferramenta para a decomposição e recomposição da experiência do
corpo, através de uma repercussão no esquema corporal e na reintegração
da imagem corporal. Ouvir com o corpo, os dois habitando esse campo
de presença, na qual

108
Da ontologia merleau-pontyana ao campo psicanalítico:
uma discussão sobre as sínteses passivas na transferência

[...] o corpo de outrem e o meu são um único todo, o verso e o reverso de


um único fenômeno, e a existência anônima da qual meu corpo é a cada
momento o rastro habita doravante estes dois corpos ao mesmo tempo
(Merleau-Ponty, 1945/2011, p. 474).

De maneira preliminar, cabe destacar que essa abertura de um


corpo para outrem não implica um reducionismo biológico, tampouco
uma identidade de princípio.
O outro, esse objeto aparentemente natural e fechado, é, por
outro lado, também o nosso primeiro objeto cultural. E se minha
abertura para ele é esboçada e defendida no corpo, essa defesa é análoga
não só ao do homem enquanto “ideia histórica” (Merleau-Ponty,
1945/2011, p. 236), como também da sexualidade como atmosfera: é na
linguagem, na experiência do diálogo que “constitui-se um terreno
comum entre outrem e mim, [com] meu pensamento e o seu [formando]
um só tecido, meus ditos e aqueles do interlocutor [...] reclamados pelo
estado da discussão, [inseridos] em uma operação comum da qual
nenhum de nós é o criador” (Merleau-Ponty, 1945/2011, p. 474-475). Desta
feita, entendemos que, em Merleau-Ponty, o limite entre o biológico e o
histórico é ambíguo no humano: “tudo aquilo que somos, nós o somos
sobre a base de uma situação de fato que fazemos nossa” (Merleau-Ponty,
1945/2011, p. 236). E em consonância, também fica borrado o limite entre
eu e outrem, dentro e fora, corpo e mundo.
A sexualidade, esta atmosfera permanente da vida do sujeito, diz
Merleau-Ponty, que conecta o corpo ao mundo e ao outro; ao que não é
ele mesmo, também pode se tornar o esconderijo da vida, o próprio corpo
sexuado. Algo que parece ter uma potência de abrir mundos ou de cerrá-
los, como é com a consciência do tempo passado. No capítulo “O corpo
como ser sexuado”, também de 1945, o homem encontra o livro esquecido
somente quando a esposa retorna. Não entro no sono simplesmente
porque vou dormir ou por um ato voluntário, mas porque me coloco em

109
Pluralismo em Filosofia e Psicanálise

postura para que isso aconteça. É “o corpo que transforma o sono em


experiência efetiva do sono”.
Merleau-Ponty (1945/2011) diz que a existência transforma coisas
em ideias e ideias em coisas. Isso aplica-se no campo das psicopatologias
e na questão da cura. As ideias fixas, um estilo rígido de pensamento, eles
tornaram-se coisas (experiências concretas, o sintoma é uma totalidade
que se organiza em arranjos próprios, são estruturas), o que fica muito
claro no sistema delirante. Notemos, todavia, que “coisas” não mudam
no “nível das ideias”, mas sim no nível das próprias coisas: “O sintoma,
como a cura, não se elabora no plano da consciência objetiva ou tética,
mas abaixo” (Merleau-Ponty, 1945/2011, p. 226). Assim, parece lógico que
será necessária uma outra estrutura de semelhante envergadura à do
sintoma, para alterar uma estrutura patológica. E na cura analítica,
quando possibilitada pela transferência, essa estrutura de grande
envergadura (em seu caráter processual e efetividade) é justamente a
transferência (com o outro) que escuta e interpela o sujeito de volta. Para
sair de uma estrutura adoecida e ascender a outros níveis de significação,
somente se engajando em outra: a neurose de transferência.
Enquanto a hipnose possibilita um transporte direto para a
origem do sintoma, uma espécie de recordação direta do recalcado, no
tratamento psicanalítico o recalcado é, antes, atuado pelo analisando, e
“quanto maior for a resistência, de forma mais frequente o lembrar será
substituído pelo atuar [agieren] (repetir)” (Freud, 1914/2017, p. 156).
É do manejo da transferência que deriva a possibilidade de
reconfigurar a compulsão à repetição, ou seja, elaborá-la com o analista
comunicando ao paciente a resistência por ele desconhecida, ainda que
atuada. Para concluir, eu como o amor, a ambivalência, a presentificação,
atuação, como pode isso se processar sem o corpo?

A recordação ou a voz são reencontradas quando o corpo se abre


novamente ao outro ou ao passado, quando se deixa atravessar pela

110
Da ontologia merleau-pontyana ao campo psicanalítico:
uma discussão sobre as sínteses passivas na transferência

coexistência e quando novamente (no sentido ativo) significa para além


de si mesmo. Mais: mesmo cortado do circuito da existência, o corpo
nunca se curva inteiramente sobre si mesmo (Merleau-Ponty, 1945/2011,
p. 228).

5 Considerações finais

Em 1912, Freud diz que a transferência é necessária porque os


desafios que ela coloca permitem “tornar manifestas e atuais as moções
amorosas ocultas e esquecidas dos pacientes” (2017, p. 118). Afinal,
ninguém pode ser abatido in absentia ou in effiggie. O vivido reprimido
não pode se transformar em absentia: “o tratamento psicanalítico não
cura provocando uma tomada de consciência do passado, mas em
primeiro lugar ligando o paciente ao seu médico por novas relações de
existência” (Merleau-Ponty, 1945/2011, p. 610). É preciso a figura do
médico, é preciso ter um outro, um outro que é corpóreo.
O fenômeno da transferência na relação analítica e sua
contraparte, a resistência à análise, realizam um trabalho temporal no
sujeito do inconsciente. Diversas temporalidades psíquicas são
retomadas através da compulsão à repetição e das ações que substituem
as lembranças, mas não como um tempo longínquo, e sim como um ser
de relações em face de eventuais novas cadeias de sentido. Assim o é na
transferência, que bem pode ser um nome para o que se transmite e se
torna história adquirida no tempo.
Esse tempo que, desde sua origem, é experenciado como “o agora
que é”, e pela sua força concêntrica de ser o que é, fenômeno temporal e
suas sínteses permitem que na comunicação social, e no tratamento de
psicopatologias, ocorra uma reestruturação do comportamento outrora
vivido como interdição, separação, perda ou perigo. Assim, diante das
mudanças no mundo ora encarnado entre dois ou entre muitos corpos, o
anteriormente vivido como dor, paixão ou doença, torna-se outra coisa,
para além de si mesmo, graças à intersubjetividade geral da relação

111
Pluralismo em Filosofia e Psicanálise

humana e à potencialidade da relação terapêutica, em especial. Nestes


casos, se diz que a experiência do corpo retifica a psíquica, e vice-versa.
Merleau-Ponty entende que a abertura do “Ser perspectivo” ao que não é
ele é aquilo que confere um índice de realidade ao percebido

Referências

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Winnicott e Merleau-Ponty. In: Psicologia USP, v. 23, n. 3, 2012.

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Da ontologia merleau-pontyana ao campo psicanalítico:
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113
Pluralismo em Filosofia e Psicanálise

114
O erotismo em Bataille: um diálogo entre a
pulsão de morte em Freud e o gozo em Lacan
Adriano da Silva Moreira 1
DOI: https://doi.org/10.58942/eqs.79.05

1 Introdução

O texto visa demonstrar que o conceito de erotismo de Georges


Bataille, a partir da fórmula que o filósofo propõe do erotismo como a
transgressão de um interdito, possui relações com conceitos
psicanalíticos, tais quais a pulsão de morte freudiana, bem como a noção
de gozo lacaniana. Sustentamos que o elemento transgressor de Bataille
possui ligação com a pulsão de morte quando esta se apresenta como
desligamento e rompimento temporários à ordem da moral civilizada. Da
mesma maneira, o fato de Bataille apresentar como única possibilidade
do erotismo a transgressão do interdito, e o mesmo se apresentar como
um excesso, o aproxima do conceito de gozo em Lacan também como
excesso, transbordamento e improdutivo do ponto de vista social.

2 O erotismo: uma nova problemática filosófica

Georges Bataille esteve em vida a escrever um tema, o erotismo.


Desde o primeiro livro publicado sobre o pseudônimo de Lord Auch,

1Doutorando do Programa de Pós-Graduação do Departamento de Filosofia da Universidade


Federal do Espírito Santo. E-mail: f.psi@hotmail.com
Pluralismo em Filosofia e Psicanálise

História do olho (2015, p. 95) 2, até o último, Teoria da religião (2016), sua
obra se enlaça pelo tema do erotismo como problemática fundamental.
Bataille afirma que o erotismo coloca o ser em questão e é por isso
que sua sexualidade difere da do animal: por penetrar o caminho da
escolha, por permitir ao homem interrogar-se. O filósofo subdivide o
erotismo em três formas: erotismo dos corpos, erotismo dos corações e
erotismo sagrado 3, este último sendo fundamental para entender sua
teoria da religião, principalmente a partir do sacrifício e da festa 4. O
homem é culpado na medida em que se opõe a essa natureza erótica,
negando-a, o que o faz questionar o pecado 5. Só ao homem é reservada a
experiência erótica, embora lembre que “A atividade sexual dos homens
não é necessariamente erótica. Ela só o é quando deixa de ser rudimentar,
simplesmente animal” (Bataille, 2013, p. 54).
Para Bataille o erotismo só é possível se houver barreiras a
quebrar, isto é, ele somente se realiza na transgressão de um interdito.
Bataille nos diz que os interditos foram necessários para que o homem
pudesse adentrar no mundo do trabalho e, posteriormente, no mundo
da produção. As normas de condutas fundamentais tais quais o trabalho,
a consciência de morte e a sexualidade contida remontam, segundo os
estudos do filósofo, ao Paleolítico 6. O homem sai da animalidade

2 O primeiro livro escrito por Bataille, que trata das aventuras libertinas de dois adolescentes,
foi escrito por uma orientação de seu psicanalista para que Bataille pudesse dar vazão às suas
fantasias perversas. O filósofo chegou a admitir que só conseguiu escrever o livro porque estava
sendo psicanalisado (Roudinesco, 2008, p. 171). Na época Bataille passava por uma forte
depressão advinda de uma crise mística (Moraes, 2013, p. 70).
3 O sagrado é um termo caro a Bataille, que não só o conceitua como uma forma de erotismo,

como também vai estendê-lo à própria experiência coletiva (Goyatá, 2016, p. 85).
4 Ibidem, p. 44 e 49.
5 Idem, 2017, p. 93.
6 O trabalho no Paleolítico inferior, cerca de 3 milhões a 250 mil anos, e a consciência de morte

e sexualidade contida no Paleolítico médio, por volta de 250 mil a 40 mil anos. O homem como
encontrado nos desenhos das cavernas pintadas, advém do Paleolítico superior (Bataille, 2013,
p. 73). É o período de desenvolvimento da agricultura, da pecuária e onde ocorreu a divisão do
trabalho pelo sexo, cabendo ao homem a proteção e o sustento da família e à mulher a criação
dos filhos. Esse é um ponto fundamental onde o filósofo contradiz uma das mais famosas

116
O erotismo em Bataille: um diálogo entre a
pulsão de morte em Freud e o gozo em Lacan

trabalhando e foi “compreendendo que morria e deslizando da


sexualidade sem vergonha à sexualidade envergonhada [...] que o
erotismo decorreu” (Bataille, 2013, p. 55).

2.1 Erotismo e transgressão: um protesto contra a jaula do logos


O mundo da norma organiza o mundo do trabalho, mas sempre
subsiste nele um fundo de violência. Uma violência que está na natureza,
onde a própria vida surge a partir da morte, a exemplo da reprodução
assexuada e sexuada, já que em ambas o que surge da divisão tanto da
célula elementar, no caso da reprodução assexuada, quanto das células
funcionais, na reprodução sexuada, não é a continuidade celular, mas sua
descontinuidade, ou seja, sua destruição. Dessa forma, há um elo entre
violência e natureza, e o filósofo afirma que tanto na natureza quanto no
homem existe algo que excede os limites e que não pode ser descartado,
por ser algo da ordem do necessário, não podendo ser de outra forma, e o
ser-humano jamais dará conta desse excesso:

[...] falta-lhes o sentimento de uma violência elementar, que anima,


quaisquer que sejam, os movimentos do erotismo. Essencialmente, o
domínio do erotismo é o domínio da violência, o domínio da violação
(Bataille, 2013, p. 40).

Para que o mundo do trabalho possa funcionar, se faz necessário


um interdito para essa violência, a saber, o excesso que pode desviar o
homem do universo da produção. É assim que a violência é o objeto
fundamental dos interditos. E para tanto os interditos fundamentais
recairão sobre o nascimento, os interditos sexuais, e a morte, os interditos
do assassinato e do sepultamento 7:

teorias sobre o assunto, a de que o tabu do incesto seria o marco do nascimento da cultura,
como proposta pelo antropólogo e filósofo estruturalista francês Lévi-Strauss.
7 Tanto o sexo quanto o horror causado pelo cadáver em putrefação, que mostra ao homem

algo pior do que o medo da finitude, mas deixa o homem diante do horror de seu destino, são
violências que atrapalham o homem em seu mundo de produção.

117
Pluralismo em Filosofia e Psicanálise

O mundo do trabalho e da razão é a base da vida humana, mas o


trabalho não nos absorve inteiramente e, se a razão comanda, nossa
obediência nunca é ilimitada. Por sua atividade, o homem edificou o
mundo racional, mas sempre subsiste nele um fundo de violência e por
mais razoáveis que nos tornemos, uma violência de um ser de razão, que
tentou obedecer, uma violência pode nos dominar de novo que não é
mais a violência natural, que é a violência de um ser de razão, que tentou
obedecer, mas sucumbe ao movimento que nele mesmo não pode
reduzir à razão (Bataille, 2013, p. 63).

Rella e Mati afirmam que Bataille faz um “protesto contra a jaula


do Logos” (2010 p. 96) e acusa a filosofia de afastar-se da vida, pois nega
as paixões que a constituem. O filósofo, nessa crítica, seria aquele que
nega a paixão pelo domínio da razão. Para Bataille, a filosofia nega o
erotismo em seus corpos e existências. Com essa atitude o que ela faz é
afastar-se da vida, cujo núcleo, segundo o filósofo, é o erotismo: “entre
todos os problemas, o erotismo é o mais misterioso, o mais geral, o mais
à parte” (Bataille, 2013, p. 299). Essa é a parte maldita, a parte improdutiva
da sociedade, é o resto que a sociedade trata como dejeto 8, compondo
mesmo o que Bataille chamou de heterologia e que no dizer de Joron “é
nada mais do que um domínio do pensamento subversivo que se propõe
não somente a mostrar o que é deixado por conta — a vida improdutiva
— mas também trazer uma ordem de compreensão ao conjunto desses
fenômenos” (Joron, 2013, p. 127). Não é pela ditadura do logos que se
aborda o erotismo:

A literatura é desvio fora do caminho do logos habitual: é fuga do mundo


do discurso. Com essa, escreve Bataille, se entra numa espécie de tumba
onde o infinito do impossível nasce “da morte do mundo lógico”: um
espaço terrível, o único em que é possível ligar intimamente a afirmação
à negação”. É assim que essa cumpre “aquilo que geralmente é obra do
‘tempo’ — o qual, de todas as suas construções, deixa subsistir apenas

8 Elizabeth Roudinesco chega a sustentar que Lacan teria inspiração não somente em Freud, a

partir do capítulo sete de A interpretação dos sonhos onde diz que a realidade é psíquica, como
também em Bataille com sua noção de parte maldita, para a construção de seu conceito de real
que compõe os três registros do psiquismo: real, simbólico e imaginário (Roudinesco; Plon,
2008, p. 645).

118
O erotismo em Bataille: um diálogo entre a
pulsão de morte em Freud e o gozo em Lacan

os rastros da morte. Acredito que o segredo da literatura seja este. E que


um livro se torna maravilhoso se habitualmente ornado pela indiferença
das ruínas. [...] Portanto, a literatura é uma saída do princípio de não
contradição que domina o pensamento lógico; é a afirmação de uma
contradição nos confins onde podemos colher, talvez como em toda
autêntica contradição, o impensado da vida, quando esta se encontra
com a morte. A arte, a literatura como a pintura, debruçam-se
constantemente sobre aquilo que é invisível ao pensamento lógico, ou
seja, a paixão, que Esquilo dizia ser o verdadeiro saber do mundo: o
sofrimento, a alegria, o terror, o tédio e, de fato, no fundo de tudo,
justamente como intuiu Bataille, as máscaras da morte (Rella, 2000, p.
170).

Por ser improdutivo o erotismo foi ignorado por toda a tradição


filosófica, sendo maldito por estar associado às paixões. Antelo dirá que
a obra de Bataille é particularmente maldita “porque conduzia a razão
burguesa a seu limite” (Antelo, 2010, p. 11). Para o pensamento da
tradição, o erotismo estando afastado da racionalidade pelo seu caráter
excessivo e transgressor, e também negado pelo sujeito devido às leis
morais que sustentam a vida civilizada, só pode ser relegado à parte
maldita dessa mesma sociedade:
Recorrendo aos libertinos para falar de uma ética que estaria
pautada no que ele chama de “experiência interior” (Bataille, 2013, p. 53),
sendo o erotismo o aspecto principal dessa experiência, Bataille recorre
aos transgressores porque eles revelam a verdade do homem: o desejo de
transgressão de um interdito e sua satisfação nesse processo. No dizer de
Camille Dumoulié, Bataille promove uma “experiência dionisíaca do
desejo” (Dumoulié, 2005, p. 280). O interesse pelos libertinos se justifica
na premissa de Bataille de que o erotismo “é a aprovação da vida até na
morte” (Bataille, 2013, p. 35), afirmando que essa seria a melhor expressão
do que é o erotismo, um objeto de busca que não é estranho à morte 9.

9E aqui Sade é quem melhor exemplifica a relação entre morte e excitação sexual, pois também
é quem melhor exemplifica a independência entre o erotismo e a reprodução como fim, já que
“não há melhor meio de familiarizar-se com a morte do que aliá-la a uma ideia libertina”
(Bataille, 2013, p. 36).

119
Pluralismo em Filosofia e Psicanálise

É dessa forma que o pensamento libertino do século XVIII coloca


em xeque o pensamento filosófico sobre a moral e a ética. O libertino,
esse homem do prazer, nos fala de um erotismo pautado na morbidez de
uma compulsão, em uma relação erótica com a morte. A ligação que
Bataille faz entre erotismo e morte é algo que já estava posto em Freud
em sua tratativa da sexualidade no texto Além do princípio do prazer
(2020). Mais além de um prazer sentido pela consciência, está uma
satisfação inconsciente, manifestada como agressividade, e denominada
pulsão de morte

3 Erotismo: um diálogo com a psicanálise através da pulsão de


morte e do gozo

Vejamos bem, o pensamento de Bataille vai ao encontro de Freud


quando difere a sexualidade humana da dos animais, pois para Freud a
sexualidade humana difere da dos animais por não haver objeto pré-
determinado para a pulsão sexual 10 (Freud, 2016). Freud rejeita o discurso
da natureza que pretende determinar o objeto de desejo e investimento
libidinal de um homem ou, dito de outra maneira, não há objeto pré-
determinado para a pulsão sexual. O médico vienense colocou a origem
do desejo na perversão polimorfa infantil, rompendo com o pensamento
vigente da época que associava a criança a um ideal de pureza. Ele então
escandaliza a sociedade ao etiquetar a idade infantil com um termo
oriundo da psicopatologia psiquiátrica: a perversão11. Os desejos infantes

10 Na obra freudiana o termo pulsão foi traduzido por instinto, no entanto, estudiosos de Freud

concordam que a tradução foi infeliz pelo fato de o instinto em o reino animal ser algo da ordem
do necessário, enquanto que o reino humano é o reino da contingência, por permitir a escolha.
11 O termo perversão é polissêmico e ligado ao sexo, ao pecado e a decadência. Sob o ponto de

vista do sexo é o pervertido sexual e está ligado à ciência, do ponto de vista religioso é o herege
e para a filosofia é o decadente moral que a sociedade designou como libertino. Freud pensa a
perversão inerente à “normalidade” integrando teoricamente todos os fenômenos perversos
na constituição psíquica do sujeito. O caráter revolucionário desse texto se deve justamente
pela ruptura da sexualidade com a ideia de natureza mostrando que a pulsão sexual em seu
estado emergente não é nem unificada e nem dirigida a um objeto. A partir de então a

120
O erotismo em Bataille: um diálogo entre a
pulsão de morte em Freud e o gozo em Lacan

impedidos de satisfação devido às normas e regras sociais e parentais não


desapareceriam, mas estariam em uma outra instância psíquica,
inconsciente, pedindo por satisfação. Na vida adulta esse inconsciente,
morada do desejo, faz com que o mesmo seja satisfeito sob a forma de
sofrimento. Nesse texto Freud afirma que o nosso modo de ser e estar no
mundo se baseia em fortes pulsões sexuais e que, nesse âmbito, o
conceito de normalidade é questionável. Para Freud o desejo, que é uma
das possíveis maneiras de se ler a pulsão e a libido 12, é recalcado por ser
justamente contrário ao discurso da ordem e da lei. Ele então seria
perverso por perverter uma norma estabelecida, o que atesta o fato de
que o desejo só é possível porque há uma lei que o proíbe, tal qual temos
no pensamento de Bataille.
Lacan, sendo um pensador freudiano, sustenta sua noção de gozo
na pulsão de morte de Freud como uma compulsão, um excesso
experimentado no corpo e que não cessa de se repetir. Todavia, antes de
Lacan abordar a temática do gozo como um dos temas centrais em seu
seminário de 1959-1960, A ética da psicanálise (Lacan, 2008), vimos que
a transgressão e sua relação com o erotismo 13 já estava colocada por
Bataille em 1957 14. Sustentamos que a definição de Bataille sobre a

psicanálise rejeitaria todas as formas pelas quais a civilização espera fazer a sexualidade
funcionar, seja a educação, a normalização ou a programação. E para Freud ninguém melhor
do que os fetichistas para comprovarem essa assertiva (2016).
12 Energia psíquica cuja origem é sexual. Dizer que a fonte da libido é sexual é apontar para a

sua corporeidade, já que o tanto o prazer, enquanto sensação percebida pela consciência,
quanto a satisfação inconsciente, que pode ser percebida pela consciência como sofrimento,
tem origem nas sensações corporais pelas zonas erógenas e seus orifícios de satisfação.
13 A própria psicanálise, para Lacan, se trata de uma erótica (Lacan, 2008, p. 15), possível

somente pela via da transgressão da lei do Outro. Essa assertiva lacaniana é corroborada por
Allouch ao chamar a psicanálise de uma “erotologia de passagem” (Allouch, 2010, p. 134). Gozo,
núcleo de Eros, experiência transgressora, condição do erotismo e de uma psicanálise.
14 Uma observação merece ser feita, se para Bataille a experiência interior, que é a erótica, se

coloca na esfera da consciência reflexiva, para a psicanálise sabemos ser a escolha de ordem do
inconsciente, posto que um dos princípios fundamentais da psicanálise é que somos
determinados pelo inconsciente. Quando a psicanálise trata a escolha como da ordem do
inconsciente, não se trata aqui de qualquer escolha, mas das escolhas fundamentais que
norteiam a vida de um sujeito, já que se trata da escolha de um modo de gozo, um modo de
estar e orientar-se na relação com o Outro (Lacan, 1999, p. 271).

121
Pluralismo em Filosofia e Psicanálise

violência ou, como queira, sobre o excesso possui importantes relações


com o discurso lacaniano sobre o gozo, esse sem limites, essa tensão entre
as instâncias psíquicas experimentada no corpo, afinal, é no corpo que a
linguagem por meio da fala, essa apropriação singular da língua, produz
marcas. Um dos principais estudiosos da obra de Bataille no Brasil, Raúl
Antelo chega a dizer sobre o texto de Bataille que o erotismo é “uma
perda, um dispêndio, um gasto, daí sua identificação com o gozo”
(Bataille, 2013, p. 21). Antelo chega a insinuar a influência da obra O
erotismo, de Bataille, no seminário A ética da psicanálise de Lacan.
Apesar do gozo, como todo o edifício conceitual lacaniano,
possuir mobilidade no decorrer de sua obra, o mesmo pode ser entendido
como uma satisfação inconsciente via corpo com caráter de repetição. É
assim que a sexualidade se desenvolve no campo da linguagem e da fala,
tendo sua incidência no corpo, sua apropriação singular, com três
principais representações: amor, desejo e gozo, que são três maneiras
distintas de o sujeito lidar com a falta (Moreira, 2017). Essa falta é o
incurável da humanidade, a castração freudiana, a não-relação sexual
lacaniana (Badiou; Cassin, 2013, p. 13), que fura a não-contradição
filosófica, a incompletude filosófica desde Platão (2018) e o que Bataille
designa como o desejo de continuidade em outro ser 15.
Para além da obrigação, a culpa. Para além do dever, a punição.
Para além da moralidade, a perversão (Lacan, 2008, p. 239). Uma
perversão na origem do desejo e no coração da moral. Um desejo
metamorfoseado de censura, essa seria a gênese da dimensão moral. Há
para cada sujeito uma satisfação que o determina e uma lei que o orienta.
O pensamento lacaniano se aproxima nesse ponto do erotismo de
Bataille onde só existe desejo de transgressão mediante uma lei e, sendo

15A sexualidade, que para a psicanálise é uma busca de satisfação não somente consciente, mas
sobretudo inconsciente, se relaciona com esse incurável presentificado pela falta, ora em uma
tentativa de tampão pela via do amor, ora em uma relação de perpetuação pelo caminho do
desejo ou ora pelo insuportável, como no caso do gozo.

122
O erotismo em Bataille: um diálogo entre a
pulsão de morte em Freud e o gozo em Lacan

assim, existe uma identificação entre desejo e lei. Devido à


impossibilidade da satisfação diante da lei, caminhamos com o objetivo
de apaziguar a culpa por um desejo perverso e insatisfeito (Lacan, 2016,
p. 439).
No texto Kant com Sade, Lacan (1998), aborda a problemática dos
libertinos para tratar da questão da moralidade, da lei e da ordem. Aliás,
esse texto é considerado por Safatle (2003) como uma mudança de
paradigma em Lacan. O marquês de Sade foi o representante máximo
dos libertinos e ambos, Bataille e Lacan, se debruçaram em sua leitura
para o desenvolvimento de seus pensamentos. Entretanto, a filosofia de
Sade objetiva uma destruição pela via de uma ética libertina. Ora, para
Bataille a transgressão não se trata de destruição, é preciso que isso fique
bem claro. Bataille trata dos libertinos para fundamentar sua teoria sobre
o erotismo como aprovação da vida até mesmo na morte ou sua visão de
um erotismo somente possível pela via da transgressão. Já Lacan se
debruça sobre a libertinagem para mostrar como a domação do gozo
perverso é a gênese da dimensão moral. É esse excesso que viola a lei e a
ordem e que é visível nos libertinos, que coloca o erotismo de Bataille em
relação com o gozo de Lacan. Gozo maldito pela moral, visto ser uma
satisfação que é proibida pela consciência mediante a lei e que por isso só
pode apresentar-se a essa instância psíquica como sofrimento.

4 Considerações finais

Localizando no erotismo o lugar onde o sujeito se satisfaz e


também se perde, Bataille o coloca como a interrogação filosófica por
excelência, já que trata da verdade do ser em seu íntimo, negada por fora,
aos olhares acusadores do Outro. O gozo 16, um “extremo de prazer”

16 Miller diz que: “O saber sobre o gozo talvez seja o único saber psicanalítico que temos sobre

a vida, sobre o que é ser vivo. [...] não sabemos o que é ser vivo, a não ser pelo seguinte: um
corpo, isso goza!” (Miller, 2001, p. 25).

123
Pluralismo em Filosofia e Psicanálise

(Lacan, 2008 p. 100), esse equivalente a dor, onde Lacan aborda o “além
do princípio do prazer” freudiano, a saber, a pulsão de morte, algo como
um ponto de fuga de toda a realidade possível. Esse gozo é o que não tem
juízo, como na música de Chico Buarque de Hollanda: “O que será?”
(Buarque, 2010 p. 34). Bataille aponta para uma interioridade, uma
experiência interior, que se realiza pela via do erotismo, uma experiência
que questiona o sujeito, experiência de não-saber, transgressora dos
interditos, a experiência filosófica por excelência. Um excesso, uma
perda, completamente improdutiva sob o ponto de vista do mundo da
produção e do trabalho. Lacan faz do gozo, algo também desconhecido
do sujeito, um mistério que sustenta o sofrimento, mas que também
orienta as relações do sujeito e seu modo de caminhar pela existência,
sendo assim, núcleo do erotismo, experiência transgressora por
excelência, por desafiar internamente a lei do Outro. Ambos, Bataille e
Lacan, um com o erotismo e o outro com o gozo, os dois dialogando com
a pulsão de morte de Freud: Bataille com seu erotismo que não exclui a
morte e a violência, Lacan com o seu gozo que quer compulsivamente.

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126
Dos enunciados negativos “não há...” a uma
lógica não toda: as concepções de linguagem
no ensino de Jacques Lacan
Izabela Loner 1
DOI: https://doi.org/10.58942/eqs.79.06

1.

O objetivo deste texto é acompanhar como o psicanalista Jacques


Lacan passou em seu Seminário de uma concepção de linguagem
simbólico-estrutural, tal como estabelecida com os referenciais
linguísticos e antropológicos franceses na década de 1950, para uma na
qual ela é determinada também pelo registro do real, definido como o
registro do impossível, a partir dos anos 1960.
Para compreendermos conceitualmente esta mudança —
considerada central tanto (1) pela função que a linguagem tomou em seu
ensino, como tecido do falante e de seu espaço de experiência, quanto (2)
pelos demais desenvolvimentos que ela permitiu no ensino lacaniano
(começando por suas próprias referências e bases epistemológicas; a
redefinição dos registros real, simbólico e imaginário; a reelaboração das
noções de significante e sujeito, entre outras questões clínicas) —,
procurarei apresentar como o analista empreendeu, à época, um trabalho
negativo diante da linguagem tal como instaurada na década anterior,
marcando tudo o que nela não há e nem pode haver com enunciados

1Doutoranda em Filosofia pela Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP. (Processo


Fapesp nº 2022/00120-5). E-mail: izabelalonersantana@gmail.com
Pluralismo em Filosofia e Psicanálise

negativos e como disso desloca-se a um trabalho positivo, propositivo, de


criação de uma nova lógica de funcionamento e formalização no final da
década e na virada a 1970 com as fórmulas da sexuação.
Assim, acompanharemos como sua investigação dos limites da
linguagem simbólica expressou-se em aforismas como “Não há Outro do
Outro”, “Não há metalinguagem” e “Não há universo do discurso” ao
mesmo tempo em que começou a trabalhar o real como impossível, não
só excluído e apartado do código simbolizado, como também
determinante dele e do significante em seu funcionamento. Veremos
como isso deságua na elaboração de uma nova concepção de linguagem
e, consequentemente, de lógica, não mais estruturalista ou simbólica das
faltas e ausências, mas sim não-toda da sexuação.
Este trabalho justifica-se para nós pois permitirá tanto
precisarmos as referências teórico-filosóficas do ensino lacaniano
(passando da linguística e do estruturalismo às referências lógicas),
quanto compreendermos sua teoria da linguagem na passagem das
décadas, a partir do que, em outro momento, poderemos investigar as
consequências filosóficas disto, como a ontologia e a metafísica atreladas,
ou não, as concepções de linguagem, seus desenvolvimentos lógicos e de
formalização, entre outros — questões alocadas no objetivo de minha
pesquisa de doutoramento.

2.

Fato sabido e declarado é que Jacques Lacan abriu seu ensino na


década de 1950 com um movimento de crítica e explicitação dos conceitos
constituídos e deixados por Sigmund Freud ao desenvolvimento teórico
e à realização clínica da psicanálise. Isso pois tais conceitos, forjados a
partir da experiência do vienense, ainda estavam “mal criticados”,

128
Dos enunciados negativos “não há...” a uma lógica não toda:
as concepções de linguagem no ensino de Jacques Lacan

conservando a “ambiguidade da língua vulgar” e as consequências desta


conservação (E, p. 241) 2.
Se, para o francês, a técnica não deve abandonar seu princípio da
fala, palavra de ordem desde a talking cure de Freud e Breuer, esta “não
pode ser compreendida nem corretamente aplicada, portanto, quando se
desconhecem os conceitos que a fundamentam” (E, p. 244). Assim, não
basta apenas sabermos como ela aparece ou o significado que há por trás
de cada enunciação particular, mas devemos buscar em quê ela se
fundamenta, como se articula de tal e tal forma. O que não só mostra a
relação entre teoria e prática, como também abre um campo de
investigação e teorização de fundamentação dos conceitos freudianos
não em uma referência à experiência ou a qualquer modelo científico ora
dado, mas demonstrando “que esses conceitos só adquirem pleno sentido
ao se orientarem num campo de linguagem, ao se ordenarem na função
da fala” (E, p. 244).
Se o fundamento da prática é a fala, seu material primeiro e o que
a orienta, esta, por sua vez, inscreve-se, como função, em um campo mais
amplo, não biológico ou psicológico, mas linguageiro, no qual a
psicanálise capta seus conceitos (OE, p. 145) e retira seus “fundamentos”
(E, p. 238), tomando assim sua justificativa, seu “valor científico” (E, p.
239), a inteligibilidade ainda faltante, em uma concepção lacaniana, para
seu discurso.
Isso permitiu que Lacan afirmasse que, “para-além dessa fala, é
toda a estrutura da linguagem que a experiência psicanalítica descobre
no inconsciente” (E, p. 494). Assim, a fala da situação analítica remete,
ganha lugar e propósito, em um campo mais amplo e estruturado no qual
se inscreve e toma sua fundamentação.

2Daqui em diante, as citações dos Escritos serão referenciadas com (E) e dos Outros Escritos
com (OE), acompanhadas da paginação da versão estabelecida no francês.

129
Pluralismo em Filosofia e Psicanálise

Este esforço, assim, não permitiu apenas ganhos clínicos ou


internos ao discurso analítico (como sua cientificidade linguageira ou sua
inteligibilidade), mas também (1) a elaboração de uma concepção de
linguagem que não se resumisse a instrumento ou meio de comunicação,
sendo aquilo que possibilita e organiza a experiência do falante — o que
podemos compreender como uma “função ontológica” dela e de seus
efeitos —, e (2) a extração e a investigação de seus efeitos teórico-
filosóficos.
Em outras palavras, a consideração da fala na experiência
analítica, ao delimitar-se na linguagem, precisa não apenas sua prática,
como também sua teoria e discursividade próprias, fazendo da
reconstrução lacaniana da psicanálise “também uma intervenção nos
quadros mais gerais do pensamento” (Iannini, 2013, p. 41). Nisto
incluindo a filosofia, dado que para Lacan a linguagem permite a extração
e a criação de uma lógica, bem como interrogações ontológicas, pois é
nela que o falante pode realizar sua existência e, em seus efeitos, elaborar
seu “sentimento de ser” (Lacan, 2012, p. 30).
Assim, embora o ensino nunca tenha se orientado à filosofia ou
aos seus problemas, sua delimitação na linguagem e os debates que
empreendeu a partir dela (seja com nomes da história da filosofia, seja
com seus contemporâneos linguistas), permite investigar suas
consequências possíveis ao campo filosófico, dado que o sujeito, ponto
de subversão central do ensino à época, “introduzido por Lacan no
próprio âmbito da descoberta freudiana toca, possivelmente, uma
racionalidade que transborda em muito seu lugar de emergência” (Le
Gaufey, 2018, p. 280), abrindo uma investigação de uma “razão desde
Freud”, como nomeou a racionalidade após da invenção do inconsciente
e de seu sujeito como efeitos da fala e da linguagem, não tendo nelas
apenas sua condição de possibilidade, como também modificando-as,
nelas intervindo.

130
Dos enunciados negativos “não há...” a uma lógica não toda:
as concepções de linguagem no ensino de Jacques Lacan

Esta localização e este argumento de justificação do estudo da


linguagem em Lacan em uma pesquisa filosófica talvez se elucidem com
a compreensão da mudança que ela sofre, nosso objetivo de apresentação
neste texto. Pois poderemos pelo menos vislumbrar após a exposição, o
que implica passar de uma linguagem toda estruturada e determinada,
para uma inconsistente e incompleta, tanto para os instrumentos
teóricos que mobilizamos para apreendê-la (os esforços de formalização,
por exemplo), quanto para as questões que ela nos permite fazer sobre o
falante e seu mundo:

3.

Ao colocar a linguagem neste lugar e nesta função na abertura de


seu ensino, Lacan a compreendia ao modo estruturalista a partir de
Saussure e Lévi-Strauss. A partir de pois não se limitou à investigação da
língua como fato primeiro da linguagem ou a tomar a estrutura como
estratégia metodológica, como poderíamos recolher dos autores citados,
mas a partir deles e de suas teses pôde inaugurar uma concepção de
linguagem ampliada que inaugurava uma dimensão simbólica que toma
seu lugar na inteligibilidade da investigação e na própria existência
falante.
Para isso, estruturou-a com base em seu elemento mínimo, o
significante, do qual pôde inferir as regras de funcionamento e operação
do campo por onde se pode agarrar, cientificamente, a linguagem. Assim,
com isso, o sistema monta-se e funciona a partir da solidariedade
síncrona por oposição de um significante a outro, definindo-se, cada um,
na relação opositiva e diferencial aos outros, sendo aquilo que os outros
do sistema não são.
Gilles Deleuze, em seu texto Em que se pode reconhecer o
estruturalismo?, de 1972, afirmou que uma das características distintivas

131
Pluralismo em Filosofia e Psicanálise

desta compreensão teórica estrutural-simbólica é “a descoberta e o


reconhecimento de uma terceira ordem, de um terceiro reino: o do
simbólico”, apartado do imaginário (significados) e de uma concepção
bruta dirigida somente à realidade, este seria a dimensão primeira de
uma investigação estrutural (Deleuze, 2005, p. 240). Como afirmou, “a
posição de uma ordem simbólica, irredutível à ordem do real, à ordem do
imaginário, e mais profunda do que elas” (2005, p. 242) que as determina,
que as origina sendo a elas condição de possibilidade.
Ou seja, uma estrutura primeira que aparece encarnada nas
realidades e imagens, mas que a elas não se reduz, “sendo mais profunda
que elas, subsolo para todos os solos do real como para todos os céus da
imaginação” (2005, p. 242). Como exemplo, trouxe a linguística, na qual,
“para além da palavra em sua realidade e em suas partes sonoras, para
além das imagens e dos conceitos associados às palavras, o linguista
estruturalista descobre um elemento de natureza completamente
diferente, objeto estrutural” (p. 240), i.e., uma dimensão nem material
nem ideal, mas estrutural que determina o fato e a abordagem em
questão, dotando-a de sentido simbólico.
Este sentido doado à estrutura e aos seus elementos, por sua vez,
“não têm nem designação extrínseca nem significação intrínseca”, sendo
assim meramente “de posição”, localização espacial. Esta não sendo
compreendida em uma extensão real ou imaginária, mas em um espaço
“inextenso, pré-extensivo, puro spatium constituído cada vez mais como
ordem de vizinhança, em que a noção de vizinhança tem precisamente,
antes, um sentido ordinal e não uma significação na extensão” (2005, p.
244). Do que pôde afirmar que o estruturalismo seria uma “filosofia
transcendental nova” na qual “os lugares prevalecem sobre aquilo que os
preenche”, algo como uma “topologia transcendental” (2005, p. 245).
Com isso, a partir de uma primazia do formal e do sentido derivado da
posição, o simbólico é sempre resultado da combinação dos elementos,
algo como um efeito, produto da linguagem (2005, p. 245).

132
Dos enunciados negativos “não há...” a uma lógica não toda:
as concepções de linguagem no ensino de Jacques Lacan

Este modelo, por sua vez, é apresentado e mobilizado por Lacan


nos primeiros anos de seu Seminário, tendo como seu ponto alto o quinto
ano de ensino no qual podemos acompanhar “tudo [sendo] significante,
quando o significante pode ser tomado como um todo, quando ele se
torna totalitário” (Miller, 2005, p. 23), dado que o simbólico era o registro
central à época, no qual todas as formações inconscientes são, por
natureza e definição, linguageiras e onde o significante abarcava tudo,
inclusive revestindo o impossível do gozo perdido na entrada na
linguagem (na lógica da castração) e a falta de objeto.
Nesta época a linguagem e o simbólico acabam sendo
coextensivos, quase que se identificando, dado que este recobre toda a
extensão daquela. Em outras palavras, a linguagem é posta como
totalmente estruturada, pura ordem abstrata e combinatória funcionante
que recobre todo o campo da experiência falante, mesmo que, para isso,
mobilize também o imaginário que lhe dá consistência. Uma ordem
fechada e total que aloca os falantes em seus lugares, que faz eles e seu
mundo funcionarem sistemicamente no endereçamento opositivo de um
significante a outro3 e descolados do empírico e do natural-animal,
constituindo o lugar falante, cultural, por excelência.
Podemos reconstruir, para exemplificar, a noção de Outro que foi
mobilizada na primeira década do ensino como o sistema significante, o
lugar destas unidades elementares de estruturação da linguagem, que
tem como garante um Outro, um Outro do Outro, o significante do
sistema significante nome-do-pai. Este “fato de haver um Outro
(simbólico) do Outro (simbólico) indica que o Outro como ordem dos

3 Vale lembrar que a própria concepção de significante como diacrítico, tradução lacaniana do

signo saussuriano, exige o fechamento e a totalização da linguagem, dado que cada um é o que
todos os outros não são, comparando-se a todo um sistema no qual todos os demais
significantes têm de estar presentes, pelo menos virtualmente, para fins de comparação
opositiva sob um fundo de identidade do sistema total, “na medida em que ‘todos’ continuem
a remeter, tal como na origem saussuriana do princípio de opositividade intrasistêmica, a um
conjunto fechado (Silveira, 2007, p. 207).

133
Pluralismo em Filosofia e Psicanálise

significantes é garantido por outro Outro transcendente, a saber, a Lei


paterna”, como um “metafiador” (Chiesa, 2007, p. 107).
Afirma-se uma transcendência do nome-do-pai, chamado por
Lorenzo Chiesa também de “arrière-plan”, pois ele “circunda todos os
outros significantes”, permitindo postular “a existência de um Outro
simbólico fechado em si e totalmente independente” (2007, p. 108) não
só do sujeito em sua possível função de agente, mas de qualquer
referência externa, a algo fora do horizonte significante.
O que não só descreve o nome-do-pai como também a operação,
a montagem e as consequências que ele permite em sua articulação do
campo da linguagem: o Outro como consistente e completo marcado pela
desnaturalização da linguagem e sua montagem significante. A
concepção de linguagem proposta à época no ensino lacaniano passa a
ser, assim, dependente dessa transcendentalidade do nome-do-pai, esta
instância metalinguageira, para ter sua consistência, lugar e
funcionamento autônomos, para ser extraída como campo total.
Outro significante privilegiado, aos termos lacanianos (Lacan,
1999, p. 328), é o falo que abre o campo possível de significações, não mais
em uma cópula com o natural, ligando-se a uma referência empírica ou
natural, mas simbolicamente e a partir das trocas simbólicas, dos
deslizamentos e endereçamentos. Assim, ele é descrito como sendo o
significante “destinado a designar, em seu conjunto, os efeitos de
significado, na medida em que o significante os condiciona pela sua
presença significante” (E, p. 690), algo retomado no Seminário V (cf.
Lacan, 1999, p. 405) e que, além de afirmar o caráter determinante do
significante na produção do significado, tendo esse como efeito de sua
presença e operação significante, indica o caráter organizador do falo e a
linguagem abstrata e combinatória que montava.
Se o simbólico institui-se univocamente como lugar de operação
das trocas simbólicas e da lei com o significante privilegiado nome-do-

134
Dos enunciados negativos “não há...” a uma lógica não toda:
as concepções de linguagem no ensino de Jacques Lacan

pai, com o falo podemos tratar de uma universalização ou, melhor,


generalização vazia do sistema simbólico, uma totalização simbólica,
pois ele é o que formaliza o impossível da adequação entre essa ordem e
o mundo dito empírico, enquanto garante um tratamento simbólico ao
que era até então impossível por conta da pura perda posta pela entrada
na linguagem. Isto fica muito explícito na lógica da castração presente no
quinto ano do Seminário, no qual reconstrói a entrada mítica do sujeito
na linguagem e como a costura simbólico-imaginária dá consistência e
possibilidade simbólica, fálica, ao que é pura impossibilidade de
satisfação e gozo — da necessidade e do instinto perdidos, coloca-se o
desejo e a demanda. Posto de outra forma, “o Real que foi objeto de um
recalcamento primordial na primeira simbolização encontra sua
inscrição possível através do significante fálico. O trabalho do falo
consistiria em transformar a [assim chamada] falta real em falta
simbólica da castração, permitindo com isso uma simbolização da
negatividade do Real no interior da estrutura simbólica” (Safatle, 2006,
p. 131).
Caráter generalizador por ser um significante que não varia a
partir dos mitos individuais, mas que é da ordem do universal, do
simbólico, uma marca mesma para todos que entram na linguagem, no
sentido do “para todo homem” da lógica aristotélica. Pois independente
dos ideais de cada um, das insígnias que marcam os diversos sujeitos a
partir de cada história, temos sempre algo em comum mediando o desejo
e a impotência na linguagem, em todas as cadeias significantes: o falo
(Rabinovich, 1995, p. 50).
Com tais significantes essenciais, Lacan montou, assim, sua
máquina simbólico-linguageira, funcionante para além de qualquer
instância agente e que é matematizável, formalizável aos termos
antropológico-estruturalistas. Silveira (2007, p. 138) tematiza isso com a
noção de “valor transcendental do sistema simbólico”, o que teria
iniciado-se em Lacan com a exigência inicial, tomada das críticas

135
Pluralismo em Filosofia e Psicanálise

politzerianas, de um campo de teorização e fundamentação à psicanálise


que não recaísse nem em um realismo ingênuo nem em idealismo, muito
menos a um psicologismo, sendo, então, transcendental.
A estrutura é a forma pela qual Lacan respondeu a esse problema,
dado que tocou a linguagem como revestidora da realidade do falante,
permitindo um “processo racional extra-psicológico” (Silveira, 2007, p.
138), sendo “um lugar transcendental composto de significantes” (p. 270):
alocada no concreto da estrutura e combinatória, funcionante a partir
dos significantes transcendentais nome-do-pai e falo que ordenam a
põem essa a funcionar.

4.

Tal concepção de linguagem estrutural, simbólica e total, porém,


é posta em xeque na virada da década (1950-1960) e uma nova concepção
é construída na primeira metade da segunda década do Seminário. Se o
quinto ano foi, como citamos acima com Miller, o ponto alto onde tudo
se reduziu ao significante e ele totalizara tudo, o ano seguinte (1958-1959)
foi responsável por apontar a primeira limitação a este todo simbólico-
linguageiro: o Outro do Outro que não mais pode existir no corpo teórico
lacaniano. Isto, para Chiesa (2007), é sinal do “declínio da hegemonia do
Outro simbólico” (p. 105) e “o fim do momento conciliatório e
‘estruturalista’ de Lacan” (p. 122). Isso começa a ser tratado ao abordar o
matema responsável por formalizar sua concepção de linguagem na nova
década que se abre ao ensino: S(Ⱥ).
Na aula do dia 08/04/1959, Lacan afirmou que o matema S(Ⱥ)
presente no grafo quer dizer que “tudo aquilo que se passa no nível do A
[Outro] não vale nada”, i.e., que a ele como lugar da palavra, como
“conjunto do sistema dos significantes, isto é de uma linguagem, falta
alguma coisa” e o significante que lhe falta é exatamente S(Ⱥ), o qual não

136
Dos enunciados negativos “não há...” a uma lógica não toda:
as concepções de linguagem no ensino de Jacques Lacan

é qualquer um, mas exatamente o da lei, aquele “para o qual todos os


outros significantes representam o sujeito: ou seja, na falta desse
significante, todos os demais não representariam nada. Já que nada é
representado senão para algo” (E, p. 819).

Partamos da concepção do Outro como lugar dos significantes.


Qualquer enunciado de autoridade não tem nele outra garantia senão
sua própria enunciação, pois lhe é inútil procurar por esta num outro
significante, que de modo algum pode aparecer fora deste lugar. É o que
formulamos ao dizer que não existe metalinguagem que possa ser
falada, ou, mais aforisticamente, que não há Outro do Outro. É como
um impostor que se apresenta, para suprir sua falta, o Legislador (aquele
que alega erigir a Lei) (E, p. 813).

Nisto, começou a explicar o motivo de não haver o Outro do


Outro, o significante do significante como encontramos no nome-do-pai:
todo o significante está no Outro, por definição. Pelos princípios
estruturalistas adotados de imanência à linguagem e redução
significante, não podemos encontrar nem postular nada para fora do
sistema, nem mesmo a lei que o funda e o assegura como fechado e total,
dado que não há lugar para tal instância que, se proposta, recairia no
retorno da instância transcendente, o papel que fazia o natural como
referente ou que pode exercer o Deus veraz filosófico.
Se, por um lado, não pode haver nada fora da estrutura para
determinar-lhe, por outro, ela só pode ter a consistência e a completude
exigidas na concepção de linguagem disponível ao ensino à época se
recorrer a outra estrutura, a um metacódigo estrutura da estrutura — isso
é levantado e discutido por Umberto Eco a partir de Lévi-Strauss, por
exemplo (cf. Eco, 1991, p. 288).
Com isso, encontramos, porém, um impasse ou, melhor dizendo,
um paradoxo: ou o significante do significante é externo ao simbólico e
dá esteio à lei que aos demais rege e organiza ou é interno ao Outro e,

137
Pluralismo em Filosofia e Psicanálise

nisso, perde seu papel transcendental exigindo um outro Outro para dar-
lhe esteio e lei. Isso, ao infinito.
Tal paradoxo é abordado no Seminário IX, retomando um
episódio clássico da história da lógica moderna, matemática e simbólica,
a crise dos fundamentos entre Frege e Russell, mais especificamente os
paradoxos de auto referenciação. Aproximando sua noção significante da
de conjunto (cf. Rona, 2010), o Outro como o tesouro deste conjunto seria
o conjunto de todos os conjuntos, fechado e totalizado.

[...] esse conjunto de todos os conjuntos que não se compreendem a eles


mesmos, será que ele se compreende a ele mesmo ou será que ele não se
compreende? Num caso como no outro ele vai cair na contradição. Pois
se, como parece, ele compreende a ele mesmo eis-nos em contradição
com o princípio que nos dizia que se tratava de conjuntos que não se
compreendem a eles mesmos. Por outro lado, se ele não se compreende,
como excetuá-lo justamente do que dá essa definição, a saber, que ele
não se compreende a ele mesmo? (Lacan, 2003, p. 142).

Por conseguinte, surge um paradoxo similar àquele que Lacan


encontrou na composição do Outro na ausência do nome-do-pai, pois é
um questionamento acerca de se o conjunto de significantes é um
conjunto que contém a si próprio ou não, ou, em outras palavras, se
“acaso é legítimo situar o conjunto de significantes sobre um significante”
(Le Gaufey, 2018, p. 255), tal qual o paterno. Abre-se, com isso, um círculo
vicioso, pois o significante toma a si mesmo como referente e passa a ser,
assim, um conceito reflexivo e paradoxal (cf. Cardoso, 2010).
Voltando à história da lógica, como saída, Russell propõe o
“Princípio do Círculo Vicioso como axioma de limitação na constituição
de conceitos e na operação sobre conjuntos” (Cardoso, 2010) restringindo
as proposições autorreferenciadas e elaborando a chamada “teoria dos
tipos” diferenciando a linguagem que enuncia e aquela que se estava, na
situação, tomando como objeto da enunciação, i.e., a metalinguagem e a
linguagem-objeto.

138
Dos enunciados negativos “não há...” a uma lógica não toda:
as concepções de linguagem no ensino de Jacques Lacan

Lacan, apesar de aceitar o paradoxo, acaba não concordando com


a saída dele, isso porque aposta na própria paradoxalidade como
determinante do conjunto significante. E, retomando uma citação acima
posta (E, p. 813), o aforisma da inexistência do Outro do Outro é
desdobrado no axioma da concepção de linguagem ainda nascente à
época do Seminário em questão, a saber, que “não há metalinguagem”.
Tratar dos paradoxos da lógica matemática, mais especificamente
da crise dos fundamentos da lógica no ano letivo de 1959-1969 (VI), serviu
como uma forma de demonstrar que não há código dos códigos ou “Outro
do Outro” e que o sistema significante é inconsistente e incompleto —
dado ser impossível sustentá-lo como um conjunto que pertence a si
mesmo, logo, um conjunto de todos os conjuntos, o lugar que alojaria
todos os significantes (ver aula do dia 4/4/1962)4.
Por conseguinte, se o Outro é assim definido, consiste o fato de
que “não há lugar algum onde se assegura a verdade constituída pela
palavra” (Lacan, 2014, p. 157), não hpa qualquer instância de garantia
simbólicas totalizantes e de correção à linguagem. O que veta a
possibilidade de qualquer instância extradiscursiva, anterior, mais
abrangente ou como um “discurso primeiro — seja a metafísica, a poesia,
a lógica ou a ciência” (Iannini, 2013, p. 23).
Afastar essa instância capaz de completar e consistir a linguagem,
é revelar que o simbólico não dá conta, de maneira absoluta, da
experiência do sujeito, que a distância entre ele e o real “não pode ser
nunca obliterada por nenhum discurso meta, nem metafísica, nem
metalinguagem” (Iannini, 2013, p. 118).

4 Como consequências deste desenvolvimento, podemos citar a abertura do Outro em sua

inconsistência e incompletude; o aprofundamento da diferença significante com o traço unário


e a impossibilidade de identidade entre os significantes (A≠A) (aula 06/12/1961 ainda no
Seminário IX) que levou à impossibilidade de o significante significar a si mesmo, no ano letivo
de 1966-1967, e inexistência do universo de discurso — o outro aforismo negativo da época.
Marcando cada vez mais a incompletude e a inconsistência do simbólico (Le Gaufey, 2018, p.
210-217).

139
Pluralismo em Filosofia e Psicanálise

Se a linguagem, até então, era o transcendental estruturalista


tanto para a experiência clínica, quanto do falante em seu mundo, quanto
da inteligibilidade científica do discurso analítico, com a ausência de
qualquer instância metalinguageira, dá-se um passo além com a
linguagem no interior do ensino, “um passo além, portanto, do esforço
de justificação ou de descrição de condições de possibilidade, um passo
além de uma epistemologia de inspiração kantiana” e confessadamente
estruturalista (lembremos do “kantismo sem sujeito” de Lévi-Strauss),
dado que esse “grão de verdade não se confunde [somente] com um
trabalho de elucidação de tais condições epistemológicas” (Iannini, 2013,
p. 46).
Como afirmou o próprio Lacan, o que procurava não era
constituir, em seu ensino, “as condições de possibilidade da psicanálise,
mas em que este caminho se traça do fundamento que o próprio Freud,
desde sempre, articulou como sendo sua impossibilidade” (Lacan, 2006,
p. 420), a impossibilidade de qualquer instauração meramente
simbólica, a própria falha neste registro de funcionamento e na
linguagem que busca recobrir. Uma instauração, assim, do real, de uma
linguagem por ele marcada.
Assim, como ainda veremos em detalhe, dizer que a linguagem é
marcada será afirmar que ela nunca é neutra, completa e unívoca, mas
que além de funcionar com lugares e pela combinatória destes, em sua
estrutura uma inconsistência se inscreve e nisso macula todos os seus
efeitos e produtos, tornando-a paradoxal e reflexiva, cheia de impasses e
autorreferências. Incompleta e inconsistente, pois infundada e sem
sentido algum — na voz de Lacan, “a linguagem jamais deixará outra
marca senão a de uma chicana” (Lacan, 2003, p. 553). Em outras palavras,
deixa de confundir-se com o simbólico, e da sutura deste com o
imaginário, para ser determinada também pelo real.

140
Dos enunciados negativos “não há...” a uma lógica não toda:
as concepções de linguagem no ensino de Jacques Lacan

Isso, pois, não há um “fundamento do fundamento”, i.e., algo que


fundamente a linguagem como campo onde se funda o sujeito e a
estrutura. Ao colocar uma linguagem sem qualquer garante, sem
metalinguagem ou um Outro transcendental, Lacan mostra que “ao
fundar os conceitos psicanalíticos na linguagem a própria
conceitualização, a própria textura discursiva da psicanálise está
submetida às leis da linguagem” (Iannini, 2013, p. 44). Similarmente, isso
inflete na própria linguagem, que também está submetida às leis que
articula e expressa, não sendo apenas um solo a partir do qual se pode
enunciar as leis e a castração, mas sendo ela própria marcada por elas —
não há metalinguagem pois não tem como sair da linguagem para dela
falar.
Retomando: a linguagem não é um meio neutro do qual Lacan se
utiliza para traduzir cientificamente a psicanálise, ela própria é marcada
pelo que tentava estruturar, pela castração; pelo real; pelos impasses e
impossibilidades próprios da linguagem, próprios do mundo falante.

5.

Lacan passou a década de 1960 inquirindo a linguagem e


manejando a lógica que dela podemos extrair fazendo-a entregar, a partir
do axioma da inexistência da metalinguagem, o que ela fora construída
para esconder (Le Gaufey, 2013, p. 36): o real que também a determina.
Nisto, pontuou um funcionamento simbólico desde suas limitações,
formalizando seus impasses em enunciados negativos, demonstrando
que estes não são deficiências do saber analítico ou de qualquer teoria em
apreender o todo da linguagem, mas sim uma propriedade da própria
linguagem, fatos de sua própria estrutura 5.

5 Sobre a lógica e a formalização, o percurso que aqui é reconstruído é acompanhado por uma

passagem dos “impasses de formalização”, mais especificamente os limites e impasses que


Lacan encontra na formalização estruturalista da linguagem, para uma “formalização dos

141
Pluralismo em Filosofia e Psicanálise

O resultado positivo de todo o trabalho negativo que empreendeu


até então foi uma “nova lógica”, como ele mesmo afirma. Esta deveria “ser
construída a partir daquilo que não é”, dado que “nada do que acontece
em decorrência da instância da linguagem pode desembocar, de modo
algum, na formulação satisfatória da proporção [rapport]” (Lacan, 2012,
p. 20), sendo incomensurável e, assim, diferente do que encontramos na
operação fálica de generalização que recobria simbolicamente o
impossível, a assimetria, a perda do natural.

Esta exploração lógica não é apenas o questionamento daquilo que


impõe limites à linguagem em sua apreensão do real. Na própria
estrutura desse esforço de abordá-lo, em seu próprio manejo dele, ela
demonstra o que pode haver de real na determinação da linguagem. Será
que não há nisso alguma coisa a ser apreendida? (Lacan, 2012, p. 20).

Se o real, até então, com a linguagem idêntica ao simbólico, era o


que era apartado, desligado absoluto do âmbito significante do possível,
com a ausência da instância de garantia e fundamento, de qualquer
metafiador, ele passa a atravessar, a manchar, macular, como dito acima,
o próprio simbólico, incidindo e intervindo nele, não sendo um outro
registro de possibilidade, nem mesmo findando qualquer possibilidade,
mas indicando que toda possibilidade, todo arranjo do possível simbólico
é contingente, paradoxal, reflexivo 6.

impasses”, passo teórico que Lacan dá ao não só mudar o estatuto do real, mas da lógica e da
formalização em seu ensino, não mais simbolizadora, total e consistente, mas cônscia e aberta
aos impasses inerentes da linguagem determinada pelo real, da paradoxalidade e reflexividade
significante (cf. Iannini, 2013, p. 22).
6 Como bem ilustra Zupančič, o significante, como unidade elementar da linguagem, “cria seu

próprio espaço e seres que o povoam”, o que retoma e reafirma o caráter, digamos, ontológico
do simbólico, de tecido e material da realidade objetiva do sujeito. A este espaço simbólico,
porém, ao instaurar-se, “algo mais é adicionado a ele”, algo lhe é parasitário, “ou seja, [algo que]
não é produzido pelo gesto significante, mas junto e ‘em cima’ dele”. Em acordo com o que
colocou Lacan sobre o significante para além da referência linguística com o traço e a série dos
números naturais de Frege (ver Seminários IX e XIV, respectivamente), este parasita real “é
inseparável desse gesto [significante], mas, diferentemente de como falamos de criações/seres
discursivos, ele não é criado por ele. Não é nem uma entidade simbólica nem uma constituída
pelo simbólico; pelo contrário, é colateral ao simbólico. [...] A emergência do significante não

142
Dos enunciados negativos “não há...” a uma lógica não toda:
as concepções de linguagem no ensino de Jacques Lacan

Na continuação deste trecho, é possível ver a passagem que


permitiu ir dos negativos à elaboração positiva de uma nova lógica:

Se é no ponto de uma certa falha do real — indizível, propriamente


falando, já que seria ela que determinaria todo discurso — que residem
as linhas desse campo, que são as que descobrimos na experiência
psicanalítica, não será conveniente, provável, próprio para se induzir,
que o que a lógica desenhou, ao relacionar a linguagem com o que é
postulado de real, possa nos permitir situar certas linhas, inventá-las?
Eis o esforço teórico que designo por esta leveza que encontraria uma
insistência. Não será possível encontrar aí uma orientação? (Lacan,
2012, p. 20, destaques adicionados).

Na relação entre linguagem e real, o francês aponta à


possibilidade de invenção de uma nova lógica, indicando um trabalho
positivo de propor, criar uma “nova lógica”, não só indicando os limites
da concepção anterior de linguagem e de formalização simbolizadora.
Não que a nova lógica daria conta das insuficiências da anterior, mas ela
formalizaria, de outra maneira, que podemos chamar, junto ao
comentário, de literalizante (cf. Iannini, 2012, p. 220).
Isto é, o manejo lógico e o trabalho junto à linguagem deixa de ser
apenas para limitar aquilo que o simbólico não recobre do código, para
uma posição lógica que permita entrever aquilo que o real implica na
concepção de linguagem a ser mobilizada para precisar a discursividade
analítica.
No seguimento desta aula citada (8/12/1971), Lacan dá os pontos
a serem investigados e subvertidos para a criação desta nova lógica: os
prodiorismos (quantificação da existência e da universalidade), as
modalidades lógicas (incluindo a contingência e o impossível real) e
outras formas de negação que não só a complementar (forclusiva e

é redutível ou exaurida pelo simbólico. O significante não apenas produz uma nova realidade
simbólica (incluindo sua própria materialidade, causalidade e leis) como também produz ou
abre espaço para a dimensão que Lacan chama de Real. Isto é o que irremediavelmente mancha
o simbólico, estraga sua suposta pureza e explica o fato de que o jogo simbólico da pura
diferença é sempre um jogo com dados carregados” (2019).

143
Pluralismo em Filosofia e Psicanálise

discordancial), em outros termos, condensando todo o trabalho feito nos


últimos anos da década de 1960.
Esta nova lógica foi exposta, escrita por ele nas fórmulas
nomeadas como “da sexuação” que, além de desempenharem um papel
interno ao ensino e ao seu contexto, de expressão dos ganhos teóricos
lacanianos frente a questão da sexualidade e do gozo, são, como tento
apresentar e defender, produto de sua investigação e inquisição da
linguagem, dado que apresentam duas posições discursivas diferentes
para lidar exatamente com este real da linguagem, com a contingência e
a impossibilidade — seja instaurando um universal e um fechamento,
como quer o assim chamado “lado homem”, quer sustentando a
indeterminação e a indecidibilidade, como encontramos no assim
chamado “lado mulher”.
Isto, pois, a “ausência de relação não é patrimônio dos sexos, não
lhes pertence exclusivamente”, dado que ela “se mostra, para Lacan, tão
crucial na determinação simbólica do sujeito, como a existência de tudo
o que se afirma como existente” (Le Gaufey, 2013, p. 139), logo ao
funcionamento da linguagem e “não apenas” à posição sexual. Assim,
essa não-relação como princípio permite também a abertura de uma
nova discursividade não-toda, inspirada no lado mulher, bem como a
denúncia das estratégias de estruturação que o chamado lado homem,
todo ou fálico, mobiliza para sustentar-se.
Para além dos conteúdos que Lacan buscou discutir com elas,
toma-se aqui as fórmulas como uma mostração puramente formal que
escreve o impossível da proporção (que Lacan mostrou como sexual, mas
que aqui deve ser compreendido como um princípio lógico) 7 não
resolvendo-o, tornando-o, pela lógica, — se assim o fosse, estaríamos

7 Como afirmou Lacan no Seminário de 1971-1972 ministrado em Sainte-Anne, O saber do


psicanalista, embora Aristóteles tenha se interrogado sobre o princípio da lógica e da
linguagem, “ele não tem a menor ideia de que o princípio é isto: é que não há relação sexual”
(2012, p. 29) e não o de não-contradição, o do terceiro excluído ou o de identidade.

144
Dos enunciados negativos “não há...” a uma lógica não toda:
as concepções de linguagem no ensino de Jacques Lacan

vendo a metalinguagem retornar — mas permitindo que o impossível


como impossível marque a lógica, que o real não redutível ao simbólico
determine também a linguagem, sem deixar de enlaçar-se também com
o simbólico e sua consistência imaginária.

6.

A partir do ensino lacaniano, então, proponho compreendermos


o seguinte movimento: a partir de uma centralização da linguagem para
fins científicos e concretos (uma posição crítica dos fundamentos da
psicanálise até então), Lacan mobiliza o estruturalismo e o leva a suas
últimas consequências, o que permitiu não só uma mobilização da
linguagem como um instrumento transcendental, como também uma
investigação desta em seus pressupostos e consistência.
Com isso, pôde postular uma linguagem marcada pela
inexistência da metalinguagem e de qualquer instância que não ela
própria. A linguagem dobra-se sobre si mesma, não recorrendo a
nenhuma instância externa, natural ou transcendente e, fiel ao tom da
investigação estrutural, nada se coloca para além ou aquém da
linguagem. Com isso, ele não só precisou seu campo de investigação com
a linguagem, como também a questionou e, nisso, questionou o próprio
uso que a ela dava, a própria compreensão que dela tinha.
Avançando, assim, na investigação da própria linguagem como
afetada pelas invenções psicanalíticas, parodiando uma estrutura
interrogativa algumas vezes repetida por Lacan: o que (e como é) a
linguagem, na medida em que ela implica o (se constitui pelo)
significante? O que é a linguagem após a psicanálise (tendo ela postulado
o real e a castração)? E não só para a psicanálise, mas a partir da
intervenção que a psicanálise lacaniana foi aos “quadros gerais do
pensamento”.

145
Pluralismo em Filosofia e Psicanálise

Referências

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147
Pluralismo em Filosofia e Psicanálise

148
O gozo mudo e a violência: a clínica
e a política
Fernanda Silveira Corrêa 1
DOI: https://doi.org/10.58942/eqs.79.07

1 Introdução

O livro de Monique David-Ménard, A vontade das coisas: o


animismo e os objetos, propõe um trânsito entre a clínica psicanalítica, a
política, Lacan, Deleuze, Marx e a antropologia que nos parece
extremamente esclarecedor de aspectos essenciais da Psicanálise
freudiana, assim como a concebemos. Seja sua concepção da vida sexual
como excesso e gozo mudo, da cura como estabelecimentos de novos
circuitos pulsionais, seja sua concepção do social como inversão da
violência e a política como possibilidade de identificação animista com o
diferente, ambas nos ajudam a dar contornos a nossa prática, seja na
clínica ou na política, derivada de nossa compreensão da metapsicologia
freudiana.
Dividiremos o texto em duas partes, a primeira remetendo a vida
sexual e a clínica e a segunda à vida social e a política. Em cada uma das
partes, exporemos rapidamente nossa concepção da metapsicologia
freudiana para então explorá-la a partir das ricas considerações de
Monique David-Ménard.

1Psicóloga (PUC-SP). Mestre e Doutora com pós-doutorado em Filosofia da Psicanálise pela


Unicamp. Psicanalista clínica. Professora credenciada e orientadora no Programa de Pós-
graduação (mestrado profissional) em Educação Sexual na Unesp de Araraquara.
E-mail: fernandasilveiracorrea@gmail.com
Pluralismo em Filosofia e Psicanálise

2 Vida sexual

Temos tentado estabelecer uma relação entre o funcionamento


psíquico proposto por Freud, no Projeto de uma psicologia e em A
interpretação dos sonhos, com as forças apolíneas/dionisíacas de O
nascimento da tragédia de Nietzsche. Grosso modo, consideramos que
existia uma relação da vontade, no Projeto (núcleo de ψ investido), do
desejo inconsciente na Interpretação dos sonhos, com o dionisíaco, com
o coro excitado da tragédia que faz aparecer o apolíneo, o princípio da
individuação no palco. O apolíneo corresponderia, por sua vez, às
imagens dos objetos de satisfação que aparecem ilusoriamente (de forma
alucinada) como realização do desejo, dessa forma, ocultando o próprio
desejo. Em um antagonismo entre as forças (antagonismo fundamental
na tragédia) a ilusão é destruída, quebrantada, pelo reaparecimento dos
impulsos dionisíacos. Propusemos então uma relação entre as imagens
de movimento no Projeto, que inibem a alucinação, com o dionisíaco. As
imagens de movimento possibilitam, por meio do movimento próprio
um reconhecimento do movimento do outro e a suposição da coisa em si
do outro, também servem como caminhos laterais responsáveis pela
inibição da alucinação, portanto pela diferenciação do núcleo de ψ (a
vontade, o desejo inconsciente) da imagem do objeto de satisfação, e pela
transformação da condição das imagens desiderativas de alucinadas em
metas do funcionamento psíquico e da ação.
Por que as imagens de movimento corresponderiam ao
dionisíaco? Porque quando o dionisíaco rompe o véu de maia “se faz
necessário todo o simbolismo corporal, não apenas o simbolismo dos
lábios, dos semblantes, das palavras, mas o conjunto inteiro, todos os
gestos bailantes dos membros em movimento rítmico” (Nietzsche, 1992,
p. 35). Assim como à música o dionisíaco remete aos movimentos.
O dionisíaco também é aquele que se compreende como
insatisfação, como querente. O poeta lírico, que representa o dionisíaco,

150
O gozo mudo e a violência: a clínica e a política

“passa a compreender a natureza toda e a si próprio no seio desta apenas


como o eterno querente, cobiçante, anelante [...]a sua própria imagem se
lhe apresenta em estado de sentimento insatisfeito: o seu próprio querer,
anelar, gemer, exultar é para ele como um símile com o qual interpreta
para si mesmo a música” (Nietzsche, 1992, p. 51). As imagens de
movimento, no Projeto, cumprem este papel quando inibem o caminho
facilitado pela vivência de satisfação e possibilitam avistar o estado de
sentimento insatisfeito, o núcleo de ψ , o desejo, separado da imagem do
objeto desiderativo.
Consideramos que algumas reflexões de Monique David-Ménard
nos ajudam a levar adiante nossa concepção do funcionamento psíquico.
Primeiramente, sua caracterização e as possíveis modificações dos
circuitos pulsionais. Monique David-Ménard caracteriza a vida sexual
como excesso que corresponde a tentativas de tornar a realidade
compatível com o que é sonhado. Ela escreve:

É a partir do excesso em que consiste a vida sexual [...]. Por ‘excesso’


entendemos que a vida sexual não se resume ao fato de fazer amor, ela é
a sequência de tentativas de tornar compatível aquilo com que
sonhamos — e que forja a nossa singularidade — e as condições de
existência cotidiana e social (David-Ménard, 2022, p. 55).

Grosso modo: o excesso seria o dionisíaco, a vontade o desejo;


aquilo com que sonhamos seria o apolíneo, seriam as imagens
desiderativas, as imagens oníricas que ilusoriamente satisfazem o
excesso, no gozo; as tentativas de tornar as condições de existência
cotidiana e social compatíveis com o sonho consistem no retorno desse
excesso, do dionisíaco, por meio do investimento das imagens de
movimento, quer dizer, do simbolismo corporal, que faz com que as
imagens sonhadas, apolínias, sejam inibidas, quebrantadas enquanto
ilusão, mas sirvam de metas para as ações que buscarão imagens
perceptivas (condições da existência) compatíveis com elas. Em termos
freudianos, as ações correspondem ao investimento das imagens de

151
Pluralismo em Filosofia e Psicanálise

movimento que transformam as imagens perceptivas em imagens


semelhantes as desiderativas; aquilo que consideramos como a
possibilidade de o dionisíaco quebrantar o apolíneo, distinguir
alucinação de percepção e por meio das imagens de movimento tornar a
imagem percebida compatível com a imagem desejada.

3 Processo de Cura

Contrapondo-se ou, como quer a autora, ampliando a visão


lacaniana, sobre a intervenção do analista, David-Ménard (2022, p. 63)
escreve:

O/a analista intervém menos como ‘sujeito suposto saber’ [...] do que
como um conector [...] entre espaços de existência [...] separados pelo
recalcamento do gozo, [...] o gozo mudo [...]. O que é eficaz em uma cura
não é apenas, ou não em primeiro lugar, a suposição de um saber e a
queda progressiva dessa suposição, com a desidealização do Outro que
se segue; é principalmente, o fato de a transferência servir para inventar
objetos o mais próximos possível dos cenários de gozo.

Assim, inventar novos objetos, modificar o circuito pulsional


antes fixado no gozo alucinatório do objeto de satisfação possibilitando
uma satisfação parcial, sublimada, corresponderia, portanto, não só
desidealização do Outro, do analista como sujeito suposto saber (o
quebrantamento por parte do dionisíaco da ilusão apolínea), mas
também a ação sobre a realidade, a ação propiciada pelos investimentos
das imagens de movimento que tornam o percebido compatível com o
desejado.
Como um exemplo de cura, David-Ménard narra o caso de um
paciente obsessivo, inibido na esfera sexual e do trabalho, em que seu
“gozo mudo” se apresenta (Darstellung) em análise por meio de um
sonho, comunicando-o dessa forma ao analista:

152
O gozo mudo e a violência: a clínica e a política

No dito sonho, ele mastigava uma carga de tinta de caneta, deixando a


tinta escorrer por sua garganta. Na frente dele estava um colega de
trabalho [...]. No momento em que o colega se surpreendeu com seu
gesto, ele se sentiu desmascarado no sonho e acordou. [...] ele diz ter
vergonha de ser surpreendido em uma cena tão estúpida. [...] Com esse
sonho, [o paciente] se deu a liberdade de comunicar o idioma de seu
gozo (David-Ménard, 2022, p. 60).

A analista autoriza, assim, a narração de um sonho que apresenta


(darstellen) um gozo mudo, até então excluído, separado. Quando o gozo
mudo se apresenta na sessão, ele evoca o que “se ama nas relações sexuais
no registro das carícias” (no caso, a tinta da caneta escorrendo na
garganta, o prazer em ser visto, a passividade, a inveja). A cura “é fazer
com que os objetos pulsionais saiam de seu gozo mudo; é permitir a
produção de um sujeito que transpõe o espaço no qual ele estava preso a
objetos” (David-Ménard, 2022, p. 80).
Qual é o objeto do gozo? Para Lacan o objeto “a”, objeto pulsional
que ameaça destruir o sujeito e é inassimilável (cf. idem, p. 70). Objeto
que é um nada, um dejeto, um objeto excremento que resume “o modo
como a pulsão desfaz a idealização [...] do analista amado como um
‘sujeito suposto saber’ da verdade do analisante” (David-Ménard, 2022,
p.78).
No entanto, afirma David-Ménard, ampliando sua concepção da
intervenção do analista: o objeto é inassimilável até que o analisante
possa suportar o fato de estar preso a esse objeto, até se reconhecer no
gozo mudo que excluía de si mesmo. Segundo David-Ménard (2022, p.
79), no próprio Lacan se pode pensar na apresentação do objeto
(Darstellung) como a queda do objeto:

Lacan afirma que quando o objeto ‘a’ é menos excluído pelo sujeito, ele
cai, ou seja, ele se representa. Mas o termo queda é ambíguo. É certo
que, quando o objeto pulsional, até aquele momento excluído, pode
figurar em um sonho, essa figuração indica que o sujeito está menos
preso a esse objeto. Nesse sentido, sua Darstellung, sua apresentação em

153
Pluralismo em Filosofia e Psicanálise

sonho, indica sua queda. Queda que remete ao que Freud chama de
suspensão do recalcamento.

O objeto “a” pode cair de outras formas que não como nada, como
dejeto, excremento, ele pode ser matéria de transformação do circuito
pulsional: “há na clínica outras formas de queda que não a do
excremento, [...] em uma análise, o objeto também é matéria de uma
transformação pulsional e subjetiva” (David-Ménard, 2022, p. 70). Trata-
se, portanto, não só de quebrar o apolínio, mas também de transformar
o mundo a sua volta. No exemplo do caso clínico apresentado por David-
Ménard, depois do sonho e de uma acentuação hipocondríaca em volta
de sua hemorroida, o paciente passa a ter uma postura muito mais ativa
em seu ambiente de trabalho, postura que surpreende ele mesmo.
Voltemos a metapsicologia. Afinal, o que é excluído, recalcado? é
o caráter ilusório do objeto, a ilusão de que ele é capaz de satisfazer o
excesso. Retomando Safatle, David-Ménard (2022, p. 204) escreve que:

[...] o que caracteriza a infância é a desproporção entre a intensidade de


um perigo ou de uma excitação e a capacidade do outro de responder a
isso. [...] a insegurança ontológica [...] seria uma suspensão da ordem
simbólica, assim como o desamparo do fim de cura analítica, quando o
confronto com o traumático do real sexual não é mais excluído e se torna
experiência.

Assim, antes do gozo mudo cujo recalque pode ser suspendido na


análise, o recalcado é o desamparo que o gozo oculta. Apenas quando o
objeto do gozo toma forma, se apresenta (darstellen) na análise, que ele
pode ser desidealizado e o excesso, o desamparo, que ele ocultava, em vez
de ser excluído, pode se tornar experiência. Assim, é recalcado, excluído,
o desamparo, mas também o objeto de gozo que ilusoriamente o ampara.
A desilusão faz do objeto um dejeto. Mas o objeto não deve apenas
se tornar dejeto, tornar-se nada, deve também se tornar outra coisa, e isso
é claro em Freud, ele deve se tornar meta da sublimação (o sonho que
tentamos tornar compatível com nossa existência).

154
O gozo mudo e a violência: a clínica e a política

A sublimação corresponde a passagem de um objeto individual,


para outro social, compartilhado, transformado. O que era uma
problemática própria de um sujeito se inscreve no mundo comum e o
subverte, o desestabiliza e o redefine. O exemplo dado é de Leonardo da
Vinci:

Por exemplo, quando um destino de pulsões dá lugar a criação de um


novo modo de pintar, como é o caso de Leonardo da Vinci. [...] O que
era de um sujeito singular produziu outra coisa que não sua
problemática ‘própria’, e é a materialidade desse traçado singular que o
inscreve em um mundo comum que ele subverte. [...] Há nisso um salto
em um mundo comum à condição de que um aspecto desse mundo
comum seja desestabilizado e redefinido (David-Ménard, 2022, p. 231).

A ação sobre a realidade, a sublimação, é também uma


desestabilização da realidade, é a possibilidade de tornar as condições de
existência, compatível com o sonhado.
Em termos nietzschianos poderíamos dizer que se trata da
manutenção do antagonismo entre o apolínio e o dionisíaco, o que a
tragédia tão bem soube fazer, ambos impulsos “incitando-se
mutuamente a produções sempre novas” (Nietzsche, 1992, p. 27). Apolo
figura sobre as forças dionisíacas, depois é revelado como ilusório,
destruído e então força uma nova construção/figuração.
Mas voltando aos objetos sociais, podemos afirmar que assim
como o tratamento psicanalítico pode servir de conector, também a
sociedade o faz:

[...] a realidade institucional serve também para transpor o inassimilável


do objeto de desejo quando o que foi excluído na constituição do sujeito
volta a ser reconhecido. A realidade funciona como uma oportunidade
para essa transposição (David-Ménard, 2022, p. 70-71).

A sociedade, portanto, dá ao sujeito “oportunidades de se


reinventar”. E ela o faz também porque exige o sacrifício do gozo. A

155
Pluralismo em Filosofia e Psicanálise

sociedade neste sentido potencializa o dionisíaco que cria novos circuitos


pulsionais.
Outros objetos também iludem: a mercadoria, os objetos de
consumo. No capitalismo, há a ilusão de que o objeto, do qual se pode ser
proprietário, põe fim a angústia do desamparo. Assim como o apolíneo
que ora corresponde ao princípio divino, aos deuses do olimpo, que
funcionam quase como a Ideia platônica que em Schopenhauer aquietam
a vontade, e ora corresponde ao princípio da individuação, quer dizer, a
individuação no espaço, tempo e nas relações causais, portanto, material,
também podemos supor a presença do objeto de satisfação no gozo mudo
(objeto “a”) como na ilusão dos objetos de consumo que negam a
insatisfação, que negam o desamparo de que objeto algum é capaz de
suprir. O fetiche da mercadoria exclui, oculta, o dionisíaco, tanto como
excesso e desamparo, como também em sua ação de destruição da ilusão
e na sua ação sobre o mundo comum (sublimação). Ao negar o
desamparo, impede a transformação do circuito pulsional, a
transformação dos objetos fixos e individuais em objetos criados e
compartilhados. Mas vejamos, há uma diferença enorme entre a fixação
no gozo mudo, inconsciente, excluído do eu, e a fixação na mercadoria,
no objeto de consumo, na propriedade. Ambos paralisam o sujeito
impedindo-o de inventar novos objetos, mas enquanto o primeiro é
constitutivo e sua inibição (de sua incomunicabilidade/alucinação)
possibilita a constituição de novos circuitos pulsionais, o segundo é um
objeto oferecido pelo social, cuja função, em vez de constituir novos
circuitos pulsionais, novas relações e produções compartilhadas, produz
o isolamento do social, o individualismo, como se a estratégia de negar o
desamparo tivesse como objetivo enfraquecer as forças produtivas e os
laços sociais constituídos pelas diferentes singularidades. Se o
quebrantamento da ilusão do gozo possibilita um acesso ao social
balizado pela imagem desiderativa, a ilusão da mercadoria, da

156
O gozo mudo e a violência: a clínica e a política

propriedade, é oferecida pelo social para constituir artificialmente um


gozo individual que iniba novos circuitos pulsionais.
Neste ponto é interessante lembrar a análise do xamã yanomami
David Kopenawa, a respeito dos brancos, dos “povos da mercadoria” em
A queda do céu. Os brancos “querem ignorar a morte” (Kopenawa; Albert,
2015, p. 390). “Quando morre um pai, seus filhos pensam satisfeitos:
‘Vamos dividir as mercadorias e o dinheiro dele e ficar com tudo para nós!
Os brancos não destroem os bens de seus defuntos” (Kopenawa; Albert,
2015, p. 410). Diferente dos brancos, os yanomamis por se saberem
mortais, logo se desfazem de suas mercadorias:

As mercadorias não morrem. É por isso que não a juntamos durante


nossa vida e nunca deixamos de dá-las a quem as pede. Se não as
déssemos, após a nossa morte, continuariam mofando sozinhas,
largadas no chão de nossas casas. Só serviriam para causar tristeza nos
que nos sobreviveram e choram nossa morte. Sabemos que vamos
morrer, por isso cedemos nossos bens sem dificuldade. Já que somos
mortais achamos feio agarrar-se demais aos objetos que podemos vir a
ter. Não queremos morrer grudados a eles por avareza. Por isso eles
nunca ficam muito tempo em nossas mãos! (Kopenawa; Albert, 2015, p.
409-410).

Os brancos, no entanto, são apaixonados pelas mercadorias,


“dormem pensando nelas” “e depois ainda sonham com seu carro, sua
casa, seu dinheiro e todos os outros seus bens”. “As mercadorias deixam
os brancos eufóricos e esfumaçam todo o resto em sua mente”. E
Kopenawa termina: “Se os brancos pudessem, como nós, escutar outras
palavras que não as da mercadoria, saberiam ser generosos e seriam
menos hostis conosco. Também não teriam tanta gana de comer a
floresta” (Kopenawa; Albert, 2015, p. 413-414).
Ao se apresentar como gozo possível, as mercadorias não só
iludem, como fazem as imagens desiderativas, mas também mascaram a
violência.

157
Pluralismo em Filosofia e Psicanálise

4 A vida social

Vejamos mais atentamente a relação entre o desejo e o social.


David-Ménard ressalta que a relação entre o desejo e o social é de
heterogeneidade, “é o reino da inadequação [...], inadequação dos
objetos ao que é visado pelos desejos [...] Cada registro desconhece o
outro” (p. 212/3) Embora não haja uma continuidade entre os afetos (o
desejo, o sexual) e o social, eles estão intrinsicamente ligados. A
sociedade exige sacrifícios pulsionais, nada quer saber dos desejos e das
pulsões, mas oferece oportunidades para suas transformações. Para
David-Ménard o paradoxo é que “relações sociais, jurídicas e políticas que
se constroem ignorando o desejo são oportunidades de transformação
para os desejos” (David-Ménard, 2022, p. 213). Quais são os sacrifícios
exigidos? por um lado, o do gozo absoluto, por outro, a inversão da
violência. A sociedade age “transformando o excesso de seus gozos e de
seu ódio em modos de sociabilidade” (David-Ménard, 2022, p. 234). “A
reprodução das relações sociais exige dos membros do socius o sacrifício
de uma parte do gozo” (id.) e como afirma Freud em Psicologias das
massas e análise do eu, “O sentimento social repousa [...] na inversão de
um sentimento hostil em um laço de tom positivo da natureza de uma
identificação” (Freud, 2011, p. 83).
A heterogeneidade dos campos sexual e social remete a dois tipos
de inconsciente: o sexual e o que atua no corpo coletivo. David-Ménard
(2022, p. 220) escreve:

[...] nada permite dizer que o inconsciente atuante em um corpo político


seja sexual. Também não há nada que permita dizer antecipadamente
que o inconsciente sexual que torna um sujeito singular e, no entanto,
opaco a si mesmo seja aquilo que prenda o sujeito ao coletivo.

O fato de serem heterogêneos não quer dizer que um é o


inconsciente do outro, mas que cada um aponta a um inconsciente

158
O gozo mudo e a violência: a clínica e a política

próprio. David-Ménard (2022, p. 220) relaciona, nos dois casos, o


inconsciente com a materialidade e localidade:

Porém, nos dois casos, o inconsciente, a materialidade e a localidade


aparecem ligados. Como? Pelo lugar: lugar da cura, lugar político em
que um e outro se constroem. [...] um lugar é a encruzilhada de
componentes múltiplos e heterogêneos; ele não coincide com o centro
de fenômenos que transforma.

O lugar de cura na análise é, como vimos, quando, na


transferência, o gozo mudo se apresenta (darstellen), o analisante o
suporta, o narra e tem oportunidade de transformar o circuito das
pulsões (seu prazer oral, anal, passivo, exibicionista, invejoso, por
exemplo). O lugar político seria similar, quando componentes
heterogêneos, ocultos no corpo social tomam forma e possibilitam uma
transformação.
O que o corpo social oculta? a hierarquia, a exploração do
trabalho de uma classe por outra e a violência excludente que o constitui:
a necropolítica. O fetiche da mercadoria oculta, em Marx, as relações
sociais de exploração. Mas o mesmo que vale para o objeto de desejo, vale
para o corpo social, se ele oculta (por isso inconsciente) a violência que
exerce para se constituir, o desocultamento da violência pode ser uma
oportunidade de transformação, no caso, de inversão da violência mesmo
que parcial.
Até aqui desconsideramos o sacrifício exigido pelo social nas
transformações dos circuitos das pulsões, consideramos muito mais o
movimento próprio da pulsão, o antagonismo referente a duas forças,
apolíneo e do dionisíaco, e não como um sacrifício exigido pela sociedade
e aproveitamos essa diferenciação entre dois inconscientes distintos
(proposta por David-Ménard) para nos justificar.
Pensamos que acompanhando Freud em Visão geral das neuroses
de transferência (tradução da Imago, Neuroses de transferência: uma

159
Pluralismo em Filosofia e Psicanálise

síntese) podemos diferenciar esses dois inconscientes. Freud supõe dois


momentos na história filogenética, o primeiro que teria constituído as
bases da pulsão sexual: seu excesso, a satisfação alucinatória (gozo mudo)
e a sublimação (a possibilidade de satisfação no domínio da realidade,
quer dizer, a satisfação parcial), e o segundo momento que teria
constituído as bases do corpo social: essa seria a psicologia dos filhos da
horda primitiva, das massas, que aponta os caminhos tomados no
processo de inversão da violência: 1) o prazer na dor; 2) o amor ao igual e
o ódio ao diferente; e 3) o retorno do ódio contra as próprias pulsões,
contra si mesmo.
A constituição dos laços sociais, do amor pelos iguais é a
contrapartida do ódio aos diferentes. Essa ideia, já tentamos mostrar em
outro artigo, é bem exemplificada pela simultaneidade da constituição
do Estado moderno (da igualdade de todos perante às leis) e a
necropolítica: genocídio indígena, sistema escravocrata, colonização
africana, os campos de concentração, espaços constituídos por sujeitos
destituídos de qualquer direito. Nesse caso a inversão da violência, na
constituição do laço social, corresponde a um recrudescimento da
violência ao que fica excluído dos laços sociais. Poderíamos dizer que
mais que uma inversão se trata de um redirecionamento da violência. A
inversão será mesmo alcançada em um novo redirecionamento, quando
ela volta-se contra si própria, quando o sujeito passa a odiar si mesmo,
suas próprias pulsões. Na filogênese isso ocorre quando os filhos se
identificam com o pai morto, por meio de sua devoração, e passam a odiar
essa identificação, passam a odiar a si mesmos, o que corresponderia à
culpa e à submissão aos valores da coletividade. Só então, nesse
momento, o inconsciente social (o exercício puro da violência e a
submissão à violência) coincide com o inconsciente sexual, ambos
recalcados pelos ideais coletivos. Assim, se recalca o gozo, se exige o
sacrifício do gozo absoluto (tanto a ilusão da satisfação como a
insatisfação que ela oculta ... recalca-se o apolíneo/dionisíaco), como se

160
O gozo mudo e a violência: a clínica e a política

recalca também a violência (o exercício da violência e a submissão),


relegando-os (o gozo absoluto e os impulsos violentos e de submissão à
violência) para o inconsciente. A exigência de igualdade abafa a
heterogeneidade.
O que ocorre no capitalismo? A submissão ao capital é colorida
pelo fetiche da mercadoria, fetiche que encobre a própria violência nas
relações sociais, encobre a exploração de uma classe sobre a outra.
Apresentando-se como mero objeto de troca, transparente, a mercadoria
oculta a exploração que a produziu. O fetiche da mercadoria acaba
fazendo duas coisas: não só oculta a violência ao diferente que constitui
a sociedade de iguais, no caso constituída pelos proprietários, garantida
pelo direito abstrato da propriedade, mas também encobre, como vimos,
a inadequação do objeto ao desejo, nega a angústia (o desamparo), e
dessa forma inibe a possibilidade da ação, da sublimação, impede que
objetos ilusórios de gozo se transformem em objetos sociais criados
(encobre o apolíneo/dionisíaco). O fetiche da mercadoria nega, encobre,
a um só tempo o inconsciente sexual e social: o desejo e o gozo, por um
lado, e as efetivas relações de violência na sociedade, por outro.

5 Política

Podemos dizer que quanto mais forte for o corpo social (a


sociedade dos iguais), mais forte seu inconsciente, seja o ódio ao
diferente, seja o ódio contra si mesmo seja a submissão. O fato de Freud
denunciar a submissão, o ódio ao diferente e a culpa como o
“inconsciente social”, seja na religião, seja na perseguição dos judeus, dos
cristãos, dos diferentes na psicologia da massa, seja na violência do
supereu sobre os neuróticos, evidentemente isso não quer dizer que ele
não os valorize. Freud parece valorizar, apesar de denunciar, as inversões
da violência, seja no valor que ele atribui à submissão à realidade objetiva,
necessária ao cientista, seja na valorização da justiça social, requerida por

161
Pluralismo em Filosofia e Psicanálise

sua posição de judeu excluído, seja na responsabilidade pelo sintoma,


exigido no tratamento psicanalítico.
Como seria possível uma inversão não ilusória da violência?
Podemos supor que assim como a alucinação do objeto de desejo nega o
desejo, mas sua recordação pode servir de meta para uma satisfação
parcial, também a inversão dos afetos hostis em laços social, se não
pensada como absoluta, tão ilusória como o gozo mudo, pode ser
pensada, como aponta David-Ménard, como uma formação política
local, parcial, contingente, precária, mas possível e de grande valor
criativo, tanto quanto a satisfação parcial por meio da sublimação. Como
afirma David-Ménard (2022, p. 222), é possível o surgimento do público,
uma afirmação de igualdade, apesar das hierarquias e dominações. É
possível construir uma cena política, de igualdade, se renunciarmos a
ideia de que este lugar será revolucionário e definitivo. É a precariedade,
a marginalidade que faz existir um lugar político. Assim por exemplo os
corpos marginalizados, excluídos, que sofrem a violência, podem ganhar
expressão no corpo político (desfazendo a ilusão de que o corpo político
coincide com a ausência da violência), podem ser suportados e (e não
percebidos como destruidores) e assim oferecerem a possibilidade da
construção de novas relações menos desiguais e menos violentas. É
possível pensar em uma identificação (uma igualdade) que não elimine
a heterogeneidade, ao contrário, que seja incitada pelo antagonismo dos
componentes heterogêneos. Uma identificação que talvez produza a
responsabilidade em vez da culpa.
E remeto aqui ao conceito de animismo analisado por David-
Ménard. Ela analisa, na dialética do reconhecimento de Hegel, o processo
de exteriorização da vontade nos objetos, anterior ao próprio
reconhecimento. Exteriorização que se caracteriza como alienação, algo
similar ao animismo. David-Ménard relaciona essa exteriorização no
objeto com um animismo encontrado em artigos de Marx, em que ele
analisa a lei que regula o furto de madeira morta, de 1842; a relação,

162
O gozo mudo e a violência: a clínica e a política

portanto, não é com o fetiche da mercadoria, que também é um


animismo, mas com a identificação dos camponeses com a madeira
morta. Os camponeses se identificam com os galhos mortos caídos das
arvores, sentem uma afinidade com essa madeira seca e separada da vida
pela própria natureza e reivindicam o direito de propriedade sobre ela (e
perdem). Intuem de forma mais animista que racional sua própria morte
social quando tudo se torna mensurável e objeto de propriedade, no caso,
até mesmo aquilo que a natureza separou (os galhos mortos caem, se
separam da arvore). A identificação com os galhos aqui, o animismo, não
corresponde a uma fixação no objeto como é o fetichismo da propriedade
na sociedade capitalista, é sim uma identificação que possibilita perceber
as diferenças entre vivo e separado do vivo (morto), a posição marginal
do objeto e de si mesmo.
Também Viveiros de Castro, em Metafísicas canibais, analisa o
animismo dos povos ameríndio. O animismo é a contrapartida do
perspectivismo. Cada espécie tem sua perspectiva, seu ponto de vista, de
acordo com sua posição na escala predatória, sua posição em relação aos
seus predadores e suas presas. Ser capaz de ocupar um ponto de vista é
uma potência da alma, comum aos humanos e não humanos. “As
perspectivas de cada espécie devem ser mantidas separadas, pois são
incompatíveis. Apenas os xamãs [...] podem fazê-las comunicar, e isso
sob condições especiais e controladas” (Viveiros de Castro, 2018, p. 63).
O xamã cruza deliberadamente as barreiras corporais entre as espécies e
adota a perspectiva de subjetividades “estrangeiras”, de modo a
administrar as relações entre estas e os humanos.

Vendo os seres não-humanos como estes se veem (como humanos), os


xamãs são capazes de assumir o papel de interlocutores ativos no
diálogo transespecífico; sobretudo, eles são capazes de voltar para
contar a história [...]. O encontro ou o intercâmbio de perspectivas é um
processo perigoso, e uma arte política — uma diplomacia (Viveiros de
Castro, 2018, p. 49).

163
Pluralismo em Filosofia e Psicanálise

O propósito do xamã é não perder de vista as diferenças entre as


perspectivas, nisso está seu papel diplomático, político. Traduz-se uma
perspectiva para outra não para equalizá-las, mas para avaliá-las e poder
negociar. O xamã Kopenawa, por exemplo, traduz para os indígenas as
intenções dos brancos (seus inimigos, predadores) e negocia com os
brancos os interesses dos indígenas. Assim, Viveiros de Castro cita, no
Prefácio de A queda do céu, a conversa de Davi Kopenawa com o general
ministro chefe da casa civil do governo Sarney em 1989. O general fala
para Kopenawa: o povo de vocês gostaria de receber informações sobre
como cultivar a terra? Ao que Kopenawa responde: Não. O que desejo
obter é a demarcação de nosso território. Viveiros de Castro observa:

[...] o que me fascina nesse diálogo é a presunção do general, que


imagina poder ensinar aos senhores da terra como cultivá-la. [...]. Mas
mais fascinante ainda é a total inversão de conceitos proposta por Davi
[Kopenawa] em sua réplica [...]. O general fala em terra, quando deveria
estar falando em território. [...] Kopenawa sabe bem o que sabem os
brancos; sabe que a única linguagem que eles entendem não é a da terra,
mas a do território, do espaço estriado, do limite, da divisa, da fronteira,
do marco e do registro. Sabe que é preciso garantir o território para
poder cultivar a terra (Kopenawa; Albert, 2015, p. 36).

E Viveiros de Castro lembra a fala de Kopenawa em uma


entrevista:

Quem ensinou a demarcar foi o homem branco. A demarcação, divisão


da terra, traçar fronteira é costume de branco, não do índio. Brasileiro
ensinou a demarcar terra indígena, então, passamos a lutar por isso
(Kopenawa; Albert, 2015, p. 36).

Podemos dizer que ao compreender a violência oculta nas ditas


demarcações de “territórios” é possível lutar por eles sem se tornar fixado
e aprisionado a eles, lutar, por entender que eles são uma proteção no
mundo violento dos brancos (predadores), para cultivar as próprias
terras. Parece uma constituição de igualdade, da política, que não iguala
todos mas que suporta o convívio com o diferente e pode ser de troca.

164
O gozo mudo e a violência: a clínica e a política

6 Considerações finais

Partindo da diferenciação que David-Ménard propõe entre sexual


e social e supondo dois tipos de inconscientes, um sexual e outro social,
que podem coincidir ou não, pudemos repensar a metapsicologia
freudiana que diferencia uma psicologia do pai primitivo, relacionada ao
sexual e que relacionamos ao apolíneo-dionisíaco, e a psicologia dos
filhos, da massa, constitutiva dos laços sociais. Se em relação ao
inconsciente sexual pudemos encontrar o “gozo mudo”, em relação ao
inconsciente social pudemos encontrar modificações da violência que de
certa forma a intensificam: o ódio ao diferente, excluído e a submissão. A
cura na clínica e a política (enquanto inversão da violência) são possíveis
quando são inibidas essas posições fixas e são criados novos circuitos
pulsionais que envolvam a produção de novos laços sociais,
possibilidades de trocas e transformações do mundo. Algumas
considerações do xamã yanomami Davi Kopenawa e do antropólogo
Viveiros de Castro nos possibilitaram compreender como essas fixações,
aprisionamentos, são estimulados no capitalismo.

Referências

CORRÊA, Fernanda Silveira. Filogênese na metapsicologia freudiana.


Campinas: Unicamp, 2015

DAVID-MÉNARD, Monique. A vontade das coisas: o animismo e os objetos.


São Paulo: Ubu, 2022.

FREUD, Sigmund. (1985 [1915]). Neuroses de Transferência: Uma síntese


(Manuscrito recém-descoberto). Trad. Abram Eksterman. Rio de Janeiro,
Imago, 1987.

FREUD, Sigmund. (1950 [1895]). Projeto de uma psicologia. Obras isoladas de


Freud. Trad. Osmyr Faria Gabbi Jr. Rio de Janeiro: Imago, 1995.

165
Pluralismo em Filosofia e Psicanálise

FREUD, Sigmund. (1921). Psicologia das massas e análise do eu. Obras


Completas, vol. 15. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das
Letras, 2011a.

FREUD, Sigmund. (1900). Interpretação dos sonhos. Obras completas, vol. 4,


Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.

KOPENAWA, David, ALBERT, Bruce. A queda do céu: Palavras de um xamã


yanomami. São Paulo: Companhia das letras, 2015.

NIETZSCHE, Friedrich. (1872). O nascimento da tragédia. Coleção Obras de


Nietzsche. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia da Letras, 1992.

VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Metafísicas canibais: Elementos para uma


antropologia pós-estrutural. São Paulo: Ubu; n-1 Edições, 2018.

166
Política da falta: uma análise política
a partir de Lacan
Allysson Alves Anhaia 1
DOI: https://doi.org/10.58942/eqs.79.08

1 Introdução

Essa comunicação buscou explicitar o objetivo e apresentar


algumas impressões iniciais de uma pesquisa de doutorado que visa
elaborar uma proposta política a partir da relação entre a psicanálise de
Lacan e o acontecimento de Alain Badiou. Por conta disso, no limitamos,
num primeiro momento, a destacar o modelo de produção e organização
social que torna essa relação tão pertinente na atualidade a partir da
noção de realismo capitalista. Em um segundo momento, tratamos da
noção de falta em Lacan, pois é essa noção que abre espaço para a relação
com o acontecimento, já que assume centralidade tanto na formação da
identidade dos sujeitos quanto da relação que o ser humano tem com a
realidade. Em um terceiro momento, nos voltamos para a teoria de
Badiou para expor como o acontecimento se relaciona com a teoria
lacaniana, sobretudo a partir do vazio, e como essa noção pode servir

1Membro do GT Filosofia e Psicanálise da ANPOF, é doutorando em filosofia pela Pontifícia


Universidade Católica do Paraná (PUCPR), onde fez Mestrado (2021) integrando a linha de
pesquisa de Filosofia da psicanálise e teve período de Estudos com bolsa do programa Erasmus
na Katolische Privat Universität Linz, na Áustria. É licenciado em Filosofia (2018) pela mesma
instituição e atua como professor de filosofia no ensino médio e fundamental do Estado do
Paraná. Pesquisa a relação entre a psicanálise, sobretudo lacaniana, com o campo político a
partir de autores da chamada esquerda lacaniana, além de se dedicar a temas como o
acontecimento, ideologia e o sujeito descentrado, bem como as implicações de uma leitura da
atualidade a partir do ponto de vista do desejo. E-mail: zubualves@gmail.com
Pluralismo em Filosofia e Psicanálise

como um operador conceitual capaz de provocar uma ruptura como o


modelo de organização e produção da sociedade atual.

2 Admitindo a derrota

Fukuyama e todos os outros que advogaram pelo fim da história


estavam certos, o capitalismo triunfou e, assim como argumenta Mark
Fisher em seu Realismo capitalista (2020, p. 63), a esquerda nunca se
recuperou da rasteira que o capital lhe passou ao mobilizar e metabolizar
o desejo. O fim da história, que em outras palavras é o fim da
possibilidade de fazer frente ao modelo do capitalismo liberal, se deu
como realismo capitalista: a ideologia se torna tão bem-sucedida que
deixa de ser pensada como valor e se naturaliza, passa a ser pensada como
um fato que não pode ser questionado e muito menos negado. Um
recurso interessante para entender o realismo capitalista é a noção de
ideologia apresentada por Žižek ao se valer da diferença entre o real e a
realidade na teoria lacaniana: enquanto o real é aquilo que deve ser
suprimido, algo de irrepresentável e por isso inapreensível, a realidade é
aquilo que se constrói através dessa repressão, servindo para proteger o
sujeito desse vazio do não-senso que vem da não-representação. É
justamente nesse nível em que a ideologia se funde com a realidade, e se
torna a própria condição através da qual o sujeito percebe o mundo e a si
mesmo, de forma que o princípio de realidade é ideologicamente
mediado. Isso significa que a ideologia se apresenta como algo não
ideológico, como os chamados fatos empíricos da economia (taxa de
desemprego, PIB, SELIC, Superavit etc.) ou da biologia (homem nasce
homem e mulher nasce mulher) que são os exemplos máximos dessa
lógica.
Soma-se a esse quadro o contexto de virada filosófica e cultural da
segunda metade do século passado que pode ser caracterizada pelas
várias crises ocasionadas pelo declínio da crença naquilo que Lyotard

168
Política da falta: uma análise política a partir de Lacan

(2009) chamou de metanarrativas, ou seja, o esgotamento de categorias


como razão, sujeito, totalidade, progresso e verdade, bem como a busca
por novos enquadramentos teóricos. Por conta desse contexto que
Badiou (1991) identificou a atualidade como o tempo de um niilismo
esquecedor que desintegra os laços sociais e afetivos e os substitui pelo
cálculo frio da produtividade capitalista. Mark Fisher, por sua vez, atribui
a esse contexto a epidemia de depressão, bipolaridade e de outras
questões de saúde mental e afirma (Fisher, 2020 p. 67) que “a tarefa de
repolitizar a saúde mental é urgente se a esquerda deseja desafiar o
capitalismo realista”. Nessa mesma linha, nossa proposta é pensar o
acontecimento assim como apresentado por Badiou como um operador
conceitual que pode ser um ponto de ruptura com o modo capitalista
realista de se pensar o mundo. Isso porque entendemos que a partir do
acontecimento se têm espaço para uma potência afirmativa capaz de
fazer frente ao modelo liberal de produção de subjetividades.

3 Juntando os cacos

No entanto, a utilização do acontecimento como operador


conceitual do campo político deve estar atrelada a uma análise que parte
da noção de sujeito de Lacan. Para o psicanalista parisiense o sujeito tenta
suprir a falta de identidade no campo do simbólico, já que desde a
formação do eu imaginário no Estádio do Espelho até a passagem a
ordem do simbólico (na qual ele se torna sujeito da linguagem e do
significante) o indivíduo tem que se sujeitar, se adequar as regras e
imposições, primeiro da imagem e depois do significante para adquirir
uma identidade mais sólida e convincente. No entanto, o significante só
produz significação porque não se refere a nenhum objeto que é
significado de forma objetiva, isto é, não tem nenhuma relação como o
mundo efetivo, mas exclusivamente com o universo da linguagem. Em
outras palavras, a significação funciona de acordo com o significante, de

169
Pluralismo em Filosofia e Psicanálise

maneira que ela sempre se refere a diferença para com outra significação
e assim sucessivamente, nunca se direcionando para o mundo efetivo,
mas sempre para algo de anterior, de maneira que o significado desliza
metonimicamente na relação de diferença que constitui a cadeia do
significante. Dessa forma, o que existe na intersecção entre o sujeito e o
significado é nada mais que o real em seu sentido pleno, quer dizer, de
impossível por ser incapaz de simbolizar. Com isso se tem que a busca
por uma identidade no simbólico só faz solidificar ainda mais o sujeito
na falta, uma vez que o real que aparece como constitutivo do significado
é agora a identidade do sujeito. Em outras palavras, a relação entre
simbólico e real delimita a função que a ordem do simbólico exerce sobre
a identificação, de modo que o significado está para além do simbólico, o
que faz com que o jogo dos significantes aponte justamente para a
efetividade do real. Dessa maneira, a busca por uma identidade mais
consistente esbarra sempre na alienação no simbólico, feita pelo
significante, que determina uma identificação ilusória para o sujeito.
Desse modo, seja no imaginário 2 ou no simbólico, a totalidade e
completude do corpo real não é apreendida pelo sujeito, o que faz com
que a identidade, em Lacan, só seja possível como fracassada. Contudo,
para que o indivíduo consiga simbolizar, não somente sua subjetividade,
mas também a realidade a sua volta, ele sacrifica o encontro com o real,
que, em contrapartida, possibilita sua entrada no campo social, de forma
que é lícito o entendimento de que as estruturas do campo social são
simbólicas. Isso significa que o sujeito se constitui como sujeito da falta,
já que além de resistir ao imaginário e ao simbólico, a falta se torna
constituinte tanto da subjetividade quanto da realidade social do sujeito,
de forma que o jogo circular entre a falta e a identificação, e mais além,

2A alienação do imaginário é tratada por Lacan em seu texto Estádio do Espelho de 1949 e faz
referência ao sujeito reconhecer a sua identidade a partir do outro imaginário, uma vez que ele
apreender a completude de seu corpo efetivo a partir da imagem, o que o distância do registro
do real e da efetividade.

170
Política da falta: uma análise política a partir de Lacan

da identificação pela falta, marca a estrutura do ser humano enquanto


tal.
Nesse ponto o sujeito recorre a fantasia como a última
possibilidade de preencher a falta que constitui tanto sua estrutura
subjetiva quanto a estrutura sociossimbólica. Contudo, a falta no
simbólico é evocada pela impossibilidade do desejo primordial. A
fantasia, em sua função de ser o que abre espaço para o desejo, faz com
que o objeto apareça para o sujeito com esse resto não simbolizado, que
na teoria lacaniana tem o status de jouissance, o gozo que está para além
do prazer, pois é ligado à ordem do real, e é sentido somente através da
saída do simbólico. Desta maneira, a fantasia tem a função de tornar
suportável a falta no Outro 3, e faz isso, como pontua Stavrakakis (2007,
p. 81), a partir do esquecimento da diferença que existe entre a realidade
e o real. É justamente nesse ponto que o realismo capitalista opera, junto
a fantasia que possibilita a identidade a percepção da realidade, o
capitalismo molda e forma o desejo para que ele exista como parte e
engrenagem de si, o que explica o porquê de o capitalismo se confundir
com a realidade: ele se coloca como anterior a estrutura simbólica, se
fazendo passar pelo real de onde vem o desejo e as pulsão, atuando como
uma camada extra de realidade, um intermédio entre o registro do real e
a estrutura sociossimbólica, fazendo com que o próprio registro do
simbólico perca sentindo e já seja apreendido como algo obsoleto e
descartável.
Assim, tendo em vista essa constituição de sujeito e o domínio do
realismo capitalista, visamos destacar que a falta que é constituinte do
sujeito aponta para a inconsistência da efetividade de mesma forma que

3 Em Lacan existe a distinção entre o outro com inicial em minúscula e o Outro com inicial em

maiúscula. O primeiro, com minúscula, é um duplo do sujeito, seu semelhante enquanto outro
sujeito que pode ser percebido como objeto do desejo. Já o segundo, com maiúscula, é o
intermediário da cadeia significante, isto é, um representante tanto da ordem do simbólico
quanto do desejo do próprio sujeito que se articula através dessa ordem, e por isso,
radicalmente diferente do sujeito.

171
Pluralismo em Filosofia e Psicanálise

tem a capacidade de abrir espaço para a construção da afirmação política


do ser humano. Isso quer dizer que a busca pela falta pode possibilitar a
afirmação do sujeito, uma vez que quanto mais o sujeito se aproxima dela,
paradoxalmente, mais se aproxima da completude que só existe no real
efetivo, já que o real é sem fissura, assim como afirma Lacan em seu
segundo seminário (2010, p. 128). Isso significa que na efetividade não
falta nada, de forma que a falta é experimentada pelo sujeito,
primeiramente, a partir da sua auto apreensão através do imaginário, que
representa uma falta não simbolizada, mas sentida apenas como um mal-
estar causado pelo não reconhecimento de seu corpo real. Em um
segundo momento ela é apreendida pelo simbólico, que a introduz como
simbolizada, o que faz com que seja sentida como falta em seu sentido
pleno. No entanto, a aproximação do real acarreta sempre o encontro
com falta enquanto sentida a partir dos registros do simbólico e do
imaginário, uma vez que as alienações nas quais o sujeito se inclui são
permanentes e servem como fundamento para a existência tanto do
sujeito quanto do mundo à sua volta. Assim, ao se propor uma afirmação
a partir do real, se propõe necessariamente uma espécie de morte
simbólica que seria resultado do abandono dessas alienações
constituintes do mundo. Essa aproximação do real e da morte simbólica
do sujeito seria possível a partir da leitura do acontecimento como
apresentado por Badiou, já que esse filósofo tem a teoria de Lacan como
plano de fundo, uma espécie de ponto de partida ao mesmo tempo que
não guarda nenhum compromisso com a tradição psicanalítica. Em
outras palavras, o acontecimento de Badiou, de certa forma, se comunica
e se faz como herdeira de determinado lacaninsmo, uma vez que ele pode
oferecer, aquilo que é impossível na teoria de Lacan, que é o encontro
com a contingência, com a efetividade que pode ser lida como o real
lacaniano e que acreditamos que pode ser entendido como uma ruptura
na estrutura simbólica da realidade, uma quebra de paradigma, que pode
possibilitar uma saída do capitalismo por abrir espaço para a afirmação

172
Política da falta: uma análise política a partir de Lacan

das subjetividades que são excluídas, reprimidas, ignoradas ou


destruídas pelo capitalismo.

4 Começando do zero

Isso porque o acontecimento para Badiou é aquilo que


proporciona uma mudança radical na ordem das coisas, mas mais do que
isso, representa também uma mudança retroativa, na qual até mesmo o
passado é afetado por ele. Além disso, o acontecimento, está próximo do
vazio que funda toda existência, da abertura para a contingência, ou em
“lacanês”, do registro do real. Por conta disso, essa leitura torna clara
também justamente a característica que visamos evitar que é de não
haver alternativa ao capitalismo. Contudo, se faz importante, em um
primeiro momento, uma investigação que visa destacar semelhanças e
diferenças nas noções de acontecimento na obra de Lacan e de Badiou,
ou melhor daquilo que se aproxima do acontecimento em Lacan, que
parece ser o ato psicanalítico. Isso porque o acontecimento não é elevado
à categoria de conceito pelo psicanalista francês, mas ocupa o lugar de
uma ordem, a ordem do acontecimento que é oposta a ordem da verdade,
assim como exposto por Lacan em seu Sétimo seminário (Lacan, 2008. p.
314). Enquanto a verdade se relaciona com o significante e a ordem do
simbólico, podemos entender que o acontecimento está do lado do real e
do desejo. Além dessa primeira diferença, conseguimos destacar uma
semelhança entre as teorias desses dois pensadores franceses: em ambos
os casa há uma ordem que torna possível a apreensão do mundo que se
dá, em primeira instancia, como inapreensível. Se para o psicanalista é o
universo da linguagem que surge a partir do registro do simbólico e as
alienações no imaginário que permite a apreensão e inscrição da falta e
do real tanto na subjetividade quanto na forma com que o sujeito se
relaciona com o mundo a sua volta, para o filósofo é a conta-por-um que

173
Pluralismo em Filosofia e Psicanálise

torna os múltiplos indiscerníveis em unidades que podem ser


apreendidas pela consciência do sujeito.
Para além disso, vale ressaltar o contexto em que Lacan começa a
pensar o Ato psicanalítico e do qual surge boa parte das inquietações que
dão origem a filosofia de Badiou: maio de 1968. É em seu decimo quinto
seminário que acontece em parte de 1967 e precisou ser interrompido
pela greve estudantil em 1968 que Lacan se dedica a pensar o ato
psicanalítico. A greve estudantil que se torna um dos acontecimentos
fundadores da atualidade, pois expõe a impossibilidade de mudar as
estruturas da sociedade, tinha como demanda principal a reforma no
sistema educacional francês e foi duramente reprimida e rapidamente
silenciada, não se transformando em mudanças concretas e demandas
atendidas, e sim em um sentimento de que a revolução, a partir daquele
ponto, seria impossível. Justamente como uma resposta a esse
acontecimento que Badiou se dedica a refundar um sistema filosófico,
uma vez que para o filosofo que era simpático ao movimento estudantil,
a filosofia é por si só um sistema que aprisiona outros tipos de
pensamento e se fecha em sua própria estrutura. Por conta disso ele acusa
na filosofia que era praticada naquele tempo uma espécie de estetização,
isto é, não se preocupa mais com a interpretação ou com a intersecção
com o mundo, mas sim com a pura forma do pensamento. Em outras
palavras, Badiou visa recuperar a capacidade de transformação da
filosofia, justamente por isso se baseia nos pensamentos de Lacan e na
matemática como uma forma de contornar tal estetização.
A partir disso é interessante notar que desde o seminário 11, de
1964 que Lacan está se dedicando a um enfrentamento a filosofia que
perpassa os seminários seguintes que podem ser entendidos como
seminários epistemológicos, já que neles o psicanalista encontra na
ciência, na lógica e na matemática condições para pensar os
fundamentos da psicanálise. Não à toa que os seminários do 11 ao 14 se
referem, respectivamente, aos conceitos fundamentais, ao problema, ao

174
Política da falta: uma análise política a partir de Lacan

objeto e a lógica da psicanálise. A partir do seminário 15 se tem uma


ruptura na qual Lacan começa a se dedicar a uma teoria do fazer, que
pode mudar as coordenadas simbólicas que organizam o real. Nesse
seminário se dá uma espécie de roteiro da análise que culmina sempre na
travessia da fantasia e no sujeito se encontrando com o seu vazio
constituinte. Para Lacan, o ato analítico seria justamente aquilo que, por
parte do psicanalista, conduz o sujeito ao encontro de seu vazio
constituinte através da transferência, que aponta sempre para algo de
real, para o não-ser.
Justamente por conta dessa capacidade de reformulação da
realidade e condução ao vazio que podemos aproximar o ato psicanalítico
com o acontecimento em Badiou. Assim como pontua Žižek, (2017, p. 17)
“um acontecimento não é algo que ocorra dentro do mundo, mas uma
mudança no próprio arcabouço pelo qual percebemos o mundo e nos
envolvemos nele”. O acontecimento seria algo chocante e fora do normal,
é um efeito que excede sua própria causa e por conta disso, abre espaço
que separa o efeito daquilo que o causou, de forma que interrompe o fluxo
natural das coisas, oferecendo a possibilidade de virada para uma nova
ordem. Em outras palavras, o acontecimento traz à tona um acaso que
transmite algo de novo, que até então era impossível de se apreender.
Além disso, o acontecimento, está próximo do vazio que funda toda
existência, da abertura para a contingência, uma vez que para Badiou ele
é um surgir infundado, uma multiplicidade que não encontra para si
fundamento no mundo que é apreendido pelo sujeito. Isso porque o
filósofo francês articula toda sua filosofia ao redor de uma posição
ontológica na qual o ser enquanto ser, ou seja, a configuração da
existência enquanto tal, é uma multiplicidade pura, de forma que ela
mesma é formada por multiplicidades anteriores. Em outras palavras,
para o filósofo, o ser não corresponde com o Um, mas sim com diversos
elementos — aos quais ele chama de múltiplos — que, por sua vez, são
compostos por outros elementos, ou seja, outros múltiplos. Assim,

175
Pluralismo em Filosofia e Psicanálise

múltiplos são formados por múltiplos (Badiou, 1996, p. 45), até que se
chegue a um ponto de interrupção que está por trás de todo múltiplo, que
é o vazio.
O vazio é um dos alicerces da teoria de Badiou, já que ele se afasta
da positividade de uma ontologia da presença. Dentro dessa teoria, o
acontecimento (Badiou, 1996, p. 53) é um elemento do acaso, no qual o
vazio de uma situação é retroativamente detectável. Em outras palavras,
o acontecimento é o que que faz com que o sujeito apreenda aquilo de
indiscernível que constitui o seu ser, o vazio que fundamenta todo
múltiplo. A partir dessa articulação, podemos dizer que o acontecimento
em Badiou se aproxima mais uma vez do ato analítico em Lacan, já que
em ambos os casos se tem a aproximação de uma ordem indiscernível que
se estende por trás de outra ordem que se faz discernível. No caso de
Lacan é a aproximação com o real e com o não-ser a partir da
transferência, e no Caso de Badiou se aproxima do vazio e do múltiplo.
Contudo, o que permite que o acontecimento aponte para uma ruptura
da estrutura simbólica é a função do sítio eventual que é um múltiplo que
não tem nenhum de seus elementos apresentados na situação. Isso quer
dizer que os elementos, mesmo que apresentados ao sujeito, não
adquirem consistência por si mesmo, mas sim sempre ligados ao
múltiplo do qual fazem parte. Nenhum dos elementos é contado-por-
um, ou seja, apresentado como Um ao sujeito, mas sempre fazendo
referência ao múltiplo a que pertencem. Assim, o sítio é o mínimo que
pode ser concebido do efeito da estrutura da apresentação do mundo, o
que faz com que ele esteja na borda do vazio, é uma condição necessária
para a existência do acontecimento. Isso significa que o acontecimento é
sempre localizável, no sentido de ser local e não global, de estar
relacionado à história e não à afetividade do mundo, de forma que ele
está preso a sua própria definição, ao ponto que concentra em si toda a
história do mundo apresentado.

176
Política da falta: uma análise política a partir de Lacan

Assim sendo, mesmo que encontre na teoria lacaniana


determinada inspiração e fundamento para sua própria ontologia,
Badiou imprime em sua noção de acontecimento uma capacidade de
ruptura inexistente na teoria de Lacan. Isso se dá pela articulação entre o
vazio, o múltiplo, o sítio eventual e o próprio acontecimento. Assim essa
capacidade de ruptura retroativa do acontecimento cai muito bem em
um momento pós-histórico em que não só a esquerda, mas todo o campo
político se vê confuso, atordoado, sem capacidade de fazer frente ao
avança do autoritarismo, fascismo e a degradação das condições de vida
por todo o globo. Contudo, o acontecimento é aqui proposto apenas
como um movimento de ruptura com o campo simbólico dominado pelo
capitalismo, com a estrutura ou com a lógica do capitalismo tardio, lógica
que não só coloniza o sujeito, mas que também produz sua subjetividade
e seu desejo. Dizer que ele é apenas o momento de ruptura significa dizer
que a continuidade dessa pesquisa se concentrará em como inscrever a
novidade do acontecimento na ordem simbólica. Por hora, nos limitar a
propor uma ruptura com a capitalismo nos parece um passo ousado
frente a nossa realidade, sobretudo brasileira. Para finalizar, com um
pouco de otimismo frente ao esfarelamento da realidade política da
atualidade podemos dizer que

O realismo capitalista não é capaz de sobreviver quando “alternativas


começam a florescer”. Com o fim do fim da história abre-se a
possibilidade de reinventar o futuro: “cabe a nós construir este futuro,
ainda que — em outro nível — ele já esteja nos construindo: um novo
tipo de agente coletivo, uma nova possibilidade de falar na primeira
pessoa do plural”. [...] onde o aumento de nossa potência em comum
retroage reforçando nossa autoconfiança coletiva, e vice-versa (Fisher,
2020, p. 196).

177
Pluralismo em Filosofia e Psicanálise

5 Considerações finais

O que se pretendeu evidenciar é que a partir da articulação entre


a teoria lacaniana e a ontologia de Badiou se torna possível pensar o
acontecimento como certa suspenção da ordem simbólica capaz de
afirmar a negatividade que constitui o ser e o sujeito para que exista uma
reorganização do significante, ou seja, uma mudança efetiva na ordem
simbólica. Isso significa que a partir do acontecimento, se tem a
possibilidade de abertura para uma posição na qual se pode iniciar uma
luta contra a ideologia naturalizada que é o realismo capitalista.
Contudo, a reestruturação do universo simbólico significa também a
reestruturação da identidade do sujeito, uma vez que o acontecimento é
também a suspenção das alienações que o constituem e o permitem
apreender o mundo a sua volta. Em última instância, se busca no
acontecimento um operador conceitual que possa inscrever alternativas
para que se comece a pôr fim em um regime de sofrimento psíquico,
padronização e produção de subjetividades que é o capitalismo atual.

Referências

BADIOU, Alain. Manifesto pela filosofia. Trad. M. D. Magno. Rio de Janeiro:


Aoutra, 1991

BADIOU, Alain. O ser e o evento. Trad. Maria Luiza X. de A. Borges. Rio de


janeiro: Zahar, 1996.

FISHER, Mark. Realismo capitalista: É mais fácil imaginar o fim do mundo que


o fim do capitalismo? Trad. Rodrigo Gonçalves, Jorge Adeodato, Maikel da
Silveira. São Paulo: Autonoma Literária, 2020.

LACAN, Jacques. O semanário livro 7: A ética da psicanálise. Trad. Antônio


Quinet. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.

178
Política da falta: uma análise política a partir de Lacan

LACAN, Jacques. O seminário livro 2: O eu na teoria de Freud e na técnica da


psicanálise. Trad. Marie Laznik Penot e Antônio Quinet. 2. ed. Rio de Janeiro:
Zahar, 2010.

LYOTARD, Jean-François. A condição pós-moderna. Trad. Ricardo Cortes


Barbosa. 12. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2009.

STAVRAKAKIS, Yannis. Lacan y lo político. Buenos Aires: Prometeu Libros,


2007.

ŽIŽEK, Slavoj. Acontecimento: uma viagem filosófica através de um conceito.


Trad. Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar, 2017.

179
Pluralismo em Filosofia e Psicanálise

180
Schreber como um caso paradigmático
em Freud
Eder Soares Santos 1
DOI: https://doi.org/10.58942/eqs.79.09

1 Introdução

Ao utilizarmos a concepção de paradigmas proposta por Kuhn


aplicada à psicanálise conseguimos observar que um mesmo material
clínico pode nos levar a resultados bastante diferentes dependendo da
lupa, ou seja, paradigma, através do qual os problemas são visualizados.
De saída isso já gera algumas questões, como: podemos falar em
paradigma na psicanálise? Existe tal coisa como paradigma na
psicanálise? “Paradigma” significa o mesmo que modelo? Se os
paradigmas forem diferentes na psicanálise, o que faz com que ela
continue sendo a mesma?
O surgimento da obra A Estrutura das Revoluções Científicas de
Thomas Kuhn permitiu acalorar um debate que já vinha se constituindo
na década de 1960 que era a de afirmar que o pensamento científico não
se distingue de outros modos de pensamento pela sua “imunidade” às
determinações sociais, ou seja, também não escapa à determinação não-
lógica das forças sociais (King, 1980, p. 97). Consequência: nem a ciência
é uma fortaleza impenetrável constituída pela razão e pela lógica nem as

1Professor associado do Departamento de Filosofia da Universidade Estadual de Londrina e


professor permanente do Programa de Pós-graduação em Filosofia da mesma universidade.
E-mail: edersan@uel.br
Pluralismo em Filosofia e Psicanálise

disciplinas ditas não científicas são tão desprovidas de uma


fundamentação aceitável e utilizável para a atividade científica.
Kuhn propõe que o desenvolvimento científico não é tão linear no
que concerne à validade das relações entre prática e ideias científicas. Em
particular, isso desafia a visão de que a prática científica está estruturada
em torno de um procedimento universal lógico e a-social. Em Kuhn, a
atividade científica é tratada como sendo governada por tradições
concretas, discretas e locais que de fato resistem à racionalização (King,
1980, p. 99).
Nesta perspectiva, as descobertas científicas são classificadas
como: ciência normal e revoluções científicas. A ciência normal diz
respeito à atividade científica que tem como objetivo explicar os eventos
da natureza a partir de um ponto de vista estabelecido, ou seja, essas
descobertas são eventos circunscritos, controlados. Elas podem ser
antecipadas à luz de um conhecimento já existente, em que os cientistas
já sabem mais ou menos o que é aquilo que estão procurando. Isso não
quer dizer que não existam disputas nesse meio. Porém, elas não são
muito prolongadas ou intensas, não provocando, portanto, nenhum tipo
de ruptura no conhecimento já estabelecido.
Por outro lado, as revoluções científicas não podem ser previstas
por uma teoria estabelecida. Elas surgem como e a partir de anomalias
não solucionadas pela ciência normal, cuja significância e efeitos
emergem lentamente e são assimiladas somente depois de ajustes
radicais na teoria.
A noção de paradigma desempenha um papel central na teoria
kuhniana, cujo termo “paradigma” não denota uma visão de mundo, mas
sim um exemplo específico da prática científica atual, que serve como
modelo para essa comunidade e, implicitamente, define a legitimidade e
métodos de um campo de pesquisa para as gerações sucessivas de
praticantes.

182
Schreber como um caso paradigmático em Freud

Em seu livro, supracitado, Kuhn usou diferentes definições para


paradigma e, tendo sido muito criticado por isso, decidiu precisar e
melhorar essa sua noção, distinguindo dois diferentes sentidos para o
termo. Primeiramente, paradigma é o que nós encontramos “pelo exame
do comportamento dos membros de uma comunidade científica
determinada previamente por métodos sociológicos” (Kuhn, 1970, p.
175). Ele chama isto de o sentido sociológico do termo paradigma.
Deste modo, Kuhn propõe, a fim de não causar confusão com este
termo, matriz disciplinar. Esta última é formada por quatro
componentes, sendo que o último deles é o que vai se remeter ao segundo
sentido que o termo paradigma possui.
O primeiro deles é chamado de “generalizações simbólicas” (do
tipo f = ma). Elas podem funcionar, em parte, como leis e como definição
de seus símbolos, dos quais a prática científica baseia-se em função do
que eles estão realizando.
Um outro ponto a se observar é que as generalizações simbólicas
são, em geral, mantidas como esboços de leis (law-sketches) e não
enquanto lei propriamente, implicando isso que elas produzem leis
diferentes quando são aplicadas em tipos variados de situação
(Musgrave, 1980, p. 45).
O segundo componente apresentado por Kuhn são as “partes
metafísicas do paradigma” ou “paradigmas metafísicos” — ou ainda
componentes ontológicos do paradigma (Loparic, 1997) — tais como
átomos, campos de força, pulsão (no caso da psicanálise). Elas
desempenham um importante papel no trabalho científico na medida
em que “fornecem soluções [...] e auxiliam na determinação dos quebra-
cabeças restantes e também ajudam na avaliação da importância de cada
um deles” (Kuhn, 1970, p. 184). A extensão dos compromissos coletivos
de crenças em determinados modelos metafísicos pode ir desde a
heurística até a ontologia:

183
Pluralismo em Filosofia e Psicanálise

Os “valores” compõem o terceiro componente da matriz


disciplinar. Através deles, pode-se indicar a consistência e a habilidade
dos cientistas (do grupo) em produzir predições exatas e sugestões de
problemas férteis, ou seja, pode encontrar solução dentro de certo
paradigma. Kuhn faz observar que os valores são “os mais amplamente
compartilhados entre diferentes comunidades” (Kuhn, 1970, p. 184) do
que os outros componentes da matriz.
O segundo sentido do termo paradigma tem a ver com o quarto
componente da matriz disciplinar, ou seja, “solução concreta de quebra-
cabeças [concrete puzzle-solutions] [...] empregado como modelos ou
exemplos” (Kuhn, 1970, p. 175).
Os exemplares desempenham um papel essencialmente
importante na educação científica. Durante o seu período de formação,
o estudante depara-se com manuais que tratam de problemas e soluções-
modelos que deverão ser resolvidos pelo aprendiz de cientista. Isto é,
“uma coleção de problemas típicos envolverá a aplicação da mesma
generalização simbólica para diferentes tipos de situação. E, tendo
adquirido a habilidade para solucionar problemas a partir dos
exemplares, o estudante aprende, simultaneamente, o conteúdo da
teoria física e sobre o mundo no qual ela é aplicada” (Musgrave, 1980, p.
46).
O que acontece quando a partir desta perspectiva kuhniana para
o caso Schreber?

2 O Caso Schreber na primeira tópica freudiana

O escrito de Freud Observações psicanalíticas sobre um caso de


paranoia [dementia paranoides] relatado em autobiografia, mais
conhecido como caso Schreber, foi escrito em 1911. Em que momento do

184
Schreber como um caso paradigmático em Freud

desenvolvimento de sua teoria se encaixa este caso e por qual motivo


Freud teria se interessado por ele?
Por volta desta época, primeira década de lançamento da obra
Interpretação dos sonhos (1900) — também com os Três Ensaios sobre a
teoria da sexualidade (1903) já consolidados — a teoria psicanalítica
encontra sua base teórica bem fundamentada. O aparelho psíquico é
apresentado como se fosse um microscópio composto ou um aparelho
fotográfico, que se divide em instâncias, cuja diferenciação é regulada por
lei própria. Estas instâncias ficaram amplamente conhecidas como
consciente, pré-consciente e inconsciente. Em seu modo de
funcionamento lida com processos primários e secundários que tem por
função equalizar a carga de pulsão no sistema por meio dos mecanismos
de repressão. Por outro lado, em especial com sua teoria da sexualidade,
Freud constituiu uma teoria das pulsões que se equilibrava na dualidade
entre pulsões do ego, ligadas à autoconservação, e pulsão sexual 2.
Porém, nesta mesma época, anomalias teóricas surgem para
Freud resolver, uma vez que, clinicamente, acabara percebendo que o ego
também era investido libidinalmente. Assim, com a introdução de
conceito de narcisismo, por volta de 1910, e seus desafetos teóricos com
as posições de Jung — que no final das contas queria alterar o paradigma
da teoria freudiana — Freud se dá conta de que teria que resolver a
questão pulsional a partir do binômio libido do ego e libido objetal.
Monzani esclarece a dificuldade que Freud enfrenta à época: “o dualismo
está evidentemente esfumaçando-se, pois é agora o ‘grande reservatório
da libido’, a partir do qual a libido é enviada para os objetivos e pode
também refluir dele ao ego. De agora em diante, portanto, será melhor
falar em um conflito originado entre a libido objetal e a libido do ego”
(Monzani, 1989, 146).

2 Para uma discussão mais detalhada sobre este debate ver: Sanches; Bocchi, 2021

185
Pluralismo em Filosofia e Psicanálise

O recorte que Freud faz sobre as Memórias de Schreber parecem


atender a, pelo menos, dois propósitos quando o pensamos da
perspectiva da realização de uma “ciência normal”. Por um lado, revela a
força que o exemplar paradigmático tem para estruturar e explicar uma
determinada nova situação (complexo de Édipo/paranoia) e, por outro,
tenta incorporar e resolver dentro dos próprios limites dados pelo
paradigma uma nova anomalia; no caso, a questão do conflito pulsional
que se arrasta até a publicação de Além do princípio de prazer em 1919.
Vejamos como Freud ressalta isso no caso Schreber.

3 O exemplar paradigmático do Caso Schreber

Freud inicia o texto com várias escusas do porquê não trata


diretamente de pacientes paranoicos. Parece haver uma certa
conveniência em não ter que lidar com tais doentes, mas também uma
dificuldade clínica: tais doentes têm “a peculiaridade de revelar ainda que
de forma distorcida, justamente o que os demais neuróticos escondem
como um segredo” (Freud, 2010, 14). Tais pacientes, à primeira vista,
parecem colocar em questão a dinâmica do mecanismo de repressão. Ao
esclarecer o caso, Freud resolve essa anomalia. De todo modo, Freud vê
grandes ganhos em se analisar um relato de caso clínico e fazer suas
interpretações ainda que este doente não tenha sido seu paciente.
Sejamos justos com Freud, ele não se diz dono da verdade e aconselha ao
leitor que também leia as Memórias e que se, for o caso, que busque
também, dar sua interpretação. Todavia, ele tem plena confiança que sua
teoria — seu paradigma — é suficiente para solucionar os desafios —
quebra-cabeças — impostos pelo caso.
Durante a apresentação da história clínica do caso, Freud em seu
recorte destaca que “as duas partes principais do delírio do Schreber, a
transformação em mulher e a relação privilegiado com Deus, acham-se
ligadas, no seu sistema, pela atitude feminina frente a de Deus” (Freud,

186
Schreber como um caso paradigmático em Freud

2010, p.46-47). Ele insiste bastante em destacar a emasculação de


Schreber e sublinha a característica do delírio que confirma que a
paranoia não representa um exemplo que não desabona ou, melhor, que
não coloca em jogo a espinha dorsal de sua teoria. Ele assegura que: “com
as amostras aqui apresentadas do delírio de Schreber, cabe afastar sem
problemas o temor de que justamente essa paranoia seria o ‘caso
negativo’, há muito procurado, em que a sexualidade tem papel
irrelevante” (Freud, 2010, p. 42).
Embora, no final das contas, trate-se apenas de uma questão
pulsional sexual, pois “antes ele se inclinava à ascese sexual e duvidava de
Deus; após a doença passou a crer em Deus e entregar-se à volúpia” (idem,
p. 43), Freud terá de refletir sobre o funcionamento de um complexo de
Édipo invertido, pois o que está em jogo “já não era liberdade sexual
masculina, mas sensação sexual feminina; ele se colocava femininamente
em relação a Deus, sentia-se mulher de Deus” (idem, p. 43). O que de
fato, não parece constituir um problema para Freud, uma vez que pode
afirmar com toda segurança e apoio em seu paradigma que “nós,
psicanalistas, até hoje sustentamos a opinião de que as raízes de toda
doença nervos e psíquica devem ser buscadas sobretudo na vida sexual
— alguns de nós apenas com base nas experiências; outros, devido
também a considerações teóricas” (idem, p. 41).
Desta forma está claro, deste o início de sua tentativa de
interpretação do “caso Schreber”, que também aqui nos encontramos “no
familiar terreno do complexo paternos” (Freud, 2010, p. 74), ou seja,
afirma ele em nota de rodapé: “‘a fantasia de desejo feminino’ de Schreber
é apenas uma das configurações típicas do complexo nuclear infantil”
(idem, nota 52).
Tendo em mente onde se quer chegar, Freud se concentra na
relação de Schreber com seu primeiro médico, doutor Flechsig, e o papel
que a emasculação assume no delírio do paciente em relação ao médico.

187
Pluralismo em Filosofia e Psicanálise

Flechsig aparece como o primeiro sedutor (Freud, 2010, p. 53). Imagem


curiosa utilizada por Freud neste momento, uma vez que já tinha
abandonado esta ideia em 1897 3. Na trama dos delírios de Schreber, este
médico é projetado como alguém a quem uma grande carga afetiva
pulsional estava direcionada. O mecanismo deste tipo de delírio pode ser
descrito da seguinte forma: “a pessoa a que o delírio atribui tamanho
poder e influência, para cujas mãos convergem todos os fios do complô,
seria, no caso de ser expressamente nomeada, a mesma que antes da
doença tinha significado igualmente grande para a vida afetiva do
paciente, ou um substituto facilmente reconhecível” (Freud, 2010, 55).
Freud identifica facilmente a fantasia feminina em Schreber, seu
desejo em torna-se mulher, primeiramente por meio da análise e
intepretação dos sonhos que revelam também aí seu desejo inconsciente
por Flechsig: “e certa vez, num estado entre o sono e a vigília, veio-lhe a
sensação de que afinal devia ser bom ser uma mulher submetendo-se ao
coito” (Freud, 2010, 57). Um tal pensamento, por certo, teria acionado o
mecanismo de repressão em Schreber. Por esta época, primeira tópica, o
mecanismo da repressão ainda está associado à dinâmica da função de
aumento e diminuição da quantidade da pulsão dentro do aparelho
psíquico e que, neste caso, o sistema falha em dar conta de descarregar
adequadamente todas as tensões geradas dentro do aparelho:

Mas, na séria psicose que logo irrompeu, a fantasia feminina impôs-se


resolutamente, e basta corrigir levemente a característica imprecisão
paranoica da linguagem de Schreber para perceber que o doente temia
ser abusado sexualmente pelo médico. Um acesso de libido
homossexual ocasionou então esse adoecimento; o objeto da mesma foi
provavelmente desde o início, Flechsig; e a revolta contra esse impulso
libidinal produziu o conflito de que se originaram as manifestações
patológicas (Freud, 2010, p. 58).

3 Para se compreender melhor os vários movimentos de idas e vindas teóricos nas obras de

Freud, cf. Monzani, 1989.

188
Schreber como um caso paradigmático em Freud

Há, portanto, para Freud, uma centralidade do impulso sexual


homossexual que fundamenta as explicações da doença do magistrado.
Por consequência, se no complexo nuclear infantil a mãe deixa de ocupar
o lugar central como objeto dos impulsos sexuais este logo passa a ser o
pai. Porém, só se nota o papel do pai aí se levar em conta o processo de
transferência realizado por Schreber, ou seja, ele ter transferido seu
investimento afetivo de alguém que lhe era muito importante — o pai —
para uma outra pessoa qualquer da realidade — no caso, Flechsig. Por
isso, Freud (2010, p. 63) pode concluir: “não continuaremos nos opor,
creio, à suposição de que a doença foi ocasionada pelo surgimento de
uma fantasia de desejo feminina (homossexual passiva) que tomava por
objeto a pessoa do médico”.
De todo modo, mesmo com todos os deslocamentos ou mesmo
mudanças de sentido, fazendo com que Flechsig seja substituído por uma
figura de Deus, ou que a emasculação esteja conforme à “ordem do
mundo”, as raízes da fantasia de Schreber continuam muito claras para
Freud (2010, p. 67): sua “fantasia feminina, que tanta resistência
despertou no doente, teria raízes, então, no anseio por pai e irmão,
intensificado eroticamente”. Considerando-se que o pai de Schreber não
foi uma personagem qualquer no desenvolvimento da cultura da
disciplina e “higiene” fisioterapêutica na Alemanha, o conflito edípico do
magistrado se configura do seguinte modo: “conhecemos bem a atitude
infantil do garoto em relação ao pai; consiste da mesma aliança de
reverente submissão e veemente indignação que vimos no
relacionamento de Schreber com Deus, é o modelo inconfundível,
fielmente copiado, desse último” (Freud, 2010, p. 69).
A “tentativa” de interpretação das Memórias por parte de Freud,
com se pode notar, não é um caminhar às cegas. Ele sabe bem onde quer
chegar e sua análise o leva a resolver o “caso” apresentando duas grandes
soluções que se interconectam em sua teoria: complexo de Édipo e
complexo de castração. Freud as anuncia com toda clareza textual:

189
Pluralismo em Filosofia e Psicanálise

“Portanto, também no caso Schreber nos achamos no familiar terreno do


complexo paterno. Se a luta com Flechsig revelou-se para o doente, um
conflito com Deus, temos de traduzi-lo num conflito infantil com o pai
amado, cujas particularidades — que não conhecemos — determinaram
o conteúdo do conflito” (Freud, 2010, p. 74). E sobre a castração continua:
“A mais temida ameaça do pai, a castração, realmente proporcionou o
material para a fantasia-desejo de transformação em mulher, primeiro
combatida e depois aceita” (Freud, 2010, p. 75).
Se, por um lado, é assim que Freud esclarece o caso; como, por
outro, ele vai explicar o mecanismo de funcionamento da paranoia tendo
como sustendo esses pressupostos?

4 O paradigma em um caso de paranoia

Vejamos agora em que medida o paradigma freudiano 4 sustenta


sua explicação sobre a paranoia.
Tomando Thomas Kuhn como referencial, a questão que se
poderia colocar é a seguinte: se posso explicar a paranoia usando como
referencial o exemplar paradigmático da minha teoria, no que a paranoia
se diferencia em relação às neuroses? Freud (2010, p. 78) mesmo coloca a
questão da seguinte forma:

Até agora tratamos do complexo paterno que domina o caso Schreber e


da fantasia ou desejo central da doença. Em tudo isso, nada caracteriza
apenas o quadro clínico da paranoia, não há nada que não pudéssemos
achar em outros casos de neuroses que neles não tenhamos realmente
achado.

O que está em questão na paranoia, seu diferencial em relação às


outras neuroses, não é a centralidade do complexo nuclear infantil, sua

4Em Santos (2017) podem ser encontrados outros desdobramentos sobre a discussão de um
paradigma em Freud.

190
Schreber como um caso paradigmático em Freud

especificidade encontra-se no mecanismo de formação de sintomas ou


de repressão, ou seja, trata-se de “defender-se de uma fantasia de desejo
homossexual, reage-se precisamente com um delírio persecutório de tal
espécie” (Freud, 2010, 79). Freud aponta que embora não seja óbvia a
manifestação dos componentes homossexuais da vida emocional nestes
casos, eles, no entanto, sempre se fazem presentes após um pouco de
trabalho de análise do paciente.
Freud explica a homossexualidade com base em sua teoria do
narcisismo e teoria da sexualidade. Considerando o desenvolvimento
sexual de um indivíduo, este tomaria a si mesmo como objeto de amor,
direcionando seus instintos sexuais de modo autoerótico a si mesmo, ou
seja, tomaria seu próprio corpo como objeto de amor antes de escolher
outra pessoa como meta de seus interesses sexuais. Porém, nem todas as
pessoas conseguiriam realizar esta mudança de escolha e ficariam presas
neste estágio autoerótico, mantendo características deste estágio inicial
nos estágios posteriores. Em seguida, haveria um deslocamento deste
amor para com o seu eu-mesmo para os genitais, podendo levar a escolha
de objetal de objeto com genitais semelhantes ou não
(homossexualidade ou heterossexualidade). Por isso, diz Freud (2010, p.
81):

[...] supomos que as pessoas que depois se tornaram homossexuais


manifestos nunca se libertaram da exigência de o objeto ter genitais
como os seus; nisso têm considerável influência as teorias sexuais
infantis, que inicialmente atribuem os mesmos genitais a ambos os
sexos.

No entanto, Freud também aponta que ter feito uma escolha


heterossexual de objeto não elimina as tendências homossexuais
presentes nos indivíduos. O que acontece nestes casos é que a meta
sexual ao objeto sexual semelhante é sublimada. Ela liga-se às pulsões do
Eu e constituem pulsões sociais “representando assim a contribuição do
erotismo à amizade, à camaradagem, ao sentido comunitário e ao amor

191
Pluralismo em Filosofia e Psicanálise

pelos seres humanos em geral” (Freud, 2010, 82). Acontece que quando
se tem uma fixação no estágio do narcisismo há o perigo de um aumento
muito grande no fluxo de libido que não encontra saída para escoar em
forma de sublimação e esta libido represada se liga às pulsões sociais
criando uma espécie de sexualização a todos os eventos da vida. Desta
forma, Freud (2010, 83, grifos do autor) consegue rastrear que os
paranoicos

[...] buscam defender-se de tal sexualização de seus investimentos


instintuais sociais, somos obrigados a supor que o ponto fraco de seu
desenvolvimento deve estar no trecho entre autoerotismo, narcisismo e
homossexualidade, que ali [é onde] se acha a sua predisposição à doença
[...].

A partir disso, como se explica a formação da paranoia? A resposta


passa pela compreensão do mecanismo da repressão na paranoia5. Freud
destaca três fases: 1) fixação que é quando uma pulsão ou parte dela não
acompanha o desenvolvimento normalmente previsto e permanece presa
no estágio infantil (Freud, 2010, p. 89); 2) a repressão mesma (pós-
pressão), relacionada ao desenvolvimento do Eu, tem característica ativa,
atuam sobre pulsões que causam conflito entre os derivados psíquicos
que ficaram atrás ou contra tendências psíquicas que causam fortes
aversões ao Eu e 3) fracasso da repressão, mais conhecido, como o retorno
do reprimido, trata-se da irrupção de alguma pulsão, desde seu ponto de
fixação e consiste numa regressão do desenvolvimento da libido até esse
ponto (Freud, 2010, p. 90).
A função da repressão é retirar ou desviar a libido de sua meta de
realização principal a qual, por alguma razão, não lhe é possível aceitar
ou suportar que tal desejo se efetive e a pulsão que lhe corresponde é
direcionada a outro ponto: “diremos, então, que o processo de repressão

5 Freud está atendo à questão da paranoia desde muito cedo em seus escritos, sua primeira

menção já aparece no Rascunho H de 1895. Para um estudo mais detalhado, cf. Calazans;
Nogueira, 2014.

192
Schreber como um caso paradigmático em Freud

consiste num desprender-se da libido em relação a pessoas — e coisas —


antes amadas” (Freud, 2010, p. 94). Porém, no caso da paranoia, Freud
adverte que o mecanismo funciona de um modo diferente em relação às
neuroses. Quando há um desinvestimento da libido que era direcionada
a um objeto e ela fica livre flutuando na psique, numa histeria, por
exemplo, este montante tenderá a se transformar em inervações
somáticas ou angústia. Já no caso da paranoia a libido liberada encontra
no próprio Eu o seu objeto de fixação, ou seja, a libido é reinvestida no
Eu. Consequência: “atinge-se novamente o estágio do narcisismo,
conhecido no desenvolvimento da libido, no qual o próprio Eu era o
único objeto sexual” (Freud, 2010, p. 96).
O mecanismo da paranoia revela, por meio do mecanismo de
repressão, que ela e resultado de fixação no narcisismo e que a
homossexualidade sublimada reiterante nos casos aponta para a
regressão a uma fase autoerótica do desenvolvimento sexual infantil.
Por fim, gostaria de fazer notar que uma questão a se pensar é o
papel da religião na paranoia de Schreber. Freud não a analisa este
aspecto com profundida ao tecer considerações sobre o “caso”, embora
em outros escritos como Totem e Tabu, Mal estar da Cultura, Moises e o
Monoteísmo ela seja um dos tópicos principais — e o caso Schreber
pareça estar de fundo fomentando seus argumentos. A partir do
paradigma freudiano e do seu escrito Totem e Tabu sabemos que a
religião está ligada ao reprimido. A religião está fortemente ligada ao
complexo de Édipo na medida em que ela é uma forma de sublimar e
reprimir a libido.
Isso revela que a resolução desta anomalia por parte de Freud em
sua “ciência” lhe permite ainda resolver outros quebra-cabeças.

193
Pluralismo em Filosofia e Psicanálise

Referências

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194
A miséria do eu e a consciência exteriorizada
Tiago Carvalho Lombardi Tosta 1
DOI: https://doi.org/10.58942/eqs.79.10

1 Introdução

No interior da psicologia individual, Freud encontra os


mecanismos sociais que produziram a individualidade. Isso faz com que
ele abranja o escopo de sua pesquisa clínica para analisar as formas
culturais em questão. Nos textos em que dedica especial atenção para os
fenômenos sociais, é comum que ele destaque a necessidade que alguns
indivíduos possuem de encontrar, em alguma figura de autoridade, o
amparo em relação às angústias que os perigos do mundo exterior
provocam. Freud afirma que tais indivíduos estão à procura de um
substituo da figura paterna, que lhes sirva como modelo ideal a ser
seguido e que lhes forneça sentimentos de segurança e proteção.
Esses indivíduos, portanto, sentem-se incapazes de dirigirem a si
mesmos; logo, precisam de um outro que os oriente, principalmente no
âmbito dos juízos morais. Em seus estudos sobre a personalidade
autoritária, Adorno aponta que um dos pontos cruciais na composição
de tal personalidade seria a necessidade que o sujeito possui de buscar
fora de si uma agência que organize e coordene o seu próprio mundo
interior, pois, por possuir um Eu empobrecido, ele seria incapaz de
examinar a realidade em que vive e deliberar por si mesmo a sua conduta.
Observando essa dependência, Adorno afirma que nesses indivíduos a

1Mestrando no Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal de São


Carlos (PPGFil/UFSCar). E-mail: tiagolombardi11@gmail.com
Pluralismo em Filosofia e Psicanálise

consciência está exteriorizada 2. Ou seja, encontram-se numa condição


de menoridade 3, em que não conseguem exercer a capacidade de se
servirem da própria razão.
Voltando à Freud, tal problema nos remete diretamente à sua
teoria das massas, segundo a qual os sujeitos, reconhecendo força e
liberdade libidinal em um pretenso líder, identificam-se com ele e o
tomam como ideal do Eu. Em outras palavras, o líder cumpre a função do
Supereu individual. As massas, portanto, são caracterizadas
principalmente por essa menoridade, já que submetem a sua vontade e
consciência a um líder, que conduzirá os seus pensamentos e suas ações.
Assim, seu mundo interior passa a ser organizado por essa figura
idealizada, e como não possuem critérios para um julgamento crítico
acerca dos valores que ela pode representar, as massas tornam-se
vulneráveis a todo tipo de discursos, inclusive aos antidemocráticos.
Como é possível o surgimento desses indivíduos que se
distinguem pela sua heteronomia, sua incapacidade crítica e pela
necessidade de se amparar numa autoridade exterior? Neste trabalho,
buscaremos na teoria freudiana esclarecimentos que possibilitem a
compreensão da tendência à submissão da própria consciência moral aos
parâmetros de um outro. Portanto, a intenção do trabalho é investigar,
na obra de Freud, fatores da realidade social e psicológica que expliquem
o desenvolvimento de um Eu empobrecido e, por conseguinte, a
tendência à exteriorização da consciência, expressa na dependência que
o adulto sente em relação à figura paterna. Sendo assim, buscaremos
elementos que esclareçam, por fim, a inaptidão para o pensamento

2 “Na medida em que se depende de tais agências exteriores para a tomada de decisões morais,

pode-se dizer que a consciência está exteriorizada” (Adorno, 2019, p. 146). Aqui a “consciência”
se refere não ao sistema perceptivo-consciente da primeira tópica freudiana, mas à consciência
moral (Gewissen).
3 Segundo Kant (2016, p. 9), a menoridade seria uma condição individual marcada pela

“incapacidade de se servir do entendimento sem a orientação de outrem”.

196
A miséria do eu e a consciência exteriorizada

próprio e para a decisão autônoma que caracteriza a inclinação das


massas à submissão.

2 O opressor como ideal do oprimido

Para compreender como se chega ao ponto da exteriorização da


consciência, precisamos antes entender como se dá o processo de
formação da consciência moral na teoria freudiana. Essa consciência, que
Freud também denominará de Supereu 4, se forma na experiência que o
sujeito tem com o seu mundo exterior. Desse modo, precisamos elucidar
as características desse meio com o qual, desde o início da vida, o sujeito
mantém relações. Compreender a realidade na qual o indivíduo se
desenvolve e como ela reflete em sua forma de se relacionar consigo
mesmo, com o outro e com o mundo, nos levará a compreender as fontes
da carência que ele sente de uma figura que continue na vida adulta o
papel protetor que o pai tinha na infância.
Pois bem, Freud, que lidava diariamente com o sofrimento
humano em sua clínica, nos alerta durante toda a sua obra que o estado
cultural em que vivemos nos impõe uma realidade dura e hostil, pois a
cultura, para que consiga tornar a vida em comum e o trabalho coletivo
possíveis, segundo o modelo de suas instituições, exige que os indivíduos
sacrifiquem as tendências mais imediatas e pujantes de sua natureza.
Para Freud (1930/2010b, p. 60), ao se observar o estado cultural “é
impossível não ver em que medida a civilização é construída sobre a
renúncia instintual, o quanto ela pressupõe justamente a não satisfação
[...] de instintos poderosos”. A consequência disso, uma vez que a cultura
não compensa as renúncias que exige, é uma aversão sobre as condições
de existência que ela impõe. O progresso civilizacional, dessa forma, é

4 Todos os termos que se referem às instâncias psíquicas da segunda tópica (Es, Ich, Über-Ich),

foram uniformizados em sua tradução para Isso, Eu e Supereu.

197
Pluralismo em Filosofia e Psicanálise

tido como demasiadamente oneroso para a parcela oprimida da


sociedade, que com o sacrifício de seu trabalho viabiliza a cultura que a
explora5. As leis e instituições que constituem o fundamento da
civilização são reconhecidas pela grande maioria como as responsáveis
pela miséria de suas vidas. Sendo assim, em relação a algumas das
exigências sociais impostas, “a maioria dos indivíduos somente obedece
às proibições culturais a elas relativas sob pressão da coação externa, ou
seja, apenas quando esta se faz valer e enquanto é temida” (Freud,
1927/2014, p. 242).
No entanto, Freud destaca um paradoxo no seio da alma humana,
apontando que a superação das relações de opressão encontra um
poderoso obstáculo no interior da psicologia individual: uma parcela
mais que relevante da classe oprimida, mesmo diante de toda violência
que sofre, identifica-se com a classe que a domina e explora. Tendo isso
em vista, ele afirma que os oprimidos, “apesar da hostilidade, enxergam
nos senhores o seu ideal” (Freud, 1927/2014, p. 244, grifo nosso).
Como é possível tal contradição? Como é possível que um
indivíduo possa, contra aquilo que aparentemente seriam os seus
interesses, apoiar-se psicologicamente nos valores e ideais que forjam a
sua condição de opressão? Tais indivíduos compreendem que a
sociedade em que vivem não se coloca a favor de suas realizações pessoais
e humana, pois sentem na própria pele o sofrimento que lhes causa os
sacrifícios que ela exige. Ainda assim, esse regime de dominação acaba
sendo sustentado e fomentado pela obediência da maioria explorada e
insatisfeita. Algo na formação das subjetividades deve facilitar a
internalização dos mecanismos de dominação.

5 “[...] se uma cultura não foi além do ponto em que a satisfação de uma parte de seus membros

tem como pressuposto a opressão de outra parte, talvez da maioria — e esse é o caso de todas
as culturas atuais —, então é compreensível que esses oprimidos desenvolvam forte hostilidade
em relação à cultura que viabilizam mediante seu trabalho, mas de cujos bens participam muito
pouco” (Freud, 1927/2014, p. 242-243, grifo nosso).

198
A miséria do eu e a consciência exteriorizada

Observamos, com isso, que apesar das exigências sociais


beirarem o insuportável, a agressividade gerada pelos obstáculos
culturais à satisfação se vê contida e redirecionada por mecanismos que
a cultura se utiliza para poder se manter. Mesmo profundamente
insatisfeitos e experimentando um estado de infelicidade comum, uma
grande parcela dos indivíduos não assume a sua indisposição em relação
às condições em que vive e continua a aceitar passivamente as imposições
e exigências culturais. Em outras palavras, tais indivíduos não se
revoltam e continuam obedientes ao que se exige deles. Devemos supor,
portanto, que exista algo que os mantenha sob controle, algum
mecanismo psicossocial que mantenha contida a hostilidade que sentem
contra a cultura que os oprime, não permitindo que ela se manifeste em
ações insurgentes. Mais do que supor, podemos dizer que, para que uma
cultura se conserve, especialmente em um regime de dominação que não
compensa os indivíduos pelos seus sacrifícios, é imperativo que exista um
mecanismo de controle psicossocial que a resguarde. Um mecanismo
que, para além do dispositivo coercitivo do medo, promova a
identificação dos indivíduos com os ideais nos quais se baseia a sociedade
em que estão inseridos e que, por meio disso, impeça, na medida do
possível, que a agressividade suscitada pela insatisfação venha à tona de
modo a colocar sob ameaça os fundamentos sobre os quais se estrutura a
dinâmica das relações sociais. Freud (1927/2014, p. 239) denomina como
“patrimônio psíquico da civilização” as criações culturais que servem
para defender a cultura e seus modos de coação, e que, portanto, atuam
na direção de “reconciliar os homens com ela e indenizá-los por seus
sacrifícios”.
É de se esperar que, para tanto, toda a educação social se oriente
para a introjeção no Eu dos princípios e valores culturais, de modo que as
pessoas não apenas tomem o seu conhecimento, mas venham também a
se identificar com suas proposições e a se orientar, subjetiva e
objetivamente, a partir delas. Em outras palavras, espera-se dos

199
Pluralismo em Filosofia e Psicanálise

indivíduos que eles se sujeitem às autoridades sociais e obedeçam às suas


leis, tomando-as como o plano diretor de suas consciências.

3 A emergência da consciência moral

Como resultado da educação para a cultura, temos o


desenvolvimento da consciência moral. A internalização das leis e
proibições sociais e a consequente identificação com suas premissas a faz
emergir na psicologia individual. A consciência moral é responsabilidade
da instância psíquica que Freud denominou de Supereu — e podemos
afirmar que se não há o desenvolvimento dessa instância, não há também
o desenvolvimento de uma consciência moral. Logo, o Supereu é
entendido pela teoria freudiana como uma valiosa conquista da psique
humana na evolução da história. Freud (1927/2014, p. 241) afirma que “tal
fortalecimento do Supereu é um valiosíssimo patrimônio cultural
psicológico. As pessoas nas quais ele se realizou passam de adversários
para portadores da cultura”. Ou seja, com o Supereu forte e bem
estabelecido, o indivíduo prescinde de coações externas para a
obediência das normas culturais. Sua própria consciência moral, dirigida
pelo Supereu, controlará seus impulsos e o conduzirá para a consecução
dos mandamentos impostos pela ordem social — mesmo quando estes o
prejudicam mais do que o beneficiam.
Porém, na grande maioria a ordem do Supereu não se
desenvolveu com a robustez culturalmente desejável. E quando, de um
modo ou de outro, se desenvolve, o grau das internalizações culturais
“varia muito nas diversas proibições instintuais” (Freud, 1927/2014, p.
241). Veremos adiante que uma das consequências de um Supereu frágil,
isto é, que não se desenvolve de modo a se tornar autônomo, é a sua
incapacidade de orientar o indivíduo de modo seguro, tornando-o, por
isso, carente de uma autoridade exterior de natureza mais impositiva.

200
A miséria do eu e a consciência exteriorizada

Podemos, então, tomar o Supereu como a agência normativa do


Eu. Ele impõe as regras e pune suas infrações com o sentimento de culpa.
“Atribuímos a ele a auto-observação, a consciência moral e a função de
ideal”, bem como o tomamos pelo “representante de todo limite moral, o
advogado do anseio por perfeição” (Freud, 1933/2010a, p. 205). Para
nossos propósitos, é importante enfatizar sua relação com o que o Eu
toma por ideal. Antes de Freud nomear de “Supereu” essa instância
julgadora do Eu e portadora da moralidade, ele a nomeava como “ideal
do Eu”. Mais tarde, formulando com maior precisão o entendimento das
instâncias psíquicas, ele dirá que:

Ele [o Supereu] é também o portador do ideal do Eu, pelo qual o Eu se


mede, o qual busca igualar, e cuja demanda por uma perfeição cada vez
maior ele se empenha em satisfazer. Sem dúvida, esse ideal do Eu é o
precipitado da velha ideia que a criança tinha dos pais, a expressão de
admiração de quem os considerava perfeitos (Freud, 1933/2010a, p. 203,
grifos nossos).

Podemos, então, considerar o ideal do Eu como o guia e mestre


espiritual do Eu. Os pais cumprem, como Freud afirma, um papel
essencial na sua formação. É da ideia que a criança tem dos pais que o
ideal do Eu obterá os seus primeiros contornos, cujos conteúdos
definirão os pilares básicos do Supereu. Não podia ser diferente, já que
são os pais os primeiros modelos que a criança tem na formação de sua
subjetividade. São, fundamentalmente, os representantes do princípio
de realidade e, através da relação com eles e da aceitação de sua
autoridade, espera-se que a criança supere o estágio do narcisismo
primário, passando a se tornar um ser social que compreende, na medida
do possível, a diferença entre a dimensão subjetiva e objetiva.
Para Freud (1923/2011a, p. 43), o aspecto fundamental da relação
com os pais no desenvolvimento do Supereu se deve a “dois fatores
biológicos altamente significativos: o longo desamparo e dependência
infantil do ser humano e o fato do seu complexo de Édipo”. Esses dois

201
Pluralismo em Filosofia e Psicanálise

fatores estão intimamente relacionados. A criança, diante não só de sua


fragilidade e vulnerabilidade física, como também de sua incapacidade
psíquica de apreender o mundo e elaborar a realidade que lhe afeta, tem
nos pais as figuras de amparo e proteção da qual ela sente necessidade em
face das ameaças que o mundo representa. Logo, a criança toma os pais
como os seus primeiros objetos de amor, fato que enseja o complexo de
Édipo. A criança passa a desejá-los sexualmente, ao mesmo tempo que
também cria uma certa rivalidade na disputa pelo amor individual de
cada um, seja do pai ou da mãe. A consecução desses desejos será
impedida pela autoridade dos pais e o complexo de Édipo deverá ser
reprimido. Segundo Freud (1923/2011a, p. 43), “como os pais, em especial
o pai, foram percebidos como obstáculo à realização dos desejos edípicos,
o Eu infantil fortificou-se para essa obra de repressão, estabelecendo o
mesmo obstáculo dentro de si” (grifo nosso). Disso depreende-se que a
criança internaliza a autoridade dos pais e que eles, de objetos de amor,
passam a ser objetos de identificação. Assim,

Podemos supor, então, que o resultado mais comum da fase sexual do


complexo de Édipo é um precipitado no Eu, consistindo no
estabelecimento dessas duas identificações, de algum modo ajustadas
uma à outra. Essa alteração do Eu conserva a sua posição especial,
surgindo ante o conteúdo restante do Eu como ideal do Eu ou Supereu
(Freud, 1923/2011a, p. 42).

Herdeiro do complexo de Édipo, o Supereu é a marca da renúncia


dos primeiros objetos de amor, do reconhecimento da autoridade dos
pais e da sujeição às suas leis. Mais do que isso, é a internalização e a
conservação de ambos na vida interior do indivíduo, naquilo que eles
carregam de ideais, valores, crenças, princípios e visão de mundo,
configurando a consciência moral. A criança, ao identificar-se com eles,
adquire as primeiras referências que irão orientá-la em sua organização
psíquica. É por isso que “o Supereu, que dessa forma assume o poder, a
função e até os métodos da instância parental, é não apenas sucessor, mas

202
A miséria do eu e a consciência exteriorizada

também legítimo herdeiro desta” (Freud, 1933/2010a, p. 199). Quer dizer,


o Supereu é a formação que substitui o lugar dos pais na vida psíquica do
indivíduo, e que, por consequência, assume o papel de aplacar as
necessidades que caracterizavam o estado de desamparo psíquico
original. Como Freud (1923/2011a, p. 73) afirma, “o Supereu desempenha
a mesma função protetora e salvadora que tinha antes o pai”, de tal modo
que o Eu do indivíduo fará de tudo para ser reconhecido e amado por ele.

4 O domínio do Supereu

O esforço empreendido pelo Eu de atender as expectativas de sua


consciência moral, ou seja, de seu Supereu, reflete o medo que a criança
tem de, ao contrariar, em especial, a autoridade do pai, ser punida e
abandonada por ele e, assim, ver-se novamente sob a condição do
desamparo. A partir disso, podemos concluir que o Supereu se forma a
partir tanto da interiorização da autoridade do pai quanto do medo dessa
autoridade — aspecto que revela o motivo de sua dominância sobre o Eu.
Então, como representante da soberania paterna, o Supereu que se
estabelece pode proibir o Eu de se tornar idêntico ao pai, a quem é
reservado poder e prerrogativas 6. Nessas condições, o Eu é enfraquecido
em sua autonomia e se vê numa relação de subjugação com o Supereu,
que surge, portanto, como uma instância que exerce domínio sobre o Eu
e o coloca em posição de submissão — posição esta que poderá se
estender a outras figuras de poder, como veremos.
Porém, ao contrário do que se pode concluir à primeira vista, o
rigor com que o Supereu trata o Eu, não reflete, ao menos
exclusivamente, a severidade paterna. Freud afirma que, pelo contrário,

6A relação do Supereu com o Eu “não se esgota na advertência: ‘Assim (como o pai) você deve
ser’; ela compreende também a proibição: ‘Assim (como o pai) você não pode ser, isto é, não
pode fazer tudo o que ele faz; há coisas que continuam reservadas a ele’” (Freud, 1923/2011a, p.
43, grifos do autor).

203
Pluralismo em Filosofia e Psicanálise

parte desse rigor é reflexo da própria agressividade da criança para com a


figura do pai, que lhe impede de realizar as primeiras e mais significativas
satisfações desejadas. Esse estado de privação em que é colocada pelos
obstáculos impostos pela autoridade do pai, suscita na criança um
montante de agressividade cuja intenção primordial é destruí-lo. No
entanto, como o seu pai é também alvo de seu amor, porque é a figura que
lhe proporciona proteção e segurança, Freud (1930/2010b, p. 100) conclui
o seguinte:

Ela [a criança] é obrigada a renunciar à satisfação dessa agressividade


vingativa. Encontra saída para essa difícil situação econômica
recorrendo a mecanismos conhecidos, ao acolher dentro de si, por
identificação, essa autoridade inatacável, que então se torna Supereu e
entra em posse de toda a agressividade que a criança gostaria de exercer
contra ela.

Por concluir que a autoridade do pai é insuperável, a criança, que


o teme, submete-se ao seu poder, toma-o como ideal a ser alcançado e,
assim, internaliza-o por meio da identificação. Consequentemente, ao
mesmo tempo em que renuncia as satisfações que ele impede, suprime a
agressividade que direcionaria contra ele. Neste ato de aceitação e
renúncia, surge, como efeito, o Supereu, que representa a autoridade do
pai internalizada pela identificação. A partir desse momento, o Supereu
desempenha o papel de consciência moral do sujeito. A primeira causa
da consciência, portanto, é uma renúncia pulsional que se deveu ao medo
de uma autoridade externa. Portanto, primariamente, a consciência é
produzida pelo medo, ela é a manifestação do medo de sofrer retaliações
vinda de agentes exteriores. Desse modo, depois de fundada, será a
consciência a fonte imperativa das próximas renúncias. Em resumo, ao
aceitar, pelo medo e pelo respeito que inspira, as leis da autoridade
paterna, o sujeito internaliza os seus mandamentos e funda, com isso, o
Supereu. O que significa que a autoridade externa introjetada funda uma

204
A miséria do eu e a consciência exteriorizada

autoridade interna que a representa diante do Eu, inspirando obediência


às suas demandas através do medo de seu poder.
Como autoridade interna, o Supereu tem como fundamento o
temor e a admiração que a criança tem pelo poder do pai. A maior parte
da agressividade que ela, impulsivamente, quer dirigir contra ele, num
ato de confrontação ao seu poder, é barrada pelo Supereu, que toma sua
posse. Ora, o Supereu, sendo o pai internalizado, devolve ao Eu essa
agressividade, punindo-o com o sentimento de culpa. Em outras
palavras, a consciência da criança a pune por querer se contrapor à
hegemonia da autoridade que representa7. Dessa forma, Freud
(1930/2010b, p. 100) entende que “a severidade original do Supereu não é
— ou não é tanto — a que experimentamos de sua parte ou atribuímos a
ele, mas representa a nossa própria agressividade para com ele”.
Contudo, como sabemos, não é somente a agressividade que é
controlada pelo Supereu. Tudo que envolve a transgressão dos
mandamentos internalizados também evoca a sua reação punitiva.
Portanto, sempre que as tendências do indivíduo, agressivas ou sexuais,
forem contrárias às leis do Supereu, ele será punido pela sua consciência
com o sentimento de culpa. Como vimos, quando a criança internaliza a
autoridade do pai, internaliza também o medo que sentia dessa
autoridade. O pai, materializado nessa consciência, não deixa de exercer

7
“De que meio se vale a cultura para inibir, tornar inofensiva, talvez eliminar a
agressividade que a defronta? [...] A agressividade é introjetada, internalizada,
mas é propriamente mandada de volta para o lugar de onde veio, ou seja, é
dirigida contra o próprio Eu. Lá é acolhida por uma parte do Eu que se contrapõe
ao resto como Supereu, e que, como “consciência”, dispõe-se a exercer contra o
Eu a mesma severa agressividade que o Eu gostaria de satisfazer em outros
indivíduos. À tentação entre o rigoroso Supereu e o Eu a ele submetido
chamamos de consciência de culpa; ela se manifesta como necessidade de
punição. A civilização controla então o perigoso prazer em agredir que tem o
indivíduo, ao enfraquecê-lo, desarmá-lo e fazer com que seja vigiado por uma
instância no seu interior, como por uma guarnição numa cidade conquistada”
(Freud, 1930/2010b, p. 92).

205
Pluralismo em Filosofia e Psicanálise

o seu poder. A criança aprende, assim, a obedecer a figura de autoridade


e a aceitar seus mandamentos. Em grande medida, para algumas pessoas,
essa atitude submissa será estendida à todas as outras figuras de poder
que aparecerem em suas vidas.
Em síntese, no decorrer de seu desenvolvimento, poderosas
forças sociais imprimem no indivíduo as normativas da cultura
estabelecida. Como o primeiro representante do princípio de realidade,
o pai, desde muito cedo, reprime e domestica a vida pulsional da criança,
docilizando-a. Assim, a consciência moral, como Supereu, forma-se por
meio de um regime de coação ao qual o indivíduo em desenvolvimento
precisa se sujeitar para que não corra o risco de perder o amor de seus
protetores, o que o tornaria vulnerável às suas sanções punitivas e aos
demais perigos do mundo. No entanto, ao mesmo tempo em que teme
essa autoridade paterna, a criança admira o poder que ela possui e, por
isso, o toma como modelo a ser seguido.
Isso elucida, em alguns pontos, o motivo que leva os indivíduos a
não se voltarem contra a cultura, cujas exigências opressoras os
prejudicam. A cultura, expressa nas normas sociais, é internalizada por
meio da educação e dá vida à consciência moral, na forma do Supereu.
Como expressão da autoridade paterna continuada na vida psíquica, o
Supereu impõe sua ordem, e o indivíduo, ameaçado pelas angústias do
sentimento de culpa, obedece aos seus ditames, pois teme o Supereu do
mesmo modo como antes temia o pai. Assim, mesmo que se sintam
insatisfeitos e infelizes, a hostilidade em relação às injustiças sociais não
chega ao ponto de fazer os indivíduos agirem de modo a transformar as
condições existentes; não porque essa hostilidade não seja intensa, mas
porque eles temem as consequências punitivas de sua externalização. Por
outro lado, é raro que compreendam, ao menos espontaneamente, as
raízes de sua condição, de modo que acabam dirigindo sua agressividade
para objetos sem importância nesse sentido. Isso também se soma ao que
nos ajuda a esclarecer o fato de que, contraditoriamente, muitos dos

206
A miséria do eu e a consciência exteriorizada

indivíduos, ao invés de confrontarem as autoridades sociais que


representam a ordem dominante, e dirigirem contra elas a sua
agressividade, tomam-nas como figuras a serem obedecidas e cultuadas,
e, além de tudo, colocam sobre elas as esperanças de resolução de seus
problemas, seguindo o mesmo modelo de relação infantil que se tinha
com o pai. Elas representam, para muitos, líderes cujos ideais inspiram a
condução de suas vidas. No limite, são substitutos para a figura paterna,
da qual ainda dependem.
O medo do pai pode, então, ter como efeito tornar o indivíduo
fraco, vulnerável e subserviente a figuras que representem autoridade. De
modo que o Supereu, ao torná-lo um portador da cultura, pode torná-lo
também um defensor das suas leis e relações de poder, mesmo quando
estas vão de encontro aos seus interesses. Pois, se o princípio de
realidade, que os pais representam, se estrutura sob uma lógica de
dominação, o Supereu irá refletir esta lógica. Freud (1933/2010a, p. 194),
em vista disso, afirma que “a influência parental inclui não apenas a
natureza pessoal dos pais, mas também a influência das tradições [...] por
eles transmitidas, assim como as exigências do meio social, por eles
representadas”. O Supereu, portanto, também representa as estruturas
de poder historicamente constituídas. Nesse sentido, o Eu de cada um se
vê assujeitado pelos ideais da classe dominante, e só com muito custo
consegue superá-los.
Contudo, há possibilidades de deriva. Sabemos que as relações
familiares, que produzem as primeiras e mais importantes identificações,
preparam, em seu microcosmo, o indivíduo para as suas relações no
macrocosmo social. Posteriormente à sua formação na instituição
familiar, o curso de desenvolvimento do indivíduo tem continuidade nas
demais instituições sociais que o integrarão e, assim, outras figuras de
autoridade, representantes dessas instituições, vão sendo acolhidas pelo
Supereu. Desse modo, ele “acolhe também as influências das pessoas que
tomaram o lugar dos pais, ou seja, de educadores, mestres, modelos

207
Pluralismo em Filosofia e Psicanálise

ideais” (Freud, 1933/2010a, p. 202). Essas identificações posteriores


permitem a ampliação da consciência individual e o enriquecimento do
Eu, na medida em que ganha mais referências para o seu exame de
realidade.
O ideal do Eu, quando o indivíduo já se encontra em sua
maturidade, representa uma síntese de todos os modelos que tiveram
influência em sua formação. Os pilares fundamentais seriam os pais, mas
a experiência com outras figuras de autoridade tende a dirimir a sua
importância no decurso do desenvolvimento individual. O Supereu não
será, necessariamente, um agente interior sádico com o Eu, tornando-o
passivo quanto às relações de poder que estruturam a realidade. Ele pode
vir a se tornar uma instância de suma importância para o enfrentamento
das injustiças que a cultura promove. Quando modelos ideais críticos ao
sistema são tomados como parte do Supereu, este se verá fomentado por
ideais que confrontam o estado de coisas existente. Ou seja, dependendo
dos valores que as autoridades introjetadas sustentam, o Supereu pode
se transformar num agente de combate às relações de dominação e, dessa
maneira, ser um elemento psicológico fundamental na luta em favor da
emancipação humana.
O Supereu, portanto, deve ser compreendido no interior das
relações através das quais o indivíduo experiencia o campo cultural.
Como agente representante de princípios e ideais morais, o Supereu é
uma instância política, cuja atuação defenderá o que a experiencia
pessoal conduziu o indivíduo a acreditar como certo. Assim, mesmo com
todas as suas possíveis contradições, o Supereu, como portador e
defensor da cultura, independentemente de qual ela seja, tem papel
imprescindível no desenvolvimento da civilização na qual é formado. É,
portanto, como Freud sustenta, um patrimônio cultural psicológico que
tem o papel de promover, para o bem ou para o mal, a internalização das
formas de controle social. Por essa razão, na psique humana, ele é o
elemento essencial para a socialização dos homens. Sem o Supereu, e a

208
A miséria do eu e a consciência exteriorizada

consciência que ele inaugura, as pessoas seriam muito mais propensas à


agressividade mútua e, logo, às ações que desintegrariam os laços sociais.
Freud (1927/2014, p. 241) aponta que quanto mais pessoas num grupo
cultural possuem um Supereu fortalecido, “tanto mais garantida se acha
essa cultura, tanto mais pode prescindir de meios de coação externos”.
E como o Supereu representa a consciência moral, que se
desenvolve a partir de todas as figuras tomadas como modelos ideais,
pressupõe-se que indivíduo maduro, que o desenvolveu, possa também
ser considerado como portador de uma consciência própria, não
dependendo de uma agência exterior ou de um líder para dizer a ele como
pensar e proceder. O ideal do Eu, que o Supereu porta, organiza o mundo
interior do indivíduo na direção das expectativas sociais — mas, como
vimos, não é sempre exclusivamente assim. De todo modo, o Supereu é o
esteio individual da vida social; ele reflete o mundo em que as pessoas
vivem, abarcando em si todos os seus problemas e suas contradições.
Compreendendo-o dialeticamente, podemos concluir que quando o
Supereu não provoca nos seres humanos a moralização e a sociabilidade
da qual deles se espera, temos antes que culpar as formas sociais nas quais
ele se baseia.
Contudo, o nosso problema se impõe. Discutimos, no tópico
anterior, que parte importante dos indivíduos só obedece a muitos dos
preceitos e proibições culturais por medo das consequências punitivas
que a sua desobediência pode levar. O que significa que, em muitos casos,
há uma desidentificação com a cultura. Isso pode ocorrer por vários
motivos, como, por exemplo, o desenvolvimento de uma visão crítica que
se antagoniza em seus ideais com a ordem imposta. Mas queremos
chamar a atenção para o aspecto que compõe o escopo deste trabalho:
aquele que diz respeito à incapacidade de gerenciamento subjetivo do Eu
e a exteriorização da consciência.

209
Pluralismo em Filosofia e Psicanálise

5 O substituto paterno

Muitos dos que só se sujeitam à ordem através do medo são


pessoas que não se identificam com os preceitos e imposições culturais,
ou seja, no decurso de seu desenvolvimento, não fundaram um Supereu
defensor dessa cultura. Ainda que isso aconteça, essas pessoas tomam os
seus senhores como seus ideais, tal como Freud destacou. Identificam-
se, portanto, com aqueles que impõe a elas o sofrimento de sua condição
de classe oprimida.
A explicação para a qual nos direcionamos pressupõe que,
estando vazio o lugar do ideal do Eu, o indivíduo encontra-se
desamparado, pois não possui meios subjetivos para se orientar
objetivamente. A partir dessa situação, ele buscará fora de si uma agência
que possa dar contornos e diretrizes para o seu próprio mundo interior,
alguém, portanto, que continue a cumprir a função paterna de ordenação
pulsional. Desse modo, o indivíduo desamparado exterioriza a sua
consciência, deixando a cargo desse outro a deliberação sobre as suas
próprias ações e pensamentos. A figura do opressor, por dispor de
privilégios e poder, seduz esses indivíduos, pois ela parece usufruir de
tudo o que podem desejar. Logo, facilmente passam a defender seus
ideais, pois querem ser como elas são e ocupar a posição que ocupam.
Considerando essa situação, quais seriam os possíveis elementos que
levam a esse desfecho?
Para Freud (1933/2010a, p. 201), “a instauração do Supereu pode
ser vista como um caso bem-sucedido de identificação com a instância
parental”. No entanto, pode haver casos que tal identificação não se
estabelece da maneira esperada, quando o complexo de Édipo não é
inteiramente superado, e o Supereu pode surgir como uma formação
frágil e volúvel. Nesses casos, o Supereu será uma entidade insuficiente
para pautar o indivíduo na condução de sua vida e, diante um mundo ao
qual não consegue responder, ele se verá novamente sob a condição de

210
A miséria do eu e a consciência exteriorizada

desamparo, vindo a procurar em agências exteriores as normas para


organizar a si mesmo e seu modo de relação com o mundo.
A idade adulta, portanto, nem sempre torna o indivíduo menos
vulnerável que a criança às angústias da existência. Ele continua a se
sentir impotente e, por isso, carente de amparo. Sobre isso, Freud
(1933/2010a, p. 329) escreve:

Tendo se tornado adulto, o ser humano sabe que dispõe de maiores


forças, mas cresce também a sua percepção dos perigos da vida, e ele
conclui, justamente, que no fundo permaneceu tão desamparado e
desprotegido como na infância, que diante do mundo ainda é uma
criança.

É de se esperar que os fenômenos de um mundo tão contraditório


e de inextrincáveis meandros sejam difíceis de compreender e de
outorgar sentido. Sendo assim, diante de uma realidade complexa e que
não se justifica em seus mandamentos e em suas autoritárias exigências,
o indivíduo se vê num contexto no qual não consegue apreender
significação e, portanto, elaborar psiquicamente. Logo, a realidade em
que se encontra é fonte de angústia. Não conseguindo dar sentido a ela,
também não consegue criar expectativas sobre ela e antecipar seus
eventos, de modo que a sente como algo possivelmente ameaçador. Dessa
maneira, o indivíduo se vê na mesma situação que a criança em sua mais
tenra idade, quando tudo no universo é imprevisível e insuportavelmente
novo. A angústia diante do que o psiquismo não pode conceber marca a
condição do desamparo.
No caso da criança, os pais assumem o lugar de porto seguro. A
mãe, ao embalar o bebê em seu seio apaziguador, é a primeira figura
protetora; porém, na medida em que a criança se desenvolve e passa a se
diferenciar do mundo, o pai, como toda a sua autoridade e força, substitui

211
Pluralismo em Filosofia e Psicanálise

esse lugar de principal agente de proteção que a mãe até então ocupava 8.
Desse modo, a criança, em sua situação de vulnerabilidade física e
psíquica, anseia pelo sentimento de segurança que o pai pode promover.
Posteriormente, nos casos em que o Supereu não se desenvolve
suficientemente, o desamparo da criança terá o seu prosseguimento no
desamparo do adulto; o anseio pelo pai que a criança sentia se
transformará, no adulto, em anseio por uma outra figura que substitua o
pai — e que, para isso, terá que representar a força e a autoridade que o
pai inspirava na criança.
Tratando das ideias religiosas e suas fontes psíquicas, Freud
(1927/2014, p. 258, grifo nosso) escreve o seguinte:

Quando o indivíduo em crescimento percebe que está destinado a


permanecer uma criança, que nunca pode prescindir da proteção contra
superiores poderes desconhecidos, empresta a esses poderes os traços
da figura paterna, cria os deuses que passa a temer, que procurar cativar
e aos quais, no entanto, confia sua proteção. Dessa maneira, o motivo do
anseio pelo pai equivale à necessidade de proteção contra os efeitos da
impotência humana.

Deste trecho, podemos concluir que as ideias religiosas,


formuladas num passado longínquo, nasceram da incapacidade de
explicar aquilo que se encontrava na fronteira do conhecimento humano
de até então. Porém, com o passar do tempo e com o avanço do
conhecimento científico, perguntas sem respostas encontraram
explicações materiais e, então, muito do que era misterioso ou atribuído
às forças sobrenaturais foi esclarecido. Com isso, as ciências
enfraqueceram o poder e a influência da religião na cultura moderna. No

8 “[...] a mãe, que satisfaz a fome da criança torna-se o primeiro objeto de amor e, certamente,

também a primeira proteção contra todos os perigos indeterminados e ameaçadores do mundo


exterior, a primeira proteção contra a angústia, podemos dizer. Nessa função, logo a mãe é
substituída pelo pai, que é mais forte e a exercerá por toda a infância. Mas a relação com o pai
é dotada de uma peculiar ambivalência. Ele próprio constitui um perigo, talvez devido à
anterior relação com a mãe. Assim, a criança o teme tanto quanto anseia por ele e o admira”
(Freud,1927/2014, p. 258, grifo nosso).

212
A miséria do eu e a consciência exteriorizada

entanto, em nossa sociedade, o conhecimento científico é restrito a uma


pequena parcela de pessoas. De forma geral, a massa é mantida em estado
de alienação, de tal modo que o sentimento de impotência diante do
mundo, que priva grande parte das pessoas do conhecimento sobre ele,
permanece. Dessa maneira, a angústia diante o desconhecido tem sua
existência continuada e exige ser aplacada por uma explicação que a
elabore. Não importa se as explicações são ilusórias e não encontram
fundamento material nas ciências. A necessidade de simbolização não
anseia, precisamente, por verdades, mas por qualquer explicação que
possa dar algum sentido e possibilitar uma elaboração psíquica dos
fenômenos que nos afrontam com a sua estranheza 9.
O fato, portanto, que mais pesa para a manutenção desse estado
de coisas, em que há, para as pessoas, a necessidade de um substituto
para a figura do pai, é que a formação na sociedade moderna não dá aos
indivíduos capacidade simbólica suficiente para poderem enfrentar os
fenômenos do mundo exterior de maneira independente.
Complementando este fato, ela também não garante a proteção social
dos mais básicos direitos humanos necessários para que todos se sintam
seguros e amparados na comunidade em que vivem. O individualismo
extremo e a concorrência generalizada mantêm os seres humanos em
condições sob as quais ainda precisam lutar pela sobrevivência, assim
como ocorria em seu estado natural. Dessa forma, o mundo exterior só
pode ser sentido como ameaçador e, por isso, como fonte de angústia.
Por conseguinte, ignorantes, inseguros e impotentes, ou seja,
dispondo de um Eu fraco, os indivíduos ainda se veem acuados diante da
realidade. Não encontrando em seu mundo subjetivo os instrumentos
capazes de lhes conduzir de maneira autônoma em seu relacionamento

9 A partir disso podemos tentar compreender a função que as teorias religiosas, místicas, raciais

e/ou conspiratórias têm na economia psíquica dos sujeitos. O terraplanismo do dia-a-dia


funciona de modo a simplificar uma dimensão existencial que, por conta de sua complexidade,
torna-se inacessível para o indivíduo comum.

213
Pluralismo em Filosofia e Psicanálise

com a objetividade, os indivíduos sentirão a necessidade de procurar


normativas, princípios e ideais em agências exteriores para se
organizarem psiquicamente — em outras palavras, eles sentirão a
necessidade da tutela de uma figura paterna. Freud trabalha a figura de
Deus como um dos mais poderosos substitutos para o pai. Porém, esse
substituto também poderá ser encontrado na figura de líderes que, para
gerarem identificação, devem “dar a impressão de enorme força e
liberdade libidinal” (Freud, 1921/2011b, p. 93). A esses líderes, tais
indivíduos oferecem obediência e submissão. Como substitutos do pai, é
transferido a eles as prerrogativas da autoridade paterna. Sobre isso,
Freud (1939/2018, p. 152) escreve:

Sabemos que existe, na massa humana, a forte necessidade de uma


autoridade que se possa admirar, à qual as pessoas se dobrem, pela qual
sejam dominadas e até maltratadas eventualmente. Na psicologia do
indivíduo descobrimos de onde vem essa necessidade da massa. É o
anseio pelo pai, inerente a cada um desde a infância [...].

Ao colocarem outro no lugar do pai, os indivíduos acabam


idealizando a figura de autoridade substitutiva. Como o seu próprio ideal
do Eu é fraco, a figura do líder “serve para substituir um ideal não
alcançado do próprio Eu. Ele é amado pelas perfeições a que o indivíduo
aspirou para o próprio Eu, e que através desse rodeio procura obter, para
satisfação de seu narcisismo” (Freud, 1921/2011b, p. 71). Por fim, a figura
do líder, e tudo que ele representa, é colocada no lugar do Supereu, ou
seja, no lugar da própria consciência do indivíduo.

6 Considerações finais

O ideal do Eu, ou Supereu, como vimos, é o herdeiro da


autoridade paterna e, assim, exerce sobre o Eu o mesmo domínio que o
pai exercia sobre o filho. Ele representa, além da autoridade do pai, o
princípio de realidade, que se estrutura, como sabemos, sob uma lógica

214
A miséria do eu e a consciência exteriorizada

de dominação. Desse modo, o Supereu internaliza as normas sociais e,


por conta disso, o indivíduo se torna portador da cultura estabelecida,
não precisando ser coagido externamente à obediência de seus ditames.
Portanto, a tendência do Supereu é fazer do indivíduo alguém
subserviente às figuras de autoridade. Assim, não é de se espantar que ele
acabe se identificando com a classe dominante.
Quando, por outro lado, pelas dificuldades da superação do
complexo de Édipo, o sujeito desenvolve um Supereu fraco, ele se torna
incapaz de orientar a si mesmo no mundo. Sentindo-se desamparado, ele
anseia por uma figura que o proteja como o pai antes o fazia. Ao encontrar
um substituto paterno, ele o coloca no lugar de seu ideal do Eu, que,
como vimos, exerce domínio sobre o Eu. Assim, o indivíduo se vê
completamente vulnerável a essa figura de autoridade substitutiva.
Para além da relação fundamental com os pais, a formação
continuada do sujeito na sociedade moderna impede que ele desenvolva
força suficiente para poder encarar o mundo exterior de maneira
autônoma e confrontar criticamente os modelos de autoridade
existentes. Pois na medida em que o indivíduo é sufocado pelas pressões
sociais, ele não encontra espaço para experimentar o mundo de modo
contingente e, por isso, as individualidades submetem-se sempre aos
mesmos aspectos pré-determinados socialmente, o que os destitui da
possibilidade de experiências que agreguem recursos subjetivos para a
fundamentação de uma individualidade própria e emancipada.
O empobrecimento subjetivo ensejado por um controle social
estreito e rígido tem como consequência o sentimento de impotência e
desamparo. A incapacidade de elaboração simbólica e satisfação
pulsional, torna a realidade do adulto tão ameaçadora quanto a da
criança. Nesse sentido, concluímos que o Supereu dificilmente se
desenvolve de modo suficiente para se tornar capaz de ordenar com um
mínimo de segurança o circuito pulsional do indivíduo. Sendo assim, este

215
Pluralismo em Filosofia e Psicanálise

terá que buscar fora de si uma outra consciência para tomar de


empréstimo e fazer isso por ele. A sua realidade, portanto, continua a ser
fonte de angústia e, por conta de sua fraqueza, o indivíduo adulto
continuar a sentir a necessidade da tutela de uma figura paterna, o que
marca sua menoridade. Qualquer figura que demonstre força e poder
suficientes pode vir a ser tomada como modelo e ideal a ser seguido.
Dessa forma,

Somos lembrados de como esses fenômenos de dependência fazem


parte da constituição normal da sociedade humana, de quão pouca
originalidade e coragem pessoal nela se encontram, do quanto cada
indivíduo é governado pelas atitudes de uma alma da massa [...] (Freud,
1921/2011b, p. 78).

Notamos, por fim, que a cultura estabelecida, baseada em uma


lógica social de dominação, promove modos de existência que
perpetuam as relações de poder e, nesse sentido, produzem indivíduos
psiquicamente miseráveis, o que tem como resultado a transformação da
classe oprimida em uma classe dependente, dócil, acrítica e,
consequentemente, vulnerável aos ideais que forjam a sua própria
condição servil.

Referências

ADORNO, T.W. Estudos sobre a personalidade autoritária. Trad. Virgínia


Helena Ferreira da Costa, Franscisco López Toledo Corrêa, Carlos Henrique
Pissardo. São Paulo: Unesp, 2019.

FREUD, S. A moral sexual “cultural” e o nervosismo moderno (1908). In:


FREUD, S. Obras completas, vol. 8. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo:
Companhia das Letras, 2015.

FREUD, S. Moisés e o monoteísmo (1939). In: FREUD, S. Obras completas, vol.


19. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.

216
A miséria do eu e a consciência exteriorizada

FREUD, S. Novas conferências introdutórias à psicanálise (1933). In: FREUD, S.


Obras completas, vol. 18. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia
das Letras, 2010a.

FREUD, S. O Eu e o Id (1923). In: FREUD, S. Obras completas, vol. 16. Trad.


Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2011a.

FREUD, S. O futuro de uma ilusão (1927). In: FREUD, S. Obras completas, vol.
17. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.

FREUD, S. O mal-estar na civilização (1930). In: FREUD, S. Obras completas,


vol. 18. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2010b.

FREUD, S. Psicologia das massas e análise do eu (1921). In: FREUD, S. Obras


completas, vol. 15. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das
Letras, 2011b.

KANT, I. A paz perpétua e outros opúsculos. Trad. Artur Morão. Lisboa:


Edições 70, 2016.

217
Pluralismo em Filosofia e Psicanálise

218
Psicanálise e Educação: relações com o
processo ensino-aprendizagem
Vanessa Ribeiro Morelo 1 & Fábio Santos Bispo 2
DOI: https://doi.org/10.58942/eqs.79.11

1 Introdução

Visando apresentar as principais contribuições do pensamento


de Freud para entender os processos de ensino e aprendizagem, busca-se
fazer um traçado entre suas principais ideias, sobretudo em torno da
noção de transferência, com questões pedagógicas, abordando como se
dá esse processo nas vivências educacionais das escolas na atualidade.
Essa temática se justifica devido à importância de se compreender
a dinâmica que interfere nos vínculos educacionais para que uma relação
pedagógica seja possível, a fim de lidar com os impasses no meio escolar.
Destaca Andrade (2017, p. 113):

Afastar não resolve, sem transferência não há sequer milagre. [...] A


escola é uma mini sociedade [...]. Nela marca presença a vida do mundo,
ali, espremida, estão histórias de várias classes sociais. É por isso que a
escola deveria trabalhar questões sociais com mais afinco do que fazem
e não deveria recuar perante os debates sociais. A escola deveria ser um
local onde se debateria as coisas e por isso, por falar e escutar,
ensinassem. A escola não deve se limitar a teorias, pois nenhuma delas
veio afastada dos ocorridos do mundo e da vida.

1Professora de Filosofia da Secretaria Estadual de Educação do Espírito Santo.


E-mail: aneemorello@gmail.com
2 Professor do Departamento de Psicologia e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia

Institucional da Universidade Federal do Espírito Santo. E-mail: fabio.bispo@ufes.br


Pluralismo em Filosofia e Psicanálise

Andrade (2017), gosta de destacar o papel que a escola deve


desenvolver, não apenas limitando-se a teorias, mas, ultrapassando o
desafio da mera transmissão destas, fator este que torna as relações
complexas, para alcançar dimensões sociais sem perder de vista as
dimensões educacionais que permeiam a subjetividade.
Com base nos teóricos que trazem intrinsecamente o papel da
escola, da Psicanálise, a partir da transferência, e do educador no
processo de ensino-aprendizagem, procuraremos desenvolver
argumentos para demonstrar que a transferência é elevada por Freud à
categoria de um elemento de ordem central da análise, que pode
contribuir diretamente a favor da Educação. É através dos traços da
transferência que o inconsciente e o desejo são atualizados. Lacan (1988),
psicanalista francês que promove uma renovação da teoria freudiana,
também contribui para entendermos a relação da transferência com o
ensino-aprendizagem, chegando à premissa de que não há experiência
do sujeito com seu inconsciente fora do laço transferencial: “a
transferência é um fenômeno essencial, ligado ao desejo como fenômeno
nodal do ser humano” (Lacan, 1988, p. 219).
Para fins de organização didática, as reflexões serão apresentadas
em três principais partes. Na primeira parte, traremos as definições
conceituais sobre transferência e seus correlatos, buscando em Freud e
outros teóricos, a exemplo de Correa (1992) e Andrade (2017),
contribuições quanto às questões propostas.
Na segunda parte, serão problematizadas as reflexões acerca da
relação entre a Psicanálise e a Educação escolar. Trazendo contribuições
e descrições a partir desta relação com o processo de ensino-
aprendizagem, buscando explicitar, como exemplo, as relações sociais e
afetivas no âmbito educacional.
Na terceira parte, explicitaremos a importância e
responsabilidade do trabalho do educador, mostrando como a

220
Psicanálise e Educação: relações com
o processo ensino-aprendizagem

Psicanálise pode ajudá-lo diretamente, manejando as resistências e


conduzindo o aluno para que este alcance a autonomia na busca pela
internalização da aprendizagem. A metodologia utilizada nesta
pesquisa, parte de análises descritivas acerca dos textos de Freud e Lacan,
comentados por alguns teóricos contemporâneos. Tomamos a
Psicanálise de Freud como eixo central e recorremos aos outros autores
para desenvolver as articulações com os questionamentos do campo
educacional.
Os resultados do estudo apontam para a necessidade de elevar a
visão e perspectivas acerca da contribuição da Psicanálise nos trabalhos
do professor em sala de aula, especificamente em torno do desejo do
saber, a partir do qual a Psicanálise opera.

2 Conceito de transferência e relação professor-aluno

A constituição do conceito de transferência em Freud tende a


descrever a atualização do desejo inconsciente através de sua
transformação. Fruto de um longo processo de elaboração, a
transferência pode ser abordada a fim de descrever os processos de
formação e construção das resistências que surgem como manifestações
do trabalho do inconsciente.
Freud introduz o conceito de transferência a partir da obra A
interpretação dos sonhos (1900), estabelecendo relações com as
memórias. O termo transferência não foi dirigido primeiramente ao
tratamento analítico, e sim, inicialmente empregado para designar a
mobilidade do desejo. A partir da estrutura do inconsciente, vemos que
o que sofre o processo de transferência é o desejo. A transferência no
pensamento freudiano vem designar uma forma particular de
atualização do desejo inconsciente.

221
Pluralismo em Filosofia e Psicanálise

Para Freud, a transferência permeia a relação entre o analista e o


analisando, possibilitando confiança, respeito, conforto e afetividade,
para que o analista escute o paciente de forma ampla. Há, porém, outras
modalidades de transferência, que atualizam sentimentos oriundo da
relação do sujeito com os pais e outras figuras de importância, ou outros
afetos que são direcionados para a pessoa do analista, de forma
inconsciente. Segundo Freud (1912/1996), “somente uma parte daqueles
impulsos que determinam o curso da vida erótica passou por todo o
processo de desenvolvimento psíquico [...]. Outra parte dos impulsos
libidinais foi retida no curso do desenvolvimento”. Esses impulsos retidos
são transferidos para alguma figura importante e de referência para o
sujeito, em algum período da vida. Esse fenômeno, observado por Freud
nos primórdios da Psicanálise, é tido como um “transporte do passado
para o presente”.

Se a necessidade que alguém tem de amar não é inteiramente satisfeita


pela realidade, ele está fadado a aproximar-se de cada nova pessoa que
encontra com ideias libidinais antecipadas; e é bastante provável que
ambas as partes de sua libido, tanto na parte que é capaz de se tornar
consciente quanto a inconsciente, tenham sua cota na formação dessa
atitude (Freud, 1912/1996).

Mas não somente o analista pode se tornar um depositário deste


processo. Temos aqui a figura do professor, cuja importância afetiva
Freud, em determinada fase de seus estudos, ressaltou a partir de seu
lugar na Educação, como uma poderosa e nova aliada da Psicanálise. Ele
acreditava em uma Educação que pudesse ser mais franca e aberta na
abordagem das questões referentes à sexualidade. Ainda que a educação
não fosse suficiente para prevenir neuroses, poderia certamente
contribuir para a construção de espaços de elaboração menos
repressores.
No ambiente de uma sala de aula, onde o diálogo é uma
constante, é facilitada à figura do professor se tornar um depositário para

222
Psicanálise e Educação: relações com
o processo ensino-aprendizagem

o aluno. Este pode realizar uma reedição de antigos afetos, resultado de


um modo próprio de transferência. No entanto, o modo como cada aluno
realiza essa transferência é bastante singular, podendo ser mais ou menos
intenso em cada caso. Essa atualização do desejo inconsciente é vista
quando o sujeito, na condição de aluno, transfere a expectativa de saber,
supondo que o profissional da educação tem algo valioso a ensinar. “Isso
introduz consequências para outros campos em que é sensível o lugar
ocupado pelo Outro, como, por exemplo, o campo da Educação, em que
o professor é solicitado pelo aluno a responder no lugar de quem sabe”
(Correa, 2009, p. 192).
É ao abordar a dinâmica do desejo no tratamento analítico que o
termo transferência ganha importância na Psicanálise. O fenômeno da
transferência é então, por Freud, apontado, como um fenômeno psíquico
que se encontra presente em todos os âmbitos das relações com nossos
semelhantes, onde possa haver troca e diálogos formativos.
A transferência não é um termo específico da Psicanálise. Trata-
se de um vocábulo utilizado em diversos campos, denotando sempre uma
ideia de transporte, de deslocamento, de substituição de um lugar para
outro. A teoria freudiana reconhece nesse fenômeno um elemento
fundamental no transcorrer do tratamento e do processo de cura. Trata-
se de um fenômeno psíquico presente em todas as relações humanas:
médico e paciente, professor e aluno, mestre e discípulo etc.
Freud, posteriormente, empregou o termo transferência para
descrever os processos pelos quais passam o desejo, a fim de superar as
resistências, sejam elas do conhecimento, do desenvolvimento ou ambas
as abordagens; apresenta-se como um incessante trabalho do consciente.

As palavras carregam peso e responsabilidades atemporais. [...] a


psicanálise tem muito a contribuir, o caminho é justamente pelo
trabalho da transferência. Muitos pelas resistências que lhe são próprias
apelam à força do lugar que ocupa e acabam gritando para silenciar o
outro (Andrade, 2017, p. 18).

223
Pluralismo em Filosofia e Psicanálise

Freud traz ainda o que chama de “exame teórico da transferência”.


A princípio, podemos analisar o fato de que cada indivíduo, por
características próprias, através de sua ação combinada, chegou a
métodos específicos e próprios de se conduzir na vida, nas
circunstâncias, na forma de internalizar os conteúdos e aprendizagem,
etc. Vejamos estas formas de condução especificamente quanto à
Educação e à relação do professor com o aluno em meio a aprendizagem
e desenvolvimento subjetivo do sujeito.

2.1 O desenvolvimento educacional e a Psicanálise


Sabe-se que as políticas educacionais atualmente tendem a partir
do pressuposto de que um bom conhecimento acerca do
desenvolvimento da criança e do adolescente já constitui garantia do
combate ao fracasso escolar. Entretanto, a singularidade do aluno
raramente recebe a atenção central. É importante ressaltar o
reconhecimento do sujeito do inconsciente nas práticas educativas. Para
a Psicanálise, é importante considerar o sujeito do inconsciente na
Educação, pois este sujeito não segue os parâmetros lineares.
Assim, decorre que, enquanto na Educação o sujeito
contemplado é o do conhecimento cognitivo, passível de mensuração, o
sujeito do qual se ocupa a Psicanálise é o sujeito do inconsciente
enquanto manifestação única, singular, não mensurável e que, por isso,
não pode fazer parte do concretamente observável.

[...] uma consequência para a educação dessa abordagem da


transferência como suposição do saber no outro, e a transferência como
condição para a aprendizagem, ou seja, que exista por parte do aluno
uma suposição de saber no professor. Em outras palavras, não haveria
aprendizagem sem transferência (Correa, 2017, p. 213).

Nesta relação, a subjetividade do professor tem uma função


facilitadora da aprendizagem. Refletir a Psicanálise para educadores é
refletir articulações que ultrapassem a imagem do professor como

224
Psicanálise e Educação: relações com
o processo ensino-aprendizagem

simples analisante. O educador vai representar funções que substituem


as figuras parentais. O analisante vem demandando uma ajuda no que
diz respeito a um saber suposto ao analista.
A noção de transmissão está articulada, tanto em Freud como em
Lacan, com a noção de autoridade. Portanto, a posição que o professor
ocupa contém projeções atribuídas a ele. O educador deve assumir a
responsabilidade que sua função representa. “Essa responsabilidade pelo
mundo assume a forma de autoridade” (Correa, 2009, p. 194-195).

Se a transferência diz de uma confiança a nível inconsciente, esta aponta


para os processos de identificação, onde nos ajeitamos para parecer com
um outro, seja na postura, seja nos vícios de linguagens, ou seja, no
desejo de estar onde ele está. Investimos neste outro, libidinalmente,
um canal para o ser. Começamos a imitar, a seguir o que ele fala, a
valorizar o estilo, ideologias etc. com os professores isso também ocorre.
A base da transferência é a identificação (Andrade, 2017, p. 70).

É possível olhar com menos estranheza o que acontece nas


relações sociais e afetivas no âmbito educacional. A Psicanálise vem
possibilitar que o sujeito pise com firmeza os “chãos da vida”. Trabalhar a
Educação para mediar os anseios e expectativas do sujeito pode ser cada
vez mais possível para que, no ato de educar, em que a transmissão de um
saber está em jogo, o sujeito possa ir além e ascender à originalidade.
Logo, se o professor colocar-se na posição de que “tudo sabe”, não
restará outra alternativa ao aluno a não ser submeter-se à posição de
objeto diante desse professor. No entanto, para que o aluno possa se
constituir como um sujeito “desejante do saber”, o professor deve
reconhecer-se um sujeito faltante, castrado. Na mesma medida, deve
sustentar a sua posição como representante do conhecimento.
A relação professor-aluno no processo de ensinar e aprender é
feita por este trabalho de lidar com a transferência, uma relação de
vínculo que vai sendo construída à medida em que o trabalho é feito. A

225
Pluralismo em Filosofia e Psicanálise

responsabilidade pelo que fala é, portanto, muito grande por parte do


educador.
São as pessoas de referência que, de acordo com a forma como
falam, geram tanto conflitos como lembranças e impulsos que podem se
apresentar como uma certa resistência. A resistência pode ser uma força
que vem ocupar o lugar do respeito e da fluidez que precisa haver em sala
de aula para que a aprendizagem ocorra.
Dando essa mesma importância, algumas sugestões freudianas
trazem possibilidades de uma Educação com o mesmo objetivo que a
Psicanálise. Uma educação libertadora, permitindo que o sujeito supere
suas dependências. O educador, bem como o analista, deve buscar ações,
meios e atitudes para que o sujeito que busca sanar a falta, alcance por si,
condições próprias para lidar com ela.
Andrade (2017) faz menção a questões importantes que estão
sempre presentes nas salas de aula e que, por vezes, passam
despercebidas das atenções docentes e pedagógicas. Questões estas
como a carência do aluno, a rebeldia, o não cumprimento de atividades;
todas essas situações falam indiretamente sobre como se manifesta o
desejo inconsciente do aluno. Andrade (2017. p. 70) ainda sugere que “a
base da transferência é a identificação”. O aluno é tido como o analisante,
aquele que vem demandando uma ajuda. Assim como o analisante busca
ajuda pelo saber suposto do analista, o aluno está nesta condição de uma
busca pelo objeto da aprendizagem.
Toda a noção de transmissão do conhecimento pode ser
articulada, tanto a partir de Freud quanto de Lacan, com o manejo da
transferência que sinaliza o desejo. O amor à verdade adquirida pode ser
facilmente relacionado com a resistência que surge neste processo de
transmissão. Sobre o amor, Correa traz contribuições:

[...] a partir da abordagem lacaniana, transferência é transferência de


saber e, como efeito dela, surge o amor, amor ao saber. Mas, dado o

226
Psicanálise e Educação: relações com
o processo ensino-aprendizagem

caráter do amor como escamoteação do desejo, ela se apresenta como


resistência ao desejo como desejo do Outro. Estamos, portanto, diante
do fechamento do inconsciente, da transferência em sua vertente de
resistência como assinalou Freud [...] (Correa, 2009, p. 191-192).

A abordagem lacaniana acerca da transferência como suposição


do saber se introduz em outros campos nos quais alguém ocupa o lugar
de Outro para o sujeito, a exemplo do campo da Educação, em que a
figura do professor é vista e tida como “quem tudo sabe”,

[...] fato bastante evidente para qualquer um que tenha alguma


experiência nesse campo que onde não há transferência, suposição de
saber por parte do aluno no professor, não há aprendizagem, sugerindo
ser a transferência uma condição para o processo ensino aprendizagem
[...] (Correa, 2009, p. 192).

Dessa forma, têm-se a linguagem como principal campo a ser


responsável pela humanização do homem. Entender o sujeito-homem é
primordial para que táticas de ensino e abordagens possam melhor
contribuir para trazer novas alternativas de interfaces nas áreas da
Educação. A relação professor-aluno é a primeira que deve ser entendida
e analisada no contexto escolar. Muitos professores têm ciência dos
movimentos afetivos que despertam em seus alunos, e entender essa
relação é fundamental para que o professor mantenha o autocontrole
diante das manifestações e/ou rejeições por parte destes. Como salienta
Andrade (2017, p.13):

O profissional da educação [...] é tocado por problemáticas que


demandam serem melhores trabalhadas pelos fios das palavras e pelas
linguagens variadas que perpassam as suas relações. São
transversalidades que colocam o profissional em seu ofício, ao trabalho.

Nos momentos de aprendizagem, todos os envolvidos trocam


experiências e aprendem com as informações e conhecimentos. Esta
dinâmica acontece de forma muito eficiente quando há um engajamento
das partes. No processo de transferência, o desejo se desloca para as

227
Pluralismo em Filosofia e Psicanálise

representações que são feitas pelo sujeito. O sintoma do desejo é


transferido para a ação, relação com o analista. Em um espaço como a sala
de aula, a dimensão do desejo deve ser manifestada e transferida para o
diálogo entre professor e aluno.

2.2 Importância e responsabilidade da figura do educador


Todas as relações de troca que acontecem dentro da escola são
frutos de laços que o sujeito cria e desenvolve no meio social. A partir do
inconsciente, o sujeito investe confiança ao transferir para a figura do
professor a função de mestre do conhecimento ou dono deste. Porém,
como toda relação é ambivalente, temos neste meio a participação da
resistência em um jogo transferencial, de modo que a suposição de saber
também pode apresentar-se como uma desconfiança.
De acordo com Andrade (2017, p. 70), “um trabalho transferencial
pode alavancar a resistência para uma relação frutífera”. A relação
professor-aluno requer uma confiança intelectual, a nível inconsciente.
Porém, constata-se que vivemos em uma época em que o sujeito se
encontra à deriva, por meio dos excessos, da rapidez dos fatos, do sistema
vigente, da pressão que é colocada tanto em educadores, para serem o
máximo em sua competência, quanto nos alunos, para cumprirem metas
e alcançarem resultados cada vez melhores. Todo esse jogo entre o que é
feito e o que se espera, traz consigo resistências que impedem o processo
de fluir em sua melhor configuração. Nota-se que o desejo do saber é o
mais contemplado, e é preciso que o educador se utilize de meios
harmoniosos para que possa transmitir e, indo além, construir o ensino.
A relação do professor com o aluno parte da atenção detalhada
que o professor terá diante dos sinais diários. De acordo com Andrade
(2017), o profissional que se difere é aquele que tem a capacidade de
“tatear o abstrato” que marca as relações humanas. Segundo Freud, a
Educação é firmada no compromisso de trabalhar as pulsões e os modos
singulares de cada um buscar satisfação e, em última instância, a própria

228
Psicanálise e Educação: relações com
o processo ensino-aprendizagem

felicidade. Para o educador, deve ficar claro seu compromisso com a vida
dos alunos. Pelos direcionamentos e palavras é que a potência do
processo educativo se faz.
Por ser pulsional, o ser humano torna-se agressivo até mesmo no
espaço onde busca romper e lutar contra a violência. Um fator que leva a
esse comportamento, a esse rompimento da verdadeira missão da
Educação, é o choque de geração entre professor e aluno, mudança essa
que se intensifica e encontra pela frente resistência nas relações. Sabe-se
que o professor é um grande formador de opinião e influenciador de
ideias. A relação professor-aluno é um tema congruente, que traz
desdobramentos das mais variadas formas. O trabalho nesta relação é
direcionar estes desdobramentos com sinceridade e precisão. Dar conta
de lidar com a falta de respostas, com os limites do saber, é o segredo para
que uma Educação eficaz e equilibrada aconteça.
Refletir, portanto, sobre a Educação na contemporaneidade, é
tratar de todas as relações que fazem parte do meio social. O capitalismo
visa a formação de sujeitos capazes de se formarem para uma alta
performance e sucesso constante em múltiplos empreendimentos.
Vemos, portanto, que há um paradoxo entre o que norteia essa sociedade
e o que deveria estar na base do objetivo educacional: o desejo de saber,
lidando com o reconhecimento da própria impossibilidade de tudo saber.
É essencial que a psicanálise e a Educação estejam revendo seus métodos
com frequência, em função de seus objetivos.
Em torno da aplicação da Psicanalise à Educação, Freud já
sinalizava o perfil educativo a partir de atos psicanalíticos. O processo de
educar, situado por Freud como uma das tarefas impossíveis, necessita
de transferência por parte do aluno como uma suposição do saber
vislumbrada na figura do professor. A transferência é tida como condição
para que a aprendizagem aconteça, com a condição de que o professor
suporte lidar com a queda dessa suposição, permitindo que o aluno vá

229
Pluralismo em Filosofia e Psicanálise

buscar por sua conta construção do saber. A psicanálise indica para o


campo educacional que não haveria aprendizagem se não houvesse
transferência. É preciso pensar e ofertar condições para que, não somente
a suposição do saber por parte do aluno no professor aconteça, mas, para
que o professor saiba lidar com essa suposição, sem tentar encarnar todo
o saber diante do seu público.

[...] na transmissão, no que concerne ao campo da educação, por


exemplo, estaria em jogo não somente a suposição de saber por parte do
aluno no professor, como também a posição do professor diante do
aluno operando como autoridade (Correa, 2009 p. 203).

No ato de educar, a transmissão está em jogo, e só é possível esta


posição se houver uma espécie de submissão por parte do aluno diante
do professor, como figura de autoridade. Podemos refletir as alternativas
e interfaces entre a Educação e a Psicanálise, a segunda, como vertente
muito importante e útil para o professor no ato e realização da primeira.
Sendo percebida ainda como estímulo a pensar as possibilidades que
pode trazer à prática educativa.
Mais do que trazer prontas receitas, analisar esta temática traz
questionamentos maiores que os educacionais somente, como crises,
conflitos, dificuldades, etc. Refletir sobre a prática docente é tarefa que
podemos realizar demonstrando, através dos ensinamentos de Freud,
que se prontificou com interesse por esta conexão.
Quando falamos da Psicanálise, não somente o fazemos em
referência a Freud, mas também a Jacques Lacan, que, embora
influenciado por Freud, contribuiu com originalidade para que alguns
objetivos fossem propostos. O desenvolvimento do ser humano é o que
entrelaça a Educação e a Psicanálise.

A Psicanálise pode transmitir ao educador [...] um modo de ver e de


entender sua prática educativa. É um saber que pode gerar,
dependendo, naturalmente, das possibilidades subjetivas de cada

230
Psicanálise e Educação: relações com
o processo ensino-aprendizagem

educador, uma posição, uma filosofia de trabalho. Pode contribuir, em


igualdade de condições com diversas outras disciplinas, como a
Antropologia, ou a Filosofia, para formar seu pensamento [...] (Kupfer,
1989, p. 97).

Podemos dizer que o professor já tem o inconsciente marcado


pela função de transmissão do ensino. O professor assume um lugar de
sujeito que está em falta, para que assim o desejo de ensinar e a
expectativa do aluno de aprender possam produzir efeitos de fato no
objetivo do ensino escolar.
Freud introduz, nesse contexto, a possibilidade que a Psicanálise
tem de acontecer fora do divã, nos meios em que há o desenvolvimento
humano, a exemplo principal, a escola. De acordo com Filloux (1997),
mesmo que Psicanálise e Educação tratem do campo do ser humano, elas
possuem funções próprias. A Educação acontecendo por meio da
promoção educativa, e a Psicanálise por meio da análise terapêutica.
É preciso entender que a Educação não é e nem deve ser vista
apenas como mecanismo preventivo diante das faltas do sujeito aprendiz.
O trabalho da pedagogia educacional deve retirar, ou nem sequer chegar
ao patamar de colocar o professor como figura de analista. Todavia, surge
a questão: como e quais ferramentas a Psicanálise apresenta a fim de
repensar e contribuir para a prática educativa? Podemos situar tudo isso
a partir das investigações de Freud e Lacan, que nos indicam a dimensão
da identificação que há entre aluno e professor, neste caso, em análise
psicanalítica, o aluno investe no professor aspectos fortes, expectativas
que produzem perfis e identificações das mais variadas. A partir desta
identificação é que o aluno se doa ao conteúdo ministrado pelo professor.
Neste sentido, Lacan aponta para o “campo da linguagem” como
forma de humanizar o animal homem. Pontuando a palavra como
mecanismo para dar direção ao outro. Pode-se assim entender que o
ensino é mediado através da palavra, esta por sua vez, representada pelo
professor. Percebemos aí a relação entre professor e aluno de modo que é

231
Pluralismo em Filosofia e Psicanálise

pressuposto que haja sempre um outro que ensina, não acontecendo


ensino sem essa presença.
Kupfer (1989, p. 9) faz menção ainda ao que Freud abordou:

Aquilo que Freud denominou transferência pode ser encontrado num


contexto analítico, mas também na relação professor-aluno. É a partir
da análise dessa relação que se pode pensar no que faz um aluno
aprender. O que o faz acreditar no professor, permitindo que um ensino
seja eficaz.

O professor deve estar aberto a palavra do Outro também.


Permitir que o aluno elabore, não só os enigmas e descobertas do campo
do conhecimento, mas as próprias fantasias, frustrações e expectativas
que interferem na sua relação com o saber. Sem escutar o aluno, o
professor também não tem condições de perceber o que, nas experiências
do cotidiano, é capaz de despertar um desejo de descoberta.
Kupfer (1989, p. 98) nos faz refletir ao afirmar que “o encontro
entre o que foi ensinado e a subjetividade de cada um é que torna possível
o pensamento renovado, a criação, a geração de novos conhecimentos”.
O professor não pode partir apenas da realidade empírica do aluno; a
transferência vem permitir no sujeito a sua saída da realidade do
empirismo, permite abrir espaço para que o sujeito formule sua
singularidade e autonomia a partir de suas fantasias, desejos e angústias.

3 Considerações finais

Ensinar é um ato que vai além do desejo do professor. A demanda


social que as escolas vêm apresentando é o que vai delineando todo o
trabalho e reflete no que é a Educação hoje. Essa maneira de entender a
Educação vai além da pedagogia escolar, alcançando outras leituras que
podemos chamar de “psicanaliticamente orientadas”. Uma Educação sob
o olhar psicanalítico orienta-se para além das leituras. Hoje, há propostas

232
Psicanálise e Educação: relações com
o processo ensino-aprendizagem

que devem atender certos resultados, estes que demandam ajustes de


comportamentos e os enquadram nos transtornos psiquiátricos
promovem práticas com um determinado grau de urgência nas ações dos
ditos “detentores do saber”.
O percurso que fizemos nos revelou que o tema da Psicanálise
aplicada ao campo da Educação apresenta desdobramentos de questões
fundamentais. A Psicanálise pode oferecer para a Educação um modo de
pensar sobre o que impulsiona e sustenta o ato de educar, apresentando
como considerações, a possibilidade que há de criar novas ferramentas
para validar o saber prático educacional.
A Psicanálise poderá vir a auxiliar o professor na construção por
uma ética do trabalho, reestabelecendo uma nova metodologia em que o
aluno (desejante), possa ser contemplado por uma aprendizagem
equilibrada e colaborativa com a autonomia de si. Os resultados apontam
para a necessidade de caminhar, imprescindivelmente a partir de
métodos pedagógicos, em consonância com um referencial psicanalítico
para melhor organizar o saber que é ensinado e como é avaliada esta
articulação, que resulta na produção de ensino para seus alunos.

Referências

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obras psicológicas completas. Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original
publicado em 1900).

233
Pluralismo em Filosofia e Psicanálise

FREUD, Sigmund. A Dinâmica da transferência. Edição standart brasileira das


obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996,
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KUPFER, Maria Cristina. Freud e a educação: o mestre do impossível. São


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LACAN, Jacques. O seminário livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da


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LACAN, Jacques. Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente


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SANTIAGO, A. L. A inibição intelectual na psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar,


2005.

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