Katherine Quinn - The Azantian 02 - em Praias Perversas

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Copyright © 2022.

ON THESE WICKED SHORES by Katherine Quinn


Direitos autorais de traduçã o© 2022 Editora Charme..
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breves citaçõ es consubstanciadas em resenhas crı́ticas e outros usos nã o comerciais
permitido pela lei de direitos autorais.
Os direitos morais do autor foram a irmados.
Este livro é um trabalho de icçã o.
Todos os nomes, personagens, locais e incidentes sã o produtos da imaginaçã o da autora.
Qualquer semelhança com pessoas reais, coisas, vivas ou mortas,
locais ou eventos é mera coincidê ncia.
1ª Impressã o 2023
Capa - City Owl Press
Adaptaçã o da capa e Produçã o Grá ica - Verô nica Goes
Ilustraçõ es - Katherine Quinn
Imagens do miolo - Adobe Stock
Traduçã o - Sophia Paz
Preparaçã o - Fernanda Marã o
Revisã o - Equipe Charme
Esta obra foi negociada por Brower Literary & Management, Inc.
Para minha mãe, Nancy, que é minha maior fã.
arius usou muitos rostos ao longo dos sé culos de sua
longa, longa existê ncia, e teve o dobro de nomes. No entanto,
enquanto pairava acima de uma Margrete adormecida e do rei
Azantiano, ele se viu desejando que seu nome verdadeiro
escapasse dos lá bios dela, pelo menos uma vez livre de escá rnio
ou desprezo.
Ele tinha esquecido o que era sentir.
Foi uma bê nçã o e uma maldiçã o que Margrete Wood o
tivesse ajudado a se lembrar.
Por meses, ele se in iltrou em seus sonhos, esgueirando-se
pelas rachaduras de uma realidade frá gil. Como sementes, ele
plantou pensamentos, regando-os até crescerem. Muitas vezes,
serviram a seus propó sitos ― fazer Margrete ansiar pelo poder
que ela se recusava a manifestar. Ele testemunhara sua luta nas
ú ltimas longas semanas. Ela nã o conseguira subjugar a magia
do irmã o de Darius e nã o tinha ideia de que ela era culpada do
pró prio fracasso, porque nã o se lembrava.
Lembrar-se do que ela uma vez tinha sido para ele.
Mas isso tinha acontecido em outra vida, Darius considerou,
e ele nã o podia culpá -la pela ignorâ ncia. Só recentemente se
permitira chegar perto o su iciente para vislumbrar a alma
familiar brilhando abaixo da superfı́cie. A princı́pio, ele
tolamente acreditou que ela fosse uma humana despretensiosa,
sortuda o su iciente por estar no lugar certo na hora certa,
dotada dos poderes de um deus. Quã o errado ele estava. Darius
agora via a verdade, e isso o cegou.
Se ao menos ela se lembrasse de mim.
Mas ela nã o se lembrou, e nã o se recordaria, a menos que ele
a forçasse.
Entã o, todas as noites, ele abria sua alma, fazendo sua magia
penetrar nas veias dela, dando-lhe apenas um gostinho. No
devido tempo, ela nã o conseguiria mais evitar e esconder de si
mesma quem era, e entã o tomaria seu lugar ao lado dele. Tudo
icaria bem novamente.
Quando o amanhecer afugentava a noite, Darius se fundia
nas sombras que ele comandava. Mas nunca realmente a
deixava.
Nã o quando esta mulher era a chave para sua salvaçã o.
Margrete Wood carregava o coraçã o de Malum, a essê ncia
divina de seu irmã o. O impulso inal de poder que ele precisava
para reinar como o ú nico governante das á guas sem limites.
Alé m disso, ela inadvertidamente tinha roubado outra coisa,
algo muito mais precioso do que a magia de seu irmã o Malum.
Mas tudo isso viria à tona em breve. Ele revelaria suas cartas na
hora certa.
Claro, o ato inal de Malum ― que ocorreu pouco antes de
Darius acabar com ele de uma vez por todas ― foi colocar um
sı́mbolo de proteçã o na pele de Margrete, uma onda turva
roçando sua clavı́cula. A maldita marca tornava impossı́vel para
Darius roubar seu poder recé m-descoberto, mas, mais
importante, negava a ele acesso completo a sua mente. Claro,
ele poderia entrar por alguns momentos de cada vez, mas nã o
podia icar muito tempo, e Darius nunca gostou de ser um
espectador em um jogo de sua pró pria autoria.
Ele entã o decidiu que criaria um novo jogo.
Com regras que ele poderia controlar.
Darius era engenhoso e famoso por quebrar regras, e algo
lhe dizia que Margrete seria um desa io que ele nã o esqueceria
tã o cedo. Se ela fosse quem ele sabia que era, entã o nã o
esperaria nada diferente.
Um sorriso loresceu enquanto ele observava os olhos de
Margrete tremularem em seu sono. Logo seus destinos
estariam irrevogavelmente ligados, e ele inalmente, inalmente,
nã o estaria mais sozinho. O pensamento fez um calor estranho
se instalar em seu peito. A sensaçã o foi boa.
Abaixo de sua sombra imponente, Margrete envolveu um
braço ao redor da cintura nua do rei Azantiano, aproximando o
nariz atrevido para acariciar seu cabelo. Tã o à vontade, tã o
doentiamente feliz. O gesto inconsciente de ternura o fez cerrar
os punhos.
O amor que Margrete tinha pelo rei o irritava in initamente,
e ao se prolongar neste pensamento a visã o de Darius manchou
de vermelho.
Deveria ser eu.
Por todos aqueles longos meses, ele ansiou por estender a
mã o e sentir a suavidade de sua pele. Ele se conteve em suas
visitas noturnas, com medo de reviver a emoçã o avassaladora
que o assaltara na ú ltima vez que a tocara. Mas ele tinha se
cansado do papel de observador silencioso.
Contra sua vontade, Darius permaneceu ao lado da cama até
o amanhecer. Ela parecia tã o frá gil em seu corpo mortal. Fraco e
fá cil de quebrar. Ainda assim, ele sentiu o espı́rito dela, sua
alma, que cantou para ele até as primeiras horas da manhã .
Com um grunhido frustrado, Darius começou a se afastar,
sabendo que teria muito trabalho para consertar um erro
cometido mil anos antes. Mas seus pé s pararam abruptamente,
como se uma corda invisı́vel tivesse estalado e tensionado. A
corda o puxou de volta para a cama, e, desta vez, ao estender a
mã o, nã o se conteve. Ele nã o conseguiu.
Darius arrastou um dedo solitá rio pela bochecha de Magrete,
a pele tã o macia quanto ele se lembrava. Mais, até . Ela parecia o
pró prio verã o ― quente, leve e cheia de esperança. O coraçã o de
Darius pulsava de forma irregular, e, naquele momento
capturado no tempo, lembranças que ele nã o quis represar
correram de volta para ele.
Entã o sorriu. Talvez pudesse corrigir o passado e mudar o
futuro.
Talvez pudesse ter tudo.
argrete Wood sentou-se de sú bito na cama.
Tinha algué m ali.
Algué m a observava.
Alguém que a tocara.
Há meses, ela vinha sentindo como se olhos a observassem, mesmo
quando estava dormindo. Mas, desta vez, ao acordar com um suspiro,
sua bochecha pinicou como se sentisse um prolongado roçar de mã os
fantasmas. Ela tocou com o dedo a pele formigando enquanto olhava
para seu rei.
Graças aos deuses, ele ainda dormia. Ele andava inquieto, e ela tinha
sentido uma grande mudança cair sobre ele como uma mortalha
venenosa. Entã o, novamente, todos eles mudaram desde o dia fatı́dico
em que seu pai os atacou.
Margrete fez um movimento para tirar os ios de cabelo da testa de
Bash quando sentiu algo se enrugar em seu colo. Ela icou quieta. Uma
folha preta quebradiça, delineada em carmesim, estava em sua coxa.
Franzindo o cenho, ela a pegou e girou, admirando os intrincados
redemoinhos escuros que lembravam ondas. Ela nunca tinha visto nada
parecido em Azantian ou no continente, e ela era bem versada no
assunto de botâ nica. Assim que a aproximou dos olhos, querendo
inspecionar os detalhes elaborados, uma poderosa rajada de vento da
sacada a roubou de seus dedos. A folha lutuou no ar, como se nã o
quisesse ir embora, até que a brisa a levou para longe.
Instintivamente, ela estendeu a mã o, impulsionada por uma
necessidade inexplicá vel de pegá -la.
Uma onda de gelo quebrou contra sua mente.
Margrete engasgou, e o cheiro de sal obstruiu seus sentidos. A pele
formigava no local que tocou na folha, mas ela nã o teve forças para se
concentrar nisso ― sentiu principalmente uma onda arrebatadora de
poder esmagador inundando suas veias.
Suas costas se curvaram com violê ncia, e ela caiu contra os
travesseiros.
A sensaçã o de gelo em suas mã os se estendia até o pescoço, e ali se
enrolava em sua garganta como um laço. Seus lá bios se separaram,
deixando um paté tico ronronar de ar escapar.
Estava acontecendo de novo.
Outra visã o.
Outro pesadelo se aproximava.
Ela agarrou os lençó is quando o frouxo controle da realidade que
ainda tinha lhe foi arrancado. Aos poucos, dolorosamente, ela foi
afundando na escuridã o aveludada de sua mente, arrastada para um
vazio sem im que abrigava apenas horrores.
Delicadas mechas de sombras escurecidas giravam atrá s de seus
olhos, e lashes de prata faiscavam como relâ mpagos enfurecidos. Nada
era natural ― nem a luz nem os ios de né voa cinzenta rolando pela
obscuridade como dedos longos e inos. Uma brisa cheirando a
decadê ncia e podridã o varreu o abismo, um cheiro pungente e amargo.
Esse odor atravessou a extensã o do nada até revelar um grande navio
que ela conhecia muito bem.
O Phaedra.
Nuvens de aço enrolavam-se ao redor da embarcaçã o, e silhuetas
macabras erguiam-se como lores murchas das ondas. Mais e mais alto,
esses espectros subiram até que se arquearam e despencaram no
convé s de madeira, rompendo contra o navio em uma ú nica onda em
queda.
Margrete piscou, afastando as criaturas, os demô nios. Os gritos
estridentes perfuraram o ar fé tido, sacudiram os ossos dela e zumbiram
em seus ouvidos. O mal. O que quer que fossem, cheiravam a intençã o
maliciosa.
Abruptamente, a cena mudou, e o cé u noturno estremeceu com força.
No lugar do poderoso Phaedra, restaram apenas velas partidas e
madeira lascada. Uma nesga de lua cautelosa lançou o mundo em um
brilho branco sobrenatural, e as á guas cor de carvã o embalaram as
ruı́nas de um naufrá gio devastador.
O Phaedra se fora.
Na alucinaçã o distorcida, Margrete ouviu o nome de Bash. Nada alé m
de um sussurro no inı́cio, mas que foi se convertendo em uma mú sica
cantada por um coro de vozes sinistras que o transformaram em algo
tortuoso e perverso.
O nome era um canto assombroso quando a neblina se dissipou e
uma ilha obscura tomou forma à distâ ncia, bem alé m dos destroços do
navio. Ela apertou os olhos, mas a imagem nã o ganhou foco, e tudo o
que ela conseguiu ver foi uma ú nica igura de pé em suas margens.
Margrete sufocou um grito quando a igura se turvou e explodiu em
uma ina né voa de poeira cinza. Ele tinha desaparecido, mas Margrete
sabia quem era, quem estava naquelas margens. Mas, ao invé s de medo,
ela sentiu… calor.
Um cheiro á spero e metá lico a sacudiu de seu torpor. As bordas da
realidade lentamente foram icando visı́veis, começando pelos cantos, e
as paredes de vidro marinho do cô modo voltaram ao foco.
Ela procurou a fonte do cheiro com o olhar, seu coraçã o acelerado. O
sangue brotou onde suas unhas cravaram na carne da palma da mã o,
quatro linhas curvas de carmesim como um lembrete do horror que ela
testemunhara.
Esta tinha sido a quinta alucinaçã o ― ou do que quer que se pudesse
chamá -las ― desde que seu pai atacou Azantian meses antes. Desde que
Darius matou o irmã o e desapareceu na espuma do mar.
E ela icou para recolher os pedaços quebrados.
Embora breve, o que Margrete via durante os episó dios, os
vislumbres enigmá ticos, a deixavam cambaleando. As vezes, ela via o
contorno de um casal sombrio, entrelaçados em um abraço quente,
á rvores escuras como breu se erguendo ao redor deles. Os rostos,
apesar de obscurecidos, continham um traço de familiaridade.
Outras vezes, como naquela noite, a morte a saudava de braços
abertos.
Assim como em todas as outras vezes que as visõ es a atormentaram,
Margrete buscou a segurança do homem aninhado ao seu lado.
Bash, o rei de Azantian, parecia bastante angelical quando dormia,
embora ela nunca fosse admitir isso para ele. Bash era muitas coisas,
mas nada autoconsciente. Enquanto ele dormia, ela podia admirá -lo
livremente, sem que ele desse seu sorrisinho arrogante.
Um sorriso que ela amava demais.
O peito tatuado de Bash subia e descia ritmado, o corpo de inido
esculpido pelos pró prios deuses. Ele usava uma camisa de linho,
embora os botõ es estivessem abertos, e os olhos de Margrete desceram
ainda mais, seguindo a ina camada de pelo escuro que rastejava sob os
cobertores. O calor aqueceu suas bochechas. Mesmo que ela tenha
explorado e provado cada centı́metro daquele homem, ele ainda
causava uma reaçã o muito acalorada nela.
Ela soltou um suspiro. Pelo menos, nã o o acordou.
Nos ú ltimos trê s meses, ela fez o possı́vel para ignorar essas visõ es
fugazes e ingir que nã o percebia a sensaçã o iminente de destruiçã o
pairando no horizonte. Uma semana depois do ataque, Bash a tinha
lagrado no meio de uma visã o, mas ela alegara exaustã o ― uma
desculpa covarde. Margrete reconheceu a dú vida que se estendeu no
rosto dele com a explicaçã o pobre que dera. O alarme silencioso que
saiu dele em ondas enquanto doces mentiras giravam nos lá bios dela.
Ela escondia essas coisas de Bash porque nã o queria preocupá -lo.
Nã o até que entendesse a extensã o de seus novos poderes. Alé m disso,
nã o estava pronta para arruinar a felicidade que eles tinham
encontrado. Ela merecia ser um pouco egoı́sta, certo?
O rei adormecido estremeceu, os olhos tremulando como se
estivesse enfrentando os pró prios monstros. Aquela tinha sido uma das
raras noites em que ele dormira e, quando dormia de verdade, era
difı́cil acordá -lo. Com ternura, Margrete alisou as mechas de cabelo
ruivo profundo que se enrolavam em torno de sua tê mpora, usando o
polegar para aliviar as linhas tensas de preocupaçã o que lhe marcavam
a testa.
Só quando a tensã o das sobrancelhas aliviou um pouco, Margrete
saiu da cama, o colchã o remexendo sob seu peso. Bash resmungou, mas
nã o acordou, embora tenha estendido a mã o como se fosse puxá -la de
volta para onde pertencia.
Mesmo que ela nã o desejasse nada mais do que icar envolta em seus
braços, escondida em seu pró prio lugar secreto no mundo, o mar ―
como tantas vezes ― a chamava do alé m, exigindo atençã o.
Margrete caminhou até as portas abertas da varanda, dançando os
dedos sobre a ina mobı́lia de madeira coberta de desenhos mı́sticos ―
monstros marinhos, nymeras e bestas impressionantes que ela
acreditava serem mitos.
Oh, como ela estava errada.
Do lado de fora, vestindo apenas uma ina camisola de renda
perolada, Margrete se ixou no sol nascente despertando o mar
indomá vel abaixo.
Desde o dia em que a essê ncia de Malum despertara, Margrete nã o
estava sozinha. Como um zumbido sob seus ossos, ela sentia a vida
abundante do mar, cada onda uma mú sica que só ela podia ouvir.
Se ao menos ela ouvisse as malditas bestas que escaparam…
Durante semanas, eles nã o ouviram nada ― nenhum ataque, nenhum
avistamento. O silê ncio esmagador era enervante.
— Olá , velho amigo — murmurou ela para as ondas.
Um vento brincalhã o juntou os longos ios de seu cabelo escuro e o
afastou de seu rosto. A brisa envolvia seu torso e batia na bainha de sua
camisola, esfriando sua pele encharcada de suor.
— Obrigada — respondeu, e seus lá bios se curvaram em um sorriso
suave. A magia dentro dela vibrava, um calor que se enrolava em torno
de seu coraçã o e o apertava com suavidade. Foi um toque reverente,
uma carı́cia de poder. Quase como se a essê ncia de Malum desejasse
demonstrar afeto. Se a magia pudesse mostrar afeto.
Ela colocou os dedos na clavı́cula, traçando distraidamente a
pequena onda. A tatuagem aparecera na manhã seguinte ao ataque sem
qualquer explicaçã o. As vezes, ela se pegava acariciando a onda como se
fosse um animal de estimaçã o a ser acalmado. Margrete suspeitava que
Malum tivera um papel na criaçã o da tatuagem, mesmo que o deus nã o
vagasse mais pelas á guas.
Ainda assim, o coração dele estava perdido em algum lugar nas
profundezas depois que o Mastro de Ferro afundara. Margrete nã o havia
sentido sua presença, embora certamente tivesse tentado. Todos os dias
ela estendia a mã o e buscava o receptá culo vazio do deus. Nada.
Fechando os olhos, ela respirou fundo. Uma tempestade chegaria
à quelas praias em dois dias, o cheiro de sal e paixã o furiosa fez com que
ela se lembrasse do perfume de uma potente lor de jasmim. Margrete
nã o conseguia explicar seu novo senso de… intuiçã o, mas ainda tinha
muito a aprender.
— Te encontrei.
Dois braços musculosos e bronzeados envolveram sua cintura,
puxando-a contra um peito só lido. Imediatamente, seu corpo relaxou, e
ela se derreteu no abraço.
— Até que você dormiu bastante, demorou para acordar — disse ela
com um sorriso, ainda atenta à s á guas.
Bash esfregou o queixo com barba por fazer na nuca dela, fazendo
có cegas na pele sensı́vel. Ela estremeceu, inalando seu cheiro de sal e
sâ ndalo.
— Talvez porque algué m se revirou a noite toda. Nunca levei tanto
chute. — Ela abriu a boca para protestar, mas ele a interrompeu. — Mas
sua habilidade está melhorando. Você até conseguiu me chutar para
fora da cama — acrescentou, com uma cadê ncia na voz.
Margrete revirou os olhos.
— Muito engraçado, Sebastian — zombou ela, virando-se para
encará -lo.
Ela esticou o pescoço para encontrar seu olhar. Bash tinha quase
dois metros e, comparado aos pouco mais de um metro e meio dela, ele
era um gigante.
Ele soltou um gemido tenso.
— Você sabe que odeio esse nome.
Margrete sorriu de orelha a orelha, perversamente encantada. Certa
noite, apó s o jantar, depois de tomarem muito vinho, Adrian tinha
deixado escapar o nome completo de Bash. Aparentemente, a mã e lhe
dera o nome e, apó s a morte dela, o pai se recusou a chamá -lo de
qualquer outra coisa alé m de seu apelido. Bash costumava dizer que
Sebastian era um nome muito grande para ele, alegando que soava
pomposo e arrogante.
Entã o, é claro, Margrete o usava para provocá -lo sempre que tinha
oportunidade.
— Ouça bem, princesa — começou Bash, colocando as mã os em cada
lado da grade onde ela estava encostada, prendendo-a completamente.
Seu há lito quente espalhou-se pela boca dela. — Devo lembrá -la do que
aconteceu da ú ltima vez que me chamou assim? — Ele arqueou uma
sobrancelha.
Ah, ela se lembrava muito bem. Instantaneamente, um rubor subiu
para suas bochechas. Eles tinham quebrado a mesa. Quando os guardas
entraram correndo nos aposentos ao som do estrondo, certamente
conseguiram mais do que um vislumbre do traseiro de seu rei.
— Sebastian parece apropriado demais para você , de qualquer
maneira — disse ela suavemente, ainda ruborizada e limpando iapos
invisı́veis do ombro dele. — Isso faria você parecer um lorde arrogante
que nã o consegue se vestir sozinho.
A faı́sca nos olhos do rei voltou.
— Bom, nó s dois sabemos que, à s vezes, preciso de ajuda para tirar
as roupas. — Bash atirou-lhe uma piscadela de brincadeira, e ela deu
um leve tapa no peito dele. Ele ingiu um gemido de dor.
— Droga, mulher. Você está icando mais forte. — Seu tom continha
uma medida de admiraçã o genuı́na, e ela sorriu.
Realmente, fazia meses que ela vinha treinando com Adrian,
comandante de Bash e namorado de Bay, todos os dias. Ela tinha um
longo caminho a percorrer, mas era impelida por pura determinaçã o.
Até Birdie, sua irmã zinha, se juntara à s sessõ es de combate. A menina
de ٨ anos era uma guerreira nata, de acordo com Adrian, e bastante
há bil com o arco.
Alé m das aulas de combate, Adrian e, à s vezes, Bay a ensinavam a
nadar, caso ela nã o tivesse seus poderes recé m-criados para ajudá -la.
Vendo que ela pretendia icar em Azantian, a habilidade parecia muito
necessá ria.
— Você está intimidado por mim, pirata? — Margrete perguntou,
arrastando um dedo para cima e para baixo no braço direito de Bash. A
tatuagem de estrela-do-mar saiu por baixo da manga, enrolando-se na
ponta do dedo dela. Das muitas criaturas em movimento e vivas que
cobriam sua pele dourada, a estrela-do-mar era, de longe, sua favorita.
Bash gemeu, o som rico provocando uma vibraçã o na barriga dela.
— Muito pelo contrá rio. — Ele se inclinou para passar a lı́ngua entre
os lá bios de Magrete, saboreando-a enquanto a explorava com calma.
Sua boca se abriu quando uma respiraçã o suave escapou dela. — Ver
você se tornar uma guerreira temı́vel me faz sentir tudo, menos
intimidado.
— Entã o faz você se sentir como? — indagou ela em um sussurro
sem fô lego.
Bash deu um beijo carinhoso na ponta do nariz de Margrete antes de
se aproximar ainda mais. Sua dureza crescente pressionou-lhe a
barriga, e ela fechou as pá lpebras. O peito de Bash roncou quando ele
soltou uma risada baixa.
— Eu amo uma mulher que pode me bater na bunda. — Ele a
segurou pelo quadril, os dedos afundando em sua camisola de seda.
— Nã o me tente — avisou ela, lutando para falar. — Estou mais do
que feliz em realizar esse seu sonho.
— Promessas, promessas. — Ele reprovou ainda com os lá bios
grudados nos dela. — O que eu vou fazer com você ? — Seus olhos de
meia-noite brilharam com malı́cia e desejo. Olhos que já tinham sido da
cor das esmeraldas antes de Margrete trazê -lo de volta à vida. No dia
em que o mar tentou levar a alma dele.
— Eu tenho algumas ideias — disse ela, encolhendo os ombros. —
Mas nã o tenho certeza se você está à altura da tarefa. — Na noite
anterior, ele desmaiara de exaustã o antes que ela pudesse colocar as
mã os nele. Seu desejo tinha crescido sem se satisfazer.
— Você me machuca — falou Bash, se afastando o su iciente para
levar a mã o ao coraçã o em uma afronta simulada.
Ela agarrou os quadris do rei e o puxou de volta.
— Que bom. Eu nã o gostaria que seu ego icasse maior do que já é .
Você nã o conseguiria passar pela porta.
Bash arqueou uma sobrancelha.
— Tem certeza de que nã o estamos falando de você?
— Egoı́sta e delirante. — Ela balançou a cabeça. — E as pessoas
pensam que você é ameaçador. — Ela riu, agarrando a camisa
desabotoada. O olhar de Bash seguiu para onde ela o segurava, e seus
olhos brilharam com desejo derretido.
— Eu sou ameaçador, princesa. Nã o é minha culpa que você nã o veja
por si mesma.
— Como eu disse. Delirante. Absolutamente delirante.
Margrete sorriu para o homem que roubara seu coraçã o. Um rei cuja
fé inabalá vel nela enfrentou o desconhecido.
Erguendo a mã o, ela passou os dedos ao longo das bordas de inidas
de sua mandı́bula esculpida, deliciando-se com o formigamento sutil
que a barba provocava. Com o cabelo completamente desgrenhado e o
sono emoldurando suas piscinas de ô nix sem profundidade, a aparê ncia
amarrotada fazia o rei equilibrado parecer quase infantil, embora
Margrete tivesse aprendido que os Azantianos envelheciam em um
ritmo muito mais lento em comparaçã o com seus colegas humanos.
Mais um problema que eles ainda nã o tinham resolvido.
Margrete nã o tinha certeza se envelheceria como mortal ou como
Azantiana. Ou se envelheceria, considerando o que havia dentro dela.
Ela se moveu para brincar com os ios macios como seda na nuca de
Bash, dando-lhes um puxã o suave. Ele fechou as pá lpebras e suspirou,
satisfeito.
— Ao que parece, entã o, tenho muita sorte por você me manter
humilde — inalmente respondeu, movendo-se para trá s para acariciá -
la preguiçosamente atravé s do material ino da camisola. Ela
amaldiçoou a maldita seda. A julgar pela expressã o dele, ela suspeitava
que ele sentia o mesmo.
Erguendo-se na ponta dos pé s, Margrete beijou os lá bios carnudos
de seu rei. Eles eram deliciosamente macios e tinham gosto de puro
pecado. Bash passou os braços ao redor da cintura dela e deslizou a
mã o pelo cabelo comprido, afastando os ios e expondo o pescoço. Com
os olhos em chamas, ele se inclinou para espalhar uma trilha reverente
de beijos para cima e para baixo ao longo do pescoço nu. O coraçã o de
Margrete deixou de bater quando ele voltou para sua boca, explorando
sem pressa, adorando, perdendo-se nela.
Gentilmente sugando o lá bio inferior de Margrete, a lı́ngua de Bash
brincou enquanto ele a saboreava, e outro gemido baixo reverberou
profundamente na garganta dele. Era o som do desejo e da adoraçã o, e
Margrete se perdeu na melodia inebriante.
Minutos se passaram antes que Bash gradualmente se afastasse,
olhos cor de ô nix famintos. A tonalidade naquela manhã era de uma
nuance mais escura, mas talvez a luz do inı́cio do dia lançasse sombras
sobre eles.
Bash deu um suspiro frustrado.
— Odeio sair tã o cedo, ainda mais agora que você está toda corada.
— Ele segurou as bochechas dela, que inclinou o rosto para receber a
carı́cia. — Mas é melhor eu me preparar. O conselho se reunirá esta
manhã . Algo sobre o mundo mortal.
O mundo dela.
Prias e seu lar humano pareciam fazer parte de uma vida anterior. De
uma é poca em que ela era uma dama perfeita prestes a se casar com
um traidor, o Conde Casbian.
— Sobre o que é a reuniã o? — A pele de Margrete zumbiu em
advertê ncia, uma inquietaçã o familiar se instalando em seu peito.
Sem dú vida, tinha a ver com as feras libertadas. Talvez elas
inalmente tivessem aparecido. Sua espinha formigava com o aumento
da adrenalina.
Bash a segurou pelos braços.
— Você sabe que vou te contar tudo. Os deuses sabem que aprendi
que nã o posso esconder nada de você , mesmo se quisesse. — Seus
olhos se arregalaram. — Mas eu jamais faria isso, veja bem —
acrescentou apressadamente.
Um canto da boca dela se ergueu. Bash era inteligente o su iciente
para entender que ela iria importuná -lo até conseguir as respostas.
Embora seus debates muitas vezes levassem a uma forma muito mais
agradá vel de… batalha.
— E melhor você me contar tudo, pirata, ou sua cama estará
bastante fria esta noite — ameaçou ela, se acomodando contra o peito
dele e escondendo o rosto quente de vista. Margrete respirou fundo,
fechando os olhos e se deliciando com a beleza daquele momento ú nico.
Ela entendia muito bem que nada bonito durava para sempre.
Enquanto observavam o avanço do nascer do sol, consumidos pela
proximidade um do outro, uma brisa fé tida ― muito parecida com a de
sua visã o ― veio do leste.
E Margrete soube que, sem dú vida, aquele seria o ú ltimo nascer do
sol pacı́ ico deles por algum tempo.
omo Adrian estava ocupado com a reuniã o do
conselho e nã o haveria treinamento naquele dia, Margrete
acabou indo para a praia alé m do palá cio. Tirando as botas, ela
mergulhou os pé s na á gua fria e estremeceu quando a agora
familiar onda de energia percorreu sua espinha. No momento
em que se conectou com o mar, seu corpo zumbiu e um
formigamento agradá vel vibrou em sua pele.
A á gua do mar umedeceu as calças enroladas, o que ela
recebeu de bom grado, soltando um suspiro de satisfaçã o
quando a á gua se enrolou em torno de suas panturrilhas. A
limpidez azul girou até suas coxas antes de descer brincando.
Ela estava… praticando. Manipulando as á guas, na verdade.
Embora possa ter comandado a onda colossal que afundou a
embarcaçã o de seu pai, nã o tinha conseguido fazer muito mais
do que levantar a arrebentaçã o alguns metros no ar desde
entã o. Era totalmente frustrante.
Margrete podia sentir o oceano, mas nã o o dominava como
acontecera antes. Talvez fosse por isso que ela sempre se
esgueirava até a praia depois do treinamento, esperando
aprimorar os poderes que nenhum mortal jamais possuiu.
Seu coraçã o batia descontrolado, e ela fechou os olhos
brevemente enquanto o vento fazia có cegas em suas bochechas.
O mar estava alegre. Ela sentiu sua euforia quando ele se
in iltrou em sua alma e a explorou. Levantando a mã o, ela girou
o dedo em cı́rculos ociosos, murmurando as mesmas palavras
antigas que usara meses antes.
— Arias moriadas.
A ondulaçã o que se aproximava estremeceu, mas nã o parou
de avançar. Ela repetiu as palavras, um pouco mais alto. As
á guas cresceram ligeiramente, mas a onda nã o parou até colidir
com suas canelas. Margrete rosnou.
Ela se virou para seu pró ximo alvo, determinada a replicar a
magia impossı́vel que ela havia comandado. Mais uma vez, a
onda atingiu a praia, mas, pelo menos, Margrete conseguiu
levantá -la um mı́sero metro. Um brilho de suor cobriu sua testa.
Ela insistiu.
Outra onda veio, e, quando ela pronunciou as velhas palavras
dos mı́sticos, a crista se elevou no ar, bem acima de um metro e
meio. Embora instá vel, nã o vacilou, nem mesmo quando se
chocou contra as areias da costa de Azantian, encharcando
Margrete da cabeça aos pé s.
Ela engasgou, fechando os olhos para tirar o cabelo molhado
do rosto, sorrindo como uma tola. O progresso, embora
insigni icante, diminuiu parte do peso de sua incompetê ncia.
Quando abriu os olhos, o orgulho escasso que sentia
desapareceu. Instantaneamente, seu corpo tremeu e seu pulso
trovejou, o sangue correndo para os ouvidos e abafando as
ondas.
Ele.
Do outro lado das ondas, com o rosto obscurecido por um
capuz cor de cobalto profundo, estava o homem ― nã o, o deus ―
com quem ela sonhara por meses.
Darius.
Nem mesmo quando lutou com o irmã o ele mostrou seu
verdadeiro rosto, uma má scara de prata escondia cada traço.
No entanto, Margrete podia senti-lo, sua escuridã o, assim como
naquela noite.
Ela inspirou com força. O que ele fazia ali depois de todas
aquelas semanas? Ela tinha dito a si mesma que estaria
preparada para o dia em que ele aparecesse, mas agora que ele
estava de fato diante dela, o medo esmagador paralisava seus
membros.
Sentiu minha falta? Uma voz entrou em sua mente, uma da
qual ela se lembrava bem. Parecia sedutora e profunda. Sedosa.
Os joelhos de Margrete tremeram.
Ela poderia ter em si a maior parte da essê ncia de Malum,
seu irmã o, mas Darius ainda era um deus. Ela tinha todo o
direito de estar com medo.
O que você quer?, perguntou ela, estreitando os olhos e
endireitando a coluna. Ela nã o se encolheria, nem mesmo com o
pulso acelerado e o suor escorrendo pela curva de sua espinha.
Aquela conversa estava bem atrasada.
Uma risada lutuou até seus ouvidos.
Você tem algo que eu quero, mas não posso ter. Ele fez uma
pausa, e ela praticamente podia sentir a frustraçã o ondulando
nas ondas entre eles. Mas aprendi a ser paciente, graças à minha
querida mãe, disparou. Surria, a Deusa do Vento e do Cé u. E
descobri que… não desejo mais te matar.
Margrete franziu a testa, sem entender o que ele queria
dizer. Ela esperava que ele viesse para roubar a essê ncia de
Malum diretamente de seu peito no segundo em que pudesse ―
mesmo que tivesse que arrancá -la de seu corpo.
Devo agradecer?, Margrete disparou. Você fez o seu melhor
para matar o rei, mas falhou. Nunca mais vou deixar você
machucar a mim ou às pessoas que gosto.
Uma rajada de ar gelado serpenteou ao redor do pescoço
dela, torcendo seu cabelo e puxando os ios. Ela podia saborear
a amargura de sua ira.
Diga logo de uma vez, Darius. O. Que. Você. Quer?
Margrete já nã o era a mesma mulher ingê nua de quando
chegou a Azantian. Enfrentar o pai e quase perder Bash para o
mar endurecera seu coraçã o. Ela tinha se tornado resiliente.
A vida era cruel, mas ela era mais forte.
Ela tinha que ser.
Venha comigo, o deus exigiu, sua voz quase um rosnado. Não
somente será mais fácil, como não vou machucar seus entes
queridos. Ele sibilou a palavra, gotejando veneno. Já passou da
hora de você saber toda a verdade para que possamos começar
nosso trabalho. Já esperei bastante tempo.
Endurecendo a espinha, ela forçou uma má scara de bravura.
A ameaça de Darius nã o passou despercebida.
Não há nó s, Darius. Se você é o Deus Todo-Poderoso do Mar,
então limpe a bagunça que você e seu irmão izeram. Os
monstros marinhos são produtos da briga entre vocês.
A brisa aumentou assim que ela terminou de falar,
levantando o tecido de sua capa apenas o su iciente para que a
visã o recé m-aguçada vislumbrasse os cantos dos lá bios dele
curvarem-se em um sorriso. A visã o aguçada era outro presente
de Malum, ao que parecia.
Mesmo que eu seja forte, passar anos preso em um corpo
mortal me enfraqueceu. A marca protetora de Malum certamente
não me ajudou. Seus olhos apontaram para a tatuagem na
clavı́cula de Margrete. E os meses no corpo do antigo conselheiro
só pioraram as coisas.
Margrete cerrou os dentes, fervendo de raiva.
Ortum.
Eu sabia que a marca que encontraram no corpo de Ortum era
sua, disse ela, com a visã o manchada de vermelho. Desde o
momento em que o conheci, era realmente você. Mas por quê?
Por que se dar ao trabalho de usar a forma dele?
Darius nada disse, nem mesmo enquanto ela continuava, a
raiva aumentando.
Tem tanto medo de mostrar sua verdadeira face que usou
outra? Você é tão horrível assim?
Margrete nã o pô de evitar a provocaçã o. Na verdade,
provocá -lo fez com que ela sentisse uma alegria imensa. Ela
sentia a adrenalina subir, o mesmo tipo que sentiu durante o
ataque quando ele a encarou atravé s das ondas.
Meu rosto não é horrível, querida, disse ele, a voz
perigosamente leve. Ele quase parecia agradá vel. Eu tinha meus
motivos para usar o conselheiro, e posso te falar sobre eles… um
dia. Mas, primeiro, imploro que venha comigo, antes que eu seja
forçado a recorrer a medidas mais drásticas. Ou posso acabar
terminando o que comecei naquela noite nas ondas.
Bash.
Darius deixou claro que queria o rei fora de cena.
Por que ele? Ela inclinou a cabeça e deu um passo ousado na
direçã o dele. Atrá s de si, ela sentiu as á guas subirem até as
coxas, a fú ria do mar em sintonia com a dela. Você vai deixá-lo
fora disso.
O que quer que isso fosse.
Darius riu.
Tão apegada ao rei. Eu me pergunto o que pensaria se
conhecesse o verdadeiro rosto dele.
A testa de Margrete franziu.
A verdadeira face de Bash? Darius estava falando em
enigmas. Ela conhecia Bash. Sabia de sua paixã o, sua bravura,
sua bondade ― até mesmo do temperamento e da impaciê ncia.
Suas falhas eram parte do homem que ela tinha aprendido a
amar.
Margrete fechou os olhos e engoliu a bile que subia. Ela nã o
deixaria Darius intimidá -la. Era hora dele revelar suas
verdadeiras intençõ es.
Ela abriu os olhos. Nada alé m daquela extensã o familiar de
mar azul estava diante dela, a igura encapuzada apenas uma
lembrança distante.
Darius tinha ido embora.
E també m aquela descarga de adrenalina elé trica que
invadira suas veias. Seus joelhos vacilaram, e ela respirou fundo
pela primeira vez desde a chegada inesperada de Darius.
Incapaz de continuar lutando contra a onda de tontura,
Margrete se deixou afundar nas á guas até os joelhos. Ela cravou
os dedos nas areias suaves cor de mar im enquanto o poder de
um deus crepitava e morria.
Ela fechou os olhos e, naquela fraçã o de segundo, uma
imagem passou por sua mente. Talvez fosse o estado
enfraquecido ou o choque de enfrentar Darius, mas o que
Margrete vislumbrou causou um arrepio violento na espinha.
Diante das pá lpebras fechadas, ela viu a si mesma e Darius…
Ela estava nos braços do deus, abraçando-o irmemente
contra o corpo, e os dedos entrelaçados no cabelo dele. E ela
estava sorrindo, olhando para o deus com um sorriso radiante
carregado de amor.
Ela se sentiu enjoada. A cena parecia muito real, dava a
sensação de ser muito real, quase como se ela a tivesse vivido
antes.
Margrete abriu os olhos com um sobressalto, embora a
imagem permanecesse. E Darius, como se de alguma forma
soubesse que ela tinha visto aquela cena, sussurrou em sua
mente uma ú ltima vez.
Estou indo até você.
ash sabia que a paz da manhã com Margrete nã o duraria.
Ela parecia distraı́da quando ele a encontrara na varanda, aqueles
olhos azuis calculistas examinando as á guas em busca de respostas que
se esquivavam dela. Ela achava que ele nã o sabia de suas visõ es, mas
Bash era mais perspicaz do que ela poderia imaginar.
Especialmente no que ela estava envolvida.
Ele caminhou pelos corredores do palá cio até as câ maras do
conselho com dois guardas estoicos em seu encalço. Espertos, eles
desviavam a atençã o sempre que Bash olhava na direçã o deles. Mas ele
supô s que a apreensã o de cruzar o olhar com ele tinha mais a ver com
seus olhos recé m-alterados do que com o fato de ele ser o rei.
Aparentemente, muitos acharam as poças escurecidas inquietantes.
Nã o podia culpá -los. Nã o ajudava que os cı́rculos escuros abaixo de
seus olhos fossem de um tom desagradá vel de roxo, um sinal de suas
noites inquietas e sonhos assombrados. Pesadelos que o faziam acordar
suando frio.
Olhos brilhantes.
Aguas escuras.
Uma ilha cheia de cinzas e ossos.
Havia uma razã o para ele abraçar Margrete com mais força no meio
da noite, por que seu corpo estremecia mesmo no calor da cama. Nã o
importava que demô nios medonhos habitassem seus sonhos. Bash
poderia lidar com isso. Ele nã o iria adicionar mais peso aos ombros de
Margrete.
Seu pai uma vez lhe disse que um rei nã o demonstrava emoçõ es, e
certamente nem um pingo de fraqueza. Sempre que o jovem Bash
procurava o pai com lá grimas nos olhos, o velho rei fazia uma careta e
exigia que ele “se aprumasse”. Ao anoitecer, o rei visitava Bash e se
sentava em sua cama para contar a histó ria de uma de suas muitas
aventuras.
Bash sabia que aquelas visitas eram a maneira de seu pai
demonstrar afeto, por mais sutil que fosse. Cada segundo daquelas
raras noites era mais precioso para ele do que qualquer coroa.
Margrete lhe ensinou algo diferente. Ela mostrou a ele que, embora
pudesse ser um governante formidá vel diante de seu povo, també m
poderia ser apenas um homem. Até mesmo vulnerá vel.
Bash.
Ele se encolheu ao som de seu nome, quase perdendo o passo. Os
guardas nã o disseram nada enquanto ele se endireitava. Tinha sido um
silvo de um ruı́do sussurrado na concha de seu ouvido ― um que ele já
tinha ouvido antes.
Venha me encontrar.
Arrepios dançaram em seu pescoço, e seus mú sculos icaram tensos.
Esta era a terceira vez que a voz ousava vir até ele à luz do dia. Tornara-
se ousada. Deuses, ele desejava que Ortum estivesse vivo para ajudá -lo
a entender. Eles ainda tinham que descobrir o que havia acontecido
com o conselheiro, mas Margrete suspeitava que a marca em sua pele
decomposta pertencia a ningué m menos que Darius, o mesmo deus
enlouquecido que tentara matar Bash. Ele ainda conseguia ver os olhos
estreitos de Darius enquanto seu poder o atingia durante o ataque do
capitã o. Naquele momento fugaz, antes de ser arrastado para baixo, ele
vislumbrou tanto ó dio. Odio e alguma outra emoçã o inominá vel que ele
nã o conseguia identi icar. Ou talvez uma que ele desejasse ignorar por
completo.
De qualquer forma, o deus queria Bash morto, e enfrentar um deus
nã o era uma luta que ele tinha certeza de que poderia vencer.
Endireitando os ombros, Bash mudou a expressã o para a de um rei
temı́vel. Assim como seu pai lhe ensinara tantos anos antes.
Os membros do conselho, homens e mulheres de idades e posiçõ es
variadas vestindo tú nicas, entravam aos poucos nas amplas câ maras,
conversando entre si. Ele conhecia todos eles, já que praticamente
crescera naquelas salas. Bash sentava-se no canto enquanto seu pai
emitia um novo decreto ou resolvia uma disputa. Sua primeira visita foi
na tenra idade de ٤ anos. Nã o é preciso dizer que ele nã o teve muita
infâ ncia. Outra liçã o de seu pai: nã o há tempo para brincar. Somente
preparaçã o.
Quando todos se sentaram nas cadeiras de ouro e veludo azul, uma
dú zia de olhos cheios de expectativa se voltaram para ele.
Foco, Bash se repreendeu. Ele poderia chafurdar mais tarde, quando
questõ es mais urgentes nã o precisassem ser resolvidas. Ou seja, o
silê ncio das crianças do mar. Para criaturas criadas para causar caos e
ansiar por sangue, o silê ncio enervava muito Bash. O que estavam
esperando?
— Todo mundo reunido? — perguntou ele, dirigindo-se ao salã o. Os
conselheiros assentiram, aguardando ansiosamente a notı́cia que
Nerissa havia prometido no dia anterior. — Nã o vamos perder tempo,
entã o.
Acenando para Nerissa, a vidente da corte, Bash a encorajou a
começar. Quanto mais cedo entendessem a base para a reuniã o
improvisada, melhor. Ele ansiava por açã o. Sentar-se e esperar o deixava
ansioso, e nã o ter qualquer rascunho de plano fez com que sua
necessidade de controle crescesse em espiral. Controle signi icava
ordem, e com toda a confusã o prestes a se desenrolar, ele se agarrava a
qualquer fragmento que pudesse.
Nerissa pigarreou, suas feiçõ es delicadas contorcidas de
preocupaçã o. Isso não é um bom sinal, pensou Bash, cerrando os punhos
em antecipaçã o sob o tampo da mesa. Sentado à sua esquerda, Adrian,
seu amigo mais antigo e mais con iá vel, estendeu a mã o para
rapidamente acariciar a dele. Seu calor o envolveu, sua mã o uma
â ncora, impedindo-o de ser arrastado pelo pró prio pâ nico. Adrian
sempre sabia quando Bash precisava de apoio. Ele lhe deu um sorriso
rá pido em agradecimento.
— As cidades de Castion e Malor foram destruı́das. — A voz
meló dica de Nerissa soou em desacordo com a notı́cia que ela dera. O
salã o caiu em um silê ncio tangı́vel. — As feras de Azantian, do mar,
pretendem varrer tudo em seu caminho. Nã o demorará muito para que
a terra dos homens seja destruı́da. Eu já vi, e a destruiçã o ceifada será
grande — advertiu Nerissa, com os olhos franzidos nas laterais. —
Devemos agir rá pido… caçar as crianças do mar antes que seja tarde
demais e o equilı́brio seja ainda mais prejudicado.
Adrian soltou um suspiro profundo, fazendo a rajada de ar soar alto
na sala silenciosa. Bash també m ouviu o farfalhar dos tecidos enquanto
os membros do conselho se mexiam desconfortavelmente, a maioria
espiando o rei de soslaio. Os portõ es se abriram sob seu reinado, e Bash
consertaria seus erros, com ou sem o coraçã o de Malum para aprisionar
as feras.
Se o coraçã o fı́sico de Malum realmente estava perdido, entã o a
maior parte do poder do deus icara com Margrete. Adrian havia
contado a Bash sobre o progresso das sessõ es de treino na praia, e, por
mais que odiasse que ela se colocasse em mais perigo, sabia que
aproveitar a magia seria a ú nica maneira de salvá -los. O destino con iou
à mulher que ele amava exercer tal poder, e Bash colocou toda a sua
con iança nela… mesmo com a voz cı́nica de seu pai dizendo para fazer
o contrá rio.
Os sussurros dos membros do conselho se calaram quando Bash
ergueu o queixo e colocou as duas mã os sobre a mesa, que tremeu sob
suas palmas.
— Quantos mortos? — indagou rispidamente.
Nerissa fez uma careta antes de olhar para os ladrilhos de pedra.
— As ondas levaram milhares. As docas e os navios que
transportavam milhares de outros també m pereceram.
— Quantos? — repetiu Bash, empurrando para baixo a culpa que
subia como bile. Ele podia nã o con iar nos humanos, mas eles nã o
mereciam morrer.
— Pelo menos dez mil.
Ele engoliu um xingamento.
— Adrian? — Ele se virou para seu amigo e comandante. — Sua
opiniã o?
Bash precisava de um momento para processar. Muito seria
necessá rio para construir um exé rcito grande o su iciente para derrotar
os monstros lendá rios.
Entrando em açã o, Adrian se dirigiu a Nerissa, sua pele pá lida
ondulando enquanto os mú sculos de seu pescoço icaram tensos.
— Eles estã o usando navios? — disse ele. — Cidades costeiras e
ilhas?
Ela assentiu.
— Alguma ideia de quais criaturas sã o responsá veis?
Muitas feras escaparam naquela noite, principalmente o Drathion.
Embora semelhante à serpente marinha que foi morta na noite do
ataque, essa fera tinha o dobro do tamanho e era duas vezes mais
mortal.
— O Drathion — Nerissa explicou cautelosamente — e o Collossious.
Embora tenda a vagar por á guas mais profundas, afundou dezenas de
navios até agora e nã o parece satisfeito.
O Collossious, um dos predadores mais ferozes que as profundezas
já conheceram, tinha bem mais de nove metros de comprimento, pele
supostamente impenetrá vel e milhares de escamas serrilhadas mais
a iadas do que as melhores adagas Azantianas. Embora com
caracterı́sticas semelhantes a um tubarã o, dizia-se que poderia afundar
um navio com um ú nico estalo da boca.
— Senhor… — Nerissa começou, levantando o olhar. — Tem outra
coisa.
— Sim? O que é ? — insistiu Bash, impaciente para que as má s
notı́cias acabassem logo. Ele precisava ir ao seu escritó rio para começar
a executar um plano. Já havia muito o que fazer.
Uma picada aguda irradiou de seu peito, e Bash levou a mã o para
onde sua tatuagem mais secreta estava escondida pela camisa. A
nymera, ao contrá rio das outras, permanecera imó vel durante toda a
sua vida. Mas, no dia anterior, ele poderia jurar que a vira sorrir.
Como se para responder a seus pensamentos sombrios, Nerissa
revelou:
— Ainda temos que lidar com as nymeras. De acordo com os poucos
textos antigos que nossos historiadores localizaram, elas podem ter a
habilidade de se aventurar alé m da costa usando a mais distorcida
magia das trevas da qual nasceram.
Nymeras, as criaturas meio humanas, meio monstruosas das
profundezas. Sugavam as almas diretamente da boca dos mortais,
alimentando-se delas. Estavam enfraquecidas por seu tempo sob
Azantian, e Bash suspeitava que caçariam almas até que estivessem
saciadas, matando milhares, se nã o mais.
A tatuagem no peito de Bash vibrava, e um gosto doce e doentio
cobriu sua lı́ngua. Se elas atacassem…
Seria mais do que o caos, alé m do controle de Bash. O controle de
qualquer um. Eram muito mais mortais do que os outros ilhos do mar,
pois eram inteligentes e calculistas, e uma antiga magia das trevas luı́a
atravé s de seu sangue viscoso e escuro.
— Eu també m sinto… — Nerissa fez uma pausa e soltou o ar pelo
nariz. Bash poderia dizer que ela estava hesitante em transmitir a
pró xima parte.
— Sim, Nerissa, o que é ?
— Sinto que um dos deuses está trabalhando com elas.
O salã o soltou um suspiro coletivo.
— Assumo que é o irmã o de Malum — palpitou Bash.
Nerissa deu um aceno rá pido.
— Nã o tenho certeza do que estã o fazendo, mas minhas visõ es foram
de areias cinzentas e um homem encapuzado irradiando poder divino.
Ele está cercado por uma horda de nymeras, o mar se erguendo ao seu
comando.
Bash se perguntou se as coisas poderiam piorar.
— Algo me diz que você nã o deve pisar nestas praias — completou
Nerissa. — Mas sei que tem que ir para conter as feras.
— Você está certa — disse ele com irmeza. — Nã o posso icar
sentado enquanto meu povo caça as criaturas que eram minha
responsabilidade.
Os membros do conselho murmuraram em concordâ ncia. Ele cerrou
os dentes, ignorando a decepçã o tangı́vel de todos. Precisava sair
daquele salã o sufocante.
Nerissa abriu a boca, mas rapidamente a fechou. Ela o conhecia bem
o su iciente para saber quando ele se decidia. Ela se sentou sem outra
palavra, mas seus olhos inquisitivos se voltaram para o rei. Ele podia
sentir que ela o estudava.
Adrian se levantou, dissipando os cochichos abafados.
— Se você está planejando zarpar para caçar as feras, vou mandar os
homens prepararem o Phaedra. Se algum navio pode resistir…
Adrian continuou, mas Bash só ouvia os sussurros perversos que o
atormentavam ― os sibilos corruptos com os quais acabou se
familiarizando.
O mundo de Bash estava mudando ― sua mente estava mudando ― e,
com o novo mundo, veio a promessa de sangue derramado.
s sú ditos francos de Bash discutiram no decorrer da
tarde quente, as câ maras do conselho queimando como um
forno. O suor escorria pelas costas do rei, colando a camisa
branca em sua pele.
Quando Bash inalmente pô s im ao contrassenso e
transmitiu suas ordens inais, ele se virou para Adrian.
— Reú na os homens e prepare-os para o que os espera.
Quero o Phaedra equipado com cem soldados.
Enviaria uma mensagem a Adrian assim que identi icassem
os movimentos das nymeras, e seu comandante lançaria uma
frota completa para ajudar na batalha. Nã o faria sentido enviar
todos os soldados de uma vez.
Adrian fez uma leve inclinaçã o de cabeça, seus olhos verdes
brilhantes cheios de perguntas que ele certamente faria mais
tarde. Ele sabia que nã o devia se dirigir ao rei com tanta
franqueza diante dos ouvidos fofoqueiros dos sú ditos.
Acenando para os rostos sombrios dos membros do
conselho uma ú ltima vez, Bash saiu da sala, suas pernas
ansiando por acelerar o ritmo. Correr e fugir daquele ambiente
sufocante.
Todo o barulho fazia com que ele desejasse escapar ― as
vozes de seu povo descontente misturadas aos assobios
dementes de sua insanidade crescente. Tudo se misturava
perigosamente.
Como se fosse uma deixa, os sussurros retornaram.
Deixe-os morrer.
Você não é um deles.
Os mortais são inúteis.
Covardes.
Indignos.
Cada palavra escorregadia destilava ó dio e animosidade, e o
coro de vozes aumentou até formar um zumbido estridente em
seus ouvidos.
Alé m das câ maras do conselho, Bash se encostou na parede
de uma alcova sombria e pressionou as mã os no vidro frio. Ele
avidamente sugou o ar.
Pare, ordenou ele silenciosamente, com a respiraçã o
ofegante. Pare, porra.
Ele nã o queria aquilo, nã o queria ouvir mais nada. Vozes
falando de matança e crueldade.
Vozes que ele sabia que nã o deveriam existir.
Deixe-os morrer, morrer, morrer, morrer…
As palavras se repetiram sem cessar até Bash estremecer de
fú ria. A pura malevolê ncia da voz trouxe à tona algo de dentro
de si que ele nã o gostou muito. A parte mais escura, sufocada
por anos. O erro nã o era ele, nã o o homem que ele se esforçou
tanto para se tornar. Nã o poderia ser.
Bash sibilou de frustraçã o, e a necessidade de atacar, de
sentir qualquer coisa alé m daquela maldade toda, fez seu corpo
coçar, formigar, queimar. Era muito mais do que podia aguentar
de uma vez, e, por mais que tentasse, nã o conseguia desligar as
malditas vozes. Nã o. Elas só aumentavam, e icavam mais fortes.
Morrer, morrer, mor…
— Ahhhhhh! — Bash se virou, batendo um punho com nó s
dos dedos esbranquiçados na parede de vidro marinho. O
material rachou, deixando pequenos riachos de teia de aranha
de vidro fraturado por baixo de seus dedos ensanguentados.
Na mesma hora, a dor silenciou a cançã o da morte.
É isso, pensou, tentando respirar fundo mesmo enquanto seu
peito tremia. Não é real.
— Você está bem, meu rei?
Uma voz doce demais rompeu o rugido que tinha nos
ouvidos, cortando sua concentraçã o. Shade tinha se
aproximado e o olhava com uma expressã o fria no rosto
delicado. Os cabelos da nuca de Bash se arrepiaram.
Ele nã o queria que ningué m o visse em tal estado.
— Estou bem — grunhiu, evitando o olhar penetrante da
mulher. Ele nã o saberia o que explicar à tesoureira da corte,
mesmo sendo amigos. Ou melhor, eles já tinham sido amigos.
Nos ú ltimos tempos, Shade andava escorregadia; tendo
aparecido apenas para homenagear Ortum em seu memorial
meses antes.
— Parece que você nã o está bem — insistiu ela, a voz livre
de emoçã o.
Bash apertou os dedos, a pele rachando. Sim. Concentre-se na
dor.
— Isso nã o diz respeito a você , Shade — conseguiu dizer,
fervendo. Ele parecia frio, cruel e tã o diferente de si mesmo.
— Talvez você precise desabafar. Posso chamar Adrian para
o terraço…
Ele explodiu novamente, sem conseguir se conter.
— Nã o me venha com suposiçõ es de que sabe do que
preciso! — Bash a observou, desde a coroa de seus cachos
ruivos até o verde profundo de seus olhos.
Se a resposta atravessada a machucou, ela nã o deixou
transparecer.
Pelo contrá rio. Shade sorriu.
— Como desejar, meu rei. Como sempre, a intençã o é
agradar. — As ú ltimas palavras escorreram á cidas, e ela o
encarou por um momento com uma faı́sca no olhar. Os olhos
verdes pareciam excepcionalmente vı́vidos, quase brilhantes
demais. Mas antes que Bash pudesse pensar nisso, Shade fez
uma mesura com a cabeça e deslizou de volta para o corredor,
desaparecendo tã o rá pida e silenciosamente quanto apareceu.
Ele lidaria com ela mais tarde. O que quer que ela realmente
desejasse pedir podia esperar. Teria que esperar.
Sem outro pensamento, Bash abandonou a alcova e passou
em disparada por um Adrian assustado.
— Bash! — gritou o amigo, a voz cheia de preocupaçã o. —
Precisamos conversar!
— Mais tarde! — Bash gritou por cima do ombro,
continuando seu ritmo implacá vel. Adrian o chamou mais uma
vez, mas Bash já tinha virado o corredor.
Ele se sentia um idiota, mas sua mente era uma confusã o de
emoçõ es, e havia apenas uma pessoa na ilha ― em todo o reino
― que poderia acalmá -lo naquele momento.
Em pouco tempo, ele estava do lado de fora dos aposentos
reais, segurando a maçaneta antes de girá -la.
No segundo em que a porta se fechou, Margrete saltou de
sua cadeira favorita, deixando cair um livro grosso encadernado
com couro. Desde que ela se mudara para o quarto dele, tinha
acrescentado cor e luz ao espaço anteriormente esté ril e
impessoal.
Tapeçarias pendiam das paredes e almofadas de cores vivas
decoravam a cama. Até a mesa de Bash, que antes continha
apenas caneta e papel, abrigava pequenas bugigangas
encontradas no mercado. Agora, os aposentos dele eram um lar.
Um lugar de conforto. Inferno, ele nem se importava mais com a
desordem.
Não muito.
Bash en iou a mã o ensanguentada no bolso da calça antes
que Margrete a visse, embora ela fosse descobrir em breve. A
pele já estava em processo de se recompor graças à habilidade
de cura dos Azantianos.
Margrete icou paralisada do outro lado do quarto, as
pequenas mã os segurando o roupã o de seda amarrado
irmemente na cintura. O cabelo castanho estava ú mido e se
encaracolava ao redor do rosto, e ela cheirava a lavanda e
sabonete. Devia ter acabado de voltar da praia.
— Bash? — Somente a mençã o ao nome dele continha todas
as perguntas. O amor que ela sentia, as dú vidas e os medos.
Ela o conhecia melhor do que a maioria das pessoas, e nã o
ajudava que a fachada de calma indiferença tivesse quebrado
no momento em que ele saı́ra das câ maras do conselho.
Bash deixou os restos de sua má scara escorregarem.
— As bestas que escaparam atacaram navios e ilhas do
mundo mortal — começou ele sem alarde, entrando mais no
quarto. — Houve muitas vı́timas.
As pontas das orelhas dela icaram vermelhas e uma faı́sca
de fogo brilhou em seus olhos azuis.
— Quantos?
— Dez mil.
Uma rajada de vento invadiu o quarto, gelando o ar e
arrepiando a pele de Bash.
— Preciso de uma embarcaçã o — Margrete exigiu sem
hesitaçã o. — Darius… isso deve ser culpa dele. Ele deve estar no
comando. Se eliminarmos as feras, elas nã o serã o armas para
ele comandar.
Darius. O nome era uma maldiçã o em sua lı́ngua.
— Nerissa acha que ele está trabalhando com as nymeras
por algum motivo. Tenho certeza de que ele está planejando
algo.
Margrete suspirou, passando as mã os pelo cabelo ú mido.
— Eu o vi hoje.
Bash gelou com a revelaçã o, tensionando todos os mú sculos.
— Ele queria que eu fosse com ele. Fez ameaças.
Ameaças.
O sangue de Bash ferveu.
— Ele apareceu para você ? Ele… te machucou? — Bash
cerrou as mã os em punhos. Se Darius a tocasse, ele dedicaria
toda a sua existê ncia a caçar o bastardo. Por que nã o podia
deixá -la em paz?
Margrete balançou a cabeça.
— Nã o. Ele nã o me machucou, Bash. Mas nã o acho que foi a
ú ltima vez que o vi. Ele mencionou uma marca protetora que
Malum colocou em mim. — Ela tocou a tatuagem de onda. —
Mas tenho a sensaçã o de que quer mais do que o poder do
irmã o. Ele… ele disse algo sobre eu saber a verdade. O que quer
que isso signi ique.
— Nã o vou deixar que ele te machuque. Deus ou nã o. —
Bash fervia, os olhos se estreitando em fendas. A raiva
incandescente percorreu suas veias, tornando quase impossı́vel
respirar, impossı́vel pensar em outra coisa que nã o fosse en iar
uma adaga bem no meio do coraçã o do deus. Bash engoliu o
fogo, a fú ria ardente, e forçou as pró ximas palavras. — Onde
você estava quando ele se aproximou? — Ele teria que dobrar a
segurança e…
— Na á gua. Ele manteve distâ ncia, mas queria que eu fosse
com ele. Ameaçou você , de novo. Entre outras coisas.
Bash abriu a boca para argumentar, mas ela o cortou.
— E ele admitiu que a morte de Ortum foi culpa dele. Que
comandou o corpo do conselheiro por semanas, convencendo a
todos que era o homem que você conhecia e admirava.
Bash nã o sabia se icava mais bravo consigo mesmo ou com
Darius. Ele deveria saber que Ortum nã o andava o mesmo.
Deveria saber que o homem caloroso e gentil que sempre foi
uma presença irme em sua vida havia mudado. Ortum tinha
sido praticamente um segundo pai para ele.
— O conselho quer enviar o Phaedra com cem homens pela
manhã . Vamos caçá -los, nã o se preocupe. Mas, enquanto isso,
vou dobrar sua segurança. Vou me certi icar de que Darius nã o
tenha outra chance de… te encontrar. — Ele desviou o olhar, sua
raiva uma besta tangı́vel. Ele temia nã o conseguir controlá -la
por muito mais tempo.
Uma rajada de ar soprou, e Margrete parou diante dele.
Gentilmente, ela segurou o rosto dele.
— Vou com você . Mesmo que Darius nã o esteja envolvido, as
crianças do mar precisam morrer antes que tirem mais vidas.
Sou tã o parte disso quanto você .
A garganta de Bash se contraiu dolorosamente, deixando um
peso esmagador se instalar em seu peito. Se ela fosse e algo
acontecesse…
— Margrete, é muito perigoso. Nã o vou permitir que você …
— Permitir? — questionou ela, incré dula. Ela tirou a mã o do
rosto dele e ergueu uma sobrancelha. — Me permitir? —
repetiu. — Acho que fui eu quem salvou esta ilha. Eu venci o
capitã o e…
— Margrete! — Bash levantou as mã os ensanguentadas,
agarrou os braços dela e a sacudiu suavemente. — Eu estava lá .
Sei o que você fez, e també m sei que você quase morreu por
causa disso!
Uma imagem passou por sua mente, o momento em que ele
a tirou das ondas. O dia em que ele a perdeu para o mar, e ela
renasceu.
Ele nã o conseguiria passar por isso novamente. Acabaria
com ele.
— Eu estava bem, e você sabe que posso cuidar de mim
mesma. Provavelmente posso me cuidar ainda melhor agora,
que tenho isso. — Ela gesticulou para o pró prio coraçã o. —
Assim que aprender a usar esse poder, quem sabe o que serei
capaz de fazer. Estou praticando todos os dias.
E, no entanto, ela nã o conseguira invocar a mesma força de
quando destruiu o navio do pai. Com certo egoı́smo, Bash se
sentiu aliviado.
Se ela nã o se expusesse a qualquer poder nã o testado que
possuı́a, entã o estaria segura, escondida na ilha, onde ele tinha
como protegê -la. Mas Bash també m sabia que ela nã o precisava
de proteçã o. Embora sua ignorâ ncia o deixasse mais seguro, ele
jurou a ela que nã o a manteria enjaulada. E ele honraria a
promessa. Mesmo que morresse antes do tempo de tanta
preocupaçã o.
Os olhos de Margrete vagaram para os nó s dos dedos dele.
Ele começou a baixar as mã os, mas ela as agarrou, estreitando
os lá bios.
Merda.
— Bash? O que aconteceu? — perguntou com uma
sobrancelha franzida. Ela virou a mã o dele, inspecionando o
sangue seco. Instantaneamente, a raiva se transformou em
preocupaçã o.
— Nã o é nada — assegurou ele fracamente. — Perdi a
paciê ncia. Só isso.
— Perdeu a paciê ncia com quem? — Os lá bios de Bash
permaneceram fechados, entã o ela insistiu: — Quem fez…
— Foi na parede — disse ele, soltando um suspiro
desesperado. — Perdi a paciê ncia e soquei uma parede. Foi uma
reuniã o incrivelmente longa, e eu tinha acabado de saber da
morte de milhares de pessoas.
— Entã o você deu um soco na parede? O que mais nã o está
me contando? Você ica com raiva à s vezes, mas nunca… assim.
Eu sei que você está escondendo alguma coisa.
— Nã o foi nada mais do que isso — mentiu, o peso das
palavras falsas queimando sua lı́ngua. — Só iquei perturbado
com a notı́cia. Frustrado por ter deixado isso acontecer.
Ele pensou que ela nã o tinha acreditado nele, que ela o
pressionaria ainda mais até que conhecesse cada grama da
verdade. Mas, em vez disso, ela suspirou e disse:
— Vou pegar um pano. Vamos limpar isso antes que algué m
veja.
Bash a parou.
— Ainda nã o quero que você vá .
— Se você , por um segundo, acha que eu nã o…
— Por favor — gritou. Ele nã o estava acostumado a
responder a outra pessoa. Mas ela tinha que entender. Ela
precisava estar segura.
Bash nã o tinha certeza do momento exato em que percebeu
que a amava, da necessidade de protegê -la mais do que
precisava de ar. Mas o sentimento enraizou-se profundamente
dentro dele, e nã o havia como se livrar daquilo agora. Ela se
tornou parte dele, tanto quanto seu coraçã o acelerado.
As orelhas de Margrete icaram vermelhas e o peito in lou e
desin lou rapidamente. Ela começou a abrir os lá bios carnudos
para protestar, mas, antes que pudesse, Bash a silenciou com
um beijo desesperado.
Ela icou imó vel por um instante, mas, quando as mã os dele
se enredaram em seu cabelo e a lı́ngua traçou a fenda de seus
lá bios, ela cedeu. Suspirando em derrota, ela passou os braços
ao redor de seu torso, aconchegando-se mais.
Quando ele invadiu sua boca e provou sua doçura, Bash
quase esqueceu que estavam brigando. Isso foi até que
Margrete se afastou, os olhos mais a iados que punhais.
— Você nã o pode me beijar toda vez que quiser ganhar uma
discussã o. — Embora determinado, seu tom suavizou,
tornando-se um lamento. — Eu tenho que fazer isso, e nã o
posso icar aqui escondida por mais tempo. Nã o posso
simplesmente sentar e esperar. Darius quer o coraçã o de
Malum e a mim, e nã o vou esperar que ele o tome.
Bash rosnou em discordâ ncia, mas sabia que tinha perdido.
Xingando, ele estreitou os olhos, soltando um suspiro
pesado. Um que disse mais do que qualquer palavra.
— Entã o está resolvido — disse ela. — Eu vou. E, comigo a
bordo, você e sua tripulaçã o podem realmente ter uma chance
se algo sobrenatural ocorrer.
Sentindo a determinaçã o dele enfraquecer, ela alcançou seu
rosto, tocando com suas pequenas mã os frias a pele aquecida. O
toque foi como um bá lsamo, e os mú sculos tensos relaxaram
lentamente.
— Nã o sou mais a mesma mulher que você conheceu, Bash
— sussurrou ela, inclinando-se para frente, os lá bios a
centı́metros dos dele, provocando-o. — Seria bom que se
lembrasse disso.
Maldita seja essa mulher.
— Eu sei que você nã o é — cedeu. Ela sempre foi feroz, mas
o que vivia em sua alma era uma magia alé m de seu alcance. —
Você pode ser minha pequena guerreira imprudente, mas eu
preferiria que nã o saı́sse da minha vista.
Margrete sorriu com melancolia, icando na ponta dos pé s
para dar um beijo gentil em seus lá bios.
— Estou tã o feliz que você entenda.
Bash soltou um gemido cansado.
— Só … só me escute uma vez — acrescentou, observando
que aquele sorriso melancó lico entregava um pouco de seu
peso. — Eu nã o posso perder o foco se você estiver com
problemas. E você me distrai muito.
Margrete revirou os olhos ― sua marca registrada quando se
sentia aborrecida. Antes isso o enraivecia, mas agora era…
cativante. Era ela.
— Contanto que você me escute també m, pirata.
O antigo apelido afrouxou a tensã o dos ombros dele.
— Eu realmente amo muito seguir seus comandos, princesa.
argrete nã o parava de pensar nas ú ltimas palavras de Darius.
Estou indo até você.
Mesmo depois que Bash entrou no quarto deles e compartilhou as
notı́cias das crianças do mar, a ameaça do deus nã o saı́a de seus
pensamentos. Era como se estivesse cravada em sua mente com garras,
recusando a afrouxar.
No jantar, seu estô mago revirado mal conseguia aguentar uma
garfada na comida.
— O que há de errado? — Uma pequena mã o a cutucou na lateral.
Margrete desviou o olhar da refeiçã o farta de peixe grelhado e
legumes frescos e observou o rosto radiante de sua irmã . Birdie tinha se
dado bem com a ilha mı́stica ― sua pele bronzeada e o sorriso
deslumbrante eram puro esplendor. Margrete nunca tinha visto tanta
pureza naquele sorriso, e a visã o aqueceu seu coraçã o.
Sentado à cabeceira da mesa, Bash fez uma pausa em sua refeiçã o, os
olhos vagando na direçã o da amada. Ele a estava observando sem parar
enquanto empurrava a comida ao redor do prato. Ela nã o o tinha visto
dar uma só garfada.
Ignorando-o por um instante, Margrete segurou as bochechas da
irmã entre as mã os.
— Partirei amanhã com Bash e seus homens, passarinha, mas estarei
de volta antes que você perceba.
Birdie franziu a boca.
— Você tem que ir?
A tristeza na pequena voz de Birdie torceu algo profundo dentro
dela, e ela sabia que a escuridã o que nublava os olhos azuis da irmã
remetia ao desaparecimento de Margrete meses antes. Claro que ser
sequestrada pelos Azantianos nã o foi escolha dela. Ainda assim,
carregava a culpa de deixar a irmã sozinha para se proteger de seu
desprezı́vel pai.
— Eu estarei aqui! — uma voz alegre respondeu antes que Margrete
pudesse formar as palavras. Shade sorriu do outro lado da mesa, seus
lá bios pintados de carmesim esticados. — Você pode ser minha
aprendiz.
Birdie murmurou uma resposta, mas Margrete se concentrou
inteiramente em Shade.
A força de Margrete na mã o da irmã aumentou.
Desde que vira a marca de queimadura peculiar no pescoço de Shade
na noite da festa em homenagem à deusa da lua, Margrete icava
apreensiva perto da bela tesoureira. Ela disse a si mesma que era
paranoia, mas, depois que descobriram uma marca no corpo de Ortum,
ela nã o conseguia esquecer suas dú vidas tumultuosas. O fato de Shade
parecer se esforçar para cobrir o pescoço, deixando o cabelo ruivo
sensual sempre penteado meticulosamente no lugar, nã o ajudava em
nada.
Pare. Margrete nã o deveria fazer suposiçõ es. Sua mente a recordou
da histó ria que Bay havia lhe contado sobre o passado de Shade. Ainda
jovem, ela perdeu os pais em um incê ndio. O acontecimento fez com
que ela fosse enviada para o orfanato, onde conheceu Bay. Margrete
sabia melhor do que ningué m como uma infâ ncia sofrida poderia
obrigar uma pessoa a se esconder do mundo.
Alé m disso, se algué m a fazia se sentir desconfortá vel, era Nerissa. A
mulher mal prestava atençã o em Margrete, embora, naquela noite,
tenha lagrado os olhos da vidente cravados nela mais de uma vez.
Um garfo estalou alto, tirando Margrete dos pensamentos sobre
Shade, deuses e monstros. Ao lado dela, Bash soltou uma maldiçã o
suave, quase inaudı́vel para a mesa cheia de convidados silenciosos.
Sem tirar os olhos do prato, o rei continuou a olhar para o jantar, alheio,
ou simplesmente inconsciente de que havia atraı́do todos os olhares. As
chamas das arandelas brilharam no garfo de metal em sua mã o, e a luz
refratada captou os traços prateados no preto de seus olhos.
— Você está bem? — Margrete perguntou baixinho, apertando a
coxa dele por baixo da mesa.
Ele se encolheu, embora tenha erguido o olhar da refeiçã o.
— Sim. Estou bem. Bem. — Ele deu de ombros, levando uma garfada
de comida aos lá bios. Ele fez uma careta enquanto engolia.
Como se ela acreditasse naquilo.
— Você está fazendo um trabalho excepcionalmente horrı́vel
tentando se esconder esta noite — repreendeu ela, forçando um sorriso
e tentando conseguir um dele. — Nem uma vez comentou sobre o uso
generoso de sal do chef, e isso é muito diferente do pirata pretencioso
que conheci.
A comida era uma á rea em que Bash era exigente. Ela achava isso
bastante divertido.
As pessoas sentadas ao redor da mesa de jantar obedientemente
ignoraram a conversa sussurrada, embora parecessem perdidas em
pensamentos. Bay e Adrian estavam envolvidos em uma troca tensa, o
primeiro estranhamente mal-humorado.
Margrete fez a ú nica coisa que podia para quebrar o silê ncio. Aquela
era a ú ltima noite de todos juntos por algum tempo, e ela estava
odiando que fosse passada em um silê ncio tã o constrangedor.
— Bay me contou como foi o primeiro encontro de você s — soltou,
olhando para Adrian.
Imediatamente, dois pares de olhos piscaram em sua direçã o. As
sombras que obscureciam as ı́ris azuis de Bay clarearam, e Adrian
perdeu um pouco da rigidez nos ombros.
— Ah, ele te contou, foi? — zombou Adrian. — A ideia desse homem
de um encontro româ ntico é esgrima.
— E vinho! — Bay acrescentou, seu tom leve.
— Sim, e vinho — admitiu Adrian. — Mas ser apunhalado em um
encontro nã o estava nos planos.
— Como é que é ? — Margrete deixou cair os talheres. Ela nã o sabia
da parte em que Adrian foi apunhalado.
— Sim, você me ouviu corretamente. Bay icou muito arrogante com
o lançamento da adaga e me acertou.
Bay endireitou-se, erguendo um dedo.
— Foi apenas uma ferida super icial! Eu mal cortei seu braço.
Sempre tã o dramá tico.
Adrian explodiu no tipo de risada que deveria ter sido contagiante se
a noite nã o estivesse tã o pesada.
— Sua sorte é que eu te achei muito atraente — disse Adrian,
bufando para o gesto vulgar que Bay estava fazendo. — Se tivesse sido
qualquer outra pessoa… — Sua voz sumiu, e ele balançou a cabeça.
Margrete adorou o sorriso que brincava em seus lá bios.
— Nunca houve mais ningué m. — Bay estendeu a mã o e segurou a
de seu namorado. Levando-a à boca, ele deu um beijo suave em seus
dedos. Adrian se derreteu todo.
Depois de tantos anos juntos ― e de uma facada ―, eles ainda se
derretiam na presença um do outro. Margrete sorriu. Eles eram
doentiamente adorá veis.
Felizmente, a conversa em torno da mesa engrenou depois daquela
pequena histó ria, e uma hora se passou até que as pessoas começassem
a pedir licença para se retirar, encerrando a noite.
Bash ofereceu o braço a Margrete antes de se curvar para pegar a
mã o de Birdie. Enquanto saı́am da sala de jantar, a menina alegremente
contou de todas os novos movimentos que Adrian lhe ensinara no dia
anterior. Bash comentou e sorriu, mas sua mente estava em outro lugar.
Pouco antes de chegarem à s escadas em espiral, uma voz eté rea
chamou Margrete.
— Margrete. Posso falar brevemente com você ?
Nerissa.
Ela estava no centro do salã o principal, com as mã os cruzadas atrá s
das costas. Para qualquer outra pessoa, poderia parecer uma pose
relaxada, mas o leve tremor em sua mandı́bula delicada revelou a
Margrete que a mulher estava mais tensa do que deixava transparecer.
— Claro — respondeu ela, dando a Bash um aceno rá pido. Ele se
ajoelhou e pediu a Birdie que lhe mostrasse alguns dos movimentos
que aprendera. O guincho que saiu de seus lá bios rosados quase fez
Margrete sorrir.
— Está tudo bem? — perguntou ela a Nerissa. Nos ú ltimos tempos,
essa era a pergunta que ela mais fazia.
A vidente engoliu em seco com força o su iciente para Margrete
perceber o movimento de sua garganta. Nã o poderia ser um bom sinal.
As mã os de Margrete instantaneamente icaram suadas.
— Eu queria dizer algumas coisas — Nerissa começou, colocando as
mã os à frente. Margrete viu como ela as torcia, quase como se estivesse
apreensiva com o que tinha para falar.
Margrete baixou o queixo em aquiescê ncia, sem saber o rumo da
conversa.
— Nã o fui justa com você . — suspirou Nerissa. — Julguei você desde
o primeiro momento em que colocou os pé s nestas praias, e nã o tenho
sido… acolhedora.
Um eufemismo. Margrete esperava que suas feiçõ es nã o a traı́ssem.
— Você é boa para ele, sabe? Sebastian… Bash, quero dizer. — Ela fez
uma pausa para dar um sorriso irô nico e conhecedor. — E nã o o vejo
tã o feliz há anos. Bom, talvez nunca tenha visto, na verdade. — Ela
mexeu os pé s antes de olhar para Margrete. — Eu me importo com
Bash como um irmã o, um irmã o muito chato, e talvez haja espaço para
uma nova irmã també m. Uma irmã que mostrou que é muito mais digna
do que eu imaginava.
Nerissa nã o parecia propensa a conversas sentimentais, entã o suas
palavras enviaram uma onda de calor para o peito de Margrete. Nã o
houve hesitaçã o quanto ao que responder. Agarrando a mã o de Nerissa
e ignorando como ela se encolheu, Margrete a puxou para um abraço. A
mulher enrijeceu, mas, segundos depois, a abraçou també m.
— Gosto ainda mais de você por protegê -lo — sussurrou Nerissa em
seu ouvido. — Isso mostra como é seu coraçã o e, neste mundo muitas
vezes brutal, um amor assim é raro.
Margrete recuou e segurou Nerissa à distâ ncia de um braço.
— Você é uma pessoa forte e leal, Nerissa, e seria uma honra me
tornar sua amiga.
Nerissa enrijeceu o maxilar, mas Margrete conseguiu distinguir uma
faı́sca fugaz de gratidã o em seus olhos. A vidente deu um passo abrupto
para trá s.
— Tenha cuidado amanhã — Nerissa sussurrou em advertê ncia. — E
esteja em guarda. Sinto mares muito agitados à frente.
Assim como Margrete, mas estariam no Phaedra, um navio capaz de
resistir a qualquer vendaval.
— Tomarei. Nã o se preocupe conosco.
Os lá bios de Nerissa se estreitaram, e parecia que ela queria dizer
mais, mas apenas fez um breve aceno de cabeça. Isso deixou Margrete
desconfortá vel.
— Bem, boa noite — disse a vidente, alto o su iciente para Bash e
Birdie ouvirem. O sorriso de Bash, mais do que qualquer coisa, estava
carregado de orgulho. Aparentemente, ganhar a aceitaçã o de Nerissa
era um grande feito.
— Ela gosta de você — declarou Bash na subida. — E os deuses
sabem que ela nã o oferece amizade a qualquer um.
Margrete sentia como se tivesse recebido um presente mais precioso
que ouro. Havia algo eté reo na mulher, algo que Margrete nã o
conseguia identi icar.
Quando chegaram ao quarto de Birdie, que icava a duas portas dos
aposentos que ela dividia com o rei, Margrete abraçou a irmã antes de
acomodá -la para dormir. O rei esperou pacientemente no corredor.
Normalmente, ele entrava e contava a Birdie alguma histó ria bizarra
sobre monstros marinhos, deuses ou outros mitos semelhantes, mas
nã o naquela noite.
Só depois que se aventuraram nos aposentos reais e a porta se
fechou atrá s deles foi que Margrete se virou para Bash.
— O que você nã o está me dizendo? — perguntou, indo direto ao
ponto. Ela entrelaçou os dedos entre os dedos gelados dele. Desde o
renascimento, sua pele nã o retinha o mesmo calor, mas ela estava tã o
agradecida por ele estar vivo que nã o se questionava mais a fundo
sobre essa mudança. Talvez ela devesse.
— Nã o tem nada errado, princesa. Eu juro.
— Você é um pé ssimo mentiroso. Está estranho desde que voltou da
reuniã o. Diga. Agora.
Era o su iciente.
Os olhos de Bash icaram frios, endurecendo nos cantos. Parecia que
sombras se enrolavam em torno de seu corpo, e lashes de aço
faiscaram em suas ı́ris. Margrete inadvertidamente estremeceu sob o
olhar desconhecido, enquanto sinos de alerta soavam em sua mente.
O comportamento de Bash tinha mudado com o aumento das
sombras, e, por um momento, ela poderia jurar que vislumbrou um
rosto magro em meio à s nuvens escurecidas. Mas, bastou uma
piscadela, e a né voa desapareceu.
— Por que nã o pode deixar isso para lá ? — perguntou Bash,
torcendo os lá bios. Mesmo que as sombras tivessem se dispersado, o
brilho estranho em seus olhos continuava nele.
Margrete deu um passo para trá s, sem saber quem estava diante
dela. Certamente nã o era o homem que tinha seu coraçã o.
Um mú sculo na mandı́bula de Bash se contraiu, e um frio pesado se
instalou na boca do estô mago dela. Em todo o tempo que estiveram
juntos, Margrete nunca tinha sido objeto de sua ira, daquela amargura
cortante. Era tã o pungente que ela podia sentir o gosto na ponta da
lı́ngua.
Bash se encolheu, parecendo perceber o que dissera. A maneira
cruel como proferira suas palavras. Seus lá bios se separaram como se
estivesse em estado de choque, e ele levou a mã o ao cabelo, passando-a
pelos cachos.
— Bash… — Ela deu um passo hesitante para frente. Algo estava fora
do prumo. Errado.
— Eu… eu sinto muito — murmurou ele antes de esfregar o rosto. —
Nã o sei por que disse isso. Eu nunca… — Seus olhos icaram vidrados, e
o medo nublou suas ı́ris. — Eu preciso ir.
Deuses, ele nã o conseguia nem olhar para ela, e baixou o olhar para
as pró prias botas. Vergonha e confusã o irradiavam do rei de Azantian
como um sol escaldante do meio-dia.
— Há muito o que fazer antes de partirmos e preciso ter certeza de
que estamos prontos. — Dando um passo instá vel na direçã o dela, Bash
gentilmente segurou sua mã o e deu um beijo casto nos dedos. —
Prometo que nã o voltarei muito tarde.
Ele deu um sorrisinho que ela sabia ser falso. Quando ele saiu em
direçã o a porta, seus instintos gritaram para ela estender a mã o e
segurá -lo, convencê -lo de que o que o atormentava poderia ser
resolvido.
Ele sofria de algo mais, alé m do medo dos monstros do mar.
— Bash! — gritou assim que a porta dos aposentos se fechou. Mas o
rei nã o voltou, e seus passos ecoaram alto no corredor adiante. Ela
amaldiçoou.
Escuridã o.
Margrete sentiu e provou a escuridã o que ondulava dele. Era podre,
suja e a lembrava de algué m que ela desejava esquecer ― seu pai.
Ele não é meu pai, repetiu em sua mente. Ele não é meu pai.
Bash tinha muito em seus ombros.
Isso era tudo. Certo?
Ou ela estava escolhendo ignorar os traços de magia que provava no
ar sempre que ele entrava em um cô modo? Como seus olhos se
transformaram, mudaram e se tornaram algo que pertencia a um
estranho?
Um vento salgado percorreu os corredores do palá cio, como se
percebesse sua ansiedade, e se enrolou em torno de seu corpo, fazendo
có cegas nos braços arrepiados.
— O que ele está escondendo? — murmurou para si mesma,
nervosamente enxugando as mã os suadas na calça. Em resposta, a brisa
fria soprou ao redor de sua bata de linho, os ventos frescos do mar
respondendo ao pedido tá cito de seu corpo. Instantaneamente, sua pele
esfriou. — Vou descobrir em breve.
Margrete estreitou os olhos rapidamente antes de enviar a brisa
persistente de volta à s á guas de onde vinha.

Quatro horas depois, bem na calma profunda da noite, Bash voltou


para o quarto. Margrete devia ter adormecido porque, quando abriu os
olhos, os resquı́cios de um sonho se agarraram à sua visã o.
Um grunhido suave soou quando uma bota caiu nas pedras polidas.
O sabor potente do medo que ela sentira nele antes saturava o ar. Bash
devia ter tropeçado de novo, pois a segunda bota caiu com outro baque
alto, seguido pelo barulho do cinto.
Margrete ingiu dormir. Ela teria suas respostas no dia seguinte, e
aquele momento nã o era hora de insistir. Ambos estavam mentalmente
exaustos.
Segundos depois, mã os geladas percorreram sua cintura, abraçando-
a enquanto a respiraçã o aquecia seu cabelo. O nariz dele acariciou seus
cachos, e ela ouviu seu nome sair de seus lá bios em um murmú rio.
Nã o demorou muito para o rei de Azantian cair no sono, roncando
baixinho em seus ouvidos. Margrete suspirou e, embora irritada com a
falta de transparê ncia dele, recostou-se no conforto de seu peito.
Talvez uma noite de sono decente limpasse a mente de ambos, e
Bash perceberia que ela era sua parceira. Algué m de quem nã o
precisava se esconder.
Margrete icou acordada na cama por mais uma hora. Sua mente
podia estar fraca com a exaustã o, mas a forte presença de um mau
pressentimento a manteve alerta.
Ela estava pensando em Darius e nos planos sinistros que ele traçara
para ela, quando o braço apoiado em sua cintura deu um puxã o
abrupto. Os dedos de Bash cravaram duramente em sua cintura, e ela se
encolheu.
— Bash? — chamou ela atrá s de si.
Sem resposta.
Ela se preparou para se virar, mas antes disso o peso do braço dele
desapareceu completamente. O colchã o se movimentou e Margrete viu
que Bash se levantara e tropeçava nas roupas descartadas pelo chã o.
Suas sobrancelhas arquearam, e ela agarrou os lençó is com força
entre os punhos enquanto o observava se vestir desajeitadamente.
— Bash? O que você está fazendo?
Ele nã o respondeu, apenas continuou en iando os pé s nas botas de
couro. Margrete abriu a boca para falar novamente com ele, mas a
fechou, balançando as pernas até o chã o e andando devagar até o
roupã o de seda.
O rei estava a meio caminho da porta quando ela o alcançou, um
chinelo já calçado enquanto tateava para calçar o outro pé .
— Que raios está fazendo? — sibilou ela novamente, correndo à
frente dele. Quando olhou em seus olhos, descobriu que estavam
vidrados; vı́treos e cegos.
Ele estava sonâ mbulo?
Birdie era sonâ mbula de vez em quando, mas sempre acabava na
cama de Margrete, monopolizando as cobertas e guardando um estoque
de guloseimas.
Algo dizia a Margrete que esse nã o era o caso.
Recuando, ela decidiu ver aonde a caminhada inconsciente os
levaria. Talvez ele revelasse mais a ela em seu sono.
Bash subiu os degraus para o andar principal do palá cio, felizmente
contornando a temida sala do trono que evitava desde a noite da visã o
de Darius.
Margrete correu atrá s de seu pirata enquanto ele aumentava o ritmo
implacá vel, os pé s o levando por um corredor que ela reconhecia muito
bem. Quando passaram por uma porta esmeralda vibrante emoldurada
em ouro antigo, o coraçã o de Margrete despencou.
Foi o lugar onde compartilharam um beijo sob fogos de artifı́cio cor
de lavanda e ameixa. Uma caverna abaixo do palá cio que brilhava com
á gua salgada e magia cintilante.
Bash estava indo para as profundezas da Caverna Adiria.
A porta que uma vez manteve cativas as nymeras perversas.
Uma porta que agora estava aberta.
eses antes, naquele lugar de escuridã o assombrosa e
luz luminosa, Bash e Margrete criaram uma magia pró pria. Ela
nunca esqueceria aquela noite, a lembrança dela residiria
sempre em sua alma.
Bash agora a conduzia de volta para a Caverna Adiria ―
poré m, desta vez, seus olhos estavam encobertos e sua faı́sca
habitual tinha diminuı́do. Eles nã o eram dois amantes fugindo
para as sombras, varridos em um momento de necessidade.
Nã o. Bash tinha sido conduzido até ali por alguma força
inexplicá vel, e Margrete pretendia descobrir o motivo.
Ela seguia com passos leves, a intuiçã o seu ú nico guia.
Deveria acordá -lo? Hesitou, lembrando o quã o perigoso poderia
ser despertar algué m em tal estado. Mas a verdade fria e dura
da questã o era que ela queria egoisticamente que ele expusesse
os segredos que escondia.
Ela deveria sentir vergonha disso, mas a necessidade de
respostas superava qualquer reprimenda que sua consciê ncia
lançasse sobre ela.
Bash nã o se atrapalhou ou perdeu o caminho pelas rochas
irregulares e penhascos. Ele só parou uma vez para acender
uma tocha na entrada, os dedos segurando a madeira bruta
com força. Tudo o que havia entre Margrete e uma escuridã o
profana era a tocha bruxuleante de Bash, as chamas escarlates e
cor de ferrugem lançando sombras misteriosas nas feiçõ es
vidradas do rei.
A mã o de Margrete percorria os planos irregulares da
caverna, sua respiraçã o se encurtando enquanto se
aproximavam da curva inal. Apressando-se para acompanhá -
lo, ela virou em um corredor e entreabriu a boca ao vislumbrar
Bash imó vel sob o á pice da caverna.
Gotas brilhavam como pequenas estrelas em uma noite
clara; as bordas a iadas e a rocha pontiaguda formavam um
desenho complexo de esplendor grosseiro. Embora fosse lindo,
Margrete sentia uma gravidade naquele lugar, e os muitos
misté rios incontá veis pressionavam seus ombros e pesavam
cada passo hesitante à frente.
Aquele lugar era muito mais do que o centro de Azantian.
Parecia… divino.
Sagrado.
E Margrete estava invadindo.
Abaixo do zê nite, o cé u noturno nebuloso iltrava, atravé s de
uma abertura estreita no centro, a lua tı́mida que fornecia
pouca ou nenhuma luz. Apenas a tocha de Bash lutava contra a
escuridã o, e mesmo ela nã o obtinha um bom resultado.
A ausê ncia de consciê ncia deu ao homem diante dela uma
qualidade desumana ― uma concha vazia decorada com feiçõ es
impassı́veis de beleza. Margrete arqueou uma sobrancelha,
esperando que ele izesse um movimento, que izesse qualquer
movimento. No entanto, ele permaneceu tã o in lexı́vel quanto
uma está tua.
Talvez ela devesse acabar com aquilo e acordá -lo.
No instante que ela se atreveu a dar um passo mais perto, o
rosto de Bash ganhou vida, assim como o restante da caverna.
Onde antes espirais cor de lavanda e doces tons de ameixa
cintilavam e faziam piruetas pela extensã o da rocha se estendeu
uma fumaça de prata escura e obsidiana que começou a se
enrolar no torso de Bash. Os raios trê mulos ricochetearam em
seu corpo, tornando sua fraca tocha inú til.
Margrete prendeu a respiraçã o, cravando as unhas nas
palmas das mã os enquanto o mundo girava em seu eixo. O
cheiro de magia das trevas lutuou para suas narinas,
avassalador e podre. Ele pousou na ponta de sua lı́ngua, e sua
garganta se apertou em resposta.
Cada nervo dela se eletrizou, e ela ansiava por se aproximar
de Bash e arrancá -lo do feitiço que o dominava. Mas ela vacilou
e congelou com a visã o das apariçõ es fantasmagó ricas
deslizando das rochas sob seus pé s. As apariçõ es espectrais
ziguezagueavam e se curvavam enquanto o acariciavam,
oscilando devagar enquanto subiam. Apariçõ es estranhamente
semelhantes à s de sua visã o. As que invadiram as laterais do
Phaedra e o consumiram inteiro.
Seus pulmõ es ansiavam por ar, e um calor abrasador lhe
queimou as entranhas. Algo nefasto estava em jogo, e mesmo
com o coraçã o de um deus dentro de si, Margrete hesitou.
Com o pulso acelerado, ela se atrapalhou, dando um passo
para trá s, mais para perto de onde a passagem estreita levava
ao palá cio. Um calor sufocante corria por suas veias, e ela sabia
que deveria ser a essê ncia de Malum despertando, em resposta
a blasfê mia que ocorria ali.
Instintivamente, sua mã o deslizou para o colar que Bash
havia lhe dado, a pedra azul-pú rpura que ele esculpira naquela
caverna. Geralmente ela trazia conforto, mas, naquele
momento, era gelo contra seus dedos. Ela tirou a mã o com um
assobio.
Com horror, viu os espectros girarem, e mais e mais sombras
prateadas deslizaram pelas rachaduras irregulares do chã o da
caverna, escalando as paredes e deixando alguns ios de fumaça
escaparem pela issura do zê nite.
— Logo — declarou uma voz que nã o era uma voz. Era um
sussurro de uma coisa, um assobio. Gutural e selvagem. Nã o
totalmente humano.
Nã o pertencia a Darius. Ela conhecia a voz dele tã o bem
quanto a dela.
O que quer que estivesse falando, continha o tipo de
escuridã o capaz de devorar e corroer almas.
— Logo estaremos juntos. — O som ecoou, arrepiando os
cabelos da nuca de Margrete. O cheiro de podridã o icou
inebriante, e ela sufocou uma tosse contra a palma da mã o.
Maldade.
O que quer que fosse, era pura maldade.
— Eu vou — Bash prometeu à entidade invisı́vel, sua voz
á spera. — Eu vou te encontrar.
Com quem exatamente ele estava falando?
Margrete se aproximou, prestes a correr para o lado dele e
que se danassem as consequê ncias, quando Bash deixou cair a
tocha e condenou o mundo a uma escuridã o devastadora.
— ash!
Algué m o chamava. Uma voz que tinha uma leve cadê ncia, uma que
ele reconheceu mesmo sob a né voa que o dominava. Uma voz que ele
reconheceria em qualquer lugar.
Margrete?
Sua visã o nublou, as sombras ondulando ao redor de sua vista. Ele
mal conseguia distinguir o gotejamento constante, e o cheiro de sal era
insuportá vel.
Que porra de lugar é esse?
Bash inclinou a cabeça e viu uma lasca de luz que se in iltrava de
cima, a lua destacando a rocha irregular.
A Caverna Adiria.
Bash ouviu chamarem seu nome mais uma vez. Ele entã o gritou o
nome de Margrete, um apelo em seus lá bios. Talvez aquilo fosse um
pesadelo, e ele logo acordaria no quarto deles, na cama, com ela
aconchegada ao peito.
— Bash! — A voz se aproximou. Antes que ele pudesse abrir a boca
para responder, o cheiro de lavanda o envolveu como uma onda
quebrando.
Braços inos se entrelaçaram ao redor de seu torso, agarrando-o com
força su iciente para machucar. Mas era ela, sua Margrete, nã o uma
apariçã o ou có pia espectral assombrando seus sonhos.
Bash envolveu um braço trê mulo em volta da cintura da amada,
usando-a como uma tá bua de salvaçã o, um apoio para aquele mundo.
Junto a ele, a respiraçã o de Margrete foi icando caó tica e irregular, e ele
ergueu a mã o para acariciar seu rosto. Uma gota de umidade tocou a
ponta de seu dedo indicador, e ele franziu a testa, seu coraçã o doendo.
Por que ela estava chorando?
— O que… o que aconteceu? — Ele examinou os arredores. — Por
que estamos aqui?
Depois do dia horrı́vel que teve, depois de fugir de Margrete, ele se
entregou a um copo de sua melhor bebida, bebendo sozinho em seu
escritó rio enquanto contemplava um futuro sombrio. Mas bebeu pouco,
menos de um copo cheio, e mesmo assim o restante de sua noite
permanecia assustadoramente em branco.
Mã os gentis roçaram suas bochechas, aquecendo a pele gelada.
A luz da lua espreitou atravé s do zê nite da caverna, iluminando o
medo que contorcia suas belas feiçõ es. O brilho o provocava,
mostrando-lhe uma verdade que ele nã o desejava ver.
— Você estava sonâ mbulo. E essas sombras — ela balançou a cabeça
— ou o que quer que fossem, falaram com você . Eu nã o sabia o que
fazer, se deveria te acordar ou nã o. Mas entã o você falou com uma voz
estranha, e eu congelei. Nã o iz nada.
Bash franziu a testa. Nada do que ela estava dizendo fazia sentido.
Outra lá grima deslizou sobre seu polegar. Margrete raramente chorava.
Isso só poderia signi icar que o que ela vira a assustara de verdade, a
ponto de minar sua determinaçã o de aço.
Ele percebeu a raiva que ela sentia acima da tristeza tangı́vel. Isso o
quebrou de uma maneira que ele nã o conhecia antes, porque ele tinha
causado aquelas lá grimas. Ele deslizou as mã os até os quadris de
Margrete, e a enlaçou no que esperava ser um abraço reconfortante.
Queria aliviar seu medo, mas nã o sabia como.
— Nã o me lembro de nada — admitiu com relutâ ncia quando o
silê ncio se tornou demais para suportar. — Você disse que eu estava
sonâ mbulo?
Isso nunca tinha acontecido com ele em toda a sua vida.
— Sim. Você pulou da cama e praticamente correu para cá . Quando
percebi que você nã o estava acordado, eu o segui. Estava preocupada
que pudesse fazer algo imprudente. — Ela soltou uma risada gutural
desprovida de todo humor. — Parece que eu tinha razã o de me
preocupar.
Bash costumava ir à Caverna Adiria quando desejava icar sozinho.
Era um dos poucos lugares no reino onde se sentia em paz. Mas por que
fora ali naquela noite? E por que sua pele se arrepiou e seu coraçã o
disparou como se ele tivesse acabado de entrar em uma batalha?
— Vamos sair daqui — disse ele rapidamente, segurando a mã o dela.
Talvez, uma vez livre daquele lugar sagrado, sua cabeça clarearia.
Ele notou a leve inclinaçã o da cabeça dela, embora os lá bios
permanecessem em uma linha apertada.
— Segure-se em mim — instruiu ele, começando a curta caminhada
de volta ao palá cio. Bash nã o precisava de uma tocha para encontrar o
caminho. Ele se escondia ali desde que aprendera a escapar de sua
governanta.
Margrete caminhava pela caverna estranhamente quieta, o ú nico
sinal de sua apreensã o era a umidade de suas palmas. Ainda assim, ela
nã o soltou a mã o dele em nenhum momento. A con iança dela foi
su iciente para acalmar seus pensamentos, embora o silê ncio o
preocupasse.
Se ele tinha aprendido alguma coisa sobre Margrete era que ela
falava livremente, mesmo em momentos de angú stia. Bash nã o quebrou
o silê ncio inquieto até que a luz do corredor brilhou contra a pele
caramelo de Margrete, que estava um tom mais pá lido.
— Vamos para o nosso quarto — Bash sugeriu solenemente,
dominando sua expressã o. Margrete continuou segurando a mã o dele,
mas ele a conhecia bem o su iciente para saber que sua mente estava
consumida pela excursã o da meia-noite e tudo o que ela poderia
signi icar.
Bash só voltou a falar novamente quando a porta do quarto se
fechou atrá s deles.
— Agora me conte. O que eu iz lá embaixo?
No fundo, ele nã o queria saber. Saber tornaria real.
Margrete acomodou-se na cama e colocou as mã os delicadamente no
colo. Vê -la tã o estranhamente cheia de nervosismo fez seu peito apertar
com a culpa.
Ele se sentou ao lado dela, e o colchã o afundou com o peso. Ela icou
tensa, mas ele diminuiu a distâ ncia, descansando a mã o em sua coxa,
ansioso para consertar o que a atormentava.
Bash deveria contar a ela sobre as vozes. As que o perseguiam nas
ú ltimas semanas. Era só abrir a boca para contar tudo e plantar mais
a liçõ es na cabeça de Margrete, já tã o cheia de preocupaçõ es. Precisava
contar o que deveria ter dito desde o inı́cio. Nã o era como se ele nã o
con iasse nela…
Nã o. Ele era um covarde.
Bash engoliu a frustraçã o, a vergonha e a exasperaçã o pungente
agitando-se caoticamente em seu peito e apoiou a cabeça no ombro
dela. O perfume inebriante de Margrete o atingiu como um soco na
barriga, e Bash inalou o doce aroma que cobria os ios de seu cabelo
sedoso. Ela estava em casa, em segurança. Ele tomou outra respiraçã o
profunda.
— Desculpe ter acordado você — inalmente sussurrou contra sua
orelha. Nã o era o que ela desejava ouvir, mas ele nã o conseguia
encontrar outras palavras. Ou, pelo menos, as palavras corretas. Talvez
nã o as conhecesse.
Margrete estremeceu com os arrepios que subiram como gotas de
chuva tocando seus braços. Precisou de mais alguns segundos antes de
relaxar ao lado dele. Passando o braço ao redor de seu torso, segurou a
camisa dele com irmeza.
Bash sorriu com severidade. Mesmo depois daquela noite, ele
sempre poderia contar com isso. Com eles. Nã o sabia ao certo o que
tinha feito para ganhar sua con iança inabalá vel, mas avidamente a
aceitava.
— Nã o entendo o que aconteceu lá embaixo, Margrete. De forma
alguma. — Essa era a verdade. Ele tinha uma imagem borrada da
escuridã o ondulada, uma igura dançando em meio ao prateado, mas,
fora isso, nada. — Mas tem uma coisa que eu preciso te contar…
As palavras estavam saindo, e seu coraçã o martelava tã o alto que ele
tinha certeza de que ela podia ouvir as batidas irregulares. Sua testa
icou coberta de suor e milhares de formigamentos de alarme
deslizavam por sua espinha.
— Eu… eu preciso te contar que… — A voz falhou, a con issã o presa
em sua garganta. Era isicamente doloroso expelir a verdade, e suas
mã os tremiam.
— O quê ? — pressionou ela.
Bash abriu e fechou a boca. Ele sentiu como se uma corda de aço
tivesse se enrolado em seu pescoço, impedindo que as palavras
escapassem. Por que nã o podia simplesmente contar a ela? Ela merecia
a verdade, e ele deveria ter tido coragem de contar semanas antes.
— Ei. Está tudo bem. — Margrete o acalmou, passando os dedos ao
longo da parte inferior de sua mandı́bula. Ele imediatamente fechou os
olhos com o contato e inclinou a cabeça na palma da mã o dela. — Nã o
vou a lugar nenhum — prometeu.
— Eu tenho tido… — Sua respiraçã o icou irregular, e ele sentiu o
corpo inteiro estremecer com força. Ele nã o conseguia contar. Nã o
naquele momento.
Margrete inclinou a cabeça para cima para que pudesse olhar
diretamente nos olhos dele. A preocupaçã o nublou seu olhar.
— Está tarde — inalmente disse, passando rapidamente o olhar
para suas mã os trê mulas. Ele tentou escondê -las, mas ela agarrou seus
pulsos e apertou. — Podemos conversar amanhã . Por enquanto, saiba
que estou feliz que você esteja seguro. També m espero que saiba que
nada do que me disser poderia me assustar. E nã o tem escuridã o que
possa arruinar o que temos. — Ela esfregou o nariz contra o dele
docemente.
Bash assentiu, e a corda ao redor de seu pescoço afrouxou. Ele se
concentrou na sensaçã o irme dos dedos de Margrete, e em como a
presença dela acalmava seu coraçã o. Era fá cil perder-se naquela mulher
e, para ele, cair nas profundezas dela era inevitá vel.
Lentamente, muito lentamente, ele uniu seus lá bios aos dela,
agradecendo a compreensã o da ú nica maneira que era isicamente
capaz.
Sob o feitiço do toque suave, faı́scas brilharam por trá s de suas
pá lpebras fechadas, e logo o pesadelo do tempo perdido sob o palá cio
deu lugar a uma realidade mais bonita do que qualquer sonho.
Sim. Ele poderia enfrentar seus demô nios com o nascer do sol.
Margrete retribuiu o beijo, que começou suave e cauteloso, mas,
quando ela mordiscou suavemente o lá bio inferior dele, o calor
aumentou em seu peito. Sem aviso, ele a pegou nos braços e a
posicionou mais acima na cama.
Aquilo era real. Ela era real. E era possivelmente a ú nica coisa que o
mantinha preso à quele plano de existê ncia. Com ela, as vozes
silenciavam.
— Fique comigo — implorou ela, como se soubesse para onde seus
pensamentos tinham ido. — Concentre-se apenas em mim. Nada mais.
Os olhos dela estavam encobertos, e seu peito subia e descia
rapidamente enquanto ele pairava acima dela, os mú sculos se
esforçando para se manter na posiçã o. Ele podia ver o ponto de
pulsaçã o em sua garganta vibrar, e nã o queria nada mais do que beijar o
local, afundar os dentes em sua pele e saboreá -la.
Bash capturou seus olhos. Ele reconheceu a necessidade em seu
olhar ― combinava com a dele.
— Como posso ter tanta sorte? — re letiu, tirando com calma o robe
dela. Ele deslizou o tecido por um ombro de cada vez, o vislumbre da
pele nua provocando-o. Seus dedos calejados eram á speros contra a
suavidade daquela pele, mas ela arqueou com seu toque. Os lá bios dela
se separaram quando ele desfez o nó do cinto e permitiu que o resto da
seda se abrisse, exibindo seu corpo plenamente. — A cada dia ico mais
enfeitiçado por você .
Ele deslizou as mã os pelos braços dela, deleitando-se com a visã o
dos arrepios que deixava em seu rastro. Entã o moveu as mã os para
cima e para baixo até acariciar as laterais dos seios fartos, a cintura, os
quadris. Aquelas curvas seriam o im dele.
— Duvido que eu algum dia me farte disso — disse, espalmando um
seio. Os olhos dela tremeram quando ele rolou o botã o pontiagudo
entre o polegar e o indicador. — Você é tã o linda que chega a doer.
— Bancando o sentimental comigo, pirata? — perguntou, embora ele
tenha notado a umidade cobrindo suas pá lpebras inferiores.
Ele sorriu.
— Só por você , princesa.
Rastejando por seu corpo, Bash en ileirou beijos vagarosos ao longo
de suas coxas, beliscando suavemente. Ela estremeceu, movendo as
mã os para agarrar seus bı́ceps, tentando puxá -lo mais para cima. Ele
resistiu.
— Você está me provocando — sussurrou ela enquanto ele beijava
cada osso do quadril. Ele descobrira que aquele era um de seus pontos
mais sensı́veis.
— Eu nunca faria isso — murmurou ele contra sua pele quente.
Erguendo a cabeça, encontrou os olhos dela, do mais profundo tom de
azul. O desejo queimou brilhante, e Bash perdeu o pouco controle que
possuı́a. Ele levou as mã os ao decote de sua delicada combinaçã o e
rasgou o tecido frá gil ao meio com um barulho que a encheu de
satisfaçã o.
Um pequeno suspiro escapou dos lá bios dela, e a besta dentro dele
se mexeu com a sensualidade do som.
— Essa era a minha favorita — murmurou ela.
O sorriso sensual o destruiu completamente.
Bash jogou os restos para o lado da cama.
— Vou te comprar uma nova. Comprarei para você dezenas delas. —
Ele lhe daria qualquer coisa que ela pedisse.
— Se continuar rasgando todas desse jeito, terá que fazer isso
mesmo. — Ela sorriu, seu peito nu arfando. — Agora, por favor, termine
o que começou, rei.
— Deuses, eu adoro quando você é exigente.
Ele baixou a cabeça e tomou um mamilo entre os lá bios, chupando o
broto pontiagudo antes de afundar os dentes na carne macia. A
pequena dor provocou outro gemido gutural, mú sica para os ouvidos de
Bash.
Diante dele estava uma rainha, uma deusa. E ele planejava adorá -la
até que esquecesse tudo, menos ela e os doces sons que fazia só para
ele.
— Eu quero você , Margrete — murmurou ele na concha de seu
ouvido. Ele precisava ouvir o mesmo antes de continuar. Aquela noite
tinha sido alarmante para ambos, e ele nã o aceitaria o que ela nã o
desejasse dar. Rezou para que ela precisasse dele tanto quanto ele
precisava.
— Sou sua — respondeu ela, arqueando os quadris contra sua
crescente dureza. — Aconteça o que acontecer.
Ele segurou seu olhar, lendo as palavras que ela nã o falara. A
promessa que izera. Bash esperava que ela nã o se arrependesse de
icar ao lado dele.
— Eu nã o mereço você — disse ele, bebendo na adoraçã o, a
completa e absoluta con iança brilhando em suas ı́ris.
— Nã o — argumentou ela, suas feiçõ es icando duras. — Nunca diga
isso. Você é tudo que nunca pensei que teria, e nã o passa um segundo
em que eu nã o queira você . Você inteiro. Ningué m nunca me viu como
você . Você me encoraja a ser mais forte do que eu jamais pensei ser
possı́vel.
Só porque ele queria que ela se visse do jeito que ele a via. Ela era
magnı́ ica.
Bash soltou um xingamento de alı́vio e se levantou para arrancar as
botas e roupas antes de retornar à sereia que cantava em seu coraçã o.
Levantando-se sobre os cotovelos, com cuidado para nã o esmagá -la sob
seu peso, Bash beijou seus lá bios carnudos. Ela tinha gosto de verã o,
á guas abertas e algo divino e inominá vel ― algo que era inteiramente
dela.
Margrete o agarrou pela nuca e entrelaçou os dedos nos cabelos
dele, puxando levemente as mechas. Ela nã o precisava ser suave ou
insegura com ele, e avidamente pegou o que queria.
Bash gemeu em sua boca, seus beijos se tornando ferozes. Ele
deslizou a mã o para o á pice das coxas dela e retumbou de aprovaçã o
com o que encontrou.
Ela estava molhada, pronta para ele, e Bash deixou de lado suas
sombras, suas dú vidas, seus medos.
E entã o, soltou o controle da besta.
— Primeiro, você vai gozar em meus dedos — comandou ainda entre
seus lá bios, saboreando a forma como o corpo dela estremeceu com a
demanda. — Depois vai gozar quando eu estiver dentro de você . Eu
quero sentir quando se despedaçar por mim tã o docemente.
— Sim — murmurou ela, agarrando seu pulso, silenciosamente
incitando-o a acelerar os movimentos. — Nã o pare.
Brincando com ela, ele aproveitou o tempo, levando-a para perto do
ê xtase e desacelerando, sabendo muito bem como aquilo a torturava.
— Bash — protestou, erguendo os quadris para retomar o contato.
Ele tinha afastado os dedos por um tempo. — Nã o me provoque. Por
favor.
Ele adorava quando ela implorava. Quando ela pedia para que ele a
enchesse.
Como o cavalheiro que era, ele acelerou o ritmo, esfregando o ponto
mais sensı́vel até os lá bios dela se abrirem em gemidos suaves que
preencheram o quarto. Pouco antes de ela encontrar seu prazer, ele
mergulhou dois dedos dentro dela, fazendo-a ofegar, seus olhos quase
rolando para a parte de trá s da cabeça. Ela estava tã o perto, e ele a
manejava com facilidade, sem nunca desviar a atençã o de seu rosto. Ele
se inclinou para envolver os lá bios em torno de um mamilo pontudo,
mordendo, ao mesmo tempo em que acrescentou um terceiro dedo.
Esse foi o estı́mulo inal de que ela precisava.
Suas pernas tremeram violentamente, o corpo inteiro icou tenso e a
respiraçã o falhou. Ele levantou a cabeça no exato momento em que ela
gritou o nome dele.
Vê -la desmoronar era sua coisa favorita no mundo.
Seu peito subia e descia freneticamente, e entã o ela apertou os dedos
dele com um grito sufocado. Ele continuou a entrar e sair dela,
extraindo cada grama de prazer de seu corpo saciado, sem parar até ela
relaxar, totalmente exausta.
— Eu poderia ver você gozar a noite toda — confessou ele, dando
um beijo no canto de sua boca. Bash levou os dedos aos lá bios e os
chupou. A respiraçã o dela acelerou vendo-o lambê -los completamente.
— Você tem gosto de cé u. Como o pró prio pecado. Você tem gosto de
ser minha — sussurrou, sentindo a doçura saborosa dela em sua lı́ngua.
Ele poderia se afogar naquela essê ncia e morrer como um homem feliz.
Talvez ele morresse.
Antes que ela se recuperasse totalmente, Bash afastou suas coxas e
se inclinou, passando a lı́ngua em seu nú cleo molhado. O gosto dela
explodiu em sua lı́ngua, e quando ele murmurou sua aprovaçã o, outro
som sem fô lego deixou os lá bios dela.
Ele rodou a lı́ngua em torno do centro latejante antes de chupá -lo. E
sorriu quando as mã os dela voaram para seu cabelo, puxando os ios
com força. Ela conduziu o rosto dele, ofegante, desesperada, assumindo
o controle. Bash deixou que ela o izesse.
— Bash, eu preciso de você dentro de mim — sussurrou, puxando o
cabelo dele. — Agora.
O puro comando em seu tom o fez desacelerar. Ele passou a lı́ngua
por ela mais uma vez antes de levantá -la e prendê -la entre os braços.
— Nã o terminei ainda, princesa — disse, estalando a lı́ngua. — Você
interrompeu minha diversã o.
Ela soltou um palavrã o, engolindo em seco. Bash rastreou o
movimento, voando com os lá bios para o oco de sua garganta antes de
beijar o caminho até a mandı́bula.
— Você sabe exatamente o que eu quero — respondeu ela, as unhas
cavando na pele dele.
Ele soltou um xingamento suave quando o mundo se inclinou e se
moveu. Margrete o virara de costas em um piscar de olhos. Humm, ele
gostou dessa reviravolta.
Ela sorriu acima dele enquanto montava em seus quadris, um
sorriso vitorioso enfeitando seus lá bios inchados.
Para algué m tã o pequena, ela tinha muita força. Isso o fez querê -la
ainda mais.
— Eu sei o quanto você adora quando uma mulher te bate na bunda
— brincou, levando sua boca cheia de provocaçã o para perto da dele.
Antes que ele pudesse saboreá -la, ela recuou, um sorriso tı́mido
torcendo seus lá bios.
— Sua coisinha má — murmurou ele.
Margrete gritou quando Bash se levantou e agarrou sua nuca. Seus
lá bios colidiram com os dela com força quase brutal, e ela o beijou
como se fosse uma partida a ser vencida. Uma luta que ela venceu
facilmente no segundo em que alcançou atrá s dela e tocou com os
dedos seu comprimento, traçando para cima e para baixo sua dureza.
Ele se desfaria apenas com o toque dela, mas Bash tinha outros planos
para aquela noite.
— Tã o cruel, princesa. Especialmente porque sonhei em estar dentro
de você o dia todo. Imaginei seu calor viciante em volta de mim. — Os
dedos de Margrete se curvaram com as palavras. — Os doces sons que
faz para mim quando goza no meu pau.
Ele viu como ela engoliu em seco, seu lá bio inferior tremendo.
Sem mais jogos.
Em um movimento luido, ele a segurou pelos quadris e a jogou de
costas. Ela soltou o ar, em uma mistura de gemido e suspiro enquanto
saltava na cama.
— Muito melhor — sussurrou ele, o tom rouco de sua voz
pertencendo ao selvagem em quem ela o transformara. Bash se
posicionou em sua entrada, esfregando para cima e para baixo seu calor
escorregadio.
— Diga-me, Margrete… — Seus lá bios percorreram a curva de sua
mandı́bula, torturando-a ainda mais. — Como você me quer? — Ele se
pressionou contra o feixe de nervos entre suas coxas, apreciando a
forma como seus cı́lios vibraram com o contato. — Você prefere minha
lı́ngua? Meu pau? Eu poderia fazer você gozar na varanda de novo. Ou
talvez…
— Eu juro, eu vou te matar se você nã o se mexer — ameaçou ela,
suas bochechas deliciosamente coradas e vermelhas. Ela o queria
naquele momento, e Bash odiava desapontar sua princesa.
— Segure-se — avisou ele, pouco antes de empurrar dentro dela de
uma vez. Ambos gemeram, as unhas de Margrete já cravando
dolorosamente em suas costas. Uma dor que ele ansiava mais do que
qualquer carı́cia terna.
Deuses, eles se encaixam tã o perfeitamente.
Bash passou a se mover com vigor, cada impulso deslizando
Margrete mais para cima na cama. Ele queria fodê -la até que ela
esquecesse que tudo o mais existia. Até que ela soubesse apenas o
nome dele.
Sua boca encontrou o seio, e ele rodou a lı́ngua ao redor do botã o
rosado, dando-lhe um beliscã o suave. Ele se afastou, e ela soltou um
gemido de protesto, o som se transformando em um suspiro chocado
quando ele a virou de bruços e passou o braço ao redor de sua cintura
como uma faixa de aço. Levantando-a de joelhos, ele a beijou ao longo
da espinha, a mã o gentilmente envolvendo seu pescoço.
Ele nã o lhe deu nenhum aviso quando a penetrou. Um grito
pecaminoso encheu o quarto, e ela agarrou os lençó is enquanto cantava
o nome dele repetidamente como uma oraçã o profana.
— Que sensaçã o incrı́vel. — Ele se pressionou contra as costas dela,
o braço que a sustentava apertando os joelhos dela, que tremeram. —
Mas você tem um gosto ainda melhor.
Ele estava viciado, e ansiava por senti-la gozar em sua lı́ngua.
Margrete choramingou com suas palavras, empurrando os quadris
para trá s para icar ainda mais perto de suas investidas.
— Se você for bonzinho, vou permitir que experimente mais tarde.
— Acho que estou sendo bonzinho agora — ofegou ele, estocando
enquanto ela perseguia sua liberaçã o. Podia senti-la se apertando em
torno de seu pê nis, suas paredes o agarrando impiedosamente. —
Agora me mostre como estou sendo bonzinho, princesa. Goze para mim.
Bash amaldiçoou quando o corpo inteiro de Margrete icou tenso, e
entã o ela pulsou ao redor dele. Ela gritou o nome dele quando gozou, e
Bash segurou seu corpo trê mulo no ar, entrando nela impiedosamente
enquanto encontrava seu pró prio prazer.
Pelos deuses, se ele pudesse icar dentro dela pelo resto da vida,
icaria feliz em fazê -lo.
Minutos se passaram enquanto ele se recuperava das consequê ncias
de sua libertaçã o, seus lá bios constantemente procurando sua pele,
dando beijos ao longo de suas costas, sua garganta. Quando ele
inalmente recuperou o fô lego, saiu do calor de Margrete e puxou seu
corpo saciado contra seu peito, descansando uma mã o em suas costas.
Bash levantou um cacho perdido de seu rosto e o colocou atrá s da
orelha.
— Você roubou meu coraçã o escurecido, princesa.
Provavelmente també m tinha roubado sua alma.
— Ele estava destinado a ser meu, pirata — disse ela, uma mã o
envolvendo seus bı́ceps, segurando-o naquele plano. Impedindo-o de
lutuar para longe.
— Minha pequena ladra. — Ele beijou a ponta do nariz dela,
saboreando a forma como ela derretia ao seu toque. Se ela soubesse o
quã o profundamente o afetava. Ele se perguntou se a percepçã o a
assustaria. Ele rezou para todos os deuses para que ela se sentisse tã o
desesperada quanto ele.
— Bash? — Sua voz saiu suave, hesitante.
— Sim, princesa?
— Prometa que nunca vai mentir para mim.
Depois do que tinham acabado de compartilhar, a pergunta o pegou
desprevenido.
Bash nã o disse a verdade a ela por semanas. Como poderia explicar
os eventos daquela noite quando nem ele mesmo sabia as respostas?
Quando tentara dizer a ela, nada saı́ra. No entanto, sabia que teria que
tentar. Por ela, ele superaria seus medos e aceitaria qualquer teste que
ela izesse. Ele tinha fé neles, nela.
Ele deu um beijo mais leve em seus lá bios.
— Amanhã . Nó s falaremos sobre tudo amanhã — prometeu ele,
traçando o polegar ao longo de sua mandı́bula, saboreando a sensaçã o
dela contra ele.
Sim. Os demô nios de um dia poderiam ser enfrentados no seguinte.
Naquela noite, ele tinha um anjo em seus braços.
argrete fez as malas bem antes do amanhecer, enquanto Bash ainda dormia. Ela
estava ansiosa para partir para o mundo humano, pronta para caçar as feras e matá -las antes que
matassem mais inocentes.
Ela esperava que a viagem a distraı́sse. De Darius, sim. Mas també m
de Bash e todos os segredos que ela sabia que ele guardava em seu
peito.
Abrindo as fechaduras de seu baú , Margrete olhou para o rei de
Azantian. Seu pirata parecia tã o inocente, assim, dormindo. Na noite
anterior, ela tinha planejado interrogá -lo para obter respostas, mas a
sú plica em seus olhos assombrados deteve sua lı́ngua. Ela nunca o tinha
visto tã o perdido, com tanto medo, e ele precisava dela, assim como ela
precisava dele. A intimidade foi um remé dio rá pido para a situaçã o, mas
nã o uma cura.
Como se sentisse que ela o observava, Bash se mexeu na cama e
abriu os olhos, meio irritado.
— Bom dia, princesa — cumprimentou ela, forçando uma nota de
brincadeira em seu tom, esperando aliviar o clima.
Bash gemeu, afastando as cobertas de seu corpo e revelando o
abdô men musculoso que ondulava com cada movimento.
— Bom dia — respondeu ele, a garganta arranhando de sono.
Os olhos de Margrete se deliciaram com aquela pele bronzeada,
fazendo um rubor rosado subir por suas bochechas conforme ela
baixava ainda mais o olhar. E mais ainda.
Ela o amaldiçoou.
— E a primeira vez na vida que nã o estou ansioso para zarpar logo
— disse ele, alheio ao escrutı́nio persistente dela. — Nã o consigo me
livrar da sensaçã o de que haverá um desastre e de que tudo se
destruirá . — Ele riu, embora a risada frá gil estivesse longe de ser
sincera. Ele pegou roupas limpas da cô moda e vestiu a calça. Margrete
inclinou a cabeça enquanto observava seus movimentos rı́gidos.
Antes que ele pudesse começar a abotoar a camisa verde- loresta,
ela se levantou da cama.
— Posso? — disse ela, afastando as mã os dele.
Em silê ncio, ela foi fechando os botõ es de pé rola enquanto ele,
quieto e com o olhar vidrado, observava seus dedos trabalharem.
Margrete terminou o ú ltimo botã o e segurou o queixo com barba por
fazer do rei.
Ela o estava perdendo.
— Pensei que tinha dito para você icar comigo — ela o lembrou. —
Se for se perder, se perca comigo.
Um mú sculo na mandı́bula de Bash estremeceu.
— Sobre a noite passada… — começou ele, dando um passo para trá s
e esfregando o rosto com a mã o. — Nã o me lembro de muita coisa. Há
vá rios pontos em branco. A ú ltima coisa que me lembro é de tomar uma
bebida e desmaiar na minha mesa.
Margrete balançou a cabeça. O nó em sua garganta cresceu.
— Você estava na Caverna Adiria, cercado por sombras. Apariçõ es.
Você icou no centro e falou com uma voz sem rosto. Prometeu que
estariam juntos em breve.
Bash deu-lhe as costas, e ela se eriçou. Ele nã o podia fugir dela.
— Você nã o era você mesmo, Bash. Faz semanas que está estranho
— continuou, implacá vel.
Por que ele insistia em excluı́-la?
— Eu… eu ando muito ocupado lidando com o conselho, e talvez
esteja trabalhando demais. — Os mú sculos de seu pescoço se
retesaram. — Os deuses sabem que nã o tenho dormido muito
ultimamente. Deve ser isso. Talvez o curandeiro do palá cio possa me
preparar um tô nico. Nã o sei o que mais pode ser.
Mais parecia que ele estava tentando se convencer.
— Nó s dois sabemos que nã o é isso.
O olhar de Bash desviou para as ondas alé m da varanda aberta, e o
silê ncio que se seguiu tornou-se doloroso. Ainda assim, ela nã o deixaria
passar.
Margrete sentiu um cheiro de queimado no ar. Ela inalou a brisa e
quase engasgou com o odor, que comparou a lores queimando. Nã o
sabia se aquilo era um aviso ou um pressá gio, mas continuou
pressionando.
— Bash — disse, suavizando a voz. — Me conte o que está
acontecendo.
O cheiro estranho tornou-se pungente.
De initivamente um aviso.
— Eu nã o sou feita de vidro, e posso lidar com o que você jogar no
meu colo — falou, assim que Bash olhou para ela. — Você prometeu
que faları́amos sobre tudo hoje, que você nã o se esconderia mais.
As ı́ris escuras de Bash se expandiram, crescendo até que o branco
de seus olhos fosse apenas uma lasca. Ela estremeceu. O olhar dele nã o
parecia… humano.
Bash se aproximou.
— As vezes, acho que você só está aqui porque tem o poder de
Malum dentro de si. Que sente alguma obrigaçã o de proteger o meu
povo. — Seus olhos estavam inteiramente escurecidos. — Você icaria
se pudesse escolher? Eu seria sua escolha? Ou já se cansou de bancar a
rainha?
Suas palavras lhe roubaram o ar. Ela nã o conseguia se concentrar na
visã o arrepiante dos olhos dele, apenas na acusaçã o cortante.
— Nã o se atreva a voltar atrá s — ralhou ela, o tom de voz pouco
acima de um sussurro. — Nã o me afaste só porque está acostumado a
fazer as coisas sozinho. Saiba que eu vejo atravé s de sua atuaçã o.
Uma sombra arrebatadora invadiu o quarto, e o sol da manhã sumiu
enquanto nuvens de tempestade se formavam no cé u. Toda a sua
frustraçã o estava direcionada a Bash, que voltou a atençã o para a
varanda, seu olhar sobrenatural se alargando enquanto ele observava
as nuvens que se aproximavam.
Foi medo que ela vislumbrou? Ou alguma outra coisa?
A cada passo que Margrete dava, trovõ es retumbavam no palá cio e
trê s relâ mpagos irregulares atingiram as á guas agora turbulentas.
Bash olhou para Margrete, que estava a poucos metros de distâ ncia.
Um raio abrasador de eletricidade efervescente caiu nas proximidades,
iluminando os planos a iados de seu rosto.
Ela talvez tenha ouvido o mais leve sussurro de um silvo antes de
suas ı́ris voltarem ao normal, perdendo a apatia estranha que as
envolvia segundos antes. Bash piscou rapidamente, o rosto se
contorcendo em incertezas.
Só poderia haver uma explicaçã o para o que tinha acabado de
acontecer. Ela sentiu o cheiro de magia das trevas na noite anterior, e
reconheceria seu fedor em qualquer lugar.
— Eu… — Ele examinou o quarto como se procurasse algo, o vinco
entre as sobrancelhas se aprofundando. O choque confundia suas belas
feiçõ es quando ele se virou para ela. — O que eu acabei de dizer?
Deuses, eu… eu nã o penso nada disso.
— Talvez pense, secretamente.
Bash passou a mã o pelo cabelo e agarrou a nuca.
— Eu estava tentando te afastar. A ú nica coisa que prometi a mim
mesmo que nã o faria. — Ele ofegava, o peito subindo e descendo
rapidamente. Entã o passou a mã o trê mula pelo rosto. — A verdade é
que estou ouvindo vozes há semanas. Ouço coisas que nã o existem.
Uma voz me incitando a fazer coisas indescritı́veis. Coisas como
assassinato. Sinto que algo horrı́vel está crescendo dentro de mim, e
está custando tudo de mim mantê -lo sob controle.
— Você tem ouvido vozes? — perguntou ela, sua irritaçã o
diminuindo.
Ele pensou que soaria desequilibrado, mas ela estava vendo coisas.
Visõ es.
Deuses.
Morte.
— Sim. Tenho ouvido vozes. Uma delas mais que as outras. Eu nã o
queria te contar, pois sei que você tem seus pró prios problemas para
lidar. — Ele lançou um olhar aguçado para ela. — Nã o pense que nã o
notei você acordando todas as noites coberta de suor. Ou que nã o vi
como seus olhos à s vezes icam vidrados no meio de uma conversa. Eu
nã o queria te pressionar, mas sei que você anda tendo visõ es. Sei disso
porque convivo há anos com Nerissa e sei como acontece. E você nã o
con iou em mim nem uma vez. Nem uma vez con iou em mim.
O calor em sua barriga diminuiu para um fervilhar.
Oh, deuses, ela era uma hipó crita.
Ela nã o tinha contado a ele sobre suas visõ es. Bash nã o era seu pai,
nã o era cruel e sem coraçã o. Ele nã o as teria visto como uma fraqueza
ou como alguma doença que a maculava. A percepçã o a atingiu como
um raio e, de repente, ela deu um passo para trá s.
Ela já deveria saber, seu passado tinha voltado para assombrá -la.
As ondas cessaram seu frenesi e as nuvens de tempestade
lentamente se dissiparam para revelar trechos de cé u azul. Em vez da
brisa enfumaçada obstruindo seus sentidos, o ar fresco lutuou pelo
cô modo, acariciando suas bochechas aquecidas.
O feitiço jogado em seu rei, seja ele qual fosse, tinha ido embora.
Aquele era Bash. Seu amigo, seu amor, sua casa, e ele tinha lutado
tanto quanto ela. Ambos lutaram para entender as consequê ncias do
ataque a Azantian. Ambos estavam tentando lidar da melhor maneira
que podiam, e ambos estavam acostumados a lidar com os problemas
sozinhos.
Era hora de mudar isso.
— Nã o deverı́amos esconder tanta coisa um do outro — ela
inalmente disse. Margrete agarrou a mã o dele com força e enlaçou os
dedos nos dele, com irmeza. — Nã o sabia que você tinha percebido
que eu estava tendo visõ es. Nã o que seja uma desculpa. Eu deveria ter
contado, mas nã o queria que se preocupasse.
Bash apertou os olhos brevemente e balançou a cabeça.
— E eu nã o queria que você se preocupasse com as vozes que tenho
ouvido. As sombras que me seguem, acordado e em meus sonhos. E
difı́cil falar com algué m sobre isso, até mesmo com você . Especialmente
com você . Nem mesmo Adrian me conhece completamente, e ele é o
mais pró ximo que tenho de um irmã o. Nã o posso prometer mudar da
noite para o dia, mas estou tentando. Tudo isso é novo para mim. Foi
instintivo tentar te afastar, mas só quero que você ique segura. A salvo
de mim.
Bash deu um suspiro, e a derrota que ela viu a fez se perguntar se
tinha imaginado os sinais reveladores de magia das trevas o tempo
todo.
Ela sabia que nã o.
— Bom, chega disso. Sei que nó s dois tivemos… criaçõ es incomuns, e
con iar em outra pessoa nã o é fá cil para nó s. Mas acabamos com isso
aqui e agora. E assim que matarmos as crianças do mar, descobriremos
o que está acontecendo com você . — Ele nã o estaria sozinho em sua
luta. — Mas sem mais segredos. Nã o podemos mais nos esconder. Nã o
se quisermos prosperar juntos.
Bash usou a mã o livre para agarrar o queixo dela, forçando-a a
encontrar seus olhos. Ela estremeceu sob a intensidade deles, com
medo de que, se olhasse muito de perto, o transformassem em um
estranho. Novamente.
— Sinto muito. De verdade. Nã o apenas por manter as vozes em
segredo, mas pelas palavras duras que acabei de falar. Aquela escuridã o
de que te falei? Ela vem e me toma, e me assusta pra caramba. — Sua
cabeça baixou de vergonha. — E, com toda honestidade, uma parte de
mim imaginou que você gostaria de icar longe assim que descobrisse a
verdade. Eu nã o quero te machucar. Nunca. E a última coisa que quero,
mas estou com medo, Margrete. Estou com medo de verdade de estar
perdendo o controle da realidade.
Margrete balançou a cabeça com fú ria, disposta a fazer com que ele
entendesse.
— Nã o permitirei que o homem que amo seja tirado de mim. — Todo
o corpo dele icou rı́gido. — Eu te amo, nã o porque é um rei poderoso
ou porque acha que estou presa aqui. E por causa de como faz meu
sangue ferver ao mesmo tempo que quero te beijar. Sei que, aconteça o
que acontecer, você sempre estará ao meu lado. Meu amor. Meu amigo e
aliado mais pró ximo. A casa que nunca pensei que encontraria. — Ela
tirou a mã o dele do queixo dela. — Seu homem insuportá vel. Você é
realmente um tolo…
Os lá bios de Bash a silenciaram, e suas mã os se entrelaçaram no
cabelo dela e agarraram os ios. Ele a beijou com uma combinaçã o
mortal de alı́vio e desespero.
Quando ele se afastou, deixando-a sem fô lego, ela notou as pequenas
explosõ es de prata brilhando em seus olhos mais uma vez.
— Você me ama? — perguntou ele, como se precisasse. Sua voz
estava crua, hesitante e mais temerosa do que quando ele contou das
vozes. Eles nunca tinham trocado essas palavras, mas ela achava que ele
sabia.
Suas bochechas coraram, e os cantos de seus lá bios se ergueram.
— Nã o vou repetir.
O peso do momento anterior desapareceu, varrido pela mesma brisa
antinatural que comandava os cé us.
— Eu també m te amo, princesa. E vou dizer isso quantas vezes eu
quiser.
Ele a beijou novamente com um sorriso tı́mido nos lá bios enquanto
roubava sua respiraçã o, sua alma. A briga deles nã o parecia mais
signi icativa. Nã o quando a declaraçã o trouxera novo ar aos seus
pulmõ es.
— Diga que você me perdoa — pediu ele, afastando-se para olhar em
seus olhos. Foi-se o sorriso, a alegria exultante, substituı́da pelo mesmo
medo que ela tinha visto antes, a mesma vulnerabilidade que ele nunca
mostraria a mais ningué m.
Somente a ela.
— Eu perdoo suas palavras. Mas você nã o é mais o rei solitá rio que
se isola e afasta todo mundo, e eu certamente nã o sou a mesma mulher
que chegou nestas praias. — Ela segurou sua bochecha, e ele
imediatamente inclinou a cabeça em sua palma, fechando os olhos. — A
partir de agora, avançamos como um só .
— E uma negociaçã o difı́cil, mas eu aceito.
— Juntos — a irmou ela, a esperança lorescendo.
— Juntos — ecoou ele.
O peito dela se apertou quando o calor divino de um deus se
espalhou por suas entranhas. Este poder latejava e pulsava, cada
centı́metro de seu corpo zumbindo. Margrete nã o pô de deixar de sentir
o aviso enquanto segurava Bash, a essê ncia de Malum parecendo recuar
ao toque dele.
Mas ela empurrou seus instintos de lado e o abraçou, contente em
ignorar a ameaça que ela sentia no ar.
A ameaça que era o rei de Azantian e a magia das trevas que o havia
envolvido.
ma escuridã o vivia no fundo da alma de Bash.
Escuridã o que ele passou toda a vida tentando esconder. Nã o
tinha sido tã o difı́cil sufocá -la antes, mas agora ele sentia que
ela queria subir à superfı́cie, implorando libertaçã o.
E ele sabia que, um dia, em breve, nã o conseguiria mais
contê -la.
Naquela manhã , uma mortalha de escuridã o o invadira. Ele
se sentiu como se fosse outra pessoa, e que ele observava esse
estranho de cima, incapaz de fazer qualquer coisa alé m de
gritar internamente enquanto ele proferia palavras insensı́veis
para Margrete.
Ele nã o era aquele homem, e se recusava a ceder a quaisquer
forças sobrenaturais que o assombravam. Bash tinha que ser
mais forte.
Seu coraçã o disparou quando Margrete, diante do Phaedra,
acenou. Os longos cachos castanhos chicoteavam suas
bochechas, rosadas pelo vento forte, os olhos brilhando de
ansiedade. No entanto, foi aquele sorriso torto dela que o
quebrou e o emocionou.
Ela era a criatura mais impressionante que ele já tinha visto.
Bay se aproximou dela, como sempre fazia, um sorriso
tı́mido brincando em seus lá bios. Ningué m adivinharia, só de
olhá -lo, que ele poderia derrubar um homem no chã o em um
piscar de olhos. Muitos pensariam que ele estava apenas
conversando com uma amiga, mas Bash notou como seus olhos
examinavam as docas, a tripulaçã o agitada, o horizonte,
silenciosamente procurando qualquer sinal de perigo. Sempre o
protetor.
— Você nã o deveria estar comandando sua tripulaçã o? —
Margrete perguntou quando Bash se aproximou. Ela apontou
com o queixo para os cerca de cem marinheiros que subiam e
desciam pela prancha. — Eu nã o gostaria que você perdesse a
diversã o. Sei o quanto adora ouvir o som da sua pró pria voz.
Bay bufou enquanto lhe dava uma cotovelada brincalhona
nas costelas. Ela retribuiu o gesto.
Os lá bios de Bash se curvaram. Deuses, ele queria beijá -la até
arrancar todo aquele atrevimento dela. Nã o. Talvez nã o
arrancá -lo; ele gostava demais daquela atitude. Alé m disso,
apreciava sua provocaçã o. Era uma distraçã o bem-vinda.
— E privá -la da minha companhia? — Bash pegou a mã o
dela. — Eu nã o sonharia com isso.
— Vejo que você voltou a ser como era. O arrogante de
sempre. — Ela contraiu os lá bios, lutando para nã o sorrir.
Bash se inclinou para que apenas ela pudesse ouvi-lo.
— Você nã o me amaria se eu nã o fosse.
Quando ele se afastou, as bochechas dela estavam rosadas.
Ela o amava. Poucas pessoas já haviam falado aquelas palavras
para ele ― seu pró prio pai só as dissera algumas vezes.
Mas o amor de Margrete parecia diferente. Precioso. Frá gil.
Perigoso.
— Irmã !
De dentro do navio, a vozinha de Birdie soou forte e segura.
Ao que parecia, Atlas tinha colocado a jovem para trabalhar
carregando suprimentos para cima e para baixo na rampa. Mas
ela nã o parecia se importar. A irmã de Margrete aproveitou
para tentar impressionar Atlas. Bash suspeitava de que ela fazia
isso porque Atlas parecia impossı́vel de impressionar.
Em muitos aspectos, ela era exatamente como a irmã mais
velha ― inteligente, impossivelmente gentil, teimosa ―, e Bash
sorriu vendo-a descer a rampa e jogar os braços ao redor de
Margrete.
— Lembre-se do que eu te disse, passarinha…
— Sim, sim. Nã o irrite Adrian. — Birdie revirou os olhos. —
Pelo menos nã o muito.
— Eu nã o usei exatamente essa palavra, mas sim. Acho que
está certo. — Margrete riu, esfregando o topo dos cachos de
Birdie e bagunçando-os completamente. Sua irmã fez uma
careta.
— Deuses, vou sentir falta de você — Margrete disse
enquanto a puxava para um abraço. Birdie revirou os olhos
novamente, mas abraçou a irmã com a mesma força.
— Eu també m — murmurou contra a camisa de Margrete. —
Nã o se esqueça de me trazer algo interessante da viagem. —
Birdie se afastou, a umidade cobrindo seus olhos.
— Sempre pedindo coisas. — Margrete sorriu e deu um
pequeno toque no nariz da irmã . — Comporte-se, e eu vou
pensar nisso.
Bash observava as irmã s se abraçarem novamente quando
Nerissa apareceu ao seu lado. Ele sempre comparava a vidente
a um fantasma, pois ela se movia com passos silenciosos e se
aproximava quando menos se esperava. Embora isso enervasse
algumas pessoas, Bash achava notavelmente impressionante.
Alé m disso, gostava do comportamento quieto e centrado de
Nerissa ― isso tinha um efeito calmante sobre ele.
— Cuide bem dela — instruiu, sua voz baixa. Bash con iava
em seu povo com os cuidados de Birdie, mas sabia como os
mares icavam perigosos, e ela se tornara uma luz em sua vida.
Ela se tornara famı́lia.
— Sempre — Nerissa respondeu friamente. — Eu a
protegerei com minha vida.
Bash se virou para ela, olhando para sua vidente pela
primeira vez. Ela parecia abatida ― o cabelo preto liso estava
despenteado e o vestido, amassado. Nã o era do feitio dela. Ele
abriu a boca para perguntar se ela estava bem, mas Atlas gritou,
anunciando do outro lado do convé s que a partida seria em dez
minutos.
Entã o, em vez de palavras, Bash lançou a Nerissa um olhar
de agradecimento e gentilmente deu um aperto no braço dela.
Os olhos dela se iluminaram com um calor brilhante.
— Preparada? — Bash soltou Nerissa e se virou para
Margrete. A vidente estendeu a mã o, e Birdie hesitou por um
segundo antes de pegá -la.
Margrete torceu o nariz de brincadeira para a irmã , depois
passou o braço pelo dele. Silenciosamente, ele os conduziu pela
longa ripa de madeira que levava ao navio. A tripulaçã o luı́a ao
redor deles, e Margrete graciosamente se esquivou e desviou do
caminho. Ela icara bastante á gil desde a noite do ataque. As
vezes, ele nã o a ouvia se aproximar até que ela estivesse bem
atrá s dele. Logo estavam a estibordo, tã o sozinhos quanto
podiam.
— Você parece melhor — comentou, os olhos voltados para
a tripulaçã o. — Mas vai me contar se ouvir vozes de novo?
— Vou — prometeu ele, sé rio. Ele nã o estava mais sozinho
em sua luta, e nunca mais se esconderia dela.
Margrete assentiu, desviando o olhar do Phaedra e das
ondas.
Ultimamente, ela vinha fazendo isso com frequê ncia. Bash se
perguntou se ela podia ver as respostas no in inito azul.
Bash suspirou, segurando a mã o dela mais uma vez.
— Tenho que falar com a tripulaçã o — disse ele, esfregando
o polegar em cı́rculos ternos em sua pele antes de se forçar a
soltar. Ficar longe dela era a ú ltima coisa que ele queria fazer.
— Conversaremos mais depois que zarparmos e traçarmos um
plano — assegurou ele, saboreando o beijo suave que ela lhe
deu.
Disposto a deixá -la no parapeito, Bash virou-se para o
frenesi da tripulaçã o.
Pelo canto do olho, viu Adrian nas docas. Seu amigo mais
antigo permaneceria em Azantian enquanto Bash
supervisionaria a caçada. Adrian governaria no lugar de Bash, e
nã o havia ningué m em quem ele con iasse mais.
Tinha falado com ele brevemente pela manhã e, felizmente,
seu amigo nã o mencionou o estado de Bash apó s a reuniã o do
conselho. Em vez disso, puxou-o para um abraço feroz. As
palavras nem sempre eram necessá rias, e Adrian entendia isso
bem.
Naquele momento, Adrian se aproximava para o lado de Bay
e deslizava um braço ao redor de sua cintura. Gentilmente, ele
baixou a cabeça até alinhar o nariz com o do namorado. Bash
viu seu segundo em comando dar um beijo doce nos lá bios
sorridentes de Bay, suas mã os movendo-se para cobrir o rosto
dele.
Ele se aqueceu ao ver sua famı́lia antes de deixá -los se
despedir em paz. A culpa já pesava, e ele odiava que Adrian
icasse separado de Bay por tanto tempo.
Tinha chegado a hora de se dirigir aos marinheiros, os
Azantianos que ele havia escolhido pessoalmente para caçar as
feras. Eles arriscariam suas vidas e mereciam um discurso
digno do sacrifı́cio.
Estava prestes a abrir a boca e chamar a atençã o deles
quando ouviu um sussurro ameaçador que lhe causou arrepios
na espinha, uma voz que só ele podia ouvir.
Nosso reencontro se aproxima, jovem rei.
Cada mú sculo do seu corpo travou, tensionando os ombros
alarmados. Por que, por que nã o o deixava em paz?
Vá embora, ele silenciosamente rangeu, as narinas dilatadas.
Ningué m prestou atençã o à batalha interna que ele travava.
Eles nã o podiam ver como ele lutava para manter o controle
sobre a realidade. Cerrou os punhos e cravou as unhas na
palma das mã os.
Saia. Da. Minha. Cabeça.
A voz nã o respondeu. Nã o precisava. A ameaça já tinha sido
feita.
Em algum lugar nos recô nditos de sua mente, Bash ouviu
uma risada que soava como pregos se arrastando pelo vidro.
Um som de triunfo. De algué m que já tinha vencido.
Você vai desistir em breve, rei.
coraçã o de Margrete doı́a ao ver Azantian diminuindo a
cada onda. Mesmo que ela tenha chamado Prias de lar por vinte
e trê s anos, faltava-lhe o sentimento de pertencimento, aquele
sentimento indescritı́vel que um verdadeiro lar tem.
Eles voltariam em breve.
Eles tinham que voltar.
Margrete fez seu voto silencioso na popa, perdendo-se no
balanço tranquilo do Phaedra, que deslizava pelas cristas. Ela
observou o cé u, onde avistou algo lutuando nas nuvens. Algum
tempo passou até que o objeto a alcançou, e quando ele pousou
precariamente ao lado de sua mã o na grade, seu coraçã o parou.
Uma ú nica folha preta. Assim como a que tinha aparecido em
seu colo dois dias antes.
Ela nã o acreditava mais em coincidê ncias.
Algo estava vindo de encontro a eles. Quer aparecesse em um
minuto ou uma hora, ela estava convencida de que o inı́cio de
sua viagem seria manchado com a morte.
Horas depois, Margrete nã o conseguia encontrar Bash. Ele
nã o estava no convé s nem na cabine do capitã o. Nã o era comum
ele se esconder. Nã o era um rei quando estava a bordo daquele
navio e gostava de icar entre a tripulaçã o.
Podia ter sido intuiçã o ou pura paranoia, mas Margrete
correu para a cabine deles, o coraçã o batendo selvagemente no
peito. Depois do que ele tinha confessado, ela nã o correria
nenhum risco. Sabia muito bem que algumas vozes nã o
cessariam até destruı́rem o alvo.
A porta se abriu com um rangido, e a cortina de linho se
fechou sobre a ú nica escotilha. Margrete distinguiu uma igura
andando de um lado para o outro, as mã os cobrindo os olhos.
Era Bash.
— Pare — implorava para ningué m. — Só pare.
— Bash! — Margrete correu para o lado dele, agarrando os
dois pulsos e afastando-os do rosto. Os olhos de noite profunda
estavam arregalados, temerosos e irreconhecı́veis.
— O que foi? O que há de errado?
Bash sibilou.
— A voz — rangeu, atormentado por ter que admitir. — Está
icando mais alta, mais perto, e nã o consigo fazê -la parar! — Sua
voz se elevou a um grito, assustando-a. Ainda assim, ela nã o se
afastou. Nã o, ela o puxou para mais perto.
— Shhh. — Ela envolveu os braços ao redor da cintura dele e
apoiou a bochecha no peito dele. O coraçã o batia
irregularmente. — Está tudo bem. Apenas segure-se em mim.
Estou bem aqui. — E ela nã o iria embora.
Nã o se pode escolher momentos para amar algué m. O amor
envolve tanto os dias ensolarados como as noites frias e difı́ceis.
Tentar evitar a noite seria como nunca sair da praia por medo
de uma tempestade. Mas as tempestades passam, a chuva cessa
e o sol sempre volta.
Ela nã o era estranha à escuridã o, e se pudesse ser a luz de
Bash, ela seria.
Bash a apertou com força, a bochecha barbada se esfregando
contra a pele dela, a respiraçã o quente em seu rosto.
— Merda. Me desculpe, estou uma bagunça, mas, desta vez,
parece… diferente, como se houvesse mais de uma voz. E elas
todas estã o gritando na minha cabeça — sibilou, tentando se
afastar. Margrete nã o permitiu.
Bash tentou novamente, mas ela o segurou irme, e quando
ele ergueu a cabeça, seus olhos estavam cheios de surpresa. Ela
tinha icado mais forte nos ú ltimos meses. E nã o apenas por
treinar com Adrian.
— Eu nã o vou embora — disse com irmeza, segurando seu
queixo. — Nó s nã o deixamos um ao outro quando as coisas
icam difı́ceis. Nã o é assim que funciona.
Bash estava tentando fugir, sim, mas també m queria protegê-
la.
Agarrando a parte de trá s de seu pescoço, ela o puxou para
perto, seus lá bios indo de encontro aos dela. Ele tinha gosto de
pâ nico e desespero, mas, sob o medo amargo, ela o provou. O
mar e o sal, o cé u aberto.
Ele só precisava de um lembrete de tudo o que ele era.
Margrete o beijou com força, desejando que ele sentisse o
amor que ela sentia em suas entranhas. Ela o beijou para
mostrar que estava bem diante dele, que ela o escolhia. Como os
machucados e tudo.
Bash se assustou, mas apenas por um momento, seus lá bios
congelados junto aos dela. Com uma forte inspiraçã o, ele
roubou o ar dela, e entã o a beijou de volta como se fosse morrer
sem seus lá bios nos dele. Margrete agarrou a camisa dele,
apertando o linho.
Quando ele se afastou, ofegante, seus olhos começavam a
vagar novamente para as sombras, que espreitavam nos cantos.
Margrete virou o queixo dele para ela.
— Fique comigo — exigiu.
Como se a voz dela vencesse as dú vidas e o pâ nico crescente,
os braços de Bash serpentearam ao redor de sua cintura,
pressionando as costas dela com as palmas das mã os,
segurando-a como se ela fosse lutuar para longe se a soltasse.
Ela sentiu o peito dele subir e descer contra o dela, seu há lito
quente soprando em sua pele exposta.
— Só me deixam em paz quando estou com você —
murmurou. — Tudo, as vozes, os pesadelos, a escuridã o, tudo
vai embora quando nos beijamos e sinto você junto de mim. E
como se sua presença afugentasse tudo. — Ele estremeceu, seu
abraço se tornando feroz. — Enquanto você estiver ao meu
lado, nunca estarei perdido de verdade.
Ele moveu a mã o para o cabelo dela e agarrou os ios,
inclinando o rosto dela para que nã o tivesse escolha a nã o ser
se perder em seus olhos.
— Mas você tem que me prometer uma coisa, Margrete.
Ela se acalmou ao ouvi-lo dizer seu nome, o modo
imponente como ele o pronunciou.
— Se chegar o dia em que eu nã o… for eu mesmo, preciso
que você fuja. Fuja para o mais longe possı́vel de mim. E se nã o
puder fugir… — ele fez uma pausa, seus olhos se estreitando em
fendas determinadas — … nã o hesite em se defender. Faça o
que for preciso.
Margrete franziu a testa, entendendo o que ele queria dizer.
— Isso nunca vai acontecer…
Bash colocou um dedo nos lá bios dela.
— Nã o sei o que está acontecendo comigo, mas, por favor,
por favor, me prometa que nã o vai permitir que eu te
machuque.
Ela icou completamente rı́gida. Uma parte sua sentiu a
escuridã o à espreita, escondida logo abaixo da pele dele, mas a
outra parte ― a que era teimosa e se recusava a perder Bash ―
argumentou que ela poderia vencê -la.
Em vez de falar o que achava, ela simplesmente assentiu.
Bash precisava que ela concordasse, mesmo que apenas para
acalmá -lo, mas nã o precisava saber que estava mentindo.
— Que bom — suspirou ele, afrouxando um pouco o abraço.
Entã o deu um beijo na testa de Margrete. — Você pode ser a
chave para proteger meu povo, mas se tornou muito mais
preciosa para mim. Até que eu esteja… curado do que me
atormenta, quero que ique alerta. Nã o baixe a guarda, mesmo
se achar que estou bem.
Ela hesitou, e Bash ergueu uma sobrancelha.
— Serei cautelosa — concordou, a promessa amarga em sua
lı́ngua. — Mas saiba que nã o permitirei que nada de ruim
aconteça com você . Meus poderes podem ser novos, e talvez eu
ainda nã o saiba como usá -los, mas sinto a magia em mim, e ela
é poderosa. Quando eu a entender, pode ter certeza de que
eliminarei qualquer ameaça a você .
— Tã o teimosa — Bash sussurrou, suspirando. A tristeza
vincou seus olhos antes que ele descansasse a testa contra a
dela.
— Você gosta da minha teimosia.
Uma risada fez seu peito retumbar.
— Nã o vou admitir isso.
Eles continuaram ali, sem se atreverem a se mover, sem
vontade de quebrar a ilusã o de paz. Ela apenas se concentrou
em como a respiraçã o dele batia em suas bochechas e fazia com
que o calor se espalhasse em sua barriga.
Logo eles enfrentariam monstros, e entã o, se sobrevivessem,
teriam outra batalha para enfrentar ― afastar os demô nios que
assombravam Bash. Até que esse momento chegasse, Margrete
aproveitaria cada segundo.
Só quando uma batida sacudiu as paredes da cabine foi que
Margrete levantou a cabeça a contragosto e encontrou os olhos
arregalados de Bash.
Momentos depois, o som de sinos alarmantes e gritos
frené ticos cortaram o ar.
Margrete respirou fundo.
E assim, sua frá gil tranquilidade foi invadida pelo fedor
podre da morte.
s á guas cortavam as laterais do Phaedra como facas
a iadas, decididas a consumir o navio e sua tripulaçã o. De cima
da cabine de Margrete, gritos estridentes de homens e
mulheres chegavam aos seus ouvidos, a chuva que caı́a
abafando as ordens frené ticas do contramestre.
— Eu vou com você — Margrete disse a Bash. — Posso
ajudar.
Ele hesitou por apenas um momento, entã o deu um aceno
relutante.
— Por favor, ique longe dos lados de bombordo e estibordo
— implorou, movendo-se para segurá -la pelos ombros. Seus
olhos eram um redemoinho de escuridã o e incerteza, e parecia
que ele queria dizer mais. Em vez disso, se inclinou para beijá -
la na boca com carinho.
Ela sentiu tudo o que ele nã o conseguia dizer naquele ú nico
beijo.
Quando recuou, Bash entrelaçou seus dedos e lançou um
ú ltimo olhar para ela antes de conduzi-los para fora do quarto
direto ao caos. Uma onda os jogou contra uma parede, o navio
virando precariamente para a esquerda. Margrete quase perdeu
o equilı́brio, mas Bash a segurou com mais força, lutando para
levá -los para a escada.
Da ú ltima vez que enfrentaram uma tempestade naquele
navio, ela quase se afogou. Isso foi antes. Agora, nã o perderia
um segundo na iné rcia enquanto a corajosa tripulaçã o lutava
pelo controle. Nã o era uma donzela frá gil. Margrete tinha
dentro de si o coraçã o de um deus e pretendia, pelo menos,
tentar usá -lo.
Ventos fortes açoitavam seu cabelo enquanto ela e Bash
lutavam para subir, o Phaedra balançando para frente e para
trá s em ondas violentas. Margrete colocou o cabelo atrá s das
orelhas e forçou os olhos a se abrirem contra a brisa cortante,
abraçando a picada da á gua salgada enquanto seu corpo inteiro
estremecia.
Ela lambeu os lá bios. A chuva que entrou em sua boca tinha
um gosto ruim. Profano. Instintivamente, ela soube que aquela
nã o era uma tempestade, nã o do jeito que aqueles marinheiros
estavam acostumados.
Nã o. Algo antigo estava em açã o.
A á gua escura, turva e nublada escorria a bordo,
encharcando a madeira, deixando cada centı́metro do Phaedra
brilhando com o ataque do mar. Margrete deu uma guinada e se
esquivou de uma corda que passou voando, mas uma onda forte
a jogou contra a grossa coluna de um mastro. Ela soltou a mã o
de Bash, que voou na direçã o oposta.
Ela achou algo só lido para segurar, tentando se orientar
enquanto gritava internamente para que seu poder a lorasse.
Sua magia cintilou, mas a faı́sca nã o pegou. A essê ncia de
Malum era uma batida suave quando ela precisava
desesperadamente de um rugido vicioso.
— Fique aı́! — Bash gritou do outro lado do convé s, seus
olhos arregalados e suplicantes. Seus homens o chamavam, e
sua cabeça virou na direçã o deles, voltando para ela um
segundo depois. Ela sabia que ele nã o iria se ela nã o
concordasse em icar ali. Mesmo que nã o pretendesse icar
simplesmente parada.
Margrete deu-lhe um rá pido aceno de cabeça, rezando para
que ele nã o enxergasse alé m da mentira em seu olhar. Bash
permaneceu por mais um momento, o rosto retorcido de
arrependimento e medo. Quando o chamaram novamente, ele
fez uma careta e saiu.
Agora ela tinha um trabalho a fazer.
Apertando os olhos, mergulhou em si mesma, procurando a
fonte de poder que usou no dia em que afundou o navio de seu
pai, aquela luz eté rea azul e amarela dos deuses.
Ela mergulhou mais e mais fundo, o corpo balançando, a
mente focada e determinada. Margrete sentiu-se gritar na
tempestade ― tanto a de sua alma quanto a que acontecia em
torno de seu corpo fı́sico. Apertando os dentes, ela avançou.
Mas só encontrou uma parede.
Ela deu um pulo para trá s, e seus olhos se abriram ainda com
a chuva batendo em seu rosto.
Me ajude, implorou ela, farpas machucando as palmas de
suas mã os. A frustraçã o subiu em sua garganta como bile. Me
diga como usar esse maldito poder.
Qual era o sentido de carregar aquele fardo se nada de bom
vinha dele?
Merda, me diga!
Um raio caiu perigosamente perto de onde ela se segurava.
Ela se encolheu de horror com as faı́scas violetas, prata
metá lica caindo dos cé us. Nenhum trovã o que se seguiu sacudiu
seus ossos, mas o gosto de carne em decomposiçã o continuou a
permear a brisa.
— Deuses — suspirou ela, sugando o ar. O que foi isso?
Soltando o mastro em que se segurava, Margrete escalou
para o convé s superior, uma onda enorme quase a derrubando
no mar. Ela esticou os braços para agarrar o corrimã o, e seus
dedos cravaram na madeira ú mida, que machucou sua pele
sensı́vel, mas a doce dor aguçou seus sentidos.
Me ajude!, ela implorou novamente, com a cabeça inclinada
em direçã o aos cé us tempestuoso. Por favor.
Ela nã o sabia como controlar a essê ncia de Malum, e tinha
sido uma tola ao pensar que poderia dominar tal poder sozinha.
Pâ nico puro e desenfreado inundou suas veias, deixando-as
geladas.
Eu sabia que você precisaria da minha ajuda.
A voz deslizou ao redor de sua mente e se contraiu como
uma cobra. Margrete recuou instantaneamente.
Darius.
E claro.
Me diga como posso ajudá-los, ela exigiu de seu inimigo. Mais
relâ mpagos violeta atingiram o mastro principal, espalhando a
tripulaçã o em todas as direçõ es enquanto ele rachava e se
estilhaçava. Ela sabia que parecia desesperada, mas nã o se
importava. Estava desesperada.
Ah, agora você está implorando. Acho que gosto mais assim.
Margrete cerrou as mã os em punhos apertados, cada
instinto gritando para ela desprezar Darius, para silenciá -lo.
Mas nã o estava pensando direito. Nã o depois que viu Bash
correndo pelas tá buas, ajudando seus homens a lutar contra os
ventos e amarrar as velas. O cabelo ruivo estava grudado no
rosto, os lá bios contorcidos em uma linha ina e determinada.
Ela nã o podia deixar seu orgulho ser o im deles. Nã o quando
havia magia envolvida.
Tudo será como deveria, Darius disse friamente, nenhum
traço de escá rnio em sua voz. As águas irão levá-la para onde
você sempre esteve destinada a ir.
O que isso signi ica?, perguntou ela, sua frustraçã o superando
o pouco controle que tinha sobre seu poder. Você alega que não
me quer morta, mas esta tempestade será o meu im!
Darius apenas respondeu com uma risada suave. O barulho
chacoalhou em sua cabeça até desaparecer completamente,
assim como o pró prio deus.
Ela estava sozinha. As á guas continuaram a bater na barriga
do Phaedra, como uma criança pequena a quem algo foi negado.
Faı́scas prateadas caı́ram na cabeça dela, o cheiro de magia
inebriante no ar.
Magia das trevas.
A mesma que ela tinha experimentado antes.
Tudo bem. Ela deveria ter pensado melhor antes de se
envolver com Darius, mas isso nã o signi icava que pararia de
tentar.
Concentrando-se na onda iminente que vinha em sua
direçã o, crescendo a cada respiraçã o, Margrete mordeu o lá bio,
erguendo as mã os no ar e curvando os dedos enquanto sua
mente tentava dominar a força da onda.
Em um piscar de olhos, Margrete nã o estava mais presa ao
seu corpo mortal ― ela estava lutuando, cada vez mais alto, um
fantasma sem ossos para aprisionar sua vontade.
Margrete se concentrou em uma onda que se aproximava e
se elevava bem mais de dez metros acima do navio.
Aproveitando a força com que tinha sido presenteada, ela
ordenou que a parede de á gua que avançava caı́sse.
A pele de Margrete formigou como a picada de mil agulhas,
um frio gelado varrendo seu corpo. Sua visã o nublou e seu
corpo balançou, mas ela se concentrou na onda que lutava para
desobedecer. Ela nã o permitiria.
A desobediê ncia das á guas deixou mais fá cil buscar a fonte
de sua magia, e pouco antes de a onda atingir o casco, ela sentiu
uma a luê ncia de energia se libertar de seu corpo.
A onda desabou sobre si mesma e, quando atingiu a lateral
do navio, os danos foram mı́nimos. Aplausos subiram acima dos
gritos de turbulê ncia.
Os joelhos de Margrete tremeram, assim como as palmas das
mã os. Olhou para si mesma e notou algumas faı́scas de luz
chiando no centro de suas mã os. Seu poder mal havia se
mostrado, e ela sabia que era capaz de muito mais.
Se ao menos ela nã o estivesse na iminê ncia de desmaiar…
A tripulaçã o comemorava os segundos de alı́vio, mas o
vendaval nã o estava nem perto do im. Precisou de tudo de si
para ter alguns momentos de paz, e ela sabia que nã o poderia
continuar assim para sempre.
O Phaedra estremeceu abruptamente, jogando Margrete de
costas no chã o, atrapalhado sua concentraçã o. Lutando para se
segurar, ela agarrou as bordas de madeira do navio, gritando
contra os raios e a chuva nã o naturais.
As pranchas escorregadias nã o ofereciam apoio para seus
dedos e, por mais que tentasse evitar deslizar pelo convé s, o
navio se deslocava perigosamente para a esquerda. Enquanto
um lado do poderoso navio deslizava pelas á guas ı́ndigo,
Margrete teve uma visã o de arrepiar os ossos…
Sombras.
Centenas de sombras rastejantes emergiam das á guas
profundas. Os olhos de Margrete se arregalaram quando a
chuva a atingiu, e ela se esforçou para distinguir os detalhes das
formas sinistras que lentamente entravam em foco.
Homens. Ou criaturas com corpos de homens. Pareciam
quase humanos, mas, por trá s das silhuetas escuras,
redemoinhos de plumas de ô nix, prata e lavanda seguiam em
seu rastro. As luzes dançantes subiam e desciam cada vez que
uma das criaturas voltava para as á guas, iluminando o cé u ao
retornar ao ar.
Antes que Margrete pudesse estudá -los mais a fundo, o
Phaedra se ergueu rapidamente, a força jogando-a bruscamente
para a grade. Uma dor ardente e quente atravessou suas
costelas enquanto ela cuspia. Contusõ es e ossos quebrados
poderiam se curar, mas nã o haveria retorno da morte. E a morte
certamente os desejava naquele dia.
Onde estava Bash?
Usando toda a energia que conseguiu reunir, Margrete
levantou-se cambaleando, batendo os dedos embranquecidos
nas laterais de madeira do navio e examinando, em pâ nico, a
tripulaçã o. Bash tinha que estar ali com seus homens, lutando
para tirá -los daquele vendaval. Ele era um lı́der, e um lı́der
sempre icava ao lado de quem lutava por ele.
Margrete encontrou um rosto familiar e, embora nã o fosse o
que procurava, o alı́vio encheu seu peito.
Bay.
Ele estava tentando apertar uma vela, seu cabelo loiro
grudado nas tê mporas. Margrete meio tropeçou, meio
cambaleou até lá , os olhos dele a encarando enquanto ela
agarrava seu bı́ceps. Era impossı́vel se comunicar com o rugido
da tempestade, mas Bay entendeu o que seus olhos suplicavam.
Onde ele está?
Bay balançou a cabeça, frené tico e com os olhos vidrados.
Entã o vieram os gritos de tumulto e o borrã o de confusã o,
todos os rostos se transformando em uma né voa gigantesca de
esperança naufragando.
Margrete se afastou do amigo.
— Bash!
Outra vela se rasgou, a onda do aguaceiro encobrindo o
rachar da madeira. A questã o nã o era mais saber se
dominariam a tempestade. Sem dú vida, Margrete sabia de uma
coisa com todo o seu ser: o Phaedra, o estimado navio da frota
Azantiana, sucumbiria à s á guas.
Assim como na visã o que ela teve.
Margrete empurrou o traquete caı́do para o convé s do
castelo de proa, suas botas se prendendo à madeira lisa
enquanto ela subia a escada. Uma onda de corpos e né voa
quebrou, mas seus olhos pousaram em uma igura solitá ria ao
lado dos gurupé s salientes.
Bash.
Imó vel, ele se enraizara no convé s, e olhava para as ondas
diante dele. Margrete gritou seu nome, mas foi recebida apenas
por mais relâ mpagos e trovõ es.
Quando o alcançou, seu peito estava arfando. Estava exausta,
quebrada por suas tentativas tolas de controlar algo que nã o
tinha ideia de como comandar.
— Bash! — rugiu ela enquanto se aproximava, estendendo a
mã o para agarrar seu braço. Ele nã o se moveu, nã o atendeu ao
chamado ou ao ser tocado. O homem diante dela estava
paralisado pelo que estava por vir, perdido em seu pró prio
mundo.
Sob o mesmo feitiço da noite anterior.
Margrete segurou o queixo barbudo e o virou para o lado,
para olhar seu rosto vidrado. Chuva e suor cobriam sua pele, a
camisa grudada no corpo musculoso.
O coraçã o de Margrete afundou em algum lugar mais baixo
do que as sombras sinistras que nadavam ao lado da
embarcaçã o condenada. Nada vivia naqueles olhos turvos, nem
um ú nico indı́cio de reconhecimento. Era como se fosse uma
casca de homem, e a visã o a gelou até os ossos.
Margrete passou os braços ao redor de seu torso e o puxou,
mas Bash era muito forte, e permaneceu enraizado no lugar.
— Você precisa vir comigo! — implorou ela. — Por favor,
Bash! — acrescentou como uma oraçã o. Mas para quem estava
realmente rezando? As sú plicas ansiosas icaram sem resposta,
e os braços exaustos de Margrete gritavam de dor a cada puxã o.
Ele nã o se moveu sequer um centı́metro.
Traçando a lateral de seu queixo barbudo, Margrete
procurou alguma coisa em seus olhos, qualquer indı́cio de
reconhecimento. Ele olhava ixamente para a frente.
Para onde você foi, pirata?
O Phaedra caiu para frente e Margrete colidiu com o mú sculo
só lido do peito de Bash. Bash nã o estava se segurando em nada,
era como se seus pé s estivessem cimentados por alguma força
invisı́vel.
Os cé us se abriram, estalando com traços arroxeados,
enfeitando os conveses com pedras de granizo a iadas. O gelo
ardia em sua pele e a cortava, as minú sculas al inetadas de
sangue rapidamente lavadas pela chuva.
— Bash, por favor! — insistiu ela, frené tica e morrendo por
dentro. Ele morreria se permanecesse ali; ambos morreriam.
Antes que ela pudesse tentar movê -lo mais uma vez, gritos
estridentes perfuraram o ar. Os gritos desumanos se
misturavam com o uivo do vento e do granizo, uma melodia
arrepiante de vozes distorcidas e gritos cortantes. O barulho
estridente aumentou e machucou seus tı́mpanos, mas Margrete
nã o conseguiu bloqueá -los e buscar alı́vio. Ela tinha que icar ali
e proteger Bash. Tinha que salvá -lo, e desistir nã o era uma
opçã o.
As sombras que ela vislumbrara pouco antes, seguindo como
abutres o navio que balançava, estavam de volta. Elas
ressurgiram no ar gelado, balançando acima das ondas
agitadas. Movendo-se em sintonia, formaram uma barreira ao
redor do Phaedra.
Deuses.
Boquiaberta, Margrete observou os monstros que os
cercavam por todos os lados. A parte superior dos corpos
parecia de natureza humana, mas as metades inferiores eram
cobertas por escamas a iadas que desciam em duas barbatanas
serrilhadas.
Nymeras.
Ela poderia ter gritado, mas sua voz estava rouca demais
para isso. Agarrou-se ao peito de Bash enquanto as criaturas se
aproximavam ainda mais. Elas arrastavam os dedos pelas
bochechas de Bash, sua mandı́bula, seu queixo. Elas o tocavam
suavemente, com reverência, até .
As mã os de Margrete dispararam, esperando uma faı́sca do
poder de Malum, pelo menos uma lasca de magia.
Nada aconteceu.
— Por favor, volte para mim, pirata. — Margrete agarrou
Bash com as duas mã os, segurando-o enquanto a né voa de feras
tremeluzia sobre sua pele bronzeada.
O Phaedra se curvou perigosamente para o lado, mas
Margrete se segurou, examinando os olhos de Bash uma ú ltima
vez.
Ali.
Nas profundezas de suas poças noturnas, ela viu um lampejo
de reconhecimento.
Bash inclinou a cabeça tã o levemente que poderia ter
passado despercebido. Mas Margrete percebeu, viu como seus
olhos se enrugaram e entraram em foco.
— Bash? — sussurrou ela.
— Princesa. Isso é …
Um vento sibilante e gelado, carregando o fedor da morte,
cortou o ar entre eles. Em um instante, o vendaval arrancou
Bash de seus braços e a empurrou contra os trilhos, tirando o
todo o ar de seus pulmõ es.
As nymeras envolveram o rei em seus braços e o
consumiram até que nã o restasse nenhum vestı́gio de Bash. Ela
estendeu a mã o, frené tica para alcançá -lo, mas os espectros
foram muito rá pidos. Ele mergulhou no mar e entre as ondas.
Sumiu.
Margrete nã o conseguia respirar, nã o conseguia pensar.
Sentia apenas a picada penetrante de sua perda, uma agonia
devastadora que a rasgava por dentro, pedaço por pedaço. Ela
tropeçou nos trilhos e olhou para as ondas. Nada. Nem mesmo
as sombras em movimento roçaram as cristas viciosas.
Ela poderia ter gritado, poderia ter estendido a mã o, mas
uma onda enorme a fez cambalear para trá s e seu corpo bateu
no convé s com uma força terrı́vel.
A á gua entrou em sua boca, sufocando-a, enquanto com os
dedos buscava inutilmente um ponto de apoio. Uma onda
atingiu o casco e, gritando, ela deslizou conforme o mundo se
inclinava.
Um estalo horrı́vel rasgou o ar, e a madeira abaixo dela
rachou e quebrou. Os gritos da tripulaçã o juntaram-se aos dela
quando os mastros caı́ram e as velas se rasgaram. O poderoso
Phaedra estava se desfazendo em pedaços sagrados, e as ondas
implacá veis continuavam chegando.
A onda inal de pura devastaçã o os atingiu.
Margrete gritou, as tá buas gemendo enquanto se
estilhaçavam e quebravam. Ela caiu, caiu e caiu até que a á gua
subiu e a engoliu. A essê ncia de Malum se in lamou, mas ela
estava frené tica demais para se concentrar, agitada demais para
se concentrar nos poderes que nã o podia controlar.
Ela tinha falhado com Bash.
Tinha falhado consigo mesma.
Margrete afundou ainda mais nas á guas. A inconsciê ncia
tomou conta dela segundos depois.
argrete acordou na escuridã o.
Agua caı́a ao seu redor, e ela cuspiu e engasgou, tentando
puxar algum ar. Estava deitada de bruços, com as mã os
estendidas acima da cabeça, areia molhada e compacta embaixo
dela.
Deuses. O Phaedra tinha naufragado. Na verdade, tinha sido
engolido, um feito que ela nã o acreditava ser possı́vel.
Rastejando de quatro, Margrete escalou até a praia, seus
membros machucados e doloridos. Ela se sentiu como se
tivesse sido jogada repetidamente contra uma parede de pedra,
embora, felizmente, nã o sentisse cheiro de sangue no ar. Ela
estava inteira, ao que parecia.
Seu pró ximo pensamento foi nele.
— Bash! — gritou, sua voz rouca.
Aquelas criaturas monstruosas o roubaram. Nymeras. Ela
podia nunca ter visto uma na vida, mas no fundo de sua alma
sabia o que eram. Ou talvez a essê ncia divina que ela continha
as tivesse reconhecido.
Como se ela o tivesse invocado, o calor queimou em seu
peito e, lentamente, se espalhou por seu torso e pernas até os
dedos dos pé s. Entorpeceu a dor e afugentou o desejo de
apenas icar ali, deitada, e deixar a inconsciê ncia tomá -la
novamente.
Margrete esquadrinhou a praia enluarada.
Ali, a menos de cinco metros de distâ ncia, estava um corpo.
Algué m estava imó vel na areia, de costas para ela. Ela icou de
pé e foi, com as pernas bambas, em direçã o ao outro
sobrevivente. Quando ela cambaleou e o virou para cima,
vislumbrou seu rosto. Seu coraçã o deu um puxã o agridoce.
Jonah. Um marinheiro do Phaedra. Nã o Bash.
Margrete o sacudiu, esperando que ele abrisse os olhos. Ele
era jovem e inexperiente. Aquela tinha sido sua primeira
viagem o icial com a tripulaçã o de Bay. Ele nã o tinha mais que
dezoito anos.
O cabelo preto de Jonah caiu em seu rosto, uma bagunça
emaranhada de ios cor de meia-noite.
— Acorde — implorou ela, empurrando seu peito. O
marinheiro estremeceu com violê ncia, e entã o seus olhos
verdes pá lidos se abriram, e ele se lançou para o lado, cuspindo
á gua salgada.
Margrete descansou apoiada nos calcanhares, sem fô lego,
enquanto observava Jonah voltar à vida. Ela agradeceu em
silê ncio aos deuses por ele estar vivo, mas seu olhar ainda
analisava a praia, esperando ver seu rei. Esperando, contra
todas as probabilidades, que ele tivesse escapado das nymeras
e chegado ali. Onde quer que ali fosse.
Em vez de Bash, um familiar cabelo loiro brilhava ao luar.
Margrete levantou-se em um salto e correu para o lado do
guerreiro, um raio de esperança ardente correndo por suas
veias.
— Bay! — Ela o sacudiu freneticamente, como fez com
Jonah. Demorou mais para despertá -lo, mas, por im, Bay
també m acordou, tossindo e cuspindo á gua.
— Margrete? O-onde estamos? — perguntou ele quando
recuperou o fô lego.
Margrete apenas balançou a cabeça. Parecia uma ilha
comum, embora as areias tivessem um tom de cinza-ardó sia.
Arvores quebradiças com folhas mortas ladeavam a beira da
praia, os galhos juncosos balançando com uma brisa cautelosa.
Elas tinham algo familiar, e ela se concentrou nas folhas escuras
que a lembravam dos olhos de Bash. O entendimento a atingiu
em um a luxo doentio.
Ela já as tinha visto antes…
Na noite de sua visã o e no Phaedra.
Margrete sentiu-se tontear com a lembrança, e, no fundo,
sabia que a folhagem inusitada daquela ilha nã o era
coincidê ncia. Nã o poderia ser. Havia algo naquele lugar que
fazia sua cabeça zumbir, como se houvesse uma memó ria
aprisionada que ela nã o conseguia acessar. Empurrou a
constataçã o para o fundo da mente para pensar nisso mais
tarde.
— Você viu Bash? — Ela virou a cabeça e examinou a areia
interminá vel. A ilha curvava-se ligeiramente. Talvez ele
estivesse mais longe. Sim. Ele era forte, e mesmo que tivesse
sido puxado para as profundezas do mar por aquelas criaturas,
teria lutado contra elas e conseguido chegar à praia.
— Eu vi quando ele afundou no mar — disse Bay, sentando-
se. Ele descansou a cabeça entre os joelhos. — Aquelas coisas o
levaram. Nymeras. Tinham que ser. — Ele balançou para frente
e para trá s, uma mã o indo à boca como se lutasse contra uma
onda de ná usea.
— Bash está vivo — declarou ela, nenhum traço de dú vida
na voz. — Eu sentiria se ele tivesse morrido. — Se ele tivesse
perdido a vida no mar. A parte dela que apenas havia começado
a explorar tinha certeza disso, e o calor que ela sabia ser o
poder de Malum pareceu pulsar com a mençã o do nome amado.
— Vou procurar os outros. — Margrete icou de pé , ainda
instá vel. Ela nã o se importou. Seria preciso muito mais do que
joelhos fracos para impedi-la de procurar Bash.
Bay engoliu o que quer que subiu em sua garganta. Com uma
careta, se levantou e deu a ela um breve aceno de cabeça.
— Vamos nos espalhar — disse ele, inclinando a cabeça para
trá s. — Se encontrar sobreviventes, mande-os de volta para cá .
Margrete segurou o braço do amigo com um aperto
reconfortante antes que ele desse meia-volta.
— Bay? Tenha cuidado. Por favor.
Eles nã o tinham ideia de onde estavam. Pelo pouco que
sabiam, os inimigos espreitavam muito perto. Ou pior, as
nymeras estavam por ali.
Bay estremeceu, mas puxou Margrete para um abraço. Ela o
abraçou com a mesma força antes de soltá -lo.
— Vamos encontrar todos eles — prometeu Bay, recuando.
— Somos Azantianos, lembra? Difı́ceis de matar. — Sua boca se
torceu em um sorriso sombrio, mas a faı́sca habitual em seus
olhos nã o estava lá .
Margrete viu Bay se virar e correr pela praia em busca da
tripulaçã o do Phaedra. Eles nã o podiam ser os ú nicos ali. Certo?
Algo a iado cutucou seu peito, bem ao lado do poder de
Malum. Aquele lugar parecia errado. Desconectado. Até o ar
tinha um cheiro rançoso, como se a ilha tivesse icado trancada
em um baú por dé cadas. A pura incorreçã o de tudo isso a
deixou em pâ nico.
Margrete saiu correndo.
E nã o parou até ver uma igura imponente de cabelos loiros
se aproximando à distâ ncia.
Atlas.
— Você viu mais algué m? — Margrete perguntou quando
parou ao lado de Atlas. — Bay está procurando mais para baixo.
— Foi difı́cil formar as palavras, que icaram presas em sua
garganta antes de saı́rem. Cada pensamento dela estava em
Bash. Quanto mais tempo passava sem encontrá -lo, mais
nervosa icava. Atlas fez que sim, acelerando o coraçã o de
Margrete.
— Grant está ajudando Mila. Parece que ela quebrou a perna,
mas deve se curar rapidamente.
E assim, sua esperança morreu. Nada de Bash.
Mais duas iguras se aproximaram mancando, uma menor
encostada em um marinheiro musculoso com cabelos brancos
que ela reconheceu de quando se aventurou em Azantian. Tinha
que ser Grant.
— Ela está melhor, mas sugiro que imobilize a perna para
que o osso nã o sare errado — Grant murmurou com sua voz
profunda e rouca, como se tivesse passado sua vida na á gua
gritando acima dos ventos rugindo. Margrete suspeitava que ele
devia ter por volta de quarenta e tantos anos, embora adivinhar
a verdadeira idade de um Azantiano fosse quase impossı́vel.
Mila assentiu, o cabelo ruivo curto grudado na testa
encharcada de suor. Margrete sabia pouco sobre Mila, mas
podia sentir claramente sua coragem ao ranger os dentes e
arrastar a perna quebrada pela praia. Ela indicou a direçã o que
deveriam seguir.
— Vá com eles, Atlas. Vou procurar mais.
— Margrete, espere. — Atlas pegou e puxou a mã o de
Margrete. — Fui até um quilô metro e meio abaixo, e nã o vi
nenhum sobrevivente. — Ela balançou a cabeça, lamentando. —
Acho melhor todos nos reagruparmos e pensarmos no pró ximo
plano de açã o. — Atlas examinou a linha das á rvores e
estremeceu. — Este lugar me dá arrepios.
— De fato — disse Margrete. — Mas se todo o lugar é assim,
eu vou. Diga a Bay para icar na posiçã o até eu voltar. Por favor.
Ela gentilmente tirou a mã o da de Atlas e saiu correndo
antes que a guerreira conseguisse argumentar. Nã o mudaria
sua decisã o.
Margrete correu até suas pernas virarem gelatina. Quando
nã o conseguia mais senti-las, ainda assim seguiu em frente e
nã o parou até sentir a mudança do tempo. Provavelmente já
tinham se passado horas, e ela só encontrou um outro
tripulante do navio. Nã o diminuiu o passo a nã o ser para
instruı́-lo a seguir até o local onde Bay aguardava.
Ela nã o encontrou mais ningué m.
Por im, suas pernas cederam completamente, e ela tropeçou
para frente, caindo na areia e formando um amontoado
deselegante. Ela provou os grã os, que desceram por sua
garganta ressecada, queimando ao engolir. Teria que conseguir
á gua fresca. E logo.
Com um gemido, se forçou a levantar. Mal conseguia icar de
pé . Margrete sabia que encontrar Bash em suas condiçõ es era
uma tola esperança, e a praia inexplorada nã o tinha im.
Ele podia nã o estar morto, mas o rei de Azantian nã o estava
por perto. Se continuasse nessa direçã o, talvez nã o tivesse
energia para voltar para encontrar os outros, e entã o estaria
realmente ferrada.
Margrete praguejou, a palavra suja perfurando o ar muito
quieto. Lá grimas ameaçaram escapar, mas ela as segurou,
engolindo em seco. Nã o havia necessidade de chorar, nã o até
que visse a prova da morte de Bash. Quantos anos Margrete
permaneceu forte pelos outros? Ela poderia se recompor e ser
forte agora pela tripulaçã o restante. Por Bay. Por Atlas.
Quer ela desejasse ou nã o, o povo Azantiano tinha começado
a vê -la como uma esperança. Sua salvadora. Nã o podia
desmoronar quando tantos dependiam dela para ser forte.
Inclusive ela mesma.
Margrete deu meia-volta, prestes a começar a retornar,
quando sua bota bateu em um objeto duro. Franzindo as
sobrancelhas, ela se abaixou e limpou uma camada de areia.
E amaldiçoou novamente.
Na ponta de seu calçado havia uma moeda. Uma que ela
nunca tinha visto. Nã o era uma moeda usada em qualquer
porto ou baı́a do reino.
A moeda brilhava.
Com as mã os trê mulas, Margrete pegou a reluzente peça de
prata e a aproximou para examiná -la. Uma pessoa com algum
senso de autopreservaçã o poderia ter deixado cair a moeda
brilhante, mas Margrete estava longe demais para se importar.
De um lado, havia a inscriçã o de um olho. O desenho era
simples, até tosco, mas Margrete estreitou os olhos, e viu que
havia um nú mero gravado dentro da pupila.
— Um? — murmurou ela em voz alta. Virando-a, examinou o
outro lado. Uma escrita elegante, em desacordo com o desenho
rudimentar, foi gravada no metal.
Cuidado com a Noite Eterna.
Um arrepio percorreu todo seu corpo e as mã os começaram
a tremer. Ela quase deixou a moeda cair ao sentir o poder de
Malum faiscar antes de se extinguir completamente. A frieza de
sua ausê ncia era, de alguma forma, pior.
Sentiu como se já tivesse visto aquela moeda antes, mas,
assim como a pró pria ilha, ela nã o tinha lembrança clara dela.
Colocou a moeda no bolso e se forçou a seguir em frente.
Talvez Bay tivesse alguma ideia, e qualquer pista seria melhor
do que nada. Algo estranho estava em jogo ali, embora ela nã o
entendesse o quê .
Sua vida havia mudado de um misté rio para outro.
Primeiro, Azantian. Entã o, seus poderes. Lutar contra um
deus sem rosto.
Recordar seus pesadelos a fez se lembrar de sua visã o. A que
ela teve algumas noites antes.
Ela tinha visto o Phaedra afundar. Viu os destroços, a
madeira lascada, as velas esfarrapadas e os mastros quebrados.
Margrete parou, a noite girando e borrando em uma linha.
Ela poderia ter evitado isso. Impedido tudo aquilo.
Mas nã o tinha feito nada.
Ela caiu de joelhos, fechando as mã os na areia.
Abriu a boca e gritou, liberando toda a culpa, tristeza e raiva
que havia reprimido para que a tripulaçã o nã o visse. E, de
dentro do bolso, ela sentiu a moeda estremecer, vibrando
contra sua perna.
Aquela nã o era uma ilha comum.
argrete conseguiu se levantar, enxugar as lá grimas e, algumas horas depois, chegou
ao lugar onde Bay e os outros aguardavam. Seu amigo correu ao encontro dela, seus olhos a
examinando da cabeça aos pé s em busca de ferimentos. Mas ele nã o encontraria nenhum que
pudesse ver. Suas feridas ardiam abaixo da superfı́cie.
A realidade de que nã o tinham encontrado Bash teve para ela o
efeito de um furacã o, e foi preciso cada grama de força de vontade para
manter em seu rosto uma má scara sem emoçã o. Eram nove
sobreviventes no total, incluindo ela.
Nove.
Dos cem homens e mulheres com quem partiram. Isso fez a raiva de
Margrete aumentar, e as pontas de seus dedos zumbiram. Os poderes
que ela tentou invocar em casa, em Azantian, lutuavam dentro dela ―
calmos em um momento e indomá veis no pró ximo.
— Encontrei isso na praia — disse ela, en iando a mã o no bolso e
pegando a moeda. A luz que irradiava nã o havia diminuı́do, e os olhos
de Bay se arregalaram com a visã o.
— Deixe-me ver — pediu ele, sua voz icando fria. Ele a segurou
entre o polegar e o indicador, virando-a de um lado para o outro. —
Este sı́mbolo… — ele apontou para o olho — … pertence a Surria.
— Entã o por que está aqui? E, por favor, me diga que há uma razã o
para ela brilhar.
Diga que é apenas uma porcaria de uma moeda, e não uma pista
sinistra depois de escaparmos da morte por pouco.
— Eu já vi uma dessas, ela foi guardada na galeria de Azantian.
Margrete ergueu uma sobrancelha, sem entender do que Bay falava.
— E a galeria onde guardamos outras relı́quias e as joias da coroa —
explicou ele. Nã o é um lugar que Bash teria pensado em te mostrar, já
que o homem nã o se importa com “luxos obscenos”, como ele os chama.
Um desperdı́cio, se você quer saber minha opiniã o — resmungou.
— Foco, Bay — incitou Margrete.
Ele suspirou.
— Bom, pelo que me contaram, existem apenas trê s dessas.
Bay virou a moeda para o lado onde estava escrito Cuidado com a
Noite Eterna. Margrete se aproximou. Nada. Nem uma pista sobre o que
aquilo poderia signi icar. Nenhum sı́mbolo alé m do olho na outra face.
— Aparentemente, Surria as criou apó s o nascimento dos ilhos —
continuou Bay. — Milê nios se passaram até que ela os levou para uma
ilha que criou, onde forçou os irmã os a passarem por uma grande
provaçã o quando encontrassem uma moeda. A deusa queria garantir
que eles fossem dignos de governar os mares, e seus ilhos tiveram que
se provar. Uma vez que as trê s tentativas foram concluı́das, eles foram
presenteados com uma onda de divindade. Depois disso, nenhum dos
outros deuses jamais poderia negar seu direito de primogenitura.
Sozinhos, eles poderiam ser derrotados. Mas juntos? Juntos, eles seriam
mais poderosos do que qualquer um dos deuses combinados.
Margrete estremeceu com o pensamento. Se Darius e Malum nã o
tivessem brigado, poderiam ter combinado poderes e feito grandes
coisas. Ou destruı́do todo o reino.
— Que tipo de testes eles passaram na ilha? — perguntou ela, o
cabelo da nuca se arrepiando. Nada daquilo parecia uma coincidê ncia.
— Nã o sei — sussurrou Bay, com a testa franzida, pensando. — Mas
imagino que nã o foram nada fá ceis. — Ele icou brincando com a
misteriosa moeda jogando-a para o ato até que Margrete estendeu a
mã o e o fez parar.
— Bay. Primeiro, encontraremos Bash. Duvido que esta seja a moeda
real da lenda. — Ainda enquanto falava, ela sabia que estava mentindo.
A coisa amaldiçoada se iluminava como um farol. Certamente nã o
pertencia a este mundo. Nã o ao mundo humano, pelo menos.
Alé m disso, ela nã o podia ignorar como a moeda a fez se sentir. E ela
já sentia demais.
— Espero que Bash tenha lutado para se livrar do domı́nio das
nymeras. Meu amigo nã o é de ceder tã o facilmente. — Bay passou a
mã o pelo cabelo loiro e curto. As pontas icaram espetando para todos
os lados. — Voto por fazermos uma fogueira e nos acomodarmos para
passar a noite. Quando amanhecer, poderemos continuar a busca.
Adrian sempre diz que nenhuma boa ideia surge depois do anoitecer.
Adrian.
Margrete sentiu-se grata por ele ter permanecido em Azantian. Ela
ergueu o olhar para o amigo e viu que seus olhos estavam cheios de
lá grimas que ele tentava nã o derramar.
Em vez de fazer uma pergunta tola, ela apenas o abraçou. Bay podia
nã o ter perdido o namorado para as ondas, mas perdeu sua tripulaçã o.
Os homens e mulheres que ele treinou por tantos anos.
Ela nã o conseguia alcançar a profundidade de como ele se sentia. A
dor que ele devia estar sentindo.
— A gente vai encontrar o Bash, Margrete — sussurrou ele em seu
cabelo. — E entã o vamos destruir todos os monstros que o levaram.

A manhã chegou devagar. Os cé us permaneceram nublados,


cinzentos e solenes. O sol mal penetrava nas nuvens densas que o
cercavam, e a luz que passava pela neblina lançava na ilha um brilho
arti icial.
A fogueira que acenderam na noite anterior ardia sem chamas,
apagando-se. Nã o tinha fornecido muito calor, de qualquer maneira.
Margrete e Bay tinham se acomodado lado a lado, compartilhando o
calor do corpo. Ela suspeitava que ele desejava a proximidade tanto
quanto ela.
O resto da tripulaçã o estava onde por im tinha desmaiado na noite
anterior, a maioria de joelhos dobrados contra o peito enquanto olhava
para as á guas. O som das ondas batendo na praia pouco adiantou para
acalmar os nervos de qualquer um deles, ainda mais com aquela
vegetaçã o escura logo atrá s do acampamento improvisado ― um
lembrete sinistro de para onde eles iriam em breve.
— Alguma novidade? — perguntou Margrete a Bay enquanto ele
inspecionava a moeda pela centé sima vez, seu corpo esguio curvado
perto da fogueira.
— Nã o — Bay gemeu e entregou a moeda a ela com uma carranca
frustrada. No momento em que tocou a palma da mã o de Margrete, uma
faı́sca percorreu seu braço.
Ela se encolheu.
— O que foi isso? — perguntou ele, notando a reaçã o sutil.
— Nada — mentiu ela.
Bay ergueu uma sobrancelha, cé tico, mas nã o insistiu, o que a deixou
agradecida. Ele se levantou e limpou a areia da calça, pousando os olhos
nas á rvores. Margrete suspeitava que o poderoso guerreiro e
marinheiro diante dela nã o estava interessado em se aventurar mais
fundo naqueles bosques.
— Precisamos procurar á gua — disse ele.
Ela se levantou també m, agradecida por eles estarem fazendo algo
útil ao invé s de icarem sentados esperando que algo acontecesse. Alé m
disso, toda vez que piscava, ela via Bash e revivia aqueles ú ltimos
momentos horrı́veis, quando sentiu que o abraço dela estava cedendo.
Quando ela o soltou.
— Melhor guardar isso — falou Bay, olhando para a moeda que ela
segurava.
A essê ncia de Malum pareceu recuar ao vê -la. Margrete a apertou
com mais força na palma da mã o.
Ao redor deles, a tripulaçã o cansada desviou o olhar do fogo fraco
para seu lı́der. Eles també m pressentiam a jornada iminente.
— Espero que possamos encontrar um pouco de á gua doce no
interior da ilha — Bay anunciou alto o su iciente para que todos
ouvissem. — Agua doce é nossa prioridade. Mas mantenham os olhos
abertos. Alertem sobre qualquer coisa que pareça errada.
Os marinheiros assentiram, e Grant grunhiu em resposta. O homem
mais velho mantinha os olhos em Mila, a marinheira ruiva que havia
quebrado a perna. Ela fez uma careta quando a mexeu, mas ningué m
saberia de seu ferimento só de olhar para ela andando. Mais algumas
horas e seria como se ela nunca tivesse se ferido.
— Sairemos em cinco minutos.
Bay deu as costas para a tripulaçã o enquanto eles faziam os
preparativos ― que nã o eram muitos, já que tinham apenas as roupas
do corpo e nenhuma comida. Felizmente, alguns tinham cantis, que
seriam devidamente enchidos quando encontrassem á gua. Eles teriam
que compartilhar. Com sorte, nã o icariam naquele lugar tempo
su iciente para que os recursos limitados se tornassem um problema.
Um grito estridente soou das á rvores. Margrete e Bay voltaram os
olhos arregalados na direçã o da loresta. Parecia um pá ssaro, embora
nunca tivessem ouvido um grasnado como aquele.
Quase ao mesmo tempo, Bay e Margrete inspiraram profundamente.
A mã o dela foi para o colar que ganhara de Bash, as facetas geladas
perfurando a ponta dos dedos. O contato a colocou de volta no prumo.
— Pronta? — Bay perguntou, a mandı́bula apertada. Ele desviou a
atençã o da loresta e das feras desconhecidas que ela continha. — Você
está com a adaga de Adrian?
— Sempre — disse ela, estendendo a mã o para a bainha da coxa. A
adaga simples tinha pertencido ao pai de Adrian. Quando seu amigo e
treinador a presenteara com ela um mê s antes, Margrete quase chorou.
O presente signi icava mais para ela do que ele jamais poderia ter
imaginado.
— Otimo. Fique com ela a postos. — Bay deu um tapinha no ombro
dela. — Se você se machucar, Bash vai me matar quando o
encontrarmos.
Sua tentativa de aliviar a tensã o falhou, embora Margrete tenha
forçado os lá bios a se erguerem.
— Entã o sugiro que o encontremos antes que eu morra
prematuramente.
Bay sorriu e balançou a cabeça.
— Você sempre tã o otimista, Margrete.
Dez minutos depois, a tripulaçã o se viu nas profundezas da loresta
esparsa. Os galhos lambiam a pele de Margrete, cortando seus
antebraços expostos, que já estavam cobertos de pequenos cortes e
arranhõ es, mas ela mal os sentia.
Aquele lugar fazia os pelos de seus braços se arrepiarem e seu
estô mago icar em um nó constante de ansiedade. Ela nã o conseguia
explicar, mas, mesmo que seu corpo reagisse ferozmente ao novo
ambiente, havia um zumbido paci icador logo abaixo de seus ossos, e
ela teve uma sensaçã o avassaladora de déjà vu.
Margrete afastou o pensamento peculiar. Ela nunca esteve ali. Os
deuses sabiam que ela se lembraria de um lugar tã o horrı́vel.
O mesmo grasnado de antes soou mais trê s vezes. Estava mais alto,
mais penetrante, e fez o coraçã o de Margrete pular a cada vez. Estavam
se aproximando de algo, o que quer que esse algo fosse.
Margrete agarrou a adaga, as palmas ú midas e frias. O clima ali nã o
era normal. Mudava a cada dois minutos, de quente para frio e vice-
versa. O ú nico som ― alé m dos guinchos ― era o vento. Sacudia as
folhas frá geis e golpeava a tripulaçã o. Margrete fungou, detectando
alguma especiaria estrangeira.
Abruptamente, Bay ergueu o punho no ar, e todos pararam. Ele virou
a cabeça para a direita, e o olhar de Margrete foi para onde as á rvores
se separavam, revelando uma trilha quase invisı́vel. Sem uma palavra,
seu lı́der começou a descer o caminho estreito, os passos leves. Ele se
movia como um fantasma.
Mila icou perto de Grant, e Margrete se perguntou se eles eram
parentes. A jovem marinheira continuamente trocava olhares com ele
enquanto seguiam Bay. Atrá s deles, dois irmã os caminhavam lado a
lado, olhos azuis iguais, arregalados e alertas. E, por im, um homem
louro andava sozinho, com a mã o ixa na adaga presa ao quadril.
Margrete foi a ú ltima a descer, depois que o ú ltimo membro do
modesto grupo seguiu atrá s de Bay. Enquanto ela andava, seus olhos se
desviaram para os cé us. Quase nenhuma luz atravessava os galhos e as
folhas cor de ô nix, e era difı́cil discernir quanto tempo havia se passado.
As pontas de seus dedos zumbiram mais uma vez, e Margrete os
moveu a sua frente, torcendo os pulsos. Nervosismo. Tinha que ser o
nervosismo.
No entanto, mesmo enquanto ela se assegurava de que nada fora do
comum estivesse em jogo, a moeda em seu bolso parecia vibrar com
vida, pulsando em sintonia com cada batida do seu coraçã o. Se a moeda
fosse real, se realmente pertencesse à deusa, entã o…
De sú bito, Margrete colidiu com as costas largas de Grant.
Todo o ar saiu de seus pulmõ es, e um pedido de desculpas morreu
em sua lı́ngua. Havia uma razã o para todos terem parado de andar
abruptamente ― e a cena à frente de Margrete congelou-a no lugar.
Ossos.
Ossos humanos.
Eles estavam espalhados em uma clareira, alguns quebrados e
estilhaçados, outros inteiros. Alguns ainda tinham vestı́gios de
mú sculos em decomposiçã o que nã o tinham se separado.
— Santos deuses — disse ela em um fô lego. — Que porra é …
Ela caiu no chã o com um grito de dor que sufocou suas palavras. Sua
perna queimava, formigando como se mil agulhas minú sculas
estivessem sendo espetadas em sua pele. Na agonia confusa, ela en iou
a mã o no bolso, porque sentiu a moeda escondida latejando
furiosamente em sua mã o. O cheiro de cobre lutuou para suas narinas,
e o calor se acumulou na palma de sua mã o.
Enquanto Bay cambaleava para perto dela, Margrete estendeu a
moeda. Seus dentes rangeram enquanto a olhava com admiraçã o. E com
medo. A moeda nã o tinha mais um brilho misterioso.
Sangue.
Escorria do sı́mbolo como lá grimas.
Margrete virou-se para Bay assim que a primeira gota caiu e a ilha
fez um estrondo brutal. O restante da tripulaçã o tombou no chã o, tendo
perdido a irmeza dos pé s.
Bay a segurou enquanto lutava para mantê -los irmes. Ela agarrou
sua camisa rasgada com as duas mã os, virando o rosto para o peito
dele, estremecendo tã o violentamente quanto a terra.
Um segundo depois, tudo cessou. Tudo se acalmou. O mundo cinza
se endireitou.
Margrete espiou por baixo da segurança do braço de Bay. O nevoeiro
da cor da meia-noite avançava em direçã o a eles, serpenteando por
entre as á rvores e a mata. Seu ritmo nã o lhes daria tempo para fugir,
para correr de volta à praia. Movia-se como se fosse senciente, como se
sentisse a presença deles e desejasse sufocá -los sob seu espesso manto
de veneno.
Os olhos dela se fecharam enquanto a né voa a envolvia, roubando
seu ar e sua visã o. Ela percebeu a pulsaçã o fraca em sua mã o, a batida
estrondosa da moeda diminuindo. Por im, parou de latejar
completamente quando Margrete deu um ú ltimo suspiro.
lgo pesado estava em cima de Bash.
Ele acordou segundos antes, o cheiro de carne podre
entupindo suas narinas. Quando tentou se levantar, fazer
alguma coisa para escapar do odor pungente da morte, nã o
conseguiu se mover sequer um centı́metro. Nã o conseguia ver
nada alé m de cinza e branco.
O pâ nico imediatamente correu em seu sangue, e a
adrenalina fez seus braços sacudirem, debatendo-se contra a
camada branca que o envolvia. Os objetos empilhados em cima
dele eram gelados ao toque, duros, mas quebradiços, e
cheiravam mal.
Um estalo soou no alto, o barulho o incitando a continuar
lutando. Por im, ele conseguiu levantar o braço alguns
centı́metros e usou esse espaço para fechar a mã o em punho e
bater contra a barreira restante.
Nã o havia tempo para considerar onde ele estava ou o que o
prendia. Bash só sabia que, se nã o saı́sse logo, sufocaria aos
poucos. Já estava icando tonto pela falta de oxigê nio, e o aroma
pungente fez a bile subir, queimando sua garganta.
Bash engoliu o medo, como costumava fazer, e se focou na
tarefa. Ele se concentrou em pequenos movimentos, as
mudanças triviais que permitiam que mais ar se in iltrasse e o
ajudasse a respirar. Pouco a pouco, deslocou os objetos que o
prendiam, e com a visibilidade quase nula, imaginou a ú nica
coisa que sempre o acalmava. A ú nica pessoa.
A imagem dela lhe deu força, e, com um rugido, Bash ergueu
os dois braços ao mesmo tempo e quebrou a camada inal de
branco que o mantinha cativo.
Ele se libertou, enchendo desesperadamente os pulmõ es,
ofegante, enquanto acalmava sua pulsaçã o. Mesmo piscando,
nã o conseguia clarear a visã o, e uma ina camada de pó lutuava
no ar, lançando tudo em uma né voa sombria.
Onde ele estava?
Bash gemeu enquanto se levantava e se apoiava nos
cotovelos. Algo duro estalou sob o peso de sua mã o, e seu olhar
instantaneamente foi para baixo. Ele quase desejou nã o ter
olhado.
Merda.
A adrenalina que o salvara momentos antes voltou com força
total, embora, desta vez, a ansiedade que a acompanhou fez o
mundo girar.
Ele foi enterrado sob ossos.
Ossos.
Ele se levantou com outro grito. Restos humanos nã o o
assustavam, mas acordar sepultado sob eles? Enterrado como
se fosse outro corpo sem alma deixado ali para apodrecer? Sim,
aquilo certamente era o su iciente para desencadear seu
pâ nico.
Bash se arrastou para cima e para fora da pilha de restos
humanos, propositalmente nã o olhando para onde pisava.
Memó rias do Phaedra naufragando quase o izeram se dobrar
de horror, mas se forçou a seguir em frente, rangendo os dentes.
Tinha que chegar onde Margrete e sua tripulaçã o estavam. Ele
se dirigiu a uma pequena aglomeraçã o de á rvores à sua direita,
deu um passo descuidado para frente…
E caiu.
O momento de queda livre foi rá pido. Em um segundo, seu
coraçã o despencou e seu estô mago se contorceu em nó s
enquanto suas botas balançavam ao ar livre, e, no pró ximo, ele
sentiu o impacto.
A á gua congelada correu ao redor dele e o engoliu. Ele lutou
contra a corrente que o levava por um riacho estreito, manchas
de neblina branca revestindo as margens.
Ele perdeu segundos preciosos abrindo a boca para gritar, e
sabia que nã o tinha muito tempo antes que seu ar acabasse.
Azantiano ou nã o, ele nã o conseguia respirar debaixo d’á gua.
Nã o como Margrete conseguia.
Ao pensar nela, Bash se impulsionou com mais força,
chutando com mais vigor. E se ela tivesse sido enterrada, assim
como ele, sob uma pilha de restos humanos? E se estivesse
clamando por ajuda e ele se afogasse porque estava em pâ nico
demais para enxergar direito?
Bash se esforçou, dentes à mostra, lutando contra a corrente.
Nã o podia morrer. Nã o assim, e nã o com a segurança de
Margrete em jogo.
Como costumava fazer no passado, Bash se entregou à á gua,
usando a corrente a seu favor. Ele relaxou o corpo o melhor que
pô de e fechou os olhos, buscando o pulsar da á gua, sua força
vital.
Azantianos foram feitos para isso, e os instintos de Bash
assumiram o controle.
Uma grande sacudida o atravessou no momento em que se
conectou, e a resistê ncia que o prendia se dissipou. Com a
mulher que amava nos pensamentos, Bash chegou à superfı́cie.
A correnteza ainda o carregava, embalava-o enquanto ambos
se moviam, e ele conseguiu encher os pulmõ es de ar fresco e
vida. Bem, fresco nã o era a melhor palavra. A brisa trazia
alguma especiaria exó tica que se misturava ao aroma geral de
decomposiçã o do ambiente.
Emergindo e imergindo, Bash mal conseguia ver as á rvores
do tipo trema orientale e seus galhos inos, mal podia ver o solo
escuro que corria de ambos os lados. No entanto, quando suas
pernas começaram a formigar, se concentrou nessa sensaçã o.
Começou lentamente, o tremor, a dormê ncia formigante. Subiu
pelos dedos dos pé s e rastejou alé m de suas botas e
panturrilhas.
Bash se virou para o lado, chutando com seus membros
instá veis, esperando alcançar a margem e se arrastar para a
terra irme. Foram preciso trê s tentativas, mas, en im, ele
agarrou uma das raı́zes retorcidas mergulhadas na á gua. Com a
raiz bem segura entre as mã os, ele se ergueu do riacho, fazendo
uma careta enquanto lutava para jogar a parte superior do
corpo no solo preto.
Ele caiu com um gemido.
Bash estava ali, imó vel e completamente atordoado. Aquele
estranho formigamento em suas pernas cessou, e ele
movimentou os dedos dos pé s dentro das botas encharcadas.
Rastejando até a margem, virou de costas, olhando para cima
em busca de um menor indı́cio de cé u brilhando entre as
á rvores.
O Phaedra tinha naufragado.
A pergunta ó bvia, é claro, persistia: como ele foi parar tã o
longe da costa e ainda por cima coberto de ossos? O certo seria
ter chegado à praia com os outros, se houvesse outros
sobreviventes. Nã o fazia nenhum sentido.
Bash colocou a mã o em seu coraçã o, que batia
descontrolado. Agora que nã o estava mais enfrentando a morte
iminente, tinha que descobrir sua localizaçã o e formular um
plano. Ficar parado ali nã o lhe daria respostas, e certamente
nã o lhe diria o que aconteceu com Margrete e seus amigos.
Ele se sentou ― prestes a se levantar do chã o ― quando fez
uma pausa. Avistou sua mã o direita.
O medo com o qual ele estava lutando se libertou.
Tinta preta manchava os cantos de suas unhas perto da
cutı́cula, sua pele tingida de um tom correspondente logo
abaixo. Bash aproximou a mã o, usando a outra para tentar
limpar a tinta. Nã o limpou. Na verdade, ele poderia jurar que
viu a tinta se espalhar, ainda que só um pouco.
Ele amaldiçoou, mais alto do que pretendia. Podia ser
qualquer coisa, algum tipo de tintura que iria desaparecer, mas
a forma como a tinta parecia girar e se mover destruiu sua
compostura. Absolutamente acabou com ela.
No fundo, ele sabia que nã o era tinta.
Bash icou de pé e virou a cabeça para a esquerda e para a
direita, examinando a loresta fantasmagó rica que se elevava ao
seu redor como esqueletos carbonizados. Nã o havia gritos de
animais nem o chilrear dos pá ssaros, nenhum dos sons tı́picos
que se ouve em uma loresta. Apenas o barulho do riacho e dos
ventos ruidosos chegavam a seus ouvidos, e a brisa trazia
aquele maldito cheiro de podridã o.
Calma. Bash teve que se concentrar para encontrar alguma
calma. Porque, naquele momento, preso e sozinho em um lugar
que só os deuses sabiam onde, ele estava muito perto de perder
a cabeça. Ignorou seu instinto de gritar o mais alto que podia,
chamar por sua tripulaçã o desaparecida. Por Margrete. Em vez
disso, anos de treinamento tá tico com Ortum o izeram
desacelerar e avaliar a situaçã o.
Movendo-se para a á rvore mais pró xima, Bash passou a mã o
tingida pela casca á spera. Ele nunca tinha visto ou ouvido falar
de uma á rvore com folhas pretas, o que signi icava que nã o
havia relatos daquela ilha na biblioteca de Azantian ― o que era
bastante estranho. Os guardiõ es do mar conheciam qualquer
ilha ou costa em que as á guas roçassem a praia.
Abaixando a mã o, Bash continuou andando atravé s do mato,
murmurando uma centena de novas maldiçõ es. Galhos caı́dos
agarraram violentamente sua calça rasgada, e Bash detectou o
leve cheiro de seu sangue no ar.
Alguns minutos de caminhada sem rumo o levaram a uma
espé cie de clareira. Uma á rvore solitá ria erguia-se bem no
centro e, embora parecesse semelhante à s outras, o tronco era
largo e grosso e as folhas escuras brilhavam com manchas cor
de prata reluzente.
Bash nã o deveria ter se aproximado. Quantas histó rias ele
tinha lido nas quais o heró i conscientemente tocava o objeto
amaldiçoado ou divino durante uma de suas missõ es? Esses
contos nunca terminavam bem, e ele sempre achou que teria
tomado uma decisã o melhor se estivesse no lugar do
protagonista.
Talvez nã o fosse tã o inteligente quanto imaginava.
A poucos metros de distâ ncia, Bash percebeu uma confusã o
de redemoinhos e madeira lascada. Algum tipo de escrita havia
sido esculpida no tronco.
Cuidado com a Noite Eterna.
Incapaz de evitar, Bash tocou a inscriçã o, roçando a madeira
descascada onde havia sido gravada. Uma mancha vermelha
brilhava ao lado da letra C. Ele se inclinou, observando com
horror como a mancha vermelha lorescia, enquanto se
transformava em um io carmesim. Bash disparou para trá s.
Ele sentiu cheiro de sangue ― e nã o era o dele.
O sangue passou a escorrer livremente das letras esculpidas,
e Bash tropeçou em seus pé s, desesperado para icar o mais
longe possı́vel da á rvore sangrando. Na pressa, ele deu meia-
volta e tropeçou em um galho, caindo de cara no chã o. Ele
resmungou com o impacto.
Adrian estaria rindo pra caramba se tivesse visto seu rei
exibindo tal deselegâ ncia. Bash treinou por anos para ser um
assassino silencioso, um oponente formidá vel, mas, naquele
momento, foi superado por ossos, um riacho e, para um toque
inal, um mero galho.
Bash se ergueu pelo que parecia ser a centé sima vez e
esfregou as mã os sujas na calça.
Reuniu o que sabia: Margrete no convé s, a tempestade, o
Phaedra prestes a afundar. Mas uma lembrança em particular,
uma cena com bordas borradas, chamou sua atençã o. Ele tinha
visto algum tipo de sombra, uma que se movimentava em
direçã o a ele de mã os estendidas, como se quisesse agarrá -lo. A
ventania se ampliou ao redor de Bash, e ele se perguntou o que
estaria fazendo na proa em vez de estar com seus homens.
Nunca os teria abandonado durante uma tempestade, ele…
Um grito soou.
O vento parou de soprar.
O ar icou frio, pesado pelo gelo.
Bash se acalmou, seu corpo icando reto. Os anos de
treinamento en im tinham a lorado, e ele rapidamente
pressionou as costas contra a á rvore mais pró xima, os ouvidos
atentos enquanto ouvia o barulho estridente soar de novo.
Aquilo nã o poderia ter sido um animal.
Ele esperou por muitos longos minutos, prendendo a
respiraçã o com medo de que o que quer que tivesse feito aquele
barulho viesse atrá s dele e o atacasse. No entanto, nenhum
galho quebrou ou folhas se enrugaram, nenhum sinal de que
algué m ou alguma coisa se aproximava. Bash cautelosamente
saiu de seu esconderijo, olhando a loresta atravé s de fendas
estreitas.
Recomponha-se, ele se repreendeu. Adrian teria dito a ele
para…
Bash viu um movimento logo à frente, apenas um leve
vislumbre de cinza. Estendeu a mã o para segurar sua adaga
enquanto uma né voa preta e ardó sia rastejava ao redor das
á rvores como vapor. A né voa correu em sua direçã o, rá pida
demais para fugir e densa demais para ver alé m.
Nã o poderia ter um momento para recuperar o fô lego?
A né voa pareceu acelerar em resposta.
Acho que não.
Dando meia-volta, ele disparou, desviando de á rvores e
troncos caı́dos, pulando os arbustos e a vegetaçã o rasteira e
espessa. Seu coraçã o disparou e suor umedeceu sua testa, mas
ele nã o ia parar.
Embora determinado, Bash sabia que apenas pura vontade
nã o seria su iciente para livrá -lo do nevoeiro. Ele o perseguia,
ansioso para engoli-lo inteiro. Entã o impulsou as pernas para a
frente, desejando que seu corpo nã o estivesse tã o lento, tã o
fraco.
Quando a né voa mı́stica deslizou atrá s dele e envolveu seu
corpo, Bash cerrou os dentes, ainda lutando para correr. Lutar.
Uma vez que a né voa encheu seus pulmõ es, Bash caiu,
desabando no chã o. Ele bateu a cabeça, e manchas pretas
pontilharam sua visã o. Em segundos, a escuridã o tomou conta
de todo o restante.
Bash parou de respirar.
Entã o fechou os olhos, um pesadelo de garras, dentes e
escamas varrendo sua mente. Ele gritou no vazio, o tempo todo
sabendo que nã o havia escapató ria.
argrete abriu os olhos. Estava em um penhasco rochoso à beira do mar. Sozinha. O
cé u, que antes estava cinza e nublado, tinha sido varrido por um azul vibrante, o sol brilhando
sobre ela com força total. Ela se virou.
Prias.
De alguma forma, Margrete se viu novamente em Prias, no topo dos
penhascos que davam para a baı́a, os que icavam bem ao lado da
fortaleza de seu pai. Ela franziu a testa. Embora a brisa que refrescava
seu rosto fosse bem-vinda, nã o cheirava a Prias. Misturando-se aos
aromas familiares das docas abaixo da fortaleza pairava uma especiaria
que ela nã o reconheceu.
Espere.
Ela a reconhecia. Embora tenha sentido o cheiro pela primeira vez na
praia, era a mesma que sentiram depois de quase perderem a vida.
Tudo voltou para ela em uma corrida doentia, e a ú ltima coisa de que
se lembrava era de uma neblina… entã o nada.
Sem saber por que ou como aquele nevoeiro peculiar a levara ali,
dentre tantos outros lugares, Margrete atravessou as rochas em direçã o
à fortaleza. Mal caminhara alguns metros quando algo tiniu dentro de
seu bolso. Ela estendeu a mã o e retirou a moeda que encontrou
enquanto procurava Bash.
Cuidado com a Noite Eterna.
O aviso a olhou de volta, provocando-a. O que aquilo signi icava? E
como a moeda tinha ido parar no bolso dela? Sua lista de perguntas só
crescia.
Margrete acelerou o passo, incerta de tudo, de cada movimento que
fazia, de cada respiraçã o que dava. Ela apenas se movia. Mais longe das
falé sias, longe do mar que a chamava, Margrete nã o parou até que abriu
os portõ es principais da fortaleza do pai e entrou.
O silê ncio a cumprimentou. Nem mesmo os sons habituais dos
empregados chegaram aos seus ouvidos, e ela espiou pelos cantos
enquanto passava pelos corredores, procurando qualquer outra alma.
Mais uma vez, se viu completamente sozinha. Como se o instinto a
guiasse, Margrete agarrou o corrimã o da escada e subiu na ponta dos
pé s até o segundo andar.
A fortaleza que ela tinha chamado de lar por vinte e trê s anos
parecia vı́vida demais para ser real, como se estivesse olhando para a
versã o de um artista e ele tivesse usado muita cor.
Estava prestes a subir para o terceiro andar, onde encontraria o
quarto dela e de Birdie, quando os pelos de seus braços se arrepiaram.
Uma suave cançã o de ninar tocava em algum lugar pró ximo, uma
melodia que ela nunca tinha ouvido. Isso a lembrou do verã o, da
inocê ncia e tudo o que ela nã o teve quando criança. Nã o conseguia se
conter e continuava caminhando em direçã o à fonte.
Seus membros icavam fatigados a cada passo, sua mente icando
pesada també m, e sempre que ela se concentrava em algo alé m da
cançã o de ninar, a escuridã o rastejava ao redor de sua visã o.
Margrete nã o percebeu onde estava até que fosse tarde demais.
Estava no centro do escritó rio de seu pai. O lugar onde seu trauma
começara.
Aquela mú sica inebriante continuou a tocar, provocando-a. Ela tinha
que encontrá -la; estava desesperada para segurar a mú sica em suas
pró prias mã os e guardar tudo para si mesma. Era uma promessa de
futuro, uma melodia de alegria e in initas possibilidades.
Margrete se arrastou até a mesa de mogno do pai e, mesmo que o
som exigisse que continuasse a procurar, seus pé s tropeçaram. Ela nã o
queria estar ali, de volta à quele escritó rio. Seu pâ nico loresceu, e o
suor umedeceu sua testa. A sala começou a girar, e ela temeu que seu
coraçã o, que batia selvagemente, escapasse do peito.
Ela estava tendo algum tipo de ataque.
E nã o conseguia respirar. Mal conseguia se mexer.
Margrete fechou os olhos. A sala girou e icou borrada, e ela só
queria que tudo parasse, queria estar em qualquer outro lugar do
mundo. De repente, voltou a ser criança, chorando para que o pai
abrisse a porta da caixa, implorando para que ele a amasse. Isso era
tudo o que ela sempre quisera, uma coisa tã o simples, e ainda assim era
a ú nica coisa que ele nã o poderia dar a ela.
Quando Margrete abriu os olhos em seguida, estava na escuridã o
total. Ela gritou e o som ecoou, icando mais alto, mais estridente com o
passar dos segundos. Instintivamente, seus braços se ergueram, e
imediatamente tocaram os painé is de madeira maciça de uma prisã o
que ela conhecia muito bem.
A caixa.
A arma que seu pai tinha usado para controlá -la. Uma tentativa de
tirar a divindade que se abrigava em sua alma e enviá -la de volta para a
pedra sagrada que ele tinha roubado. Com isso, ele nã o conseguiu
recuperar a magia, mas certamente conseguiu deixá -la assustada,
transformando-a em uma criança perdida, implorando freneticamente
por ar, por luz. Por amor.
Margrete bateu na madeira, chutando e gritando até a garganta icar
em carne viva. Nã o parou até que o calor se espalhou por seus dedos,
até que seu sangue gotejou no chã o. Deuses, ela nã o poderia estar ali.
De novo, nã o.
Quando gritou novamente, o chã o sob suas botas tremeu e balançou.
Ela cambaleou para o lado da caixa, batendo o ombro e uivando de dor.
Deve ter cortado mais do que os punhos, porque o cheiro de sangue
intensi icou.
Aquilo poderia ser um sonho, uma invençã o de sua imaginaçã o, e
nã o teria importâ ncia para ela. Mas enquanto aquelas paredes a
cercassem, Margrete nã o conseguiria pensar direito.
A caixa estremeceu com violê ncia, e entã o ela estava rolando,
girando e girando como se sua prisã o tivesse sido jogada para fora do
castelo. Margrete se dobrou, ansiando por ar enquanto girava em um
ciclo interminá vel de tormento.
Nã o conseguia pensar em Bash, Birdie ou na ilha em que
desembarcaram. Tudo o que a consumia era a sensaçã o avassaladora de
estar con inada. Estar ali trazia toda a sua dor de volta, o peso
esmagador de nunca ser su iciente, como se ela fosse um refugo a ser
descartado sempre que o capitã o achasse adequado.
O medo de Margrete a devorou.
Ele a torceu e virou do avesso.
Ela arquejou quando a caixa bateu em algo que parecia mais duro
que pedra. O ar saiu de seus pulmõ es, e ela estendeu os dois braços,
tocando as paredes de sua jaula. Tinha parado de rolar, mas…
Ela ouviu ondas.
Sentiu o cheiro do mar.
Sentiu-se afundando.
O grito de terror puro e verdadeiro que saiu de seus lá bios
machucou seus tı́mpanos. As unhas sangravam de tanto arranhar a
madeira, na tentativa de escapar como um animal enlouquecido. Ela
podia sentir a caixa caindo, podia sentir que descia nas ondas.
A á gua entrou pela fresta da porta. Ela bateu em seu rosto, entrou
em sua boca. Era seu maior pesadelo ― estar presa e morrendo naquela
caixa de horrores. Dar seu ú ltimo suspiro na engenhoca construı́da para
destruı́-la.
Margrete sempre se julgou capaz de pensar rá pido o su iciente para
se salvar quando colocada em uma situaçã o de vida ou morte. Mas ela
se autoconhecia melhor à quela altura.
O medo, em sua forma mais pura, a imobilizava.
Ela se ouviu falar o nome de Bash, mas soou distante, ao contrá rio de
sua pró pria voz. Suas palavras eram distorcidas e estridentes.
Desequilibradas.
Pare.
A voz que preencheu sua mente nã o pertencia a Darius. A Bash. A
Birdie.
Em algum lugar à distâ ncia, ela distinguiu os comandos de
estabilizaçã o, todos dizendo a ela para se acalmar, para se lembrar de
que nada daquilo poderia ser real. E… aquela voz?
Pertencia a ela.
De alguma forma, de alguma forma, uma pequena parte dela se
elevou acima do alarme e do pâ nico e exigiu que ela lutasse. Margrete
se agarrou à voz com força e a acolheu. Apertando os olhos, ela ouviu
cada sı́laba dominante, ignorando o quanto tremia.
Ele falhou. Ele nunca ia conseguir te quebrar.
O capitã o tentou e nã o conseguiu. Ele a torturou por anos, e sempre
que abria a porta da caixa, ela erguia o queixo e forçava um sorriso. Foi
assim que ela lhe mostrou que ele nã o poderia quebrar sua armadura, e
que nunca conseguiria roubar totalmente sua alma.
Uma alma que nã o o deixaria vencer.
É isso, disse sua pró pria voz, guiando-a. Respire fundo. Ele se foi.
Morreu. Não pode tirar mais nada de você.
Margrete manteve os olhos fechados, ingindo que a á gua nã o tinha
subido até seus quadris.
Você é mais forte do que isso. Do que ele.
Ela suportou o inferno e saiu dele, e teve a sorte de encontrar a
felicidade e a metade que faltava em sua alma. Margrete sofrera, como
tantos outros, e se reerguera.
O som das á guas agitadas icou rı́gido e, lentamente, ela o desligou
completamente.
Margrete imaginou Azantian, a ilha onde mudou seu destino. Ela se
imaginou subindo na onda que destruiu seu pai, e reviveu o momento
em que permitiu que aquela onda letal caı́sse, matando seu algoz.
Em vez da vergonha que sentiu durante meses apó s a morte dele,
Margrete sentiu… justiça. O senso de justiça que veio ao enfrentar o mal
encarnado e triunfar.
Todo o barulho parou e o ar ganhou vida, vibrando tã o forte que até
as tá buas sob suas botas estremeceram.
Quando tudo se acalmou e um manto de paz caiu sobre sua alma
cansada, Margrete abriu os olhos.
corpo carbonizado de Adrian nã o se movia. Seu peito
nã o subia e descia com as respiraçõ es irmes que muitas vezes
embalavam Bay para dormir. Seus olhos nã o se abriram e
brilharam com sua pró pria malı́cia sutil. O homem sem o qual
Bay nã o poderia viver jazia morto nas pedras do lado de fora do
palá cio de Azantian.
Bay nã o se importava que o palá cio tivesse queimado. Como
poderia? Ele sacudiu seu amado, as lá grimas caindo nas
bochechas marcadas de Adrian, pingando em um rosto que
estava quase irreconhecı́vel pelas queimaduras. Um rosto que
nunca mais iluminaria seu coraçã o.
— Vamos, Adrian. Abra os olhos. Olhe para mim. — soluçou
Bay, jogando-se contra o peito largo de Adrian. A bile subiu em
sua garganta quando o cheiro de pele e cabelo queimados
atingiu suas narinas, sufocando-o. Ele engoliu em seco e
apertou Adrian com mais força, esperando que seu amor
pudesse salvar os dois, porque se ele morresse…
Bay nã o sabia se iria se recuperar.
Esteve sozinho por tanto tempo que, quando Adrian entrou
em sua vida, percebeu quã o despedaçado estava. Quã o solitá rio.
Por ser ó rfã o, Bay nunca pensou que encontraria uma
conexã o como aquela com outra pessoa. Acreditar e esperar
levava à decepçã o e à dor, e ele já estava farto. Por isso se
concentrou no treinamento, nas armas e em se tornar algué m
temido e respeitado. Ignorou os soldados que lhe disseram que
era muito pequeno ou muito fraco para se tornar um dos
reverenciados soldados Azantianos. Bay ignorou todos eles.
Ele nunca se importou.
Adrian fez com que ele se importasse. E entã o ele nã o
conseguia parar.
Bay se levantou do peito de Adrian. O palá cio rugia em
chamas, as labaredas fazendo com que os andares superiores
desmoronassem e caı́ssem. Elas o alcançariam em breve. Se Bay
icasse ali por mais tempo, seria levado com os escombros.
Bay nã o se mexeu. O fogo poderia levá -lo també m, porque
onde quer que Adrian fosse, ele o seguiria sem pensar.
Ele nã o sabia como o incê ndio tinha começado. Tudo o que
se lembrava era de um lash de faı́scas alaranjadas, o cheiro de
magia das trevas, e, depois, o desastre total. Ele arrastou o
corpo de Adrian para fora dos portõ es e nã o se moveu desde
entã o.
Talvez ele merecesse aquele im. Sempre achou que morreria
sozinho e subserviente. Pateticamente indesejado.
Seu braço direito começou a tremer incontrolavelmente. Ele
quase podia sentir dedos fantasmas apertando seu mú sculo,
cavando sob sua camisa e machucando a pele. O que quer que
tivesse tomado conta dele tornou-se implacá vel, e a visã o de
Bay nadou enquanto ele era jogado ao lado do cadá ver de
Adrian.
Ao longe, algué m o chamou.
Ele caiu de costas e seus olhos se desviaram para o cé u. A
tremedeira continuava. Era tanta que até que o pró prio sol
parecia piscar, as nuvens se acinzentando e perdendo toda a
brancura.
O palá cio oscilou dentro e fora de foco, mesmo quando Bay
olhou para a janela mais alta, notando apenas um mı́nimo
vestı́gio de cabelo ruivo.
Bay!
Os dedos que ele sentiu em seus braços apertaram, e entã o
outro par segurou seu outro braço.
Acorde!
Parecia familiar. Como se pertencesse a algué m que ele
amava. Algué m que o amava també m.
Bay olhou ixamente para os olhos fechados de Adrian,
sabendo que nunca mais os veria faiscar.
Não é real.
O chã o em que ele estava deitado estremeceu. O cé u
escureceu, e ele pô de distinguir lashes de folhas carbonizadas
e galhos pretos.
Não me deixe.
Bay deu um salto. O ar nã o tinha o cheiro certo, nã o como
sua casa. Cheirava mal. Assim como…
A ilha.
Bay estava em uma ilha de areias cinzentas, e Margrete… era
a voz dela que implorava para ele acordar, para voltar para ela.
Quando a onda de consciê ncia assaltou seus sentidos, o ar
que ele sabia estar errado icou pesado e espesso. Ele fechou os
olhos e se concentrou na voz que o alcançou quando nem ele
conseguiu alcançar a si mesmo.
Volte para mim.
tempo passou e luiu, e Bash nã o conseguia distinguir
uma respiraçã o da outra. Um cruel vazio de sombras fez sua
pele coçar e pinicar, como se mil aranhas dançassem em seu
corpo e picassem sua carne.
Bash se virou e tudo o que encontrou foi escuridã o sem im.
Ele estava sobre uma pedra, a pedra ô nix lisa com veios brancos
que se estendia por toda a ilha, como os galhos.
Ele devia estar morto. Ou morrendo. Nã o havia outra opçã o.
Ele ouviu passos se aproximando à distâ ncia, um suave
tamborilar de pé s descalços. Bash prendeu a respiraçã o e
esperou, cada mú sculo de seu corpo tenso e preparado para
uma batalha. Embora pudesse ter deixado o plano mortal, nã o
estava especialmente interessado em desistir e aceitar seu
destino. Se algo viesse, ele lutaria com unhas e dentes.
Sua respiraçã o parou completamente quando uma mulher
emergiu do nada cinza e preto esfumaçado, usando um vestido
feito de pura seda branca. Cabelos longos e escuros pendiam
frouxamente pelas costas, as pontas com uma aparê ncia quase
chamuscada. Escamas pretas e cintilantes acariciavam seu peito
e envolviam seu pescoço como um laço horrı́vel, e as pontas dos
dedos dos pé s estavam escurecidas como se tivessem sido
queimadas.
Nã o era o oponente que ele esperava, e Bash estagnou,
imó vel sob o peso do olhar astuto da estranha igura. Nã o era
uma mulher, mesmo com pernas no lugar de uma cauda
pontiaguda. Nã o. Bash percebeu com clareza surpreendente o
que ela era.
Uma nymera… e uma que parecia mais humana do que ele
imaginava ser possı́vel.
Bash cerrou os punhos enquanto ela se aproximava, se
movimentando preguiçosamente, sem pressa, sorrindo como se
ela se divertisse com sua crescente inquietaçã o.
A criatura o avaliou com grande interesse, seus olhos
redondos deslizando por sua forma com o que ele poderia
confundir com curiosidade. Seu pulso acelerou em resposta, um
grito sufocado preso no peito. Ele sabia, pelos poucos livros que
lera sobre nymeras, que eram rá pidas, embora normalmente
fossem encontradas perto do mar, de onde extraı́am parte de
sua energia. Naquele abismo sobrenatural, nã o havia mar. No
entanto, aquela mulher, aquela coisa, estava ali, se
aproximando.
Quando ela parou ― melhor dizendo, pairou ― a nã o mais do
que um metro e meio de distâ ncia, ela se acalmou, inclinando a
cabeça para o lado e fechando os punhos. Com horror, Bash
vislumbrou suas garras serrilhadas, que estalaram
ritmicamente uma contra a outra. Ele baixou o olhar,
observando aquelas armas perfeitamente a iadas nas pontas de
seus dedos. Nã o tinha dú vidas de que poderiam in ligir uma dor
inimaginá vel.
Talvez fosse por isso que ele simplesmente levantou os olhos
para saudar o demô nio de vestido branco tã o enganosamente
puro.
Olá, querido rapaz.
As boas-vindas roucas foram direto para sua mente, os lá bios
rachados da criatura continuavam imó veis. O som ecoou no
crâ nio de Bash, cada sı́laba pronunciada e cortante. Era uma
voz que ele tinha ouvido antes ― em sonhos, durante a reuniã o
do conselho, sob o palá cio, na Caverna Adiria. Era ela. A besta
que o chamava.
— Quem é você ? — Bash exigiu saber, erguendo o queixo.
Sentir medo nã o era uma opçã o. Bash sabia que aqueles
monstros se alimentavam de desordem, inalando medo para
aumentar sua força.
Ele só desejava poder ver sua oponente corretamente, e que
o ar nã o pesasse em seus ossos, fazendo tudo parecer
dolorosamente lento.
A nymera levantou a mã o, deixando à mostra teias de aranha
de tinta preta como veias retorcidas na pele de porcelana. Bash
nã o podia fazer outra coisa alé m de recuar. Se tentasse pegar
sua adaga, a criatura atacaria.
Bash nã o conseguia se mover. Deuses, ele mal conseguia
icar de pé .
Uma pressã o fantasma pousou em seus ombros, obrigando-o
a icar de joelhos. Ele lutou, e nã o se dobrou facilmente.
Um sorriso malicioso curvou os lá bios da nymera, e ela se
inclinou para frente, colocando um ú nico dedo sob sua
mandı́bula. Seu toque era terno, se nã o reverente, e ela arrastou
a garra a iada até seu peito, parando acima do coraçã o, que
batia descontroladamente. Foi ali que ela parou.
Ao longo de sua aná lise vagarosa, Bash segurou seu olhar. Ele
era um rei. E aquela coisa nã o merecia seu medo. Ainda assim,
algo o atormentava quanto mais olhava para ela. Ele respirou
fundo, embora a sensaçã o incô moda permanecesse.
Você cresceu bem.
A nymera baixou a mã o e abriu um sorriso largo o su iciente
para exibir um conjunto de dentes irregulares, mais a iados do
que qualquer predador no mar.
— Eu cresci bem? — ecoou ele, se arrepiando. Ele queria
atacar e derrubar a abominaçã o sorridente, mas seu corpo se
recusou a seguir seu comando. A mulher, a nymera, sorriu, um
tipo de sorriso conhecedor que disparou todos os alarmes de
Bash.
Você vai descobrir o que quero dizer em breve.
Congelado, atordoado, indefeso, Bash assistiu enquanto uma
né voa rolante ― a mesma que o havia atacado na loresta ― veio
rá pido pelo espaço vazio. Uivos estridentes soaram, crescendo
dolorosamente altos à medida que as nuvens se aproximavam, e
ele percebeu mã os se movendo em meio ao caos. Caudas.
Rostos.
Sim. Bash conseguiu distinguir vá rios rostos na neblina,
todos pá lidos e vazios, com ı́ris escuras como as dele. Um vento
podre carregou a horda de monstros e, como se fossem um só ,
esticaram seus dedos alongados, alcançando Bash.
Ele nã o conseguia mais controlar o medo.
Bash gritou, tentando se mover, correr. Sua luta foi inú til.
Encurralado. Ele estava preso e nada poderia salvá -lo da
onda de criaturas com presas feitas para perfurar a pele. Presas
de monstros que podiam sugar a alma diretamente do corpo de
suas vı́timas.
Você é seu próprio pesadelo, soou a voz da nymera feminina
em algum lugar distante. Bash nã o podia virar a cabeça para
procurá -la, mas sentia sua presença.
Ele queria balançar a cabeça, negar suas palavras. Elas
podiam nã o fazer sentido para mais ningué m, mas ele as
entendia muito bem.
Sentia aquela escuridã o dentro de si havia muito tempo, e
desde o ataque a Azantian, seu domı́nio sobre sua besta interior
estava diminuindo. As pontas dos dedos de Bash formigaram
novamente, e como seus olhos eram a ú nica coisa que podia
mover, ele olhou para os lados.
A tinta em suas unhas.
Deuses.
Suas unhas escurecidas cresceram diante de seus olhos,
longas, a iadas e grotescas. Ele poderia ter gritado quando o
sangue se acumulou ao redor da base, quando a pele se esticou
e aceitou as garras saindo de ambas as mã os, mas ele nã o ouviu
nada alé m de seu coraçã o pulsando.
Nada naquele lugar parecia real, mesmo que Bash sentisse
uma dor severa e cortante. Era como estar preso em um sonho
lú cido, totalmente consciente e suscetı́vel aos horrores que
invadissem sua mente. E ele nã o podia fazer nada sobre aquilo.
Bash ergueu os olhos e encontrou seu re lexo. A né voa
sobrenatural que o havia roubado da realidade rodopiava
caoticamente, dançando ao redor de um espelho prateado
forrado com pedaços quebrados de vidro escuro do mar.
Olhe. Olhe para o seu verdadeiro rosto. A voz ecoou em sua
melodia assombrosa, uma provocaçã o amaldiçoada.
Bash vislumbrou seu rosto, os olhos escuros e… o cabelo,
agora preto. Os ios encaracolados tinham mudado de
castanho-avermelhado para o preto mais escuro. Boquiaberto,
ele nã o conseguia acreditar que a criatura que observava era
ele mesmo. As escamas enrolavam-se em seu pescoço,
serpenteando para mergulhar sob a camisa esfarrapada, suas
extremidades brutas e a iadas.
Ele piscou, e a mulher de branco voltou para diante dele, o
espelho e seu re lexo desaparecidos.
Ela fez um gesto com a cabeça, baixando o queixo em boas-
vindas.
Eis quem é você, meu ilho.
argrete pairou sobre o corpo adormecido de Bay. Ela o sacudiu de forma rude,
tentando desesperadamente libertá -lo do feitiço ao qual ambos sucumbiram. Aquele maldito
nevoeiro… ele deve ter causado as alucinaçõ es venenosas.
— Acorde! — Ela agarrou os braços de Bay com força su iciente para
machucar, nã o aceitando que nã o veria seu sorriso travesso novamente
ou sentiria os abraços muito apertados. Ele era seu amigo, e ela
precisava dele muito mais do que ele sabia. — Por favor, volte para
mim!
Bay abriu os olhos com um suspiro ofegante.
Virou para o lado e vomitou, nada alé m de ar sufocado saindo de seu
estô mago vazio.
Graças aos deuses.
— Shhh. — Margrete o acalmou, esfregando-lhe as costas. O coraçã o
dele batia contra as costelas. Ela pensou que tinha perdido Bay para o
submundo. Para sempre.
Com o canto do olho, Margrete vislumbrou alguns membros da
tripulaçã o começando a se mexer e a se sacudir no lugar, voltando à
vida, despertando de suas pró prias visõ es. Atlas se apoiou nos
cotovelos, ofegante, e Mila soltou um gemido enquanto rolava para o
lado.
— O que foi isso? — Bay perguntou, agarrando o braço dela, usando-
a como apoio. Seu corpo inteiro tremeu quando se sentou ereto.
— A neblina… — Ela olhou por cima do ombro, examinando a
loresta. — Acho que ela causou esses pesadelos.
— Você sonhou com…
— Sonhei com meu pior medo.
Bay engoliu em seco.
— Parecia tã o real — murmurou ele, ainda sem fô lego. Com os olhos
vincados, deu uma boa olhada no resto da tripulaçã o. — Estava me
afogando em minha dor, e entã o ouvi você me chamar. Me implorando
para acordar.
Todos se renderam à inconsciê ncia ao mesmo tempo, e se suas
visõ es tivessem sido tã o horrı́veis quanto as de Margrete, ela sabia que
tinham sofrido algo pior do que qualquer pesadelo. Era preocupante
que alguns ainda nã o tinham aberto os olhos.
— Este lugar… — Bay engoliu em seco. — Tem algo errado.
Eles nã o tinham como concordar mais sobre isso, mas ainda nã o
entendiam a razã o.
— A moeda. — Margrete nã o a havia soltado. Lentamente, foi
levantando o braço e virando o pulso. Bay prendeu a respiraçã o quando
os dedos dela começaram a se abrir, a testa franzida com o medo
remanescente.
Margrete abriu a mã o.
O olho esculpido no metal olhou-a, e ela poderia jurar que o viu
piscar.
— O nú mero sumiu — Bay observou, prestando atençã o dentro da
pupila, onde antes estava marcado com o nú mero um.
Eles se entreolharam por um tempo.
Os nú meros nã o desaparecem… a menos que a maldita moeda tenha
pertencido a Surria e, nesse caso…
— Margrete! — Atlas gritou do outro lado da clareira. — Venha aqui!
Ela quebrou o contato com Bay e en iou a misteriosa moeda de volta
no bolso. Correndo em direçã o a Atlas, Margrete a encontrou pairando
sobre um marinheiro de cabelo loiro-claro.
— Ele é o ú nico que nã o está acordando.
Mila passou por ela e Atlas. Ela caiu de joelhos e colocou o dedo no
ponto de pulsaçã o do rapaz. A respiraçã o estava irregular, espaçada por
longos segundos.
— O coraçã o mal bate. — Mila baixou a cabeça no peito dele. A pele
do marinheiro tinha um tom doentio, e hematomas escuros se
formaram sob seus olhos, como se ele nã o tivesse dormido. A ruiva
virou-se para Margrete, com fogo nos olhos.
— Resolva isso. Cure-o.
Margrete se afastou do olhar suplicante da mulher, a exigê ncia
mordaz em seu tom de voz. Mila olhou para ela como se tivesse o poder
de estalar os dedos e acordar o homem em coma.
Deuses. Talvez ela pudesse, mas nã o signi icava que sabia como
acessar uma magia tã o potente.
— Mila… — avisou Grant, se aproximando e colocando a mã o em seu
ombro. — Nã o tenho certeza se ela… se ela pode fazer isso.
— Que se dane! — disparou Mila. — Ela já salvou nosso rei, entã o
pode salvá-lo.
Margrete observou o rapaz. Ele era bonito, com uma mandı́bula
forte, maçã s do rosto salientes e um nariz aquilino. De memó ria, sabia
que ele tinha olhos azuis brilhantes e um sorriso gentil. Ela se sentiu
culpada por ser tudo o que ela conseguia se lembrar.
— Eu… — Margrete travou, os olhos de cada membro da tripulaçã o
grudados nela, esperando, na expectativa. Foi demais. — I-isso
aconteceu lá … — ela inclinou a cabeça na direçã o da praia, para o mar
— … e eu nem sei como iz aquilo.
— Inú til — disparou Mila, levantando-se. Seu olhar venenoso icou
cheio de lá grimas. — Todos agem como se você fosse algum tipo de
salvadora. Uma deusa entre nó s. Você é pura enganaçã o.
Margrete engasgou com um suspiro.
As palavras doeram, principalmente porque ela havia pensado a
mesma coisa de si mesma. Mas e se Mila estivesse certa? Toda aquela
prá tica depois do treino tinha sido um desperdı́cio. De que adiantava
levantar as á guas a um metro e meio de altura? Claro, ela salvou
Azantian uma vez, mas nã o tinha invocado poder algum para isso. O
poder que usara era fruto de sua raiva, nascida do ó dio palpá vel por seu
pai.
— Olha só , ela nã o está negando o que eu disse — zombou Mila,
recuando. Ela balançou a cabeça e saiu com raiva, esbarrando no ombro
de Grant e desaparecendo entre as á rvores. Seu companheiro
imediatamente a seguiu, chamando por ela.
— Ela nã o quis dizer isso de verdade — sussurrou Bay, apertando
seu ombro.
Margrete o ignorou.
— Nã o. Ela quis, sim.
Margrete fechou os olhos. Tentou se lembrar do que passou por sua
cabeça quando salvou Bash, como invocou tanto poder. Ficou tã o
desesperada quando viu Bash imó vel e pá lido, e algo dentro de si
estalou. Só … aconteceu.
O marinheiro loiro sobre o qual ela pairava tinha pulso, embora
lento. Margrete cerrou os dentes. Se ela tinha feito aquilo antes, poderia
fazê -lo novamente, e tinha que ser mais fá cil do que ressuscitar algué m.
No entanto, naquele dia em Azantian, tinha usado as palavras dos
antigos, e agora nã o sabia se precisava entoar algum feitiço para que
sua magia funcionasse. Mas nã o tinha proferido comandos
pertencentes a uma linguagem mı́stica. Nã o havia absolutamente nada.
Mesmo assim, nã o desistiria. Ainda nã o.
Colocando as duas mã os no peito que mal se movia, Margrete
imaginou os iapos de magia brilhante que tinham contornado sua
visã o naquele dia fatı́dico. Como vaga-lumes na noite, ela os perseguiu,
esperando encontrar uma faı́sca e prendê -la.
Os murmú rios da tripulaçã o icaram em segundo plano. Ela ouviu as
ondas e escutou sua mú sica. Seguiu o chamado do mar e implorou que
a ajudasse.
Por muitas vezes, ela chegou perto daquele poder, mas ele escapava
de seu alcance. Toda vez que nã o conseguia capturá -lo, seu coraçã o
despencava no estô mago. Começou a implorar silenciosamente, com
aquela luz, rezando baixinho, para os deuses que ela, particularmente,
nã o gostava. Recorreu a barganhar tudo e qualquer coisa, e, ainda
assim, a magia nã o a escutou. Na verdade, recuou ainda mais. Margrete
nã o entendeu.
Ela tinha que tocar as á guas? Talvez esse fosse o problema. Ela ouviu
as batidas fracas do coraçã o do marinheiro inconsciente e petri icou ao
perceber que os batimentos estavam diminuindo. Ela nã o teria tempo,
mas se eles chegassem à costa…
Parou.
A batida parou.
Os olhos de Margrete se abriram, as mã os ainda no peito dele,
centradas sobre o coraçã o. Ela empurrou, se impulsionando contra ele,
em movimentos á speros e desiguais. Por causa do pâ nico, mal percebeu
a mudança no corpo, como estava completamente mole. Continuou a
empurrar o peito do rapaz até que seus lá bios se separaram e…
Uma lı́ngua bifurcada apareceu e lambeu os lá bios e o queixo do
rapaz. Parecia que algo estava dentro da boca dele, se movendo, fazendo
com que suas bochechas inchassem.
Ela congelou, horrorizada, quando dois olhos serpentinos a itaram,
a cabeça de uma cobra preta abrindo sua mandı́bula impossivelmente
larga.
Nã o. Ela nã o podia estar vendo aquilo. Nã o era real. Tinha que ser
outra alucinaçã o.
Mas nã o era uma alucinaçã o. Em absoluto terror, Margrete viu a
cobra preta saindo, deslizando para fora da boca, seu corpo comprido
ainda preso na garganta. Ela podia ver como se movia sob a pele ina,
fazendo o pescoço do marinheiro inchar e ondular.
Algué m gritou, talvez ela, talvez um dos outros.
Vagamente, ela ouviu Bay chamar por ela, sentiu o toque dele em seu
ombro, mas ela continuou a empurrar o peito do rapaz em vã o, mesmo
vendo que outra cobra subia, sibilando e sacudindo a lı́ngua em
advertê ncia, seus olhos de um vermelho sinistro.
A magia de Margrete se dissipou com a visã o, e ela nã o sentiu nada
alé m de um medo sufocante.
E o pior era que as cobras nã o paravam de sair.
— Margrete, pare!
Mã os seguraram seu torso, e ela voou de costas, para longe do
marinheiro imó vel que ela nã o conseguiu salvar.
As cobras, á geis e cercadas de sangue vermelho e amarelo,
rastejaram sobre o corpo, suas presas alongadas afundando na carne
que lentamente esfriava. Elas perfuraram cada centı́metro dele,
sibilando enquanto se enrolavam em torno de braços, pernas e pescoço.
Margrete deu chutes no ar, lutando para retornar ao marinheiro sem
nome, para tentar encontrar sua força vital e banir a magia das trevas
que o amaldiçoava. Ela nã o podia permitir que Mila estivesse certa, nã o
podia se permitir estar certa. Tinha que haver uma maneira de domar
seu poder e usá -lo para ajudar quem precisasse. Margrete nã o queria
passar a vida sendo um mero receptá culo. Ela estava destinada a mais
do que isso.
— Ele se foi — sussurrou Bay em seu ouvido assim que já estavam
longe do alcance da tripulaçã o restante. Margrete espiou por cima do
ombro do amigo. Os Azantianos estavam todos a uma distâ ncia segura
do rapaz, a maioria com os punhos cerrados em aparente frustraçã o
por nada poder ser feito.
Eles deviam odiá -la.
— Mila estava certa! — disse Margrete, quase rosnando. — Mal
posso levantar uma maldita onda, e, ainda assim, eles olham para mim
como se eu pudesse salvar a vida de algué m. Como se devesse salvar.
Porra, eu nem sabia o nome dele.
Margrete nã o tinha percebido que tinha começado a chorar até que
lá grimas salgadas deslizaram entre seus lá bios. As lá grimas a deixaram
ainda mais irritada.
— Ningué m espera que você saiba como usar os poderes de um
deus, Margrete — falou Bay, apertando o rosto dela contra o peito. —
Todos nó s vimos as cobras, todos sentimos a magia das trevas. Duvido
que você pudesse ter feito muita coisa. E suspeito que ele mesmo era o
ú nico que poderia ter se salvado. Aqueles sonhos, alucinaçõ es, seja o
que for… eram um teste. Um teste que eu teria falhado se você nã o
tivesse me encontrado a tempo. — Ele a envolveu com um braço,
segurando-a irmemente no lugar. Ela permitiu.
Nã o importava se ela, de alguma forma, tinha salvado Bay e o
libertado do pesadelo. Ainda se sentia responsá vel por nã o salvar a vida
daquele marinheiro.
— Eu trouxe Bash de volta, mas nã o pude fazer o mesmo hoje. — A
expressã o desapontada de Mila passou por sua mente. Seus olhos
estavam cheios de tanta animosidade, um ó dio tã o veemente.
— O nome dele era Jace — disse Bay suavemente. — Mila o
encontrava em segredo há algumas semanas. Ela achava que Grant nã o
sabia, mas ele gostava bastante de Jace. Ele aprovava.
Margrete recuou para olhar nos olhos de Bay.
— Grant é o pai dela?
Bay balançou a cabeça.
— Nã o biologicamente, mas é o pai dela em todos os aspectos
importantes. Ele a acolheu quando seu irmã o e mã e morreram.
Bay empurrou o cabelo dela para trá s e colocou uma mecha solta
atrá s da orelha.
— Você nã o pode ajudar todo mundo, Margrete. Todos sabemos que
sua jornada levará tempo, e Mila disse aquelas coisas por tristeza. Nã o
foram de coraçã o.
Margrete nã o respondeu. Nã o havia nada que pudesse dizer para
mudar o que tinha acontecido. Entã o pegou a moeda e a colocou entre
ela e Bay. Seu amigo a olhou com medo legı́timo.
— Vivi meu maior medo. Senti como se estivesse morrendo,
realmente morrendo. Me salvei no ú ltimo minuto, mas, deuses, estava
tã o perto. Muito perto.
Margrete virou a moeda e passou o polegar pela inscriçã o.
Cuidado com a Noite Eterna.
Bay abaixou os braços e deu um passo para trá s, os olhos ixos no
que descansava na palma da mã o dela.
— Se a lenda das moedas de Surria e seus testes forem verdadeiros…
entã o aquilo foi apenas o começo, e Jace nã o passou — murmurou ela
suavemente. — Ele sucumbiu aos seus pesadelos. Cobras, ao que
parece. — Margrete fechou os dedos, o metal cravando-se em sua carne.
Ela cerrou os dentes. — E tenho a sensaçã o de que nã o vai demorar
para acharmos a segunda moeda.
E entã o mais deles morreriam.
ash acordou no mesmo lugar que o nevoeiro o levou.
Levantando-se em um salto, ele começou a andar, sem nenhuma
noçã o de direçã o, apenas movido pela necessidade de icar o mais longe
possı́vel daquela clareira. Se seu cé rebro nã o conseguia entender o que
ele tinha acabado de ver, entã o ele se moveria até que tudo izesse
sentido. Em algum momento, tinha que fazer sentido.
Ele vagou a maior parte do dia, sem querer admitir que o encontro
com a nymera nã o tinha sido um sonho. Estava mais para uma
alucinaçã o medonha aninhada na realidade. Real, mas de alguma forma
nã o do mundo real.
Assim como a pró pria ilha.
Mas o homem que ele vira no espelho… era o pior pesadelo de Bash.
Aquela criatura que usava seu rosto era a personi icaçã o de como ele se
sentia quando os pensamentos sombrios dominavam tudo.
Algumas vezes, enquanto caminhava pela loresta, sentiu que era
observado. No entanto, quando se virava de punhos erguidos e pronto
para lutar, nã o via nada atrá s dele. Tudo o que o recebia eram assobios,
um barulho mais selvagem que humano, embora ele pudesse jurar que
todos sussurravam a mesma palavra.
Siga.
Ele ignorou. Ignorou tudo.
Nã o adiantaria escutar, e tudo o que conseguiria seria uma dose
doentia de pâ nico.
Quando o crepú sculo se aproximou, ele mal teve tempo para
encontrar abrigo. Uma á rvore tombada jazia sobre uma depressã o na
terra, dando espaço su iciente para ele se acomodar, e os galhos de
junco acima bloqueavam boa parte do vento cortante. Ele se recostou
contra a terra compacta e colocou as mã os sob a cabeça.
Uma mecha caiu sobre sua testa, um cacho obscurecendo seu olho
esquerdo. Preto. Seu cabelo ruivo se fora, modi icado para sempre
depois que vislumbrou aquele espelho miserá vel.
Lembrou-se das palavras que ele tentou ignorar o dia todo.
Cuidado com a Noite Eterna.
Bash rosnou. Que se fodesse aquela maldita á rvore e sua maldita
inscriçã o, e també m a nymera de branco. Ela o chamara de ilho e, em
seguida, teve a ousadia de desaparecer e deixá -lo sem chã o. Nã o que ele
tivesse acreditado em uma palavra do que ela disse. A mã e de Bash
morrera logo depois que ele nasceu, e os retratos no grande salã o a
mostravam como uma mulher de olhos gentis e cabelo loiro-claro mais
luminoso que ouro puro.
Seu pai lhe disse que foi sua mã e quem escolheu seu nome.
Sebastian. O falecido rei nunca o chamara assim, e Bash sempre se
perguntou por quê . Era bem sabido que seu pai amava sua mã e. As
pessoas falavam de sua beleza, de sua generosidade, de quã o perfeita
ela tinha sido, mas, conforme Bash crescia, ela foi se parecendo mais
como um conto de fadas para ele, uma deusa que o vigiava.
A abominaçã o que visitou seu pesadelo acordado nã o era sua mã e.
Bash se moveu para o lado, o chã o implacá vel nã o ajudando seus
mú sculos doloridos. Outra estranheza, de fato, já que os Azantianos se
curavam rapidamente, e seu corpo já deveria estar melhor. No entanto,
quanto mais ele andava pela loresta, mais pesados seus membros se
tornavam e mais doı́am.
A fome també m se apoderou dele, e ele manteve os olhos atentos à
comida, embora nenhuma caça pequena passasse entre a vegetaçã o
rasteira. Ele teria que procurar alguma planta comestı́vel ou bagas.
Margrete saberia quais eram seguras. Bash levara para ela todos os
livros sobre plantas que conseguiu encontrar na biblioteca de Azantian
― o que era muito, considerando que foram necessá rios cinco homens
para carregá -los. Sua princesa era faminta assim ― sempre buscando
informaçõ es e nunca satisfeita quando fechava a capa de um livro. Uma
parte dele acreditava que ela estudava tanto para compensar a falta de
conhecimento em outros assuntos, ou seja, seu poder. Ele nã o tinha
dú vidas de que ela conquistaria isso també m.
Bash a sentiu naquele momento, profundamente, em seus ossos. Ela
nã o estava ali, segura em seus braços, mas ele sabia que ela estava viva,
mesmo sem saber explicar a ló gica por trá s de sua certeza. A manhã
chegaria em breve, ele se assegurou, e entã o teria energia para se
mover, energia para encontrá -la.
Enquanto isso, ele precisava se lembrar de quem era Margrete.
Mesmo que aquela ilha fosse um lugar do mal, ela tinha enfrentado
inimigos maiores antes… e os vencera. Margrete era uma lutadora. Mais
forte que ele, até .
Bash fechou os olhos, repetindo esse jeito de pensar vá rias vezes.
Convencendo-se de que, se algué m estava em perigo, era ele.
Ele adormeceu horas depois, dominado pela exaustã o, que o
arrastou cada vez mais fundo no vazio escuro, onde sua mente se
separou de seu corpo, e logo ele lutuou.

Bash sonhava com bosques escuros como breu.


Ele sabia que estava sonhando, que seu corpo fı́sico dormia
despreocupado sob uma á rvore tombada. O fato de, mesmo dormindo,
estar sonhando com a ilha o enfureceu. Por que ele nã o conseguia
pensar em Margrete ou Azantian e permitir que sua mente
descansasse?
Naquela neblina, avistou a grande á rvore de antes, aquela com a
inscriçã o de sangue. Ela o encarou como se tivesse um par de olhos que
nã o piscavam, e ele ouviu o silvo de sussurros ininteligı́veis. Vozes que
nã o pertenciam a humanos lutuavam pelos galhos, alcançando seus
ouvidos e causando arrepios na espinha.
Desta vez, Bash nã o foi tolo de tocar na marca. Ele icou enraizado no
lugar, inclinando a cabeça para o cé u e procurando estrelas. Claro que
nã o havia nenhuma.
— Sempre me perguntei o que te fez tã o digno.
Bash virou a cabeça na direçã o da nova voz. Era profunda, maculada
com pecado e magia cruel. Uma parte dele a reconheceu.
— Olá , rei Azantiano.
Um homem se apoiou casualmente contra a á rvore ensanguentada,
com a cabeça inclinada para o lado enquanto seus olhos azuis
brilhantes avaliavam Bash. Sua cabeça era coroada por cabelos loiros da
cor do sol da manhã que se enrolavam em torno de suas tê mporas e
daqueles olhos desumanos.
Bash nã o falou. O silê ncio era uma arma melhor para enfrentar um
inimigo desconhecido. Desa ie-o primeiro. Normalmente funcionava,
embora ele devesse saber que essas tá ticas nã o teriam nenhum efeito
sobre o homem sobrenatural à frente dele.
— Vejo sua mente trabalhando. — O estranho suspirou, afastando-se
do tronco. — Mas estou decepcionado. Achei que você me reconheceria
imediatamente. — Seus olhos recaı́ram sobre as feiçõ es de Bash,
enquanto curvava a boca em um sorriso de escá rnio.
Em resposta, Bash apenas se endireitou.
— Mas també m você nã o é tã o astuto quanto eu acreditava. Outra
decepçã o. Eu teria preferido um oponente mais… interessante —
continuou o estranho.
O loiro se aproximou, sua altura impressionante elevando-se sobre
Bash por pelo menos trinta centı́metros.
— Você permanece irme — o homem continuou, sem se intimidar
com o silê ncio de Bash. — Nã o está correndo como um ratinho
assustado só de me ver. A maioria dos humanos foge imediatamente,
entã o suponho que isso adicione pontos a seu favor.
Bash fez uma expressã o entediada. Ele sabia quem era aquele
homem, mas, mesmo assim, perguntou:
— E quem é você ?
Seu tom era apá tico, como se ele mal se importasse com a resposta
do deus. Sentiu imenso prazer quando um mú sculo na mandı́bula de
Darius tremeu.
Ele se recuperou rapidamente.
— Eu sou aquele que vai tirar sua vida. Em algum momento — Darius
acrescentou com um rosnado. — Embora eu tenha que ser paciente e
esperar o momento certo para roubar sua alma. Tudo deve se
desenrolar como o planejado, e você , querido rei, será meu peã o
favorito.
— Nã o sou peã o de ningué m — disse Bash, se aproximando. O loiro
riu, embora seus olhos tenham ido para os pé s de Bash, aparentemente
surpreso com o avanço.
— Você nem sabe o que é , mas, quando perceber, será tarde demais.
E como vou saborear esse momento.
Bash notou que o homem estava todo de preto, exceto por um anel
de ouro na mã o direita. Ele semicerrou os olhos, sem conseguir
distinguir o desenho no anel. Mas nã o precisava ver. Sabia que
encontraria dois cı́rculos entrelaçados.
A insı́gnia de Darius. O sı́mbolo que havia sido marcado na pele de
Ortum quando encontraram seu cadá ver. A mesma marca que, na festa
em homenagem à deusa da lua, foi pintada com sangue no trono de
Azantian.
Seu desgosto deve ter sido aparente, porque Darius bateu palmas de
prazer.
— Ai está ! Eu estava esperando que aquela má scara cuidadosa
caı́sse.
— Darius.
O nome ecoou entre eles.
— Sebastian — o Deus do Mar respondeu, zombando de seu nome
de batismo. — O grande rei de Azantian. O mortal que conquistou o
coraçã o do pró prio mar, ao que parece.
Nesse momento, o cabelo na nuca de Bash se arrepiou.
— O que você quer? — Ele manteve a voz irme. Era um tom usado
quando descansava em seu trono, sentado diante de seus sú ditos.
— Eu quero tantas coisas — Darius respondeu, encolhendo os
ombros. Apenas um metro e meio os separava agora. — Mas talvez eu
tenha icado ganancioso nas ú ltimas semanas. Como esperei mil anos
por minha vingança contra meu querido irmã o, imaginei que poderia
esperar um pouco mais para ter o trono e aquela que me chama do
outro lado do mar. — Ele suspirou dramaticamente. — E como ela
chama! Juro, ela está praticamente gritando meu nome, embora nã o
saiba por quê. Sendo o deus benevolente que sou, pretendo remediar
isso em breve, e entã o ela saberá minha verdade. A verdade dela.
E claro. Darius queria Margrete. Ele deixou suas intençõ es claras na
noite do ataque do capitã o quando olhou para ela com desejo pouco
antes de afundar Bash. O rei tentara esquecer essa emoçã o ― o desejo
nos olhos de Darius.
— Isso nunca vai aconte cer — retrucou ele, movendo-se em um
semicı́rculo ao redor do inimigo. — Ela nã o está te chamando, e você
nã o vai chegar perto dela para explicar sua suposta verdade. —
Mentiras eram a ú nica lı́ngua que Darius falava. — E o poder dela é
dela, Darius, nã o seu. Malum se certi icou disso.
Darius riu mais uma vez, começando a espelhar seus movimentos,
sem nunca deixar de sorrir com crueldade.
— Nã o preciso tirar dela, nã o quando ela compartilhará de bom
grado.
Foi a vez de Bash rir. Margrete era sua luz-guia. Ela preferia morrer a
permitir que um deus corrupto a usasse e a prendesse como seu pai fez
durante a maior parte de sua vida.
— Acho divertido que você ache essa a irmaçã o engraçada, rei. —
Uma veia na testa de Darius latejou e o nariz franziu com desgosto. Ele
deu um passo gigante, invadindo o espaço de Bash, que se manteve
irme com esforço, desprezando como teve que inclinar a cabeça para
encarar o rosto do deus. — Eu me pergunto se você vai rir quando
estiver morrendo afundado em uma poça de seu pró prio sangue, uma
adaga nas mã os da mulher que você mais ama.
— Que delirante — Bash grunhiu. — Margrete nunca me
machucaria.
— Talvez nã o a Margrete que você conhece — respondeu Darius,
inclinando a cabeça e estalando a lı́ngua. Sua con iança fez os punhos
de Bash se apertarem. — Mas, em breve, muito em breve, na verdade,
sua amada passará pelos mesmos testes que meu irmã o e eu passamos.
Infelizmente, os testes afetam a todos na ilha, embora eu nã o me
importe nem um pouco com os outros, se serã o bem-sucedidos ou se
morrerã o. — Ele sorriu, os caninos cutucando seu lá bio inferior.
Bash apertou ainda mais as mã os, desejando o sangue do deus que o
provocava. Darius pareceu sentir sua raiva crescente. Seus olhos
voaram para as mã os cerradas de Bash com um sorriso.
— Teremos que concordar em discordar quanto ao resultado —
disse Bash, abrindo os dedos, lutando para recuperar a calma. A
má scara de Darius escorregou um pouco. Seu olho esquerdo se
contraiu. — Você nã o sabe o quã o forte Margrete é , e eu mal posso
esperar para ela te destruir.
Se algué m podia fazer isso, era Margrete.
Ela podia nã o saber como usar seus novos poderes, mas, sob
pressã o, ela pensava e reagia com rapidez. Bash con iava na capacidade
dela de proteger, especialmente se algué m que ela amava estivesse em
risco.
— Suponho que descobriremos em breve — respondeu Darius, as
narinas dilatadas. Ele nã o se moveu de onde pairava sobre Bash, que se
manteve no lugar por um io desgastado de controle. — Enquanto isso,
aproveite os testes. O segundo é o meu favorito. — Ele examinou Bash
com desdé m. — Embora já pareça que você está sucumbindo à loucura.
Bash respirou fundo por entre os dentes. Nã o podia tocar o deus, nã o
naquele mundo de sonho. Tentar atacar só mostraria sua fraqueza.
O rei nã o respondeu, mas sorriu, fazendo o possı́vel para enervar o
Deus do Mar. Um maldito deus. Ele nunca teria imaginado que iria
contra uma entidade divina e a provocaria.
O amor o tornou imprudente. També m o fez mais forte do que
qualquer imortal sem coraçã o.
— Ah, eu mal posso esperar para vê -la transformar você em cinzas
— Darius disse, inclinando a cabeça para baixo em despedida, seus
olhos cor de mar icando difusos. Ele caminhou para trá s, em direçã o à s
á rvores, para longe do alcance da fú ria de Bash. — Adeus por enquanto,
rei.
Bash assistiu estoicamente enquanto o Deus do Mar se fundia à s
sombras, como se a noite o comesse vivo.
argrete passou a noite abraçada com Bay. O guerreiro talvez nã o tivesse percebido,
mas suas bochechas icaram cheias de lá grimas durante o sono. Enquanto ela as enxugava, se
perguntou o que ele tinha suportado quando a né voa alucinó gena tomou sua mente.
Ele nã o tinha perguntado os detalhes do pesadelo de Margrete, e ela
nã o iria pressioná -lo por respostas que ele nã o estava pronto para dar.
Os deuses sabiam que ela ainda cambaleava com a sensaçã o de estar
con inada naquela caixa, afundando nas ondas e se afogando
lentamente.
Tudo pareceu tã o real.
Quando o sol hesitante nasceu na madrugada seguinte, a
determinaçã o de Margrete em encontrar Bash só aumentou. Ainda
assim, sua prioridade era encontrar á gua fresca. Dois dias sem ela os
deixaram fracos, e Margrete lambeu os lá bios rachados com o simples
pensamento de saciar sua sede. Tinha chegado ao ponto em que doı́a
engolir. Se os testes fossem reais, como ela suspeitava, eles nã o teriam
chance se mal pudessem se mover.
— Bom dia — resmungou Bay, erguendo-se sobre os cotovelos. Ele a
observou, vendo-a deitada sobre sua jaqueta dobrada. Ele insistira, na
noite anterior, que ela deitasse na peça, praticamente empurrando-a
sob sua cabeça quando ela tentou recusar. Seu amigo era teimoso; uma
caracterı́stica que ela adorava.
Margrete sorriu com gravidade.
— Precisamos de á gua — disse ela, a irmando o ó bvio. Bay apenas
assentiu, provavelmente evitando o esforço de falar. Cı́rculos escuros
machucavam a pele abaixo de seus olhos, e os lá bios se torceram em
uma careta. Ela poderia dizer que foi preciso esforço para ele se
segurar.
— Vamos para o norte — Bay inalmente falou, inclinando o queixo
naquela direçã o. — Tem que haver um có rrego em algum lugar
pró ximo. Caminhamos o dia todo ontem.
Eles começaram a jornada logo depois de queimarem o corpo de
Jace. O costume Azantiano ditava que os mortos fossem enviados ao
mar em uma jangada de lores de Solanthium, e um arqueiro dispararia
uma lecha lamejante, incendiando o corpo e o arranjo de lores.
Eles decidiram usar apenas as chamas. Levar o corpo de volta para a
praia enquanto estavam desidratados mataria a todos.
Mila nã o olhava nos olhos de Margrete desde o dia anterior.
Margrete viu a ruiva do outro lado do acampamento aconchegada ao
lado de Grant, que gentilmente acariciava suas costas. Seus olhos
tinham o peso de um pai que assistia a um ilho sofrer de coraçã o
partido.
Margrete desviou o olhar rapidamente.
— Ela nã o te culpa. — Bay levantou-se. — A dor pode transformar
até o coraçã o mais mole em aço. Dê um tempo a ela.
Margrete entendia bem a situaçã o. Ela fez que sim com a cabeça,
sinalizando que compreendia, e se levantou, limpando a sujeira das
roupas. Sua camisa tinha vá rios rasgos, e ela sentia o cheiro de sangue
seco deteriorando sua pele onde os galhos tinham cortado.
— Pronto? — perguntou ela, ignorando suas palavras. Nã o havia
mais nada a dizer sobre o assunto, e chafurdar na pena nã o ajudaria.
Ela ganharia a con iança da jovem de outra maneira.
Bay baixou o queixo antes de acordar gentilmente o restante da
tripulaçã o. Havia oito deles.
Quando todos icaram em um semicı́rculo ao redor deles, Bay deu
instruçõ es para seguir para o norte. Margrete percebeu que a fé deles
havia vacilado da noite para o dia, e até mesmo o otimismo habitual de
Jonah havia entorpecido, os lá bios do rapaz curvados em uma carranca
pesada.
Atlas, que normalmente expressava sua opiniã o, icou quieta. Se
algué m tã o temı́vel quanto Atlas estava atordoada em silê ncio depois
do dia anterior, entã o a visã o da guerreira devia ter sido cruel. Era a
primeira vez que Margrete a via como humana ― bem, quase humana,
considerando sua origem.
— Eu escolhi você s para nossa jornada porque sã o os melhores dos
melhores — Bay entoou, sua voz aumentando. Ela imaginou que tinha
doı́do. — Você s també m sã o Azantianos, e nó s nã o morremos
facilmente. Somos a fú ria do vento e o sal do mar. A força das ondas. —
A tripulaçã o, em nenhum momento, baixou os olhos. Eles se agarraram
a cada palavra dele como uma tá bua de salvaçã o. — Se eu nã o
acreditasse em suas habilidades, na capacidade que tê m de superar os
maiores obstá culos, você s nã o estariam aqui agora. Hoje
encontraremos á gua. Nos reabasteceremos. — A voz de Bay falhou um
pouco, mas ele continuou. — E entã o encontraremos nosso rei perdido.
Sairemos desta ilha amaldiçoada e mataremos as feras que escaparam
de nossa guarda. Somos guerreiros, e guerreiros nã o se curvam diante
de ningué m alé m do Deus da Morte.
O Deus da Morte: a entidade sem rosto que toda alma conhecia no
inal da vida. Ele nã o tinha nome, nã o como o resto dos imortais, mas
Margrete suspeitava que isso tinha mais a ver com superstiçã o humana
do que qualquer outra coisa.
Mesmo invocando o Deus da Morte, a tripulaçã o obedientemente
balançava a cabeça, concordando. O peso que estava nos ombros de
Margrete diminuiu, e até o ar icou mais leve, como se o discurso de Bay
tivesse afugentado a né voa espessa que encobria aquele lugar. Ele era o
tipo de pessoa que inspirava esperança.
Quando Bay assumiu a liderança e os levou loresta adentro,
Margrete assumiu sua posiçã o do dia anterior, seguindo o ú ltimo
membro da tripulaçã o. Ela examinou as á rvores enquanto se
arrastavam pela densa vegetaçã o rasteira, e notou que as folhas
começaram a mudar lentamente. De um preto quebradiço, elas se
transformavam em um vermelho suave à medida que avançavam. Nã o
queria dar nenhum signi icado à transiçã o, mas era difı́cil nã o o fazer.
Trê s torturantes horas depois, a audiçã o aguçada de Margrete
captou o mais belo dos sons.
Agua correndo.
Bay provavelmente també m ouviu, porque decolou em uma corrida
irregular. Até mesmo o corpo Azantiano sofria, mas o som de sua
salvaçã o o fez cambalear à frente, com a tripulaçã o bem atrá s dele.
Margrete corria, afastando os galhos inos e as folhas avermelhadas.
Ela se abaixou para passar um galho baixo e, quando se levantou, sua
boca se abriu em choque. Diante deles estava a visã o mais magnı́ ica
que ela já tinha tido.
Trê s riachos separados luı́am de diferentes direçõ es para se unirem
em uma ú nica piscina do azul mais claro. Bem no centro havia uma
pequena ilha rochosa, uma superfı́cie cinza-escura polida e
escorregadia por causa da á gua.
— Graças aos deuses — Jonah, logo a frente dela, murmurou. —
Pensei que todos morrerı́amos de sede. Nã o era como eu planejava
morrer, com certeza. — O rapaz correu para a beira da piscina.
Mergulhou nela a cabeça inteira; em seguida a tirou e sacudiu as gotas
de seu cabelo. Um sorriso entusiasmado iluminou seu rosto. Margrete
nã o conseguiu esconder o sorriso.
Todos correram ao mesmo tempo para a margem e seguiram a
liderança do jovem marinheiro. Margrete colocou as mã os em concha e
bebeu, forçando-se a tomar devagar. Ela molhou o rosto com a á gua fria,
suspirando de alı́vio enquanto ela escorria pelo queixo, pescoço e peito.
Eles sobreviveriam mais um dia.
Mila e Grant estavam mais adiante na margem, conversando em voz
baixa enquanto també m bebiam e lavavam seus braços e rosto.
Margrete captou o olhar acalorado de Mila. A ruiva quebrou o contato
com uma carranca, voltando-se para o pai.
Ela podia icar com tanta raiva quanto quisesse. Margrete estava
grata por terem chegado à quele oá sis. Se tivessem que andar mais uma
hora, ela nã o tinha certeza se teria forças para continuar.
Margrete tinha acabado de lavar o rosto quando viu. Metal brilhando
à luz.
Seu coraçã o parou.
Ali, na ilha de pedra polida, no centro dos riachos convergentes, o sol
se libertou das nuvens para brilhar sobre uma ú nica moeda. Ela colocou
as mã os de lado, sua respiraçã o falhando.
A segunda moeda. O segundo teste.
Bay se agachou ao lado dela, seguindo seu olhar.
Ele xingou.
— Nã o temos que tocar nela — disse ele. — Nã o chegaremos nem
perto daquela coisa.
Margrete estremeceu. Foi preciso tudo de si para se libertar da
pequena ilha e se virar para seu amigo, que ainda olhava para a moeda
sinistra com a testa franzida. Segundos depois, as nuvens voltaram ao
lugar e o metal icou embotado, o sı́mbolo de Surria se misturando de
volta à pedra.
— Concordo — falou ela, embora seu estô mago se revirasse em nó s.
— Nã o vamos tocar naquilo.
Bay icou de pé e lhe ofereceu a mã o, ajudando-a a se levantar.
— Devemos encher os poucos cantis que temos com á gua e voltar
para a praia. Veremos se há algum vestı́gio de Bash por lá . De qualquer
maneira… — ele segurou a mã o dela, entrelaçando os dedos — … temos
que ir embora. Eu nunca senti algo tã o poderoso, tã o sombrio…
Um grande respingo soou.
Bay e Margrete se viraram bem a tempo de ver um enorme tentá culo
erguer-se da á gua e descer à superfı́cie com um estrondoso baque. A
á gua encharcou a tripulaçã o enquanto eles olhavam boquiabertos, os
que nã o estavam em choque se afastando da piscina.
O peito de Margrete se encheu de calor, e o poder serpenteou em
torno de suas entranhas como uma coisa viva. A magia empolgante se
estendeu por seus braços e torso, movendo-se para alcançar seus pé s, e
logo ela a sentiu em todos os lugares, tudo de uma vez, em uma corrida
nauseante.
A força daquilo quase a fez se dobrar. Ela cerrou os dentes, forçando
os olhos a permanecerem abertos, forçando-se a assistir enquanto o
monstro jogava outro tentá culo no ar. Quando ele derrubou os dois
juntos, a tripulaçã o nã o conseguiu se mover rá pido o su iciente para
evitar a explosã o.
A á gua atingiu todos eles, e Margrete virou a cabeça para tentar
desviar a maior parte. O resto dela doeu com o impacto, mesmo atravé s
das roupas.
— Saiam daı́! Voltem! — Bay gritou, alarmado, deixando de lado sua
fachada calma.
Todos correram para a loresta, para longe do que quer que aquela
coisa fosse. Atlas teve que puxar com ela uma jovem em aparente
choque. Margrete acreditava que seu nome era Dani. Seu gê meo, Jacks,
ajudou a guerreira loira a tirar a irmã do perigo.
Margrete esperou enquanto a tripulaçã o passava correndo por ela,
contando-os à medida que passavam.
Sete.
Incluindo a si mesma, ela contou apenas sete.
Margrete olhou para a piscina enquanto a fera se erguia no ar, trê s
braços com tentá culos sustentando sua cabeça bulbosa. Escamas
pontiagudas de um verde e azul profundos brilhavam
ameaçadoramente na luz suave, as pontas de cada uma mais a iadas
que uma lâ mina. Se tinha boca, ela nã o conseguia distinguir onde icava,
pois todas as escamas estavam perfeitamente juntas. Virou-se na
direçã o da criatura, seus braços movendo-se luidamente sob ela.
Seus olhos se encontraram.
Orbes amarelos brilhantes seguravam e exigiam sua atençã o. Eram
sem vida, parecendo mais pedras preciosas do que olhos reais, mas nã o
desviaram, nã o quando ergueu um de seus tentá culos… levantando um
corpo pequeno a centı́metros da pró pria face.
O cabelo vermelho foi a primeira coisa que ela viu.
Mila.
O tentá culo que a segurava agarrou seu corpo amolecido com força,
e a ponta do braço do monstro se enrolou para acariciar o rosto pá lido
da marinheira.
Margrete saltou. Nã o pensou nas consequê ncias de seu gesto, nã o
parou para considerar que tinha apenas a adaga de Adrian em sua coxa
e uma magia que nã o sabia como comandar. Poderia até se afogar ou
ser espremida até a morte, mas sabia de uma coisa: nã o podia icar
parada só assistindo.
A á gua se abriu quando Margrete mergulhou de cabeça, a frieza
penetrando em todos os seus poros. Ela abriu os olhos, o fogo em seu
peito crescendo em uma chama arrebatadora. Assim como fez quando
Darius tinha afogado Bash meses antes, ela abriu a boca e respirou na
á gua densa como ar.
A á gua desceu por sua garganta e em seus pulmõ es, enchendo-a tã o
completamente que ela pensou que fosse explodir. Margrete parou
bruscamente, no meio da braçada, enquanto seu corpo estremecia com
força. Uma faı́sca de luz a cegou antes de desaparecer por completo.
Margrete engasgou, e mais á gua encheu sua boca.
Ela estava viva. Por quanto tempo mais, nã o sabia.
Nã o se concentrando no que encheu seus pulmõ es, ou como, ela
continuou a nadar, os dentes à mostra, indo em direçã o à criatura com
uma intençã o quase selvagem.
Abaixo da superfı́cie, outros longos tentá culos giravam, o movimento
que mantinha a parte superior do corpo lutuando. Felizmente, Mila
estava sendo mantida acima da á gua.
Alcançando sua adaga, Margrete reduziu a distâ ncia entre ela e o
primeiro membro da criatura. Sem hesitar, golpeou a pele grossa e
escamosa e cortou, tirando uma pitada de sangue verde-azulado. Ele
saturou a á gua e nublou sua visã o, mas ela ergueu e baixou o braço,
perfurando a pele pela segunda vez.
Um rosnado reverberante sacudiu a piscina, e o poder de Malum
estremeceu. Aquilo nã o poderia ser um bom sinal.
Margrete esfaqueou a fera mais uma vez antes que ela reagisse, antes
que seu tentá culo ferido a alcançasse. Ela mergulhou, evitando que ela a
atingisse por centı́metros. A fera veio atrá s dela novamente, que
escapou do ataque, mas seu poder vacilou, enfraquecendo lentamente.
Tinha sido uma tola por nã o praticar mais em Azantian. Levantar as
ondas uma hora por dia nã o a ajudaria a superar aquela criatura. A
adaga em sua mã o penetrou o monstro mais uma vez, e ela cerrou os
dentes enquanto en iava mais fundo, cortando a pele endurecida. O uivo
continuou, e o tentá culo recuou. Margrete nã o deixou passar. Com a
mã o segurando a arma, ela serpenteou o braço ao redor de sua tromba
grossa, se segurando enquanto a fera a balançava de um lado para o
outro como uma boneca de pano, na esperança de afastá -la.
Só que nã o.
Margrete apertou a mã o e, o tempo todo, a lâ mina cortava mais
fundo. Quanto mais a fera se debatia, mais fundo a faca ia, e logo a
metade inferior de seu membro se partiu, pendendo inutilmente por
uma faixa de mú sculo.
Ela sorriu, e o poder em seu peito pareceu sorrir també m.
Aí está você. A essê ncia de Malum reagiu à destruiçã o, à adrenalina
do triunfo, e, quando ela decepou completamente o membro, sua magia
cresceu.
Ela agarrou o outro tentá culo, prestes a en iar a lâ mina, quando a
fera atacou. Em um piscar de olhos, a criatura estava sob a superfı́cie,
Mila ainda enrolada em seu tentá culo livre. Seus olhos estavam
arregalados de medo.
Os Azantianos podiam prender a respiraçã o por muito mais tempo
do que um humano comum, mas, se Mila estivesse ferida, Margrete nã o
tinha certeza de quanto aguentaria. Ela suspeitava que tinha cerca de
cinco minutos… cinco mı́seros minutos para matar a criatura e salvar
Mila.
O poder de Malum queimava com o desa io. A energia ardente e
quente desceu para roçar cada centı́metro dela, e o corpo de Margrete
endureceu. Uma força, como ela nunca tinha sentido, a fez se mover e
nadar ao redor da criatura antes que ela tivesse a chance de pegá -la.
A magia luindo atravé s de seu corpo hipersensı́vel era viciante. Sob
seu feitiço, ela se viu sob uma nova luz ― forte e formidá vel. Uma
mulher que poderia ser temida. Uma guerreira.
Margrete nadava em cı́rculos, fugindo do alcance da fera, cansando-
a. Restava um minuto, e os olhos de Mila estremeceram quando seu
peito, de repente, icou imó vel.
Com uma maldiçã o, Margrete se impulsionou para cima, diretamente
na barriga da fera. Um rugido gutural sacudiu as á guas enquanto ela
en iava a faca profundamente em seu ventre macio, torcendo a lâ mina
antes de se afastar para esfaqueá -la novamente.
Margrete nã o tinha certeza de quantas vezes perfurou a pele,
quantas vezes afastou o braço e en iou a faca na criatura, mas, por im,
nã o viu nada alé m de verde-azulado. Ela respirou seu sangue, provou-o
em sua boca. Podre e almiscarado. Velho e amargo.
Sua essê ncia vital tornou-se seu mundo inteiro, e ela o saboreou,
deliciando-se com os movimentos lentos da criatura. Como a morte
lentamente cravou as garras no coraçã o da fera e apertou.
Margrete esfaqueou sua barriga uma ú ltima vez.
A energia que compunha o monstro de inhou, sua força vital tinha
ido embora em um zumbido.
O tentá culo que mantinha Mila cativa se desdobrou, e seu corpo foi
solto para afundar no abismo, os braços estendidos acima da cabeça.
Margrete en iou a lâ mina de volta na bainha e nadou em direçã o à
indefesa Azantiana, seu cabelo ruivo como um farol na escuridã o
crescente.
Vamos lá, Margrete persuadiu, sua adrenalina sumindo junto com o
controle de seu poder. Agora que ela havia matado a besta, a essê ncia
de Malum se acalmara, e ela nã o conseguia controlá -la como izera
momentos antes.
Ela estendeu a mã o para alcançar Mila, seus dentes cerrados com
tanta força que temeu que quebrassem. A possibilidade de perdê -la era
inadmissı́vel. Já tinha havido morte demais, desespero demais, e
Margrete sabia que, se nã o voltasse à superfı́cie com Mila nos braços, o
restante da tripulaçã o perderia a pouca fé que ainda tinha.
Alguns preciosos segundos depois, Margrete deu um impulso inal e
enrolou os dedos no pulso de Mila. Ela nã o olhou para o rosto da
mulher, simplesmente segurou irme e se impulsionou para cima, a
fraca luz do sol atravessando o topo da á gua.
A á gua em seus pulmõ es queimou, e Margrete cuspiu, sua cabeça
girando.
Por favor, ique bem, ela implorou para ningué m e para o nada. Por
favor, viva.
Antes que a escuridã o a puxasse para baixo, Margrete se libertou,
rompendo a superfı́cie com um suspiro sufocado. A á gua que ela havia
inalado escorria de seus pulmõ es enquanto ela se ajustava ao ar, e ela
ofegava sentindo que aquilo a estrangulava.
Mila balançava na á gua ao seu lado, imó vel e pá lida. Com o mundo
oscilando e a vertigem virando sua visã o de cabeça para baixo,
Margrete nadou, com a marinheira a reboque. Gritos soaram, o
chamado familiar de Bay alcançando seus ouvidos.
Ela mal o sentiu quando ele a encontrou no meio do caminho,
ajudando-a a levar Mila de volta à terra irme. Mais gritos encheram o
ar, e entã o uma mã o pesada a golpeou nas costas enquanto ela lutava
para se apoiar com as mã os e os joelhos. Margrete ergueu a cabeça e
olhou para Grant, agradecendo. Ele deu um ú ltimo golpe, e ela expeliu o
resto da á gua.
— Abram espaço! — Bay gritou, e Margrete se arrastou até onde seu
amigo massageava o peito de Mila. A boca estava entreaberta, os lá bios
em um tom de azul. Ela nã o podia fazer nada alé m de assistir enquanto
Bay batia no peito de Mila, assim como tinha feito com Jace no dia
anterior. Aquela ilha agia para matá -los um por um, e a ironia distorcida
de levar os dois amantes primeiro parecia cruel.
Atlas pairava nas proximidades, seus lá bios em uma linha ina.
— Bay, eu nã o acho…
— Quieta! — Bay a interrompeu sem olhar.
Ele continuou a bater no corpo pequeno de Mila, desejando que a
vida voltasse a seus pulmõ es, tentando fazer seu coraçã o bater mais
forte. Margrete estendeu a mã o, agarrando a de Mila. Ela segurou os
dedos frios enquanto uma lá grima quente descia por sua bochecha. Ela
gotejou na coxa de Mila.
Margrete poderia jurar que viu um lampejo de luz quando sua
lá grima penetrou nas roupas encharcadas da garota. Ela respirou,
trê mula, apertando a mã o da garota com força su iciente para
machucar.
Viva, ela pensou, repetindo a ú nica palavra vá rias vezes. Mila ainda
tinha tantos anos pela frente, tantos dias de tristeza, felicidade e
aventura. Era muito jovem para morrer em um lugar tã o cruel.
Viva, malditos sejam os deuses!
Bay deu um pulo para trá s ao mesmo tempo em que os olhos de Mila
se abriram. A garota virou para o lado, á gua jorrando de sua boca em
um luxo aparentemente interminá vel, e Margrete estendeu a mã o para
acariciá -la nas costas.
Aplausos soaram enquanto a tripulaçã o uivava de alegria, sorrindo e
rindo diante da quase-morte. Ela tinha sobrevivido, contra todas as
probabilidades. Ela tinha lutado, caramba.
Margrete sorriu com eles, seus membros tremendo com a adrenalina
que restara em seu corpo. Alguns diziam seu nome, outros o cantavam.
Ela caiu no chã o, de quatro, deixando uma risada manı́aca carregada de
alı́vio sair de seus lá bios. Ela tinha conseguido, usara seu poder para
salvar algué m. A alegria que sentiu aqueceu seu corpo, afugentando o
frio. Aquilo a fez se sentir ú til, digna de tal presente.
Ela nã o tinha certeza se sua lá grima brilhante a salvara ou se ela
simplesmente resgatou Mila no tempo certo. De qualquer forma, ela
estava viva, e Margrete nã o tinha falhado com mais uma pessoa.
— Hum, Margrete. — A voz de Bay soou acima da comemoraçã o da
tripulaçã o, o tom pesado congelando suas veias. Lenta e
cautelosamente, Margrete ergueu a cabeça.
Mila começou a fazer sons de as ixia de novo, seu corpo tremendo
violentamente. Grant teve que correr e segurá -la irme para que nã o se
machucasse.
— Deixe sair — pediu ele, com os olhos arregalados de pâ nico. —
Vamos, querida. Nã o desista de mim ainda. — O aperto em seu ombro
aumentou visivelmente, a cor deixando sua pele.
Mila deu um ú ltimo suspiro.
A á gua escorria de seus lá bios… junto com uma moeda de prata. A
moeda girou antes de cair de lado, duas palavras claramente visı́veis.
Não confie em nada.
o dia seguinte, Bash adentrou mais na loresta. O cabelo e as unhas permaneciam
pretos, e as escamas ao redor de sua garganta começaram a descer gradualmente em direçã o ao
torso.
Ele fez o seu melhor para ignorar tudo aquilo.
Concentre-se nas coisas que pode mudar, Adrian sempre dizia.
Agarrar-se ao impossível é como segurar pedras e mergulhar no mar,
esperando lutuar.
Seu amigo mais antigo e verdadeiro tinha razã o. Bash sentia falta
dele e de sua presença paci icadora. Nã o queria tê -lo deixado em
Azantian, mas estava feliz por tê -lo feito. Adrian poderia nã o ter
sobrevivido ao naufrá gio. Bash nem sabia se o resto da tripulaçã o
sobrevivera ou que horrores suportaram. E Margrete poderia estar
sozinha, enfrentando os deuses sabiam que tipo de monstros
selvagens…
Nã o. Ele nem seguiria por esse caminho. Margrete sabia como se
defender e, se estivesse com Bay ou seus homens, todos estariam vivos.
Isso nã o signi icava que ele nã o estava ansioso para chegar até ela.
Nã o conseguiria descansar até vê -la, com os pró prios olhos, em carne e
osso e respirando.
Em um ponto em sua jornada sombria, Bash pensou ter ouvido um
grito, um grito humano. Viera do nordeste, e ele acelerou o passo,
pensando em Margrete. O grito soou feminino, mas podia ter sido sua
mente pregando peças.
Ao meio-dia, chegou a um riacho. A á gua naquela ilha tinha um gosto
diferente, mas estava fria e saciou sua sede. Nã o podia se dar ao luxo de
pensar demais em algo tã o simples quanto a á gua.
Enquanto caminhava pela mata, Bash nã o ouviu mais gritos, embora
nunca tenha parado seu ritmo implacá vel. Tinha que haver alguém alé m
dele, com certeza. Só nã o queria encontrar Darius. O deus nã o tinha
saı́do de seus pensamentos desde o sonho da noite anterior.
Darius desejava Margrete e o poder dela. Bash sabia que Darius
poderia estar, naquele momento, surpreendendo e capturando
Margrete, e o rei chegaria tarde demais para ajudá -la. Aquele
pensamento o estripou ao mesmo tempo em que o enfureceu, enviando
ondas de choque de raiva gelada por sua espinha. Sua ira era tã o
potente que ele a sentia estremecer a cada passo.
Ao cair da noite, encontrou abrigo em uma caverna, se é que poderia
ser chamada assim. Nã o era muito profunda ― a extensã o equivalia à
altura de Bash. Ele se enrolou ao redor do fogo que fez, observando as
chamas dançarem ao longo das bordas da pedra. Pareciam meses desde
que tinha visto Margrete pela ú ltima vez, e, ainda assim, sabia que só
tinham se passado dias.
Era difı́cil dormir sem a amada em seus braços. Antes de Margrete
entrar em sua vida, a insô nia o atormentara por dé cadas, e só quando
ele dormia ao lado dela encontrava alguma paz. Sua respiraçã o
constante o acalmava, e a pele quente pressionada contra seu peito
impedia que sua mente vagasse para lugares que nã o deveria. Ele daria
qualquer coisa para abraçá -la naquele momento.
Bash suspirou, vagando o olhar para suas mã os. Eram um lembrete
constante da doença que ele sentia se espalhando por suas veias.
Eis quem é você, meu ilho.
As palavras da nymera tinham sido só um jeito de falar? Ou ela quis
dizer aquilo no sentido literal? Bash resmungou, o peito tremendo de
frustraçã o. Suas unhas pareciam mais longas do que de manhã ,
lembrando as garras da nymera. A maldita mulher de branco.
Ele as cutucou com a lâ mina da adaga.
Aquele monstro devia estar mentindo. O ú nico propó sito daquela
ilha parecia ser enganar. No entanto, Bash també m tinha sido visitado
por Darius, e aquilo parecia real, entã o nã o sabia onde estava o limite
entre a verdade e a fantasia.
Um galho se partiu em algum lugar distante.
Bash icou de pé de imediato, a adaga irmemente em sua mã o.
Ele aguçou os ouvidos para identi icar o som, embora os ventos
tornassem difı́cil ouvir muito mais do que farfalhar das folhas. Qualquer
tipo de animal poderia chamar aquele lugar de lar, e Bash suspeitava
que as criaturas que ele encontraria nã o se assemelhassem a nada que
ele tivesse lido em seus livros.
Outra coisa da qual ele sentia falta ― os tempos em que seus livros
de mitos e lendas eram apenas histó rias impossı́veis que nã o o
afetavam. Ele cresceu lendo sobre as crianças do mar, sobre Surria, a
Deusa do Vento e do Cé u, e seus dois ilhos. Tinha sido um passatempo
vasculhar as pá ginas que descreviam a raiva insaciá vel de Charion. Ele
releu relatos de marinheiros perdidos que encontraram o caminho de
casa por causa dos sussurros da deusa da lua, Selene. Na é poca,
pareciam mais icçã o do que seres vivos. Sentia falta de sua ignorâ ncia.
Outro galho quebrou e Bash se encolheu.
Algo estava ali, e estava perto.
Sua boca se abriu. Estava pronto para exigir saber quem ousava se
aproximar, mas refreou o instinto. Se Darius acreditava que poderia se
aproximar dele, estava muito enganado.
Outro estalo e entã o…
Bash soltou a adaga.
A lâ mina caiu no chã o, fazendo um som abafado. Ele começou a
correr.
— Margrete!
Assim que chegou perto, Bash a pegou em seus braços e a levantou.
A alegria se espalhou por ele enquanto a girava e girava, provavelmente
a abraçando com muita força. Mas nã o conseguia se controlar. Pensou
que a tinha perdido e agora ela estava ali, bem na frente dele, em seus
braços. Era tudo o que ele tinha desejado.
— Bash! — Ela suspirou, fazendo o nome dele soar melhor do que
qualquer mú sica ou melodia. — Finalmente te encontrei.
Bash recuou apenas o su iciente para olhar em seus olhos azuis,
algumas lá grimas escorrendo por suas bochechas rosadas.
— Quando nã o te encontramos com os outros, pensei no pior. — A
voz de Margrete falhou, e mais lá grimas caı́ram. Ele mesmo podia ter
derramado algumas delas. Ele nunca sentira um alı́vio tã o palpá vel.
As palavras lhe escaparam inteiramente, mas ele se inclinou,
beijando seus lá bios e transmitindo seu amor de outra maneira. Eles
pareciam como ele se lembrava, tã o macios, tã o suaves e feitos para
beijá -lo. Ele levou a mã o à nuca dela e agarrou os ios, puxando-a
incrivelmente perto, esmagando-a contra ele. Precisava sentir cada
centı́metro dela, tocá -la, sentir seu calor lavando seu corpo como o sol
da manhã .
Margrete passou um braço ao redor de seu torso enquanto o
segurava irme em um abraço muito mais forte do que ele se lembrava.
— Princesa — ofegou ele quando se afastaram, observando que ela
puxava o ar de olhos semicerrados. — Deuses, eu senti sua falta.
Ele estendeu a mã o para traçar a curva de sua bochecha com um
toque leve como uma pluma, completamente o oposto da força que
usara segundos antes. Ela parecia tã o preciosa dentro daquele abraço,
tã o brilhante, tã o radiante e tã o totalmente dele.
Bash sabia o quã o sortudo era.
— També m senti sua falta — murmurou ela, descansando a cabeça
na dele. Seus narizes se tocaram. — Saı́ para te procurar enquanto os
outros dormiam. Sabia que você estava perto, senti sua presença.
Ele riu, o barulho alegre.
— Você nã o deveria ter feito isso, mas estou feliz que o fez — disse
ele, ainda cambaleando. — Onde ica o acampamento? E longe?
Margrete balançou a cabeça.
— Nã o, é pertinho. — Seu rosto se iluminou quando ela sorriu. O
coraçã o de Bash bateu descontroladamente. — Fica a cerca de dez
minutos ao norte. Podemos ir até lá agora mesmo.
Bash assentiu, animado, disposto a se reunir com sua tripulaçã o,
com Bay. Na companhia de Margrete, ele se sentiu como si mesmo
novamente, um rei que, ao lado de sua parceira, poderia derrotar
qualquer obstá culo.
— Vamos, entã o — falou ela, agarrando as duas mã os dele. Seu
sorriso era brilhante e largo, e ela nã o perdeu um segundo ao puxá -lo
atravé s das á rvores com passos seguros e irmes. Ele a seguia,
sorridente. Bash se sentiu bê bado com sua presença, intoxicado por sua
proximidade.
Ele tinha mentido para si mesmo; nã o tinha certeza se a veria
novamente.
Mas entã o… ele se permitiu a esperança que lhe foi negada.
— Rá pido! — insistiu ela, sua voz saindo estridente. As sobrancelhas
de Bash se franziram, mas ele nã o soltou sua mã o.
O cabelo de Margrete ondulava enquanto ela corria, os cachos cor de
chocolate sedosos e brilhando ao luar nebuloso. Ele se perguntou como
ela podia estar tã o limpa depois de dias presa em uma ilha. Ela estava
linda, e Bash parecia…
Espere aı́.
Bash puxou suavemente a mã o dela, mas ela nã o parou. Margrete o
arrastou à frente, segurando-o de forma quase punitiva.
— E bem por aqui — disse ela enquanto passavam por duas á rvores
encurvadas. Os galhos estavam sobrecarregados de folhas vermelho-
profundo, forçando-o a dobrar a cabeça para passar.
Assim que passaram pelas á rvores espinhosas, Bash puxou a mã o
dela novamente.
— Margrete, espere. Pare por um momento. — O coraçã o de Bash
trovejou, e todo o seu corpo estava frio. — Por favor, apenas pare.
Ela o ignorou, rindo.
— Tã o preocupado. Eu juro, sã o só mais alguns segundos…
Bash puxou com força, forçando-a a parar. Ela esbarrou em seu peito.
Virando, ela encontrou seu olhar pesado.
A mulher à frente dele parecia sua Margrete, soava como ela, até
exalava seu perfume de lavanda. Mas…
— Notou algo diferente, princesa? — perguntou ele, inclinando a
cabeça.
Ela podia parecer e soar como sua Margrete, mas a mulher que ele
conhecia e amava nã o teria saı́do correndo para a loresta depois de ver
seu novo rosto. Ela os faria sentar e falar sobre o que aconteceu.
Margrete era excepcionalmente teimosa quando queria saber alguma
coisa, embora ele secretamente gostasse da preocupaçã o dela. Aquela
criatura ― Bash soltou a mã o dela e deu um passo para trá s ― nã o
perguntou sobre suas escamas, suas unhas, seu cabelo recé m-
escurecido.
Ela apenas olhou para ele sem expressã o, nenhuma faı́sca atrá s de
seus olhos. Nenhum fogo.
— Quem é você ?
Bash procurou sua adaga. Sua mã o encontrou apenas o ar.
Um lash de prata chamou sua atençã o, e Margrete ― ou a coisa
disfarçada como ela ― puxou a lâ mina dele de trá s de suas costas.
— Procurando isso? — perguntou ela, sorrindo.
O estô mago de Bash gelou.
— Quer vir aqui e pegar? — Ela acenou com inocê ncia, recuando
lentamente. Bash deu um passo, sua mandı́bula apertada. — Vamos,
tire isso de mim — brincou ela, a voz icando quase cruel. A iada e dura.
Aquilo o lembrou da voz de outra pessoa, embora ele nã o pudesse dizer
quem.
— Eu perguntei quem você é — repetiu ele, frustraçã o fervendo em
seu peito. — Diga agora.
Sua ordem soou enfraquecida. Mesmo sabendo que nã o era
Margrete, sua ousada princesa, a criatura usava seu rosto, e ele
impulsivamente queria acreditar que se tratava de Margrete.
— Nã o seja bobo — respondeu ela, continuando a recuar. Bash
seguiu. — O que deu em você ? Estamos quase no acampamento, e
posso explicar tudo lá . Adrian tem perguntado sobre você sem parar.
Bash parou completamente.
— Adrian nã o estava no Phaedra.
Nã o havia mais margem para dú vidas.
A mulher que usava o rosto de Margrete suspirou dramaticamente
enquanto suas feiçõ es endureciam.
— Opa. — Ela riu. — Você tem pensado muito em Adrian.
Como ela sabia no que ele pensava?
Bash cerrou as mã os em punhos nas laterais do corpo. Ele desejou
segurar sua adaga, uma arma, qualquer coisa para se defender. Aquilo
nã o era humano.
— Bem, isso foi inteiramente minha culpa. — Ela fez um aceno
despreocupado no ar. — Um pequeno deslize, infelizmente. — A mulher
estalou a lı́ngua e deu um passo para o lado em um borrã o de membros
e um lash de cabelo vermelho vibrante. Os ios voltaram a icar
marrons segundos depois, no momento em que a loresta começou a se
mover, girar e oscilar ao redor dele. Bash tropeçou no lugar, sentindo-se
desequilibrado.
— O-o que está acontecendo?
— Só mais alguns passos, meu rei. — Mais risadas se seguiram, do
tipo que o lembrava de pregos se arrastando pelo vidro. — Mais. Um.
Passo.
Bash nã o tinha percebido que tinha dado um passo em seu estado
desorientado.
Ele lutou para manter os membros irmes no chã o.
— Precisa de ajuda? — A voz de Margrete perguntou, embora tenha
icado mais profunda, se transformando em um eco oco.
Bash balançou a cabeça e apertou as tê mporas. Ele nã o conseguia
enxergar direito, e toda vez que pensava ter visto a mulher, ela
desaparecia. Bash estendeu a mã o, esperando poder ser segurar a uma
á rvore pró xima, esperando se equilibrar…
Ele deu um passo…
Seu pé encontrou o ar livre.
A loresta desapareceu, substituı́da por penhascos e rochas
pontiagudas. Bash lutou para segurar alguma coisa, qualquer coisa, mas
já era tarde demais.
— Bons sonhos, rei.
Bash mergulhou de cabeça na lateral do penhasco.
ão con ie em nada.
Uma cobra grosseiramente gravada circundava a inscriçã o, a lı́ngua
bifurcada deslizando para fora e tocando o N. Como na ú ltima moeda,
٢
ela tinha um nú mero na outra face. Um simples e sem adornos.
Zangada, Margrete passou a moeda brilhante entre os dedos. A coisa
amaldiçoada os encontrara, e da maneira mais horrı́vel. Como a moeda
tinha ido parar dentro da garganta de Mila era um misté rio. Do tipo que
eles provavelmente nã o encontrariam resposta.
Enquanto ela examinava a moeda pela milé sima vez, os outros se
sentaram em silê ncio ao redor do fogo que izeram, olhando ixamente
para a frente. Grant havia moldado uma lança com sua adaga logo apó s
o resgate de Mila, e os dois peixes magros assando sobre as chamas
estavam ali graças a ele.
Atlas era a ú nica que nã o tinha olhos vidrados. Ela continuava
lançando olhares estranhamente tı́midos para Dani, que estava
totalmente alheia a suas atençõ es. Margrete achava que nunca tinha
ouvido a voz da garota. Ou do irmã o gê meo, para falar a verdade. Eles
só icavam entre eles.
Mesmo que seu estô mago roncasse e a fome a consumisse por
dentro, o pensamento de comer a deixava enjoada. Ou talvez ela
estivesse enjoada porque não tinha comido. Nã o conseguia mais pensar
direito.
— O que você acha que isso signi ica? — perguntou Bay, cutucando-a
com o cotovelo. Ele estava quieto desde que Mila tinha vomitado a
moeda antiga, junto com o resto da á gua de seus pulmõ es. Tentar
ignorar os testes, ao que parecia, nã o era uma opçã o. As moedas de
Surria sempre os encontrariam.
— Acho que nossa noite será longa — Margrete disse baixinho,
enrolando os dedos ao redor do metal frio. A moeda parecia mais
pesada do que a primeira.
Bay apoiou a cabeça no ombro dela. Ela aninhou a bochecha nele,
suspirando.
— Vamos nos revezar na vigı́lia. Embora eu duvide que isso nos faça
algum bem. — Bay ergueu a cabeça. Ela notou como sua pele icou
pá lida, e os cı́rculos abaixo de seus olhos se intensi icaram.
— O primeiro teste… você está bem? — Ela prometeu que nã o
pressionaria, que nã o pediria detalhes, mas precisava saber como ele
estava. Toda a postura de Bay ruiu com a pergunta.
— Eu vi o cadá ver de Adrian. Queimado. Carbonizado.
Margrete engoliu em seco, tentando nã o vacilar.
— O palá cio de Azantian estava em chamas. Eu o tirei de lá , mas era
tarde demais. Ele estava morto.
— Nossos piores pesadelos — disse ela, observando o fogo.
Eles conversavam baixinho, atentos aos outros.
— Sim, ver a outra metade da minha alma queimar até icar crocante
estaria no topo da lista de piores pesadelos. — Bay tentou rir. Foi
terrivelmente fraco.
— Por que fogo? — Margrete pressionou. Podia entender a morte de
Adrian, mas a presença do fogo lhe parecia estranha. Ou, pelo menos,
era especı́ ico o su iciente para se destacar.
— Nã o tenho certeza, mas nã o consigo evitar a sensaçã o de que
estou esquecendo alguma coisa. Tudo aconteceu em um borrã o, mas sei
que há uma peça do quebra-cabeça que estou perdendo. — Bay se
afastou para olhar nos olhos dela. — Com o que você sonhou?
Margrete enrijeceu.
— Sonhei que me afogava dentro na caixa em que meu pai
costumava me colocar.
Deuses, só de pensar naquilo já começava a tremer. Ela tinha
conseguido escapar do pesadelo, mas por pouco. Desejou ser mais
forte.
Com uma das mã os, Bay segurou as duas mã os dela. O peso do
contato estabilizou o tremor.
— Você se libertou, Margrete. Nã o estaria aqui se nã o tivesse vencido
a crueldade de seu pai. A tortura. Você é mais forte do que pensa —
falou com suavidade, como se tivesse lido sua mente. Ele descansou a
cabeça no ombro dela.
Margrete o abraçou, transmitindo agradecimentos silenciosos. Se
tivesse um amigo como Bay em Prias, poderia ter escapado de seu pai
muito antes. Ela nunca teve algué m com quem compartilhar os
segredos mais ı́ntimos. Agora entendia por que seu pai a isolara, por
que fez de tudo para tornar quase impossı́vel qualquer pessoa se
aproximar dela. O amor fortaleceria Margrete, e ele trabalhava
incansavelmente para fazê -la acreditar que era fraca.
O amor pode ser uma arma por si só .
Como sempre acontecia, pensou em Bash.
— Sinto saudade dele — sussurrou ela, observando as chamas
faiscarem e estalarem. Parecia bobo dizer em voz alta, considerando
tudo o que suportaram e tudo o que ainda enfrentariam. Ainda assim,
se algué m podia entendê -la, seria Bay.
— Nó s vamos encontrá -lo. Bash é mais teimoso do que você , o que
diz muito — falou ele com um sorriso cauteloso. — E, alé m disso, você
teria sentido algo, certo? Se Bash tivesse… — Ele nã o conseguia dizer a
palavra, mas ela sabia o que ele queria dizer.
Margrete assentiu.
— Eu teria sentido, assim como senti quando o perdi da outra vez.
— Entã o isso signi ica que ele está aqui, provavelmente nos
procurando — falou Bay com irmeza. — Nã o sou de ter fé , mas o amor
tem um jeito de fazer de mim um crente. Por mais terrivelmente
sentimental que isso soe.
— Eu gosto quando você é terrivelmente sentimental — sussurrou
ela, passando a mã o no cabelo dele e esfregando seu couro cabeludo. —
E obrigada por me contar — murmurou. Sobre seu maior medo.
— De nada, Margrete. Obrigado por con iar em mim també m.
Em silê ncio, Margrete icou fazendo um cafuné em Bay, brincando
com os ios curtos. O guerreiro adormeceu ali, bem encostado em seu
ombro, e Margrete icou de vigı́lia.
Ela olhou para a noite. Nã o conseguia evitar a sensaçã o de que ela a
olhava de volta.

Margrete sonhou com Azantian.


Ela vagava pela praia, em direçã o à Caverna Kardias. Bay havia lhe
mostrado o local quando ela chegou, e ela tinha icado fascinada. Como
poderia nã o icar? Abaixo das á guas batendo contra as paredes
rochosas estavam os portõ es, aqueles que tinham sido construı́dos para
aprisionar os ilhos do mar.
Margrete deslizava pela caverna, suspirando enquanto a escuridã o
tomava conta de sua pele. Naquele mundo de sonho, ela nã o perdeu um
passo, nã o se atrapalhou. Conhecia cada rocha e fenda e andava com a
postura correta de algué m que crescera naquelas praias.
Um zumbido começou a soar, suave no inı́cio, como um sussurro. As
ondas afogavam boa parte do ruı́do, mas ele aumentava a cada passo
para dentro da caverna. Quando chegou à abertura, onde o mar
encontrava a boca escancarada, o zumbido era tudo o que ela conseguia
ouvir.
Os membros de Margrete estavam soltos e o pulso, irme. Aquilo era
surpreendente, dada a sensaçã o de mau pressá gio que inundou seu
peito exatamente onde vivia o poder de Malum. Aquela essê ncia se
animou, como se ouvisse uma melodia familiar, tentando decifrar se
adorava ou detestava a melodia que ouvia.
— Está gostando da minha ilha?
Margrete deu um pulo. Um homem encapuzado com cerca de dois
metros de altura emergiu das sombras. Mechas de cabelo loiro
escapavam das laterais do capuz, que cobria praticamente todas as suas
feiçõ es, exceto o queixo orgulhoso e a curvatura do sorriso.
Embora, no fundo, soubesse que nada daquilo era real, ela deu um
passo para trá s e estendeu as mã os diante de si, pronta para se
defender. A mú sica das ondas continuou a tocar e, em algum lugar
distante, ela distinguiu as cordas de um violino melancó lico.
Inclinando a cabeça encapuzada, o homem entrou mais fundo na
caverna, icando bem no centro. Margrete percebeu, entã o, que se
movera inadvertidamente contra a parede oposta, encostando as mã os
em uma das muitas colunas hexagonais.
Ela se endireitou, erguendo a coluna.
— Vou tomar seu silê ncio como resposta. — O homem riu. — Eu
particularmente nã o gostei.
Suas palavras con irmaram tudo.
— O que você quer? E como está aqui, no meu sonho? — perguntou
ela, cheia de uma ousadia que endurecia seu tom de voz. Se sentiu
orgulhosa, e, em resposta, seu poder vibrava.
— Para responder à sua primeira pergunta, eu quero muitas coisas.
Coisas que nã o acreditava que desejaria novamente. Mas suponho que a
velhice faz você perceber exatamente o que quer. O que está perdendo
há tantos sé culos.
Margrete se afastou da parede. Fingindo uma con iança que nã o
sentia, ela caminhou até o Deus do Mar, parando a quase um metro de
distâ ncia.
— Chega de jogos mentais. Chega de enigmas. Responda à maldita
pergunta. Como você está aqui? — No sonho que era dela. Invadindo
seu lugar mais sagrado.
Darius.
Ele a ameaçou em Azantian. Disse a ela que, se nã o fosse com ele,
machucaria Bash. Novamente.
Ele é o responsá vel por tudo isso? O naufrá gio do Phaedra? A ilha? As
moedas de Surria?
— Estou levemente ferido por você nã o ter me sentido em seus
sonhos antes, Margrete. Achei que teria me sentido meses antes.
— Meses. Você está perseguindo meus sonhos há meses? — Ela
soltou um suspiro trê mulo. — Por quê ?
Se ele desejava seu poder, entrar em seus sonhos nã o seria o melhor
caminho a seguir. Ele teria mais sorte se procurasse em livros antigos
sobre mitos uma pista de como remover a marca protetora de Malum.
Com o pensamento, sua mã o deslizou para a tatuagem.
Instantaneamente, uma calma frá gil a percorreu.
Darius sorriu, a curva de sua boca perversa.
— Eu poderia mentir para você , mas, sinceramente, minhas açõ es
foram totalmente egoı́stas. Uma maneira de… entender.
— Entender o quê? — A frustraçã o borbulhou à superfı́cie.
Lentamente, Darius ergueu as mã os, alcançando o capuz.
— Eu queria entender você e o que se tornou — respondeu
friamente. Seus dedos brincavam com a bainha do capuz, como se
estivesse considerando se deveria ou nã o revelar seu verdadeiro rosto.
Margrete icou tentada a arrancá -lo.
Ela ignorou suas palavras e estreitou os olhos. Nã o tinha como suas
razõ es terem sido tã o simples.
— Está com muito medo de me mostrar o monstro escondido atrá s
da má scara? — perguntou ela, fazendo o pouco que podia para enervá -
lo. Na verdade, a presença dele sempre conseguia virar o mundo dela
de cabeça para baixo. E, no fundo, sabia que ele nã o faria nada para
machucá -la isicamente. Poderia tê -la machucado mil vezes, mesmo
com a marca protetora de Malum, mas nã o o fez. A pergunta era por
quê .
Os dedos de Darius agarraram a capa.
— Estou longe de ter medo. Na verdade, eu estava querendo mostrar
a você .
Ele baixou o capuz em um borrã o, e o ar icou pesado.
— Você é uma das poucas que já me viram. O meu verdadeiro eu.
Deuses acima e abaixo. Darius era… de tirar o fô lego. De tirar o
fô lego de uma forma puramente devastadora. Ele era todo â ngulos
a iados e maçã s do rosto cortantes, uma mandı́bula forte e lá bios
carnudos e rosados. Um olhar tã o frio, mesmo com olhos que
rivalizavam com a beleza do mar. Azuis e verdes verdejantes cercavam
suas pupilas, e lascas de ouro brilhavam em suas ı́ris. Eles eram o tipo
de olhos em que algué m poderia se perder para sempre.
Ou se afogar.
Margrete mordeu o interior da bochecha, desejando cortar o contato
visual.
— Devo dizer que sua reaçã o nã o decepcionou. — Um canto de sua
boca se curvou e, por um breve segundo, seus olhos icaram suaves. —
Por mil anos, eu usei as conchas de estranhos, forçado a sobreviver
como um mortal. Mas agora… — ele se aproximou, perto o su iciente a
ponto de ela poder sentir sua respiraçã o em seu rosto — … nã o tenho
mais que me esconder.
— Devo me sentir honrada? — perguntou ela, recusando-se a recuar.
Era isso o que ele queria. Que ela se encolhesse. — Nã o me importo
com sua aparê ncia, Darius. Quero saber por que estamos aqui. Nesta
ilha.
O que ele ganharia com tudo aquilo?
— Você nã o tem ideia do que você é . — Ele suspirou. — E desejo
remediar isso, de uma vez por todas. Esta ilha revela muito e, embora
eu a despreze, provavelmente tanto quanto você , é um mal necessá rio.
— Eu sei o que não sou — disparou. — E estou cansada de ser um
peã o nesse jogo distorcido que você está jogando.
Darius a circulou.
— Você nã o é um peã o. Nã o, nã o, nã o. — Ele balançou a cabeça, os
cachos loiros caindo sobre os olhos. — Você é muito mais preciosa do
que isso. Nã o tem ideia.
— Entã o esclareça — retrucou ela. Mais uma vez, ele falava em
enigmas.
— Eu vi seus olhos se arregalarem e ouvi seu coraçã o acelerar
quando abaixei meu capuz. Quer admita ou nã o, eu a afeto
profundamente, você nã o pode evitar. Semelhantes se atraem.
Ele ergueu a mã o, passando um dedo solitá rio no rosto dela. Seu
toque gelado a fez estremecer, mas ela cerrou os dentes e prendeu a
respiraçã o. Cautelosamente, ele desceu o dedo pela curva de sua
bochecha e para a parte inferior da mandı́bula. Ele inclinou o rosto dela
para que o encarasse.
— Você é muito mais corajosa do que eu jamais poderia imaginar —
disse ele com orgulho. — Eu nunca deveria ter duvidado de que você
era a certa.
— Certa? — Algo frio e antigo deslizou ao redor da garganta de
Margrete e a apertou. Ela sentiu como se tivesse sido empurrada de um
penhasco e estivesse caindo no ar, esperando o impacto inevitá vel.
Darius suspirou e tirou a mã o de seu rosto. Ele se contorceu.
— Se você sobreviver e completar o terceiro teste, tudo será
revelado. Suspeito que você vai conseguir. — Ele a olhou, demorando-se
em seus lá bios. — Você nã o é de desistir tã o facilmente. Uma
caracterı́stica que sempre admirei.
Ele falou como se a conhecesse há anos.
Margrete fez uma careta.
— Quero sair desta ilha imediatamente e quero saber onde está
Bash. Agora.
Ela ergueu o queixo quando o olhar de Darius se tornou letal, o azul
se transformando em aço. Ao som do nome do rei, ele icou rı́gido.
— As nymeras tê m suas razõ es para levarem Bash, Margrete — disse
ele suavemente, como se estivesse falando com uma criança pequena.
— Elas o teriam matado imediatamente se o sangue delas nã o corresse
em suas veias.
Seus lá bios se separaram. O que Darius insinuou nã o era possı́vel.
Ela tinha visto os retratos de seus pais, dezenas deles pendurados por
todo o palá cio.
— Ele nã o é um…
— Ah, sim, ele é , sim — falou Darius, sua voz cheia de risadas. — Mal
posso esperar até que você o veja novamente. Que surpresa deliciosa
será .
— Entã o, ele está aqui.
— Eu nunca disse que nã o estava, Margrete. Nã o menti uma ú nica
vez para você . Ao contrá rio dele.
A luz que entrava na Caverna Kardias tremeluziu e as paredes
adquiriram um tom leitoso de ardó sia. Margrete sentiu que nã o tinha
muito mais tempo até acordar. Sua visã o estava se desfazendo.
E porque aquilo era um sonho e Darius nã o podia fazer nada para
machucá -la, Margrete estendeu a mã o e agarrou sua capa. Ela o puxou
para perto.
— Diga onde ele está , ou juro que passarei o resto dos meus dias te
caçando. Posso ser apenas meia Azantiana, mas tenho o poder de seu
irmã o dentro de mim, e é apenas questã o de tempo até que ele passe a
agir sob minha vontade.
O sorriso de Darius se abriu até icar impossivelmente grande.
— Estou contando com isso, amor. Gosto muito quando você mostra
os dentes.
Ela o empurrou para longe enquanto ele ria. Seu corpo eté reo
formigava, e tufos escurecidos de neblina rolaram para o centro da
caverna. Darius ergueu as sobrancelhas antes de se curvar em uma
zombaria.
— Até a pró xima — prometeu ele quando se levantou. — E, acredite
em mim, mal posso esperar pelo nosso reencontro.
Quando Darius e a Caverna Kardias desapareceram, outra cena
assumiu o lugar ― a mesma que ela tinha visto quando Darius apareceu
nas praias de Azantian.
Era ela, olhando nos olhos dele com profundo amor, os braços
envolvendo seu torso. O deus se inclinou para dar um beijo suave em
sua testa, os olhos se fechando em ê xtase pacı́ ico. Se fosse fá cil enganá -
la, poderia imaginar que era real.
Quando abriu os olhos, aquela imagem icou com ela, assombrando-a
muito depois do sol nascer. Nã o ajudou que seus braços formigassem
no local em que o deus a havia tocado no sonho, e nã o importava o
quanto ela esfregasse a pele, tentando afastar seu toque fantasma, ele
permanecia como uma marca.
ash estava sonhando com Margrete quando a chuva espirrou em sua testa.
Ele se moveu para o lado e abriu os olhos ― e quase se lançou da
beira de um penhasco.
— Merda! — Bash escapou para longe da queda perigosa, suas botas
chutando algumas pedras errantes para o lado e para a fenda sem
fundo abaixo. Ele vislumbrou apenas rochas e sombras, o poço
parecendo in inito.
Merda, merda, merda, merda.
Todo o seu corpo doı́a enquanto ele se levantava no ar espesso,
tentando identi icar a ú ltima coisa de que se lembrava. Bash fechou os
olhos, embora até aquilo parecesse doer. Na noite anterior, tinha icado
hipnotizado pelas chamas, pensando na vida que sentia que havia
perdido quando…
Uma brisa soprou, esfriando o suor em sua testa. Ele suspirou,
pressionando-se ainda mais contra a parede de pedra, suas costelas
ardendo. Aquela brisa, cheia de notas de eucalipto, també m emanava
outro aroma distinto ― o aroma com o qual ele acordava todos os dias.
Lavanda.
Sim. Agora ele se lembrava, embora desejasse esquecer.
A compreensã o o atingiu com força, e sua cabeça latejou quando
fragmentos de memó ria o atacaram. Ele tinha visto Margrete, e ela o
levara ali antes de desaparecer.
Espere, nã o, isso també m nã o estava certo. Bash se concentrou,
pegando os pedaços de imagens distorcidas, vasculhando os pedaços
borrados em busca de qualquer sinal de verdade. Margrete se
materializou na loresta, eles correram um para o outro e se abraçaram,
e ela estava tã o animada para levá -lo ao acampamento onde ele veria
Bay e…
Isso mesmo.
Não era Margrete.
Era uma có pia perfeita dela, mas aquela só sia nã o tinha a faı́sca
indescritı́vel que sua Margrete possuı́a. Tinha icado tã o esperançoso
que, no inı́cio, nã o viu a verdade e se permitiu ser enganado.
Os ombros de Bash se curvaram. Como desejava que ela fosse real e
nã o outra ilusã o construı́da por aquela ilha de horrores.
Porra de lugar maldito.
Com membros instá veis, ele se levantou e encarou a parede do
penhasco. A subida nã o era longa, mas nã o era das mais fá ceis. Ele
avistou alguns pontos de apoio aqui e ali, meio soltos, de um jeito que
podiam terminar em sua morte imediata.
— Adorá vel. — Ele se arrepiou, colocando as mã os na laje rochosa.
Olhou para as pontas dos dedos. Ainda pretas. Ainda
assustadoramente monstruosas.
Bash começou a subida, fazendo o possı́vel para evitar olhar para as
mã os. O que, nã o surpreendentemente, se provou ser impossı́vel.
Graças a todos os deuses nã o havia um espelho disponı́vel. Nã o era
um homem vaidoso ― bem, nã o por completo ―, mas supô s que seu
re lexo nã o o agradaria. Felizmente, as escamas nã o tinham chegado ao
rosto. Ainda.
Grunhiu enquanto subia mais alguns metros. Em geral, nã o sentiria
tanta exaustã o ou falta de foco, mas algo estava acontecendo com ele, e
podia sentir seu corpo mudando, quase como se estivesse se refazendo.
Essa linha de pensamento em particular nã o estava ajudando em
nada. Entã o teve que desligar tudo e apenas subir.
Bash conseguiu apoio e usou as pernas para se içar mais alto, os
dedos desesperadamente agarrados à s laterais do penhasco por sua
preciosa vida. Um punhado de seixos soltos caiu em seus olhos, e ele
balançou a cabeça, piscando para afastar a poeira residual que
deixaram para trá s.
Ele se impulsionou para a frente. Aquele era um ponto sem volta.
Erguendo-se em busca de outro apoio, percebeu com clareza
nauseante o quanto a parede do penhasco se curvava precariamente
para dentro. Foi um erro ter ido à quela borda, para começo de
conversa. Com base em sua posiçã o e na planı́cie á spera em que
acordou, provavelmente estava perdido na noite anterior, quando caiu.
Não se concentre nisso, ele se repreendeu. Concentre-se em não se
matar agora.
Ainda bem que Adrian insistiu que ele focasse seu treinamento em
fortalecer a parte superior do corpo pelo menos trê s vezes por semana.
— Merda!
Sua mã o escorregou. A pedra se desfez no local em que ele tinha se
apoiado, arrancando um pedaço signi icativo de rocha. A mã o
machucada pendeu ao lado do corpo.
O suor lhe cobria a testa e escorria pela espinha. A brisa esfriou,
fazendo có cegas na pele ú mida, e o aroma de lavanda no ar icou mais
potente. Ou talvez fosse sua imaginaçã o. Cerrando os dentes com força
su iciente para ouvir toda a mandı́bula estalar, Bash lançou o braço
direito, procurando um apoio está vel. Com as mã os icando mais
ú midas a cada segundo, ele sabia que logo escorregaria.
Errou o alvo. Novamente ele balançou o braço direito, e novamente
errou.
Fechou os olhos, procurando a escuridã o, como tantas vezes fazia
quando a vida icava muito… esmagadora. Ele se aventuraria abaixo do
palá cio até a Caverna Adiria e simplesmente se sentaria e deixaria o
silê ncio consumir seus problemas. Nã o foi a escuridã o completa que ele
encontrou naquele momento, mas aquilo o centrou.
Bash mirou. Conseguiu fazer contato e cravou os dedos na pedra. Ele
tinha conseguido.
Uma energia percorreu sua corrente sanguı́nea, e ele abriu os olhos.
A adrenalina parecia fria, sensı́vel, como má gica que poderia afetar uma
alma viva.
Era muito para lidar de uma vez, mas nã o tinha escolha.
Concentrou-se na situaçã o difı́cil em que estava, e seus olhos
captaram os menores detalhes enquanto ele percorria a pedra porosa.
Sentiu cheiro de sal e lavanda, e de um sangue que nã o era dele. No
fundo de sua mente, uma pequena voz sussurrou que o aroma vinha de
pelo menos cinco quilô metros no interior da ilha. Norte, talvez? Claro,
seus sentidos Azantianos eram aguçados, mas aquilo foi alé m de suas
capacidades normais.
E os mú sculos. Eles ondularam com uma força recé m-descoberta.
Nã o queimaram enquanto ele subia com cuidado até o topo. Parecia que
agora era um novo homem, e nã o mais a versã o machucada que
acordou quebrada e com o coraçã o partido.
Bash chegou ao limite e se jogou em terra irme com um rugido
determinado. Ele tinha conseguido, estava vivo e inteiro.
Antes de se levantar, ele se virou e aproveitou um breve segundo de
alı́vio para descansar e acalmar o coraçã o acelerado. Examinou a
loresta.
Notou as folhas. No dia anterior, eram pretas, com algumas folhas de
tom avermelhado se misturando ao mar de escuridã o. Naquele
momento, estavam um pouco mais detalhadas.
Esse pouco queria dizer muito.
Os veios das folhas vermelhas que ele tinha visto estavam bem-
marcados com o que parecia ser uma tinta preta brilhante.
Redemoinhos e linhas caó ticas serpenteavam pela superfı́cie
quebradiça, cada folha diferente da outra. Os desenhos nã o faziam
absolutamente nenhum sentido para Bash, mas ele nã o resistiu e
estendeu a mã o para pegar uma de um galho baixo.
Instantaneamente, a tinta preta brilhante desapareceu.
Franzindo o cenho, Bash tentou outra. Ela també m perdeu os
padrõ es selvagens.
— Isso acontece sempre que elas sã o separadas da ilha.
Bash se virou.
— Deuses, você precisa mesmo continuar a fazer isso? — Ele olhou
ameaçadoramente para a criatura que se esgueirara atrá s ele.
Diante dele, encostada no tronco de uma á rvore retorcida,
descansava a nymera que ousara chamá -lo de ilho. Seus lá bios pá lidos,
quase azuis, se torceram em uma carranca em reaçã o ao tom agressivo
de Bash, e seus olhos muito arregalados se estreitaram.
Bash nã o se importava se ela tinha se ofendido. Talvez aquela
energia recé m-descoberta pudesse ajudá -lo em uma briga, e nã o
hesitaria em usar os punhos para resolver seus problemas.
Ningué m jamais poderia dizer que ele era perfeito.
— Eu te segui depois que aquela criatura miserá vel te levou e evitei
sua morte. — Ela cruzou os braços esquelé ticos, seu vestido branco
esvoaçando nas laterais do corpo, o vento batendo na bainha. Ela se
desencostou da á rvore, fazendo o corpo á gil deslizar pelo ar do jeito
que algué m se moveria na á gua.
Bash olhou para sua nova inimiga. Uma nymera nunca era con iá vel.
Ao redor dos pé s descalços da nymera giravam nuvens prateadas e
violeta. Vinham da loresta e serpenteavam ao redor de seu corpo. A
neblina pareceu estremecer de prazer ao tocar em sua pele.
— Magia das trevas — disparou ele. Deuses, ele estava cansado de
magia das trevas. Alé m de tudo que tinha enfrentado, magia das trevas
era o que faltava para exasperá -lo de vez.
— Sim. E foi isso que salvou sua vida. De nada, aliá s. Se eu nã o
estivesse com você ontem à noite, quando se permitiu ser vı́tima de
uma alucinaçã o ó bvia, aquela ninfa teria icado até ter certeza de que
tinha terminado seu trabalho. Coisinhas maldosas, as ninfas. — A
nymera de cabelos de um preto profundo sorriu, deixando os caninos
projetarem-se no lá bio inferior cheio. — Aquelazinha em particular é
notoriamente uma enganadora, mas, felizmente para você , ela recebeu
um chamado para retornar ao mestre dela ao nascer do sol, entã o você
está seguro por enquanto.
— Ninfa? As ninfas nã o sã o donzelas criadas por Brielle?
— A Deusa do Bosque Profundo e da Caça nã o teve nenhuma
participaçã o naquilo. Embora ela seja orgulhosa o su iciente para icar
com o cré dito, tenho certeza.
— Entã o quem foi? — Bash deu um passo corajoso para frente. Um
metro e meio os separava. Ele suspeitava que ela poderia atacar a
qualquer momento e roubar sua alma. Mas, ainda assim, ela nã o se
moveu um centı́metro.
— Antes de continuarmos, acho melhor você saber qual é o meu
nome, já que é falta de educaçã o que eu saiba o seu e você nã o saiba o
meu.
— Nã o quero saber seu nome, demô nio. Eu quero respostas.
Ela zombou, despreocupada.
— Vejo que você tem as maneiras do seu pai.
O sangue de Bash ferveu.
— Ele era um homem bom e decente — retrucou. — Você nã o sabe
nada dessas peculiaridades, nã o é , ladra de almas?
Suas narinas se dilataram ligeiramente, o ú nico sinal de que as
palavras atingiram o alvo.
— Você conhece tã o pouco de sua pró pria espé cie e, no entanto,
julga tã o rapidamente.
— Eu nã o sou uma nymera.
— A negaçã o nã o combina com você , meu ilho. — Ela se endireitou,
e as nuvens que rodeavam suas pernas subiram até os quadris. Bash
recuou quando a neblina que contornava o corpo da nymera esvoaçou
para lamber sua pele exposta. — Nada pode mudar o fato de que falo a
verdade. Quer você acredite ou nã o. Mas imagino que deu uma boa
olhada no seu rosto. Seu cabelo. Suas unhas. — Ela apontou o olhar
para os dedos escurecidos de Bash. — Você me chama de ladra de
almas como se pudesse me ofender, mas eu faço o que tenho que fazer
para sobreviver. Assim como você deve fazer.
— Eu nunca me alimentaria de outra pessoa. — Ele estremeceu de
desgosto. — Pre iro morrer.
O sorriso dela icou tenso.
— Você vai morrer se nã o se alimentar. E precisa se alimentar.
Os punhos de Bash tremeram quando a raiva mal disfarçada
estremeceu seu corpo. Ele sentiu tanta raiva e fogo, tanta fú ria tangı́vel,
que doı́a respirar. Nã o queria acreditar nela, mas també m nã o podia
negar o ó bvio, a menos que…
— E nã o. Eu nã o transformei você em uma nymera, se é isso que
estava prestes a perguntar — disse ela. E sim, era isso que ele estava
prestes a perguntar. — Nã o se pode transformar algué m em nymera. Se
nasce nymera.
Excelente. Ele esperava que os livros tivessem entendido errado, e
que, de alguma forma, aquela criatura tivesse distorcido sua aparê ncia
usando magia das trevas. Ela cheirava à magia.
— Minthe — falou ela, oferecendo uma mã o. Ele olhou com
ceticismo. — Meu nome é Minthe.
— Já disse, nã o quero saber — Bash rosnou, desviando da nymera e
seguindo em frente, para longe dela. Ele tinha que encontrar Margrete e
sair daquela ilha. Essa era sua missã o. Se aquela mulher, quer dizer,
criatura, realmente fosse sua mã e, ele lidaria com isso mais tarde.
— Eu posso ajudar — cantarolou Minthe atrá s dele. Bash nã o se
virou. — Você está indo pelo caminho errado, sabe? — Ele parou de se
mover.
Bash considerou se devia encará -la novamente, mas nã o conseguiu.
A familiaridade que ele sentia sempre que observava seus olhos
profundos lhe dava calafrios.
— Pegue o caminho da esquerda — Minthe instruiu. — Quando
encontrar um riacho, siga-o até o anoitecer. Encontrará sua amada
assim que a lua nascer. — Por um lado, ela poderia muito bem estar
mentindo e mandando-o na direçã o errada. Por outro, ele sabia que nã o
teria pousado sozinho naquela borda onde passou a noite. Era para ele
ter caı́do do penhasco e morrido. O que signi icava que ela devia estar
dizendo a verdade sobre o uso de magia das trevas para ajudá -lo. Ele se
negava a perguntar como, mas percebeu que ela poderia facilmente tê -
lo machucado antes. Inclusive naquele exato momento, em que ele
estava de costas, ela poderia atacá -lo e matá -lo. Nymeras eram
supostamente tã o rá pidas quanto o relâ mpago que parecia segui-las
para onde quer que a horda se deslocasse.
Suas opçõ es eram ir pela direita e torcer para dar certo ou ouvir a
devoradora de almas que dizia ser sua mã e.
Bash odiava ambas as opçõ es.
Ele nã o disse uma palavra, mas tomou o caminho da esquerda, sem
dar satisfaçã o a ela. Ele podia sentir o sorriso de Minthe queimando na
parte de trá s de seu crâ nio.
Ele estremeceu quando a voz da nymera lutuou para dentro de seus
ouvidos:
Até a próxima, ilho.
— Que merda… pois eu espero que nã o tenha uma pró xima.
— ocê tem tido sonhos estranhos? — Margrete perguntou a Bay durante a viagem
para o norte. Já tinham andado a manhã toda e nã o encontraram nada alé m de á rvores.
— Eu… — Bay tropeçou em um galho caı́do. Rapidamente se
endireitou, embora sua mandı́bula estivesse apertada. Aquela foi
resposta su iciente.
— Entendo — disse ela. — Eu també m.
— Estou ansioso para sair daqui — sussurrou Bay, diminuindo o
ritmo. — Acho que ainda nã o enfrentamos o segundo teste, embora
meu sonho de ontem tenha sido menos que o ideal.
— Eu sonhei que estavam me enterrando vivo em um caixã o de
cobras. — Jacks se aproximou para se juntar à conversa, com a gê mea
ao lado. Margrete nã o achava que estava falando muito alto, mas tinha
se esquecido da audiçã o Azantiana.
— Esse sonho ganha do meu — murmurou Bay, estremecendo.
Dani, irmã de Jacks, apenas baixou a cabeça em silê ncio. Margrete se
perguntou que terrores ela suportara enquanto dormia. Ela era a mais
quieta dos gê meos. Aquela beleza de cabelos pretos com pele negra e
olhos cor de sa ira raramente falava. Seu irmã o parecia falar pelos dois.
De canto de olho, Margrete viu o rosto de Atlas se franzir com
preocupaçã o. A loira baixou o olhar de volta para o chã o, como se nã o
estivesse secretamente ouvindo a conversa deles.
— Você está bem, Dani? — Margrete perguntou em voz alta,
principalmente por causa de Atlas. Dani mal levantou a cabeça antes de
fazer um aceno sutil.
— Ela nã o está bem — Jacks respondeu por ela, passando a mã o em
seus cachos. — E eu concordo. O pior está por vir.
Atlas tropeçou em um galho, chamando a atençã o de Dani. Ela
rapidamente desviou o olhar e voltou para o lado do irmã o.
A declaraçã o de Jacks certamente havia abalado o clima, e o silê ncio
prevaleceu pela hora seguinte.
A cada passo, a sensaçã o de mau pressá gio de Margrete aumentava a
um grau insuportá vel. O poder dentro dela se recusava a aparecer, o
que era totalmente enlouquecedor. Ele tinha se escondido
profundamente abaixo da superfı́cie onde ela nã o podia alcançá -lo, e
quando fechou os olhos e procurou, nã o encontrou nada.
Tanto esforço para progredir… Ela até pensou que o tinha dominado
no dia anterior ― bem, nã o dominado, mas entendido melhor. Talvez ele
fosse como o mar, de onde vinha sua magia, e nã o pudesse ser domado
ou invocado à sua vontade.
— Alto lá , pessoal! — Bay levantou a mã o, parando a tripulaçã o. Seus
ouvidos se animaram enquanto ele ouvia a loresta silenciosa. Com
cuidado, caminhou à frente, afastando os galhos e marchando atravé s
da densa vegetaçã o rasteira. Todos aguardavam seu comando.
Bay espiou por entre as folhas e, instantaneamente, sibilou.
Aquilo nã o poderia ser bom.
— Todo mundo em alerta — disse ele, acenando para que
prosseguissem. Ele segurou os galhos até Margrete passar, seus olhos
mais a iados do que qualquer lâ mina.
Ela parou na linha das á rvores. Diante deles havia um abismo
separado por dois penhascos com uma ponte de madeira amarrada de
cada lado. Já parecia instá vel o su iciente só para olhar, quanto mais
para atravessar. Margrete foi até a beirada e espiou. Entã o xingou.
A queda provavelmente tinha mais de sessenta metros.
Aninhado ao fundo, corria um riacho estreito. Ela se perguntou se
algué m poderia sobreviver a tal queda. Rezou para nã o descobrir.
Margrete voltou a atençã o para a ponte frá gil e tocou nas cordas
desgastadas que a mantinham no lugar. Finas tá buas de madeira
levavam ao outro lado, embora houvesse algumas lacunas onde as
tá buas estavam apenas penduradas em pedaços de corda.
— Isso não parece promissor — disse Jonah. — Estou o icialmente
me oferecendo para ir por ú ltimo. — Ele se afastou com segurança da
borda, esbarrando em Dani. Ela o olhou com curiosidade antes de
desviar os olhos.
— Tem que haver outra maneira de atravessar — Bay ponderou,
examinando a ponte. Levou a mã o à testa, analisando a loresta ao
redor. Os malditos penhascos pareciam in initos. — Voto para
procurarmos outro caminho, porque garanto que nã o vai resistir a
todos nó s. Inferno, pode até nã o resistir a um…
O crepitar de chamas interrompeu suas palavras. Toda a tripulaçã o,
ao mesmo tempo, se virou para olhar para trá s.
Fogo e fumaça. Chegando perto deles por todos os lados, e se
aproximando. Estavam cercados por homens. Homens feitos de fogo.
— Bem, foda-se. — Jonah cambaleou para trá s, a testa já ú mida de
suor.
— Penso o mesmo que você . — Jacks foi para o lado dele, alcançando
o punhal que seria inú til em uma luta contra chamas. O rapaz mal-
humorado parecia fazer o tipo que tenta, mesmo em tais circunstâ ncias.
As iguras dignas de pesadelo avançaram.
Eles eram reais? Ou aquilo era mais um truque?
A primeira e a segunda moeda tilintaram no bolso de Margrete
quando ela se mexeu. Não con ie em nada, dissera, e diante deles
apareceu o impossı́vel. Algo em que ela certamente não deveria con iar.
— Tem que ser um truque da mente — opinou ela com con iança. —
A segunda moeda alertou sobre isso.
— Estou sentindo o calor daqui — Mila retrucou, aparecendo ao lado
de Margrete. Seu cabelo vermelho brilhante combinava com as
criaturas lamejantes que os encurralavam. Era difı́cil dizer, mas eles
pareciam estar pairando acima do chã o, suas longas pernas a
centı́metros do solo preto.
— Eles parecem bem reais para mim — Jonah murmurou, dando um
passo brusco para trá s. — E, só para constar, nã o tenho intençã o de
descobrir.
Se Margrete tivesse que arriscar um palpite, diria que as criaturas os
estavam conduzindo para o abismo, onde certamente cairiam na fenda
rochosa abaixo.
Um dos demô nios brilhou em branco antes de conduzir o exé rcito
sem rosto para mais perto. Eles deviam estar a apenas trê s metros de
distâ ncia. Reais ou nã o, era perto demais para o gosto dela.
Mila olhou para trá s.
— Voto por nã o brincarmos literalmente com fogo e tentarmos
cruzar a ponte.
— Concordo — opinou Jacks, com os olhos arregalados e
compreensivelmente alarmados. — Nã o tem como esfaquear fogo.
Atlas falou:
— Mas a ponte nã o vai aguentar. As duas opçõ es levam à morte.
Não era o momento para a honestidade brutal de Atlas.
Bay ponderou entre as criaturas de fogo e a ponte instá vel
balançando ao vento. Ele era o lı́der, e Margrete seguiria qualquer
decisã o que ele tomasse. Con iava nele com sua vida.
Ele ergueu a mã o, silenciando todos. Com a con iança que ela sabia
que ele nã o estava sentindo, Bay se esgueirou até o demô nio mais
pró ximo. Em um movimento rá pido demais para ela compreender, o
á gil guerreiro esfaqueou com sua lâ mina Azantiana a maior das
criaturas. Quando ele se afastou, Margrete viu o metal queimando
vermelho antes de voltar a icar prateado.
Eles eram reais. Deuses, eles eram reais.
Bay xingou alto o su iciente para sacudir as á rvores. O demô nio de
fogo deu um passo à frente, perseguindo Bay até a ponte. Ela notou que
ele nã o havia colocado a arma de volta na bainha, e se perguntou se
ainda estava quente.
— Vamos atravessar — decidiu ele com rapidez, seus olhos azuis
a iados e cheios de determinaçã o implacá vel. Mesmo diante da morte,
ele se recusava a se curvar.
Margrete nã o podia discutir com a prova que tinha visto, e correu na
direçã o de Bay, com Mila e Grant logo atrá s.
Demô nios de fogo. Justo o que precisavam. Se ao menos ela tivesse o
poder do mar dentro dela. Oh, espere. Ela tinha.
Só que ele preferia se esconder e vê -la sofrer.
Margrete agarrou a corda de cada lado, colocando um pé hesitante
na primeira tá bua. Bay já havia caminhado até a ponte e batido na
madeira com as botas antes de apoiar todo o seu peso nela.
Margrete olhou de soslaio por cima do ombro.
As criaturas tinham acelerado o passo.
— Depressa! — gritou ela, forçando Bay a abandonar a cautela. Ele
deu uma espiada antes de acelerar o passo, se movendo pela loresta
com pouco cuidado. Mila esbarrou nas costas dela, dando um rá pido
murmú rio de desculpas. Jacks assumiu a retaguarda, fazendo o possı́vel
para parecer corajoso e controlado. Ele nã o foi totalmente bem-
sucedido. Sua irmã fechou os olhos e atravessou, o rosto como uma
má scara fria. Jacks murmurou algo em seu ouvido, e ela assentiu, de
mandı́bula apertada.
Eles tinham acabado de chegar ao meio, mas Margrete sabia que, se
seus agressores sobrenaturais apenas tocassem na ponte, a corda se
esgarçaria e todos cairiam. Eles tinham talvez segundos para chegar ao
outro lado… e simplesmente nã o seria tempo su iciente.
Ela ouviu a faı́sca pegar antes de olhar por cima do ombro.
Houve um silvo e um estalo, e uma das cordas presas ao penhasco se
partiu. A ponte inteira estremeceu e se virou perigosamente para a
direita.
— Corram! — Bay gritou, se apressando para o outro lado.
Nã o houve hesitaçã o, nã o houve tempo para veri icar cada tá bua de
madeira podre. Eles simplesmente correram freneticamente, e outro
cabo estalou e se partiu. Entã o tudo que mantinha a ponte no lugar era
uma corda esticada.
Margrete lançou um olhar no momento em que a criatura de fogo
alcançou a corda…
Tudo aconteceu tã o rá pido.
Ela cambaleou até Bay, fazendo-o voar pelo ar e cair de joelhos. A
mã o dele prendeu em uma das tá buas, o braço pendurado no ar
enquanto ele lutava para se libertar. A tripulaçã o, em pâ nico, empurrou
uns aos outros, fazendo com que Margrete voasse em direçã o à s cordas.
Ela gritou quando a metade superior de seu corpo balançou sobre o
trilho desgastado. Uma mã o irme agarrou seu braço e a puxou para
cima.
Mila.
Assim que Margrete se orientou, fez um aceno para a ruiva,
agradecida. Mila nã o retribuiu o gesto, mas disparou até Grant, cujos
olhos se arregalavam de medo diante do rio abaixo de seus pé s.
Margrete viu Bay se libertar da madeira podre e icar de pé ,
cambaleando.
— Eles estã o pisando na ponte! — Jacks gritou, empurrando a irmã ,
incitando-a a correr. Dani soltou um grito, uma ú nica lá grima
deslizando por sua bochecha.
Bay estremeceu até parar abruptamente, forçando todos a parar no
meio do caminho.
Mais demô nios de fogo. Do outro lado.
— Bay! — Atlas rugiu. Ela agarrou a camisa de Dani, e seu aperto
feroz era a ú nica coisa que impedia a jovem de tombar para o lado. — E
agora?
E agora? Eles estavam completamente ferrados.
Inimigos se aproximavam de ambas as extremidades, e nã o havia
como afastar criaturas que nã o podiam ser mortas. Margrete agarrou os
lados da ponte e espiou. O rio seria sua ú nica esperança, o que nã o
inspirava con iança.
Bay e Margrete se encararam. Uma conversa inteira se passou entre
eles.
Estamos em desvantagem. Estamos ferrados. Saltar é a única saída.
Como viemos parar aqui de novo?
Margrete tentou se concentrar em seu poder, na essê ncia de Malum.
Lutou para chegar ao rio e ver se conseguia levantá -lo, fazer com que,
quando caı́ssem, tivessem algum tipo de amortecimento.
Mas falhou miseravelmente.
A faı́sca tentou acender, mas algo a sufocou. Se sentiu
irremediavelmente mortal e, pela primeira vez, lamentou a perda do
que nunca realmente quisera. Sentia falta de seu poder.
Outra corda se partiu quando as criaturas do outro lado chegaram à
ponte. Margrete olhou para Bay.
— Nã o con ie em nada — disse ela. — Sabemos que sã o reais, mas
aquilo… — ela inclinou a cabeça para o estreito rio abaixo… — pode
nã o ser o que parece.
Con iança. Ela tinha que ter con iança, fé e todas essas outras
bobagens.
— Vamos saltar — Bay gritou, surpreendendo a tripulaçã o. Antes
que pudesse se jogar para o lado com base em suas suspeitas
infundadas, Margrete subiu na corda e se jogou primeiro…
Por um momento, ela disparou. Voou, os olhos bem apertados, os
braços estendidos como asas.
Margrete atingiu a á gua mais rá pido do que esperava, mais rá pido do
que era possı́vel, dada a distâ ncia que vira da ponte até o rio.
Abriu os olhos. A á gua entrava em sua boca, seu nariz. Ela cuspiu. Era
mais fundo do que achavam també m. Ela nã o podia ver o fundo, mas
lutou para se manter à tona, se deixando levar pelo luxo suave da á gua.
Gritos soaram no alto…
Seguidos de respingos.
Um por um, liderados por sua fé imprudente, saltou da ponte. Ela se
virou quando Bay aterrissou, para ver seu amigo subindo à superfı́cie e
sacudindo a á gua da cabeça.
Ela viu Mila, Jacks e Dani, Jonah, Atlas.
Faltava apenas Grant.
O rio os levou para longe da ponte, mas ela distinguiu uma igura
solitá ria parada bem no centro dela. Ele nã o tinha pulado, e ela o ouviu
gritar, perguntando para onde todos tinham ido.
Foi quando percebeu que ele nã o podia vê-los.
Tinha sido uma ilusã o, o rio, quã o distante parecia, quã o sem
esperança. Ela pulou com base em um palpite, e a equipe a seguiu quase
imediatamente.
Todos, exceto o pai de Mila.
— Ele tem medo de altura! — Mila engasgou com a á gua enquanto se
lançava para a margem. — Merda! Eu devia ter segurado a mã o dele e
saltado com ele. — O arrependimento fez sua voz falhar.
Margrete podia sentir a essê ncia vital da á gua, que a empurrou para
o solo encharcado das margens. Parecia que seus poderes haviam
retornado, ou talvez apenas tivessem sido suprimidos quando estava na
ponte. Aquilo tinha sido um teste. Outro maldito teste.
Essa era a ú nica explicaçã o.
— Pule! — Mila gritou inutilmente, icando de pé na margem. —
Grant, pule agora!
O homem mais velho se virou como se procurasse a voz dela, mas
segurou a corda com mais força. Ele nã o pularia. Nem mesmo com as
chamas se aproximando dele.
Lentamente, os monstros o cercaram. Ele gritou, as chamas de um
branco brilhante e abrasador. Eles queimaram seu corpo tã o rá pido que
Grant mal conseguiu chamar o nome de Mila pela ú ltima vez.
Mila gritou, um grito de angú stia de gelar os ossos.
Margrete correu até ela e passou os braços ao redor de sua cintura,
impedindo-a de se jogar de volta no rio. Elas assistiram a ponte se
transformar em cinzas e as chamas ferverem até nã o restar nada. Se
nã o fosse pelo fedor de morte no ar, Margrete quase teria acreditado
que nunca tinha havido uma ponte ali.
Como se eles a tivessem imaginado.
dia já entrara pela tarde, e o desconforto de Bash
cresceu. Tudo o que ele sentia era que Margrete estava em
apuros. Algo se agitou em seu estô mago, e suas mã os se
recusaram a parar de tremer. Ele as sacudia, mas os tremores
nã o cessavam.
Ele examinou as á rvores pela milé sima vez, procurando os
deuses sabem o quê . Cada mú sculo icou retesado,
desconfortavelmente tenso. Ele esperava que Minthe
aparecesse a qualquer segundo, ou Darius, o que era pior. O
Deus do Mar nã o o tinha visitado novamente, e Bash nã o estava
reclamando. Ainda assim, sua ausê ncia signi icava que o
imortal provavelmente estava agindo em outro lugar.
Possivelmente perseguindo Margrete.
Bash acelerou o passo. Minthe a irmara que alcançaria
Margrete e a tripulaçã o ao anoitecer. Esse pensamento o
mantinha em movimento, mesmo que seus membros
protestassem e seus mú sculos queimassem. Quanto mais
andava, mais fraco icava.
Aquela pequena explosã o de energia com a qual tinha sido
presenteado nã o tinha durado muito. Felizmente, sua raiva
ardia forte o su iciente para alimentá -lo.
Depois que deixou Minthe, sua raiva cresceu. A frustraçã o
loresceu e criou raı́zes, e ele amaldiçoou o fato de ter sido
separado de sua tripulaçã o e de Margrete. Amaldiçoou como
tinha sido transformado e retorcido para se parecer com um
monstro. E, junto com toda aquela frustraçã o, uma autoaversã o
vivia e respirava. No fundo, sabia que o homem que tinha sido
nã o existia mais. Possivelmente para sempre.
As coisas nunca mais voltariam a ser como eram antes de
tudo aquilo, mesmo que ele, de alguma forma, saı́sse daquela
ilha inteiro.
E sua fome…
Bash tinha encontrado ovos de pá ssaros algumas horas
antes, mas teve que se forçar a comer. Nã o tinham o gosto certo,
e pesaram em seu estô mago como chumbo. Pior que nem
tinham ajudado a matar sua fome.
Talvez tenha sido por isso que jogou a cautela ao vento e
mordiscou algumas frutas vermelhas brilhantes que encontrou.
Margrete o teria castigado por ser tã o descuidado, caso fossem
venenosas, mas ele só queria que aquela fome excruciante
diminuı́sse.
Entã o Bash continuou, mesmo enquanto o fogo em sua
barriga queimava, exigindo mais do que ele nã o conseguia
encontrar. Nem comida, nem á gua. Alguma coisa inominá vel
que o fazia cerrar os dentes de irritaçã o. Sua pele estava muito
quente, e suor cobria sua testa.
Quando encontrou o riacho que Minthe lhe contara, seguiu
por suas margens sem pensar. Ficou tentado a lavar a sujeira e
mergulhar um pouco, mas nã o podia perder tempo, mesmo que
a á gua gelada parecesse atraente.
Bash parou quando ouviu o som distante de farfalhar e
batimentos cardı́acos acelerados.
Girando rapidamente, icou cara a cara com uma corça de
olhos arregalados. Ela congelou, seus suaves olhos castanhos
encontrando a escuridã o dos olhos dele, seu nariz tremulando
como se cheirasse sua fome. Ele retinha os impulsos de um
predador, mesmo sem armas, e o olhar assustado da corça
parecia reconhecer o perigo.
Bash nã o percebeu que estava se movendo até que se lançou.
Voou pelo ar, mais rá pido do que deveria ter sido possı́vel
devido ao seu estado, e se agarrou nas costas da corça. Ela
soltou um som estrangulado, de medo e dor, mas ele ignorou,
ansioso para aplacar o sentimento de vazio dentro de si.
Seu coraçã o trovejou quando a criatura se debateu e lutou
sob seu domı́nio, e Bash notou, com uma percepçã o doentia,
que ele estava sorrindo, apreciando o medo que o animal
irradiava. Podia sentir no ar ― doce, maduro e amargo. O medo
tinha um sabor incrı́vel, concluiu, e aumentou o controle sobre
seu prê mio.
Bash nã o conseguiu se conter quando passou o braço em
volta da garganta da corça e quebrou seu pescoço como se nã o
fosse nada mais que um galho ino.
A criatura icou imó vel em seus braços.
Bash endureceu. A adrenalina que sentira segundos antes
desapareceu, e a fome apenas aumentou. Disse a si mesmo que
só precisava comer e entã o se sentiria melhor, mas suspeitava
que nã o era verdade. O abismo se alargou quando ele, diante da
fogueira acessa, percebeu que nã o possuı́a nenhuma adaga,
nenhuma faca para esfolar sua presa. A criatura disfarçada de
Margrete a havia roubado.
Entã o Bash fez o impensá vel.
Ele usou os dentes.
Poderiam ter se passado horas ou dias, e ele nã o saberia
dizer. Tudo em que se concentrou foi no cheiro do sangue da
corça, como molhava sua lı́ngua e tinha o gosto de uma morte
deliciosa. Bash se perdeu naquele sangue, cedeu à fome que o
guiava. Mas o sangue nã o era su iciente. Ele precisava de mais.
Bash arrancou um pedaço da coxa da corça e devorou os
mú sculos e tendõ es inteiros. Engoliu, a refeiçã o deslizando por
sua garganta com facilidade.
Mais.
Bash deu outra mordida. E outra. E mais uma.
Não foi su iciente.
Ele queria que aquilo parasse; aquela necessidade insaciá vel
de preencher seu corpo. Bash icou desesperado, mas
continuava a devorar a corsa, deixando o sangue escorrer pelo
seu queixo. Quando terminou, o animal estava irreconhecı́vel.
Nã o era nada alé m de couro rasgado e ossos estilhaçados.
A escuridã o girava em torno de sua visã o enquanto ele
lambia o ú ltimo osso, uma né voa que dançava ao redor de seus
olhos, bloqueando a fraca luz do sol. Ele permitiu que entrasse.
Ele nã o era Bash. Nã o era nada, e o nada era bom.
Recostou-se em um tronco de á rvore e fechou os olhos.
Estava de barriga cheia, mas a fome permanecia.

Bash acordou horas depois.


Ele se levantou, passou as mã os pela roupa e começou a
andar.
O que pareciam ter sido muitos quilô metros depois, ele
percebeu que a umidade e a viscosidade que sentia se prender
a suas roupas eram, na verdade, sangue. Ergueu os braços. Um
vermelho duro coloria suas mã os, estendendo-se até beijar a
tinta preta na ponta dos dedos.
Bash deixou os braços caı́rem, sua mente uma confusã o de
memó rias distorcidas. De Margrete. Azantian. A ilha. Minthe.
Afundando os dentes no pescoço da corça…
Escuridã o. Perder tempo. Perder a si mesmo.
Bash seguiu em frente. Se nã o parasse, nã o pensaria demais.
Se continuasse correndo, poderia superar seus demô nios.
Quando se deparou com um pequeno lago, entrou e
mergulhou fundo nas profundezas obscuras. Na á gua turva, ele
esfregou a pele e as roupas, sem respirar até que seu corpo
estivesse livre do vermelho.
Bash rompeu a superfı́cie com um suspiro e examinou as
á rvores, piscando para tirar as gotas de seus olhos. Ele nã o
conseguia se lembrar de nada alé m de caminhar e mergulhar
naquele lago, e mesmo essas memó rias tinham uma camada de
confusã o que as encobria.
Suas mã os se contorceram ao lado do corpo, e Bash olhou
para baixo, franzindo a testa quando viu uma ú nica mancha de
sangue. Ele a limpou com o polegar.
Já caminhando, nã o conseguia tirar aquela ú nica gota de
sangue de sua mente. Mesmo depois de quilô metros de
caminhada, Bash nã o conseguia afastar uma sensaçã o
constante de erro. Fechou os olhos e, quase imediatamente,
uma cena horrı́vel aconteceu por trá s de suas pá lpebras. Uma
criatura envolta em mechas escuras e relâ mpagos prateados
oscilava dentro e fora de foco. Usava seu rosto, seu sorriso, seus
olhos…
E entã o o monstro que ele viu se inclinou, deixando
transparecer um sorriso malicioso ao observar um corpo inerte
pendurado sem vida em seus braços. Uma mulher, com cabelos
castanhos profundos que desciam pelas costas e lá bios macios
e cheios que tinham um leve tom azulado.
Margrete.
Bash esfregou as tê mporas com fú ria, desejando que a visã o
horrı́vel fosse embora. Tropeçou enquanto serpenteava sem
rumo na loresta. A imagem de sua amada tã o congelada, tã o
imó vel, fez seu coraçã o partido bater no peito. O tempo era
irrelevante. Deixou de ser real, e Bash nã o conseguia segurar
qualquer pensamento por muito tempo, como ios des iados
escorregando por entre os dedos.
A ú ltima coisa que viu antes de cair no chã o e fechar os olhos
foi o maxilar do monstro se abrindo, seu maxilar se abrindo, e
depois ele se inclinando para sugar a alma de Margrete.
crepú sculo pairava sobre o mundo turvo como um manto manchado.
A segunda moeda tiniu contra a primeira no bolso de Margrete.
Pouco depois da ponte, o nú mero ٢ desapareceu da face da moeda,
signi icando que completaram o teste. Ficou tentada a jogar a maldita
coisa no rio de onde emergiram.
O silê ncio permanecia desde que Grant explodira em chamas. Mais
de uma vez, Margrete tentou se aproximar de Mila, estendendo a mã o,
mas a jovem a ignorou todas as vezes e apressou o passo, sem vontade
de ser consolada.
Uma parte de Margrete entendia isso ― a necessidade de rejeitar a
todos e mergulhar fundo dentro de si, onde ningué m poderia chegar.
Ela tinha feito a mesma coisa por anos.
— Este lugar parece bom para acampar — Atlas anunciou, espiando
ao redor da pequena clareira que encontraram. Ela enxugou o suor da
testa e colocou mechas loiras atrá s das orelhas. Margrete nã o tinha
certeza de como conseguia, mas ainda aparentava uma combinaçã o
impossı́vel de deslumbrante e perigosa.
Bay assentiu, mal olhando para cima.
— Vamos fazer uma fogueira — instruiu ele, marchando para dentro
da loresta. Seus passos rá pidos sugeriam que nã o queria companhia.
Margrete só podia imaginar que ele carregava nos ombros a culpa pela
morte de Grant. Como lı́der, Bay era o responsá vel pela vida da
tripulaçã o, e perdera outra alma para aquela ilha amaldiçoada.
Margrete viu o amigo se afastar com o coraçã o pesado. Falaria com
ele mais tarde. Entã o voltou suas atençõ es para outra pessoa.
Mila estava encostada na base de uma á rvore, olhando para longe,
com os olhos cheios de lá grimas. Nã o se importando se seria rejeitada
novamente, Margrete foi até ela e sentou-se. A mulher nã o reagiu à sua
presença.
As pessoas, muitas vezes, sentem que precisam dizer algo para
proporcionar conforto, mas aquele di icilmente era o caso. As vezes, a
presença fı́sica de uma pessoa podia ter mais signi icado do que as
palavras.
Margrete nã o estendeu a mã o para Mila, como izera antes, mas
recostou-se no tronco que compartilhavam e seguiu sua linha de visã o.
Bay voltou com lenha e, enquanto a tripulaçã o acendia o fogo, ela se
moveu lentamente até roçar o braço de Mila. Surpreendentemente, a
ruiva nã o se afastou. Ela se aproximou.
Mila a salvara na ponte quando ela estava prestes a cair. Claro, ela
teria sobrevivido à queda, mas nã o sabia disso na ocasiã o.
Talvez houvesse esperança de uma amizade.
Ficaram sentadas assim, em completo e confortá vel silê ncio, até que
chamas alaranjadas e vermelhas brilhantes loresceram. Mila se
encolheu quando o fogo faiscou e estalou, e ela engoliu em seco.
Margrete notou as lá grimas em seus olhos. Ela estava pensando em
Grant, em seus momentos inais excruciantes.
Se nã o precisassem do calor, Margrete teria apagado o fogo ela
mesma.
Do outro lado do acampamento, Bay se levantou e pegou na bolsa as
frutas que haviam encontrado mais cedo, indo até cada membro da
tripulaçã o e dando um punhado. Como Margrete nã o conhecia a maior
parte da lora da ilha, nã o soube dizer se eram venenosas. Foi Jonah
quem as vira primeiro durante a caminhada, e ele nã o perdeu tempo
en iando uma na boca. Como nã o morreu imediatamente, todos se
juntaram a ele.
Jonah nã o tocou em nenhuma outra fruta desde entã o. Rapaz
esperto.
O silê ncio pesado persistiu enquanto todos mastigavam, embora
alguns, em seu pequeno grupo, simplesmente segurassem as frutas na
palma da mã o, a perda do dia pesando. Margrete pegou Atlas olhando
para Dani, cheia de preocupaçã o manchando suas feiçõ es.
Dani, como sempre, nã o notou nada. Mesmo quando seu irmã o
colocou um braço em volta de seus ombros, ela mal se moveu. Margrete
se perguntou como uma alma gentil como Dani se envolveu com a
tripulaçã o de Bay.
— Nã o precisa icar aqui comigo.
Margrete olhou para Mila, que a encarou de volta, os olhos em
chamas.
— Nã o faço nada que nã o queira — respondeu ela, sabendo
exatamente o que Mila estava fazendo. Seria preciso mais do que
olhares e palavras cortantes para afastá -la.
Mila zombou e balançou a cabeça como se Margrete fosse uma praga.
Mas nã o disse para ela ir para o inferno, o que parecia uma melhora. Ela
continuaria ao lado de Mila pelo tempo que fosse necessá rio. Ningué m
devia passar por uma perda sozinho, e ela insistiria mesmo que a
pessoa nã o gostasse muito dela. Margrete pretendia mudar isso. Bash a
teria chamado de teimosa. Um canto de sua boca se curvou com o
pensamento.
Quando a lua surgiu alta no cé u e as nuvens varreram as estrelas,
todos se deitaram para passar a noite. Margrete deitou-se, com os
braços apoiados sob a cabeça, ao lado de Mila. As horas foram
passando, o silê ncio quebrado por um ronco aqui e ali, mas ela nã o
conseguia descansar. Só conseguia pensar em Bash.
Ainda o sentia, tã o forte quanto antes, mas algo tinha mudado. Nã o
conseguia explicar o que era, mas, quando fechava os olhos e imaginava
seu rei, um frio gelado pinicava sua espinha como pequenas adagas.
Eles tinham que encontrá -lo. E rá pido. O que quer que tenha mudado
deixou seu estô mago embrulhado em nó s. Ela estaria um desastre se
nã o soubesse que ele estava vivo, mas, no fundo, Margrete se
preocupava…
Ela tinha visto a escuridã o dele em primeira mã o. Lá em Azantian.
Bash estava perdido ― nã o apenas no sentido literal ―, e Margrete
nã o pararia até descobrir o motivo e afugentasse seus demô nios. Ele
faria o mesmo por ela. Iria ao submundo e voltaria, se ela pedisse.
Margrete sorriu ao se lembrar da ú ltima manhã tranquila juntos em
Azantian. Como desejava poder se envolver naquela memó ria e segurar
irme.
Mila inalmente sucumbira à exaustã o. Suas bochechas estavam
vermelhas e manchadas. A jovem ainda nã o havia derramado uma
lá grima sequer, mesmo que seu corpo lutasse por isso. Ela quebraria a
qualquer momento. A tristeza nunca pode ser contida.
Margrete se virou para longe do fogo e da mulher com lá grimas no
coraçã o. As folhas das á rvores se avermelharam, e a cor a lembrou de
sangue seco. Outro pressá gio.
Um tremor violento transpassou seu corpo quando um vento gelado
soprou.
Ela icou de pé rapidamente. Ningué m se mexeu, todos dormiam
profundamente, exceto Atlas, que havia sido instruı́da a fazer a primeira
vigı́lia. Sua cabeça nã o parava de balançar enquanto lutava contra o
sono, os olhos meio fechados concentrados na gê mea de Jacks.
O sangue de Margrete esfriou e ela cerrou os dentes. Algo estava
pró ximo. Se era um animal, uma fera ou algum grupo de resgate
milagroso, nã o sabia dizer. Ela se levantou e deslizou entre as á rvores.
Atlas nã o notou, porque ningué m a chamou.
Aqueles bosques eram assustadores durante o dia. A noite, eram
aterrorizantes.
Cada galho era um braço estendido para agarrá -la, e sempre que um
galho se partia, Margrete temia que fosse o ú ltimo som que ouviria.
Ainda assim, seguiu em frente, atraı́da por aquela consciê ncia
inominá vel fervendo em seu peito.
Dez minutos se passaram antes que outra onda de gelo escorresse
por sua espinha.
Estava perto.
Margrete apressou os passos e se entregou à sua intuiçã o. Poderia
nã o ser a coisa mais con iá vel, mas aceitaria de bom grado qualquer
sinal ou pista equivocada naquele momento.
A cada passo, foi sentindo mais frio, o corpo foi icando mais rı́gido,
como se ela tivesse corrido por quilô metros pela neve densa. Sua
respiraçã o saı́a em um sopro, e ela levou os dedos aos lá bios para
aquecê -los.
O que poderia estar ali fora?
Um galho quebrou, e ela parou bruscamente. Em algum lugar, as
folhas sussurravam umas contra as outras, e algo na escuridã o… se
moveu.
Margrete alcançou seu poder, sentindo-o estremecer de volta à vida.
Veio com facilidade, seu calor interior mais forte do que antes. Ele havia
despertado meses antes, e agora parecia que estava inalmente pronto
para sair ao sol.
Ouviu mais farfalhar, e entã o…
Margrete saiu correndo assim que o viu. Ela correu sem pensar ou
hesitar, e nã o parou até que colidiu contra o torso musculoso do homem
que amava e colocou os braços em volta do pescoço dele.
— Bash! — Ela o apertou mais forte, querendo acreditar que aquilo
era real, que ela realmente abraçava seu rei, seu pirata, a outra metade
de sua alma. Se fosse outra piada cruel, ela nã o tinha certeza se
conseguiria lidar.
O corpo que ela segurava se encolheu e, em um movimento rá pido
demais para compreender, Margrete foi lançada voando no ar.
Um ruı́do estrangulado deixou seus lá bios quando ela caiu no chã o,
prostrada no solo ú mido. Olhou para cima, tomando ar, na mesma hora
em que um borrã o de sombra e pele pá lida passou por ela.
Bash.
Em um piscar de olhos, ele deu pelo menos dez passos largos e
pressionou a coluna contra uma á rvore distante. Ele se inclinou, as
mã os nas coxas, e seu peito arfava como se tivesse corrido por
quilô metros.
Margrete o observou ― estudou ―, parado ali sob um raio de luar
prateado atravessando as á rvores. Ela piscou, certa de que o que estava
vendo nã o podia ser real, ou talvez fosse um truque da luz. Havia
escamas pontiagudas no pescoço de Bash, e as pontas dos dedos
estavam manchadas de preto.
Margrete observou enquanto ele passava a mã o pelo cabelo, que já
nã o brilhava com um tom ruivo profundo. Nenhum io de cobre brilhava
ao luar.
O cabelo agora combinava com os brilhantes olhos ô nix, os ios
escuros sedosos e completamente estranhos.
Ela nã o pô de conter um suspiro.
Margrete o sentiu antes de vê -lo, aquele formigamento familiar de
reconhecimento dançando em sua espinha. Sobrecarregada de alegria,
nã o tinha percebido as outras caracterı́sticas de Bash.
O que tinha acontecido?
Ela se levantou do chã o ú mido, estendendo as duas mã os à frente.
Bash icou rı́gido, seus olhos nunca deixando os dela. Ele a observou
como um animal encurralado faria com um caçador.
— Bash? — Ela se aproximou, odiando como ele se encolheu. — Você
está bem? — Parecia uma coisa tã o boba de perguntar, já que ele estava
longe de “estar bem”, mas ela nã o esperava… bom, aquilo. — Bash, por
favor, fale comigo — tentou novamente, dando mais um passo. Ele nã o
se moveu, mas ela sentiu o cheiro do seu medo. Era pungente. O poder
de Malum pulsava em seu peito, claramente inquieto. — Você me
reconhece? — indagou, a preocupaçã o corroendo seu coraçã o. E se ele
nã o se lembrasse dela, ou se nã o fosse o Bash dela ou…
— Nã o se aproxime.
Trê s palavras. Trê s palavras foram su icientes para quebrar sua
armadura. Elas eram frias, crué is e horrivelmente cortantes. E seus
lá bios se torceram com desdé m enquanto as falava.
Aquilo partiu seu coraçã o.
— So… sou eu — sussurrou ela, sem conseguir disfarçar a má goa. —
Margrete.
Por que não me deixa te tocar? Por que me olha com tanto ó dio?
Bash estendeu as duas mã os, tentando afastá -la.
— Eu disse para você parar! — rugiu ele, pressionando-se mais forte
contra o tronco. Suas palmas voltaram para a casca, e seus dedos
escurecidos cavaram na madeira á spera.
Misturada com a animosidade que ela sentia, havia uma dor
inconfundı́vel. Dor. Pesar. Preocupaçã o.
Ele movimentou os olhos. Inclinando a cabeça na direçã o oposta,
evitou os olhos dela como se olhar muito profundamente neles lhe
causasse um tormento inconcebı́vel.
— Nã o quero que me veja assim. — Ele balançou a cabeça e fechou
os olhos brevemente. — Nem acho que você é real, entã o nã o sei por
que estou perdendo meu tempo falando. — Ele soltou uma zombaria
irô nica. — Você provavelmente é outra alucinaçã o ou uma maldita
ninfa.
Uma ninfa?
— Eu sou real, Bash! — grunhiu ela, colocando força su iciente em
cada palavra para que ele acreditasse. — Estou realmente aqui.
E ele també m. Real, isso era. O Bash que ela conhecia ― se ele
aparecesse assim ― reagiria da mesma maneira. Ele tentaria afastá -la e
protegê -la. Mesmo que tivesse que protegê -la de si mesmo.
Ela icou mais con iante, seus passos mais fortes. Margrete ignorou
como ele apertou a mandı́bula e rangeu os dentes. Ignorou a forma
como seu olhar se estreitou cheio de suspeita, a forma como as mã os
tremiam.
Margrete estava a centı́metros de distâ ncia, bloqueando seu
caminho, mantendo-o no lugar. Seus olhos estavam vazios e sem
profundidade enquanto sussurrava seu nome, e, pela vida dela, o som
desolado quase a fez desmoronar.
Ela assentiu, tomando cuidado para nã o fazer movimentos bruscos.
Tudo o que queria era se jogar nos braços dele novamente e beijá -lo até
esquecer tudo. Nã o se importava com a aparê ncia dele. Contanto que
estivesse seguro e ao lado dela, o resto nã o importava.
Em vez de perguntar o que havia acontecido com ele e por que as
escamas de nymera cobriam seu pescoço, ela simplesmente
questionou:
— Posso tocar em você ?
O silê ncio se estendeu, e o coraçã o de Margrete se tornou um tambor
batendo implacavelmente contra as costelas. Ela nã o sabia o que faria
se ele a rejeitasse. Bash inclinou a cabeça, seu olhar a iado quase
selvagem.
— Eu… eu nã o sei o que aconteceu — sussurrou. — Sinto que estou
icando louco. Esta ilha faz algo com a pessoa.
— Está tudo bem — ela se apressou em dizer. — Seja o que for,
vamos descobrir uma maneira de superar juntos. — O voto que izeram
um para o outro. A promessa inquebrá vel.
Bash virou a cabeça, e algo dentro dela estalou. Em um lash, ela
agarrou o queixo dele e o forçou a olhar para ela. Seus olhos se
arregalaram.
— Nã o me afaste, pirata — disse ela, a voz endurecendo. — Você
sabe o quanto isso me irrita.
Os segundos passaram enquanto ele estudava o rosto dela. Enquanto
inspecionava olhos, boca e nariz franzido.
E entã o…
Bash… sorriu.
Era uma coisa frá gil, macia. Como se ele tivesse esquecido como
sorrir. Margrete se derreteu com a visã o. Diante de tantas mudanças,
seu sorriso nã o tinha mudado. A covinha solitá ria que ela adorava
pontilhava sua bochecha, e ela resistiu à tentaçã o de se inclinar e beijá -
la.
— Aı́ está você . — Ela sorriu també m, embora uma lá grima tenha
descido de seu olho. Antes que pudesse limpá -la, Bash estendeu a mã o
e a colocou na ponta do dedo. Ele a levou aos lá bios, beijando sua
tristeza e alı́vio.
A força de vontade de Margrete desapareceu. Nã o que já tivesse tido
muito quando se tratava de Bash. Ela o abraçou e se aninhou em seu
peito, inalando pinho, sal e casa.
— Deuses, eu senti sua falta — disse ela bem junto dele, mais
algumas lá grimas se juntando à s primeiras.
Cautelosamente, ele a abraçou de volta, com o toque gentil e
inseguro. Ela suspirou e forçou os braços dele para que a abraçassem
com mais força.
— Maldiçã o. Me abrace logo.
Uma risada chegou ao ouvido dela, e entã o ele a levantou e girou e
girou. A loresta icou borrada, e ela ergueu a cabeça, vendo apenas
Bash, seus olhos ô nix e o sorriso que roubava seu ar.
Bash a colocou no chã o, tratando-a como porcelana, como se fosse
quebrá -la se a apertasse. Suas mã os foram para seus quadris, seu olhar
intenso indo para sua boca.
— Se você nã o me beijar ag…
Bash a interrompeu com os lá bios.
Margrete agarrou o cabelo preto dele e enrolou os dedos nas mechas
recé m-escurecidas. Ele gemeu em sua boca quando ela o puxou para
mais perto, aproximando-o mais. Ela o queria o mais perto que pudesse
até que o sentimento desesperado dentro dela fosse embora. Talvez
nunca fosse.
Bash chupou seu lá bio inferior entre os dentes, e ela
instantaneamente sentiu os caninos cutucando sua carne. Era uma
sensaçã o nova, mas ela deu boas-vindas à leve picada quando ele se
afastou, e agarrou seu cabelo com mais força. Estimulado por sua
reaçã o, as mã os dele se moveram para cima e para baixo em suas
costas, seus quadris, seu traseiro, os dedos roçando suas costelas, a
parte inferior de seus seios. Ele a tocou em todos os lugares,
aparentemente ansioso para reaprender cada centı́metro dela.
Margrete en iou as mã os por baixo da camisa ina dele, estremecendo
com a sensaçã o gelada de sua pele. Traçou a dureza de seu abdô men
de inido antes de passar os braços ao redor de suas costas.
Ela sentiu a reaçã o dele empurrando seu estô mago e sorriu. Passou a
mã o levemente por seu comprimento grosso antes de agarrá -lo por
cima da calça. Ele sibilou.
— E mesmo você — disse ele, recuando. Ela quase quebrou com a
visã o de seu sorriso. — Só você me provocaria de uma maneira tã o
cruel.
— E eu sei que é você porque adora ser provocado — respondeu ela,
olhando para baixo incisivamente.
O sorriso de Bash se desmanchou ligeiramente.
— O que foi? — perguntou ela, levando as mã os ao peito dele.
Ela sentiu nas palmas das mã os que ele estava tenso, e ela o sentiu se
afastar.
— Você me viu, princesa?
Se ele temia que sua aparê ncia mudada a afastasse, estava muito
enganado.
— Eu vi, e você ainda é o meu Bash. — Era tã o simples assim. Aquela
ilha agia para mudar todos eles, mental ou isicamente. — Desde que
seu coraçã o nã o tenha mudado, nã o dou a mı́nima para a cor do seu
cabelo ou das suas unhas. — Ela passou a mã o pelos ios. — Na
verdade, meio que gosto desse visual.
Bash suspirou… mas nã o recuou. Que bom.
— Tenho muita coisa para te contar.
Ela assentiu, saindo da né voa de luxú ria. Provocaçõ es à parte, ela
entendeu que a razã o por trá s de sua transformaçã o nã o poderia ser
boa.
— Eu també m — disse ela.
Margrete ainda nã o estava pronta para sair da bolha deles, ainda
nã o. Egoisticamente, icou na ponta dos pé s e deu um beijo carinhoso
nos lá bios dele. Mesmo frios, eram os mesmos que a adoravam todas as
noites em casa. Os mesmos que a faziam ver estrelas enquanto
enviavam fogo atravé s de seu sangue.
Ela beijou seu pirata até perder o fô lego, e entã o a realidade se fez
presente.
Eles nã o podiam ignorá -la por muito mais tempo.
E enquanto ela abraçava seu amor ― vivo e inteiro ―, uma pequena
voz dentro de si sussurrou que o destino trabalharia para mudar aquilo.
s olhos de Bay se abriram no momento em que Margrete e Bash voltaram para a pequena
clareira onde acamparam. O fogo diante dele destacou seus lá bios entreabertos, um suspiro de
alı́vio palpá vel escapando. Ele deu um pulo e icou de pé .
— Bash? E mesmo você ? Santo inferno.
Ela icou surpresa por nenhum dos outros tripulantes ter acordado
com a explosã o de Bay, embora Mila e Atlas tenham se mexido.
Bay correu, praticamente derrubando Margrete de lado, enquanto
abraçava seu amigo e rei. Seu irmã o, melhor dizendo.
Como aconteceu com Margrete, a nova aparê ncia do rei nã o o
impediu. Algumas conexõ es nã o poderiam ser quebradas.
Margrete jurou que vira um indı́cio de lá grima nos olhos de Bay, mas
ele nã o as soltou. Seu sorriso, por outro lado, brilhava com tal
esplendor que iluminou a noite.
Quando inalmente recuou, Bay se deleitou com seu rei e as novas
adições à sua aparê ncia. Seu choque era aparente, e ele nã o fez
nenhuma tentativa de escondê -lo.
— Sinto que deveria perguntar sobre… — Ele indicou com a mã o o
pescoço, o cabelo e as mã os do rei.
— Eu nã o saberia te dizer — Bash respondeu secamente, movendo-
se com desconforto. Margrete sentiu a vergonha irradiando dele. —
Acordei assim depois de um sonho. Bom, nã o era realmente um sonho.
Parecia muito real. Esta porra de ilha… E difı́cil con iar em qualquer
coisa.
Ela sentiu que ele estava se segurando e sabia mais do que deixava
transparecer.
— Quero dizer, poderia ser pior, nã o é ? Você poderia ter criado
presas ou algo assim — provocou Bay.
Margrete fez uma careta, mas nã o sentiu necessidade de mencionar
como seus caninos pareciam mais pronunciados.
Ainda assim, ela fez um aceno agradecido. Ele estava dando um jeito
de ignorar as escamas de nymera que cobriam o pescoço de Bash, como
se tivesse acabado de fazer uma nova tatuagem. Ou talvez fosse
simplesmente muito há bil em esconder seu medo. Margrete suspeitava
da ú ltima opçã o.
Bay agarrou o braço de Bash e deu um aperto.
— Eu estava tentando ser positivo por causa dela. — Ele apontou
com o polegar para Margrete. — Mas realmente achei que você tinha
morrido. Enterrado na trincheira mais profunda. Virado comida de
tubarã o. A cabeça decepada e partes do corpo faltando.
— Obrigado — disse Bash, zombando, embora seus lá bios tenham se
contraı́do levemente. — Fico feliz que Margrete ainda tinha fé , ou você
já estaria a meio caminho de casa agora.
— Isso també m nã o parece muito bom — murmurou Bay,
balançando a cabeça e soltando seu braço. — O Phaedra? Sim, nã o
sobrou absolutamente nada para consertar. Teremos que começar do
zero. Ou, no caso de nossas circunstâ ncias fantasticamente terrı́veis,
teremos que construir uma jangada minimamente decente e esperar
que outro navio, um que nã o seja comandado por piratas, é claro, nos
resgate.
— Que beleza — Bash resmungou, e Margrete estremeceu com o
timbre profundo de sua voz. Embora pudesse estar utilizando seu
sarcasmo alternativo como defesa, nã o soava como ele. A voz saiu mais
como um grunhido, e as leves reverberaçõ es que ela captou no ar
causaram arrepios em seus braços e nuca.
Atlas, que dormia encostada a uma á rvore, se mexeu de seu canto.
Ela tinha falhado miseravelmente em manter a vigilâ ncia.
— Por favor, me diga que nã o estou tendo outra alucinaçã o —
murmurou ela. Seus olhos foram direto para as escamas e cabelos
escuros. — Ah, merda. Estou alucinando.
Bay lançou a Margrete um ú ltimo olhar interrogativo, mas ela
balançou a cabeça.
— Acredito que nã o, Atlas — disse Bay, com um sorriso esperançoso
iluminando seu rosto. — Parece que nossa querida Margrete encontrou
nosso rei rebelde. Nã o vou questionar os detalhes no momento,
principalmente porque estou muito feliz.
Sua voz foi aumentando a cada palavra, e, um por um, o resto da
tripulaçã o acordou. A maioria piscou como se nã o pudesse acreditar no
que viam, embora estivessem certos em descon iar de qualquer coisa
na ilha, especialmente a visã o de seu rei recé m-mudado.
— Estamos todos vendo isso?
Foi Mila quem falou. Ela se levantou e pegou sua adaga,
provavelmente pensando em todas as maneiras de esfaquear Bash se
ele fosse outro truque cruel.
— Ele está vivo. E realmente ele — anunciou Bay ao grupo acordado.
Bash parecia se encolher, o que nã o era do feitio dele, com os ombros
curvados e os olhos baixos. Margrete entrelaçou os dedos nos dele e
apertou ainda mais. Ele ergueu os olhos e deu a ela um sorriso
animado.
— Temos certeza de que é realmente ele? — Mila nã o se convenceu
facilmente, e Margrete nã o podia culpá -la.
— Basta! — Bay gritou, e Mila sabiamente calou a boca. — Como
todos podem ver, Bash sofreu algo por causa deste lugar. Assim como
nó s. Até descobrirmos o signi icado por trá s de tudo isso, sugiro que se
lembrem de quem está diante de você s agora.
O lı́der deles. O rei deles.
Cabeças balançaram, e Mila guardou sua lâ mina.
— Temos poucas horas até o amanhecer, entã o aconselho que todos
descansem mais um pouco. Nã o sabemos o que enfrentaremos quando
o sol nascer e precisaremos de nossa energia. Amanhã seguiremos para
a costa, onde construiremos uma pequena embarcaçã o. A inal, somos
Azantianos, a construçã o de navios está em nosso sangue.
Se chegarmos até a costa, pensou Margrete, mas nã o expressou suas
preocupaçõ es.
— Você s ouviram o homem — gritou Atlas, o comando gelado
pesado em seu tom. — Descansem um pouco.
Dani e Jacks se acomodaram lado a lado novamente, o irmã o olhando
Bash cautelosamente enquanto colocava um braço protetor ao redor da
irmã . Mila, que havia sofrido a ira da ilha tanto, se nã o mais, do que
qualquer um deles, continuou a olhar abertamente para seu lı́der,
embora tenha dado um passo para trá s para se apoiar em um tronco
largo. Jonah, que Margrete tanto invejava, simplesmente sorriu, sem
nenhum traço de dú vida em seu rosto. Ele fez uma mesura rá pida antes
de se sentar. Fechou os olhos imediatamente, con iando que algo tinha
dado certo.
Sim, Margrete invejava seu otimismo esperançoso.
Bash, anormalmente quieto, recuou e foi se sentar em um lugar
distante sob um aglomerado de á rvores. De olhar vidrado, ele passou os
braços em volta dos joelhos. Ela queria saber cada pensamento que o
atormentava, mesmo que apenas para afastar sua dor ó bvia.
Um braço agarrou o dela antes que pudesse voltar para o rei.
— Margrete — sussurrou Bay, os olhos ferozes. — Você precisa icar
de olho nele.
Seu aviso, tã o diferente de sua alegria anterior, a pegou
desprevenida.
— Vou icar — prometeu, com irmeza, e ele a soltou. — Nó s só
precisamos dar o fora desta ilha antes que ela destrua mais de nó s. E se
a agitaçã o nas minhas entranhas servir de aviso, tenho a sensaçã o de
que os pró ximos dias serã o intensos, com mais do que uma caminhada
extenuante pela loresta. — Ela engoliu o nó sempre presente em sua
garganta.
— Concordo — disse Bay. — Mesmo que eu nã o tenha a magia dos
deuses em minhas veias, sinto nossa destruiçã o iminente. — Ele sorriu
para o absurdo da situaçã o. — Mas vou pegar o pró ximo turno, entã o
tente descansar um pouco. Falaremos mais pela manhã . — Bay deu um
tapinha no ombro dela antes de sair sem olhar para trá s.
Margrete sacudiu a apreensã o arrepiante que inundou seu peito e foi
ao encontro de Bash. Ele nã o tinha se movido, parecendo mais está tua
do que homem.
Ela odiava quã o pequeno ele parecia.
Sentando-se ao lado dele, Margrete pousou a mã o em seu joelho,
tomando cuidado para nã o fazer movimentos bruscos. Ele parecia
arisco. Ela queria perguntar o que ele tinha suportado, mas Bay estava
certo, conversariam mais tarde. Bash parecia ter passado por muita
coisa; precisava descansar e dos braços dela em volta dele.
Em vez de falar, Margrete abaixou-se e estendeu a mã o para puxar
Bash para perto dela. Ela pegou o braço dele e o apoiou em sua cintura.
Ele imediatamente endureceu.
— Só me abrace, Bash. Por favor.
Pode ter sido egoı́sta, provavelmente foi egoı́sta, mas ela precisava
dele. Precisava do abraço dele, para lembrá -la de que ele estava ali.
Vivo.
Talvez tenha sido seu por favor desesperado, mas Bash a abraçou de
volta. Ele relaxou apenas um pouco para junto dela, que notou como ele
deixou um centı́metro de espaço entre eles. Margrete odiava aquele
ú nico centı́metro.
Ela esperava que eles diminuı́ssem a distâ ncia antes que ela o
perdesse para sempre.

Margrete acordou bem depois da meia-noite.


Talvez a ilha a tenha feito se mexer, ou o fato de que o corpo de Bash
nã o estava pressionado contra o dela. Ela se endireitou, o sono ainda
grudado em seus olhos enquanto os esfregava.
Ela olhou por cima do ombro, e nã o se surpreendeu ao ver que o
local onde Bash estava agora estava vazio. Ainda assim, o pâ nico
explodiu, e seu coraçã o bateu alarmado.
De novo, não.
Margrete icou de pé de um salto, tomando cuidado com os corpos
inconscientes espalhados ao redor das chamas fracas. Mila descansava
encostada em uma á rvore distante, longe de todos, seus olhos injetados
de sangue abertos e em alerta. Devia ser o turno dela.
A jovem a encarou, parecendo entender a pergunta silenciosa de
Margrete: Onde estava o rei deles?
Mila suspirou antes de inclinar a cabeça para a direita, onde
terminava a pequena clareira e começava a loresta densa. Ela
murmurou as palavras: Por ali.
Margrete baixou a cabeça em agradecimento, mas, na verdade, nã o
estava feliz por Mila ter permitido que Bash se afastasse sozinho. Os
deuses sabiam o que espreitava naquelas matas, e Margrete acabara de
encontrá -lo novamente.
Temendo perdê -lo de novo, ela acelerou os passos e correu na
direçã o das á rvores. Galhos baixos e arbustos espinhosos arranhavam
suas pernas, seus braços, suas bochechas. Ela amaldiçoou baixinho
enquanto os empurrava de lado, sua visã o gradualmente se ajustando à
noite.
Cinco minutos dolorosamente longos depois, ela se deparou com
outra pequena clareira, embora esta ostentasse uma formaçã o rochosa
irregular, grande como uma bela casa Azantiana, com pelo menos dez
metros de altura. As pedras se projetavam na noite em um â ngulo quase
plano, como se da pró pria terra tivessem brotado dedos enormes e
alcançado a lua. Sentado no topo do ponto mais alto, com a cabeça
inclinada para o cé u, estava Bash.
Ela soltou um suspiro irregular de alı́vio.
— Deuses, Bash! Você me assustou!
Agora que ela o encontrara sã o e salvo, queria torcer seu pescoço.
— Margrete? — Bash espiou por cima dos pedregulhos quando ela
começou a subir, mechas errantes de cabelo preto caindo em seu rosto.
— O que está fazendo acordada a essa hora?
— Acordei e você nã o estava comigo — disse ela, subindo mais.
Demorou menos de um minuto para que ela chegasse ao topo, e Bash
lhe ofereceu a mã o, ajudando-a a terminar de subir.
— Eu poderia ter descido — falou ele quando ela se acomodou na
superfı́cie lisa e plana. Daquela altura, podia-se vislumbrar a ilha por
cima das á rvores. A loresta parecia in inita até ser engolida por uma
né voa espessa.
— Você deveria ter me acordado e entã o eu poderia ter vindo com
você . — Margrete sabia que devia dar-lhe espaço, mas, particularmente,
nã o queria. Era difı́cil se livrar da paranoia.
— Venha aqui — chamou Bash, a voz grave. Ele abriu os braços com
hesitaçã o, embora ela tenha notado como ele cerrou os punhos para
esconder as unhas escurecidas.
Margrete deslizou para os braços dele. Ele demorou um pouco até
envolvê -los ao redor dela. Ela fez uma careta.
— Me abrace com vontade, pirata — ralhou ela, puxando as mã os
dele até icarem planas contra sua barriga. Suas costas estavam
pressionadas no peito dele, e ela se moveu até conseguir descansar a
cabeça na curva de seu pescoço.
Melhor. Muito melhor.
Bash mal parecia respirar, e ela podia sentir as batidas do coraçã o
dele reverberando contra ela.
— Sei que nã o vai me machucar — falou ela, acreditando em cada
palavra.
— Minha aparê ncia está assim por uma razã o, Margrete — Bash
sussurrou, sua respiraçã o fazendo có cegas em seu cabelo. — Sei que
você foi sincera antes, na loresta, mas eu nã o me sinto bem.
Margrete esticou o pescoço até encontrar seus olhos. Ela deu a ele
seu melhor olhar.
— Tenho certeza de que nenhum de nó s nesta ilha “se sente bem”.
Lutei contra um maldito monstro marinho, pelo amor de Deus.
Isso chamou a atençã o dele.
— Você o quê?
— Ah, sim. E Mila quase morreu. Foi bastante extraordiná rio, se é
que posso dizer isso. E uma pena que você tenha perdido.
Bash bufou.
— Meu coraçã o teria parado — disse ele, soltando um riso genuı́no.
Ele distraidamente esfregou o polegar em sua barriga. — Nã o estou
dizendo que eu nã o teria fé , mas você matar uma fera estaria na lista de
coisas que eu preferiria nã o ver. Pelo menos, nã o sem um pouco de
cerveja à mã o.
— Esse é o Bash que conheço. Sarcá stico como sempre. — Margrete
deu um beijo em seu pescoço, logo acima das escamas. Bash se
encolheu, mas ela ignorou.
— Calminha aı́ — repreendeu ele levemente, um lado de sua boca se
curvando e deixando a ú nica covinha aparecer. — Vejo que, mesmo em
meu estado terrı́vel, você ainda procura me provocar.
Aquilo nã o mudaria.
Margrete saiu dos braços dele e se virou antes que ele pudesse detê -
la. Ela montou em seus quadris, enrolando os braços ao redor do
pescoço dele. Os lá bios de Bash se separaram, em choque, mas as mã os
foram automaticamente para o quadril de Margrete.
— Você soa como o meu Bash — falou ela, tocando-lhe o nariz com o
dedo. Os olhos dele se estreitaram com o gesto. — O que posso fazer
para provar a você que nada vai mudar como eu te vejo?
Bash soltou os braços.
— Parece que nã o sou um verdadeiro Azantiano… — Seu olhar
baixou para seu corpo, para suas unhas pretas. — Qualquer um pode
ver isso.
Margrete o silenciou com um dedo nos lá bios. Sempre que ela se
encontrava presa em um ciclo interminá vel de dú vidas, Bash estava lá ,
ao seu lado, forçando-a a ver todo o bem que ela havia feito. Ela sabia
que podia ser teimosa porque ele nunca desistia de tentar fazê -la sorrir,
e ela també m nã o desistiria dele.
Naquele momento, tudo o que ela queria era que ele esquecesse os
horrores daquela ilha e as escamas em seu pescoço. Ela queria que ele
esquecesse tudo, menos eles.
Em silê ncio, ela empurrou suavemente o peito dele, forçando-o a
deitar de costas. Um olhar de pura confusã o cruzou suas feiçõ es a iadas,
e, quando ele abriu a boca para questioná -la, ela balançou a cabeça
lentamente para frente e para trá s.
Sem perder o contato visual, Margrete foi descendo pelo corpo dele
em direçã o ao cinto. Os olhos de Bash se arregalaram quando ela o
abriu e começou a trabalhar nos botõ es da calça.
Bash agarrou seus pulsos, incerteza clara em seu olhar.
— Nã o precisa fazer isso, princesa.
Ela zombou.
— Já lhe ocorreu que eu quero? — Desesperadamente.
Ele ia abrir a boca novamente quando ela alcançou seu comprimento
e o libertou. , seus lá bios se separaram, e nada alé m de uma expiraçã o
irregular saiu, seu argumento morrendo na lı́ngua.
Margrete sorriu.
Bash, uma vez, dissera a ela que ele havia se viciado em seu gosto,
mas o que ele nã o sabia era que ela havia se viciado no dele.
Sem palavras, ela circulou a ponta sensı́vel, seu sorriso brilhando
quando ele soltou um som mais pró ximo de um rosnado.
Os olhos de Bash se fecharam quando ela moveu a mã o para cima e
para baixo, torturando-o como ele tinha feito tantas vezes com ela.
— Que malvada…
A voz de Bash falhou quando Margrete baixou a cabeça e o tomou em
sua boca. O gosto familiar a fez gemer, e seu membro se contraiu. Bash
amaldiçoou e voou as mã os para o cabelo dela.
— V-você está tentando me matar, mulher? — grunhiu, quase
incapaz de falar.
Ela sorriu ao redor dele. Os ruı́dos que ele fez a deixaram louca de
necessidade, e saber que estava fazendo com que ele se desvendasse fez
seu nú cleo doer. Acelerando, Margrete girou a lı́ngua enquanto se
movia, arrancando seu prazer, destruindo seu controle. Bash apertou os
dedos em seus cachos, seus quadris empurrando para encontrar sua
boca enquanto ele cantava seu nome.
— V-você é tã o boa — murmurou ele sob a respiraçã o. — Isso aı́,
princesa. Deuses, sim.
Quando todo o seu corpo icou tenso, pró ximo da liberaçã o, Bash
abruptamente a levantou de cima dele. Assustada, ela encontrou os
olhos dele, que estavam mais escuros do que ela já tinha visto.
— De jeito nenhum eu vou gozar sem sentir que você gozou
primeiro.
Uma corrente de ar deixou seus pulmõ es quando Bash a puxou para
cima, sobre seu peito. Cuidadosamente, ele a virou de lado, deitando-a
na superfı́cie rochosa. Com dedos á geis, ele se moveu entre seus corpos,
rapidamente desabotoando seu cinto e os botõ es da calça. Ele deslizou
a mã o dentro, e ela sibilou ao sentir os dedos gelados em sua pele
quente. A sensaçã o enviou arrepios em todos os lugares certos.
— Muito melhor — sussurrou ele, provocando o conjunto de nervos.
A respiraçã o dele patinou no rosto dela, os lá bios a centı́metros de
distâ ncia. Ele aliviou um dedo antes de enrolá -lo, atingindo um ponto
bem no fundo. Ela precisava de mais. Como se estivesse lendo sua
mente, ele acrescentou mais um dedo, beijando seus lá bios quando ela
soltou um suspiro. Ele engoliu o som, inalando sua respiraçã o,
consumindo-a inteira.
Margrete mal teve a capacidade de alcançar seu comprimento
quando ele en iou um terceiro dedo. Um ruı́do estrangulado a deixou,
puro ê xtase atirando em seu nú cleo, seu centro pulsando e implorando
por mais, mais, mais. Ela se sentia tã o deliciosamente cheia que era
quase demais para suportar.
Eles se moviam como um, respirando o mesmo ar, ambos
perseguindo o prazer que só o outro poderia trazer. Ela murmurou seu
nome, e ele respondeu movendo-se mais rá pido, levando-a para mais
perto do ê xtase. Mas Margrete nã o estava preparada para aquele
momento terminar.
— Eu nunca te quis mais do que agora — murmurou ela, sentindo
Bash tremer na palma da mã o. — Só você me faz sentir assim.
Algo parecido com dú vida brilhou em seu rosto, mas ela
rapidamente o afugentou quando passou o polegar sobre sua fenda
sensı́vel. Bash gemeu, seus quadris empurrando a mã o de Margrete. Ele
nã o tinha que acreditar nela ainda, mas iria. Ela se certi icaria disso.
— Mostre-me o quanto eu te afeto, rei — pediu. Estava tã o perto. —
Mostre-me…
Ambos icaram tensos, e os olhos de Bash se fecharam. Onda apó s
onda de euforia balançava seu corpo, sua liberaçã o parecendo nunca ter
im. Todo o tempo, ela o encarou, e sua expressã o lindamente quebrada
apenas prolongou o ê xtase de Margrete.
O pê nis empurrou em sua mã o, e um gemido profundo e retumbante
o deixou enquanto ele a olhava com uma intensidade que deixou suas
entranhas em chamas.
Bash uniu a boca com a dela e roubou seu oxigê nio, seus
pensamentos, sua sanidade. Ele beijou seus lá bios e os adorou, sua
lı́ngua mergulhando e girando com a dela até que ambos desceram do
ê xtase.
Margrete nã o tinha certeza de quanto tempo permaneceram assim,
mas, por im, Bash a colocou sobre seu peito, um braço em volta da
cintura dela. Em um silê ncio feliz, eles observaram as estrelas até que
as pá lpebras de Margrete icaram pesadas.
Ela adormeceu e, quando percebeu, estava nos braços de Bash,
sendo carregada enquanto ele caminhava por entre as á rvores e voltava
para o acampamento. Ela captou lashes de suas escamas que
brilhavam na fraca luz da lua.
— Durma, princesa — sussurrou ele. E, sem hesitar, ela fechou os
olhos e permitiu que o sono a levasse mais uma vez. Ela nunca se
sentira tã o segura quanto com ele, mesmo ali, naquele lugar miserá vel
criado por uma deusa enlouquecida.
Nã o sabia o que estava reservado para eles em seguida, mas uma
coisa era certa: ela destruiria o mundo antes de permitir que algué m
levasse Bash para longe dela novamente.
— argrete.
Ela abriu os olhos ao ouvir seu nome vindo por cima do ombro.
Ficou tensa por um segundo, mas entã o a noite anterior voltou
depressa.
Bash.
Ela sorriu, permitindo-se um momento para sentir alegria, e se
virou. Um suspiro satisfeito deixou seus lá bios enquanto ela saboreava
a visã o do rei Azantiano.
Mesmo com escamas pretas se enrolando em seu pescoço e
mergulhando abaixo da gola da camisa, Bash ainda era a coisa mais
linda que ela já tinha visto. Ele poderia nã o gostar que ela o chamasse
de bonito. Provavelmente preferiria “robusto” e “perigoso”.
— Por que está sorrindo? — perguntou ele, seu pró prio sorriso
erguendo seus lá bios.
— Só estou feliz — sussurrou ela. O acampamento estava em
silê ncio, o que lhe dizia que ainda havia algum tempo antes do
amanhecer.
Cautelosamente, ela estendeu a mã o para segurar a bochecha
barbada de Bash. Em vez de afastá -la ou recuar, como tinha feito na
noite anterior, ele se inclinou, de olhos fechados, em seu toque. Ela
sentiu o corpo dele estremecer sob a palma de sua mã o, e a esperança
loresceu dentro dela. Talvez pudessem consertar aquela bagunça.
— Senti sua falta — disse Bash, sua voz irme, mas gentil. Ele cobriu
a mã o com que ela segurava sua bochecha. — Você nunca saiu dos meus
pensamentos. Nem por um ú nico momento. Parecia que mil anos
tinham ido e vindo.
— E uma coisa boa que eu nã o seja tã o facilmente esquecı́vel, entã o
— respondeu ela, se aproximando até icar bem encostada nele. Outro
arrepio transpassou seu corpo.
Bash abriu os olhos e soltou uma risada profunda.
— Acredite em mim, você está longe de ser esquecı́vel. Minhas noites
foram preenchidas pensando em você .
Seus lá bios estavam nos dela antes que ela pudesse respirar. Ela
inalou o ar dele, sorrindo no beijo. Sim, as coisas dariam certo, e entã o
eles sairiam daquela ilha e voltariam para casa.
— Tã o deliciosa — Bash murmurou entre beijos. Sua voz icou grave,
mais profunda. — E como se nunca tivé ssemos nos separado. — Ela
hesitou por um segundo, mas, quando ele entrelaçou os dedos em seu
cabelo e a puxou contra seus lá bios, ela derreteu.
A outra mã o dele se moveu para roçar seu quadril com dedos gentis,
inseguros. Ela gemeu quando a lı́ngua dele traçou a costura de seus
lá bios, e ao som necessitado, os movimentos de Bash icaram
desesperados. Suas mã os nã o estavam mais inseguras. Ele a agarrou
como se ela fosse se afastar se ele a soltasse. Algo estava diferente em
seu beijo, e ainda era tã o familiar ao mesmo tempo.
Margrete mordeu o lá bio inferior dele, saboreando-o, tentando
lembrar-se do seu…
Ela icou quieta. Ele tinha gosto de sal, fú ria e uma especiaria
estrangeira que queimou sua lı́ngua. Instintivamente, ela recuou.
Bash inclinou a cabeça, com as sobrancelhas franzidas e os lá bios
a inados.
— O que foi, querida?
Querida. Bash nunca a chamara assim, mas outra pessoa o tinha…
Margrete empurrou o peito dele no momento em que os olhos
escuros que ela amava mudaram de cor ― de preto-escuro para azul-
brilhante.
— Darius — disparou ela, se afastando e icando de pé . Ela examinou
o acampamento, percebendo que estavam sozinhos. Nenhum dos
outros dormia paci icamente, encolhidos ao lado do fogo moribundo.
Era só ela e o Deus do Mar.
Outro maldito sonho.
Lentamente, em seu ritmo, Darius se elevou a toda sua altura.
Margrete assistiu horrorizada enquanto o corpo dele se mexia, e ela
percebeu o som distinto de ossos se quebrando. Sua pele ondulou, suas
feiçõ es mudando e se ajustando. Diante de seus olhos, ele se
transformou em seu inimigo.
Margrete foi se afastando, até que suas costas colidiram contra a
casca á spera.
Darius se aproximou. Ele colocou uma mã o acima da cabeça dela e se
inclinou, embora nã o a tocasse novamente.
— Cuidado com a lua de sangue, querida. Chega em trê s dias —
avisou, sorrindo. — No entanto, vou aproveitar cada segundo disso.
Esperei muito pelo seu retorno e mais tempo para acertar as coisas
entre nó s. — Seus olhos se fecharam quando ele inalou o cheiro dela, e
antes que ela pudesse reagir, ele pegou uma mecha solta de seu cabelo,
girando-a ao redor dos dedos. Ele parecia cativado pela visã o.
Ela sacudiu a cabeça, e Darius franziu a testa, soltando o cacho.
— O que quer dizer com vai acertar as coisas entre nó s? —
perguntou ela, arfando. Ela nã o conseguia recuperar o fô lego. Ele estava
muito perto. E foi por isso que, quando ele recuou dois centı́metros, ela
deslizou sob seu braço. — Responda! — exigiu, virando-se para encará -
lo. — E por que sinto que conheço você ? E nã o apenas desde aquele dia
em Azantian, mas… de antes? — As palavras saı́ram de sua boca antes
que ela pudesse detê -las.
Sempre que estava na presença dele, seu pulso disparava ― e nã o
por medo. E entã o houve aqueles breves vislumbres deles se
abraçando.
Nada daquilo fazia nenhum maldito sentido.
Darius se levantou da á rvore e passou a mã o por seus cabelos
dourados, ixando-a no lugar com seu olhar. Havia tantas emoçõ es
girando em seus olhos, e a magia queimava em seu peito, respondendo a
ele de uma forma que a inquietava.
— Eu quero te contar tudo — disse ele, e a sinceridade de sua voz
aumentou ainda mais a determinaçã o dela. — Mas algumas coisas você
deve descobrir sozinha, e espero que uma dessas surpresas seja
divertida para você .
Margrete cerrou as mã os em punhos apertados.
— Vejo que nã o estava errado sobre você — continuou Darius, livre
de seu olhar carrancudo. — E como será emocionante quando perceber
que sou a ú ltima pessoa contra quem você deveria lutar. — Ele riu
secamente. — Nã o se pode odiar o re lexo do que se é . E você , minha
querida, certamente nã o vai me odiar por muito tempo.
Ah, ela duvidava daquilo. Mas, por enquanto, queria Darius fora de
sua mente. Imediatamente.
No mesmo instante, a cena estremeceu como uma chama, e um
lampejo de incerteza torceu os lá bios de Darius em uma carranca. Com
uma sobrancelha erguida, ele a avaliou, aparentemente impressionado
e incré dulo.
Uma onda de raiva a inundou, e os bosques ao redor de Darius se
inclinaram e borraram. O pró prio deus balançou, tremeluziu e voltou ao
lugar. Sua mandı́bula permaneceu cerrada enquanto seu corpo eté reo
lutuava dentro e fora da existê ncia.
— Você está icando mais poderosa a cada dia…
Margrete atacou, seu punho mirando o rosto bonito.
Ela saiu voando, sem encontrar resistê ncia, navegando pelo ar.
Margrete soltou um ganido pouco antes de colidir com a terra.
O ar saiu de seus pulmõ es quando seus olhos se abriram. Estava
deitada na terra dura, um corpo frio pressionado contra suas costas, um
braço musculoso apoiado na cintura. Ela se encolheu.
— Margrete?
Ela se virou, esperando ver Darius.
— O que aconteceu? — A voz de Bash soou alarmada quando ele se
levantou, já levando a mã o para a bainha vazia. Quando percebeu que
havia perdido sua arma, levou a mã o ao rosto dela. Sua testa se franziu
vendo que ela respirava fundo. Ele deixou cair o braço.
Ela estava realmente acordada?
— Eu… — Ela nã o sabia o que dizer. Deveria perguntar a ele se
aquilo era real? Perguntar se ele era o Deus do Mar disfarçado?
Margrete nã o con iava em nada.
Ela olhou ao redor do acampamento. A tripulaçã o estava toda
acordada, alguns se espreguiçando, outros amontoados e cochichando.
Seu olhar voltou para Bash.
— Princesa? Me diga o que está errado. — Seu tom era a iado, mas
ela o reconheceu.
Para testar, ela estendeu a mã o e tocou seu cabelo, passando a mã o
pelos ios e descendo até o pescoço. Uma escama espetou seu dedo, e o
sangue instantaneamente loresceu. Antes que ela pudesse limpá -lo,
Bash pegou seu pulso e parou para encontrar seus olhos. Ela se perdeu
em suas ı́ris escuras quando ele levou lentamente o dedo ferido aos
lá bios, e sua lı́ngua roçou a pequena ferida. Seu estô mago vibrou em
resposta. Sem quebrar o contato, ele beijou a ponta do dedo dela e o
levou de volta para o lado dela, embora nã o a soltasse.
Ela engoliu o nervosismo crescente, embora pudesse jurar que seus
olhos brilharam com um branco nebuloso antes de voltar ao preto.
Mas nã o importava. Sem qualquer dú vida, ela reconheceu o homem
diante de si, e nenhuma magia poderia disfarçar a sinceridade em seu
toque.
Aquele era o seu Bash.
— Eu… eu tive outro sonho — inalmente admitiu.
A mandı́bula de Bash se apertou.
Raiva. Sua magia sentiu a raiva dele, e tinha um gosto repulsivo e
amargo.
— Darius — Bash disse friamente, estreitando os olhos. Aquilo nã o
tinha sido uma pergunta.
Ela assentiu. A tensã o em seus ombros afrouxou quando a faı́sca
familiar de determinaçã o iluminou seus olhos. Ela o sentiu se
afastando, movendo-se para algum lugar que nã o podia alcançar. Seu
peito aqueceu como se con irmasse seus medos mais sombrios, e ela
desejou que sua maldita magia pudesse falar com ela. Com certeza
facilitaria muito as coisas.
— O que ele fez com você ? — O aperto de Bash em seu pulso
aumentou. Mais uma vez, seus olhos brilharam.
— Eu pensei que tinha acordado e que você estava comigo, e entã o…
— Entã o? — Bash indagou, seu tom letalmente calmo.
— Entã o nos beijamos — admitiu ela. — Eu pensei que era você , e
nã o…
Bash imediatamente relaxou.
— Shhh — ele a acalmou, alcançando sua bochecha. A sensaçã o
sufocante em seu peito se dissipou, e a mandı́bula de seu rei se abriu. —
Você nã o sabia, e nã o tem que se explicar. Sei que ele tem um talento
para se in iltrar em sonhos e causar estragos na mente.
Margrete suspirou de alı́vio.
— Só estou feliz que ele nã o machucou você … ou pior. — O olhar de
Bash queimava com intensidade, e ela suspeitava do que ele temia. — E
você nã o é a ú nica pessoa que ele visitou. Ele me procurou dias atrá s —
Bash admitiu em um sussurro. — Ele me provocou. Fez ameaças.
— Que tipo de ameaças?
— Ele quer você e o poder, Margrete — disse ele, suspirando. Sua
outra mã o ergueu o queixo dela. — Ele parece achar que tem algum
direito sobre você . Nã o sei se é por causa de seus novos poderes, ou se
simplesmente tem alguma ixaçã o distorcida em você , mas saiba que ele
nã o vai ganhar. Nã o vou permitir.
Sua promessa parecia familiar. Como a que ele fez no Phaedra meses
antes, quando estavam indo negociar com o pai dela.
O que Bash tinha que perceber era que ela nã o precisava dele para
protegê -la. Ela precisava protegê -lo. Protegê -lo de se tornar mais… bem,
o que quer que ele estivesse se tornando. Margrete tinha que ser
cuidadosa com o assunto, pois reconhecia a dor em seus olhos sempre
que olhava muito de perto suas escamas, seus dedos escurecidos, mas
ela encontraria uma maneira de interromper a transiçã o antes que
roubasse o homem que ela amava.
Em vez de dizer isso, ela apenas tocou a testa dele com a sua, seus
narizes roçando.
— Nó s vamos proteger um ao outro — insistiu ela. E deu um beijo
carinhoso em seus lá bios. — Mas ele me disse outra coisa. — Bash icou
rı́gido. — Acho que o plano dele se concretizará em trê s dias durante a
lua vermelha. E precisamos estar preparados.
Bash fechou os olhos brevemente como se uma contagem regressiva
para a morte tivesse começado.
— Se Darius nos ensinou alguma coisa, é que deuses podem morrer
— sussurrou ele, nã o soando tã o convencido quanto ela gostaria.
Pelo bem de todos, Margrete desejava que ele estivesse certo.
lgo estava errado com Bash.
E nã o apenas na aparê ncia ó bvia de escamas e cabelos e dedos
pretos. Nã o. Nã o era por isso que Bay olhava por cima do ombro a cada
poucos minutos para inspecionar seu rei.
Bay sentiu… uma mudança. Uma alteraçã o em seu velho amigo que
parecia quase tangı́vel. Pesava sobre ele a cada passo que davam em
direçã o à costa. Ele nã o conseguia se livrar da noçã o de que seu amigo
havia se transformado em um inimigo que ele deveria tomar cuidado. O
pensamento era absurdo, ele bem sabia, mas nã o conseguia afastar sua
apreensã o. Malditos instintos de guerreiro, pensou, fazendo uma careta.
Margrete, se sentia o mesmo, nã o dissera nada. Nã o que ele
esperasse que ela o izesse. Ela nã o tinha saı́do do lado de Bash desde
seu retorno.
Bay nã o podia culpá -la. Se ele tivesse perdido Adrian, e por algum
milagre o encontrasse vivo ― embora mudado ―, ignoraria todo o resto.
Até os sinais de alerta. Felizmente, Margrete o tinha para cuidar dela. E
ele o faria.
Bay inclinou o queixo para a esquerda, conduzindo a tripulaçã o por
um caminho com vegetaçã o rasteira menos espinhosa. As farpas
rasgaram sua roupa e, de alguma forma, cortaram partes de suas botas
de couro. Eles teriam sorte se chegassem à praia completamente
vestidos até o inal daquilo.
Suspeitava de que ainda tinham um dia de caminhada até
encontrarem as areias cinzentas e pudessem começar a construir
algum tipo de embarcaçã o para chegar em casa. Ou ao continente mais
pró ximo. Construir uma jangada só lida nã o o preocupava ― Bay
crescera com um martelo e uma serra na mã o e con iava em seu sangue
Azantiano. Ele só se preocupava em chegar à costa, isso era sua
prioridade.
Deuses. Ele estava tã o preocupado.
Adrian normalmente era quem se preocupava, pensou ele, e um
sorriso tı́mido apareceu em seus lá bios. Ele sentia mais falta do
namorado do que de nã o ser perseguido interminavelmente pela morte
em uma ilha cheia de alucinaçõ es e criaturas de fogo.
Bay imaginou como seria se Adrian estivesse ali com eles. Seus
lá bios estariam torcidos em uma careta, e sua testa, franzida de
preocupaçã o. Era seu visual habitual ― um que Bay achava
imensamente atraente. Homens inteligentes faziam isso com ele.
Homens que podiam derrubar um oponente apenas com palavras. E se,
por acaso, as palavras de Adrian nã o funcionassem, Bay sempre poderia
usar os punhos.
— Você está tã o nervoso com tudo isso quanto eu? — Atlas entrou
na ila ao lado de Bay. Os pensamentos sobre Adrian se desvaneceram, e
Bay mudou de expressã o. Nã o podia se perder em memó rias mais
felizes quando sua sobrevivê ncia estava em questã o.
— Se quer dizer a pró pria ilha ou o retorno do nosso rei, entã o sim.
Sim para ambos. — Mentir para Atlas era um esforço inú til. Ela estava
sempre muito ansiosa para acusá -lo de mentir.
— Que bom — disse ela com um aceno curto. — Eu estava
preocupada que você icasse todo amá vel e alheio como Margrete.
Bay engoliu um suspiro.
— Se algué m que você ama voltasse depois que você achasse que
estava morto, suponho que o aceitaria de qualquer maneira.
Atlas se virou, os olhos mirando em frente. Bay nã o deixou de
perceber como seu maxilar estalou. Sabia de sua pequena paixã o por
certa marinheira há alguns meses. Ela achou que escondia bem, mas
esqueceu que Bay notava tudo.
Alé m disso, estava icando ó bvio para todos, menos para Dani.
— Foi o que pensei — falou ele. — Mas ique alerta. Nã o sabemos o
que aconteceu com ele, e assim que ele se estabelecer e encontrarmos
abrigo, pretendo perguntar. — Nã o iria apressar seu rei a falar de
quaisquer horrores que enfrentara sozinho naquele lugar. Ele poderia
ter um relacionamento mais casual com ele do que a maioria, mas
certas linhas nã o deveriam ser cruzadas.
— Tudo bem — Atlas retrucou. — Mas é melhor você perguntar, ou
eu vou.
Lá estava a guerreira teimosa que Bay conhecia e amava.
— Nã o se preocupe, amiga. Nã o pretendo perder mais ningué m. — A
tristeza em seu tom endureceu a voz. Atlas percebeu, como ele sabia
que ela faria.
Uma mã o irme pousou em seu ombro, o aperto mortal.
— Você é meu lı́der. Meu amigo. Aquele que eu seguiria para
qualquer lugar. Nã o carregue nem por um maldito segundo as perdas
que enfrentamos apenas em seus ombros. Se continuar se culpando,
serei forçada a socar a culpa para fora de você , e sabe o quanto eu adoro
uma boa briga.
Os cantos de sua boca se curvaram. Bay sabia muito bem como ela
ansiava pela batalha. A pressa da luta. Ele nã o deveria tentá -la.
— Obrigado pela oferta generosa — disse ele ironicamente. — Mas,
por enquanto, mantenha esses punhos para si. Podemos precisar deles
mais tarde.

O mais tarde veio.


Os ventos mudaram, e, com isso, veio aquele cheiro horrı́vel de
podridã o. Aquilo lembrou Bay de cabelos queimados e carne em
decomposiçã o. Que cheiro adorá vel.
— Alguma coisa está vindo — anunciou Margrete.
Bay virou-se para a mulher que ele passou a ver como irmã . Os olhos
dela eram mais a iados do que qualquer lâ mina Azantiana, e sua mã o
deslizou para a tatuagem de onda em sua clavı́cula.
— Eu sinto… eu sinto que olhos nos observam — sussurrou ela,
segurando a mã o de Bash. Seu rei a olhou, seus pró prios olhos de noite
profunda se estreitando com preocupaçã o. Bay podia ver os mú sculos
de seu pescoço icarem dolorosamente tensos.
— Eu sinto també m. — Todos paralisaram ao som da voz de Dani.
A irmã gê mea de Jacks nunca falava, a menos que fosse
absolutamente necessá rio. Mas, quando o fazia, tinha peso ― uma razã o
pela qual Bay a aceitara em sua tripulaçã o. Alé m disso, ele entendia que
os gê meos nã o podiam ser separados. Um era tudo que o outro tinha, e
ele nã o estava disposto a separar irmã os ó rfã os. Como ó rfã o, Bay
crescera sabendo o que era nã o ter nada nem ningué m.
— O que está sentindo, Dani? — Bay perguntou, aproximando-se da
garota. Ela estremeceu no lugar, espiando cautelosamente atravé s de
seus grossos cı́lios de ô nix para se dirigir a ele.
— Morte.
Margrete soltou Bash e foi até o lado de Dani. Ela colocou uma mã o
gentil em seu ombro.
— Você … você vê alguma coisa? — Margrete pressionou
suavemente. — Imagens? Flashes?
Bay nã o tinha a mı́nima ideia do que ela falava, mas escutou com
muita atençã o. Assim como Atlas, que se aproximou de Dani e Margrete.
Um pouco mais perto de Dani. A mã o dela foi para a adaga.
Dani esfregou as tê mporas e fechou os olhos.
— Vou parecer tola — sussurrou ela, quase baixinho até mesmo para
a audiçã o aguçada de Bay.
— Nã o vai, nã o — Margrete assegurou, virando a garota para que a
encarasse. — Os deuses sabem que nada mais soaria tolo. E se isso faz
você se sentir melhor, eu també m vi algo. Ou acho que vi. — Uma ruga
se formou na testa de Margrete. Bay percebeu que ela nã o queria
admitir quaisquer horrores que tivesse vislumbrado. Ela nã o gostava de
compartilhar, especialmente quando se tratava de seus poderes.
— Eu poderia jurar que vi algué m na loresta. Uma silhueta
encapuzada. Um lash de vermelho. — Dani olhou para o chã o. — Eu
pisquei e ele se foi, mas parecia tã o real…
Margrete assentiu, parecendo entender. Ela se virou para Bay.
— Precisamos encontrar um lugar seguro. Um que nos permita ver
nossos inimigos caso ataquem. Estamos sendo seguidos.
Um arrepio percorreu a espinha de Bay. Rigidamente, ele olhou para
frente. As á rvores densas tornavam quase impossı́vel ver claramente,
mas se ele apertasse os olhos, poderia distinguir o inı́cio de uma colina
rochosa. Se conseguissem alcançá -la, talvez pudessem subir e ter uma
visã o melhor dos arredores.
— Há uma colina bem à frente. Devemos ir para lá . Agora — ordenou
ele. Bay tinha a sensaçã o de que, se algué m os seguisse, teriam prazer
na perseguiçã o. Tudo naquele lugar parecia adorar a caça.
Bash deu-lhe um aceno con iante, seu rei aparentemente contente
em abrir mã o de algum controle.
Dani recuou para o lado de Jacks, e seu irmã o colocou um braço
protetor ao redor de seu ombro. Os olhos de Atlas se demoraram nela
pelo tempo de uma batida de coraçã o até que ela, relutantemente,
focasse em frente. Ela tirou a adaga da bainha e a segurou diante de si,
pronta para en iá -la em quem a irritasse.
— Precisamos nos apressar — Bay murmurou para sua segunda no
comando. — Se Dani e Margrete estiverem certas, um ataque é
iminente.
Atlas nã o disse uma palavra, mas nã o precisava. Ambos entendiam a
situaçã o precá ria.
Com passos rá pidos, o restante da tripulaçã o atravessou o mato,
empurrando os galhos inos para o lado. O silê ncio enervante
aumentava a cada estalo de galho e a cada inspiraçã o. O sangue de Bay
virou gelo, mas suas pernas continuaram a se mover, levando sua
tripulaçã o para a colina rochosa onde esperavam encontrar melhores
oportunidades.
Entã o as á rvores diminuı́ram o su iciente para Bay ver seu destino. A
cerca de sessenta metros de distâ ncia, uma fenda se abria na encosta da
colina. Ela nã o parecia grande o su iciente para passarem, mesmo
espremidos.
Bay olhou para cima. A colina parecia ter cerca de algumas centenas
de metros de altura e tinha pontos de apoio su icientes para que
subissem com facilidade. Ele nã o conseguia distinguir como era o topo,
ainda nã o, mas esperava que fosse plano. Nã o gostava de escalar. E nem
de altura. Poucos sabiam de seus medos, e ele pretendia que
continuasse assim.
Na ponte, quando as criaturas de fogo os encurralaram, ele precisou
de tudo de si para dar aquele salto de fé com Margrete. No momento
que hesitou, o rosto de Adrian brilhou diante de seus olhos. Isso foi o
su iciente para Bay pular. Por ele.
Mas isso nã o signi icava que ele nã o estava com medo naquele
momento.
— Quase lá — sussurrou ele para a tripulaçã o. Alguns responderam
com resmungos. Jonah tropeçou em um galho caı́do na pressa para
chegar. O rapaz era desajeitado, mas era um bom companheiro. Bay
apenas rezou para que o pobre garoto conseguisse sair dali vivo para
testar sua habilidade em mar aberto.
Um uivo cortou o ar. Bem, nã o um uivo, mais como um grito
misturado com um gemido. Parecia… humano.
Bay parou imediatamente. Ele ergueu a mã o.
O ruı́do metá lico das lâ minas sendo sacadas cortou o ar atrá s dele.
Ele examinou as á rvores enquanto pegava a adaga. O uivo nã o soou
novamente.
Cinco batimentos cardı́acos se passaram. Entã o dez. Entã o vinte.
Quando mais silê ncio angustiante se seguiu, Bay acenou lentamente
para seus homens, indicando que se movessem com cautela.
Ele olhou rá pido por cima do ombro. Margrete estava ereta, com o
olhar concentrado, e nã o estava mais de mã os dadas com Bash. Seus
braços estavam estendidos nas laterais do corpo, as mã os em punhos, e
Bay pensou ter visto uma faı́sca de luz em um deles.
Ele voltou o foco para o destino que se aproximava. Estavam quase
lá .
Dois uivos perfuraram o silê ncio. Todos se aquietaram novamente.
Desta vez, a respiraçã o ofegante foi dolorosamente audı́vel.
Trê s uivos se seguiram.
— Corram! — Bay gritou assim que os galhos atrá s deles começaram
a se mover e um farfalhar agitado soou. Ele ouviu passos pesados, pelo
menos de uma dú zia de homens ou mulheres, e, pelo seu treinamento,
sabia que estavam logo atrá s deles.
Juntos, Bay e a tripulaçã o correram por entre as á rvores e pularam
sobre galhos e troncos caı́dos. Havia uma clareira pouco antes da colina,
e ele nunca correra tã o rá pido na vida.
— Merda! — Jonah sibilou.
Bay parou e viu que o jovem estava de quatro, segurando o
tornozelo. Um galho quebrado estava logo atrá s dele. Apontando para o
resto da tripulaçã o à frente, Bay correu para o lado de Jonah e o puxou
para cima, forçando o braço ao redor de seu torso. Jonah se curaria, mas
nã o tã o rá pido quanto precisava. Nã o com demô nios ou monstros se
aproximando.
— Te peguei! — grunhiu ele enquanto se acostumava ao peso de
Jonah. O rapaz era surpreendentemente pesado. Temendo que as
criaturas devorassem os dois, outra pessoa correu para o outro lado de
Jonah para apoiá -lo.
Mila.
— Obrigado — Jonah grunhiu, virando-se para Mila. As bochechas
dele icaram vermelhas com o breve aceno de cabeça que ela deu. E se
intensi icou quando ela o puxou para mais perto de seu lado.
Com a ajuda dela, eles conseguiram chegar à clareira quase ao
mesmo tempo que os outros, embora nã o tivessem muito tempo para
descobrir como se defender. Eles nã o podiam escalar a colina ainda.
Seria tolice dar as costas a um inimigo.
— Você ica com ele? — Bay perguntou a Mila. Ela assentiu,
segurando Jonah com mais força. O rosto do jovem se contraiu de dor,
mas ele fez o possı́vel para esconder.
Bay encarou as á rvores. Os galhos se moveram e os passos
trovejaram.
Ele empunhou a adaga à sua frente, prendendo a respiraçã o, mas
pronto para atacar, para matar qualquer novo horror que surgisse das
á rvores.
No entanto, Bay deveria saber que sua adaga nã o seria su iciente.
Uma dú zia de iguras se materializou da loresta, todos com os olhos
pingando sangue.
— ue merda é essa?
Bay raramente xingava. Aquilo era ruim.
Margrete assistiu em choque, total e completo choque, quando uma
dú zia de seres que pareciam humanos entrou na clareira. O sangue
escorria de seus olhos como lá grimas viscosas, escorrendo pelas
bochechas encovadas até o queixo. Seus corpos eram magros e
doentios, e a pele tinha um tom opaco de verde-acinzentado.
— Que merda é essa, mesmo? — Atlas disse, levantando sua adaga.
— Nã o sei o que sã o, mas mal posso esperar para tentar matá -los.
— Se eles puderem ser mortos — gorjeou Dani, ganhando um olhar
de dor de Atlas. Ela se moveu na frente da jovem marinheira,
bloqueando a visã o dos agressores macabros.
Aquela parecia ser uma pergunta comum naquela ilha ― se ou como
algo poderia ser morto. Isso, ou o que está realmente acontecendo?
A horda invasora avançou com passos vagarosos, nã o precisando
mais perseguir e encurralar. Como se fossem um só , eles deslizaram
para a clareira e formaram uma linha irregular, de tal forma que fosse
impossı́vel qualquer tentativa de fuga pela loresta.
Margrete ousou olhar para a colina rochosa atrá s deles. Eles
poderiam tentar subir, mas as criaturas os pegariam em um piscar de
olhos. O que quer que fossem. Mortos. Vivos. Humanos. Feras. Margrete
era esperta o bastante para perceber que nã o eram amigá veis, nã o com
a forma como lambiam os lá bios rachados no que ela quase podia
confundir com fome.
— A maioria está usando armadura — Mila observou suavemente.
— Parecem velhas. De algumas dé cadas, pelo menos.
Margrete realmente nã o tinha notado, já que sua atençã o se focara
nas lágrimas de sangue, mas todos usavam a mesma armadura dourada
que parecia dé cadas desatualizada. E seus peitorais traziam um pá ssaro
alado estampado na frente.
O sı́mbolo de Surria.
— Eles não podem estar vivos. Quero dizer, olhem para eles — Jonah
disse. — Mas eu també m nã o quero que estejam mortos, porque se
estiverem… — Ele engoliu em seco e se calou. Sua declaraçã o
transmitiu a situaçã o bem o su iciente. Se estivessem mortos, entã o a
tripulaçã o estava ferrada.
Você nã o pode matar uma pessoa morta.
Margrete agarrou a mã o de Bash.
— Fique atrá s de mim — sussurrou ela, sem tirar o olhar dos
soldados que avançavam. Uma criatura particularmente corajosa com a
pele soltando do crâ nio raspado e tatuado passou sua longa lı́ngua pelo
lá bio inferior, seus olhos opacos e nublados emoldurados por lá grimas
de sangue.
Bash grunhiu, rejeitando o comando pedindo para que se afastasse.
Ele se inclinou e sibilou em seu ouvido:
— De jeito nenhum eu vou icar atrá s de você . Lutarei ao seu lado,
princesa.
— Por mais que eu aprecie isso, vou tentar algo, e icaria grata se
você me desse algum espaço — sussurrou ela de volta, seu tom mais
á spero do que pretendia.
Bash teve que aceitar que ela tinha o poder de um deus. Ela era sua
melhor aposta no momento, gostasse ou nã o.
Ele nã o se mexeu. Na verdade, ele a segurou com mais força.
— Nã o temos tempo para sua teimosia — retrucou ela, icando
frustrada. Seus inimigos monstruosos se aproximavam.
— Nã o vou me mover — rosnou ele de volta. — Você vai ter que me
forçar a abandoná -la, e deveria estar guardando suas forças para eles…
— ele inclinou a cabeça para frente — … em vez de discutir inutilmente
comigo.
Maldito fosse.
Ela deu um suspiro. Teimoso, que macho teimoso.
Aos outros, Margrete ordenou:
— Entrem na fenda e iquem lá . Nã o saiam, nã o importa o que
escutem. Se nã o conseguirmos, entã o corram. — Ela tentaria segurar
aquelas coisas pelo maior tempo possı́vel para dar a seus amigos a
chance de escaparem pela issura e, esperançosamente, do subsolo para
outra saı́da.
Margrete praticamente podia sentir a hesitaçã o de Bay. Pelo canto do
olho, ela o viu se mexendo desconfortavelmente, as mã os cerradas em
punhos. Um momento depois, ele icou quieto e, como uma má scara
deslizando para o lugar, adotou a personalidade apaixonada do lı́der
con iante que era.
— Você s a ouviram! — Bay trovejou, gesticulando rapidamente para
que os outros se dirigissem para a abertura da caverna. — Entrem e
preparem-se para correr. Nã o parem por nada, nã o importa quem ique
para trá s.
— Depressa! — insistiu Margrete.
A caverna em questã o ― se é que poderia ser chamada assim ― mal
permitia espaço su iciente para Atlas entrar, e ela grunhiu quando as
bordas a iadas agarraram sua camisa. Jonah nunca havia se movido tã o
rá pido, mesmo com o tornozelo ainda nã o totalmente curado.
Mila nã o era tã o facilmente in luenciada. Somente quando um dos
soldados sobrenaturais sibilou e ergueu sua lâ mina foi que ela seguiu
na direçã o de Jonah.
Mas os soldados de Surria basicamente mantinham os olhos ixos
nela. Nã o nos outros. Nem em Bay nem em Bash. Todos olhavam para
Margrete, como se ela fosse a ú nica que os interessava. Ela nã o tinha
certeza de como se sentia quanto a isso, mas a essê ncia de Malum
certamente tinha outra opiniã o.
Instantaneamente, seu peito aqueceu e o poder a inundou como uma
arma recé m-a iada para a batalha.
Como normalmente acontecia quando ela passava por uma a liçã o,
ou sempre que sua adrenalina atingia nı́veis quase perigosos, seu poder
a lorava com força. Embora agradecida, Margrete ainda desejava poder
controlar quando esse poder aparecia, mas nã o iria reclamar.
Uma das criaturas com armadura se aproximou, seus olhos injetados
de sangue ixos em Margrete. Ele deu um sorriso largo que mostrava
incisivos amarelados, as pontas anormalmente a iadas. Ela poderia
jurar que um inseto deslizou pelos dentes da frente.
Bash rosnou, o som rivalizando com a mais temı́vel das feras. Ele se
moveu na frente dela, seus olhos voltados para os inimigos, que riram
com prazer enquanto caminhavam em direçã o a eles.
Ela nã o podia deixar Bash distraı́-la, nã o podia deixá -lo icar em seu
caminho. O pensamento a fez fazer uma careta, mas era a verdade.
— Bash. — Margrete puxou sua mã o. Ela teve que lhe dar outro
puxã o antes que ele se virasse para encontrar seu olhar. — Preciso que
con ie em mim.
Suas narinas se dilataram e seus olhos se contraı́ram. Ela temia que
ele rompesse um vaso sanguı́neo. Ele nã o gostou da ideia.
— Já disse que nã o vou deixar você sozinha — retrucou ele.
— E nã o espero que faça isso, mas vou assumir o comando.
Bash hesitou, lutando contra a necessidade inata de proteger. Entã o
por im, por im, recuou com a mais feroz das caretas. Ele encarou
Margrete e fez um aceno de cabeça.
— Eu te seguiria para qualquer lugar. Até para o submundo,
princesa.
Ela apertou a mã o dele, esperando que transmitisse tudo o que nã o
podia dizer. As palavras icaram presas em sua garganta. Felizmente,
Bay tinha colocado a maior parte da tripulaçã o para dentro da caverna,
fora do caminho da luta que estava prestes a acontecer. Os soldados
estavam a quatro metros e meio de distâ ncia, circulando ela e Bash
como uma presa.
Em vez do medo que corria por suas veias segundos antes, pura
adrenalina nã o diluı́da a atingiu como um relâ mpago. Desceu por sua
espinha e irradiou para tocar cada centı́metro dela, com uma força tã o
intensa que quase a deixou de joelhos.
Bash deslizou um braço em volta da cintura dela, segurando-a irme
enquanto ela se ajustava. Sua fundaçã o. Sua rocha.
Talvez ela precisasse de sua ajuda, a inal. Eles trocaram um ú ltimo
olhar.
— Vamos fazer isso, princesa.
Margrete olhou para Bash, cujos lá bios se curvaram em um sorriso
sombrio. Era hora de lutar.
A primeira criatura atacou, sibilando enquanto golpeava o ar com
uma mã o ossuda, vindo em direçã o a ambos com velocidade desumana.
Ela rapidamente empurrou o peito de Bash, enviando-o voando pelo
ar e fora de perigo. Margrete desviou do ataque de seu oponente
colocando sua memó ria muscular em açã o, e ela rapidamente
agradeceu a Adrian por todas as aulas de defesa. Ela tinha sido uma tola
por pensar nelas como tediosas.
Outra criatura disparou para a frente, uma mulher com uma cicatriz
irregular que ia da sobrancelha direita até a ponta do queixo. Uma
podridã o escura saı́a da ferida nã o cicatrizada.
Margrete ergueu a mã o.
A mulher voou pelo ar quando a magia de Margrete a atingiu, e seu
corpo foi arremessado no espaço como uma pena levada pela brisa. Ela
colidiu contra um tronco de á rvore com um estalo nauseante.
Margrete estudou a palma da mã o, abrindo a boca em descrença.
— Santo fogo do inferno, Margrete. — Bash voltou para o lado dela,
seus olhos escuros arregalados com uma combinaçã o de medo e
admiraçã o.
Nã o houve tempo para inspecionar sua mã o, que ainda vibrava com
energia bruta. Dois guerreiros vestidos com a mesma armadura
dourada de aparê ncia antiga dispararam, suas espadas em posiçã o. O
sangue cobria praticamente todo o rosto deles, como uma pintura de
guerra, e pingava livremente no solo escuro enquanto avançavam.
— Eu pego um — insistiu Bash, pouco antes de enfrentar o primeiro
soldado. O rei se moveu mais rá pido do que nunca, mais rá pido do que
ela já o tinha visto se mover. Ela prendeu a respiraçã o quando ele
inclinou o braço para trá s, preparando-se para desencadear o inferno.
Quando colidiu o punho com o metal da armadura do soldado, toda a
loresta pareceu estremecer. Em vez da armadura desviar o soco como
esperado, Bash lançou o soldado voando de costas. A seis metros de
distâ ncia.
Aquilo foi impressionante e alé m do possı́vel, mesmo para um
homem forte como Bash.
— A sua esquerda! — Bash gritou, forçando-a a voltar à realidade.
Ela se virou segundos antes do soldado baixar a espada, e sua palma se
ergueu mais uma vez.
Daquela vez, a luz azul ― a cor do mar no crepú sculo ― explodiu das
palmas e foi direto para as entranhas do homem.
Eletricidade crepitante encheu o ar, e Margrete assistiu enquanto sua
magia queimava atravé s do metal como uma chama em um
pergaminho, destruindo completamente a insı́gnia de Surria. O homem
mal teve tempo de soltar um grunhido antes de cair, o peito devorado
pela luz azul. Sua luz. Seu poder.
Uma onda de tontura a varreu com a aproximaçã o de outro inimigo.
Uma mulher.
Ela se movia com equilı́brio letal, claramente bem treinada e
habilidosa. Avançava com graça felina, embora nã o tivesse o olho
esquerdo. Sangue fresco ainda saı́a da cavidade vazia.
A sua direita, Bash evitou dois atacantes ao mesmo tempo, fazendo o
seu melhor para dar mais tempo a Margrete. Seus punhos eram armas
por si só , e cada golpe que ele dava lançava os soldados de costas.
Margrete se viu sorrindo.
Ela levantou a palma da mã o, uma corrente de fogo e magia
vibrató ria formigando de seu ombro até as pontas dos dedos. Com a
mulher na mira, Margrete se soltou, e a força dentro dela disparou em
direçã o ao alvo, explodindo sua cabeça.
A onda de tontura icou mais pronunciada, e Margrete tropeçou. O
zumbido de eletricidade em suas veias queimou. A sensaçã o era de que
seu poder a cozinhava viva de dentro para fora.
Nã o era um bom sinal.
— Margrete! — Bash gritou quando derrubou um guerreiro sem a
mã o esquerda. Ele deu uma olhada para ela e fez uma careta, a
preocupaçã o torcendo seus lá bios. — Precisamos ir com os outros.
Maldito. Ele sabia que ela estava perdendo o controle ― ou que sua
magia estava diminuindo. E ali estava ela, inalmente, pegando o jeito
també m. Margrete amaldiçoou quando suas palmas brilharam com fogo
azul, embora a luz crepitasse dolorosamente segundos depois.
Bash estava certo. Ela tinha que recuar, por mais que aquilo lhe
doesse. Mais inimigos chegavam, correndo por entre as á rvores, seus
passos ecoando enquanto batiam na terra seca. Logo venceriam a
loresta e os cercariam.
— Vamos! — gritou ela, certi icando-se de que Bash a ouvira antes
de dar meia-volta e disparar para a caverna. Os passos de Bash bateram
alto, e ela nã o parou até que ambos deslizaram para dentro da fenda e
atravé s da abertura estreita.
A escuridã o a envolveu em seus braços e, por um segundo, ela se
perguntou se havia desmaiado, mas a ná usea esmagadora que sentia
era muito real.
Margrete sabia o que tinha que fazer, e tinha energia su iciente para
fazê -lo.
— Vá mais fundo na caverna! — ela comandou Bash. Ele a ouviu sem
olhar para trá s.
Antes que a onda de soldados que se aproximava pudesse entrar na
issura, Margrete ergueu a palma da mã o uma ú ltima vez e mirou bem
acima de suas cabeças. No segundo em que sua magia se libertou, o
caos se seguiu.
Rochas caı́ram ao redor da tripulaçã o enquanto gritavam em alarme.
Ela caiu no chã o, e a escuridã o, do tipo verdadeira, a inundou, forçando
toda a energia de seu corpo. Ela sentiu a terra fria entre os dedos,
sentiu mã os em suas costas. Mas mais notavelmente, percebeu que os
rosnados frustrados dos soldados icaram abafados do outro lado das
rochas caı́das.
Ela apostara certo, e agora estavam presos atrá s de uma rocha
só lida.
ash passou os braços ao redor de Margrete e descansou o queixo no topo de sua cabeça.
Mesmo no escuro, com poeira e detritos ainda caindo, ela se sentia segura.
— Você está bem, princesa? — sussurrou ele em seu ouvido.
Ela nã o estava. Mas estava viva. Todos eles estavam.
— Sim — respondeu, quase sem força. — Mas espero nã o ter
condenado a todos nó s.
— Tem algué m ferido? — Bay perguntou, assumindo o comando
enquanto o rei cuidava de Margrete.
Ela deveria se sentir culpada por roubá -lo de seu dever, mas, para
ser honesta, estava se sentindo egoı́sta, e Margrete queria o rei só para
ela.
Alguns assentimentos resmungados soaram em resposta.
O calor no peito de Margrete queimou, embora diferisse do calor
abrasador de antes, durante a luta. Aquele era um fogo que ela podia
alcançar em sua mente e agarrar.
Ela era o vento, manipulando a chama, e a correnteza forçando a
á gua rio abaixo. Margrete se imaginou tã o claramente, en im
entendendo como aquela coisa extraordinariamente selvagem dentro
dela funcionava.
Ela fechou os olhos, concentrando-se nos ios intrincados da magia
gé lida. Desligando todos os sons e vozes, se concentrou na batida
constante de seu coraçã o, o tamborilar de sua força vital. Aquela era a
chave.
Ela tinha que se conectar com sua pró pria alma.
Segundos, minutos e horas pareceram passar enquanto ela estendia
a mã o e chamava suas chamas lorescentes. Eram tangı́veis, um poder
que ela podia tocar, sentir e manipular. Com os olhos ainda fechados,
Margrete olhou para o poço de magia sagrada dentro dela; a
intensidade pura fez seu coraçã o cair em seu estô mago da maneira
mais emocionante. Por um breve segundo, os batimentos cardı́acos
pararam completamente, e entã o…
O xingamento de Mila ecoou por toda a caverna.
— Deuses sagrados — sibilou Bay.
— Bem, isso é conveniente — Jonah brincou.
— Sim, muito conveniente. Mas estamos presos aqui por causa dela,
lembra-se? — Mila resmungou em resposta.
— Ainda muito incrı́vel. Nã o vejo você fazendo nada, Mila.
— Basta — Bay silenciou o par que discutia. — Margrete?
Ela ouviu que a chamavam. Ouviu a preocupaçã o no tom da voz. O
maravilhamento. A admiraçã o. O medo.
Bay continuava a temê -la, quando se tratava de seus poderes. Ela
odiava aquilo.
Margrete abriu os olhos.
Bash se ajoelhou diante dela, seu rosto brilhando com uma luz
branca pá lida. Luz que aparentemente a lorava dela.
Aquele cordã o de magia que ela tinha visto? Ela realmente o tocara e
desejara ao seu comando. E ela tinha se transformado em uma tocha
humana viva.
Bash a olhou nos olhos, a magia dela perfurando as poças escuras e
destacando as estrelas internas. Ele se ajoelhou diante dela, na frente
de seu povo, sua tripulaçã o, um rei de joelhos. Bash nã o parecia se
importar. Poderia muito bem estar apenas os dois naquela caverna.
Margrete quebrou o momento e agarrou seu braço, incitando-o a se
levantar. Ele a encarava sem piscar.
— Já te disse o quã o incrivelmente deslumbrante você é ? — Bash
embalou seu rosto entre as mã os e inclinou a testa contra a dela. Ele
soltou uma risada suave. — Eu sempre disse que você era minha luz,
me guiando para casa. Parece que eu quis dizer isso literalmente.
Daquela vez, quando o calor inundou seu peito, veio de um tipo
diferente de magia.
Bash recuou para dar um beijo carinhoso na ponta do nariz dela.
— Você nos salvou — disse ele, apontando para as rochas caı́das.
Para onde ela os bloqueou.
— Di icilmente. — Ela tentou virar o rosto, mas Bash nã o a deixou
desviar o olhar. Sua luz vibrou antes de pousar nas paredes rochosas da
caverna.
— Nã o. Nó s nã o terı́amos como enfrentar… o que quer que aquelas
coisas fossem. — Suas sobrancelhas se franziram. — Você nos deu um
tempo que nã o tı́nhamos e, por causa disso, salvou todos aqui.
Bash olhou incisivamente para cada membro da tripulaçã o.
— Você s todos deveriam estar agradecendo a ela agora. Nã o olhando
para suas botas ou fazendo comentá rios sarcá sticos. — Ele dirigiu
aquela ú ltima parte para Mila. Para seu cré dito, ela parecia realmente
envergonhada.
Bash estendeu a mã o para Margrete e entrelaçou seus dedos. Como
uma vela, seu brilho dançava nas paredes enquanto ela se movia, e um
brilho incandescente brincava no rosto da tripulaçã o perplexa.
— Sabemos que Darius nos queria aqui. Sabemos que esse lugar está
cheio de magia das trevas. E sabemos que existem forças inimaginá veis
por aı́ que nos querem mortos. A insı́gnia de Surria na armadura
daqueles soldados deixou isso claro. — A voz de Bash icava mais forte
a cada palavra, e o rei que Margrete conhecia reapareceu. Seu coraçã o
amoleceu com a visã o. — Mas també m temos a magia de um deus do
nosso lado — disse ele, inclinando a cabeça em direçã o a ela. — Isso
nos torna igualmente formidá veis.
Margrete captou seu olhar e eles se entreolharam. Os olhos de Bash
giravam com emoçõ es diferentes, mas sua con iança feroz era a que
mais se destacava para ela. Sua lealdade.
Contra a vontade dela, seus lá bios se curvaram.
— Precisamos ir mais fundo na caverna. Vermos se há uma saı́da do
outro lado — Bash instruiu. — Mas eu duvido que a rocha só lida nos
deixe a salvo da intençã o da ilha, entã o iquem alertas e mantenham o
foco.
— Você s ouviram o rei. Hora de se mexer. — Bay deu um passo à
frente, e a luz de Margrete se estendeu até afetuosamente roçar nele.
Para seu imenso cré dito, Bay apenas se encolheu antes de lhe dar um
sorriso cauteloso.
Bash caminhou ao lado dela enquanto ela se virava para o tú nel
ú mido que os levaria à liberdade. O rei Azantiano permaneceu em
silê ncio e irme, seus passos retumbantes um lembrete de que ele
escolhera segui-la no escuro, sempre con iando nela, sem condiçõ es.
Assim como ela faria por ele… quando a hora inevitavelmente
chegasse.
— Obrigada — murmurou ela suavemente, segurando a mã o de
Bash. Estava tã o frio que queimava.
Bash zombou.
— Eu nã o diria nada que nã o quisesse. Você já deve me conhecer,
Margrete. — Ela se virou a tempo de vê -lo sorrir. Aquilo a lembrou de
seus sorrisos antes do ataque. Antes de ser transformado pelo mar.
Antes que ele começasse a se perder.
O olhar dele vagou sobre sua forma eté rea, hipnotizado.
— Pare de olhar para mim assim — pediu ela, suas bochechas
esquentando. Os joelhos de Margrete estavam fracos, mas suspeitava
que tinha algo a ver com o olhar potente de Bash. De todas as coisas, ela
notou uma pitada de desejo em seus olhos.
— Sempre vou olhar para você assim, princesa. Aquela sua pequena
exibiçã o aqueceu meu sangue — respondeu ele, brincando, embora
tenha cedido e virado a cabeça de volta para a frente. — E posso olhar o
quanto quiser — acrescentou com uma sobrancelha erguida,
desa iando-a a questioná -lo. Ela nã o o fez.
Contanto que ela pudesse olhar de volta.
Margrete balançou a cabeça e o tú nel brilhou com seu esplendor. A
luz que ela emanava dançava pelas paredes, formando padrõ es que
lembravam o re lexo do mar. O mais claro dos azuis ondulava contra
traços inos de azul-marinho, fazendo com que todo o tú nel parecesse
balançar.
Deuses. Levaria algum tempo para se acostumar com aquilo. Se
algué m pudesse se acostumar a brilhar. Margrete duvidava disso.
Em vez de negá -lo, ela se deu um momento para se aconchegar mais,
se aproximando dele enquanto caminhavam. Ele passou o braço por seu
quadril, e seus dedos brincaram no có s de sua calça. Instantaneamente,
seus pensamentos se tornaram inapropriados, o que parecia
impossı́vel, dadas as circunstâ ncias, mas ela sentiu falta dele e de seu
toque quente. No entanto, era muito mais do que isso ― ele a acalmava.
Acreditava nela tã o profundamente que sua fé inabalá vel a forçava a
acreditar em si mesma. Ela sentia isso cada vez que ele a segurava ou a
olhava nos olhos com pura adoraçã o.
Ningué m jamais olhara para ela de tal maneira ― como se ela fosse a
lua iluminando o mundo abaixo.
Ela nunca tomaria aquele olhar como garantido.
Eles caminharam por cerca de meia hora, em silê ncio e perdidos em
pensamentos, quando uma bifurcaçã o apareceu. Duas passagens
estreitas, igualmente sinistras e quase idê nticas, rami icavam-se em
direçõ es opostas.
Claro, todos pararam e se viraram para ela.
Em momentos como aquele, ela desejava que outra pessoa pudesse
pegar emprestada sua magia. E se escolhesse errado e os matasse? E se
escolhesse a passagem que levava a um im horrı́vel em vez da fuga que
eles procuravam?
Sim, ela de initivamente nã o se invejava.
Margrete inclinou o queixo e relutantemente soltou a mã o de Bash.
Fazendo o seu melhor para bloquear os sussurros de uma cé tica Mila e
Jacks cochichando atrá s dela, Margrete deu um passo em direçã o ao
tú nel à esquerda. Cheirou o ar.
Umido. Almiscarado. Podre.
Rigidamente, ela virou para a direita. O ar que subia até seu nariz
tinha um cheiro mais fresco, mais salgado. Cheirava como uma saı́da.
Ou talvez fosse apenas uma esperança tola.
— Nó s vamos para a direita — disse ela, cheia de falsa con iança.
— Cheira… mais fresco — Dani opinou, surpreendendo-a. Margrete
virou-se para a jovem e sorriu. A marinheira havia sentido os soldados
de Surria na loresta mais cedo, e agora sentia a mesma atraçã o em
direçã o à passagem da direita. Era algo que Margrete teria que explorar
em outro momento, quando nã o estivessem à beira da morte.
Ela nã o hesitou em se mover, e os outros seguiram obedientemente.
A cada passo, a con iança em sua decisã o crescia. Nã o só o gosto do ar
estava bom, mas uma brisa suave lutuava para refrescar sua testa
ú mida. Aquilo a lembrou de como os ventos em Azantian acariciavam
seu corpo sempre que o sol aquecia sua pele.
Ela sempre comparou seus poderes a um sexto sentido. O cabelo se
eriçava em sua nuca, e formigamentos desciam por sua espinha. Eles
falavam com ela de uma forma que nã o exigia palavras, indo muito alé m
da intuiçã o. Quase como o zumbido de uma mú sica que só ela conhecia.
Sua luz os guiou atravé s do tú nel ú mido e, por im, a passagem ― que
nã o devia ter mais de um metro e vinte de largura ―,
misericordiosamente, se abriu de forma a se assemelhar ao tamanho de
um cô modo. Eles continuaram por mais uma hora insuportavelmente
silenciosa. Depois mais uma.
Nada mudou.
O tú nel nã o revelou uma issura para o mundo exterior. A luz natural
nã o iluminava as pedras, e o ar tinha um almı́scar que a lembrava de
que estavam no subsolo.
Entã o, quando ela pensou que nã o aguentaria mais, algo mudou.
Uma brisa gelada, arrepiante, soprou no rosto de Margrete. Ela
estremeceu e entã o… sorriu. Sua frequê ncia cardı́aca acelerou com seus
passos cada vez mais rá pidos, e ela decolou em uma corrida carregada
de pura adrenalina. Como a sensaçã o da luz do sol em sua pele apó s
meses de inverno e cé u nublado, uma pequena semente de esperança
criou raı́zes.
Bash a chamou, assim como Bay, mas ela nã o parou.
Uma melodia tocava em sua cabeça, uma que só ela podia ouvir, e
soava como sinos e o assobio do vento, de ondas batendo e gotas
frescas de chuva caindo dos cé us.
— Margrete! — Bash estava logo atrá s dela, suas botas batendo na
pedra dura para acompanhá -la.
Ela virou a esquina, levando seu brilho com ela, e entrou na á gua até
os tornozelos.
Margrete sibilou com o contato. Como acontecia sempre que tocava
o mar, um raio de eletricidade subiu dos dedos de seus pé s até o topo
da cabeça. O poder de Malum vibrava com seu batimento cardı́aco, e ela
liberou sua magia com uma expiraçã o. A á gua a seus pé s ondulava e
borbulhava, luindo para longe de suas botas. A ondulaçã o se
transformou em uma onda suave, e levou um pouco de sua luz com ela.
Ela engasgou. A á gua ― que brilhava em um azul suave quando ela a
tocou ― se transformou em uma sa ira brilhante cuja pureza rivalizaria
com a mais opulenta das gemas.
A medida que a magia se espalhava, alcançando cada vez mais fundo
na caverna e atravé s da vasta extensã o da piscina, Margrete percebeu as
manchas prateadas incrustadas nas paredes. Elas cintilaram, brilhando
como mil pequenas estrelas. Enquanto ela olhava abertamente, a luz
mı́stica continuou se espalhando, continuou se movendo como se um
im nã o pudesse ser alcançado.
— Eu diria que é bonito, mas isso parece um eufemismo — Bay
murmurou, de repente parando à sua direita. Margrete virou-se, e viu
que os olhos do amigo estavam arregalados e cheios de puro espanto.
Nenhum deles esperava… aquilo. Até Mila lançou-lhe um olhar
hesitante do que ela se atreveu a acreditar que era aprovaçã o. Aquilo
dizia mais do que qualquer coisa para ela, que sentiu a tensã o entre elas
aliviar.
Margrete reconheceu a essê ncia do mar no ar e sentiu sua in luê ncia
na á gua lambendo suas botas. Ela o ouviu chamá -la e sussurrar em seus
ouvidos. Sentiu como ele desejava ser tocado, e como implorava para
ela entrar mais fundo na á gua.
E, ainda assim, aquela melodia eté rea que só ela podia ouvir
continuou a tocar. Eles estavam perto do mar aberto, ela sentia em sua
medula, e a emoçã o de chegar perto deu-lhe uma nova vida.
Ela estava em casa.
— Devemos descansar aqui — disse Atlas, içando-se nas margens
pedregosas. Uma saliê ncia cercava a piscina, larga o su iciente para eles
se encostarem nas paredes e se espalharem com conforto. Margrete nã o
se importava, desde que estivessem perto. — Nã o sabemos quando
poderemos descansar novamente, e, pelos meus cá lculos, já passou do
pô r do sol — a guerreira loira acrescentou, em um tom todo
pro issional.
Todos os outros subiram no parapeito enquanto Margrete
permanecia enraizada no lugar. Ela nã o se mexia, mal respirava. Seus
olhos se fecharam em algum momento, porque uma mã o gentil em seu
ombro fez com que eles se abrissem.
Ela nã o brilhava por dentro como antes, e sua pele voltara ao
bronzeado habitual. Margrete nã o teve tempo de perder sua luz, porque
dois braços grossos envolveram sua cintura por trá s.
Bash icou em silê ncio. Ele estava apenas lá, segurando-a enquanto a
magia zumbia em seu sangue e seu coraçã o batia forte. Seus braços a
mantiveram irme, e sua respiraçã o se juntou à mú sica que tocava em
sua cabeça.
Pela primeira vez desde o desembarque naquela ilha esquecida
pelos deuses, Margrete sentiu uma sensaçã o de paz. Ela nã o era
ingê nua a ponto de pensar que aquilo iria durar, mas, por um tempo,
planejava se deleitar.
odos dormiam ― deitados nas margens de pedra, alguns roncando, outros abraçados a
si mesmos.
Margrete se desvencilhou dos braços de Bash. Eles icaram apoiados
em uma parede ú mida, a jaqueta de Bash descansando nos ombros
dela. Ele insistira que ela a usasse para se proteger do frio. Como se
pegar um resfriado fosse a coisa mais assustadora que poderia
acontecer. No entanto, nã o protestara muito. Ela tinha o cheiro dele, e,
de vez em quando, ela a levava ao nariz e inalava seu aroma
amadeirado e marinho. Mas agora, precisava de mais do que sua
jaqueta.
Eles tinham que conversar.
Margrete se levantou silenciosamente e deu a Bash um olhar de
entendimento, que ele retribuiu com um aceno sutil. Sem dizer uma
palavra, ela se abaixou e tirou os sapatos. Tirou a camisa e a calça,
icando só com as roupas de baixo. Ela ouviu as botas de Bash baterem
no chã o segundos depois. Ele parecia entender o que ela tinha em
mente.
A saliê ncia em que todos descansavam era pequena demais para a
conversa particular, e suas vozes seriam ouvidas. Felizmente, nã o era a
ú nica opçã o.
Mais fundo na cavidade, onde as rochas salientes caı́am sobre a
piscina, escondia-se outra caverna. Havia algumas pequenas grutas
quase escondidas a olho nu, mas a luz do lugar, ou o que quer que fazia
aquele lugar brilhar, iluminava as fendas e depressõ es nas paredes
rochosas.
Afundou até os ombros na á gua confortavelmente fresca e divina, a
piscina trabalhando para fortalecer o domı́nio de seu poder. A conexã o
sustentou sua magia e reabasteceu o poço que havia sido drenado
depois da longa trilha por dentro da colina. Ela exigia seu toque, e
suspirou de alı́vio antes de olhar por cima do ombro.
Bash tinha descartado a camisa e a calça em algum lugar nas
margens, e estava atrá s dela, a luz sobrenatural da piscina dançando em
sua pele.
E em suas escamas.
Margrete engoliu em seco. Desejou que ele nã o tivesse notado.
— Venha — foi tudo o que ela disse, nadando para longe da
tripulaçã o adormecida, sua visã o voltada para uma gruta isolada à
direita. Um respingo soou, e ela sabia que Bash nã o hesitara em
mergulhar.
Quando as rochas salientes surgiram à frente, Margrete afundou no
ú ltimo minuto antes da colisã o, deslizando pelo azul-claro e luminoso.
Ela emergiu do outro lado sentindo-se rejuvenescida, como se a breve
submersã o a tivesse alimentado. Talvez tivesse. Ela estava aprendendo
mais e mais sobre seus poderes naquela ilha infernal, enquanto que, em
Azantian, ela se sentia tã o perdida. Nã o fazia sentido.
Uma parte dela nã o conseguia negar o fato de que ela tinha uma
conexã o com aquele lugar. Como se sempre tivesse estado destinada a
estar ali.
Bash subiu à superfı́cie com um barulho alto, seu cabelo preto
desgrenhado grudado nas tê mporas enquanto ele sacudia as gotas de
seu rosto. Com um sorriso esperançoso de derreter o coraçã o, ele
cautelosamente nadou até ela, parando a centı́metros de distâ ncia.
Ele estava sendo tã o cuidadoso com ela, especialmente quando a
tocava; certamente nã o foi com a mesma con iança fá cil de antes do
naufrá gio.
Margrete prendeu a respiraçã o quando Bash levantou a mã o, as
pontas dos dedos parecendo escurecer ainda mais. Seus lá bios se
estreitaram e a mandı́bula se apertou, mas ele lentamente levou a
palma da mã o à bochecha dela. Seu olhar acompanhou o movimento
das mã os. Eram a prova de que ele havia se transformado em algo
diferente.
— Está tudo bem, Bash — Margrete assegurou, tremendo por um
motivo completamente diferente. Nã o importava a aparê ncia. A
proximidade de Bash tinha seu jeito de desmontá -la.
— Eu… — Bash deixou cair o braço e foi para trá s, franzindo a testa
com frustraçã o e incerteza. Margrete odiava aquilo. Odiava a distâ ncia.
Odiava o que aquele lugar estava fazendo com eles. — Eu nã o con io em
mim mesmo quando estou com você . Me sinto… errado.
— Por quê ? — perguntou ela, se aproximando. A á gua tocava o topo
de seus seios. — Sou eu. Você nunca deve ter medo de estar perto de
mim, e vamos dar um jeito nisso tudo, lembra-se?
Ela viu o nó em sua garganta quando ele engoliu em seco.
— Você nã o entende, Margrete. Nã o lhe contei sobre tudo o que
aconteceu comigo lá fora, e nã o queria dizer nada na frente de Bay ou
dos outros, mas…
— Entã o me diga agora — insistiu ela, suavizando o tom. — Lembre-
se, nada do que você disser vai mudar as coisas. Entã o coloque para
fora. — Ela estalou os dedos, esperando arrancar um sorriso dele. Mas
falhou.
Bash fechou os olhos com força. Quando os abriu novamente, focou
logo acima de sua cabeça, nã o em seus olhos.
— Eu disse a você que Darius me visitou, mas algué m, bem, alguma
coisa, també m o fez. Uma nymera. Ela tinha escamas e os olhos escuros
como breu pertencentes a uma nymera, mas també m tinha pernas e
dizia saber usar magia das trevas. — Bash olhou por cima do ombro
dela, sua mandı́bula apertada. — Ela me chamou de ilho.
Os olhos de Margrete observaram seu torso, seu pescoço. Aquelas
escamas pretas que pertenciam ao mais astuto dos ilhos do mar.
— Você acredita nela? — inalmente perguntou, assim que reuniu
coragem. Nã o sabia quase nada sobre nymeras, mas nunca vira
qualquer mençã o sobre elas nos livros. Elas só nasciam assim. O que
signi icava…
— Sim, acredito. Contra todo o pensamento racional e a ló gica, nã o
posso deixar de acreditar na a irmaçã o dela. — Bash passou a mã o pelo
cabelo. Ele fez uma careta quando alguns dos ios pretos caı́ram em
seus olhos. — Isso explicaria… — ele fez um sinal para si mesmo — …
por que estou assim.
— Mas por que isso estaria acontecendo agora? E por que nã o
aconteceu quando você era jovem? — Essa era a parte que nã o fazia
sentido. Bem, nã o apenas essa parte. Deuses, havia tantas coisas que
ainda nã o estavam claras.
— Nã o faço ideia — confessou ele, a frustraçã o evidente em seu
rosto. — Tudo o que sei é que… sinto que matei algo lá na loresta.
Magrete icou quieta.
— Mas nã o consigo me lembrar de todos os detalhes. Só tenho
imagens, lashes. E isso me assusta pra caralho.
Assim como na noite em que ele desceu à caverna do palá cio e falou
com aquela voz…
— Era ela? — Margrete perguntou ao pensar na Caverna Adiria. Eles
estavam de frente um para o outro, perto o su iciente para se tocarem,
mas nenhum dos dois se aproximava. Por mais que ela quisesse agarrá -
lo e abraçá -lo, aquela conversa era importante. — Naquela noite,
quando você nã o conseguia se lembrar de como acabou embaixo do
palá cio… — continuou enquanto ele apenas ergueu uma sobrancelha.
— Você estava conversando com algué m e depois me disse que estava
ouvindo uma voz.
Bash exalou bruscamente pelo nariz.
— Era ela.
Margrete assentiu, abordando o assunto com cuidado.
— E agora? O que ela quer? — Tentou ao má ximo parecer calma,
indiferente até , mas sua voz tremia um pouco.
— Ela nã o disse, mas vou arriscar e dizer que nã o é bom. — Os
lá bios de Bash se ergueram, rı́gidos.
Foda-se.
Margrete chegou bem perto e envolveu os braços ao redor de seu
torso nu. Ele estremeceu quando ela descansou a cabeça em seu peito,
logo acima de seu coraçã o palpitante. Aquilo era tudo o que importava,
aquela pulsaçã o selvagem e forte.
— Eu te assusto? — Bash perguntou contra a curva de seu pescoço,
sua voz suave, insegura.
Ela ergueu a cabeça.
— Tenho medo por você , Bash, mas nunca tenho medo de você .
Ele já devia saber como ela era.
— Mas e se eu mudar mais, e se nã o conseguir controlar os
pensamentos sombrios…
Margrete levou um dedo aos lá bios dele.
— Acontece que eu acho que há beleza no sombrio. E sua escuridã o
nã o me assusta. Nunca assustou.
Ela tinha se apaixonado tã o profunda e irrevogavelmente por ele. O
amor, do tipo verdadeiro, nunca é fá cil. E preciso trabalhar por ele,
cultivar, sofrer nos momentos difı́ceis. Isso que faz dele precioso ― o
compromisso inabalá vel com outra alma, por mais falha que ela seja.
— Isso deveria te assustar. — A mandı́bula de Bash apertou, e ele foi
desviando o olhar. Ela agarrou o queixo dele.
— Nã o. Nada disso — disse ela, estalando a lı́ngua. — Preciso
repetir? Você nã o foge de mim, e eu nã o fujo de você . E se está
preocupado com sua escuridã o tomando conta de você , saiba que nã o
vou permitir isso. Nã o vou permitir que nada tire você de mim.
Principalmente porque sou egoı́sta demais para isso. Alé m disso, posso
ser luz su iciente para nó s dois. Acho que provei isso hoje — arrematou
ela, agarrando-o com mais força.
Assim como ele era sua fundaçã o, ela poderia ser suas paredes,
mantendo-os juntos.
Ela tinha certeza de que eles mudariam com o tempo. Mas, naquele
momento, ela poderia impedi-los de quebrar.
— Eu já disse isso antes e provavelmente direi muitas e muitas vezes
no futuro, e nã o apenas porque posso fazer algo que te aborreça, mas
nã o te mereço. — Ele balançou a cabeça em descrença, e Margrete
soltou uma risada gutural. — Só você daria uma olhada em mim e nas
minhas escamas e consideraria como se isso fosse apenas um pé ssimo
corte de cabelo. — Seu sorriso rı́gido afrouxou um pouco, assim como a
tensã o nos ombros. — Nã o posso me livrar de você , posso? — Entã o,
sua covinha solitá ria apareceu, e Margrete guardou a visã o dela na
memó ria.
— Você é absolutamente insuportá vel — disse ela, tocando o nariz
dele. Queria tanto que o sorriso dele icasse em seu rosto. — Mas,
independentemente disso, você ainda é meu.
O silê ncio caiu. A respiraçã o deles se combinou, uni icando o ritmo.
Tornou-se uma.
Algo brilhou nos olhos de Bash, e eles icaram incrivelmente escuros.
Ela poderia se perder olhando muito profundamente para eles ―
mapeando todas as manchas prateadas, as constelaçõ es que ela
vislumbrara quando a luz os atingia diretamente. O calor se acumulou
em seu nú cleo, afugentando o frio das á guas.
— E você é minha estrela do norte, sempre me guiando para casa. —
Ele baixou o queixo. — Minha linda rainha.
Margrete se acalmou. Ela nã o era nenhuma rainha. Pelo menos, nã o
se sentia como uma, e alé m disso, nã o tinha pensado muito nisso.
As mã os de Bash se moveram até seu traseiro, e, em um movimento
rá pido, ele a pegou nos braços. Ela esqueceu quase todo o resto, exceto
como os dedos dele cravaram em sua pele enquanto ele a agarrava com
força. Seu olhar semicerrado queimou suas entranhas, e ele parecia
pronto para devorá -la inteira. Nã o que ela achasse ruim.
— Me dê sua escuridã o. Sua luz. Seu amor. Me dê tudo. Todas as
peças que considera despedaçadas. Todas as suas partes que esconde
do mundo — sussurrou ela, inclinando-se para dar um beijo carinhoso
em seu pescoço, logo abaixo da orelha e acima de uma escama ô nix
pontiaguda. — Eu os quero para mim, porque você conquistou meu
coraçã o em meus dias mais sombrios e o manteve seguro quando a luz
surgiu novamente. Con io em você com todos os meus dias, todas as
minhas noites e todos os momentos do crepú sculo no meio.
Bash levou a mã o à nuca dela e a segurou no lugar. Ele parecia
querer dizer alguma coisa, sua boca se abrindo, mas entã o a fechou e
balançou a cabeça. Em seguida a puxou para seus lá bios, que eram
suaves, macios e gelados, o frio fazendo có cegas nela de uma forma que
ela gostava muito. Se perguntou qual seria a sensaçã o em outro lugar…
Bash gemeu quando ela beliscou seu lá bio inferior, apertando seu
pescoço de forma feroz. Em resposta, ela entrelaçou os dedos pelos
cabelos dele e puxou os ios, sem se incomodar em ser gentil. Com ele,
poderia ser ela mesma, e nã o escondia nada.
— Caramba, eu senti sua falta — Bash murmurou entre beijos. Ele
arrastou os lá bios para cima e para baixo em seu pescoço, chupando a
pele macia e fazendo seu corpo inteiro estremecer. Ela arqueou com o
toque em sua boca, saboreando a sensaçã o.
— Nunca pensei que sentiria falta de algué m — disse ele, recuando.
Ela soltou um gemido frustrado. — E irritante e maravilhoso ao mesmo
tempo.
— Essa é a descriçã o perfeita para você — respondeu ela, sorrindo.
— Embora agora esteja sendo totalmente irritante.
A boca dele nã o estava em seu corpo, e ela ainda estava com as
roupas ı́ntimas.
Nada disso a agradou.
— Que impaciente — repreendeu ele, movendo-os para a parede
mais pró xima. — Eu gostaria de ver o quã o ansiosamente você sentiu
minha falta.
— Tenho certeza de que faria maravilhas para seu ego — suspirou
ela, inclinando-se para beijá -lo. Ele se afastou, balançando a cabeça
provocativamente.
Ela rosnou.
— Você quer minha escuridã o, princesa? Tudo de mim?
Margrete assentiu avidamente.
— Entã o me mostre.
A voz dele era grave, as palavras profundas indo direto para seu
nú cleo. Ela icou intoxicada só por sua voz.
Um canto de seus lá bios se ergueu quando ela o soltou e icou na
ponta dos pé s. Ele icou em perfeita atençã o, olhando para ela como o
predador incrivelmente bonito que era.
Mantendo seu olhar, ela tirou a blusa ― lentamente ―, apreciando o
quã o forte ele apertou sua mandı́bula, quã o rı́gido ele se manteve. Ela
arrancou o tecido ino e o jogou de lado. Sua calcinha foi em seguida, e o
olhar de Bash derreteu.
— Sua vez, pirata.
Os mú sculos do abdô men dele se esticaram quando ele se abaixou e
se libertou de sua roupa de baixo. A frequê ncia cardı́aca dela dobrou, e
triplicou quando focou toda a atençã o nela, seus olhos se movendo
avidamente pela extensã o de seu corpo. Ela teve que lutar para evitar
baixar as mã os dentro da á gua. Para sentir sua dureza crescente.
O ar ondulou com eletricidade, e nã o apenas o tipo de divindade e
magia. Margrete sentiu seus poderes despertarem enquanto seu desejo
saı́a do controle. A necessidade por Bash alimentou sua magia, e as
á guas se curvaram ao redor deles, subindo no ar. Elas cercaram o casal
em uma parede imó vel, protegendo o mundo exterior do que estavam
prestes a fazer.
Bash olhou para a á gua subindo, um sorriso diabó lico aparecendo.
Antes que ela pudesse se lançar contra ele do jeito que queria, ele
estava sobre ela, estendendo a mã o para agarrar seus pulsos. Ele os
segurou acima da cabeça, olhando para ela com um olhar tã o escuro
que suas pupilas quase eclipsaram o branco de seus olhos.
Ela respirou fundo, e sua parede subiu mais alto em resposta.
Bash segurou os pulsos dela com apenas uma mã o e se inclinou para
sussurrar em seu ouvido, seu queixo barbudo se esfregando em sua
bochecha.
— Eu deveria ser um cavalheiro e fazer você gozar primeiro nos
meus dedos, ou talvez na minha boca, mas estou muito, muito
impaciente.
Margrete arqueou-se contra ele, lutando contra o aperto em seus
pulsos, querendo desesperadamente tocá -lo. O bastardo sorriu.
— Homem maldoso.
Bash baixou a cabeça e tomou um mamilo na boca. A frieza de seus
lá bios era tã o deliciosa quanto ela imaginara que seria. Ele chupou o
bico pulsante, girando a lı́ngua ao redor do botã o rosado, enquanto sua
mã o livre amassava o outro seio, os dedos explorando com facilidade.
Entã o passou os lá bios para o ombro, o pescoço, movendo-se para
cima e para baixo em sua pele como um homem que nã o sabia por onde
desejava começar primeiro. Ela se pressionou contra ele, desejando sua
boca nela, exigindo mais. Seu nú cleo doeu quando ele soltou um som
profundo e baixo em seu pescoço, e ela tremeu com prazer delirante,
sabendo que estava fazendo com que ele se soltasse.
Quando ele se levantou, ela capturou seus lá bios e puxou o inferior
entre os dentes; em seguida beijou o lá bio dolorido. Ele rosnou
enquanto sua lı́ngua dançava com a dele, duelando pelo controle,
ambos querendo nada mais do que conquistar o que o outro dava
livremente.
Bash murmurou o nome dela contra seus lá bios enquanto a
levantava contra a parede, seus braços apoiando suas costas,
protegendo sua carne nua de raspar contra a rocha irregular. As mã os
de Margrete caı́ram por seus ombros largos, cravando as unhas nele,
segurando-o no lugar. Ela podia sentir a necessidade dele de pressionar
contra sua entrada, uma provocaçã o do que estava por vir. Margrete
tentou se impulsionar para baixo, querendo ser preenchida, mas Bash a
segurou irmemente no lugar, cavando os dedos em seus quadris.
Por um breve segundo, a hesitaçã o cruzou suas feiçõ es.
Ele duvidava que ela o quisesse em tal estado.
— Eu quero você — suspirou ela, sabendo o que ele precisava ouvir.
— Por favor, Bash. Deuses, eu preciso…
Ele se impulsionou nela, enchendo-a completamente e cortando sua
sú plica. Ela gemeu em seu beijo, segurando em seus ombros enquanto
ele se afastava, apenas para mergulhar em seu calor mais uma vez. Ele a
torturou com movimentos lentos, um ataque sem pressa, levando-a à
beira, mas nã o perto o su iciente para chegar ao á pice.
Margrete agarrou o cabelo da nuca dele e puxou, beijando-o como se
fosse a ú ltima vez. Suas mã os percorriam o peito dele, seu torso
ondulando, sentindo como seus mú sculos icavam tensos com cada
impulso apaixonado. Ela sussurrou o nome dele na concha de sua
orelha, e Bash estremeceu quando baixou a boca para adorar seu
pescoço, sua mandı́bula, suas bochechas.
Serpenteando a mã o entre eles, Margrete sentiu onde estavam
unidos, os dedos deslizando até seu pê nis. Ele soltou um gemido
engasgado, e seu nú cleo apertou, a sensaçã o dele deslizando dentro e
fora dela trazendo-a mais perto do á pice.
— Eu quero você para o resto dos meus dias — murmurou ele,
entrando nela. — Eu quero que nunca saia do meu lado. — Outro golpe
forte. — Quero você na minha cama. — Ela gemeu quando ele levou os
dedos ao á pice de suas coxas e os moveu habilmente contra seu feixe de
nervos. Ela estava tã o perto. — Mas acima de tudo… eu quero você no
meu trono. — Ele mergulhou nela com força su iciente para fazê -la
subir pela parede.
Margrete amaldiçoou. Ela suspirou o nome dele. Rezou para os
deuses.
Bash riu sombriamente, e os olhos de Margrete se fecharam. Ela
notou brevemente o quã o alto as á guas haviam subido ao redor deles,
envolvendo-os em sua pró pria bolha.
— Isso é um sim, princesa?
Ela nã o conseguia falar. Ele esperava que ela falasse? Margrete
pensou que poderia estar balançando a cabeça para cima e para baixo,
mas nã o tinha certeza.
— Preciso de palavras, Margrete. Diga.
— Eu… — Ela queria gritar sim a plenos pulmõ es, mas algo a
impediu. Talvez fosse porque eles talvez nã o saı́ssem daquela ilha vivos,
ou inteiros, mas ela tinha a sensaçã o de que as coisas nã o terminariam
bem.
— Margrete? — Os movimentos de Bash diminuı́ram, e sua testa
franziu. Ela praticamente podia sentir a ansiedade saindo dele em
ondas.
Ele queria que ela fosse sua rainha. Que se casasse com ele. E mesmo
que isso fosse tudo que ela mais quisesse, Bash tinha sofrido muito
durante aqueles ú ltimos dias, e ela nã o queria que ele izesse o pedido
quando temiam por suas vidas.
— Faça essa pergunta novamente quando sairmos desta ilha — disse
ela, ofegante. — Quando sobrevivermos e estivermos em casa, em
Azantian.
O olhar de Bash icou nublado, e um lampejo de má goa apertou suas
feiçõ es, mas ele forçou um sorriso e assentiu antes de acelerar o ritmo.
— Vou perguntar todos os dias até que você diga que sim —
prometeu, beijando seus lá bios. Ela sentiu que se aproximava da
liberaçã o, e suas pernas se fecharam em volta da cintura dele,
preparando-se para a queda.
— Eu nã o esperaria nada diferente — falou ela, movendo os quadris
no ritmo dele.
Deuses, ela amava aquele homem.
Bash mergulhou em seu nú cleo como um louco. Suas palavras eram
uma promessa de resposta, e aquilo era bom o su iciente para ele. Por
enquanto, pelo menos.
— Te amo — murmurou ele, bem quando faı́scas brilharam atrá s de
suas pá lpebras e arrepios desceram por sua espinha. Os lá bios de
Margrete se separaram em um grito silencioso, seus cı́lios esvoaçando
contra a maçã do seu rosto. Ela icou tensa quando inú meras ondas de
euforia a invadiram, levando-a para baixo, roubando seu ar.
Ela o segurou enquanto encontrava seu prazer, observando-o
encontrar o dele com um gemido retumbante. As paredes da gruta
pareceram tremer quando ele se desfez, e as á guas faiscaram em um
azul vibrante.
Quando ambos pararam, pressionados um contra o outro e
ofegantes, Margrete segurou o rosto de Bash entre as palmas das mã os.
Ela baixou a cabeça e o beijou docemente.
— Mal posso esperar pelo dia que eu disser sim.
Eles icaram assim ― emaranhados um no outro ― até que as á guas
dela caı́ram e a luz da piscina se transformou em um brilho opaco.
Margrete se certi icaria de que chegaria o dia em que voltariam para
Azantian, quando as crianças do mar fossem mortas e o mundo
estivesse seguro.
Ela diria sim a ele, entã o, e seria uma resposta livre de angú stia e
cheia de esperança.
Mas, mais importante, Margrete diria sim quando matasse o deus
que queria tirar seu rei dela.
Darius tinha que morrer.
E seria ela que o faria.
— corde, rei.
Uma bota cutucou Bash nas costelas, e ele recuou ao mesmo tempo
em que seus olhos se abriram. Seus braços estavam vazios, livres da
mulher com a qual adormecera abraçado, e acima dele, elevando-se
como o bastardo perverso que era, estava Darius.
O Deus do Mar se ajoelhou, inclinando a cabeça e fazendo uma
careta, torcendo os lá bios.
— Algué m parece estar piorando — considerou. — Ou talvez eu
esteja apenas sentindo toda a podridã o que você nã o pode esconder. —
Ele franziu o nariz como se estivesse com nojo.
Bash icou de pé , e amaldiçoou quando alcançou sua bainha vazia.
“Droga”, pensou. Ele realmente precisava pedir outra arma para Bay,
embora percebesse que nã o importava. Ele estava sonhando.
Novamente.
— Como você já adivinhou, este nosso pequeno encontro está todo
na sua cabeça. E que lugarzinho escuro é esse? — Darius zombou,
cruzando os braços à frente do peito largo. — Difı́cil de aguentar icar
dentro de sua mente por muito tempo antes de eu querer sair. E isso
quer dizer muita coisa.
— O que você quer desta vez? — Bash suspirou, exasperado. Ele nã o
tentou disfarçar a antipatia pelo governante dos mares… um deus
temı́vel que tinha o poder de feri-lo onde quer que estivesse. Mas
Darius ainda nã o o havia matado, o que dizia a Bash que ele o estava
guardando para outra coisa. Ou seja, precisava dele vivo. Por enquanto.
Alé m disso, já estavam naquele joguinho por muito tempo, e ele
estava de saco cheio. Bom, de saco cheio e muito irritado.
— Tã o impaciente. — Darius estalou a lı́ngua. — Só vim te dar um
aviso.
— E por que você faria isso? — Bash perguntou, as sobrancelhas
erguidas. Como se ele fosse tolo o su iciente para acreditar em uma
ú nica palavra que saı́sse daquela boca.
— Hoje você s passarã o por algumas… di iculdades, e eu gostaria que
todos chegassem ao inal do nosso joguinho inteiros. Pelo menos os
jogadores principais. Com o resto da tripulaçã o, eu nã o poderia me
importar menos. — Os olhos cor de mar de Darius icaram escuros. —
O ú nico jeito de sair daqui é atravé s de um tú nel subaquá tico, e temo
que até mesmo um Azantiano possa ter problemas para prender a
respiraçã o por tanto tempo. No entanto, você di icilmente é um
Azantiano de fato, suponho.
Nymera. Darius nã o teve que dizer a palavra; sua in lexã o pairava
entre eles como uma né voa espessa e sufocante.
— Por que está me avisando? — Bash perguntou, entrando no
espaço pessoal de Darius. — Se eu vou icar bem, e Margrete també m,
entã o por que essa mensagenzinha de boa vizinhança? — O tom de
Bash continha a quantidade perfeita de desprezo e zombaria. Aquilo o
fez sorrir.
— Eu nã o queria que Margrete fosse pega de surpresa — Darius
disse entre dentes. — Isso é tudo.
— Entã o por que nã o falar com ela diretamente? Eu sei que você já
fez isso. Ela me contou de suas visitas indesejadas.
Algo escuro e profano cruzou as feiçõ es a iadas de Darius. Um
mú sculo em sua mandı́bula se contraiu. A ausê ncia de uma resposta
grosseira ou cortante foi o su iciente para Bash entender.
— Você não pode, nã o é ? Falar com ela, quero dizer.
Ou ele o teria. Sem dú vida.
O deus estreitou o olhar. O ar ― mesmo naquela paisagem de sonho
― icou gelado.
— Ela está icando cada vez mais forte — Darius inalmente admitiu.
— Duvido que ela tenha noçã o do quanto cresceu, o quanto seus
poderes despertaram desde o desembarque nessas praias. As vezes, ela
os usa sem perceber. Tem sido maravilhoso assistir.
Ele os estava seguindo. Observando-os. Nã o foi uma surpresa.
— Entã o ela está te bloqueando de alguma forma? — O sorriso de
Bash se tornou perverso, e seu batimento cardı́aco icou está vel, um
tambor triunfante em seu peito. — Você nã o pode entrar na mente dela.
Nã o era uma pergunta.
Darius rosnou, suas narinas se dilatando. Parecia que seu
temperamento estava levando a melhor sobre ele. Especialmente no
que dizia respeito a Margrete.
— Nã o vai importar no inal — prometeu ele, fervendo. — Uma vez
que o terceiro teste esteja completo, você nã o será mais importante.
Tudo será como deveria.
— Você pode tentar manipular Margrete, mas nã o terá sucesso. Você
nã o a conhece de jeito nenhum.
— Eu a conheço melhor do que você pensa — Darius rebateu, quase
perdendo todo o controle. A calma letal de sempre. — Ela é quem eu
estava esperando. Ela me libertará .
Bash inclinou a cabeça, confuso.
— Libertar você ?
Darius riu, o som á spero e forçado.
— Eu desisti de algo nesta ilha muitos, muitos anos atrá s. Minha
querida mã e decretou que isso me deteria, mas sinto que já passou da
hora de me devolver. Tem tanta coisa que você nã o sabe, mortal. Se
soubesse, desmancharia seu sorriso arrogante.
O estô mago de Bash se contraiu quando Darius começou a rodeá -lo.
— Existe uma razã o pela qual o poder do meu irmã o escolheu
Margrete como casa anos atrá s. Você achou que era pura sorte? — Ele
riu, o som ecoando. — Eu nã o acreditei no começo, e só alguns meses
atrá s tive certeza. — Ele parou de andar, e Bash icou rı́gido.
— Do que você está falando? — ele se pegou perguntando,
aparentemente pela centé sima vez. Bash estava enjoado e cansado de
nã o saber o que estava acontecendo. Mas nã o conseguia se livrar da
ideia de que o sacrifı́cio de Darius tinha algo a ver com Margrete.
— Como eu disse, tem muita coisa que você nã o sabe.
— Entã o me diga — respondeu Bash. — Se isso vai me destruir
tanto, por que guardar para si? Nó s dois sabemos que você nã o quer
nada alé m de me deixar infeliz. Entã o vá em frente. Faça o seu melhor,
deus.
Darius riu, passando os olhos rapidamente por sua forma, suas
escamas, suas unhas escurecidas.
— Eu acho que nó s dois sabemos que nã o precisaria de muito para
te destruir, e ao que parece, você nã o está muito longe de ceder à sua
escuridã o. Você nunca pareceu ter muita força de vontade, entã o duvido
que consiga lutar contra seus instintos agora.
Bash cerrou os punhos, todos os mú sculos de seu corpo icando
tensos. Ele estava lutando contra seus instintos, e precisou de cada
grama de força que tinha para desligar a pequena voz dentro de sua
cabeça, incitando-o a simplesmente ceder.
— Nã o se machuque pensando nisso, rei. Tudo icará claro em breve.
— Darius balançou a cabeça zombeteiramente, cheio de falsa piedade
brilhando em seus crué is olhos azuis. — Embora, a essa altura, você já
esteja longe demais para evitar de machucar Margrete. Ainda bem que
estarei lá para consolá -la quando ela for forçada a acabar com você .
Foi o sorriso triunfante de Darius que fez Bash perder todo o
controle. Fogo gelado queimou em seu peito, e entã o ele estava se
movendo com apenas um objetivo em mente: tirar aquele sorriso
satisfeito do rosto do deus.
Darius estava errado, e Bash provaria isso.
Com um rugido, ele disparou em direçã o ao deus, de punho erguido
e pronto para atacar. Mas quando ele mirou e o socou, encontrou
somente ar. Ele amaldiçoou.
— Aqui — Darius provocou, e Bash deu meia-volta. O deus se
materializou atrá s dele, com as mã os en iadas nos bolsos. Ele ergueu
uma sobrancelha como se perguntasse: Isso é tudo que você tem?
— Você vai deixar Margrete em paz — rosnou Bash, os pelos
arrepiados. — O que quer que pense que ela é para você , você está
errado.
— Semelhantes se atraem, e ela me chama desde o momento em que
ouvi suas oraçõ es nos penhascos de Prias. Há uma razã o para tudo,
querido rei, e quanto mais cedo entender que nã o há nada que possa
fazer para me impedir, melhor será para você .
— Por que me contar isso? — Bash perguntou em um rosnado. —
Qual o objetivo?
— Quem disse que havia um objetivo? — Darius ergueu um ombro.
— Talvez eu simplesmente sinta um grande prazer em te ver frustrado.
Em observar você juntando todas as peças e percebendo que nunca
será o su iciente para ela.
A visã o de Bash avermelhou, e seu coraçã o quase parou.
As palavras de Darius atingiram o alvo.
Ele atacou.

Bash acordou com um engasgo. Ele se impulsionou para frente,


abrindo os olhos enquanto se preparava para o ataque de Darius. Seu
coraçã o trovejou como se ele ainda estivesse voando pelo ar, segundos
depois de envolver as mã os ao redor do pescoço de Darius e tirar a vida
dele. Algo escuro se enrolou em seu estô mago com o que o antigo deus
havia revelado, e aquela fome de antes o consumiu.
Ele colocou as mã os sobre o peito, bem sobre o coraçã o acelerado.
Uma mã o tocou seu ombro. Bash pulou.
— Merda, você está pé ssimo.
Bash viu Atlas pairando acima dele, seus olhos se estreitando em
fendas.
— Nã o apenas a coisa toda das escamas… — ela apontou para o
pescoço dele com a mã o livre — … mas você parece que nã o dorme há
semanas.
— Obrigado — ele se forçou a falar, a voz rouca. Ele examinou a
gruta. Margrete nã o estava muito longe. Conversava com Bay em voz
baixa, o rosto contraı́do. Bay estava dizendo algo de que ela nã o gostou,
porque sua reaçã o foi colocar as duas mã os nos quadris e inclinar o
queixo.
— O que está acontecendo ali? — perguntou a Atlas, apontando para
o par discutindo.
— Até parece que eu sei. Aqueles dois nunca compartilham nada
com gente como eu. — Bash percebeu um pequena sugestã o de
frustraçã o em sua voz.
— De qualquer forma, eu me prepararia, meu rei. Estamos saindo. —
Atlas deu-lhe um tapinha reconfortante nas costas e caminhou até onde
Dani e Jacks estavam compartilhando um punhado de frutas. Ele notou
como Jacks deu a maior parte de sua quota para a irmã .
Quando se levantou, Bash notou que seus joelhos estavam fracos. A
adrenalina do confronto com Darius ainda corria em suas veias como
veneno, e suas mã os tremiam. Ele cerrou os punhos e foi até Margrete e
Bay, embora tenha tido que pigarrear para chamar a atençã o da dupla.
— Bash. — Bay se dirigiu a ele com uma leve inclinaçã o de cabeça.
Seu amigo mal encontrou seus olhos. — Está se sentindo melhor?
Ele ainda estava coberto de escamas e tinha acabado de acordar de
um pesadelo envolvendo o deus enlouquecido que os havia aprisionado
naquela ilha, mas, fora isso, claro, ele estava ó timo.
— Estamos prontos para ir? — indagou, ignorando a pergunta de
Bay.
A resposta foi bastante ó bvia.
— Sim, senhor.
— Que bom. Quero sair deste tú nel o mais rá pido possı́vel. — Ele se
virou para Margrete, que encontrou seu olhar com olhos brilhantes e
um sorriso cauteloso. — Posso conversar com você ? E rá pido — ele
pediu, usando um tom incomumente rı́gido. Bay se desculpou,
murmurando algo sobre meias molhadas, e foi em direçã o a sua
tripulaçã o.
Ela pensou que ele ia questionar por que o negara na noite anterior,
por que nã o aceitara o pedido de casamento dele. Bash entendia o
raciocı́nio dela, mas seria um mentiroso se dissesse que nã o tinha
icado chateado.
Uma vez sozinhos, bem longe do alcance dos outros, Bash contou
tudo a ela.
— Darius me fez uma visitinha. — Ela respirou fundo ao som do
nome do deus. — Ele fez ameaças e falou em enigmas, e parece mais
determinado do que nunca a chegar até você .
Margrete revirou os olhos.
— Nã o con io em nada que aquele homem, ou melhor, deus, diz.
— E talvez nã o devê ssemos con iar nas palavras dele nesse
momento, mas você precisa saber o que ele disse mesmo assim. — Bash
se inclinou e falou pouco mais alto que um sussurro. — Darius disse
que está conectado a você desde Prias. — Margrete fez uma careta.
— Desde Prias? Nã o depois que eu vim para Azantian?
— Desde Prias. Ele també m me disse que já esteve nesta ilha antes.
Antes que ele e Malum criassem suas feras que devastaram o oceano.
Falou que foi forçado a suportar testes angustiantes e sacri icar algo de
que gostava. Ele insinuou que você está conectada a esse sacrifı́cio de
alguma forma.
— Impossı́vel — zombou ela. — Eu nem era nascida.
— Verdade ou nã o, ele parece acreditar que você é a chave perdida
dele. Sua maldita salvaçã o — disse Bash com os dentes cerrados, as
palavras como á cido em sua lı́ngua.
Margrete instantaneamente icou sé ria.
— Ele é louco.
— Nã o vou discordar.
Bash passou os braços em volta da cintura dela e a puxou contra o
peito. Quando ela estava perto, ele conseguia respirar direito, e aquela
fome crescente em sua barriga parava de doer, transformando-se em
uma pontada incô moda.
— Apenas tenha cuidado, princesa. Ele quer você , e duvido que
descanse até que toda essa charada esteja completa.
O pensamento de Darius em qualquer lugar perto dela o fez querer
envolver as mã os ao redor do pescoço do deus e apertar. Talvez entã o
ele tirasse aquele sorriso arrogante de autossatisfaçã o…
— Ei. — Margrete o agarrou ferozmente, o nariz acariciando seu
peito. Os pensamentos de assassinato desapareceram quando ela
ergueu a cabeça, olhando para ele daquele jeito especial que tirava o ar
de seus pulmõ es. — Vamos vencê -lo em seu pró prio jogo — sussurrou.
Bash a puxou para trá s e entrelaçou os dedos em seu cabelo. Agora
que sabia como era o amor dela, nã o podia perdê -la. Seria como nunca
mais ver o sol ou sentir os raios quentes em sua pele.
Bash se inclinou para frente e deu um beijo carinhoso em sua testa,
inalando seu perfume.
— Você tem razã o. Ele nã o vai ganhar. E mal posso esperar para ver
como você o destruirá .
ash nã o precisava que um deus lhe dissesse que o
perigo se aproximava.
Ele sentia um gosto amargo no ar, na ponta da lı́ngua. A
piscina continuava atravé s do tú nel principal, e eles seguiram
com á gua até os joelhos enquanto se arrastavam por ela em um
ritmo abaixo do ideal.
Margrete liderava o grupo, parecendo confortá vel na frente,
no comando. Bash sorriu, cheio de orgulho. Ela seria uma
excelente rainha… se aceitasse seu pedido. Ela era uma lı́der
nata, com ou sem magia. Margrete triunfou sobre seu agressor
e reivindicou a força em si mesma que Bash havia reconhecido
desde o momento em que a vira naqueles penhascos em Prias.
Bash pensava com frequê ncia no dia do ataque a Azantian,
quando ela lutuou em uma onda que ela mesma criara, uma
deusa vingativa. Ele nunca tinha passado por uma crueldade
tã o maligna como ela, e, por causa disso, Bash sabia que nunca
poderia entender toda a luta dela. Ainda assim, aquilo nã o
reduzia seu orgulho. A admiraçã o absoluta por ela.
Margrete desacelerou abruptamente e os pensamentos do
passado desapareceram.
— Tem… — Ela fez uma pausa, farejando o ar, as narinas
dilatadas. — Estamos chegando perto.
Ela franziu as sobrancelhas, concentrada, enquanto ouvia os
sussurros eté reos de sua nova magia. A tripulaçã o inteira parou
para segui-la em cada palavra. Ela conquistara o respeito deles,
e até Mila observava Margrete com aparente con iança.
Tã o de repente quanto diminuiu o passo, Margrete acelerou,
um sorriso vitorioso lorescendo.
— Venham! — ela falou por cima do ombro, com a voz leve e
cheia de emoçã o.
Bash icou curioso para saber o que ela sentia e
experimentava quando seu poder divino falava com ela, mas
nã o era hora de perguntar. Primeiro, tinham que sobreviver. Se
tivessem sorte o su iciente para isso, entã o ele a incomodaria
com perguntas mais tarde.
Bash e o restante da tripulaçã o seguiram Margrete pela á gua
azul luminosa. Ela nã o parou até cinco minutos depois.
Um beco sem saı́da. Uma parede só lida de pedra
impenetrá vel surgiu na frente deles como uma provocaçã o.
— Margrete — Bay começou a falar, cheio de cautela. — Eu
acho que nã o…
Ela ergueu a mã o, silenciando-o. Bash icou surpreso ao ver
que Bay obedeceu. Mas, como Atlas havia apontado, os dois
tinham formado um vı́nculo maior depois que chegaram na
ilha, um entendimento. Outra constataçã o que aqueceu o
coraçã o de Bash.
Aproximando-se da parede com passos medidos, as botas
espirrando á gua, Margrete se agachou diante da pedra, a cerca
de um metro e meio de distâ ncia. Colocando a mã o nas á guas
brilhantes, ela torceu o pulso, criando um pequeno
redemoinho. Com os olhos absortos em sua mã o, ela se moveu
no vó rtice de magia que formou a partir dos elementos que a
chamavam.
Luzes brancas faiscaram do redemoinho, e aquelas faı́scas
voaram mais fundo sob a á gua, aproximando-se da parede que
os bloqueava. Bash assistiu com descrença atordoada enquanto
elas disparavam para a parede. E passaram por baixo.
Havia uma passagem. Bash fervia por dentro, odiando que
Darius tivesse falado a verdade. O deus o havia avisado sobre o
mergulho perigoso, mas o rei de Azantian nã o quis acreditar
nele, preferindo considerar cada uma de suas palavras uma
mentira. Realmente, foi seu orgulho egoı́sta que segurou sua
lı́ngua quando acordou do sonho.
Margrete se levantou e olhou para todos.
— Precisamos mergulhar e nadar. Deve nos levar direto para
a costa.
— E qual é a profundidade desse mergulho? — Atlas
perguntou o que estava na mente de todos. A guerreira deu um
passo à frente com uma mã o no quadril, nã o parecendo muito
satisfeita.
As sobrancelhas de Margrete se franziram enquanto
calculava em pensamento.
— Eu diria… cento e oitenta metros, mais ou menos.
— Parece uma maneira fantá stica de morrer — resmungou
Jonah, alisando seu longo cabelo preto.
— Sempre tã o positivo — acrescentou Mila com um revirar
de olhos. O rosto de Jonah icou com um tom rosado de
vermelho.
— Chega! — Bash ordenou, de pé ao lado de Margrete. Ele
deveria tê -la avisado, mas tudo o que podia fazer agora era
encorajar seus sú ditos. — Esta é nossa ú nica saı́da, e se
Margrete acha que podemos fazer isso, vamos tentar. Somos
Azantianos e a á gua é nossa casa. Nã o tememos seu abraço. —
Bash olhou para cada homem e mulher, que o encaravam de
olhos arregalados. Estavam todos cansados, desgastados e
desesperados. Uma combinaçã o perigosa.
Aquela era a ú nica opçã o. Margrete havia bloqueado a outra
entrada com pedras su icientes para que eles levassem uma
semana para cavar. E do outro lado havia os soldados mortos-
vivos com seus olhos pingando sangue e suas mandı́bulas
desencaixadas, ansiosos por uma refeiçã o.
Bash preferiria enfrentar o tú nel do que aquelas coisas
novamente.
— Hora de ir — ordenou ele, dando-lhes as costas. Ele ainda
era o rei, e Margrete era a mulher que ele planejava ter ao seu
lado, governando com ele. Se algué m lhe dissesse, há um ano,
que ele abriria mã o do controle tã o facilmente, teria arrancado
gargalhadas dele. Mas com ela era diferente. Até mesmo seus
aposentos recé m-reformados eram uma prova disso. Levou
algum tempo para se acostumar, claro, mas passou a amar até o
belo caos que ela trouxera para o quarto dele.
Baixando a voz, ele se inclinou para perto do ouvido de
Margrete e perguntou:
— Você tem certeza disso?
— Infelizmente.
— Que encantador.
Bash marchou para onde á gua e pedra se encontravam e se
abaixou para deslizar as mã os sob a superfı́cie. Di icilmente ele
caberia na lacuna. Ao se agachar para tatear ao redor da pedra
irregular, um sussurro de um sibilo soou. Um sibilo familiar.
Ele icou rı́gido. O sussurro icou mais alto, transformando-
se em um coro de rosnados á speros.
Ele se levantou.
— Está tudo bem? — perguntou Margrete. — Bom, sei que
nã o está tudo bem, já que estamos prestes a entrar num jogo
divertido com a morte, mas você sabe o que quero dizer. — Ela
bateu no ombro dele com o dela, um meio-sorriso sombrio em
seus lá bios.
— Estou bem — respondeu sem convicçã o.
Na verdade, ele estava muito, muito longe de estar bem. Ele
reconheceu aqueles sibilos… já os tinha ouvido acompanhados
pela voz de Minthe.
Internamente, ele amaldiçoou. Mas, por fora, Bash fez
questã o de parecer con iante e calmo; tudo o que Margrete
precisava ver. Alé m disso, se as nymeras estivessem por perto,
estariam atrá s dele, nã o dos outros. Certo?
Bash se inclinou e deu um beijo carinhoso nos lá bios de
Margrete. Ele desejou poder abraçá -la com mais força, beijá -la
mais profundamente, mas o tempo era essencial, e ele se
afastou a contragosto.
— Vamos icar todos bem, Margrete, eu prometo. — Ele a
beijou na testa, rezando para nã o estar sendo um tolo otimista.
— Alé m do mais, con io em você e na sua capacidade de nos
tirar dessa confusã o. Você nos salvou antes, e aquilo foi muito
mais complicado do que navegar em um tú nel subaquá tico.
— Isso é o que temo — murmurou ela, engolindo em seco.
— Temo porque todos con iam que vou salvá -los. E se…
— Pare com isso — ordenou ele, passando um dedo pela
bochecha e pelo queixo dela, inclinando seu rosto. — Quando
vai perceber que você é uma força da natureza? — Margrete
revirou os olhos, e ele estalou a lı́ngua. — Bom, entã o terei que
lembrá -la todos os dias do quã o poderosa é até que você
mesma acredite. Temos muito tempo, princesa.
Bash deu outro beijo em seus lá bios antes de se obrigar a
soltá -la e dar um passo para trá s. Fazer isso era mais difı́cil do
que ele imaginava. Especialmente quando ela o olhava como se
ele tivesse colocado todas as malditas estrelas no cé u. Ele nã o
merecia aquele olhar, mas isso nã o signi icava que ele nã o
poderia apreciá -lo por mais algum tempo.
— Hora de ir — disse ele por cima do ombro para o restante,
seu tom cortante nã o dando espaço para discussã o.
Inspirando o ar precioso, ele deslizou sob a á gua e se
impulsionou pela pequena abertura. A á gua queimou seus
olhos, mas, felizmente, continuou a brilhar, permitindo que ele
visse a passagem submarina pela qual nadou.
Um respingo abafado se formou atrá s dele. Os cabelos de
Margrete se espalharam ao redor de seu rosto como uma
auré ola, e ele a observou engolir uma grande quantidade de
á gua. Seus olhos brilharam, parecendo tã o intensos quanto a
á gua que ela habitava, e ela os apontou para ele. Ele fez um
aceno tranquilizador antes de voltar a nadar com cada grama
de força que possuı́a.
Seria um longo mergulho, do tipo que até mesmo um
Azantiano ― ou meio Azantiano, se Minthe estivesse certa ―
teria di iculdade em fazer. Mas nymeras foram feitas para a
á gua e suas profundezas. Aquilo nã o tranquilizou seus
pensamentos nem um pouco. Ainda assim, nã o podia
demonstrar medo. Se ele sucumbisse, Margrete també m
sucumbiria, e era sua vez de mantê -los unidos.
Mais respingos abafados atingiram seus ouvidos, e ele soube
que o restante dos sú ditos havia se juntado a eles. Que bom.
Bash colocou as mã os em concha e cortou a á gua com a
velocidade e a agilidade que dominara durante sua vida no mar.
Era ali que ele se sentia em casa, em paz, e o suave barulho da
á gua e as batidas de seu coraçã o lhe davam força.
Um minuto se passou antes que uma frieza lorescesse em
seu estô mago, movendo-se para fora para roçar suas costelas,
seu torso. Deslizou para tocar as pontas dos dedos e descer
pelas pernas. Parecia estranhamente calmante, embora a
piscina nã o tivesse calor, e ele se viu relaxando quando a
sensaçã o de formigamento gelado se espalhou.
Margrete nadou para o lado dele. Adrian tinha feito bem em
ensiná -la a nadar, embora nunca tenha agradecido ao amigo por
isso. Algo que ele teria que remediar assim que voltassem.
Uma pequena corrente ajudou seus esforços, empurrando-o
mais rá pido, icando mais forte a cada impulso. Ele se virou
para Margrete. Seu rosto se contraiu, concentrado, os lá bios
franzidos com uma determinaçã o quase tangı́vel. A corrente
tinha que ser obra dela. Ele se atreveu a dar uma olhada por
cima do ombro, agradecido pela magia para apoiar o grupo.
Ele teria que lembrá -la de seu brilhantismo quando
chegassem à superfı́cie.
Outro minuto se passou, depois mais dois. Em mé dia, os
Azantianos conseguiam prender a respiraçã o confortavelmente
por até seis minutos.
Por seus cá lculos, estavam na metade do caminho.
Em cerca de dois minutos, ele começaria a engasgar por falta
de ar, e seus pulmõ es queimariam em menos tempo do que
isso. Bash era um nadador capaz, mas nem todos da tripulaçã o
tinham a mesma caracterı́stica. Jonah, embora fosse um dos
jovens marinheiros mais promissores que conhecera, nã o era
tã o habilidoso. De acordo com Bay, o treinamento tinha sido
muito difı́cil para ele. Isso preocupou Bash. Ele podia ser meio
monstro, mas ainda era responsá vel pela vida daquele jovem.
Como se sentisse sua crescente inquietaçã o, Margrete soltou
um gemido estrangulado. Um clarã o de luz branca brilhou, e a
corrente que ela comandava icou mais forte, empurrando os
Azantianos para frente. Uma veia pulsava em sua testa
enquanto ela cerrava os dentes. Estava usando muita energia
em muitas pessoas ao mesmo tempo. Margrete mal sabia como
usar sua magia para si mesma, quanto mais para outras seis
pessoas alé m dele.
Bash.
Ele estremeceu com a chamada familiar de seu nome.
Você não vai conseguir. Nem todos vocês, de qualquer
maneira.
Minthe.
Escondida em algum lugar pró ximo, ela estava zombando
dele. Bash podia senti-la como podia sentir uma tempestade
iminente. Sua mã e se recusava a deixá -lo em paz.
Aquele pequeno já está lutando. Jonah, não é? Ele será o
primeiro a se afogar.
Bash balançou a cabeça, ignorando as palavras que só ele
podia ouvir. Margrete mantinha o olhar à frente, muito focado
em controlar a corrente. Minthe falava apenas com ele.
Ela está icando cansada. Tão pouca prática nestes últimos
meses.
Ela vai icar bem, Bash pensou, zangado com a insinuaçã o.
Ela nã o tinha a menor ideia do que Margrete era capaz. Me
deixe em paz.
A risada de Minthe ecoou em sua mente, um barulho como
pregos se arrastando pelo vidro do mar.
Você tem mais um minuto, ilho. Um minuto antes de chegar à
saída. Mas eles têm menos de trinta segundos antes de tomarem
o primeiro gole de água.
Bash instintivamente olhou para trá s, e icou horrorizado.
Jonah estava diminuindo a velocidade, os olhos arregalados em
alarme. Até Mila, que conseguia manter a calma nas
circunstâ ncias mais terrı́veis, parecia frené tica, sua pele icando
com um leve tom de roxo.
Veja. Eles morrerão em… vinte segundos.
Bash estendeu a mã o e cutucou Margrete. Quando ela
encontrou seu olhar, ele inclinou a cabeça para trá s, forçando-a
a seguir seu olhar. Ela viu a tripulaçã o lutando, seus lá bios se
abrindo enquanto o medo tomava seus rostos. Ela começou a
sugar a á gua em movimentos irregulares, hiperventilando.
O que signi icava…
Ela não pode salvar todos vocês. Ela já te ajuda mais, como eu
esperava, mas o controle dela não é tão focado nos outros.
Bash duvidava que ela percebesse o que estava fazendo,
usando a maior parte de sua magia para ajudá -lo. Ele sabia que
ela icaria horrorizada se descobrisse que seu poder nã o estava
distribuı́do uniformemente.
Você tem dez segundos, Minthe falou, quebrando toda e
qualquer calma restante. Faça um acordo comigo e eu os
salvarei.
Pela primeira vez, ele só queria imaginar as coisas agindo a
seu favor.
Que tipo de acordo? Bash parecia tã o desesperado quanto se
sentia. Mas nã o se importou. Seu primeiro dever era para com
seu povo e sua segurança, e ele estava falhando.
Sempre falhando.
É simples. Venha comigo, com a gente.
Não. Bash balançou a cabeça, de repente tonto. Manchas
pretas lutuavam ao redor de sua visã o.
Então eles vão morrer.
E seria culpa dele.
Ele deu uma olhada inal de volta, seu coraçã o apertando
quando se aproximou de Bay. Seu velho amigo tinha diminuı́do
a velocidade, embora ainda lutasse para se mover. Viver.
Bash soube a resposta antes mesmo de pensar, e aquilo o
partiu em dois.
Salve-os, pensou sem hesitar. Salve todos ou nada de acordo.
Minthe riu mais uma vez. Como quiser, querido ilho.
A corrente de Margrete cessou e a á gua parou. Bash
estendeu a mã o para ela, um grito silencioso em seus lá bios.
Seus dedos se tocaram, e o amor passou entre eles.
Compreensã o. Temor.
Ela icaria bem, ele se assegurou. Mas nã o podia deixar que a
vida da tripulaçã o pesasse em sua consciê ncia. Isso a mataria.
Um lampejo de preto passou por sua linha de visã o, entã o o
chicotear de uma cauda pontiaguda. Dentes brilhantes. Unhas
pretas e serrilhadas. Cabelo da meia-noite.
Margrete murmurou o nome de Bash enquanto uma horda
de nymeras cercava a tripulaçã o por todos os lados da
passagem. Elas se moveram mais rá pido do que o relâ mpago
mais rá pido, seus braços se estendendo para agarrar o humano
mais pró ximo. Um por um, os outros foram pegos nos braços do
inimigo, das mesmas feras que tinham sido caçadas dias antes.
Bash olhou para Margrete, sabendo que Minthe garantiria
que ele honrasse o acordo. Ele falou, sem emitir som, trê s
palavras que sentiu com cada ibra de seu ser.
Talvez em outra vida ele pudesse ter tudo.
Braços brancos como osso o envolveram no momento em
que Margrete gritou novamente, a mã o estendida como se
quisesse alcançá -lo.
Mas era tarde demais. Bash fechou os olhos enquanto a
horda de nymeras o levava para longe dela. De seus amigos. De
sua tripulaçã o.
Quando os braços ossudos que o seguravam o apertaram, a
visã o de Bash icou preta e ele caiu em um vazio de sombras
inimaginá veis. Com Margrete fora de vista, aquela fome voraz
em sua barriga rugia, implorando para ser saciada, icando cada
vez mais voraz. Os segundos se passaram, mas o tempo poderia
muito bem ter parado. Ele só conseguia focar naquela fome, e
aquilo o rasgou de dentro para fora.
O ú ltimo pensamento coerente que Bash teve foi sobre ela.
E mesmo essa imagem escapou… até que, por im, ele nã o se
lembrava de Margrete.
argrete rugiu vendo as nymeras roubando Bash pela segunda vez.
Ela se debateu contra a onda de á gua que os monstros criaram, o
frenesi caó tico de membros em movimento e escamas serrilhadas.
Margrete mergulhou em seu interior e implorou para que sua magia
durasse um pouco mais.
Ela ferveu e acendeu… e entã o apagou completamente.
Margrete perdeu o foco, o controle, o que parecia acontecer sempre
que Bash estava em apuros. Ele era sua fraqueza.
Em seguida, as nymeras pegaram Jonah, Atlas, Bay e os gê meos,
arrastando-os mais para baixo na passagem. Se era para salvá -los ou
devorá -los, Margrete nã o sabia.
Entã o veio o silê ncio.
Eles atravessaram a passagem como uma tempestade de preto e
prata e desapareceram com a mesma rapidez, deixando Margrete
sozinha e frené tica.
Ela ainda podia respirar, mas sabia que nã o tinha muito mais tempo.
Aquele tinha sido o problema també m ― respirar debaixo d›á gua
enquanto manipulava uma corrente para ajudar outras sete almas.
Tinha icado sobrecarregada, e só restava a energia para respirar por si
mesma.
Margrete cortou a á gua, mais uma vez grata pelas liçõ es de Adrian.
Nã o tinha a graça dele, mas a á gua a reconheceu e luiu ao redor de seu
corpo perfeitamente.
Ela nã o distinguiu nada à frente ― nenhum Azantiano ou nymera ― e
sua pulsaçã o dobrou quando o brilho da piscina começou a
desaparecer. O tú nel se estreitou precariamente.
Seu ombro atingiu o lado da passagem, uma pedra irregular que
cortou sua pele. Ela sentiu o cheiro do sangue um momento depois e
amaldiçoou internamente. Avançando, ela lutou contra a força da
exaustã o, nadando até chegar a dois tú neis.
Eles levavam a diferentes direçõ es.
Ela nã o teve tempo de pensar enquanto se aproximava deles, e seus
olhos alternaram entre as duas passagens, imaginando para onde as
nymeras teriam levado Bash e a tripulaçã o. Mas nã o conseguia sentir
nada alé m de seu ombro ensanguentado, e isso entupiu suas narinas,
impossibilitando para ela detectar qualquer outro cheiro.
Margrete foi para a direita no ú ltimo minuto.
Nã o demorou muito para ela perceber que tinha escolhido mal.
Um jorro de á gua se ergueu ao redor dela, vindo do nada. A força a
empurrou para a frente em um ritmo alarmante, mas ela nã o conseguiu
evitar esbarrar nas laterais do tú nel. Entã o se tornou uma confusã o de
cortes e arranhõ es, e o cobre continuava a encher suas narinas. Levou
outro golpe na lateral do corpo, provocando uma careta quando sua
camisa rasgou e uma pedra a iada cortou profundamente o mú sculo.
Vamos, foco!
Ela amaldiçoou a si mesma, aquela situaçã o, toda a ilha em si, mas
nenhuma de suas palavras sujas surtiu efeito. Margrete lutou contra a
corrente incomum, teimosa o su iciente para nã o desistir. Quando um
sinal de luz natural chegou a ela, uma pequena semente de esperança
loresceu. Como um farol na noite, ele a chamou, e seus braços
envolveram a á gua com um propó sito renovado.
Foi quando a corrente a levou de cabeça para um penhasco saliente.
Uma dor diferente do que já tinha sentido na vida pulsou atrá s de
seus olhos, irradiando do topo de sua cabeça até a coluna.
Margrete deu um ú ltimo suspiro.
E perdeu a batalha antes que pudesse voltar a respirar.
Pura escuridã o preencheu sua mente.
Armas. Cheiro de fumaça, especiarias, sal. Sol fraco. Há lito frio em
seu rosto.
Margrete piscou e inclinou a cabeça. Um gemido escapou.
— Shhh — acalmou uma voz familiar. — Nã o se mova.
Como se ela pudesse. A cabeça latejava com força, e o corpo poderia
muito bem estar aos pedaços. Talvez estivesse.
Ela sentiu dor, leveza e… aqueles braços. Aquilo era tudo que ela
percebia. Levantar a cabeça? Nem pensar. Ela mal conseguia abrir os
olhos.
Quando conseguiu mover as pá lpebras, que pesavam como pedras, o
mundo se turvou em uma confusã o de cores suaves. A ú nica coisa que
nã o pertencia à loresta era a pele dourada.
E o cabelo loiro.
Os olhos de Margrete se fecharam novamente.
Ela nã o acordou por algum tempo.

Incê ndio.
Ela sentiu o cheiro da fumaça antes de vê -la.
Quando viu a cena à sua frente, tinha a visã o um pouco menos
embaçada, embora certamente nã o clara.
A cabeça estava melhor, a sensaçã o de que algué m continuamente
estava cravando uma adaga em seu crâ nio tinha melhorado. Uma
pequena misericó rdia. Seu corpo doı́a, mas a dor parecia administrá vel.
Ela levantou a cabeça. A visã o turva permitiu que distinguisse o
contorno de uma caverna escura, um fogo lorescente lambendo as
paredes. Ela nã o reconheceu nada.
— Você está quase curada.
Margrete se encolheu, virando-se para encontrar a fonte da voz tã o
familiar. O movimento repentino a fez fazer uma careta de agonia.
— Nã o se preocupe, nã o estou aqui para te machucar — disse
Darius, saindo das sombras. Ele usava a capa de costume, embora o
capuz permanecesse abaixado, deixando seu rosto visı́vel. Margrete
apertou os olhos, desejando nã o estar tã o fraca, desejando que sua
visã o estivesse clara o su iciente para que ela pudesse atacar, se
necessá rio.
— Fique longe de mim! — ordenou, com a voz grave. Ela levantou a
mã o como se aquilo pudesse fazer algum efeito. Sua magia estava tã o
enterrada sob a pele que ela duvidou que a alcançaria, mesmo que
pudesse invocá -la corretamente.
Darius suspirou. Ele quase soou ofendido.
— Você estava inconsciente, desmaiada nos bancos de areia, uma
presa perfeita para qualquer predador.
Ela se lembrou da corrente, das rochas, da luta frené tica para manter
o controle e, em seguida, da escuridã o abrangente.
— Eu a curei, mas você levou uma pancada forte na cabeça. Se fosse
qualquer outra pessoa, isso teria te matado. — Darius se agachou,
descansando os braços nos joelhos. — Mas você é uma sobrevivente.
Assim como eu.
— Eu nã o sou nada como você ! — rosnou, grudando ainda mais nas
paredes da caverna. Ela procurou sua arma, envolvendo o aço com os
dedos, a lâ mina em sua bainha. Darius nã o a tinha tirado dela, o que a
confundiu e enfureceu. Ele se achava invencı́vel, e talvez de fato o fosse
contra o aço Azantiano, mas ela imaginava que atingi-lo doeria mesmo
assim.
Darius olhou para o outro lado da caverna. Quando a visã o de
Margrete clareou, ela percebeu como as chamas dançavam pelas maçã s
do rosto a iadas do deus, pela mandı́bula forte e os olhos assombrosos.
Para um deus que geralmente pingava arrogâ ncia e justiça pró pria,
ele parecia quase mortal. A visã o era enervante.
Darius a ignorou por um longo tempo, e ela icou tensa quando ele
por im abriu a boca para soltar suas palavras calculadas e
cuidadosamente selecionadas.
— Quero contar uma histó ria que muitos nã o conhecem —
sussurrou. Ele virou a cabeça para encará -la, mostrando os olhos
ardendo com uma emoçã o inominá vel. — E a histó ria de dois irmã os
que lutaram por sé culos e nunca foram capazes de con iar no ú nico ser
que poderia entendê -los. Uma tragé dia, na verdade. — Darius zombou
antes de engolir em seco. — Eles eram mais guerreiros do que irmã os.
Ambos muito cheios de raiva. Ambos solitá rios.
Margrete manteve o contato visual, sem desviar o olhar. Suas
palavras carregavam o peso de uma tristeza in inita. Ela reconheceu
tudo muito bem.
Ainda assim, nã o queria ouvir aquela histó ria inventada.
— Nã o quero saber de suas mentiras — disse ela, com desprezo na
voz. — Quero saber onde estã o meus amigos.
Um aborrecimento passou por suas feiçõ es, mas ele se controlou.
— Sua preciosa tripulaçã o e o rei estã o bem — retrucou. — Mas
acredite em mim, você quer ouvir o que tenho para contar.
— Duvido.
— Apenas… apenas ouça, por favor.
Margrete icou tensa com a sinceridade do pedido. Ela engoliu uma
resposta ofensiva e fez o que ele pediu, no intuito de acabar com toda
aquela farsa.
Darius continuou.
— Depois de inú meras traiçõ es e noites solitá rias, um dos irmã os
decidiu mudar seu destino. Ele se cansou de travar uma batalha sem
im e desejou uma parceira, algué m que ele sabia que nã o o enganaria.
Darius fez uma pausa, vagando o olhar por Margrete. Nã o foi sensual,
mas curioso. Ela apertou ainda mais a adaga.
— Tenho certeza de que você já ouviu a histó ria de Malum e seu
coraçã o. Como ele o tirou do peito e o deu de presente à sua amada
mortal. Claro, ele nã o percebeu como aquele pequeno ato o destruiria,
mas suponho que suas intençõ es eram boas.
Agora o poder de Malum estava no coraçã o de Margrete. Ela o sentiu
vibrar.
— O irmã o fez algo semelhante, embora tenha sido muitos anos
antes. Quando Surria decidiu testar a dignidade dos irmã os, ela os
colocou em uma ilha tã o brutal e impiedosa que um dos deuses tomou
medidas drá sticas — Darius murmurou, sombras escuras nublando
seus olhos. — Ele tirou de si mesmo um pedaço de sua alma.
— Deuses tê m almas? — Ela nunca tinha pensado sobre isso.
Darius assentiu.
— Tudo tem alma, uma força vital, embora as almas dos deuses nã o
sejam como as dos humanos. Nossas essê ncias sã o criadas a partir de
magia e nosso sangue é preenchido com o tipo mais raro de energia.
— Isso nã o explica quase nada — resmungou Margrete.
Os cantos do sorriso sombrio de Darius se contraı́ram.
— Talvez, mas nã o acho que algumas coisas precisam ser totalmente
compreendidas. — Ele respirou pelo nariz, franzindo a testa. E entã o,
como se, de repente, se lembrasse de que estava no meio de sua
histó ria, ele levantou a cabeça e endireitou os ombros. Todos os traços
de incerteza tinham desaparecido. — Como eu estava dizendo… — Ele
pigarreou. — O deus dividiu sua alma em duas metades perfeitas,
usando uma das partes para criar o que ele sempre desejou. Uma
parceira.
O olhar de Darius escureceu, e Margrete se mexeu sob seu olhar
penetrante.
— O deus amava sua criaçã o, a outra metade de si. Ela era todas as
partes boas dele, e ele a estimava. Finalmente, ele tinha algué m com
quem compartilhar sua longa vida, e, por um breve momento, mesmo
naquela ilha amaldiçoada, ele estava feliz. Mas aquela felicidade durou
pouco. Depois que ele completou os dois primeiros testes ao lado de
sua nova companheira, sua querida mã e decidiu tirar a pouca alegria
que ele encontrara.
Algo estalou dentro de Margrete.
Um lash de uma imagem lutuou em sua mente… Darius e uma
mulher com cabelo quase preto. Eles estavam cercados por pedras, lado
a lado. Margrete nã o podia ignorar como as feiçõ es da mulher tinham
uma notá vel semelhança consigo mesma. A cena a lembrou das outras
que ela estava vendo ultimamente ― aquelas em que ela e Darius estã o
nos braços um do outro.
Tã o rapidamente quanto apareceu, a imagem se dissipou. Ela
balançou a cabeça, como se quisesse se livrar da presença persistente.
— Durante o terceiro teste — continuou Darius —, Surria forçou os
irmã os a cometerem um crime tã o hediondo que roubaria o pequeno
traço de empatia que eles ainda possuı́am. — Um mú sculo em sua
mandı́bula se contraiu e as narinas se dilataram.
A força de Margrete segurando a adaga afrouxou. Ela odiava querer
saber. Aquela histó ria… parecia familiar de uma forma que fez os pelos
minú sculos de seus braços se arrepiarem.
— Malum desistiu de sua posse mais querida; um objeto mais antigo
que os pró prios deuses, cujo propó sito era um misté rio até mesmo para
Surria. No entanto, no dia em que ele a abandonou, um grande tremor
sacudiu a terra e a ausê ncia da magia das trevas mudou Malum para
sempre.
Ela sentiu o desejo de perguntar mais, mas suspeitou, pela testa
franzida, que nem mesmo Darius sabia do signi icado do objeto.
Margrete fez uma anotaçã o mental para perguntar a Bash sobre aquilo
mais tarde. Quando o encontrasse.
— E o segundo deus… — Darius respirou fundo, atraindo o foco de
Margrete de volta para sua histó ria. — Ele abriu mã o de algo muito
mais precioso do que qualquer objeto. A parceira que ele izera foi
tirada dele, destruı́da. Assassinada. — Seu lá bio superior se curvou em
um rosnado, e as paredes da caverna tremeram com sua raiva. — Surria
fez com que ele a matasse, assassinasse a ú nica coisa que lhe dava paz.
— Por que você a matou, entã o? Se a amava tanto? — perguntou
Margrete.
Como algué m ― mesmo um deus ― poderia matar a outra metade de
sua alma?
— Minha mã e teceu mentiras horrı́veis, mentiras nas quais acreditei
como um tolo. Ela alegava que a mulher que eu amava era uma ilusã o e
que existia apenas na minha cabeça — Darius disparou, sua voz mais
a iada do que qualquer espada. — A verdade inalmente veio à tona,
depois… depois que a matei. — Ele mal conseguia pronunciar as
palavras, e os mú sculos de seu pescoço icaram tensos. — Surria apenas
observou enquanto eu me desfazia. Tudo o que ela disse foi que o
sacrifı́cio nos fez mais fortes, e entã o me ordenou que enxugasse as
lá grimas.
Darius desviou o olhar dela, respirando com di iculdade. Ele nã o
conseguia encará -la.
Margrete olhou para ele, olhou de verdade. Deixou de lado o ó dio
pelo deus e ignorou os sinos de alerta que soavam em sua cabeça. Com
o fogo lançando brilho sobre seu rosto, e os mú sculos de seu pescoço e
ombros tensos, Margrete vislumbrou as bordas de outra imagem, uma
lembrança.
Ela fechou os olhos.
Darius estava sentado ao lado de uma fogueira, muito parecida com
aquela, embora seus lá bios nã o estivessem curvados. Ele sorria, um
sorriso tã o radiante que rivalizava com as chamas. Seus lá bios estavam
se movendo de forma inaudı́vel, e ele riu, jogando a cabeça para trá s,
reagindo ao que falava. Ela sabia que ele falava com outra pessoa, mas
só viu o pouco re lexo de uma mulher em seus olhos.
— Você está vendo, nã o é ? Entende agora?
Margrete piscou, e a cena desapareceu.
Darius se moveu para descansar a trinta centı́metros de distâ ncia,
ainda agachado, mas pairando sobre ela, dor e desespero em seus
olhos. Ela soltou um gemido, se empurrando para trá s, com medo da
verdade brilhando em seu olhar desequilibrado.
— Agora diga que você se lembra!
Sua voz falhou na ú ltima palavra.
— Eu… — Margrete nã o conseguia respirar, pensar ou se mover. Ela
se recusava a fechar os olhos novamente, porque se visse outra imagem
de uma é poca diferente, se perderia completamente. Nada naquela ilha
parecia real, mas aquelas lembranças, as breves visõ es que ela tinha
acabado de ter…
A ilha pareceu familiar desde o momento em que pisou nela. Mas
aquilo nã o poderia signi icar que o que ele disse era verdade. Ela nã o
permitiria que fosse verdade.
— Nã o é real — murmurou ela, apertando as tê mporas. Ela balançou
a cabeça de um lado para o outro, começando a hiperventilar. — Isso
nã o é real. Estou tendo outro pesadelo.
— Ah, mas é real — Darius disse, estendendo a mã o para segurar sua
bochecha. — Eu ouvi suas oraçõ es do outro lado do mar, mesmo antes
da maldiçã o de Surria. Ouvi você contra todas as probabilidades e, na
é poca, pensei que tinha a ver com meu irmã o, mas sabia que tinha que
encontrá -la e descobrir o verdadeiro motivo pelo qual seus pedidos
chegaram a mim e a mais ningué m.
Margrete balançou a cabeça, mas ele nã o baixou a mã o. Seu toque
era puro gelo.
— Eu acreditava que você era uma ferramenta ú til contra meu irmã o.
Com um pouco de sorte, eu poderia te usar para acabar com ele de uma
vez por todas. Mas como eu estava errado. — Ele acariciou o rosto dela
com o polegar, e ela estremeceu. Margrete nã o tinha certeza do que a
incomodava mais: que ela nã o se afastasse ou que estivesse muito
fascinada por ele para querer se mexer. — Eu nã o percebi o que você
poderia ser até vê -la levantar aquela onda e enviá -la para o navio de
seu pai. Naquele momento de clareza, vislumbrei alé m de sua pele
mortal e vi um pedaço da alma por baixo. Fugi antes da batalha,
sobrecarregado com muita… emoção. — Ele zombou da palavra, como
se ter um grama de humanidade fosse inimaginá vel. — E ainda assim
continuei te visitando todas as noites, por meses, entrando em seus
sonhos, sem conseguir parar. Era uma loucura aquela necessidade. —
Ele tirou a mã o do rosto de Margrete, e ela respirou pela primeira vez
desde que ele a tocara. — Eu acreditava que sua alma estava presa no
submundo todo esse tempo.
Sua revelaçã o pairava no ar e pesava. Margrete perdeu o ar, seu peito
subindo e descendo rapidamente, fazendo as paredes da caverna
começarem a borrar mais uma vez. Ela estava à beira de desmaiar.
— Surria, pervertida como sempre, me fez acreditar que eu nunca
recuperaria a outra metade da minha alma, e suspeito que ela preferiria
que eu ignorasse isso até mesmo agora. Ningué m sabe quã o cruel a
Deusa do Vento e do Cé u realmente é , quã o implacá vel. Entã o pode-se
imaginar com quem meu irmã o e eu aprendemos a ser como somos.
— Nã o.
Uma ú nica palavra. Foi tudo o que Margrete conseguiu.
Ela poderia ter repetido, repetido mais meia dú zia de vezes, mas a
escuridã o estava corroendo o mundo novamente, e suas pá lpebras
icaram pesadas.
— Sim — sussurrou Darius, sua voz soando distante. Os olhos de
Margrete perderam a batalha e se fecharam. — Pensei que tinha te
perdido, minha maior criaçã o. Minha outra metade. Mas agora eu te
reencontrei, e vou me certi icar de que nunca mais te perderei.
Mais lembranças a assaltaram. Lembranças de Darius. De mã os
entrelaçadas e beijos roubados. Sorrisos alegres e longas noites.
Margrete viu aquela mesma ilha e todos os seus horrores, mas, ao seu
lado, em cada memó ria vacilante, estava um homem que a sustentou
por toda parte. Ele a encorajou a triunfar nos testes de Surria com um
sorriso carregado do mais puro orgulho.
Ela viu um homem ― nã o, um deus ― que a olhava com adoraçã o,
amor e admiraçã o.
Margrete sucumbiu prontamente à escuridã o voraz, sabendo que era
a ú nica maneira de escapar de uma verdade que ela desejava nunca ter
sabido.
Ela era mais do que um receptá culo para o poder de Malum.
Margrete era fruto da alma de um deus.
A metade desaparecida de Darius tinha renascido.
argrete acordou devagar.
Ela distinguiu o som de á gua correndo ao longe, de ondas
batendo na praia. Ela sorriu, os olhos ainda fechados,
esperando se manter no sonho fugaz que estava tendo. Talvez,
se nunca abrisse os olhos, permaneceria ali, com a mú sica do
mar ao fundo e a promessa de acordar em sua pró pria cama,
com Bash aninhado ao lado dela…
Margrete nã o icaria presa em nenhuma ilha criada por uma
deusa, forçada a passar por trê s testes mortais. Ela nã o teria um
deus importunando-a, reivindicando o inimaginá vel.
Ela se levantou com um sobressalto.
Darius.
As revelaçõ es do dia anterior a atacaram como a pior dor de
cabeça possı́vel depois de uma noite de bebedeira.
Cautelosamente, ela levou a mã o à s tê mporas e esfregou. Sua
cabeça ainda doı́a, embora certamente nã o fosse tã o ruim
quanto antes.
Margrete respirou fundo e examinou seus arredores. Ela se
viu na mesma caverna da noite anterior, embora agora a luz do
sol suave se in iltrasse, lançando sombras macabras nas
paredes. Um novo dia havia começado, o que signi icava que ela
havia perdido o precioso tempo necessá rio para encontrar seus
companheiros de naufrá gio. Poderiam estar indo na direçã o
oposta, e ela teria que correr para alcançá -los. Se ela realmente
pudesse encontrá -los.
Um peso sutil descansava por todo o comprimento de seu
corpo, e Margrete olhou para baixo. Linho ino feito do azul
mais profundo a envolvia, e com dedos hesitantes, ela agarrou o
material e o torceu nas mã os.
A capa era inconfundı́vel. Darius a cobrira com a roupa,
protegendo-a do leve frio, e, ainda assim, o deus nã o estava por
perto. Nã o que acreditasse que ele nã o estava olhando de longe.
Ele admitira que observava todos eles.
Margrete se preparava para jogar a capa de lado quando
congelou. Talvez fosse curiosidade ociosa ou instinto divino,
mas ela en iou a mã o em um dos bolsos fundos.
Ela amaldiçoou quando seus dedos envolveram uma ú nica
moeda polida, um brilho suave emanando de sua superfı́cie.
— Merda.
Margrete largou o metal ofensivo como se isso pudesse
salvá -la. Como se pudesse impedir que o terceiro teste
acontecesse simplesmente jogando a moeda de lado.
As palavras de Darius invadiram seus pensamentos de uma
vez em uma corrida nauseante.
Pensei que tinha te perdido, minha maior criação. Minha
outra metade. Mas agora eu te reencontrei, e vou me certi icar de
que nunca mais te perderei.
Margrete cambaleou para o lado e vomitou.
Nã o podia ser verdade. Nada daquilo fazia sentido, pelo
amor dos deuses. Darius era só um mentiroso que queria usá -
la, inventando uma histó ria boba em uma tentativa tola de
persuadi-la a se juntar a ele.
Mesmo enquanto ela repetia aquela explicaçã o vá rias vezes
para si mesma, seu estô mago se contorceu, sua espinha
formigou e seu coraçã o ― que estava acelerado segundos antes
― diminuiu para um ritmo constante. A batida forte
tamborilava em seus ouvidos, em desacordo com seus
pensamentos tumultuosos.
Darius alegou que ela era a metade perdida de sua alma, e
que essa fora a razã o pela qual a essê ncia de Malum a procurara
no ventre de sua mã e quando seu pai deu um golpe em
Azantian. Ortum acreditara que cometera um erro ao tentar
transferir o poder, mas talvez nã o tivesse sido um erro.
Semelhantes se atraem, dissera Darius, e se o poder de
Malum tivesse, de fato, reconhecido sua alma, teria sido atraı́do
para ela como um Azantiano era para o mar.
— Nã o — disse ela em voz alta para si mesma, sentindo-se
desequilibrada. Entã o se levantou abruptamente e enxugou a
boca. A capa de Darius caiu de seu corpo em uma pilha
amassada no chã o. — Nã o é verdade! — Ela chutou a peça
amarrotada, liberando a raiva reprimida sobre o manto
inanimado. Em sua mente, imaginou o deus dentro dela, sua
bota batendo em seu sorriso arrogante.
Durante toda sua vida, Margrete quis ser ela mesma, e se
Darius nã o estivesse mentindo, ela nunca fora, e nunca poderia
ser. Ou talvez nã o fosse assim que funcionava com as almas.
Nã o que ela soubesse muito sobre almas, para começar. Darius
tinha dito que as almas dos deuses eram diferentes das dos
humanos.
Aquilo nã o a deixou menos chateada.
A moeda que ela jogara apressadamente estava ao lado dos
restos fumegantes do fogo, virada para baixo. Ela se recusara a
olhá -la por muito tempo. Simbolizava tudo o que ela queria
escapar.
Margrete soltou mais palavrõ es enquanto saı́a da caverna,
deixando a capa de Darius e a moeda para trá s. Lá fora, o ar
tinha um frio cortante e os ventos brutais balançavam as
á rvores escurecidas que ela passara a odiar. Algumas das folhas
eram vermelhas, com redemoinhos pretos gravados em sua
superfı́cie, mas, alé m disso, ela nã o encontrou nenhum sinal
discernı́vel de onde estava.
Ela faria de sua nova missã o de vida nunca mais ver aquele
lugar.
Marchando para a loresta, ela escolheu o primeiro caminho
que a chamou ― noroeste, ao que parecia. Se tudo aquilo fosse
algum jogo orquestrado por Darius, ela imaginou que acabaria
onde ele quisesse de qualquer forma.
Seu temperamento trabalhou para tirar o melhor dela, e, de
certa forma, ela deixou. Margrete queria afundar um pouco em
sua desgraça. Na verdade, acreditava que merecia.
Bash tinha acabado de voltar para ela, e tinha sido roubado
mais uma vez. Seus amigos e tripulaçã o estavam perdidos em
algum lugar. E agora ela tinha sido largada sozinha, assustada e
com raiva na loresta em alguma ilha que nã o deveria existir.
Margrete podia ser otimista… até certo ponto.
Aquele ponto havia sido violado dias antes.
Ela se embrenhava na mata densa com passos pesados, sem
se importar com quaisquer criaturas que pudessem estar à
espreita.
Venham me pegar, ela pensou, revirando os olhos como uma
criança mal-humorada. Seria bom brigar um pouco, mesmo que
apenas para liberar sua indignaçã o ardente. E os monstros ali
nã o a assustavam ― ela já tinha visto monstros piores usando
rostos humanos.
Um riso lutuou até seus ouvidos e, ao som daquilo, ela quase
tropeçou em um galho caı́do.
Ela icou completamente imó vel.
O ruı́do melodioso puxou as cordas do seu coraçã o. Algo
naquilo era dolorosamente familiar, e sua testa franziu, um
alarme inquieto consumindo sua raiva.
A risada persistia, e ela correu até a fonte, o poder em seu
peito aquecendo quanto mais perto ela chegava. Ela rezou para
que fosse um bom sinal, uma indicaçã o para seguir em vez de
um aviso para fugir. Naquele momento, ela nã o se importava
muito. Por que ter cuidado se sua cautela nã o lhe causara nada
alé m de dor?
Margrete seguiu as notas lı́ricas até chegar à s margens de
um riacho. Lentamente, ela se agachou atrá s de um denso
pedaço de junco, escondendo-se o melhor que pô de. Se ela
encontrasse algué m alé m de seus amigos ou Bash, nã o seria
pega de surpresa. Estava chateada, mas nã o era exatamente
suicida.
Duas iguras materializaram-se como que do nada, um
homem e uma mulher, ambos mergulhados no riacho até os
tornozelos. Margrete sufocou um suspiro.
Eram fantasmas ― truques de luz que nada mais eram do
que uma imagem trê mula ― e, ainda assim, a visã o deles
atravessando o riacho, a alegria estampada em seus rostos, a
tocou profundamente.
Ela já tinha visto aquilo antes, ou, melhor, parecia que tinha
vivido aquilo. Uma onda de tontura a fez alcançar o tronco de
uma á rvore, sustentando seu peso enquanto o casal espectral se
aproximava.
Movendo-se em um ritmo vagaroso, Margrete vislumbrou
Darius e a alma que ele havia criado, a mulher que se parecia
muito com ela.
Nã o. A mulher que tinha sido ela.
Margrete estava paralisada, incapaz de desviar o olhar do
casal que só tinha olhos um para o outro. A mulher de cabelos
pretos com os olhos azuis mais brilhantes que Margrete já vira
devia ter dito algo que sua audiçã o aguçada nã o conseguiu
captar, porque, um segundo depois, a risada profunda de Darius
se seguiu. Ele lançou um sorriso travesso e se abaixou para
jogar um jato de á gua no rosto perplexo de sua companheira.
— Seu desgraçado! — a mulher guinchou, embora seu tom
nã o fosse mordaz. Com um sorriso malicioso, ela també m se
agachou e pegou a á gua gelada do riacho, retribuindo o
sentimento e molhando o belo rosto do deus. O cabelo loiro
grudou no rosto, e ele passou a mã o pelos ios ú midos.
— Agora você me paga, Wryn — Darius ameaçou, antes de
pegá -la em seus braços e girá -la muitas vezes. Ela riu e
protestou, implorando a ele para colocá -la no chã o mesmo
enquanto ela gritava de prazer.
E Darius… Margrete jamais imaginara que ele fosse capaz de
sorrir de tal maneira, tã o inquestionavelmente genuı́na e cheia
de alegria. Aquilo abalou seu nú cleo.
Margrete piscou.
A visã o desapareceu… ou a lembrança desapareceu.
Nã o parecia uma das alucinaçõ es tı́picas da ilha. A cena tinha
o peso que as lembranças costumam ter e, embora o par
fantasma nã o estivesse mais ali, eles se recusaram a deixá -la.
Suas pernas tremiam. Margrete nã o conseguia esquecer a
intimidade do que tinha testemunhado, como seu coraçã o
disparou como se ela tivesse sido erguida nos braços de Darius.
Lutou contra a vontade de vomitar. Novamente.
Uma rajada de vento brincalhona roçou seu cabelo e esfriou
sua testa, trazendo consigo o aroma caracterı́stico do mar do
deus e uma especiaria rica e estrangeira. Margrete fez uma
careta. Ela nã o conseguiria escapar dele.
Quanto mais icava na ilha, mais potentes aquelas visõ es se
tornavam, e Margrete tinha a sensaçã o de que talvez Darius nã o
tivesse mentido para ela.

Margrete seguiu o riacho, sem rumo.


Quando se abaixou para pegar a á gua fria e saciar a sede,
suas palmas voltaram com mais do que uma mera bebida.
Voltaram mais pesadas e carregando o pedaço inal de uma
maldiçã o.
A moeda a tinha encontrado, exatamente como ela sabia que
encontraria.
Sacrifício.
Aquela ú nica palavra brilhou sob uma camada de á gua. Uma
palavra simples que carregava muito signi icado.
Ela deixou cair as mã os com um suspiro, e a prata brilhante
despencou de volta no riacho com um respingo retumbante.
Margrete continuou seu caminho, embora nã o tenha bebido
mais daquela á gua.
les apareceram nas margens de um rio.
Todos, exceto Bash e Margrete. Bay tolamente pensou que
eles chegariam juntos.
— Devemos continuar na mesma direçã o que o planejado.
Eles podem estar indo para o norte e em direçã o à costa agora
— disse Atlas.
Ela caminhou para o lado de Bay, de olhos atentos,
examinando os galhos inos de cada á rvore como se esperasse
que um dos soldados semivivos assustadores pulasse e
atacasse.
Bay estremeceu. Se ele nunca mais visse uma daquelas
coisas, seria um prazer.
Eles já estavam andando por horas, e o pouco tempo para
dormir na noite anterior nã o fora su iciente para sustentá -lo.
Duvidava que o restante da tripulaçã o tivesse conseguido
dormir.
— Concordo. — Bay deu um aceno curto. — Embora eu
ainda esteja sem entender por que as nymeras nã o…
— Atacaram? Chuparam a alma de nosso corpo e se
alimentaram? Nos rasgaram membro a membro? — Atlas
completou sem uma pitada de emoçã o.
— Sim para tudo isso — respondeu Bay, balançando a
cabeça. — Pelo que sei, nã o sã o famosas por seu autocontrole, e
nó s é ramos uma refeiçã o fá cil. Elas deveriam ter nos matado ali
mesmo naquela passagem.
— Ou talvez nosso rei tenha algo a ver com a… hesitaçã o
delas.
Bay parou e se virou para Atlas, com uma resposta na ponta
da lı́ngua. Ele queria defender o rei, como era seu instinto, mas
Bash havia mudado, e as escamas de nymera ao redor de seu
pescoço nã o podiam ser ignoradas. Bay até ingiu nã o notar e
tentou nã o se focar nelas por muito tempo, mas seu sangue
gelava sempre que olhava para o pescoço de Bash, o cabelo,
aquelas pontas dos dedos escuras.
— Ele tem os traços daquelas criaturas, suas caracterı́sticas
distintas — continuou Atlas. — Serı́amos tolos em nã o
suspeitar do pior.
— E o que você está sugerindo que é o pior?
Atlas deu de ombros friamente.
— Que há mais em nosso rei do que pensá vamos. Ele disse
que acordou assim, e pode ser verdade, mas duvido que essa
seja toda a histó ria. Senti que ele estava escondendo alguma
coisa, mas tenho certeza de que contou a Margrete. O que
signi ica que ela escondeu a verdade de nó s també m.
Uma parte de Bay nã o podia culpar Margrete. Se os papé is
fossem invertidos, ele teria feito tudo que estivesse ao seu
alcance para proteger Adrian. Ainda assim, desejou que ela
tivesse con iado nele o su iciente para contar. Bay achava que
haviam se aproximado nos ú ltimos tempos. Mas se ela mentira
para ele, entã o talvez a verdade fosse pior do que ele imaginava.
— Qual é o plano?
Ambos se viraram ao som da voz de Jonah. Ele se arrastou
para o lado de Bay, dando a Atlas um olhar cauteloso. A
guerreira escultural o intimidava, como acontecia com muitas
pessoas.
— Mesmo plano de antes — disse Bay. — Vamos para a
costa.
— Eu sei que ambos estã o bem — Jonah opinou, um sorriso
sutil erguendo seus lá bios. — Se estiverem juntos, serã o uma
força formidá vel contra qualquer inimigo, mesmo aquelas
coisas assustadoras com os olhos sangrando. — Ele estremeceu
com a lembrança. — Deuses, que coisas horrı́veis de se olhar.
— Um eufemismo — Dani murmurou enquanto se movia
para a direita de Atlas, seu olhar vagando para as margens
curvas do riacho. Bay notou como Atlas imediatamente
enrijeceu.
— Ficaremos bem — garantiu Atlas em um tom
estranhamente suave. Ela engoliu em seco e pigarreou. — A
costa nã o está longe. Aposto até que chegaremos antes do
anoitecer.
Dani assentiu, seus cachos pequenos balançando. Ela nã o
parecia convencida, e seu silê ncio falava mais alto do que
qualquer palavra. Atlas se apressou para quebrar o silê ncio
doloroso.
— Nã o se preocupe, Dani — disse ela, parecendo demorar-se
em seu nome. — Nã o vou deixar nada de ruim acontecer com
você … ou qualquer outra pessoa, quero dizer. Fui treinada para
isso, bem, nã o para isso em particular, mas para situaçõ es ruins.
E esta é de initivamente uma situaçã o ruim. Nã o que eu nã o
possa nos tirar dela.
Os lá bios de Bay se curvaram. Atlas certamente nã o era
muito sutil, mas, felizmente para ela, Dani estava alheia à s suas
divagaçõ es nervosas. Era tã o incomum sua amiga fria e
controlada estar balbuciando.
Dani ergueu a cabeça e sorriu para Atlas de um jeito que fez
Bay sentir seu calor. A jovem marinheira tinha aquele jeito
paci icador. Sua mente voltou para o show de intuiçã o que ela
exibira na loresta antes dos soldados atacarem. Ele teria que
icar de olho nela dali em diante.
— Obrigada, Atlas — agradeceu Dani, espiando atravé s de
seus cı́lios grossos para a guerreira. Ela rapidamente desviou o
olhar de volta para o riacho.
As pontas das orelhas de Atlas icaram vermelhas. Bay se
perguntou quando sua amiga teria coragem de falar
honestamente com Dani. Ele sentiu a atraçã o em ambos os
lados, embora nenhuma delas soubesse como se aproximar da
outra. Engraçado como até os opostos podiam tropeçar quando
se tratava de assuntos do coraçã o.
Se saı́ssem dali inteiros, Bay poderia ter uma conversa com
Atlas. Ele ansiava pelo constrangimento que se seguiria ― e o
rubor feroz que se espalharia pelas bochechas dela.
Mas, por enquanto, estavam longe de estarem seguros, e ele
nã o podia pensar em um futuro que talvez nã o chegasse.
Bay se separou de sua tripulaçã o e foi na frente, sozinho. Nã o
conseguia se livrar da sensaçã o dos momentos inais na
passagem subaquá tica. Quando uma das feras passou os braços
ao redor de Bay, ele avistou seu rei, logo à frente, com uma
espé cie de expressã o de entendimento. Nã o houve medo,
nenhuma luta, apenas um tipo estranho de aceitaçã o.
Era uma imagem da qual ele nã o conseguia se livrar. Bash
talvez nã o fosse mais o homem que ele conhecia e amava. Quer
Margrete aceitasse ou nã o, Bay permaneceria vigilante e, se
Bash ameaçasse a tripulaçã o, ele agiria. Mesmo que tivesse que
usar sua arma. Havia dedicado sua vida a Azantian e à
segurança dos mares, e esse dever vinha em primeiro lugar.
Sempre.
Com pensamentos sombrios pesando em sua mente, Bay
seguiu em frente, sentindo como se estivesse carregando o
mundo nos ombros.
Inferno, talvez estivesse mesmo.
ash se viu cercado pelo inimigo.
Depois de sair da passagem submarina, as nymeras nadaram para a
á gua aberta, alé m das paredes rochosas da caverna. O tú nel levava a um
riacho furioso, e eles puxaram Bash rio abaixo.
Naquele momento, depois de lutuar com e sem consciê ncia pelas
ú ltimas dez horas, Bash estava no centro da horda, apoiado em um
tronco de á rvore na sombra ao lado da margem do rio. Levou um
minuto para ele se lembrar de si mesmo e de quem era, o que deve ter
sido aterrorizante por si só . Mas ele tinha esquecido o nome de
Margrete. Visualizou o rosto dela ao acordar, mas nã o conseguia se
lembrar. Só depois de uma hora a visã o o atingiu como um soco no
estô mago.
Estava enjoado. Bash prometeu a si mesmo que nã o se deixaria
esquecer novamente.
A sua direita, uma dú zia de nymeras tomava banho de sol nas rochas
que subiam do riacho de onde saı́ram, suas barbatanas escuras
captando a pouca luz que penetrava nas nuvens. As outras estavam em
terra, olhando-o com cautela enquanto ingiam conversar entre si em
uma linguagem grosseira e grave que ele nã o reconheceu. Todos
usavam roupas brancas inas, iguais à s de Minthe.
Mas o maior choque de todos?
Eles tinham pernas.
Os livros que Bash lia sempre descreviam suas barbatanas letais.
Nem uma vez ele tinha ouvido falar sobre a capacidade de se
transformar e andar em terra. Aquela revelaçã o o inquietou, para dizer
o mı́nimo.
E ele era um prisioneiro. Aquilo també m nã o era um bom pressá gio
para ele.
— Você está fraco.
Bash olhou para cima. Minthe pairava acima dele, seus olhos
anormalmente arregalados se estreitando. Ela quase parecia
preocupada.
— Estou bem — mentiu ele, soltando um grunhido enquanto
mudava de posiçã o. Minthe estava certa, ele mal conseguia levantar a
cabeça, muito menos o corpo. A exaustã o que o inundara desde o
“resgate” era esmagadora.
— Você precisa se alimentar — declarou Minthe simplesmente. — Se
nã o comer em um dia, nã o vai sobreviver. Seu corpo vai murchar e secar
em uma casca, até virar pó . Aposto que já está perdendo o controle da
realidade.
— Você pinta um quadro adorá vel — respondeu ele secamente. —
Mas acho que vou me arriscar.
Bash tentou se mover para o lado, para nã o ter que olhar para ela,
mas seu corpo protestou, e, com um gemido, ele caiu contra o tronco.
— Meu povo invadiu a vila de Lira dias antes de nos aventurarmos na
ilha para resgatá -lo, entã o nã o precisamos nos alimentar tã o cedo. Mas
você ? Você precisa de sustento. Agora. — Ela inclinou a cabeça e o
avaliou com seu jeito frio. — Gostaria que tivé ssemos mantido um
controle melhor sobre você durante a tempestade para que
pudé ssemos levar comida, mas eu deveria ter suspeitado que
conseguiria escapar. A inal, você é meu ilho. — Minthe parecia
orgulhosa, e seus lá bios maliciosos se ergueram em um sorrisinho.
Bash nã o se lembrava muito da tempestade que destruı́ra o Phaedra,
apenas de lutar por ar e a sensaçã o de mã os escorregadias tocando seu
corpo. Entã o escuridã o. Quando acordou, estava na ilha e embaixo de
uma pilha de ossos.
— Você tem pernas? — perguntou ele, odiando que dera a ela a
satisfaçã o de sua atençã o. Mas ele tinha que saber.
Um canto de sua boca se ergueu.
— Essa capacidade de mudança é inerente à s nymeras, mas nã o é
algo que permitimos que os humanos, ou Azantianos, saibam. — Ela
suspirou, vendo que Bash franzia a testa. — Você chama a energia que
aproveitamos de magia das trevas, mas, na verdade, toda magia é a
mesma coisa. Nã o existe bem ou mal. Meu povo, seu povo,
simplesmente utiliza os aspectos mais potentes da arte.
Bash balançou a cabeça. Se a magia deles nã o era má , como Minthe
alegava, por que fedia tanto e tinha um gosto tã o ruim?
— Gostaria de ouvir a verdade agora? — Minthe perguntou depois
de algum tempo. O ar estava cheio de tensã o. — Ou é muito teimoso
para isso?
— Dane-se — rosnou Bash. — Estou aqui, como prometido, mas isso
nã o signi ica que tenha que ouvir suas mentiras.
Minthe soltou um suspiro dramá tico, soando mais humana do que
Bash poderia imaginar.
— Vou te contar de qualquer maneira. Vai te ajudar a ver as coisas
com um pouco mais de clareza.
Bash duvidava fortemente disso.
— Seu pai sempre foi de ter segredos. Ele os colecionava como joias.
— A mulher levantou um dedo em forma de garra, inspecionando a
unha irregular. — Infelizmente, ele nã o estava protegendo você do jeito
que pensava. De fato, por não te dizer a verdade, ele te amaldiçoou.
O ar icou pesado demais nos pulmõ es de Bash.
Minthe franziu os lá bios, deixando transparecer um lampejo de
decepçã o que disfarçou antes que Bash pudesse registrá -lo
completamente.
— Eu me pergunto se ele, alguma vez, lhe contou a histó ria de como
conheceu sua mã e.
Como seu pai a conheceu, ela quis dizer.
Enquanto seu queixo se projetava desa iadoramente, Bash notou
como suas mã os se fecharam em punhos delicados, as garras cutucando
a pele branca doentia.
Se seu pai guardava segredos, teria feito isso porque era o melhor a
fazer, independentemente do que aquele monstro alegava. Bash poderia
nã o ser um santo, mas estava longe de ser um maldito. Pelo menos,
ainda nã o.
Nem Bash nã o acreditava em si mesmo.
— Foi na noite da Festa da Lua Cheia, dias depois que seu pai
celebrou a recuperaçã o de um artefato perdido, alguma bú ssola má gica
ou mapa, e ele ainda estava nervoso por causa da jornada — Minthe
contou, seus olhos icando nublados. Se com raiva ou tristeza, Bash nã o
conseguia discernir. — Como ele era inquieto e facilmente distraı́do, se
viu em seu lugar favorito. Acredito que você se refere a ele como a
Caverna Adiria.
Bash icou sem ar. Ela estava mencionando o ú nico lugar em que sua
alma encontrava descanso.
— Vejo em seus olhos que sabe de que lugar estou falando. — Sorriu
Minthe. — Foi lá , logo abaixo do palá cio, que ele foi atraı́do pelo
chamado de uma mulher presa dentro da caverna encantada. Ela era
forte, muito mais forte do que outras como ela, e vagava livremente pela
caverna, bem acima das profundezas da prisã o de seu bando. Poré m,
mesmo sendo tã o formidá vel, ela nã o podia deixar as paredes rochosas
amaldiçoadas por um deus.
“Entã o cantou a mú sica que zumbia em seu sangue escurecido,
esperando que um dia algué m respondesse ao seu apelo desesperado.
Quando o rei tropeçou na Caverna Adiria, seus olhos se encontraram
instantaneamente. Eles sentiram um puxão, o chamado de algo maior
do que qualquer um deles jamais conheceria. — Ela riu com algum
escá rnio, o som frá gil. — Claro, como seu pai sempre foi um homem
in lexı́vel, ele manteve distâ ncia, acreditando que aquela mulher era um
monstro. Ele fugiu imediatamente, subindo correndo os degraus e
batendo a porta atrá s dele.
“Mas aquela nã o foi a ú ltima vez que ele a viu. Ele voltou trê s noites
depois, pois uma mú sica que só ele podia ouvir o acordou de seu sono.
Descendo para a caverna mais uma vez, ele icou cara a cara com a
mulher que nã o saı́a de seus pensamentos, pois sua voz o assombrava
muito depois de seu primeiro encontro.”
Bash cerrou os dentes e seu estô mago gelou enquanto sua mente
trabalhava para compreender o signi icado oculto daquela histó ria. As
nymeras foram aprisionadas sob o palá cio e presas abaixo de centenas
de metros de rocha. Nã o era possı́vel que seu pai tivesse conhecido
aquela mulher na caverna.
No entanto, a verdade o encarava. Pela primeira vez, ele notou como
seu nariz reto parecia familiar, como suas maçã s do rosto altas
combinavam com as dele.
Minthe interrompeu seus pensamentos.
— Passou-se mais uma noite até que ele falasse com ela, e mais uma
noite até que ela respondesse. Mas como todas as boas histó rias de
amor, nã o precisavam de palavras para se entenderem. E assim, a
mú sica o acordava todas as noites, e ele se esgueirava para baixo do
palá cio, fascinado por aquela misteriosa estranha.
“Depois de muitas semanas, eles começaram a aprender a lı́ngua um
do outro, professando o amor compartilhado pelas ondas e pelo mar
selvagem. E nã o se engane, Sebastian. — Minthe ergueu os olhos cor de
ô nix. — Seu pai sabia muito bem o que ela era. Ele simplesmente nã o se
importava.”
Bash se encolheu ao ouvir seu nome completo, um nome que seu pai
nunca pronunciava.
Minthe sorriu maliciosamente.
— Como você provavelmente adivinhou, nã o demorou muito para
eles se apaixonarem. — Ela deixou a ú ltima parte se alongar, e Bash a
encarou. — Você é um homem inteligente, Sebastian. Acho que
consegue entender como isso termina.
— Nada disso é verdade. — As palavras deixaram seus lá bios
ressecados antes que ele pudesse detê -las.
Deuses, ele estava com tanta fome. Seu estô mago doı́a e latejava, tã o
insuportavelmente vazio que precisou de tudo o que tinha para se
concentrar nas palavras da nymera.
— Ah, mas é , e você sabe disso. Nã o insulte sua pró pria inteligê ncia.
— Minthe se agachou, apoiando-se nos calcanhares, os dedos dos pé s
descalços cavando o solo. — Eles se apaixonaram e tiveram um caso
secreto ali mesmo na caverna. Ningué m sabia, exceto um sá bio
conselheiro que o seguiu na noite em que a mulher deu à luz um ilho. A
criança que ela chamou de Sebastian. O conselheiro era um homem
inteligente com brilhantes olhos cor de coral. Um dos Azantianos
originais, acredito.
Ortum.
“Ele viu seu pai e sua mã e sob o palá cio e os ajudou a esgueirar o
bebê para longe dos guardas, sabendo que qualquer criança resultante
daquele acasalamento seria abatida sem demora. O conselheiro
elaborou um plano desesperado, que permitiria que seu pai mantivesse
o bebê como seu herdeiro. Seria necessá rio um grande sacrifı́cio para
usar aquele tipo de magia das trevas, mas o conselheiro o deu de livre e
espontâ nea vontade, tolamente devotado ao seu rei e incapaz de
assistir a uma criança inocente ser morta.
“Usando as palavras proibidas da antiga lı́ngua dos deuses, o homem
lançou um feitiço sobre a ilha, inserindo imagens de uma rainha em
seus pensamentos, uma que se casou com o rei um ano antes. As
pessoas dormiam em suas camas, suas mentes conjurando aquela
mulher como a verdadeira rainha. Foi um feitiço tã o poderoso que
custou ao conselheiro a ú nica coisa que ele tinha a oferecer. Sua alma
eterna.”
Bash respirou fundo. Ortum estava morto. Assassinado por um deus
que havia roubado seu rosto, e agora aquela criatura lhe dizia que a
alma de Ortum nã o encontraria descanso no submundo. Suas mã os,
pousadas ao lado do corpo, tremiam de raiva.
— Quando amanheceu, todos os cidadã os de Azantian ouviram a
notı́cia da morte de sua rainha imaginá ria durante o parto. Mas mesmo
com sua morte veio a alegria, pois ela dera à luz um menino saudá vel.
Minthe silenciou por um momento, olhando para a escuridã o da
loresta logo acima da cabeça de Bash. Ela nã o o olhou nos olhos, nã o
quando uma ú nica lá grima escurecida escorreu em sua bochecha
encovada.
— Ningué m sabia da verdade, entã o eles lamentaram aquela bela
ilusã o e celebraram o ilho do rei. Mesmo proibido pelo conselheiro, seu
pai descia para encontrar a sua mã e muito depois do parto, levando o
bebê para mamar e visitar. Mas com o passar dos anos, ele passou a
procurá -la cada vez menos. E, um dia, ele parou completamente de ir,
mantendo o menino longe de sua verdadeira mã e. — Os olhos de
Minthe icaram amargos, uma espiral viva de raiva se agitando nas
poças escuras.
“O rei ordenou a seu conselheiro que selasse a caverna, de modo que
ela nunca mais visse o ilho. O conselheiro obediente cumpriu a ordem,
e o monstro que se apaixonou por um homem, e que lhe dera um ilho,
foi aprisionado sob uma pedra in lexı́vel. Pelas dé cadas seguintes, ela
ouviu os ecos dos gritos de seu ilho e lamentou a criança que nunca
conseguiria criar.”
O coraçã o de Bash batia cheio de fú ria. Ele olhou para a nymera
diante dele, absorvendo cada detalhe. Partes dela era como olhar para
um espelho, e agora que ele via a semelhança, e ela contara sua histó ria
sombria, Bash nã o conseguia desviar o olhar.
Ele… ele sentiu pena dela. Ele sentiu pena de um monstro.
— Entã o veja, eu gostaria de ter conhecido você antes, mas o destino
nã o foi gentil comigo. Mas nã o se preocupe, pretendo compensar nosso
tempo perdido.
— Nã o estou interessado — disse Bash. Mesmo que a histó ria dela
fosse verdadeira, ele nã o queria entendê -la, queria icar o mais longe
possı́vel daquela espé cie. Ele podia sentir simpatia, mas isso nã o
mudava nada.
Um lampejo de má goa cruzou o rosto dela, e seus olhos se franziram
nas laterais.
— Me odeie o quanto quiser, mas você precisa se alimentar.
— Eu já te disse que nã o tenho interesse em me alimentar —
disparou Bash, e as palavras pareceram veneno em sua lı́ngua. — Só
estou aqui agora porque iz um acordo com você , embora nã o veja
minha tripulaçã o em lugar nenhum. Como sei que estã o vivos?
Minthe inclinou a cabeça e focou diretamente em seus olhos, seu
olhar mortal e a iado.
— Nymeras podem ser perigosas para seus amigos, para humanos,
mas nã o somos mentirosas. Uma vez que um acordo é feito, nó s o
honramos. Nosso povo sempre foi assim.
Bash zombou.
— Que có digo moral você tem.
— Como se os humanos fossem muito melhores — retrucou. — Eles
nem tentam disfarçar seus enganos. Coisinhas gananciosas, os mortais.
Seu povo, seu verdadeiro povo, só pega o que precisa e segue em frente.
Nó s nunca caçamos em excesso. Exceto quando uma nymera se
alimenta pela primeira vez, quando a fome que sente é insaciá vel. Leva
anos para desaparecer, mas, no inal das contas, diminui e logo passa a
ser controlá vel.
Fome. Ela falou de uma fome insaciá vel ― do tipo que Bash sentia
naquele momento.
Ele cerrou os dentes, desejando poder se levantar e ir embora. Por
que aquela fadiga o atingira de repente e de uma vez? Ele conseguia
controlar aquilo perto de Margrete…
— Eu ainda gostaria de provas — ele conseguiu dizer. — E nã o vou
embora com você até contar a Margrete por que fui.
Ele se odiaria por uma eternidade se nã o contasse a ela por que a
abandonara quando ela mais precisava dele.
— Vou permitir isso — declarou Minthe, depois de muitos
momentos cuidadosos considerando o pedido. Seus olhos, embora
escuros e sem profundidade, eram astutos, e Bash podia praticamente
ver os pensamentos girando neles. — Mas se eu deixar você vê -la e dar
seu ú ltimo adeus, deve fazer algo por mim.
Bash sabia exatamente aonde ela estava indo com aquilo.
— Alimente-se de uma alma, reabasteça-se, e entã o eu lhe mostrarei
seu amor, sã o, salvo e vivo. Nã o sou totalmente sem coraçã o, ilho.
Minthe apertou os lá bios, o ú nico sinal de que ela poderia estar
esperando ansiosamente por sua resposta.
Toda e qualquer simpatia que ele sentia por ela desapareceu. Nã o
podia ver como estava relacionado com aquele demô nio, aquele
monstro. Uma verdadeira mã e nã o pressionaria seu ilho a comer uma
alma humana. Mas, por tudo que Bash sabia, aquela poderia ser a
maneira de uma nymera demonstrar amor.
— A fome, quando bate, é forte — continuou Minthe diante do
silê ncio dele. — Suspeito que você só manteve o controle por causa
dela.
E agora que ele saı́ra do lado dela…
Aparentemente, Margrete ser sua luz nã o era apenas uma metá fora.
— Entã o, meu rapaz, o que vai ser? Morte sem saber que Margrete
está a salvo? Ou consumir uma alma e viver, para poder declarar seu
amor uma ú ltima vez?
A bú ssola moral de Bash icou turva. Queria ser egoı́sta, ceder a
Minthe e ver Margrete, despedir-se. E se as nymeras já tivessem ali um
petisco humano, logo estaria morto de qualquer maneira, fosse por ele
ou por um dos monstros de Minthe.
Entã o talvez nã o fosse tã o ruim se ele…
— Nã o — disparou antes que pudesse mudar de ideia. — Nã o vou
fazer isso. — Margrete nã o gostaria que ele roubasse uma alma só para
se despedir. Ela gostaria que ele izesse a coisa certa, mesmo que lhe
custasse tanto.
Minthe levantou-se em um movimento luido.
— Tudo bem — rosnou. — Será do jeito mais difı́cil.
Bash tentou se levantar, mas uma dor gé lida irradiava por seu peito e
descia por seus membros, deixando-o exasperantemente imó vel.
A fome só aumentou. A tentativa inú til tinha lhe custado as ú ltimas
forças.
Minthe deu-lhe as costas e foi até seu povo. Eles a cercaram
imediatamente e trocaram algumas palavras silenciosas. Ela deu a uma
criatura de cabelo curto e espetado um aceno de cabeça, e ela se virou
em direçã o à s á rvores.
Ela voltou minutos depois, arrastando um menino humano com nã o
mais do que dezessete anos.
Bash apertou os olhos, distinguindo suas feiçõ es, tentando lembrar
por que ele parecia tã o familiar. Entã o ele lembrou ― o rapaz era um de
seus marinheiros, um dos homens que se aventuraram no Phaedra.
A raiva encheu seu sangue e lutou contra o frio que deslizava em
suas veias.
— Liberte-o! — rugiu ele, mais uma vez tentando se levantar. Ele
falhou miseravelmente e caiu de lado com um baque agonizante.
Rastejando sobre os cotovelos, Bash lançou a Minthe seu olhar mais
venenoso, embora ela apenas tenha encolhido os ombros magros e
ossudos em resposta.
— Traga-o aqui — ordenou ela, estalando os dedos para o homem
obediente que trouxe seu marinheiro Azantiano. Bash odiava nã o
conseguir lembrar seu nome.
Enquanto puxavam o rapaz para frente, a fome insaciá vel de Bash
loresceu, transformando-se em uma fera. Muito pior do que antes,
aquela fome só se intensi icava à medida que o marinheiro se
aproximava, e Bash instintivamente cheirou o ar, inalando o aroma mais
inebriante que já conhecera.
O cheiro o lembrava da chuva fresca e do nascer do sol, dos ventos
do mar e dos bosques profundos de Azantian. Era divinamente bom.
O peito de Bash subia e descia irregularmente, e ele nã o pô de evitar
enquanto sugava avidamente o ar ao redor do garoto. Seu estô mago
revirou, ansioso, querendo ser preenchido com aquela delı́cia perversa
que lutuava para suas narinas.
— Veja, você já está respondendo, se entregando à sua verdadeira
natureza — elogiou Minthe, caminhando ao lado do prisioneiro e da
nymera masculina que o empurrava para frente. — Permita que isso te
preencha e se liberte. Solte a ré dea da besta. — Ela acenou com a mã o
para o macho que claramente era inferior a ela, e ele posicionou o
marinheiro ao lado de Bash, fazendo com que caı́sse de joelhos.
Embora magro e extremamente pá lido ― provavelmente devido à
desidrataçã o e ser mantido prisioneiro por monstros ―, o menino
mantinha os ombros erguidos desa iadoramente para trá s, seus
vibrantes olhos Azantianos estreitados e determinados. Ele sabia que o
im de sua vida se aproximava, mas o enfrentaria com dignidade.
— Eu nã o vou me alimentar dele — insistiu Bash, embora sua voz
tenha se transformado em um rosnado. — Eu nã o sou como você ! —
Ele balançou a cabeça, tentando se afastar da oferta, da alma humana
que nã o conseguia deixar de desejar.
Sim. Bash queria aquilo. E queria muito.
— Desista, Sebastian — murmurou Minthe, inclinando-se para
sussurrar em seu ouvido. — Toda a sua dor irá embora. Nã o haverá
mais fome, nã o haverá mais dú vidas, apenas alı́vio.
Bash poderia ter balançado a cabeça novamente, ou tentado falar,
mas o mundo ao seu redor cedeu e se estreitou até que apenas a alma
latejante no peito do garoto brilhou.
A cor era do mais puro e brilhante tom de ouro, e sua luz lorescia e
aumentava a cada segundo que passava. Cegou-o, deixou-o atordoado,
sem fô lego.
Nã o havia nada alé m de seu brilho que tudo consumia.
Nã o havia tripulaçã o para encontrar. Nenhuma mulher que ele
amasse mais do que a pró pria vida. Nenhuma ilha cheia de pessoas que
dependiam dele. Bash nã o tinha outra responsabilidade alé m de saciar
a fome dentro dele, e a luta contra seus instintos começou a diminuir.
A imagem do cervo correndo pela loresta ― e dele rasgando o
animal em pedaços à dentadas ― passou por sua mente. Aquilo tinha
sido real. Agora ele sabia.
Bash tinha matado dias antes, tentando preencher aquele vazio
guloso, e embora a alma de um animal nã o fosse nada comparada à
daquele mortal, ele teve que consumi-la.
— E isso…
Minthe esfregou as costas e os ombros de Bash com um toque gentil
e persuasivo ― confortando-o como ele sempre imaginara que uma mã e
faria. Bash fechou os olhos, dominado por uma sede inimaginá vel, e
desencaixou a mandı́bula, respirando fundo e inalando…
Deuses dos cé us e dos infernos.
Aquilo parecia o mesmo que ser atingido por um raio. A fome dentro
dele gritou de prazer, aquele vazio palpitante parecendo estender a
mã o para agarrar o mais doce de todos os pratos.
Bash nã o conseguia se lembrar de nada com um sabor tã o delicioso,
tã o cheio e certo. Ele sentiu a alma escorregar por sua garganta e
deslizar em sua barriga. Aqueceu seu peito, deu ao coraçã o uma nova
batida, mudou sua natureza até inalmente sentir o inı́cio do alı́vio que
Minthe havia prometido.
Ele nã o parou de inalar até que um baque alto soou, e a casca vazia
do marinheiro desabou no solo.
O corpo do menino chiou, murchando enquanto sua carne pá lida se
transformava em fuligem e pó . Uma brisa podre atingiu seus restos,
levando as cinzas para longe, sem deixar rastros do Azantiano que uma
vez viveu, respirou e teve esperança.
Bash sorriu. A fome inalmente tinha parado, e em seu lugar uma
nova sensaçã o tinha lorescido.
— Bem-vindo, Sebastian — disse Minthe, anunciando-o para as
nymeras que o observavam. — Você se tornou o que sempre foi.
Os seguidores de Minthe baixaram a cabeça, um som retumbante e
sussurrante saindo de suas bocas. Um por um, eles se ajoelharam,
deixando as escamas escuras brilharem na suave luz do dia.
Bash respirou fundo pela primeira vez, sua cabeça girando em torno
do cı́rculo de monstros.
— Meu povo! — Minthe ergueu os dois braços no ar, as unhas
pontudas alcançando o cé u. — Meu ilho inalmente voltou para casa,
para mim. Seu herdeiro…
O chã o tremeu e uma luz brilhante e divina explodiu ao redor deles.
Gritos perfuraram o ar e guinchos agonizantes chegaram aos seus
ouvidos. Houve explosõ es e as nymeras se curvaram. Mas Bash mal
percebia ― estava muito bê bado com a alma que havia tirado, muito
chapado com a adrenalina da matança.
Bash nã o foi afetado quando mais rajadas de fogo sacudiram o chã o
e ele caiu de costas, o cé u nublado sombrio. Por um instante, pensou em
uma mulher com longos cabelos castanhos e olhos azuis gentis. Ele a
conhecia, mas qual era o nome dela?
Uma igura pairou diretamente sobre Bash, roubando os
pensamentos da mulher misteriosa. Ele nã o distinguiu traços
discernı́veis, mas ouviu uma voz. Uma voz que ele reconheceu de longe,
e isso abalou seus ossos.
— Hora do grand inale, rei.
argrete caminhou pela loresta pelo resto do dia, o riacho a guiando para noroeste.
Ela tentou nã o pensar na terceira moeda, mas era quase impossı́vel. Toda vez que olhava para as
á guas frias, poderia jurar que vislumbrava um lash de prata.
As vezes, quando se sentia particularmente indisposta, imaginava ter
avistado uma forma feminina ao longe e um borrã o de cabelos ruivos.
Ela piscava e a mulher desaparecia. Margrete avançou impulsivamente
na direçã o do fantasma como uma tola, esperando que aquilo a levasse
a seus amigos ou pelo menos até algo que pudesse acabar com sua
estadia naquele lugar miserá vel. Nã o dava a mı́nima se a mulher era um
mau pressá gio. Aceitaria qualquer pressá gio naquele momento, bom ou
ruim.
Ao crepú sculo, Margrete ouviu o som revelador de ondas batendo, e
quando o sol mergulhou no horizonte, a terra começou a mudar.
Já tinha um tempo que ela nã o via o lash de cabelo ruivo.
A loresta chegara ao im, e a terra se inclinou para cima, pedaços de
grama preta e quebradiça se agarrando a ela. Logo acima, a lua, que
havia sido de um branco pá lido durante toda a sua estadia na ilha,
agora estava tingida de um vermelho que combinava com as folhas das
á rvores. O brilho sinistro manchou sua pele e lavou o mundo em um
tom de vinho doentio.
A cada passo subindo a colina, seu poder aumentava, pulsando
dentro dela como um tambor de guerra. Sua batida se tornou uma
cançã o de propó sito e determinaçã o, correndo por suas veias e
alimentando seus membros. Em pouco tempo, ela alcançou o pico. O
som das ondas icou estrondoso, mas um manto de calor envolveu seu
coraçã o com a proximidade do mar.
No entanto, antes de se permitir tempo para comemorar a pequena
conquista, ela se deparou com outro obstá culo.
Ali, a trinta metros de distâ ncia, havia dois portõ es imponentes
feitos de uma densa rocha cinza-ardó sia. Anexado aos portõ es abertos
havia uma parede curva feita da mesma pedra, com formas e imagens
incomuns desenhadas grosseiramente nas laterais. A estrutura circular
fora construı́da no penhasco com vista para as á guas escuras como
breu, mas seu tamanho escondia a maior parte da visã o das ondas.
Margrete sabia que nada de bom a esperava alé m daqueles portõ es,
mas seu poder queimava tã o ferozmente em seu peito que a forçou a
continuar.
Ela fez uma careta. O que quer que estivesse à frente seria o im
daquele longo pesadelo ou o começo de um novo.
Se aproximou o su iciente para perceber que os desenhos borrados
que tinha visto eram, na verdade, mares tempestuosos, ondas escuras
se estendendo o su iciente para tocar as pontas das paredes. Elas eram
temı́veis e profanas, e a essê ncia divina dentro dela desejava e
desprezava sua proximidade.
Margrete imaginou Bash, como tantas vezes fazia quando sua
determinaçã o vacilava e sua fé em si mesma diminuı́a. Ela imaginou que
ele caminhava ao lado dela, sussurrando palavras suaves em seu
ouvido.
Ela pensou em Bay, Atlas, Jonah, Mila, e nos gê meos. Ela fez uma
oraçã o silenciosa por Jace, Grant e todos os outros marinheiros
enterrados sob os destroços do Phaedra.
Esses pensamentos suavizavam sua magia abrasadora o su iciente
para que ela pudesse respirar fundo.
Só havia à frente. Margrete nã o podia voltar ― nã o mais do que
poderia ingir que ainda era uma simples mortal. Ela tinha sido
escolhida, fosse por destino ou acaso, e se a alma de Darius realmente a
compunha, ela fazia parte daquele jogo muito antes de seu primeiro
suspiro.
Tinha chegado a hora de terminá -lo.
Margrete ergueu o queixo e passou pelos portõ es abertos. Eles
levavam à arena mais grandiosa que ela já tinha visto. Fileiras e mais
ileiras de assentos vazios se estendiam ao redor de um poço cheio de
areia cor de carvã o. Cada grã o brilhava à luz de sete tochas lamejantes,
posicionadas em um cı́rculo perfeito ao redor do ringue polido.
Ela cerrou os punhos, a consciê ncia dançando por sua espinha.
Sentiu que era observada, e mudou o foco para uma abertura longa e
ina que havia sido esculpida no lado oposto, de frente para a costa.
Apertou os olhos no escuro e distinguiu uma silhueta feminina
tomando forma. Quando a luz da tocha capturou o vermelho profundo
do cabelo da igura, Margrete nem se preocupou em segurar o suspiro.
A mulher deu um passo à frente, entrando no ringue com um sorriso
malicioso. Usava um vestido de seda carmesim ― sua cor de sempre.
— Que porra você está fazendo aqui? — Margrete agarrou sua adaga
e a estendeu diante de si. Claro, ela poderia ter colocado toda a sua fé
em seus poderes para protegê -la, mas veja aonde essa con iança a
levou.
— Está com saudades de mim? — perguntou Shade, sua voz
cantante irritante. — Eu senti a sua. — Seus olhos esmeralda passaram
pela arena vazia, franzindo o nariz. — Embora eu pudesse viver sem ter
que retornar a este lugar. Sempre me lembra a corte mais baixa do
submundo.
Margrete tinha ouvido histó rias das chamadas cortes do submundo,
mas ningué m conhecia os detalhes, alé m dos mortos, e eles nã o
gostavam de conversar. Ainda assim, ela nã o comentou sobre isso em
particular. Tinha preocupaçõ es muito maiores.
— Sempre soube que você nã o era o que parecia — disse ela,
deslizando para a direita, se afastando da tesoureira da corte de
Azantian. Shade re letiu o movimento, e elas se circularam, predadoras
lutando pela supremacia. A ruiva nã o portava uma arma que Margrete
pudesse ver, mas aquilo certamente nã o signi icava que ela estava
indefesa.
Shade acenou com a mã o, zombeteira.
— E eu sempre pensei que você fosse apenas uma mulherzinha
simples e um pouco burrinha. — Ela riu amargamente. — Embora eu
deva dizer que estou feliz por nã o ter mais que brincar de casinha
naquela ilha. Fiquei entediada com todo o… — ela inclinou a cabeça
como se procurasse as palavras certas — … companheirismo idiota.
Embora Birdie fosse uma das minhas favoritas. Talvez eu tenha que
voltar para pegá -la depois que tudo isso acabar.
Margrete franziu o cenho.
— Você nã o ousaria.
Ela nã o tinha aprovado que sua irmã passasse tempo com Shade
antes, e agora percebeu o quã o vá lidos seus medos tinham sido.
— Ela tem potencial — continuou Shade, sorrindo enquanto a
provocava. — Uma coisinha tã o jovem e brilhante. Suspeito que ela
seria uma boa aluna.
— O que você é ? — perguntou Margrete, ignorando as tentativas
ó bvias de Shade de magoá -la.
— Eu sou muitas coisas — disse Shade, levantando um ombro
magro. A tatuagem em sua clavı́cula brilhava à luz da lua de sangue. —
Mas Azantiana, eu nã o sou.
Seu cabelo vibrante se moveu para o lado ― inalmente ― e Margrete
distinguiu a estranha marca de queimadura que vira de relance meses
antes. Quase parecia uma lor deformada.
— Uma espiã , entã o? — indagou, desviando a atençã o da lor
retorcida.
Ela nã o podia ser humana. Margrete sentia sua aura sobrenatural
agora que a má scara havia caı́do. Ou talvez sua magia tenha se tornado
mais poderosa e ela estivesse vendo a verdade por trá s dos olhos da
mulher.
Shade estreitou seu olhar.
— Suponho que mentes pequenas podem me chamar de espiã . Eu
simplesmente penso em mim mesma como um ativo bem colocado,
uma arma que pode ser usada, se necessá rio. Ajuda que eu seja imortal.
Uma vida ú til limitada pode ser um obstá culo no grande esquema das
coisas.
Imortal? Ela sabia que Shade nã o era uma deusa. Sua magia nã o se
comunicava com ela como a de Darius. Talvez ela fosse uma divindade
de nı́vel inferior, pelo pouco que entendia.
Shade e Margrete continuaram se rodeando, sem quebrar o contato
visual. A mã o de Margrete apertou o punho da adaga, e seu braço
permaneceu irmemente levantado, o corpo coçando para atacar.
— E sua famı́lia na ilha? — Margrete questionou, esperando mantê -
la falando… e distraı́da. Ela sutilmente olhou ao redor da arena vazia,
procurando outros, imaginando quando Darius apareceria.
— Aqueles? — zombou Shade. — Acho que deveria sentir pena da
minha querida família. Bem, nã o sã o realmente minha famı́lia, para
começar, mas nã o sabem disso. A ilha verdadeira morreu logo apó s o
nascimento, mas, com um pouco de magia das trevas… — ela estalou os
dedos — … fui transformada em sua doce recé m-nascida. Outra
vantagem da imortalidade e amigos em lugares privilegiados.
Darius tinha colocado a mã o em tudo aquilo anos antes, mesmo
amaldiçoado por Surria a viver como mortal. Ele poderia ter alistado
Shade para icar de olho na ilha do irmã o. Mas a marca de queimadura
na pele dela nã o era a insı́gnia de Darius…
— Você foi enviada para o orfanato depois que sua casa pegou fogo.
Você os matou. — Nã o era uma pergunta. Margrete lembrou que Bay
contara a histó ria dela, ainda que poucos fatos.
Seus olhos se prenderam em um lampejo de movimento à direita,
nada mais que uma sombra. Ela olhou de volta para a frente. Algué m
estava chegando.
Os lá bios de Shade se torceram em uma careta de zombaria.
— Acidentes acontecem, querida Margrete.
— Para quem você trabalha, entã o? — perguntou Margrete, embora
soubesse a resposta. Ela continuou a avaliar a arena, procurando
apressadamente mais sombras.
A ú ltima coisa que precisava era ser pega de surpresa.
— Ah, vamos lá , nã o se faça de boba. — Shade estalou a lı́ngua. —
Nó s duas sabemos para quem trabalho.
— Mas sua marca nã o é dele — disse Margrete, sinalizando com o
queixo para o pescoço da mulher. — Nã o a reconheço.
Shade zombou.
— Quem me criou nã o tem nenhuma relaçã o com para quem dou
minha lealdade.
Ela se calou abruptamente. Margrete seguiu seu olhar astuto
enquanto Shade se virava para a fenda estreita de frente para as ondas.
Outra igura entrou na arena, rodeada de sombras escuras
ameaçadoras que dançavam ao redor de seus ombros. Até a luz das
tochas parecia recuar dele.
— Ah, e aı́ vem ele! — gritou Shade, recuando para descansar contra
as paredes externas do ringue. Ela cruzou os braços casualmente e
observou Margrete e a igura que se aproximava como se estivesse se
preparando para o inı́cio de um show.
Margrete viu a forma fantasmagó rica, cuja estrutura de mais de dois
metros ela reconheceu instantaneamente. Darius se cansara de assistir,
ao que parecia. Ele se aproximou a passos largos, insuportavelmente
con iante, como se já achasse que tinha vencido aquele jogo distorcido
que eles jogavam.
Margrete seguiu o primeiro instinto que a atingiu.
Recuando o braço, atirou sua adaga cortando o ar com um assobio
sibilante.
Darius a pegou pela ponta da lâ mina com uma mã o enluvada, a
apenas dois centı́metros de sua garganta. A borda serrilhada atravessou
suas grossas luvas de couro, e os lá bios de Margrete se separaram
quando uma ú nica gota de sangue azul caiu na areia.
Ele sangrava. Que bom.
— Isso nã o foi muito legal. — Darius sorriu, seus olhos azuis
dançando enquanto a observavam. — Embora eu fosse negligente se
nã o elogiasse sua mira impressionante, querida.
Ele jogou a lâ mina de lado como se fosse um mero brinquedo. Ela
caiu no chã o, longe de Margrete. Ela a teria alegremente usado para
cortar a garganta dele e vê -lo sangrar. Talvez nã o o matasse, mas teria
lhe dado muita alegria. A fenda em sua luva de couro já havia se refeito.
Ela supô s que seu ferimento tinha curado segundos depois que ele
soltou a lâ mina.
— E, Shade, bom trabalho como sempre. Mas, da pró xima vez, tente
não atrair meus peõ es para um penhasco e direto para a morte. Pelo
menos nã o antes de eu ter a chance de brincar com eles.
Margrete teve a suspeita nauseante de quem era aquele certo
algué m… especialmente quando os lá bios de Shade formaram o
beicinho perfeito. Mal podia esperar para matá -la.
— Mas eu estava icando tã o entediada presa aqui, e sempre
imaginei como seria o gosto do sangue dele. — Shade lambeu os lá bios
sedutoramente.
Darius focou todo o peso de seu olhar em Margrete. A lembrança que
ela tinha visto mais cedo à beira do rio voltou ― o homem parado a
poucos metros de distâ ncia nã o poderia ser o mesmo rindo e brincando
no riacho, girando sua amada.
— Suas lembranças estã o voltando? — perguntou Darius, como se
estivesse lendo sua mente. Um lampejo de esperança distorcida
iluminou suas feiçõ es severas. — Deveriam estar. Quanto mais tempo
você icar nesta ilha, mais fá cil será o acesso.
— Nã o quero — rosnou ela, desejando que tivesse outra lâ mina para
atirar nele.
A mandı́bula de Darius se apertou e suas narinas se dilataram.
— Quando voltarem, você icará feliz por isso — disse friamente. Ela
suspeitou que ele lutava para manter a voz calma. — A mulher que
conheci nã o desejaria nada alé m de lembrar.
Margrete deu um passo corajoso para frente, e a eletricidade
atravessou seu corpo.
— Duvido que ela icaria emocionada por lembrar que você a matou.
A calma mal escondida de Darius estalou.
Em um lash, ele estava na frente dela, a poucos centı́metros de
distâ ncia, a respiraçã o fazendo có cegas em suas bochechas. O cabelo
loiro caı́a nos olhos e a mandı́bula orgulhosa estava tensionada.
Margrete podia sentir o gosto da raiva dele.
— Eu voltaria no tempo para mudar isso em um piscar de olhos —
Darius falou com os dentes cerrados. — Nã o se passou um dia sem que
meu arrependimento nã o tenha me corroı́do. Sem que tenha me
destruı́do.
Ele ergueu a mã o como se fosse segurar seu queixo, mas ela se
encolheu e ele deixou cair o braço, estreitando os olhos.
— Vai levar tempo, mas você vai se lembrar — garantiu, parecendo
tentar se assegurar mais do que a ela. — Sei que sente a conexã o entre
nó s, a atração, e eu sou um homem paciente, especialmente quando se
trata da mulher que amo.
Margrete riu. Nã o conseguiu evitar. Talvez os dias de exaustã o
inalmente a estivessem derrubando ou ela estivesse realmente
enlouquecendo, mas riu na cara de um deus muito, muito zangado.
Quando en im se acalmou, olhou para ele e balançou a cabeça.
— Você nã o sabe nada sobre amor, Darius. Nã o apenas fez a mulher
que diz amar, mas també m a matou. Tudo só para que pudesse se
tornar o deus que sua querida mã e queria que você fosse.
— Eu te disse que Surria mentiu — argumentou o deus, sua voz mais
dura do que a pedra que os cercava. — Ela sabia que eu nã o conseguiria
governar os mares sem sacri icar meu coraçã o, e, sem dú vida, ela teria
me despojado de meus poderes, permitindo que Malum icasse à
pró pria sorte. — Ele zombou da mençã o ao irmã o falecido. — Todo
mundo sempre acreditou que ele era o bom, mas Malum poderia ter
sido o pior de todos nó s. Certamente, o mais enganador.
— Fiquei pensando… Sua amante te implorou misericó rdia em seus
momentos inais? Você hesitou antes de varrê -la desta terra? Ou queria
acreditar nas mentiras de Surria, apenas para reivindicar seu poder
total?
Ela atingiu um nervo. Outro, ao que parecia.
Desta vez, em vez de alcançar sua bochecha, Darius ergueu as mã os
como se quisesse agarrar seu pescoço. Ele fez uma pausa antes de tocar
a pele de Margrete, seus dedos pairando cheios de ameaça e se
contorcendo de raiva.
— Wryn queria que eu governasse os mares tanto quanto eu. — Ele
deixou cair os braços para os lados e deu um passo para trá s, seus olhos
icando escuros. — Ela quase me disse para fazer o que fosse preciso, e
teria me perdoado por acreditar nas mentiras de Surria. Mas a alma
dela voltou para mim. Você voltou para mim.
De canto de olho, Margrete notou Shade inspecionando suas unhas,
aparentemente entediada.
— E Shade? Você a colocou em Azantian mesmo estando
amaldiçoado. Fale a verdade. Você sempre soube o que eu era? —
Margrete achou difı́cil acreditar que Darius tinha acabado de perceber
quem ela era para ele.
Darius observou sua serva deslumbrante com desinteresse, o que fez
Margrete se perguntar o que o deus esperava. Ele claramente planejara
que algo acontecesse naquele lugar, mas ainda tinha que agir. Ela
cuidadosamente marcou as duas saı́das possı́veis: os portõ es e a
abertura estreita por onde Darius e Shade haviam entrado.
— Shade é uma ninfa. Embora ela tenha nascido com a magia de
Calista, nã o pertencia à Corte dos Sonhos e do Amor Eterno, e eu a
encontrei em uma de minhas muitas viagens como humano, logo depois
que minha mã e amaldiçoou a mim e ao meu irmã o. Ela tem sido de
grande ajuda para orquestrar tudo isso. — Ele apontou para a ilha. —
Posso ser um deus, mas nã o posso estar em todos os lugares ao mesmo
tempo.
Margrete percebia como a impaciê ncia de Darius crescia, e, de vez
em quando, seus olhos iam para os portõ es como se esperasse que
algué m passasse.
— O que está esperando? — Margrete perguntou, levantando as
mã os zombeteiramente. — Nã o é isso que você queria? Eu? Sozinha e à
sua mercê ?
Darius se aproximou ainda mais dela, quase rosnando, suas narinas
dilatadas e sua testa franzida.
— Eu nunca quis você à minha mercê . Só quero que se lembre,
porra!
Dor. Margrete sentiu uma dor rolar de seu corpo em ondas mortais.
— Nó s está vamos tã o felizes, eu estava tã o feliz, e entã o tudo foi
tirado de mim como uma piada de mau gosto. Nunca perdoei minha
mã e por sua crueldade, e meu irmã o se recostou e riu enquanto eu
cortava a ú nica coisa que importava para mim. Ele riu.
O coraçã o de Margrete deu um pulo. Ela nã o podia evitar. Sua
empatia estava se transformando em uma fraqueza.
— Fiquei com muita raiva por tantos sé culos, e quando o destino
en im resolve me favorecer, a alma que espelhava a minha se apaixona
por outra. Um homem que nã o é digno de seu brilho, seu poder. —
Darius olhou para as pró prias botas, sua voz se transformando em um
sussurro. — E quando ela me olha com tanto ó dio, tã o venenoso
desgosto, quase me quebra de novo. Você quase me quebrou.
Darius estava ofegante quando terminou de falar, e seus olhos
estavam arregalados e cheios de uma agonia de apertar o coraçã o. Seu
olhar queimou nela, apelando, implorando para que ela dissesse
alguma coisa, qualquer coisa.
Por um momento, Margrete se perdeu naqueles olhos. Dentro
daquelas piscinas hipnó ticas, ela se imaginou vestindo a pele de outra
pessoa. Ela viu Darius elevando-se acima dela, muito como ele estava
agora, mas, em vez da fú ria que emanava de seu corpo, ela sentiu uma
paixã o que a consumia, um amor tã o feroz que quase a deixou de
joelhos.
Indo e voltando, a visã o se desenrolava, desde o presente até um
tempo de mais de mil anos antes.
Margrete devia ter vacilado, porque duas mã os tocaram sua cintura e
a seguraram irme, mantendo-a no lugar.
O toque de Darius enviou outra onda de imagens para sua mente.
Todas eram do deus e da mulher que possuı́a metade de sua alma, e
todas retratavam um amor lorescente que Margrete nã o podia negar
como sendo de puro encantamento.
Ela nã o podia negar porque sentiu em sua medula. Ela nã o podia
negar porque viveu aquilo.
Sim, a conexã o entre ela e a memó ria fantasma de Wryn se
fortaleceu e cresceu, e, por uma fraçã o de segundo, Margrete esqueceu
inteiramente quem ela era.
Mas entã o olhos escuros como breu brilharam em sua mente, as
manchas prateadas que lembravam estrelas. Ela piscou e afugentou o
passado, focando em Bash até que o presente se estabeleceu e o Darius
de agora se elevou sobre ela.
Margrete ergueu o queixo, capturando os olhos do deus, procurando
em suas profundezas uma mentira que ela sabia que nã o encontraria.
Ele a encarava o tempo todo, com manchas de ouro iluminando as
piscinas sobrenaturais de seus olhos, uma semente de esperança
emprestando a seu olhar uma sinceridade desconhecida.
— Odeio interromper este momento tocante, mas parece que nossos
queridos convidados chegaram.
A voz de Shade quebrou a conexã o, e Margrete cambaleou para trá s,
sua visã o enviesada, a arena um borrã o de cinza implacá vel.
Darius nã o tirou a atençã o dela até que passos pesados bateram na
areia compacta. Ele se encolheu com o que ela poderia confundir com
arrependimento.
Esse arrependimento logo desapareceu.
Quando Margrete se virou para observar as iguras que chegavam,
toda a simpatia que sentia pelo deus se dissipou como vapor.
Correntes chacoalhavam enquanto homens e mulheres encapuzados
eram levados para a arena. Sete formas femininas puxavam os
prisioneiros, mechas de cabelo ruivo saindo por baixo dos capuzes de
seus mantos esvoaçantes. Margrete nã o conseguiu distinguir nenhum
outro traço perceptı́vel das sentinelas, alé m dos lá bios pintados de
vermelho. Cada uma segurava uma grossa corrente de prata que
ocasionalmente puxava quando os prisioneiros resistiam ou tentavam
se libertar.
Nenhum conseguiu.
Margrete adivinhou quem ela encontraria sob aqueles capuzes, e a
ideia de ver sua tripulaçã o e amigos acorrentados e sendo levados para
suas prová veis mortes fez seu poder faiscar descontroladamente.
Nenhum deles falou ou gritou, levando Margrete a acreditar que
estavam amordaçados sob os capuzes. Talvez magicamente.
— Até que en im — Shade disse, bufando. — Demoraram muito para
chegar. — Ela se afastou da parede e marchou lentamente até o
primeiro prisioneiro, cujas mã os estavam presas à frente. Todo o ar
deixou os pulmõ es de Margrete quando Shade alcançou a bainha do
capuz.
— Sinto muito que tenha que ser assim, querida — Darius sussurrou
assim que o tecido caiu dos dedos de Shade.
Um monstro a encarou. Um monstro que ela amava com todo o
coraçã o.
Bash sibilou um momento antes de se lançar, com os dentes à mostra
e apontados para o pescoço dela.
le precisava de outra provinha, apenas mais uma alma,
e a que estava diante dele tinha um cheiro delicioso pra caralho.
Puro e poderoso, com apenas um toque de lavanda inocente.
Atravé s do capuz ino ouvia vozes abafadas e vislumbrava
iguras sombrias. Talvez fossem seus inimigos, as pessoas
mascaradas que o acorrentaram e o cegaram, mas ele nã o se
importava com nada alé m de afundar os dentes na criatura cuja
luz brilhava atravé s do linho.
Mais, mais, mais.
Fios carmesim nublaram sua visã o, bloqueando tudo, exceto
aquele brilho luminescente. Se ao menos ele nã o estivesse
algemado. Estaria sobre ela em um instante.
Tão faminto.
Faça parar.
Algué m agarrou seu capuz e puxou…
Nenhum outro pensamento passou por sua cabeça quando
ele viu a fê mea. Os olhos da presa se arregalaram de medo, e o
cheiro o atiçou. Um formigamento correu por seus braços,
fazendo sua fome rugir, embora sua beleza nã o fosse nada
comparada com o que estava dentro.
Mais, mais, mais.
Ele nã o era nada alé m de um animal cedendo ao instinto,
cedendo à besta que inalmente tinha se soltado.
Antes que seu guarda puxasse a corrente, ele atacou… Tudo
o que ele queria era apenas mais. Uma. Prova.
Nã o. Tudo o que ele queria era ela.
argrete nã o conseguia se mexer.
Em menos de um segundo, Bash se lançou na direçã o dela, com a
mandı́bula desencaixada e os caninos a iados à mostra, e um clarã o de
luz cobalto e pé rola colidiu no peito dele.
A explosã o enviou Bash para trá s, diretamente na ninfa que segurava
sua corrente.
Margrete se virou a tempo de ver Darius abaixar o braço, vapor
saindo de sua palma ainda brilhante. Nenhum traço de esforço
manchava suas feiçõ es. Ela se atreveria a dizer que ele parecia
entediado.
Gritos abafados de alarme ecoaram dos cativos encapuzados, suas
cabeças girando para frente e para trá s, ningué m certo de para onde
olhar. Na verdade, Margrete també m nã o tinha certeza de onde deveria
olhar. O instinto gritava para ela correr para Bash, mas a maneira como
ele a olhava… ele a teria matado.
Seu coraçã o despencou no estô mago, e a garganta queimou com o
á cido crescente. Bash teria me matado.
— Levante-o — Darius ordenou, suspirando dramaticamente. Com
um movimento, uma das mulheres encapuzadas correu para agarrar
Bash, a força do poder de Darius o enfraquecendo visivelmente. O rei de
Azantian tropeçou nos pró prios pé s, sua guarda suportando a maior
parte de seu peso enquanto ele balançava, um olhar atordoado
suavizando suas feiçõ es a iadas.
— Que divertido — Shade comentou, aproximando-se da açã o com
um sorriso travesso. Ela bateu palmas animadamente, como se aquele
desconcerto fosse uma peça encenada especialmente para sua diversã o.
Darius olhou brevemente em sua direçã o, e o que quer que tenha
transmitido com o olhar a deixou alerta o su iciente para icar em
silê ncio. Shade revirou os olhos, mas voltou para sua posiçã o anterior,
encostando-se devagar na parede da arena.
Choramingos de medo vieram de alguns dos prisioneiros, alguns
deles lutando contra as amarras em suas mã os. Seus captores puxaram
violentamente as correntes e gritaram obscenidades, ordenando que
permanecessem em silê ncio ou seriam mortos. O medo os fez se calar.
Bash, no entanto, nã o foi tã o facilmente persuadido.
O coraçã o dela trovejou quando ele levantou a cabeça, os olhos sem
profundidade, sem o brilho habitual. Ela nã o viu nada neles.
Absolutamente nada.
— Bash? — murmurou ela, seus joelhos vacilando enquanto dava
um ú nico passo à frente. Seu poder vibrava, parecendo assobiar em
reprovaçã o. Quando Darius ergueu a mã o, avisando-a para parar, seus
pé s obedeceram quase instantaneamente.
Ela odiava ver seu corpo obedecer, mas reconhecia o perigo bem à
sua frente.
O rei Azantiano rosnou, estalando os dentes como um animal
perverso, faminto e ansiando pela matança. Ela notou que mais
escamas tinham aparecido abaixo de seu peito. As unhas, antes
manchadas de tinta, agora estavam a iadas e grossas, armas por si só .
O que poderia ter acontecido no curto perı́odo de tempo em que
estiveram separados?
O guarda puxou a corrente, e Bash se virou, tentando mordê -la. A
mulher encapuzada levantou a mã o como se fosse golpeá -lo, mas
Darius impediu.
— Shade, pensei ter dito a você para nã o deixar suas subordinadas
baterem em nossos convidados. Controle suas ninfas. Você sabe o
quanto boas maneiras sã o importantes para mim.
A ninfa que segurava a corrente de Bash abaixou o outro braço com
uma careta.
— Agora que estamos todos aqui, vamos começar? — perguntou
Darius, os olhos vagando para a lua tingida de sangue. O vermelho
estampou també m em torno do branco luminoso, manchando o mundo
com um brilho sinistro. O deus sorriu diante daquele visã o, seus olhos
brilhando.
Para Shade, ele ordenou:
— Remova os capuzes.
Com um aceno para suas ninfas, sete capuzes foram levantados e
jogados de lado, a luz da tocha revelando seis rostos familiares e um
que ela nã o reconheceu.
Dani e Jacks se entreolharam com entendimento, o ú ltimo exibindo
um corte profundo na bochecha direita e no lá bio superior. Atlas, por
sua vez, aprumou os ombros e os encarou, mesmo com o rosto marcado
por sujeira e lama.
Jonah, pela primeira vez desde que ela o conhecera, franziu a testa o
su iciente para formar uma ruga, e Bay… seu amigo nã o demonstrou
nada no rosto. Ele mal respirou enquanto seus olhos examinavam a
arena, provavelmente procurando uma possı́vel fuga. Quase a matou
quando ele se recusou a olhar em seus olhos, quase como se a culpasse
por sua situaçã o.
Talvez ele culpasse.
Darius fez um gesto diante deles, e suas bocas se abriram, engolindo
ar fresco enquanto suas mordaças invisı́veis eram removidas.
Nã o mais que segundos depois, Mila sibilou para Darius, seu lá bio
superior curvado para trá s. Quando ela encontrou os olhos de Margrete,
seu olhar tinha se tornado frı́gido.
— Isso é tudo culpa sua — gritou ela, lutando contra suas correntes.
— Se você nunca tivesse vindo para nossa ilha, nada disso estaria
acontecendo!
Bay se encolheu ao ouvi-la, mas nã o a defendeu, e uma pequena
parte de Margrete morreu. Jonah apenas baixou a cabeça.
As entranhas de Margrete se agitaram, seu pulso disparou e seu
controle começou a falhar. Onda apó s onda de culpa afogou sua magia
cintilante, embora continuasse a brilhar, lutando para criar raı́zes.
Seu olhar caiu para o ú ltimo prisioneiro.
Uma nymera.
Usando um vestido branco ino, a nymera de cabelos pretos
observava apenas Bash, seus olhos cor de meia-noite tempestuosos e
cheios de fú ria. Ela se virou para Darius, a voz cruel e profunda.
— Tı́nhamos um acordo — disse ela com os dentes cerrados. — Você
prometeu deixar a mim e ao meu ilho em paz. O resto era seu.
Darius levantou um ombro zombeteiramente.
— Lembro que disse especi icamente a você que eu nã o mataria seu
ilho — respondeu ele, inclinando-se para Margrete. A magia dela
aumentou, afastando a vergonha transbordante.
O Deus do Mar inclinou a cabeça na direçã o de Margrete.
— E ela quem vai tirar a vida dele, efetivamente completando a
terceira prova e se tornando uma verdadeira deusa.
Entã o era disso que se tratava? Um teste para ela se tornar imortal?
Faı́scas de luz azul se acenderam nas palmas das suas mã os. O calor
queimava sua pele, mas nunca a machucava, e quanto mais as palavras
de Darius pairavam no ar, maior se tornava seu fogo.
— Nã o farei tal coisa.
Margrete virou as costas para seu amado rei e sua tripulaçã o. Ela se
manteve irme enquanto enfrentava o deus sorridente, que parecia
con iante de que ela cederia. Aquela con iança a preocupava.
Darius juntou as mã os atrá s das costas e diminuiu a distâ ncia entre
eles. Parou a trinta centı́metros de distâ ncia, e ela teve que levantar o
pescoço para manter contato visual. Ainda assim, nã o vacilou, nã o
desviou o olhar. Aquele era seu povo, sua família, e ela os protegeria até
o im dos dias.
— Deixe-os ir, Darius, ou…
— Ou o quê? — perguntou ele, seu tom livre de escá rnio. — Você nã o
pode me machucar. Eu sou tã o parte de você quanto seu coraçã o
pulsante. — Darius disse aquilo como se fossem fatos. E talvez fosse
verdade. Mas mesmo que ela tivesse sido criada a partir de pedaços da
alma dele, Margrete era ela mesma.
Ela nã o era ele.
— Quase sinto pena de você — meditou ela, suas palmas estalando
com eletricidade. Ela rastreou os olhos de Darius enquanto eles se
deslocavam brevemente para suas mã os. Um mú sculo em sua
mandı́bula se contraiu.
— Nã o sou ningué m digno de pena — sussurrou ele, perigosamente
suave.
— Nã o, isso mesmo, você quer ser temido. — Margrete inclinou a
cabeça e um lado da boca se curvou astutamente. — Você só sabe
enganar, mentir e lutar. Ainda assim, sinto pena porque nã o conhece
nada melhor. Só sabe quebrar as coisas que você corre o risco de amar.
As narinas de Darius se dilataram.
— Eu tive que lutar, Margrete. Nem todos nó s nascemos com a opçã o
de escolher um caminho diferente, embora eu tenha feito mais do que a
maioria. Mais do que qualquer outra divindade. Elas passam os dias se
afogando na devassidã o do submundo, contentes em se entregar à
fantasia e à opulê ncia, mas eu iquei aqui, no reino mortal, tentando
governar. Tentando fazer o certo pelo meu tı́tulo.
— E como exatamente você planeja fazer o certo pelo seu tı́tulo?
Quantos de seus chamados irmã os e irmã s planeja matar para
conseguir o que quer?
O deus se aproximou, perto o su iciente para que seu há lito gelado se
espalhasse pela testa dela. Ela estremeceu e tremores percorreram seus
braços e as palmas em chamas. O fogo icou mais brilhante e dançou ao
redor da forma iminente de Darius.
— Você nã o tem ideia do que está falando — disse ele friamente. —
Se realmente conhecesse os deuses, acreditaria que sou o melhor deles,
e mesmo que pense que sou insensı́vel e cruel, meu coraçã o bate no
mesmo ritmo do seu. — Ele levantou uma mã o, seus dedos magros
agarrando uma mecha solta de cabelo e gentilmente colocando atrá s da
orelha dela. Ela sibilou. — E minha alma, mesmo que apenas metade de
um todo… — ele olhou para ela incisivamente — … nã o sucumbiu à s
minhas ambiçõ es mais sombrias.
Ela nã o queria imaginar o que ele acreditava serem suas ambiçõ es
mais sombrias. Para ela, Darius era perigoso o su iciente.
Um rosnado arrancou seu foco do deus.
Bash virou a cabeça na direçã o dela, seu corpo grande puxando as
correntes que o aprisionavam. A ninfa segurando suas amarras grunhiu
com o esforço de mantê -lo preso.
A nymera ― aquela que Margrete entendeu ser a mã e de Bash ―
rosnou e mostrou os dentes. Um brilho sobrenatural envolvia seus
ombros. Lembrava a Margrete a luz da lua re letida nas á guas escuras.
Margrete voltou-se para Darius, mas o deus havia desaparecido.
Entã o viu que ele estava em um dos longos bancos que rodeavam a
arena. Ele se inclinou para trá s e apoiou os pé s, um rei observando seus
espectadores.
— Shade, a adaga, se você puder.
A ninfa sorriu largamente, todos os dentes perolados à mostra. Com
um movimento de pulso, nuvens vermelhas e cinza giraram e se
entrelaçaram pela força de um vento sobrenatural. Um brilho de aço
cintilou atravé s do caos da tempestade má gica, e uma adaga de prata
com cabo de ô nix lentamente tomou forma.
No espaço de uma respiraçã o, a lâ mina levantou, girou e entã o voou.
A arma sibilou em direçã o a Margrete, assim como a dela havia ido em
direçã o a Darius mais cedo.
— Nã o! — gritou ela, erguendo as palmas brilhantes diante de si,
suas pá lpebras se fechando instintivamente.
Segundos se passaram, e o metal frio nã o perfurou sua carne.
Lentamente, ela abriu os olhos e baixou os braços. A ponta da adaga
pairava a centı́metros de distâ ncia, lutuando no ar. Ela icou imó vel.
Cinco batimentos cardı́acos se passaram antes que seus sentidos
voltassem, e a adrenalina a fez tropeçar para longe da arma.
O sorriso de Shade era cruel, e Margrete sabia que ela teria adorado
ter enviado a adaga direto para sua cabeça. Nã o sabia muito sobre
ninfas, mas já as desprezava.
— Pegue a adaga, querida. Complete o teste, ou nenhum dos seus
amigos deixará esta ilha inteiro.
Margrete olhou para Bay. Seus lá bios se separaram como se ele
desejasse falar, mas nada saiu alé m de uma lufada de ar. Atlas
murmurou a palavra não. E Jonah… ele lhe deu um sorriso triste, um
sorriso de entendimento. Ele assentiu.
Margrete sabia que nã o tinha muito tempo antes de Darius cumprir
suas ameaças. Ela se virou e levantou a palma da mã o, um grito
estrondoso de batalha deixando seus lá bios.
A luz explodiu da mã o aberta, chamas prateadas e brasas azul-
cobalto iluminando a arena. As ninfas gritaram. Seus amigos gritaram.
Darius sorriu.
Sua magia apontava para a verdade, mais direta do que qualquer
lecha, direcionada para o imó vel Deus do Mar.
Foi entã o que colidiu com uma barreira invisı́vel de poder crepitante.
A magia se transformou em pó , a parede de proteçã o de Darius
corroendo sua encarnaçã o viva de raiva.
— Muito bem — elogiou. — Foi uma grande demonstraçã o de força!
Shade riu em algum lugar ao fundo.
— Embora eu esteja satisfeito em ver seu progresso e mira
impecá vel, realmente devemos continuar com isso. — Ele deu outra
espiada na lua. — Nã o temos a noite toda.
— Nã o vou fazer isso…
Um relâ mpago branco e azul disparou da palma de Darius, quase a
cegando quando passou direto por ela.
Margrete se virou.
Jonah.
De olhos estavam arregalados e boca aberta em um grito congelado.
Ele deu um passo, atrapalhado, estendendo a mã o para ela…
Sua cabeça escorregou dos ombros e caiu no chã o.
rosto de Mila se contorceu, e os gê meos olharam em choque. Bay caiu de joelhos, e até a
nymera reagiu, inclinando a cabeça com preocupaçã o, as sobrancelhas inas erguidas.
E Margrete? Ela girou e apontou.
Seu fogo irrompeu da palma, atirando pela arena. Darius foi para a
direita no ú ltimo momento, um olhar atordoado torcendo seu rosto. Ele
nã o esperava que ela reagisse com tanta rapidez… ou com tanta
precisã o.
Ele se levantou rapidamente, suas pró prias palmas ganhando vida,
sua magia elé trica no ar da noite. Margrete sentiu profundamente em
sua medula, sua força inata, seu poder dominante, e seu corpo inteiro
convulsionou. Ela poderia muito bem ter sido pega no meio de uma
tempestade, raios perfurando o chã o ao redor de seus pé s,
reverberaçõ es subindo e descendo em seu corpo.
Margrete nã o hesitou em mirar no deus mais uma vez. A imagem da
cabeça de Jonah deslizando sobre seus ombros icaria gravada em sua
mente para sempre, e tudo o que ela queria fazer era in ligir o má ximo
de dor possı́vel.
Sua luz errou Darius por trinta centı́metros.
Jonah era o melhor de todos. Doce, otimista, amá vel. Ele era jovem
demais para morrer, com toda a sua vida pela frente.
Margrete engoliu a bile subindo em sua garganta e mirou
novamente. Darius viu sua intençã o. Ele evitou o ataque facilmente, e
suor cobriu sua testa enquanto ela rugia, levantando a palma empolada
mais alto.
— Pare. De. Correr. — Ela fervia, rangendo os dentes, torcendo-se
cada vez que Darius a evitava. Ele nã o respondia com magia, embora a
observasse com cautela.
Que bom. Era mesmo para ele ter cuidado. Ele cruzou a linha e
assassinou um membro de sua tripulaçã o. Era melhor que corresse dali.
— Você vai se esgotar antes de completar o teste — disse ele, por
im, sua voz audı́vel mesmo estando a uma grande distâ ncia. Seu timbre
profundo sacudiu seus ossos e retumbou seu peito. — Se nã o pegar
aquela adaga e derramar o sangue do rei nestas areias, serei forçado a
matar outro. Você deve completar o teste, ou nunca vai ascender ao
má ximo de seus poderes e governar ao meu lado.
— Você só está fazendo isso porque é egoı́sta e solitá rio e quer que
algué m se afogue com você ! Nã o se importa comigo ou com o que eu
possa me tornar. Isso tudo sempre foi sobre você !
Margrete recuou e lançou outra explosã o rá pida. Sua mã o direita
chiou, fumegando por muitos e longos momentos depois. Ele estava
certo ― a exaustã o já pesava. Ela nã o teria muito tempo antes de sua
magia falhar completamente.
— Ultimo aviso — ameaçou Darius, piscando para a borda da arena
em um piscar de olhos. — Nã o me faça machucar mais amigos seus.
Acredite em mim, nã o sinto prazer com isso.
Como se ela acreditasse.
Margrete levantou o braço, mas hesitou. Naquela fraçã o de segundo,
a magia de Darius entrou na arena, atingindo de verdade.
Ela se virou a tempo de ver Jacks cair de joelhos, um buraco
carbonizado em seu peito, seus mú sculos e costelas se projetando para
fora. Ele gaguejou, sangue escorrendo de seu queixo para as areias
cinzentas abaixo. Jacks murmurou o nome de sua irmã antes de cair de
bruços. A fumaça subiu de seu corpo queimado, misturando-se com o
cheiro de magia potente no ar.
Margrete parou.
Congelada.
Em pânico.
Bash estava começando a recuperar sua força, e a ninfa que segurava
sua corrente guinchou quando ele se virou e olhou para ela. Em um
movimento rá pido demais para Shade ou Darius compreenderem, Bash
estava de pé e se movendo, e entã o ele abriu a boca e mordeu o pescoço
da ninfa. Sangue preto-azulado jorrou da ferida, molhando as areias e
tornando-as um tom mais escuro.
Bash quebrou seu pescoço em um movimento luido, e o grito
estridente da ninfa morreu em seus lá bios vermelhos.
A bile subiu na garganta de Margrete, quente, espessa e sufocante.
Ela se recusou a acreditar em seus olhos, recusou-se a ver a prova do
que Bash havia se tornado, mesmo quando a ninfa estava imó vel a seus
pé s.
Margrete cambaleou para trá s, seu mundo inteiro caindo aos
pedaços. Sua magia estava quase acabando, e ela sentiu sua luta, seu
esforço para ressurgir.
— Bash! Pare! — gritou ela, sentindo-se impotente. — Por favor,
pare!
Seu rei a ignorou e agarrou a mandı́bula da ninfa, inalando
profundamente. Uma né voa vermelha, da mesma cor de seu cabelo,
lutuou de seus lá bios ― diretamente na boca de Bash.
Quando a ninfa foi drenada de sua força vital, do que Margrete sabia
ser sua alma, Bash a deixou cair como uma boneca quebrada.
— Viu? Ele nã o pode se controlar — Darius zombou de algum lugar
atrá s dela.
Bay estava tentando desesperadamente chegar até ela, lutando
contra sua guarda e gritando maldiçõ es, mas sua ninfa nã o cedeu.
Dani caiu no chã o, com os olhos arregalados e vidrados.
Cautelosamente, ela alcançou seu gê meo e descansou uma mã o sobre a
cavidade em seu peito. Atlas grunhiu, seus olhos ixos na irmã de Jacks.
Ela se debateu contra as amarras, desesperada para ir até ela.
Bash levantou a cabeça, cabelo preto caindo em olhos
irreconhecı́veis.
Lentamente, ele olhou na direçã o de Margrete.
— Eu me apressaria — Darius gritou. — A pró xima vai ser a irmã .
O coraçã o de Margrete se partiu em um milhã o de pedaços
irrepará veis.
Havia meros segundos para decidir quem viveria e quem morreria.
Bash correu em direçã o a ela, seus membros um borrã o de roupas
pretas rasgadas e escamas irregulares.
O tempo parou quando seu coraçã o parou de bater, e os gritos
ecoando na arena se tornaram sussurros de morte.
Margrete virou-se para a adaga pairando nas proximidades,
lutuando naquela nuvem profana que Shade comandava. Ela olhou
para frente e para trá s entre a adaga e seu rei.
Nã o havia outra opçã o.
Era assim que Darius se sentira tantos anos antes? Ele se sentira
como se nã o tivesse outra escolha, levado à violê ncia por sua pró pria
mãe?
Margrete agarrou o cabo com um grito e girou, pronta para erguer a
lâ mina. Ela nã o estava no controle de seu corpo, e seu coraçã o batia tã o
rá pido que ela temia entrar em combustã o. Ali estava ela, pronta para
fazer o imperdoá vel e perder a pouca esperança que restava em sua
alma, e nã o sentiu nada alé m da sensaçã o de se afogar.
Bash a jogou no chã o antes que ela tivesse a chance de se aproximar.
Uma rajada de ar deixou seus pulmõ es com o impacto, e ela
derrubou a adaga. Bash rosnou e a bateu no rosto, suas longas unhas
cavando em sua pele, seu pescoço, seus ombros. Ela devia estar
soluçando, porque o calor passou por suas bochechas e ela sentiu gosto
de sal.
— Bash — Margrete falou seu nome enquanto se defendia da besta.
Aquele nã o era seu pirata, nã o era seu amado rei.
Aquele monstro foi feito para destruı́-la.
— Por favor, volte para mim — murmurou, as palmas das mã os em
seu peito. Ela usou uma onda de energia preciosa para derrubá -lo,
dando-lhe tempo para icar de pé .
Ela agarrou a adaga e o encarou. Ele se agachou em posiçã o de
ataque, a um metro de distâ ncia, pronto para atacar.
Agarrando o cabo com ambas as mã os, ela esperou que ele se
levantasse, seu olhar estreito sem vida e sem graça. Ele a acolheu como
um animal faria com sua presa, nã o do jeito que costumava olhar para
ela todas as manhã s quando acordavam em Azantian. Ela rolaria em
seus braços, e ele acariciaria seu cabelo, seu peito nu pressionado
contra ela. O Bash que ela conhecia era quente, leve e a fazia se sentir
em casa. Ele era seu melhor amigo, o ú nico naquele mundo que tinha
seu coraçã o e sua alma entre as palmas das mã os.
E ela tinha seu coraçã o també m.
Talvez aquela tenha sido a razã o pela qual ela hesitou quando Bash a
atacou pela segunda vez, porque ela simplesmente levantou a mã o ―
que formigava com magia ― e empurrou a força de seu poder para o
homem que ela amava.
Todo o corpo de Bash balançou violentamente quando sua energia
disparou nele, parando-o a poucos centı́metros de distâ ncia. Ele
mostrou os dentes enquanto lutava para atacar, mutilar, matar, seus
olhos nem uma vez baixando para a arma que ela segurava.
Tudo o que ele podia ver era sua presa, nã o a mulher a quem havia
prometido sua vida.
As mã os de Margrete tremiam, mas ela apontou sua adaga, o tempo
todo sabendo que nã o havia como en iar a lâ mina de prata em seu
corpo, em seu coraçã o, e roubar a mesma coisa que ele havia con iado a
ela para proteger.
Sua magia rugiu, querendo empurrá -lo para trá s novamente,
machucá-lo, mas Margrete resistiu o su iciente para se despedir.
— Eu te amo — sussurrou, olhando profundamente em seus olhos,
tentando desesperadamente encontrar um rastro dele. Nã o havia nada
alé m de escuridã o.
Ele lutou contra seu poder, lutou para segurá -la, e o vazio em seus
olhos fez sua força diminuir. Suas mã os romperam a barreira
enfraquecida entre eles, movendo-se para o pescoço dela, mas ele
sibilou quando tocou sua pele, como se queimasse. Ele soltou um
grunhido gutural.
— Nesta vida e na pró xima — ela jurou para ele. — Eu vou te amar.
Sempre.
Margrete libertou seu poder. Libertou tudo.
Ela sentiu afrouxar a adaga nas mã os, sentiu Bash inalmente
tocando ao redor de sua garganta, sua mandı́bula desencaixada
enquanto se preparava para inalar sua alma.
Eu te amo.
Seus olhos brilharam por apenas um segundo, uma fraçã o de
segundo, em um ô nix luminoso e prata. Ela viu as estrelas que amava
em seu olhar, e seu coraçã o se acalmou completamente com a visã o de
reconhecimento aguçando seu olhar.
Ele abriu a boca, e as mã os em volta do pescoço dela relaxaram. A
esperança surgiu em sua alma.
Mas Bash soltou um grunhido, tanto animalesco quanto antinatural.
Parecia arranhar suas entranhas enquanto percorria seu corpo, como
mil agulhas picando sua pele, tornando-a uma confusã o de tremores e
arrependimento. E Margrete soube entã o que, enquanto ele lutasse
contra seus demô nios, eles estavam vencendo.
Margrete fechou os olhos, desejando que o tempo parasse, rezando
para que aquele fosse outro pesadelo horrı́vel. Talvez ele acordasse,
deixasse de lado aquele torpor e…
A adaga perfurou o peito de Bash.
Ele gritou, um som que a perseguiria para sempre, e caiu de joelhos,
o cabo de ô nix projetando-se de seu coraçã o.
Margrete engasgou, olhando para o sangue pegajoso pingando da
arma em sua mã o. Ela deixou cair a adaga como uma maldiçã o.
Ela nã o tinha dado o golpe inal, não podia. Margrete estava
preparada para permitir que o amor de sua vida a matasse porque ela
nã o tinha forças para en iar a adaga em seu peito, e ainda assim…
Um soluço rasgou seu peito e a noite girou perigosamente ao redor
dela enquanto luzes, rostos e cores suaves icaram borrados.
— Sinto muito, Margrete.
Bay apareceu atrá s dela, as mã os ainda acorrentadas e os olhos
baixos. Ele nã o podia olhar para ela ou para a adaga a seus pé s. Ela
tropeçou para trá s, tonta, alé m de atordoada pelo que sabia que era a
verdade olhando-a nos olhos.
Ele o matara.
— Tinha que ser feito — disse Bay enquanto Margrete balançava a
cabeça furiosamente. Ele forçou o braço dela para frente. Forçou-a a
enterrar a lâ mina nos ú ltimos centı́metros e no coraçã o de Bash. Ele
havia tirado sua escolha.
Traiçã o. A palavra nã o era su iciente para descrever a turbulê ncia
dentro dela como uma tempestade.
A ninfa que segurava Bay quando ele entrou na arena tinha recuado,
com os braços cruzados e um sorriso presunçoso. Ela soltou suas
correntes no ú ltimo segundo, sabendo muito bem o que ele planejava
fazer.
E Darius tinha permitido. Ele provavelmente achou que a traiçã o de
Bay era bem-vinda.
Minthe rosnou enquanto lutava para chegar até o ilho, mas a luz
branca de Darius envolvia suas correntes, reforçando seu domı́nio. O
Deus do Mar nã o estava disposto a soltar a nymera enfurecida. Minthe
uivou, seus caninos a iados à mostra, sua cabeça jogada para trá s. Seu
lamento soava como um coraçã o partido ― se uma nymera tivesse um
coraçã o para ser partido.
Bay, por outro lado, nã o era uma ameaça, pelo menos nã o para o
deus. Ele estava muito atordoado para se mover, quanto mais para lutar
contra Darius ou suas ninfas, e apenas icou ali, olhando para suas
mã os, como se o sangue de Bash as manchasse.
Darius entrou na arena, luz azul e branca irradiando de todos os seus
poros. A tripulaçã o, exceto Bay, estava cercada pela magia do deus,
mantendo-os presos no lugar e em silê ncio. Seus peõ es. Suas
marionetes para brincar quando quisesse.
Margrete desviou o olhar de Bay com um soluço sufocado. Ele nã o
importava, nã o naquele momento.
Seus dedos envolveram o colar de Bash, e a frieza da pedra a trouxe
de volta à realidade. Margrete largou a gema e cambaleou para o lado
dele, pegando a mã o dele. Ele estava mais frio que gelo, sua pele pá lida
e doentia.
— Oh, Bash — sussurrou ela, alisando seu cabelo preto para longe
do rosto. — Sinto muito. — Ela se jogou em seu peito e soluçou, sem se
importar se Darius assistia. Quando ela se levantou, as pá lpebras dele
se fecharam, seu olhar vazio e vı́treo.
E entã o, em um momento que durou uma eternidade e um piscar de
olhos ao mesmo tempo, Bash lentamente virou a cabeça na direçã o
dela, a né voa que o envolvia evaporando.
— M-mon shana leandri le v-voux — gaguejou ele, sangue escorrendo
entre seus lá bios.
Meu coração bate com o seu. As mesmas palavras que ele tinha
sussurrado na noite anterior à mudança de suas vidas para sempre. A
noite em que eles escolheram um ao outro.
— Nã o se atreva…
Margrete nã o ouviu mais nada, a nã o ser aquela ú ltima respiraçã o
ofegante deixar seus pulmõ es. O universo inteiro poderia queimar em
chamas e ela nã o teria notado ou se importado. O som da vida dele se
esvaindo a transformou na mesma mulher que uma vez se sentiu tã o
total e desesperadamente sozinha. Quebrada e incompleta.
Os olhos de Bash icaram bem abertos e congelados. Sem vida.
O grito de Margrete que se seguiu abalou os alicerces da arena. Ele
balançou as paredes, e o chã o tremeu com sua dor.
Ela o traria de volta. Usaria seu poder e invocaria o mar.
— Você nã o pode salvá -lo — Darius murmurou diretamente atrá s
dela, parecendo ler seus pensamentos. — Ele nã o morreu nas á guas, e
as regras desta ilha nã o permitiriam tal coisa.
Sua voz era suave, e se ela achasse que ele tinha coraçã o, diria que
soava como remorso. Mas ela nã o se importava com ele ou seus
sentimentos.
Margrete se levantou, coberta do sangue de Bash.
— Eu vou acabar com você — disse ela, pouco acima de um sussurro.
— Mas nã o vou te matar. Nã o, vou fazer você assistir enquanto tomo
seu trono e tudo que ama. Você vai me implorar para te matar quando
eu terminar.
Darius cambaleou, surpreso pelo veneno em seu tom, pela
intensidade pura de sua promessa assassina.
Embora ela pudesse nã o ter en iado a adaga no coraçã o de Bash,
segurou a lâ mina e o ato de sacrifı́cio foi concluı́do. O que signi icava…
Signi icava que ela agora era igual a Darius.
O poder inundou seu corpo, reformando-a, transformando-a em
outra coisa. O chã o tremeu quando ela deu um passo em direçã o a ele.
Entã o outro.
Os olhos dele se arregalaram, e um lampejo de medo nublou seus
olhos azuis brilhantes.
— Você vai esquecê -lo com o tempo — falou ele, espelhando seus
movimentos.
Ela continuou a andar na direçã o dele.
— Você é metade de mim — continuou ele, franzindo a testa. —
Pense em todas as coisas que poderemos fazer juntos, tudo de bom!
Margrete balançou a cabeça lentamente de um lado para o outro, o
lá bio superior curvado.
— Você se lembrou do nosso tempo aqui! Eu sei que sim, pelo menos
você sentiu! Em breve, todas as lembranças voltarã o, e você nã o se
importará com ele! — Darius estava gritando, sua fachada calma há
muito esquecida.
A eletricidade faiscou na ponta de seus dedos, e o ar da noite
cintilou. Shade e suas ninfas, sentindo a violenta tempestade que se
aproximava, se espalharam como as baratas que eram. Elas correram
para os portõ es, abandonando o que restava da tripulaçã o.
As correntes dos Azantianos chacoalharam quando eles també m se
moveram para trá s, dando-lhe amplo espaço. Margrete ergueu a mã o e
sacudiu o pulso, fazendo as correntes caı́rem no chã o.
Margrete ignorou a presença de Bay. Ela poderia fazer algo de que se
arrependeria.
Darius levantou as duas mã os, tentando acalmá -la. Era tarde demais
para aquele absurdo. Sua boca se moveu e as palavras saı́ram, mas ela
nã o ouviu nada alé m do rugido estrondoso de seu coraçã o e o fervilhar
de seu sangue.
Margrete abraçou a raiva gé lida que crescia dentro de si e saboreou a
adrenalina sobrenatural inundando seu corpo. Aquilo luiu em suas
veias e ardeu, despertando a fera completa que era seu poder.
Por dentro, Margrete rugiu.
As paredes ao redor deles começaram a se mover e cair, desmoronar
e despedaçar. Elas se espatifaram na areia e encheram o ar de poeira.
Darius examinou apressadamente a arena em colapso antes de se virar
para ela e falar, en iando a mã o no bolso ao mesmo tempo. Ele pegou
um objeto ― uma joia, ao que parecia ― e levou-a aos olhos,
inspecionando-a.
Instantaneamente, ela soube o que ele segurava, como se a maldita
coisa a chamasse.
O coraçã o de Malum. O objeto que ela procurou por todos aqueles
meses apó s o ataque. Estava com o deus do mar todo esse tempo.
A testa de Darius franziu quando o coraçã o brilhante se quebrou na
palma de sua mã o, uma ú nica faı́sca iluminando o mundo antes de se
extinguir. Ele olhou para ela, as cinzas escorrendo atravé s de seus
dedos. O que restava de seu irmã o agora se fora para sempre.
Você fez isso. Você inalmente pegou tudo.
A voz dele soou lenta na mente dela, suave e grave, e ela notou como
suas feiçõ es endureceram como se falar com ela lhe custasse. Ela quis
que fosse assim. Ele tentou dizer mais, mas sua voz apenas chiou e se
despedaçou em sua mente, seu poder nã o conseguindo mais romper as
barreiras que ela impunha.
Consumida pelo fogo e pela ira, ela nã o se importou com o
verdadeiro signi icado por trá s de suas palavras. Tudo o que ela queria
era a morte dele.
Margrete ergueu os braços no ar, o fogo branco crepitando entre as
palmas. Ela deu uma ú ltima olhada no deus que roubou o amor de sua
vida, que roubou sua felicidade, e baixou as mã os para a terra dura. Ela
se soltou da ilha que já havia tirado tanto dela, um lugar miserá vel
agora manchado com o sangue frio de Bash.
Ela pensou nele, permitiu que sua magia envolvesse sua imagem e
tomasse conta dele até que se tornassem um. Havia seu poder e ele, e
sua divindade ansiava pela alma brilhante que ela havia mostrado.
Seu poder parecia senciente, crescendo com raiva, combinando com
sua ira. Queimou, exigindo açã o, exigindo que o homem que consumia
seus pensamentos fosse devolvido a ela.
Darius murmurou seu nome, mas era tarde demais. O chã o rachou e
se quebrou, e sob suas palmas um vazio se abriu e se esticou. Ela abriu
a boca e soltou o grito que havia guardado, o grito de angú stia que
havia contido, e, em resposta, sua magia explodiu atravé s do lodo e do
solo. O vazio se expandiu e se aprofundou.
Sua mã o direita formigou e queimou, e ela olhou para baixo,
observando as linhas cinzentas e peroladas subindo pelo braço. Elas
giraram e se re izeram, transformando-se em uma chama viva e
respirante, e onde a chama terminava, uma ú nica lá grima escura como
breu brilhava.
Margrete ignorou sua nova tatuagem e olhou para o abismo.
Ela tinha quebrado a ilha com sua fú ria, e, de alguma forma, abriu
um portal.
Uma escada estreita se formou do nada, seus degraus dourados se
erguendo da escuridã o, convidando-a a seguir seu caminho.
O submundo. A escada só podia levar a um lugar. E sua raiva ― a
raiva de uma deusa ― destrancou sua entrada.
“Eu te seguiria para qualquer lugar. Até para o submundo, princesa.”
As palavras de Bash ecoaram em sua mente. Ele podia tê -las falado,
mas era ela quem as tornaria verdadeiras.
Sem olhar para a destruiçã o e o caos que havia causado, Margrete
deu o primeiro passo para dentro do poço, uma brisa anormalmente
fria lambendo seus calcanhares. Algué m gritou seu nome,
provavelmente Darius, ou talvez até Bay, mas sua visã o apenas focava a
escada que a levaria à terra dos mortos.
Margrete seguiria Bash até o submundo e, quando chegasse lá , o
levaria de volta para casa.
E entã o ela esmagaria os deuses.
Um. Por. Um.
Até que ela fosse tudo o que restava.
argrete deu o primeiro passo para adentrar o
submundo.
Ela tinha aberto um portal para o reino dos mortos; fez isso
sozinha, de acordo com sua vontade. Teria impressionado
Darius se nã o o tivesse dilacerado. Mesmo depois que lhe
contara sobre o passado deles, ela ainda escolhera o rei de
Azantian. Aquele homem covarde que sucumbiu tã o facilmente
aos seus instintos mais bá sicos.
Darius rosnou, cerrando os punhos. Quã o errado ele estava
em supor que ela instantaneamente se lembraria dele. Que o
amaria.
Ele era um tolo.
Por causa dele, por causa dos testes, Margrete foi
presenteada com a centelha inal da magia divina que restava
no coraçã o de seu irmã o, e ela a tomou para si. Ela a pegou e
quis matá-lo com ela.
A traiçã o doeu.
— Margrete! — gritou ele, correndo atrá s da deusa que
descia. Ela nã o prestou atençã o nele, nem sequer levantou a
cabeça apó s seu grito estrangulado. Darius percebeu que nã o se
importava se sua fraqueza estivesse em plena exibiçã o… ele nã o
se importava com muita coisa, o que era totalmente enervante.
Assim como na noite em que matou Wryn milhares de anos
antes, um grande vazio o devorou. Era o tipo de vazio que era
tangı́vel, um veneno que se espalhava em seu sangue com cada
grama de seu coraçã o imortal.
Ele tinha prometido a si mesmo que nunca mais se
permitiria se sentir assim, mas, enquanto observava Margrete
se afastar ― pelo que parecia ser a segunda vez ―, aquele vazio
só cresceu.
Um lampejo de movimento à sua esquerda chamou sua
atençã o.
Enquanto Darius estava distraı́do, Minthe arrastava o corpo
morto de seu ilho pelas areias da arena. Como uma nymera, ela
se movia rapidamente, mas foi a necessidade inata de proteger
seu ilho que a levou para as sombras.
O rei poderia ter parado de respirar, mas Minthe tinha algo
que ele nã o imaginava. Esperança.
Se Margrete, de alguma forma, encontrasse a alma de Bash,
ele teria um corpo para onde voltar, e Minthe sabia disso.
Quando Darius matou Wryn, sua mã e incendiou seu corpo
segundos depois de seu ú ltimo suspiro, tornando impossı́vel
para ele trazê -la de volta naquela vida. Uma alma pode nunca
morrer, mas precisava de um corpo para andar na terra.
Minthe podia nã o gostar de Margrete, mas talvez a visse
como a ú nica chance de ter seu ilho de volta.
Darius cerrou os dentes, tentando seguir a nymera e seu ilho
morto, mas uma comoçã o forçou sua atençã o de volta para
Margrete. Seus amigos ― se é que ela podia chamá -los assim ―
começaram a descer os degraus de dois em dois, correndo atrá s
dela e entrando no submundo.
Tolos.
A ruiva liderava o caminho, seguida por uma guerreira loira
alta que segurava a mã o de uma pequena mulher com o rosto
manchado de lá grimas.
Bay permaneceu congelado antes do primeiro degrau, seus
olhos piscando para suas mã os de vez em quando, sua boca
aberta em choque. Darius icou surpreso que ele realmente
izera aquilo ― matou seu rei, seu amigo mais antigo.
Ele permitiu que Minthe deslizasse para a escuridã o,
sabendo que lidaria com ela depois. Nã o seria difı́cil localizá -la,
e ele tinha con iança de que Margrete fracassaria. Ningué m
jamais teve sucesso em devolver uma alma ao seu corpo mortal,
e ele duvidava que aquilo mudasse.
Por enquanto, Darius possuı́a uma grande arma e um
possı́vel peã o. Margrete poderia nã o parecer se importar com
Bay, nã o depois de sua traiçã o, mas ter o homem em seu arsenal
seria ú til quando ela voltasse a si e a né voa vermelha de raiva se
dissipasse. O submundo era um lugar cruel cheio de deuses
enganosos e negó cios dú bios que muitas vezes terminariam
mal para um grupo desesperado.
Ela nã o tinha a menor ideia do pesadelo em que entrou, e
nã o seria encontrar a alma de Bash que seria difı́cil. Os
companheiros deuses e deusas de Darius eram as razõ es pelas
quais ele icava o mais longe possı́vel do submundo. Era um
terreno fé rtil para problemas, e nã o do tipo divertido.
Sem perder o fô lego chamando-a novamente, Darius
marchou para o lado de Bay e espiou a fenda que Margrete
havia criado com sua dor incontrolá vel. Tã o perto do abismo,
ele foi forçado a admitir para si mesmo o quã o impressionante
o ato tinha sido. Especialmente para uma deusa recé m-criada.
Uma escada levava a um portã o que a levaria à s terras
externas do reino dos mortos. A partir dali, ela encontraria
coisas muito piores do que os monstros que ele e seu irmã o
criaram mil anos antes. Muito pior do que as nymeras ou o
Collossious.
Algo doeu no peito de Darius.
Ele queria condenar Margrete a suas escolhas irracionais e
permitir que as divindades a destruı́ssem. Darius queria que ela
se machucasse como o machucou, mesmo que
inconscientemente. Ele queria que ela sentisse a agonia que
queimava em suas veias e saboreasse a amargura em sua
lı́ngua.
Mas ele nã o podia.
Ele… ele se importava com ela. E talvez nã o fosse o mesmo
tipo de amor que o rei sentia, mas era tã o real quanto um deus
jamais poderia experimentar, e aquilo o torceu e forçou seu
pró ximo movimento.
Virando-se para Bay, Darius adotou seu sorriso mais
insensı́vel. Tanto ele quanto o mortal trê mulo estavam prestes a
iniciar o jogo de suas vidas, e nã o era hora para fraqueza ou
hipocrisia irracional.
Antes que pudesse corrigir seus erros e consertar o que fez
de errado, Darius teria que garantir que Margrete sobrevivesse.
E mesmo que ela nã o quisesse admitir, precisaria dele logo.
Uma situaçã o que funcionaria bem a seu favor. Darius nunca foi
o heró i, mas talvez ele pudesse, apenas uma vez, desempenhar
o papel.
— Eu acho que você virá comigo — Darius disse com um
sorriso tenso, inalmente ganhando a atençã o de Bay. Seus
olhos azuis se arregalaram e o corpo inteiro tremeu.
Pobre, pobre mortal. Ele parecia estar saindo de seu estupor
assassino.
— A menos que queira ser a causa da morte de ambos,
regicida… — Darius demorou-se na palavra, e Bay se encolheu
— … chegou a hora de visitar o reino dos deuses poderosos,
deusas e mortos-vivos profanos.
Darius lançou sua magia, permitindo que ela contornasse o
corpo de Bay e o empurrasse para frente e para baixo das
escadas. O homem se atrapalhou, quase tropeçando nos
degraus, mas Darius o segurou com força.
Eles estavam prestes a entrar na cova dos leõ es, e até o
coraçã o de Darius palpitou quando chegaram à imponente
porta prateada ao pé da longa escadaria.
Mil pequenos sı́mbolos estavam gravados na superfı́cie
polida, de ondas em crista a á rvores selvagens e lores.
Exé rcitos congelados estavam travados em batalha, todos os
tipos de armas presentes e prontas para serem usadas. Aqui e
ali, avistava a imagem de um casal de amantes ou de mã e e
ilho. Alegria, amor, ira, ganâ ncia, guerra…
O portal mostrava tudo.
Darius apertou a ré dea de sua guarda relutante e entã o
empurrou a porta e deu o primeiro passo na escuridã o
perversa.
Ele garantiria que Margrete nã o tivesse sucesso ― e entã o
faria dela sua verdadeira rainha. E se suas suposiçõ es
estivessem corretas, suas lembranças estariam de volta,
consumindo-a e afastando os pensamentos do rei insı́pido.
Darius sorriu.
Ele seria seu salvador, e ela cairia em seus braços como tinha
feito tantos anos antes.
Nesse meio-tempo, ele a deixaria jogar… e falhar. O
submundo iria destruı́-la, e ele estaria lá para juntar os
pedaços.
Darius puxou sua carga, e a porta para o reino mortal se
fechou com um baque retumbante atrá s deles. Nã o havia como
voltar agora.
antas almas bonitas tornaram este livro realidade.
Mais uma vez, devo agradecer ao meu avô , Benjamin Narodick,
por ser minha inspiraçã o, sempre e para sempre. A minha mã e,
Nancy Narodick, a quem agradeço por sempre ler meus
rascunhos e dizer que sou sua autora favorita, mesmo sabendo
que isso que ela diz é totalmente tendencioso.
Para Ashley R. King, que literalmente me mandava
mensagens todos os dias quando eu queria desistir e nã o
achava que era boa o su iciente. Ela é o má ximo, e, se nã o fosse
por ela, nada disso teria sido possı́vel. Você é minha rocha.
A minha editora, Charissa Weaks, obrigada por acreditar
nesta trilogia, para começo de conversa! Estou tã o agradecida
que você viu potencial na histó ria de Margrete e Bash! Sempre
serei mais do que grata.
Obrigada, Shawn Wallin, por ser minha lı́der de torcida e me
dizer exatamente quando Bash precisava “intensi icar”. E
obrigada à princesa Uddon, por me apoiar durante todo o
processo e por me fazer literalmente rir alto quando mais
precisei. Estou tã o agradecida que o Instagram nos conectou, e
que eu tenho algué m para pirar sobre namorados literá rios.
Para Tina Moss, Yelena Casale e toda a equipe do City Owl,
você s mudaram minha vida para sempre e tornaram meus
sonhos realidade.
Claro, eu seria negligente se nã o agradecesse ao meu marido,
Joshua, que é meu melhor amigo… mesmo que ele me
enlouqueça noventa por cento das vezes. Eu te amo.
E para meus leitores: você s sã o a razã o de eu escrever, e eu
os amo alé m das palavras.
Entre em nosso site e viaje no nosso mundo literário.
Lá você vai encontrar todos os nossos
tulos, autores, lançamentos e novidades.

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