Katherine Quinn - The Azantian 02 - em Praias Perversas
Katherine Quinn - The Azantian 02 - em Praias Perversas
Katherine Quinn - The Azantian 02 - em Praias Perversas
Incê ndio.
Ela sentiu o cheiro da fumaça antes de vê -la.
Quando viu a cena à sua frente, tinha a visã o um pouco menos
embaçada, embora certamente nã o clara.
A cabeça estava melhor, a sensaçã o de que algué m continuamente
estava cravando uma adaga em seu crâ nio tinha melhorado. Uma
pequena misericó rdia. Seu corpo doı́a, mas a dor parecia administrá vel.
Ela levantou a cabeça. A visã o turva permitiu que distinguisse o
contorno de uma caverna escura, um fogo lorescente lambendo as
paredes. Ela nã o reconheceu nada.
— Você está quase curada.
Margrete se encolheu, virando-se para encontrar a fonte da voz tã o
familiar. O movimento repentino a fez fazer uma careta de agonia.
— Nã o se preocupe, nã o estou aqui para te machucar — disse
Darius, saindo das sombras. Ele usava a capa de costume, embora o
capuz permanecesse abaixado, deixando seu rosto visı́vel. Margrete
apertou os olhos, desejando nã o estar tã o fraca, desejando que sua
visã o estivesse clara o su iciente para que ela pudesse atacar, se
necessá rio.
— Fique longe de mim! — ordenou, com a voz grave. Ela levantou a
mã o como se aquilo pudesse fazer algum efeito. Sua magia estava tã o
enterrada sob a pele que ela duvidou que a alcançaria, mesmo que
pudesse invocá -la corretamente.
Darius suspirou. Ele quase soou ofendido.
— Você estava inconsciente, desmaiada nos bancos de areia, uma
presa perfeita para qualquer predador.
Ela se lembrou da corrente, das rochas, da luta frené tica para manter
o controle e, em seguida, da escuridã o abrangente.
— Eu a curei, mas você levou uma pancada forte na cabeça. Se fosse
qualquer outra pessoa, isso teria te matado. — Darius se agachou,
descansando os braços nos joelhos. — Mas você é uma sobrevivente.
Assim como eu.
— Eu nã o sou nada como você ! — rosnou, grudando ainda mais nas
paredes da caverna. Ela procurou sua arma, envolvendo o aço com os
dedos, a lâ mina em sua bainha. Darius nã o a tinha tirado dela, o que a
confundiu e enfureceu. Ele se achava invencı́vel, e talvez de fato o fosse
contra o aço Azantiano, mas ela imaginava que atingi-lo doeria mesmo
assim.
Darius olhou para o outro lado da caverna. Quando a visã o de
Margrete clareou, ela percebeu como as chamas dançavam pelas maçã s
do rosto a iadas do deus, pela mandı́bula forte e os olhos assombrosos.
Para um deus que geralmente pingava arrogâ ncia e justiça pró pria,
ele parecia quase mortal. A visã o era enervante.
Darius a ignorou por um longo tempo, e ela icou tensa quando ele
por im abriu a boca para soltar suas palavras calculadas e
cuidadosamente selecionadas.
— Quero contar uma histó ria que muitos nã o conhecem —
sussurrou. Ele virou a cabeça para encará -la, mostrando os olhos
ardendo com uma emoçã o inominá vel. — E a histó ria de dois irmã os
que lutaram por sé culos e nunca foram capazes de con iar no ú nico ser
que poderia entendê -los. Uma tragé dia, na verdade. — Darius zombou
antes de engolir em seco. — Eles eram mais guerreiros do que irmã os.
Ambos muito cheios de raiva. Ambos solitá rios.
Margrete manteve o contato visual, sem desviar o olhar. Suas
palavras carregavam o peso de uma tristeza in inita. Ela reconheceu
tudo muito bem.
Ainda assim, nã o queria ouvir aquela histó ria inventada.
— Nã o quero saber de suas mentiras — disse ela, com desprezo na
voz. — Quero saber onde estã o meus amigos.
Um aborrecimento passou por suas feiçõ es, mas ele se controlou.
— Sua preciosa tripulaçã o e o rei estã o bem — retrucou. — Mas
acredite em mim, você quer ouvir o que tenho para contar.
— Duvido.
— Apenas… apenas ouça, por favor.
Margrete icou tensa com a sinceridade do pedido. Ela engoliu uma
resposta ofensiva e fez o que ele pediu, no intuito de acabar com toda
aquela farsa.
Darius continuou.
— Depois de inú meras traiçõ es e noites solitá rias, um dos irmã os
decidiu mudar seu destino. Ele se cansou de travar uma batalha sem
im e desejou uma parceira, algué m que ele sabia que nã o o enganaria.
Darius fez uma pausa, vagando o olhar por Margrete. Nã o foi sensual,
mas curioso. Ela apertou ainda mais a adaga.
— Tenho certeza de que você já ouviu a histó ria de Malum e seu
coraçã o. Como ele o tirou do peito e o deu de presente à sua amada
mortal. Claro, ele nã o percebeu como aquele pequeno ato o destruiria,
mas suponho que suas intençõ es eram boas.
Agora o poder de Malum estava no coraçã o de Margrete. Ela o sentiu
vibrar.
— O irmã o fez algo semelhante, embora tenha sido muitos anos
antes. Quando Surria decidiu testar a dignidade dos irmã os, ela os
colocou em uma ilha tã o brutal e impiedosa que um dos deuses tomou
medidas drá sticas — Darius murmurou, sombras escuras nublando
seus olhos. — Ele tirou de si mesmo um pedaço de sua alma.
— Deuses tê m almas? — Ela nunca tinha pensado sobre isso.
Darius assentiu.
— Tudo tem alma, uma força vital, embora as almas dos deuses nã o
sejam como as dos humanos. Nossas essê ncias sã o criadas a partir de
magia e nosso sangue é preenchido com o tipo mais raro de energia.
— Isso nã o explica quase nada — resmungou Margrete.
Os cantos do sorriso sombrio de Darius se contraı́ram.
— Talvez, mas nã o acho que algumas coisas precisam ser totalmente
compreendidas. — Ele respirou pelo nariz, franzindo a testa. E entã o,
como se, de repente, se lembrasse de que estava no meio de sua
histó ria, ele levantou a cabeça e endireitou os ombros. Todos os traços
de incerteza tinham desaparecido. — Como eu estava dizendo… — Ele
pigarreou. — O deus dividiu sua alma em duas metades perfeitas,
usando uma das partes para criar o que ele sempre desejou. Uma
parceira.
O olhar de Darius escureceu, e Margrete se mexeu sob seu olhar
penetrante.
— O deus amava sua criaçã o, a outra metade de si. Ela era todas as
partes boas dele, e ele a estimava. Finalmente, ele tinha algué m com
quem compartilhar sua longa vida, e, por um breve momento, mesmo
naquela ilha amaldiçoada, ele estava feliz. Mas aquela felicidade durou
pouco. Depois que ele completou os dois primeiros testes ao lado de
sua nova companheira, sua querida mã e decidiu tirar a pouca alegria
que ele encontrara.
Algo estalou dentro de Margrete.
Um lash de uma imagem lutuou em sua mente… Darius e uma
mulher com cabelo quase preto. Eles estavam cercados por pedras, lado
a lado. Margrete nã o podia ignorar como as feiçõ es da mulher tinham
uma notá vel semelhança consigo mesma. A cena a lembrou das outras
que ela estava vendo ultimamente ― aquelas em que ela e Darius estã o
nos braços um do outro.
Tã o rapidamente quanto apareceu, a imagem se dissipou. Ela
balançou a cabeça, como se quisesse se livrar da presença persistente.
— Durante o terceiro teste — continuou Darius —, Surria forçou os
irmã os a cometerem um crime tã o hediondo que roubaria o pequeno
traço de empatia que eles ainda possuı́am. — Um mú sculo em sua
mandı́bula se contraiu e as narinas se dilataram.
A força de Margrete segurando a adaga afrouxou. Ela odiava querer
saber. Aquela histó ria… parecia familiar de uma forma que fez os pelos
minú sculos de seus braços se arrepiarem.
— Malum desistiu de sua posse mais querida; um objeto mais antigo
que os pró prios deuses, cujo propó sito era um misté rio até mesmo para
Surria. No entanto, no dia em que ele a abandonou, um grande tremor
sacudiu a terra e a ausê ncia da magia das trevas mudou Malum para
sempre.
Ela sentiu o desejo de perguntar mais, mas suspeitou, pela testa
franzida, que nem mesmo Darius sabia do signi icado do objeto.
Margrete fez uma anotaçã o mental para perguntar a Bash sobre aquilo
mais tarde. Quando o encontrasse.
— E o segundo deus… — Darius respirou fundo, atraindo o foco de
Margrete de volta para sua histó ria. — Ele abriu mã o de algo muito
mais precioso do que qualquer objeto. A parceira que ele izera foi
tirada dele, destruı́da. Assassinada. — Seu lá bio superior se curvou em
um rosnado, e as paredes da caverna tremeram com sua raiva. — Surria
fez com que ele a matasse, assassinasse a ú nica coisa que lhe dava paz.
— Por que você a matou, entã o? Se a amava tanto? — perguntou
Margrete.
Como algué m ― mesmo um deus ― poderia matar a outra metade de
sua alma?
— Minha mã e teceu mentiras horrı́veis, mentiras nas quais acreditei
como um tolo. Ela alegava que a mulher que eu amava era uma ilusã o e
que existia apenas na minha cabeça — Darius disparou, sua voz mais
a iada do que qualquer espada. — A verdade inalmente veio à tona,
depois… depois que a matei. — Ele mal conseguia pronunciar as
palavras, e os mú sculos de seu pescoço icaram tensos. — Surria apenas
observou enquanto eu me desfazia. Tudo o que ela disse foi que o
sacrifı́cio nos fez mais fortes, e entã o me ordenou que enxugasse as
lá grimas.
Darius desviou o olhar dela, respirando com di iculdade. Ele nã o
conseguia encará -la.
Margrete olhou para ele, olhou de verdade. Deixou de lado o ó dio
pelo deus e ignorou os sinos de alerta que soavam em sua cabeça. Com
o fogo lançando brilho sobre seu rosto, e os mú sculos de seu pescoço e
ombros tensos, Margrete vislumbrou as bordas de outra imagem, uma
lembrança.
Ela fechou os olhos.
Darius estava sentado ao lado de uma fogueira, muito parecida com
aquela, embora seus lá bios nã o estivessem curvados. Ele sorria, um
sorriso tã o radiante que rivalizava com as chamas. Seus lá bios estavam
se movendo de forma inaudı́vel, e ele riu, jogando a cabeça para trá s,
reagindo ao que falava. Ela sabia que ele falava com outra pessoa, mas
só viu o pouco re lexo de uma mulher em seus olhos.
— Você está vendo, nã o é ? Entende agora?
Margrete piscou, e a cena desapareceu.
Darius se moveu para descansar a trinta centı́metros de distâ ncia,
ainda agachado, mas pairando sobre ela, dor e desespero em seus
olhos. Ela soltou um gemido, se empurrando para trá s, com medo da
verdade brilhando em seu olhar desequilibrado.
— Agora diga que você se lembra!
Sua voz falhou na ú ltima palavra.
— Eu… — Margrete nã o conseguia respirar, pensar ou se mover. Ela
se recusava a fechar os olhos novamente, porque se visse outra imagem
de uma é poca diferente, se perderia completamente. Nada naquela ilha
parecia real, mas aquelas lembranças, as breves visõ es que ela tinha
acabado de ter…
A ilha pareceu familiar desde o momento em que pisou nela. Mas
aquilo nã o poderia signi icar que o que ele disse era verdade. Ela nã o
permitiria que fosse verdade.
— Nã o é real — murmurou ela, apertando as tê mporas. Ela balançou
a cabeça de um lado para o outro, começando a hiperventilar. — Isso
nã o é real. Estou tendo outro pesadelo.
— Ah, mas é real — Darius disse, estendendo a mã o para segurar sua
bochecha. — Eu ouvi suas oraçõ es do outro lado do mar, mesmo antes
da maldiçã o de Surria. Ouvi você contra todas as probabilidades e, na
é poca, pensei que tinha a ver com meu irmã o, mas sabia que tinha que
encontrá -la e descobrir o verdadeiro motivo pelo qual seus pedidos
chegaram a mim e a mais ningué m.
Margrete balançou a cabeça, mas ele nã o baixou a mã o. Seu toque
era puro gelo.
— Eu acreditava que você era uma ferramenta ú til contra meu irmã o.
Com um pouco de sorte, eu poderia te usar para acabar com ele de uma
vez por todas. Mas como eu estava errado. — Ele acariciou o rosto dela
com o polegar, e ela estremeceu. Margrete nã o tinha certeza do que a
incomodava mais: que ela nã o se afastasse ou que estivesse muito
fascinada por ele para querer se mexer. — Eu nã o percebi o que você
poderia ser até vê -la levantar aquela onda e enviá -la para o navio de
seu pai. Naquele momento de clareza, vislumbrei alé m de sua pele
mortal e vi um pedaço da alma por baixo. Fugi antes da batalha,
sobrecarregado com muita… emoção. — Ele zombou da palavra, como
se ter um grama de humanidade fosse inimaginá vel. — E ainda assim
continuei te visitando todas as noites, por meses, entrando em seus
sonhos, sem conseguir parar. Era uma loucura aquela necessidade. —
Ele tirou a mã o do rosto de Margrete, e ela respirou pela primeira vez
desde que ele a tocara. — Eu acreditava que sua alma estava presa no
submundo todo esse tempo.
Sua revelaçã o pairava no ar e pesava. Margrete perdeu o ar, seu peito
subindo e descendo rapidamente, fazendo as paredes da caverna
começarem a borrar mais uma vez. Ela estava à beira de desmaiar.
— Surria, pervertida como sempre, me fez acreditar que eu nunca
recuperaria a outra metade da minha alma, e suspeito que ela preferiria
que eu ignorasse isso até mesmo agora. Ningué m sabe quã o cruel a
Deusa do Vento e do Cé u realmente é , quã o implacá vel. Entã o pode-se
imaginar com quem meu irmã o e eu aprendemos a ser como somos.
— Nã o.
Uma ú nica palavra. Foi tudo o que Margrete conseguiu.
Ela poderia ter repetido, repetido mais meia dú zia de vezes, mas a
escuridã o estava corroendo o mundo novamente, e suas pá lpebras
icaram pesadas.
— Sim — sussurrou Darius, sua voz soando distante. Os olhos de
Margrete perderam a batalha e se fecharam. — Pensei que tinha te
perdido, minha maior criaçã o. Minha outra metade. Mas agora eu te
reencontrei, e vou me certi icar de que nunca mais te perderei.
Mais lembranças a assaltaram. Lembranças de Darius. De mã os
entrelaçadas e beijos roubados. Sorrisos alegres e longas noites.
Margrete viu aquela mesma ilha e todos os seus horrores, mas, ao seu
lado, em cada memó ria vacilante, estava um homem que a sustentou
por toda parte. Ele a encorajou a triunfar nos testes de Surria com um
sorriso carregado do mais puro orgulho.
Ela viu um homem ― nã o, um deus ― que a olhava com adoraçã o,
amor e admiraçã o.
Margrete sucumbiu prontamente à escuridã o voraz, sabendo que era
a ú nica maneira de escapar de uma verdade que ela desejava nunca ter
sabido.
Ela era mais do que um receptá culo para o poder de Malum.
Margrete era fruto da alma de um deus.
A metade desaparecida de Darius tinha renascido.
argrete acordou devagar.
Ela distinguiu o som de á gua correndo ao longe, de ondas
batendo na praia. Ela sorriu, os olhos ainda fechados,
esperando se manter no sonho fugaz que estava tendo. Talvez,
se nunca abrisse os olhos, permaneceria ali, com a mú sica do
mar ao fundo e a promessa de acordar em sua pró pria cama,
com Bash aninhado ao lado dela…
Margrete nã o icaria presa em nenhuma ilha criada por uma
deusa, forçada a passar por trê s testes mortais. Ela nã o teria um
deus importunando-a, reivindicando o inimaginá vel.
Ela se levantou com um sobressalto.
Darius.
As revelaçõ es do dia anterior a atacaram como a pior dor de
cabeça possı́vel depois de uma noite de bebedeira.
Cautelosamente, ela levou a mã o à s tê mporas e esfregou. Sua
cabeça ainda doı́a, embora certamente nã o fosse tã o ruim
quanto antes.
Margrete respirou fundo e examinou seus arredores. Ela se
viu na mesma caverna da noite anterior, embora agora a luz do
sol suave se in iltrasse, lançando sombras macabras nas
paredes. Um novo dia havia começado, o que signi icava que ela
havia perdido o precioso tempo necessá rio para encontrar seus
companheiros de naufrá gio. Poderiam estar indo na direçã o
oposta, e ela teria que correr para alcançá -los. Se ela realmente
pudesse encontrá -los.
Um peso sutil descansava por todo o comprimento de seu
corpo, e Margrete olhou para baixo. Linho ino feito do azul
mais profundo a envolvia, e com dedos hesitantes, ela agarrou o
material e o torceu nas mã os.
A capa era inconfundı́vel. Darius a cobrira com a roupa,
protegendo-a do leve frio, e, ainda assim, o deus nã o estava por
perto. Nã o que acreditasse que ele nã o estava olhando de longe.
Ele admitira que observava todos eles.
Margrete se preparava para jogar a capa de lado quando
congelou. Talvez fosse curiosidade ociosa ou instinto divino,
mas ela en iou a mã o em um dos bolsos fundos.
Ela amaldiçoou quando seus dedos envolveram uma ú nica
moeda polida, um brilho suave emanando de sua superfı́cie.
— Merda.
Margrete largou o metal ofensivo como se isso pudesse
salvá -la. Como se pudesse impedir que o terceiro teste
acontecesse simplesmente jogando a moeda de lado.
As palavras de Darius invadiram seus pensamentos de uma
vez em uma corrida nauseante.
Pensei que tinha te perdido, minha maior criação. Minha
outra metade. Mas agora eu te reencontrei, e vou me certi icar de
que nunca mais te perderei.
Margrete cambaleou para o lado e vomitou.
Nã o podia ser verdade. Nada daquilo fazia sentido, pelo
amor dos deuses. Darius era só um mentiroso que queria usá -
la, inventando uma histó ria boba em uma tentativa tola de
persuadi-la a se juntar a ele.
Mesmo enquanto ela repetia aquela explicaçã o vá rias vezes
para si mesma, seu estô mago se contorceu, sua espinha
formigou e seu coraçã o ― que estava acelerado segundos antes
― diminuiu para um ritmo constante. A batida forte
tamborilava em seus ouvidos, em desacordo com seus
pensamentos tumultuosos.
Darius alegou que ela era a metade perdida de sua alma, e
que essa fora a razã o pela qual a essê ncia de Malum a procurara
no ventre de sua mã e quando seu pai deu um golpe em
Azantian. Ortum acreditara que cometera um erro ao tentar
transferir o poder, mas talvez nã o tivesse sido um erro.
Semelhantes se atraem, dissera Darius, e se o poder de
Malum tivesse, de fato, reconhecido sua alma, teria sido atraı́do
para ela como um Azantiano era para o mar.
— Nã o — disse ela em voz alta para si mesma, sentindo-se
desequilibrada. Entã o se levantou abruptamente e enxugou a
boca. A capa de Darius caiu de seu corpo em uma pilha
amassada no chã o. — Nã o é verdade! — Ela chutou a peça
amarrotada, liberando a raiva reprimida sobre o manto
inanimado. Em sua mente, imaginou o deus dentro dela, sua
bota batendo em seu sorriso arrogante.
Durante toda sua vida, Margrete quis ser ela mesma, e se
Darius nã o estivesse mentindo, ela nunca fora, e nunca poderia
ser. Ou talvez nã o fosse assim que funcionava com as almas.
Nã o que ela soubesse muito sobre almas, para começar. Darius
tinha dito que as almas dos deuses eram diferentes das dos
humanos.
Aquilo nã o a deixou menos chateada.
A moeda que ela jogara apressadamente estava ao lado dos
restos fumegantes do fogo, virada para baixo. Ela se recusara a
olhá -la por muito tempo. Simbolizava tudo o que ela queria
escapar.
Margrete soltou mais palavrõ es enquanto saı́a da caverna,
deixando a capa de Darius e a moeda para trá s. Lá fora, o ar
tinha um frio cortante e os ventos brutais balançavam as
á rvores escurecidas que ela passara a odiar. Algumas das folhas
eram vermelhas, com redemoinhos pretos gravados em sua
superfı́cie, mas, alé m disso, ela nã o encontrou nenhum sinal
discernı́vel de onde estava.
Ela faria de sua nova missã o de vida nunca mais ver aquele
lugar.
Marchando para a loresta, ela escolheu o primeiro caminho
que a chamou ― noroeste, ao que parecia. Se tudo aquilo fosse
algum jogo orquestrado por Darius, ela imaginou que acabaria
onde ele quisesse de qualquer forma.
Seu temperamento trabalhou para tirar o melhor dela, e, de
certa forma, ela deixou. Margrete queria afundar um pouco em
sua desgraça. Na verdade, acreditava que merecia.
Bash tinha acabado de voltar para ela, e tinha sido roubado
mais uma vez. Seus amigos e tripulaçã o estavam perdidos em
algum lugar. E agora ela tinha sido largada sozinha, assustada e
com raiva na loresta em alguma ilha que nã o deveria existir.
Margrete podia ser otimista… até certo ponto.
Aquele ponto havia sido violado dias antes.
Ela se embrenhava na mata densa com passos pesados, sem
se importar com quaisquer criaturas que pudessem estar à
espreita.
Venham me pegar, ela pensou, revirando os olhos como uma
criança mal-humorada. Seria bom brigar um pouco, mesmo que
apenas para liberar sua indignaçã o ardente. E os monstros ali
nã o a assustavam ― ela já tinha visto monstros piores usando
rostos humanos.
Um riso lutuou até seus ouvidos e, ao som daquilo, ela quase
tropeçou em um galho caı́do.
Ela icou completamente imó vel.
O ruı́do melodioso puxou as cordas do seu coraçã o. Algo
naquilo era dolorosamente familiar, e sua testa franziu, um
alarme inquieto consumindo sua raiva.
A risada persistia, e ela correu até a fonte, o poder em seu
peito aquecendo quanto mais perto ela chegava. Ela rezou para
que fosse um bom sinal, uma indicaçã o para seguir em vez de
um aviso para fugir. Naquele momento, ela nã o se importava
muito. Por que ter cuidado se sua cautela nã o lhe causara nada
alé m de dor?
Margrete seguiu as notas lı́ricas até chegar à s margens de
um riacho. Lentamente, ela se agachou atrá s de um denso
pedaço de junco, escondendo-se o melhor que pô de. Se ela
encontrasse algué m alé m de seus amigos ou Bash, nã o seria
pega de surpresa. Estava chateada, mas nã o era exatamente
suicida.
Duas iguras materializaram-se como que do nada, um
homem e uma mulher, ambos mergulhados no riacho até os
tornozelos. Margrete sufocou um suspiro.
Eram fantasmas ― truques de luz que nada mais eram do
que uma imagem trê mula ― e, ainda assim, a visã o deles
atravessando o riacho, a alegria estampada em seus rostos, a
tocou profundamente.
Ela já tinha visto aquilo antes, ou, melhor, parecia que tinha
vivido aquilo. Uma onda de tontura a fez alcançar o tronco de
uma á rvore, sustentando seu peso enquanto o casal espectral se
aproximava.
Movendo-se em um ritmo vagaroso, Margrete vislumbrou
Darius e a alma que ele havia criado, a mulher que se parecia
muito com ela.
Nã o. A mulher que tinha sido ela.
Margrete estava paralisada, incapaz de desviar o olhar do
casal que só tinha olhos um para o outro. A mulher de cabelos
pretos com os olhos azuis mais brilhantes que Margrete já vira
devia ter dito algo que sua audiçã o aguçada nã o conseguiu
captar, porque, um segundo depois, a risada profunda de Darius
se seguiu. Ele lançou um sorriso travesso e se abaixou para
jogar um jato de á gua no rosto perplexo de sua companheira.
— Seu desgraçado! — a mulher guinchou, embora seu tom
nã o fosse mordaz. Com um sorriso malicioso, ela també m se
agachou e pegou a á gua gelada do riacho, retribuindo o
sentimento e molhando o belo rosto do deus. O cabelo loiro
grudou no rosto, e ele passou a mã o pelos ios ú midos.
— Agora você me paga, Wryn — Darius ameaçou, antes de
pegá -la em seus braços e girá -la muitas vezes. Ela riu e
protestou, implorando a ele para colocá -la no chã o mesmo
enquanto ela gritava de prazer.
E Darius… Margrete jamais imaginara que ele fosse capaz de
sorrir de tal maneira, tã o inquestionavelmente genuı́na e cheia
de alegria. Aquilo abalou seu nú cleo.
Margrete piscou.
A visã o desapareceu… ou a lembrança desapareceu.
Nã o parecia uma das alucinaçõ es tı́picas da ilha. A cena tinha
o peso que as lembranças costumam ter e, embora o par
fantasma nã o estivesse mais ali, eles se recusaram a deixá -la.
Suas pernas tremiam. Margrete nã o conseguia esquecer a
intimidade do que tinha testemunhado, como seu coraçã o
disparou como se ela tivesse sido erguida nos braços de Darius.
Lutou contra a vontade de vomitar. Novamente.
Uma rajada de vento brincalhona roçou seu cabelo e esfriou
sua testa, trazendo consigo o aroma caracterı́stico do mar do
deus e uma especiaria rica e estrangeira. Margrete fez uma
careta. Ela nã o conseguiria escapar dele.
Quanto mais icava na ilha, mais potentes aquelas visõ es se
tornavam, e Margrete tinha a sensaçã o de que talvez Darius nã o
tivesse mentido para ela.