Jesus, o Maior Filósofo Que Já Existiu - Peter Kreeft

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 122

d Livros

{ Baixe Livros de forma Rápida e Gratuita }

Converted by convertEPub
© 2007 por Peter Kreef

Direitos de edição da obra em língua portuguesa no Brasil adquiridos pela PETRA EDITORIAL LTDA.
Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser apropriada e estocada em sistema
de banco de dados ou processo similar, em qualquer forma ou meio, seja eletrônico, de fotocópia,
gravação etc., sem a permissão do detentor do copirraite.

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

K92j

Kreeft, Peter, 1937--


Jesus, o maior filósofo que já existiu/Peter Kreeft; [tradução Lena Aranha]. - 3ª ed. - Rio de
Janeiro: Petra, 2016.
Tradução de: The Philosophy of Jesus

ISBN 978.85.8278.043-5

1. Jesus Cristo - Ensinamentos. 2. Jesus - Personalidade e missão. 3. Igreja Católica - Doutrinas.


4. Cristianismo - Filosofia. I. Título.

08-4778. CDD: 232.954


CDU: 27-31-475

PETRA EDITORA
Rua Nova Jerusalém, 345 – Bonsucesso – 21042-235
Rio de Janeiro – RJ – Brasil
Tel.: (21) 3882-8200 – Fax: (21) 3882-8312/8313
SUMÁRIO

Introdução I: A quem se dirige o livro?


Introdução II: Por que Jesus é filósofo?
Introdução III: Quais são as quatro grandes perguntas da filosofia?
I. A metafísica de Jesus (O que é real?)
1. Metafísica judaica de Jesus
2. O novo nome que Jesus usa para Deus
3. A metafísica do amor
4. As consequências morais da metafísica
5. A santidade como a essência da ontologia
6. A metafísica de “Eu Sou”
II. A epistemologia de Jesus (Como sabemos o que é real?)
III. A antropologia de Jesus (Quem somos nós para saber o que é real?)
IV. A ética de Jesus (O que deveríamos ser para sermos mais reais?)
1. Personalismo cristão: ver “só Jesus”
2. A superação do legalismo
3. A refutação do relativismo
4. O segredo do sucesso moral
5. Jesus e o sexo
6. Jesus e a ética social: solidariedade
7. Jesus e a política: ele é de esquerda ou de direita?

Conclusão
INTRODUÇÃO I

A quem se dirige o livro?

Este livro é para cristãos e para não cristãos.


(1) O livro pretende apresentar aos cristãos uma nova dimensão de
Jesus: Jesus, o filósofo.
(2) E pretende apresentar aos não cristãos uma nova dimensão da
filosofia, uma nova filosofia e um novo filósofo. O livro não pretende
convertê-los.
Mas eu sou cristão e também filósofo, ou seja, acredito que Jesus é
Deus. E não escondo esse fato nem o disfarço. Por isso, coloco em
maiúscula seu nome do começo ao fim do livro.
Espere um pouco! Se acabo de perdê-lo como leitor potencial por
causa dessa declaração, desafio-o — agora como filósofo, não como cristão
— a se perguntar antes de largar a leitura e a dar uma resposta lógica: você
se recusaria a ler um livro sobre a filosofia de Buda apenas por ser escrito
por um budista? Ou um livro explicando a filosofia do Alcorão apenas por
ser escrito por um muçulmano? Não faria mais sentido recusar-se a lê-lo se
não fosse escrito por alguém que conhecesse bem o assunto?
INTRODUÇÃO II

Por que Jesus é filósofo?

O quê? Jesus é filósofo? Ele faria uma preleção em Harvard, ou


empreenderia um longo diálogo socrático na Academia de Platão, ou,
ainda, escreveria um comentário sobre a Crítica da razão pura de Kant?
É claro que não. E todo mundo sabe disso. Essa é uma “verdade
trivial”.
Jesus, em outro sentido, foi um filósofo, mas esse segundo sentido
também é trivial. Todos têm alguma “filosofia de vida”. Até Homer
Simpson é filósofo.
Contudo, Jesus foi um filósofo em um sentido intermediário
relevante, no sentido em que Confúcio, Buda, Maomé, Salomão, Marco
Aurélio e Pascal foram filósofos.
Cito C. S. Lewis, como a autoridade que me apoia nessa
classificação, em uma carta que escreveu para dom Bede Griffeths (Collected
Letters of C. S. Lewis, volume II [Coletânea de cartas de C. S. Lewis, volume
II]. São Francisco: Harper/SF, 2004, p. 191):
Questiono seu relato sobre nosso Senhor quando diz: “Ele é essencialmente um
poeta, e não é, de forma alguma, um filósofo”. Com certeza, o “tipo de mente”
representada na natureza humana de Cristo (e em virtude de sua humanidade,
suponho, que, nem de forma absurda nem irreverente, podemos falar dela como
“um tipo de mente”) acha-se exatamente na mesma distância do poeta e do
filósofo. [...] Afinal, ele é pleno de argumentos, de respostas argutas e até mesmo
de ironia. A passagem sobre o denário (“De quem é esta imagem e esta
inscrição?”); o dilema a respeito do batismo de João Batista; o argumento contra
os saduceus nas palavras: “Eu sou [...] o Deus de Jacó etc.”; a terrível, mas quase
engraçada, armadilha preparada por seu anfitrião fariseu (“Simão, tenho algo a
lhe dizer”); o repetido uso de a fortiori (“Se [...] quanto mais”); e os apelos à
nossa razão (“Por que vocês não julgam por si mesmos o que é justo?”) — sem
dúvida, reconhecemos em todos esses exemplos o veículo humano e natural da
Palavra encarnada como uma compleição mental em que a perspicácia de um
arguto camponês é tão notável quanto uma qualidade imaginativa — em outras
palavras, algo bastante próximo (em termos de natureza) a Sócrates e a Ésquilo.
Mesmo em relação às parábolas, [...] o modo como a alegoria representa sua
verdade é intelectual, não imaginativo — como a ilustração de um filósofo, e não
o símile de um poeta. Para a imaginação, o juiz injusto não tem nenhuma
semelhança com Deus — não traz para a história nem o aroma nem o colorido
de Deus (como, por exemplo, o pai do filho pródigo traz). A semelhança dele
com Deus é puramente para o intelecto. É um tipo de soma da proporção —
A:B::C:D.

Mas este livro não é tanto sobre o estilo filosófico, nem sobre o
método e, tampouco, sobre o “tipo de mente” de Jesus, mas é sobre sua
essência filosófica, suas respostas filosó-ficas, sua filosofia.
INTRODUÇÃO III

Quais são as quatro grandes perguntas da


filosofia?

Existem quatro perguntas filosóficas perenes. “Filosofia” quer dizer “amor


à sabedoria”, e a sabedoria, se a tivermos, pode responder, pelo menos, a
quatro grandes perguntas:

1. O que é? O que é real? Em especial, o que é mais real?


2. Como podemos saber o que é real e, em especial, o que é mais
real?
3. Quem somos nós, quem quer conhecer o real? “Conhecer a si
mesmo.”

4. O que deveríamos ser, como deveríamos viver para sermos mais


reais?

Há perguntas a respeito do ser, da verdade, do “eu” e da bondade. As


divisões da filosofia que examinam esses quatro aspectos recebem nomes
técnicos: metafísica, epistemologia, antropologia filosófica e ética.
1. Vamos começar pelo começo: tudo é relativo na metafísica. A
primeira coisa que todo bebê quer descobrir é: o que existe? A
primeira pergunta que meu filho fez foi: “Que é aquilo?” Ele
continuou a fazer essa pergunta em relação a tudo, como uma
metralhadora, até conseguir compilar um catálogo de respostas, um
universo. Se formos sábios, não crescemos nunca.
2. Mas nós mudamos. No início da adolescência, nos tornamos
críticos: não queremos saber apenas a diferença entre gatos e
cachorros, mas também entre verdade e falsidade. Queremos saber
como podemos compreender, como podemos ter certeza. Tornamo-
nos epistemólogos.
E como a questão mais interessante da metafísica é a respeito da
realidade última, a questão mais interessante da epistemologia é sobre
conhecer a realidade última: como nós, tolos finitos, podemos
conhecer a sabedoria infinita? Como o homem pode conhecer Deus?
Ou até mesmo saber se existe um Deus?
3. Um pouco depois, também nos voltamos para o nosso interior.
Perguntamos quem realmente somos quando deixamos de
representar nos palcos das outras pessoas. Por que é tão difícil
“conhecer a si mesmo”? É claro que somos seres humanos, mas o que
é isso? (“Que é aquilo?”) Uma vez que tomamos consciência do
conhecido, queremos saber quem é o conhecedor.
4. Por fim, quando constatamos que esse “eu” que compreendermos
é fundamentalmente diferente de tudo o mais no universo
conhecido, porque apenas ele pode fracassar em ser seu verdadeiro
“eu”, então precisamos não só discernir entre verdade e falsidade, mas
também entre bem e mal. Podemos ser bons ou maus. Nada mais no
universo tem essa escolha. O nosso “eu”, de forma distinta das nozes
ou das estrelas, não é totalmente dado a nós, mas é formado pelas
nossas escolhas. Uma vez que percebemos isso, perguntamos como
podemos nos tornar nosso verdadeiro “eu”, nosso “eu” real, nosso
“eu” bom. Como pessoas ruins podem se tornar boas? E o que é ser
uma pessoa boa? (“Que é aquilo?”)

A ordem lógica das perguntas é esta: antes de sabermos como


reconhecemos que algo é real, precisamos conhecer alguma coisa real; e
antes de sabermos o que é bom para nós, precisamos compreender quem
somos. Essa ordem lógica apresenta solidez, praticidade e acessibilidade
crescentes, e interessa às pessoas comuns. A ética baseia-se na metafísica; do
ponto de vista lógico, ela é posterior à metafísica, mas é psicologicamente
mais convincente.
Há mais de dois milênios, os filósofos meditam profundamente a
respeito dessas quatro perguntas. Por que eles não encontraram respostas
adequadas, conclusivas e aceitas por todos? Por que uma das melhores
definições de filósofo é “aquele que contradiz outros filósofos”? H. L.
Mencken declarou: “A filosofia consiste basicamente no fato de um filósofo
argumentar que os outros são tolos. Cada filósofo, em geral, prova isso.”
O argumento cristão é: porque a única resposta adequada e final para
as quatro perguntas é Cristo. João, o escritor mais filosófico da Bíblia,
começa seu Evangelho identificando Jesus com o logos (“No princípio era
aquele que é a Palavra. Ele estava com Deus, e era Deus. [...] Aquele que é a
Palavra tornou-se carne e viveu entre nós.”). O que é logos? É uma palavra
grega de sentido incrivelmente rico. Eis alguns dos sentidos: o logos
representa a Palavra de Deus, a revelação de Deus, a fala de Deus, a
sabedoria de Deus, a mente de Deus, a verdade de Deus, a razão de Deus, a
filosofia de Deus.
Jesus é a filosofia de Deus.
I
A METAFÍSICA DE JESUS
1. Metafísica judaica de Jesus

O primeiro fato que devemos conhecer a respeito de Jesus, a fim de


entender a sua metafísica — na verdade, o fato que é a chave histórica
necessária para a compreensão de tudo que Ele diz, fato esse que, de uma
maneira ou de outra, tem sido negado, esquecido, ignorado ou minimizado
por todos os hereges da história — é que Jesus era judeu.
Ele não era gnóstico, nem da Nova Era. Ele não era modernista, nem
humanista secular. Ele não era marxista, nem socialista. Ele não era filósofo
platônico. Ele não era panteísta brâmane. Ele não era ariano racista. Ele
não era assistente social, nem psicólogo pop, nem mito pagão, nem mágico.
Ele não era democrata nem republicano; na verdade, Ele não era norte-
americano. Ele não era libertário, nem monarquista; não era anarquista,
nem radical e, tampouco, neoconservador. Ele não era um homem
medieval nem moderno. Ele era judeu.
O que isso tem a ver com metafísica? Tem tudo a ver. Jesus conhecia
a resposta crucial para a pergunta crucial da metafísica porque era judeu. A
verdade suprema da metafísica, a natureza última da realidade, para os
judeus, não era o mistério incognoscível, como o era para todas as tribos,
nações e religiões pagãs que existiam ao redor deles.
Isso não se devia ao fato de que os judeus eram mais espertos que
todos os outros povos. Isso se devia ao fato de que a Realidade suprema,
por motivos conhecidos apenas por ela mesma, escolheu revelar-se a eles, e
a ninguém mais. Deus saiu do esconderijo.
Na verdade, Ele lhes disse seu nome: “Eu Sou”.
“Eu” é o nome de uma pessoa, não de uma força. Deus é um ser, e
não algo.
A meio hemisfério de distância, na Índia, grandes sábios tiveram a
percepção de que a Realidade suprema era única e infinita, mas não sabiam
que seu nome era “Eu”. Ao contrário, a maioria deles pensava que o “eu”
ou “ego” (a palavra latina para “eu”) — ou seja, nosso senso de que somos
indivíduos únicos, irredutíveis e distintos — era a ilusão suprema e o
grande obstáculo para o esclarecimento supremo.
É provável que esse tenha sido o motivo pelo qual o Oriente nunca
desenvolveu uma moralidade ou política de direitos humanos como fizeram
os judeus, os cristãos e os mulçumanos; enfim, o Ocidente. Pois o
fundamento metafísico para a noção dos direitos do homem é a ideia (ou,
antes, a verdade revelada) de que o homem foi criado à imagem de Deus.
Os direitos humanos do “eu” e a própria realidade humana do “eu” estão
fundamentados no “eu” divino. O Ocidente foi receptivo aos dois “eus”,
enquanto o Oriente obstruiu os dois.
Na verdade, duas religiões não poderiam diferir de forma mais
radical em sua metafísica que o judaísmo e o hinduísmo. O que o
hinduísmo afirmava ser a ilusão suprema e o obstáculo supremo ao
esclarecimento e à sabedoria era exatamente o que o judaísmo afirmava ser
a realidade e a sabedoria supremas. Se um judeu dissesse ao seu rabino:
“Acabo de descobrir que sou Deus”, o rabino rasgaria a roupa dele e
clamaria: “Blasfêmia! Insanidade! Arrogância! Idiotice!” Mas se um hindu
dissesse a mesma coisa para seu guru, este sorriria e diria: “Parabéns.
Finalmente você descobriu a verdade. Bem-vindo à categoria dos
iluminados”.
O hinduísmo e o judaísmo elevaram-se acima do paganismo pela
percepção de que Deus era único e perfeito. Os hindus alcançaram esse
ponto de baixo para cima; os judeus, de cima para baixo: os hindus
chegaram a Ele por meio da experiência mística humana; os judeus, por
meio da revelação divina.
O hinduísmo e o judaísmo eram as duas religiões mais puras do
mundo antigo. As duas religiões ultrapassaram o paganismo por meio do
conhecimento de que Deus é onisciente e, portanto, não pode ser
enganado, iludido, influenciado como os deuses do paganismo, nem se
pode escapar dele. Mas o motivo para a crença dos judeus era diferente do
dos hindus. O motivo dos judeus era que Deus sabia tudo, pois Ele criou o
universo; o dos hindus era que Deus estava sonhando o universo.
A noção da Criação, propriamente dita, é única dos judeus. Ela é
expressa por uma palavra exclusivamente judaica: bara’. Essa palavra não
tem equivalente em nenhuma outra língua antiga. É um verbo que não tem
outro sujeito além de Deus. Apenas Deus pode criar. Pois criar quer dizer
fazer a partir do nada, não a partir de alguma coisa. Criar quer dizer trazer
à própria existência alguma coisa, não apenas sua forma, sentido, estrutura,
ordem ou destino. Criar não é apenas dar nova forma a uma matéria já
existente; é fazer a própria existência da matéria.
Nenhuma vez na história, essa ideia, a ideia de um único Deus criar a
própria existência de tudo a partir do nada, entrou em alguma mente
humana a não ser na dos judeus e daqueles que aprenderam com eles
(principalmente cristãos e muçulmanos).
O Deus judeu, sozinho entre os muitos deuses antigos, sempre foi
“Ele”, nunca “ela” (nem “isto”, nem “eles”, nem um ser hermafrodita). Pois
“ela” simbolizava algo imanente, enquanto “Ele” era transcendente. “Ela”
era o ventre de todas as coisas, a mãe cósmica, mas “Ele” era outro que não
a mãe-Terra. Ele criou a terra e entrou nela vindo de fora, da mesma forma
que o homem vem do interior da mulher. Ele impregnou o não-ser com o
ser, a escuridão com a luz, a matéria morta com a vida, a história com os
milagres, as mentes com as revelações, seu povo escolhido com os profetas,
e as almas com a salvação. Ele era transcendente.
Por isso, apenas o judaísmo, dentre todas as religiões antigas, não tem
deusas nem sacerdotisas. Pois os sacerdotes são representantes e símbolos
dos deuses. Os sacerdotes são os intermediários não só entre o homem e
Deus, mas também entre Deus e o homem. As mulheres, como os homens,
também podem representar o homem diante de Deus, pois elas também
são seres humanos, valiosas, boas e piedosas. Mas as mulheres não podem
representar esse Deus para o homem, pois Deus não é nossa mãe, mas
nosso Pai. A Terra é nossa mãe.
Jesus sempre chamou Deus de “Pai”. E Jesus não era de forma alguma
um misógino. Ele libertou a mulher mais que qualquer outro em seu
tempo. Mas Ele também era judeu. Ele acreditava que o judaísmo era a
revelação do verdadeiro Deus. Ele acreditava que Deus nos ensinou como
falar dele. Ele não só acreditava nisso, mas sabia disso, pois estava lá! Ele era
(e é) o eterno Logos, Mente, Razão ou Palavra de Deus. Ele era a Mente que
tinha inventado o judaísmo — a não ser que Ele fosse um mentiroso; e o
judaísmo, uma mentira.
O monoteísmo hindu harmonizou-se com o politeísmo. Até hoje, os
hindus adoram muitos deuses tanto quanto adoram apenas um. Brahma
manifestava-se igualmente em Vishnu, o “criador” imanente da vida; e em
Shiva, o destruidor; e em Kali, a esposa de mil braços de Shiva — e em
literalmente milhares de deuses e deusas. Mas, para os judeus,
simplesmente não existem outros deuses. Com um traço não ecumênico da
caneta de Deus, todos os deuses de todas as religiões do mundo foram
riscados do mapa.
A história não é complacente com o politeísmo. No Ocidente, todos
os outros deuses estão mortos. (Quantos templos de Diana, de Mitra ou de
Zeus você encontra nas Páginas Amarelas da sua cidade?) E também os
adoradores deles. (Qual foi a última vez que você conversou com um
cananeu, ou um moabita, ou um hitita?) Quatro mil anos depois de
Abraão, metade das pessoas do mundo aprendeu com os judeus que (como
dizem os muçulmanos) “não existe nenhum Deus além de Deus”. Ele é o
único, o Criador. Ele é o único Deus.
Esse é o primeiro ponto da metafísica de Jesus. Ele não é original.
Todos os judeus sabiam disso. Qualquer pessoa que ignore, duvide ou
minimize a força desse fato histórico não tem a mínima possibilidade de
entender a filosofia de Jesus.
E eis uma segunda crença exclusivamente judaica: que a vontade
divina é perfeitamente boa, reta, santa e justa. Deus é o único Deus que
você não pode influenciar. E uma vez que esse é o caráter da Realidade
suprema — e desde que para sermos verdadeiramente reais temos de nos
conformar ao caráter da Realidade suprema — por conseguinte, o sentido
da vida é ser sagrado, santo. A moralidade flui da metafísica, porque a
bondade flui de Deus. “Sejam santos porque eu, o SENHOR, o Deus de
vocês, sou santo.” A Torá repete essa ligação como uma fórmula litúrgica.
Deus, ao contrário dos deuses do politeísmo ou do panteísmo, não tem um
lado obscuro. Por isso, nós também não podemos ter um lado obscuro. As
consequências da metafísica judaica para a ética abalaram o mundo. O
mundo todo tem uma mãe judia, uma consciência judia, porque o mundo
todo tem um Pai judeu.
Essa bondade divina não é apenas perfeita, ela é mais que perfeita.
Ela irradia como a luz do sol. Ela é o amor ágape, generoso, altruísta, que
doa e sacrifica a si mesmo. Deus procura intimidade com o homem, Deus
quer se casar com o homem. Isaías declara: “O seu Criador é o seu marido”
(Isaías 54:5). Para esse fim, Ele faz alianças, prepara para a aliança
fundamental, o casamento.
Nenhum pagão jamais suspeitou da possibilidade de existir essa
intimidade, nem mesmo com seus deuses finitos e antropomórficos, ou
seja, o relacionamento que a Escritura chama de “fé” ou fidelidade. E, por
essa razão, nenhum pagão jamais entendeu o sentido mais profundo nem o
horror do “pecado”, pois o pecado é a ruptura desse relacionamento. O
pecado é para a fé o mesmo que a infidelidade é para o casamento. Apenas
quem conhece a maravilha do casamento pode conhecer o horror da
infidelidade.
Por isso, Jesus, o judeu, levava o pecado muito mais a sério que
qualquer pagão poderia levar, e é por isso que Ele paga o preço máximo —
sua própria vida — para nos salvar do pecado.
Do ponto de vista puramente racional do filósofo, a coisa mais
surpreendente acerca do conceito judaico de Deus não é o fato de Deus ser
único, nem perfeito, nem bom, nem mesmo amoroso, mas de que Ele, o
ser infinito, tem caráter. Ele não é apenas “o fundamento do ser”, mas um
indivíduo com personalidade. E esse indivíduo e sua personalidade podem
ser conhecidos (connaitre, kennen) por intermédio da experiência da oração,
do esforço moral, do arrependimento e da fé como um relacionamento
vivo com Ele semelhante ao casamento. Apesar de ser infinito; “infinito”
não quer dizer “que não tenha caráter”. Ele é infinitamente santo,
infinitamente reto, infinitamente justo, infinitamente amoroso etc. Ele não é
tudo em geral e nada em particular. Ele discerne entre o bem e o mal, e
exige que façamos o mesmo no pensamento e na vida. Para esse propósito,
Ele concede a cada um de nós a consciência, o profeta interior: para que
sejamos moralmente rigorosos e judiciosos e saibamos discernir entre o
bem e o mal. Ele, por ser infinitamente rigoroso, não faz concessão ao mal.
E nós, se quisermos viver em sua família, como seus filhos, devemos fazer o
mesmo. Da mesma forma que seu Filho unigênito é igual ao Pai, nós, seus
filhos adotivos, também temos de ser iguais ao Pai. Por isso, Ele nos diz:
“Sejam perfeitos como perfeito é o Pai celestial de vocês” (Mateus 5:48).
Os judeus religiosos anteriores a Jesus já tinham aprendido com seus
profetas boa parte dessas verdades surpreendentes a respeito de Deus
(embora eles não soubessem que Deus tinha um Filho eterno) e, assim,
acerca da Realidade suprema e, portanto, acerca da metafísica. Tudo que
Jesus fez foi mostrar o que eles já sabiam, mostrar isso de “forma próxima e
pessoal”, pôr a face de Deus “na face deles”. Ele não mostrou a eles um
novo Deus, nem ensinou um novo conceito de Deus nem um novo
atributo de Deus, mas deu a eles uma nova obra de Deus, a mais
extraordinária de todas as obras de Deus, a Encarnação, e nela, a redenção
por meio do sofrimento, da morte e da ressurreição divinas.
O Pai e o Filho são o mesmo Deus, pois “quem me vê [Jesus], vê o
Pai” (João 14:9). Tal pai, tal filho. Jesus não era Deus representado, mas
Deus presente, Deus tornado o mais presente possível, Deus conhecido
pela visão, até mesmo pelo toque e também pela fé. O Céu veio à terra.
Esse não era um novo conceito de Céu, mas uma nova presença do Céu.
Jesus mostrou ao seu povo escolhido 33 anos de Céu. Pois o Céu está onde
Deus está. Deus define o Céu, não é o Céu que define Deus.
2. O novo nome que Jesus usa para Deus

O nome pelo qual Jesus chamava Deus era ainda mais espantoso que
aquele que Deus revelou a Moisés. Os judeus aprenderam com Moisés que
Deus é apenas Eu Sou, a pessoa eterna, perfeita, única e totalmente real. E
Jesus chamava essa pessoa por um nome que ninguém jamais sonharia ou
ousaria usar: “Pai”.
Esse fato representava dois choques: Deus era Pai de Jesus, por
natureza, na eternidade; e nosso Pai, por adoção, no tempo.
(No mundo antigo, “filho adotivo” era o título legal genérico para
mulheres e homens adotados; uma vez que o direito de herança era passado
por meio dos homens, “filho” era a palavra necessária para designar o fato
de que mulheres e homens tinham direito à plena herança espiritual de
todas as riquezas de Deus concedidas por intermédio de Cristo. O ponto
realmente “inclusivo” só poderia ser expresso por meio de uma palavra
aparentemente “exclusiva”.)
E Jesus ainda foi mais adiante. Ele usava a palavra “Abba” — não
apenas “Pai”, mas “Papai”, o termo íntimo usado pela criança ou pelo bebê.
(Até mesmo um bebê consegue balbuciar: “Abba”, ou “Papa”.) Aquele que é
infinitamente transcendente, agora, também será, por todo o resto do
tempo e da eternidade, infinitamente íntimo. Agora, o Pai está brincando
com o bebê e usando a fala dos bebês. O divino inacessível tornou-se tão
acessível que pôde ser morto. Ele não só tornou seu espírito acessível, mas
também seu sangue. Suas palavras de salvação não eram como as dos
filósofos: “Esta é minha mente”, mas: “Isto é o meu corpo” (Mateus 26:26).
O apóstolo João, já idoso, ainda estava espantado e estupefato
quando ponderou esse paradoxo ao escrever sua primeira epístola. A
primeira frase do Evangelho dele diz: “No princípio era aquele que é a
Palavra. Ele estava com Deus, e era Deus. [...] Aquele que é a Palavra
tornou-se carne e viveu entre nós. Vimos a sua glória.” A primeira frase de
sua epístola declara: “O que era desde o princípio, o que ouvimos, o que
vimos com os nossos olhos, o que contemplamos e as nossas mãos
apalparam.” A origem implícita de toda manifestação tornou-se clara. O
“Tao”, por trás das “dez mil coisas”, se tornou uma dessas manifestações.
A equação de Deus com Cristo é semelhante à equação E = mc². A
energia divina foi convertida em massa por uma espécie de fissão
transnuclear. O sujeito divino (“Eu”) tornou-se um objeto humano (“ele”).
A velocidade da luz celestial tornou-se finita.
Por que Ele fez isso?
3. A metafísica do amor

“Para que vocês também tenham comunhão conosco. Nossa comunhão


é com o Pai e com seu Filho Jesus Cristo” (1 João 1:3). O “ponto crucial”
ou o resultado prático do paradoxo teológico da Encarnação é a
oportunidade religiosa de relação, ou intimidade, com a Realidade
suprema. Essa é a solução mais radical para o problema fundamental da
metafísica: como conhecer o Ser. O Ser (“Sou”) também se tornou pessoa
(“Eu”), e constata-se que o conhecimento é casamento! O objeto da
metafísica propôs casamento ao metafísico. Isso é algo totalmente
inesperado, como se Newton, ao descobrir a gravidade, tivesse ouvido uma
voz vinda de toda a gravidade do universo: “Você quer se casar comigo?” É
como se o quadrado da hipotenusa declarasse estar apaixonado por
Pitágoras.
Apenas o amor poderia motivar essa loucura. Os braços estendidos
de Cristo na Cruz são a resposta de Deus à nossa pergunta infantil:
“Quanto você me ama?”; “Esse tanto!” Quão grande é essa extensão? É a
distância entre o Céu e a terra que foi transposta pela Encarnação, e era a
distância entre o Céu e o Inferno que foi transposta pela nossa salvação.
Cristo é a revelação, ou a realidade, suprema de Deus, do mais
supremo segredo da metafísica. A busca metafísica do homem encontra sua
realização terrena final no Gólgota, o “lugar da Caveira”, no qual o mundo
assistiu ao mais dramático evento da história: a morte e a vida travando um
combate milagroso (Mors et Vita duello, conflixere mirando, nas palavras do
Dies Irae [Dia da Ira]). A vida não venceu a morte pela força, mas pelo
amor. O pequeno Cordeiro derrotou a grande besta usando sua arma
secreta: seu sangue, seu amor. Ele deixou a besta, como um Drácula
invertido, beber seu sangue.
Ele poderia nos redimir com uma gota de sangue; por que sofreu
uma morte tão sangrenta? Porque tinha mais sangue para dar. Para
escândalo dos estudiosos, a resposta de Deus à nossa busca metafísica não é
um conceito nem um símbolo mítico, mas essa obra. Você consegue ver a
natureza da realidade suprema quando olha para um crucifixo. Há mais
sabedoria metafísica no olhar sincero de uma única criança cristã que nas
mais altas experiências místicas do sábio ou do guru, e que no mais
excelente dos sistemas filosóficos de um Platão ou de um Aristóteles. Eles
podem conhecer a experiência do Ser ou o conceito do Ser, mas a criança
cristã vê a face do Ser.
Como algum homem mortal poderia ousar imaginar essa história?
Como o coração humano poderia conceber esse pensamento? O efeito não
pode exceder a causa. Esse pensamento — de que o Deus perfeito agiria
como se precisasse muitíssimo de nós, pecadores — é muito absurdo para
ser outra coisa além de uma terrível insanidade ou uma revelação celestial.
Como poderíamos saber, se não por Cristo, que Deus nos ama?
Quero dizer, que Ele realmente nos ama, não apenas com a filantropia
apropriada, mas com paixão totalmente imprópria. Mesmo se algum
homem ousasse esperar isso, que fundamento poderia haver para essa louca
esperança? Que dados temos para isso? Que provas? Com certeza, não a
natureza (“Natureza, rubra em dente e garra”), nem a vida humana
(“solitária, pobre, sórdida, embrutecida e curta”), nem a história humana
(“O banco da matança no qual a felicidade das pessoas é sacrificada”).
Cristo é o único dado que temos para saber que Deus é amor.
Contudo, uma vez revelada, a história absurda parece totalmente
bela. Tolkien diz a respeito do Evangelho: “Não existe uma lenda que os
homens mais desejam que seja verdade.” Pois a maior alegria da vida é ser
amado, apaixonadamente amado, infinitamente amado; ser totalmente
conhecido, com todos os meus defeitos, e, ainda assim, ser totalmente
amado.
Sartre, em sua obra Huis clos [Sem saída], mostra como,
aparentemente, isso é impossível. Ele argumenta que eu conhecer você
equivale a conhecer tudo que o torna não digno de ser amado; e que eu
amar você é o mesmo que amar um ideal, um sonho, uma fantasia de mim
mesmo. Apenas Deus torna possível o impossível. Ser, ao mesmo tempo,
amado e conhecido, isso é celestial. Lembra-se da alegria que você sente
quando recebe até mesmo um pouquinho de amor, até mesmo a coisa mais
minimamente próxima de amor de um ser humano pouco inteligente e
pecaminoso como você mesmo? Bem, multiplique isso infinitamente, essa é
a diferença entre humanidade e divindade; e aí você começa a entender a
alegria de ser conhecido e amado por Deus. Quão amado? Amado esse
tanto. Amado a ponto de Ele enviar Cristo.
Todavia, vivemos à sombra do pecado, a roupa amortecedora de luz
que usamos sobre a glória divina com que fomos criados; por isso, o amor
de Deus nos parece menos intenso e poderoso que o amor de um homem
ou uma mulher. Mas essa sombra foi retirada por Cristo. Ela era o véu que
escondia o Santo dos Santos no templo, e Ele rasgou o véu. No Céu, nós,
com olhos purificados, conseguiremos suportar a visão da luz, e o véu será
retirado por completo. Por enquanto, conseguimos suportar apenas um
pouco da luz da tumba vazia. (Lembra-se da cena final do filme A Paixão de
Cristo, de Mel Gibson?) Talvez seja por isso que Cristo não permitiu que
fôssemos verdadeiras testemunhas oculares do evento de sua ressurreição;
esse evento nos teria cegado.
4. As consequências morais da metafísica

As consequências dessa metafísica para a moralidade são importantes. Da


mesma forma que o amor “percorre todo o caminho para o alto” em
direção à Realidade suprema, a Deus, a moralidade também faz isso. A
verdadeira moralidade (diferente da moralidade legalista, pragmática ou
política) é fundamentada na metafísica. Pois a essência da moralidade, o
amor ágape, é a essência do Ser divino. Cristo revolucionou a metafísica ao
revelar não só o amor, mas a metafísica do amor, o fato de que o amor é a
essência de Deus; esse amor, em última instância absoluta, é “como ele é”.
Todo argumento consiste numa relação entre “A” e “B”: “B” decorre
de “A”; “C” decorre de “B”; “D” decorre de “C”; e assim por diante.
Contudo, é preciso haver alguma causa primeira que não é explicada por
nenhuma outra, apenas por si mesma. A respeito dessa última, devemos
apenas dizer: “Porque é assim.” Cristo revelou que o “é assim” é o amor. A
equação suprema é “Deus é amor” (1 João 4:8), e não “Ser é Ser”.
Essa é a verdade suprema a respeito do “é assim”, a verdade de que
Deus é amor; essa é outra razão por trás de outro paradoxo surpreendente
do cristianismo; o paradoxo de que o Deus absolutamente único é uma
Trindade de pessoas. A razão é que a coisa suprema, a unidade suprema, é a
unidade de amor, não de número nem de matéria. A matéria segue a lei da
matéria, que são as leis da matemática, as leis da quantidade. Matéria é
aquilo que pode ser quantificado. Mas a unidade matemática, aritmética,
não é o tipo mais elevado de unidade, o tipo mais unificado de unidade.
Antes, a empatia pessoal e ativa da identidade do amante com a identidade
do amado é a unidade mais elevada. E aqui, por unidade “mais elevada”,
não me refiro apenas à “melhor”, mas também à “mais verdadeiramente
uma.”
Observamos pálidas, mas definitivas, indicações disso até mesmo em
nossos débeis amores, se ao menos eles forem definitivos. O amante
encontra sua unidade, sua identidade, seu “eu”, seu ego, mais no ente
amado que em si mesmo.* A morte, sofrimento ou pecado do ente amado
são muito mais ameaçadores para a vida, a identidade e a alegria do amante
que a dele mesmo poderia ser. Conhecemos esse fato estranho só por
experiência e só se formos amantes. Assim, conhecemos por experiência a
base para a Trindade. Conhecemos essa base apenas praticando o amor,
praticando o que a Trindade é, e não por meio da teorização.
Contudo, a isso segue-se a teoria, como uma sombra, se a substância
viva vier primeiro. E a teoria é isto: que o amor, conforme já observamos, o
mais elevado e mais unificado tipo de unidade, requer mais de uma pessoa,
a menos que se trate apenas de amor egoísta, de autoerotismo. O amor
requer o amante e o ente amado.
E o mais elevado grau de amor entre o amante e o ente amado pode
ser tão real que é uma realidade em si mesma, uma terceira pessoa. Pois o
amor é produtivo e criativo. A sexualidade humana é uma pálida, mas
santa, imagem desse fato supremo. Por isso, o fugaz ato sexual é tão
extasiante, e isso nos dois sentidos da palavra: a alegria indizível e o sair de
si mesmo de forma mística. No nível meramente animal, o ato sexual
supera qualquer coisa, pois ele é uma imagem do êxtase infinito e eterno da
Trindade.
Se Deus fosse apenas uma pessoa, apenas um amante, em vez de ser o
amor completo, ele precisaria de outra pessoa para poder amar, e, assim,
Deus precisaria de suas criaturas. Ou ele não precisaria de outra pessoa, e
então o amor dele seria apenas o amor de si mesmo. Mesmo quando esse
amor “egoísta” não é competitivo nem pecaminoso, ele não pode produzir
o êxtase e a alegria, espiritual e sexual, que o amor abnegado pode produzir
e produz.
Uma vez que Deus é completo, Ele é o amor completo; amante, ente
amado e amor, tudo em um: sujeito do amor, objeto do amor e o ato de
amor. Esses três aspectos, cada um deles, são tão reais em Deus que eles não
são apenas aspectos abstratos distinguidos pela mente, mas são
verdadeiramente pessoas reais, distintas e concretas.
Assim, a natureza da Realidade suprema é Trina: não só uma unidade
absoluta, mas também uma multiplicidade absoluta. A pluralidade e a
unidade “percorrem todo o caminho para o alto”. Esse fato também é
revelado apenas por Cristo. Quem não crê em Cristo, não crê na Trindade.
O dado para o segredo supremo da metafísica é Cristo. Ele é o maior
metafísico do mundo.
Nota

* Fosse eu mulher, diria “sua” e em “si mesma”. Não direi “seu ou sua” nem “eles mesmos”, pois
abusar da gramática não é reparação para o pecado de insultar as avós.
5. A santidade como essência da ontologia

E como os santos são “pequenos Cristos”, Gabriel Marcel está certo


quando diz que “a santidade é a verdadeira introdução para a ontologia”
(“On the Ontological Mystery” [“Sobre o mistério ontológico”], em The
Philosophy of Existentialism [A filosofia do existencialismo]).
Considero essa uma das mais enigmáticas e significativas expressões
já ditas por algum filósofo. Não é sentimentalismo, mas lógica perfeita.
Pois:

1. A ontologia, ou metafísica, é a ciência do ser.


2. Nossa compreensão mais clara do ser, ou da realidade, deve vir do
ser mais real, não do menos real.
3. E o ser mais real, a origem, o padrão e o arquétipo de toda a
realidade é Deus.

4. Mas não conhecemos Deus diretamente, como um objeto, pois o


nome dele não é “Isto É” (objeto), mas “Eu Sou” (sujeito).

5. E nós também somos sujeitos “eus”, não-objetos, uma vez que


fomos criados à imagem dele.
6. Contudo, de alguma maneira podemos conhecer, e conhecemos, a
nós mesmos.

7. Portanto, o indivíduo, ou individualidade, é a chave, porta ou


janela para a metafísica.
8. No entanto, o indivíduo, como ser, é analógico. É uma questão de
grau. Nós somos mais ou menos autênticos, mais ou menos reais. Os
átomos não são reais como as almas, as almas humanas não são reais
como Deus.

9. As pessoas humanas mais reais são os santos. Eles são o que todos
nós fomos planejados para ser.
10. Além disso, o estudo da santidade é a chave para o estudo do ser.

Vejamos isso novamente, mas, desta vez, enfatizando o papel


primordial de Cristo.

1. A metafísica é a ciência do ser.


2. A natureza do ser é a natureza de Deus, pois todos os seres são
definidos por Deus, o Criador de todo ser. Por exemplo, todo ser é
bom porque Deus é bom; e todo ser ou é o Criador, que é
supremamente bom, ou a criatura criada pelo Criador e, portanto,
também é boa.
3. Deus “fala”, ou “expressa”, ou “revela” a si mesmo em seu Logos,
sua palavra eterna, sua mente. Esse é o Cristo eterno. Jesus é seu
nome humano, Logos é seu nome eterno; Jesus e Logos são a mesma
pessoa. Deus Pai não retém nada ao expressar seu “Eu” completo em
Deus Filho.

4. Deus Filho tornou-se homem e nos deu a revelação final,


definitiva e perfeita de Deus e, portanto, do Ser.

5. Os santos são pequenos Cristos. Vemos Cristo por intermédio dos


santos. Eles são as janelas que mostram mais a luz de Cristo, que é a
luz do Pai, que, por sua vez, é a luz do Ser.
6. Por isso, os santos são as janelas para o Ser, e, assim, o estudo da
santidade é a chave para a metafísica.

O pensamento de Marcel refuta nosso hábito tolo e nocivo de


colocar a metafísica e a santidade em compartimentos muito separados. De
um lado, supõe-se que a metafísica é objetiva e impessoal. Contudo, o
objeto último, o ser último, a realidade última da metafísica é uma Pessoa.
O nome dela é “Eu Sou”. De outro lado, supõe-se que a santidade é
subjetiva e psicológica. No entanto, o ponto último de ser santo é ser real,
ser semelhante a Deus, a fim de nos conformarmos à natureza última da
realidade objetiva e, assim, revelá-la.
Outra forma de observar a conexão entre metafísica e santidade é
lembrar dois dos nomes de Deus, o Deus único: ele é Amor (ágape) e
também é o Ser necessário, a Imutável forma como as coisas são, o Real
final, a Realidade suprema. Assim, a Realidade suprema é o amor ágape.
Portanto, o objeto da metafísica é a santidade.
Vejamos ainda outra fórmula: para ter êxito na metafísica precisamos
conhecer o real final; para conhecer o real final temos de amar; amar é ser
santo; portanto, ter êxito na metafísica é ser santo.
6. A metafísica de “Eu Sou”

Os judeus, até a Encarnação, eram proibidos de ter alguma imagem ou


pintura de Deus. Pois a essência de Deus, revelada no nome que Ele
forneceu a Moisés na sarça ardente (Êxodo 3:14), é “Eu Sou”. Deus é o
genuíno sujeito, e não o objeto. Não existe uma foto de Deus porque é Ele
que está por trás da câmera.
Quando a câmera fotográfica era uma novidade, meu avô era o único
que tirava fotos da família. O resto da família sempre aparecia nas
fotografias, mas ele não. Ele tinha a única câmera fotográfica da família, e
cabia entregá-la a outro membro da família para que pudesse ter uma
fotografia de si mesmo. Foi isso que Deus fez na Encarnação. O Ser
tornou-se um ser, o Sujeito tornou-se um objeto, Deus tornou-se homem,
Eu Sou tornou-se um Ele.
No entanto, Ele ainda é Eu Sou. Observe como, agora, Ele interage
com suas criaturas, e você detectará o segredo metafísico do nome “Eu
Sou”.

“Abraão, pai de vocês, regozijou-se porque veria o meu dia; ele o viu e alegrou-
se.”
Disseram-lhe os judeus: “Você ainda não tem cinquenta anos, e viu Abraão?”
Respondeu Jesus: “Eu lhes afirmo que antes de Abraão nascer, Eu Sou!”
Então eles apanharam pedras para apedrejá-lo (João 8:56-59).

Uma das evidências mais impressionantes a respeito de Jesus — Eu


Sou, o sujeito, não o objeto — é como Ele sempre manifesta sua identidade
na interação com suas criaturas. Em todos os seus encontros com as
pessoas, Ele se torna, no tempo, o que é na eternidade. Ele é o primeiro e,
por isso, não pode ser o segundo. Ele é o sujeito e, por isso, não pode ser o
objeto.
Ele não pode ser objeto da manipulação nem do controle humano a
menos que consinta. Claro que esse consentimento culmina em sua
crucificação. Contudo, lembre-se de que Ele afirmou: “Ninguém a tira de
mim, mas eu a dou por minha espontânea vontade” (João 10:18).
Ele também não pode ser objeto da compreensão e do entendimento
humanos. Pois “a luz resplandece nas trevas, e as trevas não a
compreenderam” (João 1:5; ARC). Quando Ele é questionado por seus
inimigos, quando eles tentam transformá-lo em algo e pendurá-lo na
parede, quando tentam transformá-lo em objeto do controle e da
compreensão deles, Jesus não só escapa, como também inverte a relação
para que Ele se torne o questionador; e eles, os questionados. (Jesus
entende perfeitamente o arquétipo do gracejo judaico: “Diga-me, por que
um rabino sempre responde a uma pergunta com outra pergunta?”;
resposta: “Por que um rabino não deveria responder a uma pergunta com
outra?”)

1. “Devemos apedrejar a adúltera ou não?”


(Se apedrejar, desafia a Roma; se não, a Moisés.)
“Se algum de vocês estiver sem pecado, seja o primeiro a lhe atirar
a pedra” (João 8:7).

2. “É certo pagar imposto a César ou não?”


(César é o rei de vocês ou não? São esses mesmos homens que logo
gritariam: “Não temos rei, senão César!”)
“Deem a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus” (em
vez de vice-versa, que era o que eles estavam fazendo) (Lucas
20:25).
3. “Com que autoridade estás fazendo estas coisas?”
“De onde era o batismo de João?”
“Não sabemos.”
“Tampouco lhes direi com que autoridade estou fazendo estas
coisas” (Mateus 21:25-27).

4. “‘Ame o Senhor, o seu Deus, de todo o seu coração, de toda a sua


alma, de todas as suas forças e de todo o seu entendimento’, e ‘Ame o
seu próximo como a si mesmo’ [...] E quem é o meu próximo?”
Jesus, depois de contar a parábola do bom samaritano, disse: “Vá e
faça o mesmo.” (Responda à pergunta sobre quem é o próximo
sendo o próximo — como eu estou fazendo.) (Lucas 10:37)

5. “Senhor, serão poucos os salvos?”


“Esforcem-se para entrar” (Lucas 13:23,24).

Todos esses exemplos têm em comum o fato de que o juiz e o


julgado trocam de lugar. Cristo, o tigre, abre as barras da jaula que os
homens tentam colocar em torno dele e prende seus pretensos captores na
jaula. Ele é o pescador, o Rei pescador, e nós somos o peixe, não vice-versa.
Esse pescador não pode ser pego como um peixe. Ele não se amolda a
nenhuma rede nem morde nenhuma isca, nem mesmo a da tentação do
diabo no deserto. Não há lugar na boca dele para o anzol se prender, pois
sua boca é fogo.
O evangelho de João deixa esse fenômeno especialmente claro; já
logo no início, com as próprias primeiras palavras que João registra como
saídas dos lábios de Jesus: “O que vocês querem?” (João 1:38) A pergunta
pode parecer fortuita e comum, mas é profunda.
É profunda uma vez que é uma sondagem que chega ao âmago do
nosso coração. Ela quer dizer: “O que você mais ama?” E isso quer dizer:
“Quem é você?” Pois somos o que amamos. Transformamo-nos naquilo
que amamos. Nós nos “identificamos com” o que amamos. Encontramos
nossa identidade naquilo que amamos. Santo Agostinho sabia bem disso; é
por isso que escreveu: Amor meus, pondus meum — “meu amor é minha
gravidade”, meu sentido, meu destino. Transformamo-nos naquilo que
mais amamos, naquilo em que pomos nosso coração. Nossa hereditariedade
nos faz o que somos, mas nossos corações nos fazem quem somos.
Jesus diz a mesma coisa: “Peçam, e lhes será dado; busquem, e
encontrarão; batam, e a porta lhes será aberta.” (Mateus 7:7) Em outras
palavras, o que você ama você consegue. Por isso, tenha cuidado com o que
você ama.
Por essa razão, o amor é uma coisa muito perigosa. Ele muda você.
Ele muda sua vida. Ele é tão objetivamente real como uma grande pedra
quente atirada no seu rosto. Não é apenas um pensamento ou sentimento
interior, isso realmente acontece. Nós nos unimos ao que amamos.
Tornamo-nos o que amamos. Quanto mais você amar chocolate, mais
chocolate você se torna. Quanto mais amar o canibalismo, mais canibal se
torna. Quanto mais amar a Cristo, mais semelhante a Ele se torna. Nada é
mais assustador que isso. Lembre-se de como o mundo ficou com medo de
Cristo: ele o crucificou.
Você quer isso? Jesus pergunta-lhes: “O que vocês querem?”, da
mesma forma pessoal e insistente que perguntou a seus primeiros
discípulos. Pensamos que estamos em uma busca por Ele, mas Ele
questiona nossa busca, questiona nosso coração. Ele está em uma busca por
nós. Ele é o questionador, e temos de responder a ele, e não vice-versa. Foi
exata-mente isso que Jó descobriu quando se encontrou com Deus. Foi isto
também que Viktor Frankl observou alguns prisioneiros de Auschwitz
descobrirem: que o ultraje que acontecera com eles, o sofrimento imenso
demais para a mente apreender, a coisa terrível cujo sentido questionavam
(“Por que devo sofrer tanto?”); isso não era a resposta, mas a pergunta;
apenas podiam descobrir a resposta para suas perguntas por meio da ação
deles mesmos; eles eram a resposta, e a vida era a pergunta, e não vice-versa.
E isso era verdade quer eles acreditassem que havia um Deus por trás da
“vida”, usando-a como sua máscara, quer achassem que era apenas a “vida”
fazendo a pergunta a eles.
Jesus, nestas quatro palavrinhas: “O que vocês querem?”, não faz
apenas uma pergunta, mas muitas. Por exemplo, Ele está fazendo a
pergunta que a maioria dos judeus da época Dele respondia de forma
errônea, da mesma forma que muitos gentios o fazem hoje: vocês querem
um Messias político? Um sentido para seus objetivos políticos, sejam quais
forem, de direita ou esquerda, socialista ou libertário, monarquista ou
marxista, herodiano ou zelote, colaboracionista ou rebelde? Nessa pergunta,
Jesus deu a resposta para a pergunta deles (“O Senhor é o nosso Messias?”).
Ele está dizendo: “Se vocês querem um meio sobrenatural para seu fim
natural, não sou seu Messias. Não venham a mim.” (Provavelmente foi por
isso que Judas o traiu. A política sempre traiu a religião, da Inquisição à Al
Qaeda.)
Com essa pergunta, Ele também se dirigia a um grupo menor, os
eclesiásticos apolíticos que o viam como um rabino em vez de como um
rebelde, e Ele estava perguntando: “Vocês querem um mestre que os
afague, e sirva de instrumento para desígnios escusos, e os proteja, e reforce
a autoestima de vocês, a satisfação com vocês mesmos e o orgulho digno de
vocês? Um contraste com o criador de problemas, João, o Batista? Alguém
que vai condenar e ofender seus inimigos, os romanos, mas não vocês? Se é
isso que vocês querem, não venham a mim. Não sou seu Messias.”
E Ele também se dirige a um grupo de pessoas ainda menor, mas
relevante, seus contemporâneos estudiosos e filósofos e seus seguidores ao
longo dos séculos. Ele lhes pergunta: “Vocês querem um filósofo racional
que não os surpreenda nem confunda? O tipo de mestre que os deixa
seguros ao contar a vocês o que já sabem, em vez de deixá-los inseguros por
desafiá-los a ir além do limite da segurança do conhecimento humano, até
mesmo do conhecimento mais profundo, a mergulhar nas ondas terríveis
onde vocês encontram de fato aquele que é todo santo e em cuja presença
vocês caem ‘aos seus pés como morto’ (Apocalipse 1:17)? Vocês preferem
conhecer ideias satisfatoriamente inteligentes em vez de Deus? Ou, se vocês
se encontrarem com Deus, preferem encontrá-lo como um tio, em vez de
como um terremoto (para usar as palavras memoráveis do rabino Abraham
Heschel)? Se é isso que vocês querem, não venham a mim. Não sou seu
Messias”.
Nossa pergunta fundamental para Jesus — “Quem é você?” —
ricocheteia nele e bate em cheio em nosso rosto. Ele não responde a nossa
pergunta: “Quem é você?”, até que respondamos à pergunta dele: “Quem
são vocês? O que vocês querem?” Vamos a Ele com a esperança de que seja a
resposta para nossa pergunta e O encontramos nos perguntando se somos a
pergunta para a resposta dele.
Esse não é um artifício, como um enigma, um método opcional,
escolhido, como o método socrático. É uma inevitabilidade ontológica por
causa de quem Ele é. Ele é Deus. Deus não é nossa resposta na forma de
homem, nosso servo, o meio para o nosso fim. Pensar isso é
antropomorfismo pagão. Não, Deus é o fim. Ele é o Absoluto; Ele não é
relativo a nós, mas nós a Ele. Ele é o Primeiro, o Criador, o Iniciador. Ele é
o cortejador, e nós, os cortejados; Ele é o fecundador; e nós, os fecundados;
Ele é o noivo; e nós, a noiva. (A imagem de cortejar talvez seja relativa do
ponto de vista social, mas a da fecundação não o é. Por isso, Deus, na
Bíblia, sempre é “Ele” e nunca “ela”. Pensar o contrário disso seria cometer
um erro metafísico, um solecismo contra a gramática do ser, um pecado da
mente contra a natureza imutável da realidade suprema.)
Esse é o Deus de Abraão, o Deus verdadeiro. Os filhos muçulmanos
de Abraão jamais sucumbiram à tentação da psicologia pop, do relativismo,
do subjetivismo, do humanismo secular ou do feminismo “politicamente
correto”, como muitos judeus e cristãos norte-americanos o fizeram. (Eles
têm tentações diferentes, como o fascismo islâmico. Nenhum de nós está
imune às correntes de pensamento.)
Nos quatro Evangelhos, nenhum dos encontros entre Cristo e nós é
estruturado pelo fato de que Deus é o grande Eu Sou; o sujeito, não o
objeto; aquele que questiona, não o que responde; o juiz, não o réu; quem
inicia, não quem reage. Esse é um dos indícios, uma das pegadas, por assim
dizer, do verdadeiro Deus; e quando judeus ou muçulmanos devotos leem
os Evangelhos, eles conseguem encontrar esse indício, fundamentados em
suas próprias Escrituras. Cristo fala dessa possibilidade ao declarar: “Todos
os que ouvem o Pai e dele aprendem, vêm a mim” (João 6:45); e: “Se vocês
cressem em Moisés, creriam em mim” (João 5:46).
Essa possibilidade ou sinal — o sinal de que a divindade de Cristo é
encontrada no fato de que Ele sempre é o provocador, não o provocado —
é exatamente o que devemos esperar se duas premissas forem verdadeiras. A
primeira premissa é a essência do Cristianismo: que Cristo é o Filho de
Deus. A segunda é que o princípio “tal pai, tal filho” é uma verdade não só
no sentido literal e biológico, mas também analógico e teológico, uma vez
que a realidade biológica deriva da realidade teológica da mesma forma que
a criatura deriva do Criador. Portanto, conhecer o Pai é realmente conhecer
o Filho, conhecer um é conhecer o outro.
Imagine um muçulmano devoto. O muçulmano devoto é
simplesmente alguém que é cheio com o verdadeiro “islamismo”, ou
submisso e entregue ao único Deus, a quem os muçulmano chamam de Alá
(o sentido simples e literal do termo “Alá” é “o único Deus”). O
muçulmano tem profunda reverência pelo profeta Maomé exatamente
porque vê nele o exemplo perfeito de “islamismo” para Alá. Quando Alá
ordena, Maomé obedece. Quando Alá diz: “Narre!”; Maomé narra.
Agora, imagine esse muçulmano lendo os evangelhos pela primeira
vez. Ele ficaria impressionado com o fato de que Jesus, como Maomé, é
totalmente obediente ao Pai. (“Pois desci dos céus, não para fazer a minha
vontade, mas para fazer a vontade daquele que me enviou. [...] O meu
ensinamento não vem de mim mesmo. Vem daquele que me enviou.”) Esse
fato reforçaria a crença muçulmana de que Jesus é um grande profeta.
Todavia, a seguir, surge um enigma: Jesus, ao contrário de Maomé, sempre
é o juiz, nunca o julgado. O próprio Corão classifica Maomé como um
pecador, ao qual Alá ordena que se arrependa de seus pecados. No entanto,
Jesus indaga: “Qual de vocês pode me acusar de algum pecado?” E o que
faria esse muçulmano com o fato de que depois de esbravejar contra a
“inadequada” e blasfema noção cristã de que Alá teria um filho, Maomé, de
forma repentina e surpreendente, declara: “Mas saiba que se Alá tivesse um
Filho, eu seria o primeiro a adorá-lo”?
Há incerteza, como no Salmo 139:19-24, de Davi?
A pegada divina que o muçulmano pode detectar nas palavras de
Jesus registradas nos evangelhos não é o mero fato de que Ele afirma ser
divino. Homens loucos já afirmaram isso, e os muçulmanos declaram aqui
que loucos eram os cristãos que escreveram os Evangelhos, não Cristo. A
pegada divina de que falo é o estilo das afirmações de Jesus. Sempre que lhe
é feita uma pergunta, Ele reverte a situação de modo que o questionador se
torne o questionado. Sempre que lhe é feita uma pergunta abstrata e
impessoal, Ele fornece uma resposta concreta e pessoal. Quando lhe
perguntam quem afirma ser, Ele não fornece um nome discutível, como
“Zeus”, mas o nome santo e único de seu Pai que declara a presença real
dele: “Eu Sou.”
Imagine os maiores filósofos do mundo promovendo uma
conferência a respeito da existência de Deus: ateístas versus teístas. Depois
da apresentação de todos os argumentos em prol do ateísmo, o caso em
prol do teísmo é apresentado por um visitante: o próprio Deus que aparece
na conferência não como um filósofo defendendo uma teoria, mas como
uma constatação de fato, e ele chega silenciosamente por trás dos filósofos e
faz: “Buu!”
Esse é o grande e santo gracejo de São Tomás de Aquino em um de
seus textos mais famosos, o artigo sobre a existência de Deus que faz parte
da obra Suma Teológica. (Aquino tem o mesmo tipo de senso de humor de
Jesus: é o extremo oposto da piada, é a ironia que reside na própria essência
do que ele fala.) Em cada artigo da Suma, Tomás de Aquino, depois de
ouvir as objeções à sua tese, defende-a em dois estágios: primeiro, na seção
que começa com a fórmula “Ao contrário”, seguida de uma citação de
autoridade; e, segundo, na seção que inicia com a fórmula “Respondo que”,
seguida de um argumento original. Qual citação de autoridade sobre a
existência de Deus que Aquinate usa? Nenhuma citação a respeito de Deus,
mas uma citação de Deus: “Ao contrário, Deus mesmo disse: ‘Eu Sou’.”
Deus entra às escondidas no debate da conferência e se apresenta como
prova. É como o “alôôôôô” que a adolescente dirige aos pais quando eles
falam dela na sua presença, como se ela não estivesse ali. Jesus usou esse
tipo de humor em João 8:58. A resposta foram pedras atiradas nele.
Também é o mesmo tipo de humor que Sócrates usou na Apologia quando,
julgado por ateísmo, levou à corte, como sua testemunha, a palavra de um
deus do oráculo délfico. A resposta que Sócrates teve foi a cicuta. As pessoas
não gostam que suas vítimas inocentes riam delas de forma sutil e amistosa.
Essa situação continuará até o fim dos tempos, já que Jesus durará até
o fim dos tempos, sabendo-se que Ele é “o mesmo, ontem, hoje e para
sempre” (Hebreus 13:8). A Encarnação teve um começo, mas não tem um
fim. Ela divide o tempo em dois para sempre, cortando o nó górdio da
história. Abraão olhava em direção ao início desse evento, enquanto nós o
olhamos em retrospectiva; mas Deus não olha para adiante nem para trás,
já que Ele não é um mero personagem em sua peça, mas o próprio
dramaturgo. Para Deus, é uma verdade eterna o fato de que a carne, o
sangue, o corpo e a alma humanos se ligam em uma união hipostática a seu
Filho, a Palavra divina de Deus. Conforme afirma o Credo de Atanásio, a
Encarnação não aconteceu pelo rebaixamento da divindade em
humanidade, como se a divindade pudesse sofrer mudança, mas pela
elevação da humanidade à divindade. Nós sofremos mudança, nós somos
potencialmente isso ou aquilo, mas Deus é completamente presente. Nós
somos potencialmente passíveis de sermos feitos divinos, mas Deus não é
potencialmente passível de se tornar humano. Deus é completamente
presente. (Esse é o primeiro sentido de “agir”.) Por essa razão, Ele age (esse
é o segundo sentido de “agir”), enquanto nós também sofremos a ação dele.
Não se pode agir sobre a natureza divina. Ela não pode ser mudada. Ela
não é passiva nem potencial. Apenas quando Deus assume a natureza
humana nós podemos agir sobre Ele. E então agimos a ponto de rejeitá-lo,
de coroá-lo com espinhos e de pregá-lo.
Na Encarnação, o “Eu Sou” tornou-se o Ele “foi concebido pelo
Espírito Santo e nasceu da Virgem Maria”. A seguir, no Calvário, o Eu que
se tornou Ele se tornou uma coisa: o Deus que se fez homem se tornou um
cadáver.
Contudo, depois, houve (ou, antes, há) “o resto da história”: a
ressurreição. O ponto surpreendente de toda essa história para a metafísica
é que essa história toda é a história do Ser.
II
A EPISTEMOLOGIA DE JESUS
A primeira grande pergunta filosófica é: o que é? A segunda, que segue
naturalmente a primeira, é: como sabemos o que é? A primeira pergunta
refere-se ao ser; e a segunda, à verdade.
A verdade diz respeito ao ser, pois “verdade” quer dizer “a verdade
sobre o ser”. “A laranja é redonda” é verdade apenas porque a laranja é
redonda.
A resposta de Jesus para a primeira pergunta, a respeito do ser, foi Ele
mesmo. A resposta não era apontar para algo, mas ser, ser “Eu Sou”. Por
isso, a resposta dele para a segunda pergunta, a respeito da verdade,
também não aponta para nenhuma outra coisa como a verdade, mas
simplesmente para o fato de Ele mesmo ser a verdade: “Eu sou [...] a
verdade” (João 14:6).
Daí a suprema ironia de Pilatos dirigir cinicamente a grande
pergunta dos filósofos, “O que é verdade?”, à própria verdade eterna,
perfeita, absoluta, divina, encarnada, concreta e pessoal, a Verdade em pé
diante dele, condenada. O ceticismo de Pilatos reclama implicitamente:
“Como se supõe que eu conheça o grande fogo-fátuo filosófico, a ‘verdade’?
Posso vê-la? Posso tocá-la?” E Jesus responde: “Sim, pode. Na verdade, você
pode crucificá-la.”
Contudo, quando o homem crucifica a Verdade, a verdade crucifica
o homem. Justamente no ato por meio do qual Pilatos condena a Verdade
encarnada, a verdade não-encarnada condena Pilatos.
Jesus não responde a Pilatos com palavras, porque a Verdade
encarnada é a luz, não um objeto iluminado. Jesus não está em julgamento,
Pilatos está. Quando justapomos Jesus com essa segunda grande pergunta
filosófica, a pergunta epistemológica, observamos a repetição do mesmo
padrão que vimos com a primeira pergunta: da mesma forma como Jesus
não é um metafísico, mas algo mais metafísico que um metafísico — Ele é
o próprio Ser, objeto de toda a busca da metafísica —, Ele não é apenas um
epistemólogo, mas a verdade que toda a epistemologia busca. Pois Jesus não
é um filósofo tradicional, um amante da sabedoria, pelo simples fato de que
Ele é a sabedoria. Ele é o amado por quem “o amor pela sabedoria” está
apaixonado. O título deste livro é apropriado porque Jesus é mais filosófico
que qualquer filósofo, não menos.
Ele é a resposta para a grande e constante busca de Jó:

Existem minas de prata


e locais onde se refina ouro.
O ferro é extraído da terra,
e do minério se funde o cobre.
O homem dá fim à escuridão
e vasculha os recônditos mais remotos em busca de minério, nas mais escuras trevas.
Longe das moradias ele cava um poço,
em local esquecido pelos pés dos homens;
longe de todos, ele se pendura e balança. [...]
As mãos dos homens atacam a dura rocha
e transtornam as raízes das montanhas.
Fazem túneis através da rocha,
e os seus olhos enxergam todos os tesouros dali.
Eles vasculham as nascentes dos rios
e trazem à luz coisas ocultas.

Onde, porém, se poderá achar a sabedoria?


Onde habita o entendimento?
O homem não percebe o valor da sabedoria;
ela não se encontra na terra dos viventes.
O abismo diz: “Em mim não está”;
o mar diz: “Não está comigo”.
Não pode ser comprada, mesmo com o ouro mais puro,
nem se pode pesar o seu preço em prata. [...]
De onde vem, então, a sabedoria?
Onde habita o entendimento?
Escondida está dos olhos de toda criatura viva,
até das aves dos céus. [...]

Deus conhece o caminho;


só Ele sabe onde ela habita (Jó 28).

Que lugar é esse? Jesus. Ele é o lugar em que habita a sabedoria. Só


Jesus revela Deus e o homem para o homem, pois só Ele é perfeitamente
Deus e perfeitamente homem. Conforme diz Pascal:

Nós não só conhecemos Deus por intermédio de Jesus Cristo, mas também só
nos conhecemos por intermédio dele; só conhecemos a vida e a morte por meio
de Jesus Cristo. À parte de Jesus Cristo, não podemos conhecer o sentido de
nossa vida nem de nossa morte, de Deus nem de nós mesmos. (Pensamentos, p.
417)

O que devemos saber? Apenas duas coisas: quem somos e quem é


Deus. Pois essas são as duas únicas pessoas de quem jamais conseguiremos
fugir por toda a eternidade. E saber quem somos envolve conhecer o
sentido da nossa vida, e isso envolve conhecer o sentido da morte, pois ela
limita a vida da mesma forma que a moldura limita o quadro. A afirmação
de Pascal (que é a afirmação do próprio Jesus e de todos seus discípulos que
escreveram o Novo Testamento) é que Jesus é a resposta, a verdadeira, e
final, e suprema, e única resposta adequada para as quatro questões de
Pascal: Deus, “eu”, vida e morte.
A primeira dessas quatro questões é Deus. Ele é a primeira questão
porque Deus é o primeiro em tudo. Temos de começar com o Princípio. O
que mais precisamos conhecer é o Ser mais necessário.
Mas isso é impossível porque Ele “habita em luz inacessível” (terceiro
cânon da missa). Como o Sujeito eterno, Eu Sou, pode tornar-se objeto do
conhecimento humano? Como pode o mero homem mortal, esse tolo
finito, caído e falível, conhecer Deus? É muito mais fácil uma ameba
descerebrada conhecer o homem.
A resposta de Cristo vem em duas partes: primeiro a má notícia;
depois, a boa.
A má notícia (que já conhecemos se formos sábios como Jó) é que
não podemos conhecê-lo. “Ninguém jamais viu a Deus” (João 1:18). Mas,
logo a seguir, ele nos dá a boa notícia: “O Deus Unigênito, que está junto
do Pai, o tornou conhecido” (João 1:18). A busca universal do homem por
Deus, como a torre de Babel, é um fracasso universal. A filosofia, em
última instância, é o clássico gracejo do fazendeiro de Vermont: “É, daqui
não dá para chegar lá.” Contudo, a busca de Deus pelo homem é um
sucesso, e o nome desse sucesso é Jesus.
Não podemos conhecer Deus, a Verdade suprema, escalando alguma
torre humana, quer construída com palavras quer com tijolos. Só podemos
conhecer Deus se Ele descer até nós, se Ele descer a escada de Jacó. Jesus é a
escada de Jacó (Ele mesmo diz isso, compare João 1:51 com Gênesis
28:12); e vemos essa escada de cabeça para baixo, pois ela realmente está
apoiada no Céu, não na terra, como a torre de Babel. A fundação dela não
pode ruir como a de Babel, pois não é constituída de pensamento e de
palavras (logoi) humanos, mas de pensamento e palavra divinos (o Logos,
João 1:1).
É totalmente razoável o fato de que o raciocínio humano não consiga
encontrar Deus. Para provar isso, precisamos de um princípio básico da
epistemologia, o qual descobriremos observando os vários graus do
conhecimento humano. Pois os graus de conhecimento correspondem aos
graus de realidade, uma vez que o conhecimento corresponde à realidade.
(Na verdade, “conhecimento” quer dizer “correspondência com a
realidade”.)
Comecemos com a suposição de que queremos conhecer algo muito
inferior a nós mesmos: alguma abstração, ideia, regra ou número
imaginado pelo homem. Nesse caso, toda a atividade vem de nós. Pois uma
ideia abstrata não pode fazer nada por si mesma; toda a vida dela origina-se
na nossa.
A seguir, suponha que você queira conhecer algo inferior a você, algo
que não é vivo, e cuja realidade independe de você, como uma pedra. A
realidade dela independe da sua mente, mas toda atividade dela (exceto o
próprio ato de existir e sua natureza) vem de você. Você tem de ir até ela e
estudá-la. Ela não faz nada, fica ali passiva e se deixa estudar.
Depois, suponha que você queira conhecer algo vivo, uma planta.
Ela tem alguma atividade própria. Ela muda de semente para árvore, de
viva para morta, de saudável para doente. Portanto, a planta é um pouco
mais difícil de conhecer, em especial, de prever. Ela é viva, e nós falamos
“do mistério da vida”. Não falamos sobre o “mistério das pedras”. Mas a
planta ainda é razoavelmente fácil de conhecer e, em essência, é passiva.
A seguir, suponha que você queira conhecer um animal. Isso é ainda
mais difícil, pois o animal tem um grau de realidade muito mais elevado e
rico. Ele é ativo. Ele, ao contrário da planta, pode fugir e esconder-se de
você. É preciso conquistar a confiança dele. Vocês compartilham uma vida
mental. Contudo, você ainda é o iniciador. Não vemos cobaias fazendo
experimentos de laboratório em homens.
Bem, você sobe mais um degrau, quando o ser que você quer
conhecer é outro ser humano, um igual, a atividade é dividida igualmente,
ou quase, entre vocês. (Você faz a maior parte da atividade quando dialoga
com criancinhas, enquanto a pessoa mais velha e mais sábia faz a maior
parte da atividade ao dialogar com você. Essa é a razão pela qual devemos
dedicar a maior parte do tempo de oração ouvindo.)
Depois, suponha que você queira conhecer um anjo. Se o anjo não se
revelar por si mesmo, saberemos muito pouco, quase nada a respeito dele.
Por fim, suponha que você queira conhecer Deus. Aqui toda
atividade tem de ter origem nele. Se Ele não tomar a iniciativa,
simplesmente não podemos conhecê-lo.
Por isso, para haver o conhecimento de Deus é preciso ocorrer a
revelação divina.
Mas existe revelação divina, Deus revelou-se e de muitas formas:
primeiro, ao criar o universo, mas, por último e acima de tudo, por
intermédio de Cristo, a revelação final e definitiva de Deus. Não haverá
mais nenhuma revelação definitiva até o fim dos tempos. “Pois foi do
agrado de Deus que nele habitasse toda a plenitude” (Colossenses 1:19).
Esse versículo informa-nos que Cristo é tudo de Deus que podemos
conhecer, pois Ele é tudo de Deus que existe. Não há mais em Deus do que
em Cristo. O Pai está todo no Filho, não reteve nada. Cristo é a suprema
revelação epistemológica da suprema realidade metafísica. Cristo é a chave
para a epistemologia.
Observe o desdobramento dessa realidade nos Evangelhos. Note
como Cristo trabalha, como Ele faz muito mais que apenas conhecer a
verdade e ensiná-la. Observe como Ele é a verdade, não como na equação
dois mais dois são quatro, mas como as abelhas são em uma colmeia. (Ser
abelha é o que as abelhas fazem. Existir é um ato.) Observe como a
epistemologia ganha vida porque a verdade está viva e ativa e, por isso,
pode nos libertar. Observe como “a verdade os libertará”:

Os mestres da lei e os fariseus trouxeram-lhe uma mulher surpreendida em


adultério. Fizeram-na ficar em pé diante de todos e disseram a Jesus: “Mestre,
esta mulher foi surpreendida em ato de adultério. Na Lei, Moisés nos ordena
apedrejar tais mulheres. E o senhor, que diz?” Eles estavam usando essa pergunta
como armadilha, a fim de terem uma base para acusá-lo. Mas Jesus inclinou-se e
começou a escrever no chão com o dedo. Visto que continuavam a interrogá-lo,
Ele se levantou e lhes disse: “Se algum de vocês estiver sem pecado, seja o
primeiro a lhe atirar uma pedra.” Inclinou-se novamente e continuou
escrevendo no chão. Os que o ouviram foram saindo, um de cada vez,
começando pelos mais velhos. Jesus ficou só, com a mulher em pé diante dele.
Então Jesus pôs-se em pé e perguntou-lhe:
“Mulher, onde estão eles? Ninguém a condenou?” “Ninguém, Senhor”, disse
ela.
Declarou Jesus: “Eu também não a condeno. Agora vá e abandone sua vida
de pecado” (João 8:3-11).

Os mestres da lei e os fariseus exigem que Jesus responda a essa


pergunta, eles estão certos de que o pegarão em uma armadilha: o que Ele
diria que devia ser feito a essa mulher pega em adultério? A Lei de Moisés,
ou seja, a Lei de Deus, ordenava que ela fosse apedrejada. (Observe que a
Lei não permite ou recomenda essa punição, mas ordena.) Todavia, a lei
romana proibia que os judeus exercessem o direito de aplicar a pena capital
independentemente do crime. (Note que essa lei não desencorajava a
aplicação dessa punição pelos judeus, em vez de pelos romanos, mas
proibia.) Assim, se Jesus dissesse: “Não, não apedrejem a mulher”, seria
desobediência a Moisés; portanto, uma heresia. Se Ele dissesse: “Sim,
apedrejem a mulher”, desobedeceria a Roma e seria considerado traidor. Se
ele não dissesse nada, desobedeceria à lei da honestidade e seria covarde.
Nenhuma sabedoria humana escaparia dessa armadilha perfeita.
Apenas três respostas são logicamente possíveis (sim, não e o silêncio), e
todas as três condenariam Jesus: a lei mosaica o condenaria se dissesse não;
a lei romana, se dissesse sim; e a lei natural, se não dissesse nada.
Ah, mas lembre-se de quem Ele é. Ele é Eu Sou. Ele é aquele que
falou a Moisés da sarça ardente, quando este tentou sujeitá-lo ao exigir que
dissesse seu nome. Assim, Ele sujeitou Moisés ao fornecer, como seu nome,
o nome que nenhum judeu devoto ousaria sequer pronunciar dali em
diante. Pois pronunciar “Eu Sou” seria o mesmo que afirmar possuir esse
nome, afirmar ser esse “Eu”. Esse nome só pode ser dito na primeira pessoa.
Qualquer outro nome pode ser dito na segunda pessoa, àquela a quem se
dirige (“você”), ou na terceira pessoa, àquela a quem se representa ou refere
(“ele” ou “ela”).
Bem, 1.500 anos depois, Jesus interpreta a mesma reversão de papel.
Ele interpretou esse papel na sarça ardente ao transformar sua resposta em
pergunta. (Lembre-se, Ele é um rabino. “Por que um rabino sempre
responde a uma pergunta com outra pergunta?”) Ele, de fato, diz: “Se
algum de vocês estiver sem pecado, seja o primeiro a lhe atirar uma pedra.”
E eles, como Jó, percebem de imediato que o tempo todo apenas pareciam
ser os questionadores, mestres, juízes, examinadores, controladores, ativos,
sábios que, como os cientistas, examinavam uma nova espécie de animal.
Na verdade, eles eram, e sempre foram, os questionados, os alunos, os
julgados, os testados, os controlados, aqueles que sofrem a ação, os
conhecidos, não os conhecedores. Eles sempre tiveram esse papel porque eles
são criaturas. Deus, em todos os momentos da vida deles, sempre os testou,
não vice-versa. Aqui, Cristo apenas levantou por um momento a cortina da
ignorância humana para que, pela primeira vez, todos pudessem entender
de forma clara o que estivera acontecendo o tempo todo.
Nenhuma técnica pode realizar essa guinada epistemológica radical.
Apenas a presença real de Cristo pode. Por isso, nenhum homem consegue
imitar com sucesso os métodos dele. Por isso, ninguém consegue ser bem-
sucedido em imaginá-lo como personagem de ficção. Nunca foi escrita uma
ficção convincente sobre o homem mais famoso da história. Contudo, já se
escreveu muita ficção convincente, e ainda se escreverá muita, sobre a
maioria dos outros homens famosos da história. Eis um forte argumento,
para o Cristianismo, em favor da verdade dos Evangelhos: não é possível
que Cristo seja uma ficção, pois ninguém no mundo até hoje, depois de
2.000 anos que o conhecemos, escreveu uma ficção convincente a respeito
dele; se ninguém consegue imaginar, de forma convincente, “o que Jesus
faria”, enquanto consegue calcular o que Alexandre, Buda, Sto. Agostinho,
Lincoln ou Churchill fariam, como alguns pescadores judeus de 2.000 anos
atrás poderiam escrever essa ficção incrivelmente original, de criatividade
sem precedentes, baseados em nada? Esse personagem não poderia ser
inventado porque Ele continua não podendo ser inventado. Ele só pode ser
real.
A forma como Jesus reverte o papel entre questionador e questionado
não pode ser posta em nenhuma fórmula, pois todas as fórmulas são
universais e, portanto, repetíveis; mas Cristo é o Filho unigênito de Deus.
A forma como Jesus reverte o papel entre questionador e questionado
também não pode ser posta em nenhuma fórmula porque todas as fórmulas
são objetivas e impessoais, mas Cristo é o Sujeito pessoal, o divino Eu Sou.
Ele é bem-sucedido de forma reiterada nas “armadilhas” preparadas
simplesmente sendo Ele mesmo, apenas por essa ser a natureza dele, da
mesma forma como o sol é bem-sucedido em sua “armadilha” de brilhar
simplesmente porque brilhar é sua natureza. A luz do sol ilumina
naturalmente, sem esforço, todas as coisas, de todos os tamanhos, formas e
cores. Isso é o que a luz faz porque isso é o que a luz é. E Cristo continua a
reverter o papel porque Eu Sou é o que Ele é.
Os Evangelhos mostram várias vezes essa inversão de papéis. Nós
aprendemos pela repetição. Os sábios precisam de poucos exemplos porque
são rápidos em entender a verdade universal no exemplo particular. Quanto
mais sábios somos, de menos exemplos precisamos. Se fôssemos realmente
sábios, se tivéssemos visão espiritual de raio X, descobriríamos que Jesus é
divino apenas com essa passagem do Evangelho de João. (Na verdade, de
acordo com seu livro autobiográfico Ben Israel [Filho de Israel], aconteceu
exatamente isso com Arthur Katz.)
Jesus, após livrar-se da condenação dos mestres da lei e dos fariseus,
liberta a mulher acusada: “Eu também não a condeno.” Ele não dá
continuidade à acusação dos mestres da lei e dos fariseus contra ela; ao
contrário, impede-a e, em vez de condená-la, liberta-a. Eles queriam
prendê-lo e também a ela, na armadilha lógica que armaram; mas, em vez
disso, Ele a liberta e também a si mesmo. O trabalho deles é prender; o
dele, libertar. Pois Ele é a verdade, e “a verdade os libertará” (João 8:32).
Uma vez que Deus existe, nada acontece por acaso. E já que nada
acontece por acaso, não foi por acaso que Deus permitiu que essa passagem
fosse inserida no Evangelho de João. A passagem não se refere apenas a essa
mulher, mas a todos nós. Todos nós cometemos adultério contra Deus. E
ao lermos essa passagem, nós é que somos testados — não apenas pela Lei
de Deus contra o adultério físico e espiritual, mas também pela própria
história que nos testa ao perguntar que trabalho estamos fazendo — o de
Cristo ou o dos fariseus? Podemos ter a esperança, enquanto lemos essa
passagem, de permanecer espectadores que julgam o espetáculo da
arquibancada, mas não podemos fazer isso. Somos jogados na situação; não
estamos julgando a situação, mas sendo julgados. Na verdade, estamos
sempre sendo julgados, não pela Lei, mas por Cristo. Ele sempre é o Sujeito
que julga, que tem conhecimento; e a nós somos sempre o objeto julgado,
conhecido. Nossa verdade é a nossa conformidade ao conhecimento dele.
Pois Deus não descobre a verdade, como nós fazemos. Ele a decreta,
Ele a cria. Nós, em parte, também fazemos isso nas artes criativas. Nelas,
fazemos a verdade; no mais, a descobrimos. É verdade que os elfos são
pequenos e travessos no mundo de Sonhos de uma noite de verão, pois
Shakespeare os fez assim; e é verdade que os elfos são altos e imponentes
em O senhor dos anéis, pois Tolkien os fez assim. A Criação (o universo) é a
arte de Deus e a ciência do homem. O que é objetivo para nós (por
exemplo, tigres) é subjetivo para Deus. Primeiro, Ele inventa os tigres,
então nós os descobrimos; da mesma forma que primeiro Tolkien inventa
os hobbits, depois, nós os descobrimos. Quando descobrimos a verdade a
respeito da Criação, estamos lendo os pensamentos do Criador.
O que essa verdade teológica tem a ver com João 8? Ela é o
fundamento para Cristo libertar a mulher pega em adultério. Pois Cristo
não é criatura, mas o Criador. Nas palavras do Credo Niceno, ele é “gerado,
não feito; consubstancial com o Pai. A mulher recebeu a compensação
prática desse mistério teológico; e nós também. Cristo não está
passivamente preso pela verdade, como nós estamos; Cristo libera
ativamente a verdade, como Deus o faz. Cristo não é cientista, mas artista.
Apenas conecte estes três versículos, e você perceberá isto: (1) Eu sou
[...] a verdade (João 14:6); (2) A verdade vos libertará (João 8:32); (3)
Portanto, se o Filho vos libertar, vocês de fato serão livres (João 8:36).
Mas essa é apenas metade da história, e gostamos de esquecer a outra
metade dela. Cristo não diz apenas: “Eu também não a condeno”; Ele
acrescenta: “Abandone sua vida de pecado”. As duas partes são igualmente
necessárias em sua obra de libertação, como a fé e as obras (obras de amor)
o são na salvação. Lembre-se, a profecia não diz: Ele receberá o nome de
Jesus [Salvador ou o Senhor salva] porque Ele salvará o seu povo da punição
por causa do pecado; e sim: Você deverá dar-lhe o nome de Jesus, porque
Ele salvará o seu povo dos seus pecados. Dizer: “Eu também não a
condeno”, sem acrescentar: “Abandone sua vida de pecado”, seria uma obra
de aprisionamento, não de libertação; da mesma forma que, como fizeram
os mestres da lei e os fariseus, dizer: “Abandone sua vida de pecado”, sem
acrescentar: “Eu também não a condeno”, é algo que prende, em vez de
libertar. Pois o pecado nos aprisiona da mesma forma que, com certeza, não
perdoar o faz. Todo aquele que vive pecando é escravo do pecado (João
8:34). Pois o salário do pecado é a morte, mas o dom gratuito de Deus é a
vida eterna em Cristo Jesus, nosso Senhor (Romanos 6:23).
O pecado é como a droga. São necessárias duas coisas para se libertar
do vício de alguma droga: alguém tem de amá-lo ternamente o bastante
para libertá-lo, e alguém tem de amá-lo de forma dura o bastante para
exigir que você permaneça livre do vício. Essa é a obra dupla do Salvador.
Os teólogos, às vezes, chamam-na de justificação e santificação. As duas
coisas não podem ser separadas. Separar a delicada urdidura e a resistente
trama dessa vestimenta sem costura representa desfiá-la e destruí-la
completamente. Contrapor ternura liberal com obstinação conservadora,
ou vice-versa, não é nada mais que um novo aprisionamento, um novo
dilema como o que os fariseus apresentaram para Jesus.
Mas Jesus, como escapou do dilema dos fariseus, também escapa do
nosso dilema. Ele escapa de todas as nossas redes, pois não é peixe, mas o
Pescador, “o pescador de homens”, e nós somos seus peixes. Ser pego em
sua rede é ser libertado, pois sua rede é a verdade.
Por isso, no mesmo capítulo, Ele, após libertar a mulher, interpreta o
que acabara de fazer ao nos contar que a verdade os libertará (v. 32). Mas a
verdade libertou a mulher? Não era verdade que ela tinha cometido
adultério? Como essa verdade podia libertá-la?
Temos dificuldade em entender como essa verdade pode libertá-la
porque pensamos na verdade como algo abstrato e impessoal; como um
princípio geral (por exemplo, adultério é pecado) ou como um fato
específico (por exemplo, ela cometeu adultério). Ambos, o princípio geral e
o fato específico, são expressos em proposições, sentenças, afirmações. Isso é
verdade proposicional.
Não jogarei aqui o popular jogo de cartas de descartar a verdade
proposicional. Pois esta é preciosa e é serva de Cristo, não sua inimiga. Por
isso, até mesmo a verdade proposicional, a verdade abstrata e a verdade
filosófica podem ser libertadoras.
A filosofia de Sócrates, por exemplo, liberta-nos de muita ignorância,
em especial da nossa ignorância a respeito da nossa ignorância. Mas ela não
nos liberta de toda a ignorância. Ela nos conta muito a respeito de nós
mesmos, mas muito pouco sobre Deus.
E as proposições da boa psicologia podem nos libertar de muito
autoengano; mas não de todos. Na verdade, pensar que ela faz isso é o
maior dos autoenganos.
E as proposições da ciência, filha da filosofia, e da tecnologia, neta
dela, podem nos libertar de muita ignorância em relação à natureza e de
muita dor e muito sofrimento por meio da conquista da natureza; mas
podemos apenas adiar, não derrotar, o trunfo da natureza: a morte.
As verdades da ciência aumentam nossa liberdade. Por exemplo,
somos livres para escapar da gravidade da terra e viajar pelo ar ou espaço
apenas por causa das verdades proposicionais da física e da matemática.
Mas não podemos nos libertar completamente da gravidade, pois ela está
em nossa essência enquanto criaturas feitas de matéria. Em algum
momento, o que sobe tem de descer. Nenhum conhecimento da verdade
proposicional abstrata pode nos livrar disso.
Mas Jesus pode. Ele torna possível escapar para sempre da gravidade
da terra, subir para o Céu, não descer para o Inferno. Ele levanta nosso
corpo da sepultura; e nossa alma dos nossos pecados.
Como Ele consegue fazer isso? Porque Ele é a verdade, e a verdade
vos libertará, e se o Filho os libertar, vocês de fato serão livres (João 8:36).
Essa é a epistemologia encarnada e, portanto, fortalecida. Ele é a
palavra poderosa, pois é a Palavra de Deus. Ele tem poder para libertar a
mulher porque tem poder para criar o universo. Ele é a Palavra do Pai
pronunciada para criar o universo (Gênesis 1:2). Ele não é apenas a palavra
“com autoridade”, mas a “palavra poderosa” (Lucas 4:32; Hebreus 1:3). Ele
não copia meramente o que é quando fala, Ele cria o que é. Quando Ele,
no túmulo de Lázaro, diz: “Lázaro, venha para fora!”, até mesmo a morte o
obedece.
Ele é a Palavra de Deus no singular porque Ele é absolutamente
singular. Ele não é a palavra sobre Deus, nem a última palavra sobre Deus,
mas, sim, a Palavra de Deus. Ele não é sobre nada mais, tudo o mais é sobre
Ele. Tudo no universo e tudo na Bíblia é um dedo apontando para Ele. Ele
é o fim da epistemologia.

*
Como conhecemos Deus? Uma forma indispensável para obter esse
conhecimento é a oração. E se a oração pretende alcançar o Pai, chega a
Ele, quer tenhamos consciência quer não, quer saibamos quer não, por
intermédio do Filho. Portanto, Jesus, aqui também, é o caminho para
conhecer Deus.
Conhecer pessoas requer palavras. Como Julieta conheceria Romeu
se nunca trocassem palavras entre si? E como você poderia conhecer Deus,
se Ele não tivesse falado com você por intermédio da Sua Palavra inspirada
e escrita e, acima de tudo, pela Palavra encarnada, e se você não falasse com
Ele por meio da oração? O amor precisa de palavras como também de
música, pois o amor canta.
Assim, a oração é necessária para conhecer Deus (como algo distinto
de ter conhecimento sobre Deus). Mas a oração não é a necessidade exigida
por uma obrigação, entre tantas outras, como ajustar uma peça no
acolchoado de retalhos. Na oração, lidamos com Deus, o fogo ardente,
resplandecente e explosivo existente no cerne de toda bondade, beleza e
vida. Orar é mais semelhante a se atirar em um vulcão que a encaixar uma
peça no quebra-cabeça. Orar é uma questão de justiça, mas é muito mais
que isso: é uma questão de amor. Orar não é apenas dar a Deus o que lhe é
devido, realizar sua obrigação moral, ajeitar alguma coisa; orar é tocar o
corpo do Deus cujo amor, na forma de sangue humano, transborda de
cinco feridas.
III
A ANTROPOLOGIA DE JESUS
A terceira grande pergunta da filosofia é a do questionador, a questão do
homem. A posição natural dela é a terceira, pois, após meditar a respeito da
realidade (metafísica), nós naturalmente pensamos sobre o pensamento
(epistemologia) e, depois, a respeito dos pensadores, de nós mesmos
(antropologia).
Porém, existe um “mas”. Essa divisão da filosofia é muito mais
interessante que a metafísica e a epistemologia; todavia, apesar de todo
intenso interesse, tempo, energia e livros dedicados a essa busca; a despeito
do fato de que mais da metade de todos os livros sobre todas as ciências
vendidos hoje nas livrarias serem sobre algum aspecto da psicologia, não há
ciência na qual haja menos concordância, menos certeza e menos garantia
de que agora sabemos o que costumávamos não saber. Parece que, como
resultado de todo esse escrutínio moderno do “eu”, nos conhecemos menos
bem que antes. Quanto mais olhamos, menos enxergamos. Acontece
exatamente o contrário em relação ao mundo exterior. Hoje, entendemos
os mistérios da origem do universo, 15 bilhões de anos atrás, ou as forças
que mantêm as galáxias girando há trilhões de anos-luz de distância melhor
do que entendemos a nós mesmos. Na aurora da filosofia, Sócrates disse:
“Conhece-te a ti mesmo.” Contudo, “conhecer a si mesmo” parece um
quebra-cabeça insolúvel, um koan. Nós não conseguimos conhecer a nós
mesmos; no entanto, devemos conhecer a nós mesmos.
O que isso tem a ver com Jesus, ou Jesus, com isso? Nas palavras,
muito repetidas, de João Paulo II: “Só Jesus mostra o homem a si mesmo.”
Uma vez que Jesus é perfeitamente Deus e perfeitamente homem, Ele
revela perfeitamente a Deus e ao homem. Jesus é a solução do koan.
Mas a resposta é apenas tão relevante quanto a questão. Precisamos
entender por que essa questão é um koan para poder valorizar a
singularidade de Jesus ser a solução para ela.
“Conhece-te a ti mesmo” parece ser um koan insolúvel. E é. Não
conseguimos resolver esse problema porque ele, de forma alguma, é um
problema; ele é um mistério (para usar a útil distinção de Gabriel Marcel):
estamos envolvidos nele, e não distanciados dele. Esse problema “transgride
seus próprios dados”. Não podemos resolver esse problema porque nós
somos esse problema. Da mesma forma que o olho pode ver um objeto, mas
não a si mesmo, a mente pode conhecer qual-quer objeto, mas não a si
mesma, porque ela não é um objeto.
Quando olhamos para nós mesmos, fazemos isso da nossa própria
maneira. Ficamos na nossa própria luz e produzimos nossa própria sombra.
Assim, nos identificamos com nossa sombra, a sombra que produzimos ou
a imagem de nós mesmos que lançamos no espelho. Mas isso não é o “eu”,
é uma imagem ou sombra do “eu”.
Somos espectadores em uma peça cuja exata presença e olhar afetam
e alteram os atores e a peça. Pois não somos só os espectadores, também
somos os atores. Na ciência, isso se chama “efeito observador”: alteramos as
coisas observadas por meio do próprio ato de observá-las. Quer esse
princípio se aplique às partículas subatômicas quer não, ele certamente
aplica-se a nós. Pois só nós no universo somos sujeitos, não objetos. No
homem, o universo atinge, pela primeira vez, a autoconsciência. Nós somos
“eus”, sujeitos, quens, não coisas, objetos, o quês. Como transformamos um
sujeito capaz de conhecer em um objeto de conhecimento? Como o
arqueiro pode se transformar em seu próprio alvo? Como o eu pode se
transformar em isso sem deixar de ser eu?
Com certeza, ele não pode. E, com certeza, ele deve. Não
conseguimos conhecer a nós mesmos, mas devemos. Esse é o nosso koan.
Precisamos conhecer a nós mesmos porque se não fizermos isso, então não
saberemos de forma alguma quem é que está conhecendo qualquer outra
coisa. Se não assinalarmos a impressionantemente grande conta bancária do
nosso conhecimento, nós não possuiremos nenhum tostão furado.
No zen-budismo, o koan é um enigma; em princípio, não
solucionável pelo pensamento comum, racional. O propósito dele é acabar
com o pensamento comum, ou adormecê-lo, a fim de libertar a “mente de
Buda”, que consideram não ter o dualismo sujeito-objeto. O despertar
repentino desse tipo radicalmente novo de pensamento é “Iluminação”, ou
satori, a versão zen de nirvana (“extinguir” a vela do pensamento comum).
Não acredito nesse objetivo budista, pois, como cristão, creio em
Deus e na Criação e, portanto, na realidade do dualismo sujeito-objeto
para o qual o budismo busca a superação. O universo todo é objetivo para
Deus. O dualismo sujeito-objeto, o dualismo eu-isso que o budismo tenta
superar é, na verdade, o dualismo Criador-criatura, uma vez que o nome
do Criador é “Eu Sou”, e suas criaturas são seus objetos. Existe outro
dualismo sujeito-objeto que o budismo nega: o dualismo entre os objetos
do universo e nós, sujeitos humanos, que carregamos a imagem de Deus e,
por essa razão, também somos “eus” ou sujeitos. As duas coisas que Cristo
revela para o homem, Deus e o homem, os dois sujeitos, são as duas coisas
que o budismo nega.
No entanto, embora não acredite na resposta budista, acredito na
profundidade da pergunta budista e no poder do koan de transformar a
consciência. Acredito também que Deus estabeleceu um koan para nós ao
nos dar uma curiosidade insaciável a respeito de nós mesmos e, ao mesmo
tempo, fazer esse “eu” inacessível à curiosidade comum.
Ele nos fez à sua própria imagem como eu (sujeitos, pessoas) e, ao
mesmo tempo, isso (objetos, criaturas). Somos metafisicamente duais,
duplos.
Parece que não conseguimos superar esse dualismo a não ser pela
negação da realidade de um ou dos dois de seus tentáculos: os materialistas
ocidentais reduzem a personalidade a uma coisa entre as outras coisas no
mundo, enquanto o misticismo oriental reduz a realidade objetiva das
coisas, incluindo nossa própria finita coisificação, à consciência, ao espírito,
ou à “mente de Buda” ou Brâman (“você é aquilo”).
Ao longo das eras, nossos mais brilhantes filósofos lançam-se a um
ou a outro desses dois erros clássicos na antropologia: ou o materialismo
natural ou o panteísmo espiritual; ou confundir o homem com as coisas ou
com Deus. Incrível! Nossos maiores filósofos, nossos maiores conhecedores
não conhecem a si mesmos bem o bastante para evitar confundir a própria
essência deles com o que não são!
E quando nossos filósofos evitam os dois erros extremos do
materialismo e do panteísmo, ainda caem em uma forma modificada de
um ou do outro: animalismo ou angelismo. Quando não nos confundem
com a matéria ou com Deus, eles nos confundem com os animais ou com
os anjos. Empiristas, positivistas, pragmatistas e secularistas ficam
escandalizados com a alma, o sobrenatural, os milagres, o Céu e as verdades
universais abstratas. Esses são animalistas. Platônicos, gnósticos,
cartesianos, adeptos da Nova Era e os que, em sua religião, buscam
“espiritualidade”, em vez de santidade, são angelistas. Eles ficam
escandalizados com o corpo, o natural, a Encarnação, os sacramentos, a
Igreja visível e o concreto.
Cristo é a resposta para esse dilema. Ele é a refutação definitiva dos
dois erros (pois, lembre-se, Cristo nos revela perfeitamente não só o
perfeito Deus, mas também o perfeito homem). Cristo não só é o perfeito
antropólogo, mas também é o perfeito anthropos. Ele é a essência da
antropologia. Ele é homem como o homem é planejado para ser. Ele não é
uma anomalia, nós somos a anomalia. O maior filósofo antropólogo
moderno foi o papa João Paulo II. A antropologia era a essência de sua
filosofia, e Cristo era o cerne de sua antropologia. Ele sempre repetia:
“Cristo é o sentido do homem.” E, por essa razão, “na verdade, só no
mistério da Palavra feita carne é que o mistério do homem realmente fica
claro”. João Paulo amava citar essa sentença do documento Vaticano II
(veja Catecismo da Igreja Católica [doravante designado pela sigla CIC],
359). O que não conseguimos entender em nossas filosofias, psicologias e
antropologias a respeito de nós mesmos, entendemos em Cristo: nosso
próprio sentido e destino. Ele é um espelho raio X; quando olhamos para
Ele, vemos nosso âmago.
Cristo é a resposta para a pergunta: qual é o sentido da vida humana?
Quem somos destinados a ser? A resposta é que estamos destinados a ser
pequenos Cristos. O sentido da vida é ser Cristo. A resposta à principal
pergunta da antropologia não é um ideal abstrato, mas um fato concreto,
consumado. O sentido do homem é um homem, esse homem.
O Antigo Testamento informa-nos que fomos criados por Deus e à
imagem dele (Gênesis 1:26,27), mas só o Novo Testamento mostra-nos de
forma completa o que é essa imagem: ela é Cristo. É a isso, não a um vago
humanismo, que Inácio de Loyola se refere ao dizer que “a glória de Deus é
um homem totalmente vivo”. (Todos jesuítas, nota bene, por favor!) “Um
homem totalmente vivo” quer dizer “um pequeno Cristo”.
Como não percebemos isso? Só porque mais da metade do tempo
estamos mais que meio adormecidos. Diversas passagens do Novo
Testamento afirmam essa verdade de forma firme e clara. Por exemplo,
Romanos 8:29: “Pois aqueles que de antemão conheceu, também os
predestinou para serem conformes à imagem de seu Filho, a fim de que ele
seja o primogênito entre muitos irmãos.” Ou 1 Coríntios 15:49: “Assim
como tivemos a imagem do homem terreno, teremos também a imagem do
homem celestial.” Ou 2 Pedro 1:4: “Ele nos deu as suas grandiosas e
preciosas promessas, para que por elas vocês se tornassem participantes da
natureza divina.”
Existe ainda uma segunda razão por que precisamos da revelação
divina de Cristo para conhecer a nós mesmos: “Sem o conhecimento de
Deus concedido pela revelação, não podemos reconhecer de forma clara o
pecado e somos tentados a explicá-lo como mera falha de desenvolvimento,
fraqueza psicológica, engano ou a consequência necessária de uma estrutura
social inadequada” (CIC 389). Cristo nos ensina como somos anormais ao
sermos o padrão ideal. Se deixarmos que Ele nos julgue, em vez de julgá-lo,
perceberemos que nosso “normal” realmente é anormal. Esta é a pergunta
epistemológica crucial da antropologia: nós julgamos a Cristo ou Ele nos
julga?
Sem conhecermos Cristo e, assim, sem conhecermos nossa
“anormalidade”, caímos no erro fundamental do “normalismo”. Toda
psicologia, sociologia e antropologia secular é fundamentalmente oblíqua
em seu próprio fundamento, pois assume, de forma errônea, que seu objeto
de estudo, o homem, está em seu estado natural. Todos os dados dessas
ciências são suas observações de comportamento humano “normal”, da
mesma forma que todos os dados da física ou da astronomia têm origem na
observação de como a matéria se comporta naturalmente. Apenas imagine
a mudança radical que acarretaria à física, se os físicos viessem a acreditar
que a gravidade não é, de modo algum, inerente à matéria, mas que a
matéria “caiu” nessa condição anormal em algum momento do passado.
Imagine o choque astronômico radical que aconteceria, se os astrônomos
viessem a acreditar que as estrelas só começaram a brilhar em algum ponto
do passado chamado “Queda”. A doutrina da Queda do Cristianismo, em
sua mais básica interpretação da história humana, na qual os três grandes
eventos definidores são a Criação, a Queda e a Redenção, revela um choque
dessa magnitude na antropologia.
O cristianismo acrescenta dois homens à sua base de dados que a
antropologia secular não conhece: Adão e Cristo, os únicos dois homens
inocentes que já viveram, e o cristianismo julga os homens caídos por esse
padrão. Sem esse corretivo, nós, inevitavelmente, ao pensar em
retrospectiva, interpretamos de forma errônea nossa atual pecaminosidade
como algo natural e normal e, por isso, vemos a inocência e até mesmo a
santidade como algo anormal e não-natural, como algo sobre-humano, em
vez de humano. Bêbados e viciados em drogas, da mesma forma, veem as
pessoas sóbrias como anormais. Do ponto de vista moral, somos todos
bêbados e viciados em drogas. Por isso, é bastante natural para os
partidários de Bill Clinton afirmarem que é errado, e até mesmo imoral,
que os críticos dele esperassem que presidentes tivessem virtudes morais
“não realistas e inatingíveis”, como fidelidade e honestidade.
Esse é o erro mais fundamental da visão de homem da nossa
sociedade secular, e a raiz de todos os outros enganos da sociedade.
“Ignorar o fato de que o homem tem uma natureza doente, inclinada ao
mal, gera graves erros nas áreas da educação, política, ação social e moral”
(CIC 401). O “liberalismo” secular (termo enganoso, pois ele não é
realmente libertador), em todas essas quatro áreas, nega a realidade do
pecado pessoal e acha que o homem é um pé de alface, não uma batata. (A
alface apodrece de fora para dentro; a batata, de dentro para fora.) Por essa
razão, a solução deles sempre é uma “solução alface”: façamos isso ou
aquilo, melhoremos o ambiente social, coloquemos algum dinheiro nas
estruturas sociais ou condicionemos as pessoas com uma educação melhor.
Eles são como os fariseus que limpam o exterior, mas ignoram a podridão
interior (Mateus 23:25,26). Alguém definiu o liberal como aquele que
exige o direito de respirar ar puro para que possa proferir palavras sujas.
A única forma de corrigir essa perspectiva distorcida é encontrar o
verdadeiro ponto de referência. Mas não conseguimos! “Médico, cure-se.”
Somos o aleijado do comercial: “Caí e não consigo levantar.” Não podemos
voltar para o paraíso. As palavras da canção estão muitíssimo erradas: “E os
cavaleiros não nos pararão, pois a única droga que encontrarão é o paraíso.”
Não, os cavaleiros (os policiais) nos pararão porque encontrarão todas as
outras drogas, menos essa.
Não podemos voltar para o paraíso a fim de ver o Adão não caído.
“Vemos, todavia, [...] Jesus” (Hebreus 2:9). Cristo é o nosso novo dado
para a antropologia. Cristo é nosso padrão ou norma.
Sem esse dado, somos como o cachorro no aeroporto, em uma
gaiola, que mastigou a etiqueta de identificação para não saber seu
verdadeiro nome, o nome do seu dono nem onde mora. Ele não sabe de
onde veio, quem é nem para onde deve ir.
“Sem Jesus Cristo, não podemos conhecer o sentido da vida, da
morte, de Deus e de nós mesmos” (Pascal). Só com Cristo conseguimos
essas quatro informações cruciais. Nosso verdadeiro nome é “irmão de
Cristo, filho adotado de Deus”. Temos de guardar essa placa de
identificação, acariciá-la, viver por ela, lembrar-nos dela, lê-la sempre. A
placa é Cristo. Cristo é a chave para a antropologia.
Mas como podemos nos tornar Cristos? Esse não é outro koan
impossível de solucionar? Temos de nos tornar Cristos, mas não podemos.
Nem todas as nossas orações, os nossos soluços e as nossas lágrimas, nem
todo o amor, os pensamentos, as obras e as experiências místicas podem
fazer isso. Nós simplesmente não podemos nos tornar Cristos. Para fazer
isso temos de nos transformar em outra pessoa. Temos de “nascer de novo”.
De todas as imagens de transformação de todos os professores do mundo, a
imagem de Jesus aqui (em João 3) destaca-se como a mais radical de todas.
É tão radical que Nicodemos argumentou que isso era simplesmente
impossível: “Como pode ser isso?”

Havia um fariseu chamado Nicodemos, uma autoridade entre os judeus.


Ele veio a Jesus, à noite, e disse: “Mestre, sabemos que ensinas da parte de
Deus, pois ninguém pode realizar os sinais miraculosos que estás fazendo, se
Deus não estiver com ele”. Em resposta, Jesus declarou: “Digo-lhe a verdade:
Ninguém pode ver o Reino de Deus, se não nascer de novo.” Perguntou
Nicodemos: “Como alguém pode nascer, sendo velho? É claro que não pode
entrar pela segunda vez no ventre de sua mãe e renascer!” Respondeu Jesus:
“Digo-lhe a verdade: Ninguém pode entrar no Reino de Deus, se não nascer
da água e do Espírito. O que nasce da carne é carne, mas o que nasce do
Espírito é espírito. Não se surpreenda pelo fato de eu ter dito: É necessário que
vocês nasçam de novo. O vento sopra onde quer. Você o escuta, mas não pode
dizer de onde vem nem para onde vai. Assim acontece com todos os nascidos do
Espírito”. Perguntou Nicodemos: “Como pode ser isso?” Disse Jesus: “Você é
mestre em Israel e não entende essas coisas?” (João 3:1-10)

Nicodemos procurou Jesus com duas perguntas em mente: a respeito


do Messias e do “Reino de Deus”. De acordo com os profetas, o Messias
realizaria esse Reino na terra, e Jesus pregara sobre o Reino; portanto, Ele
era o Messias ou não? E se era, como podemos entrar nesse “Reino de
Deus”?
Parece que Nicodemos tinha preparado um pequeno discurso de
lisonjas. Ele iniciou, de forma polida e indireta, com uma palavra de louvor
pelos milagres (“sinais”) realizados por Jesus: “Mestre, sabemos que ensinas
da parte de Deus, pois ninguém pode realizar os sinais miraculosos que
estás fazendo, se Deus não estiver com ele.” Essa foi uma forma polida e
indireta de perguntar: você é o Messias? Provavelmente, Nicodemos
gastaria mais cinco minutos de elogios para chegar à segunda pergunta, a
de teor prático, a pergunta “crucial” sobre como entrar nesse Reino de
Deus. Mas Jesus corta a parte dos elogios e responde diretamente ao
questionamento que repousa no coração de Nicodemos sem esperar que a
pergunta aflore aos seus lábios: “Digo-lhe a verdade: Ninguém pode ver o
Reino de Deus, se não nascer de novo.”
Nicodemos fica chocado. Jesus surpreende três tipos diferentes de
pessoas, e, assim, revela três tipos de choques distintos em relação a Ele.
Tudo é relativo para Jesus. Ele é o melhor padrão para julgar qualquer
coisa, incluindo as pessoas e seus choques. Na verdade, esses choques são
um indício para uma antropologia básica, uma classificação básica das
pessoas em três categorias. Pascal define essas três classes desta forma:
“Existem apenas três tipos de pessoas: as que buscam a Deus e o encontram
— estas são razoáveis e felizes; as que estão buscando a Deus, mas ainda
não o encontraram — estas são razoáveis e infelizes; e as que nunca buscam
a Deus nem o encontram — estas são insensatas e infelizes” (Pensamentos,
p. 160). Jesus choca seus discípulos, que o encontraram, de um jeito. Ele
choca Nicodemos, que está à procura de Deus, mas ainda não o encontrou,
de outro jeito. E ele choca seus inimigos, que nunca buscam nem
encontram, de um terceiro jeito.
Os que se tornaram seus discípulos e “nasceram de novo” do Espírito
tinham a mesma habilidade de chocar o mundo que Jesus tinha. É um
poder invisível como o vento, um poder que pode destruir todo um
império pagão, o maior da história mundial, como um furacão pode
destruir uma floresta. Por isso, o mundo se referia aos seus discípulos como
“Esses homens, que têm causado alvoroço por todo o mundo” (Atos 17:6).
Nicodemos pede para Jesus explicar essa imagem chocante que Ele
apresentou. Sem dúvida, Ele não se referia a nascer de novo no sentido
literal, pois seria uma impossibilidade física. Nem se referia à reencarnação,
na qual nenhum judeu acreditava, pois implicaria que o indivíduo não é a
única criatura criada à imagem de Deus, um “eu” finito que é
singularmente individual, em sua forma finita, como Deus, o infinito “Eu
Sou”. Por isso, Nicodemos acredita que a imagem apresentada por Jesus é
mais figura de expressão, um exagero retórico. Mas ele se pergunta: qual é o
sentido literal disso?
A interpretação que Jesus apresenta da imagem é ainda mais
chocante que a imagem inicial. A interpretação não diminui a força da
imagem (“É apenas uma imagem”), mas repete-a na fórmula rabínica:
“Digo-lhe a verdade”; que quer dizer: “Você deve interpretar essas palavras
no sentido mais forte possível, não no mais frágil. Ela é mais que
literalmente verdade, não menos.”
A seguir, Ele acrescenta uma explicação: a identidade dos pais; eles
não são a mãe terra e a matéria, mas o Espírito de Deus Pai e a água do
batismo: “Ninguém pode entrar no Reino de Deus, se não nascer da água e
do Espírito.”
Portanto, esse renascimento é espiritual, não físico. Mas esse fato não
o torna meramente simbólico, menos real, uma simples imagem. Ao
contrário, o Espírito é mais real, mais sólido e substancial que a carne
perecível. Assim, o nascimento espiritual é mais sólido e substancialmente
mais real que o nascimento físico.
Depois, Jesus compara o nascimento físico e o espiritual ao explicar
que, nos dois casos, o filho é parecido com os pais: “O que nasce da carne é
carne, mas o que nasce do Espírito é espírito.” Isso é chocante, embora
totalmente razoável. Contudo, Jesus, vendo a expressão de incompreensão
de Nicodemos, acrescenta de forma irônica: “Você é mestre em Israel
[mestre dos mistérios revelados de Deus] e não entende essas coisas? [O
nascer de novo é todo o ponto e propósito de Israel].”
A seguir, Ele compara essa coisa desconhecida com uma conhecida, o
vento. O vento é um símbolo natural para o Espírito. A mesma palavra em
hebraico (ruah’ ) e em grego (pneuma) quer dizer “espírito”, “vento” e
“sopro de vida”. O vento é bastante invisível, mas bastante real. E embora a
origem do vento seja tão invisível quanto o próprio vento, seus efeitos não
são invisíveis; e podem ser radicais. O vento forte pode derrubar casas e
árvores. O mesmo é verdade em relação ao vento do Espírito: ele pode
derrubar o maior reino deste mundo, o universal (“católico”) Império
Romano e erigir outro reino, que “não é deste mundo”: a universal
(“católica”) Igreja Romana.
Você não vê o vento, mas pode ver que há vento ao ver os efeitos dele,
ao ler, por assim dizer, as pegadas do vento. A não ser, é claro, que você
esteja hipnotizado pela idiotice moderna do materialismo, a falácia de que
as árvores fazem o vento, de que coisas visíveis causam as invisíveis, e não
vice-versa.
Costumamos pensar que o invisível é abstrato e impessoal, como um
conjunto de ideias ou ideais, palavras ou princípios. E pensamos que
apenas as coisas visíveis são concretamente ativas, vivas e perigosas, como
tigres, câncer ou cirurgiões. Contudo, o Espírito de Deus é muito mais
ativo e impetuoso que as coisas visíveis, além de ser o agente supremo na
concepção de todos os bebês e também em toda conversão. O Espírito
Santo não é “isso”, mas “Ele”: uma Pessoa, não uma Força. Ele é tão
perturbadoramente real e revolucionário quanto o furacão.
E Jesus o envia para todos que abrem a porta do coração para Ele. E
se você abrir sua porta para o vento, ele modifica de forma radical a mobília
da sua casa.
Assim, a imagem de “nascer de novo” não é forte demais, mas fraca
demais. A diferença entre nascer de novo e não nascer de novo é ainda mais
radical que a diferença entre nascer e não nascer. Pois a diferença entre
nascer e não-nascer é a diferença entre ser temporal e não-ser temporal
neste mundo; mas a diferença entre nascer de novo e não nascer de novo é
a diferença entre ser eterno e não-ser eterno. Céu e Inferno. É uma
diferença absoluta, como a diferença entre estar grávida e não estar. Não é
uma diferença relativa, como a diferença entre ser muito bom e ser muito
mau. Não é apenas um acréscimo ou melhoria na sua vida; é a própria vida.
Não é a diferença entre mais e menos vida, ou entre vida boa e má, mas
entre vida e morte. Por essa razão, o nascer de novo não é realizado por se
esforçar um pouco mais ou muitíssimo mais, nem por ser muito bom,
sincero ou agradável. O nascer de novo é uma dádiva da mesma forma que
a nova vida física é uma dádiva. É a dádiva de um novo ser. É a transição
do não-ser para o ser. É um ato de criação. Só Deus pode criar (bara’).
Mas Deus, para fazer isso, para nos fecundar com sua nova vida,
precisa estar de fato tão presente para nós como o homem está para a
mulher para fecundá-la. Não existe gravidez via e-mail. Você não pode
engravidar apenas por pensar nisso nem por uma “transformação da
consciência”, por mais profunda que ela seja. O corpo da mulher só pode
ser fecundado com a vida humana pela presença real de um homem dentro
do seu corpo, e sua alma só pode ser fecundada com a vida divina pela
presença real de Deus na sua alma.
E Jesus é essa presença de Deus para o homem. Ele esteve, por 33
anos, visivelmente presente em seu corpo humano individual em Israel do
século I, mas Ele está, de fato, tão presente, embora de forma invisível, no
corpo da sua Igreja universal, o “corpo místico de Cristo”, pelo resto da
história e em todo o mundo. A Igreja é “a extensão da Encarnação”. Por
isso, a Igreja não só ensina em nome de Jesus e com sua autoridade, mas
também batiza em seu nome, perdoa os pecados em seu nome, oferece a
Eucaristia em seu nome e a presença real.
Isso não é opcional. Esse é o caminho. A não ser que nasça de novo,
você não pode entrar no Reino de Deus. A não ser que seja fecundado por
Deus, você não pode ir para o céu. Isso não é fundamentalismo dos Batistas
do Sul, é o cristianismo de Jesus de Nazaré.
Todavia, muitos de nós, como Nicodemos, ainda não entendemos
isso. Deixamos escapar o cerne e a essência de todo esse negócio de religião.
Achamos que a religião diz respeito a pensar diferente, crer diferente,
avaliar diferente e agir diferente; e esquecemos que a raiz de todas essas
coisas é ser diferente. Cristo não veio apenas para nos dar novos
pensamentos e valores, mas um novo ser.
Da mesma forma que muitos de nós, como Nicodemos, não
apreendemos a essência da religião, muitos de nós não apreendemos o
cerne da finalidade do sexo. Da mesma forma que o principal ponto e
propósito da religião é a Criação (a Criação de um ser novo, divino), o
principal ponto e propósito do sexo é a procriação. Mas transformamos a
gravidez em um “acidente”! Isso é a mesma coisa que aceitar a religião, a fé,
o credo, a igreja, os sacramentos e todo o pacote e, depois, chamar nossa
entrada no Céu de acidente! Ou a mesma coisa que comer alimento
saudável e chamar a saúde do nosso corpo de acidente. Não somos apenas
obtusos, somos deformados!
Quando Jesus disse a Nicodemos: “Ninguém pode ver o Reino de
Deus, se não nascer de novo”, ele ficou surpreso e externou sua surpresa:
“Como pode ser isso?” Essa é uma reação cândida, honesta e humilde.
Nicodemos era fariseu, mas nem todos eles eram maus. A voz dele é muito
diferente da voz que ouvimos da maioria dos outros fariseus no Novo
Testamento. Mas não diferente da voz de todos, não é diferente da voz de
Gamaliel (Atos 5:34-39) nem da de Paulo (veja Filipenses 3:5). O espanto
de Nicodemos é o espanto de uma criança honesta, pois ele não está
escondido por trás da máscara da alta posição, da reputação nem da suposta
perícia. Ele está sem máscara. Naquele momento, Nicodemos, como
Sócrates, não está preocupado com a aparência, mas apenas com a realidade
e a verdade.
A resposta de Jesus ao espanto de Nicodemos é outro tipo de
espanto. Jesus está surpreso com o espanto de Nicodemos. A reação de
Jesus ao espanto totalmente não irônico de Nicodemos é a surpresa irônica:
“O que é isso? Você é um rabino, um mestre de Israel e não sabe isso? É
disso que se trata todo Israel e todo o judaísmo.”
“Todas as leis e os profetas, todas as suas Escrituras e a história, tão
cheia de profetas, toda a Providência divina e os milagres, todo esse longo
programa de ensino divino de 2.000 anos, a começar com Abraão; na
verdade, todas as alianças, a começar com Adão e Noé, foram feitas por isso.
Esse é o fim que meu Pai tinha em mente quando escolheu Israel. Ele o
escolheu para ser o ventre para dar à luz o segundo nascimento da
humanidade. Essa era a intenção dele desde o princípio, desde a Criação do
universo. Esse é o ponto de tudo, das estrelas e galáxias, da evolução
geológica e biológica. O mais alto propósito do universo material que Ele
criou é suprir a terra, da qual Ele formou a raça humana (Gênesis 2:7),
para ser o ventre do primeiro nascimento físico da raça humana. Esse foi o
ventre que Ele designou para dar à luz o ventre das mulheres dos quais, por
sua vez, nascerão novos homens e mulheres, novas pessoas, com almas
imortais, feitas à imagem dele. Este foi o principal motivo da Criação do
universo: as pessoas. Você acha que Deus se importa com gases e galáxias?
Eles foram apenas a preparação, a preliminar, a placenta para as pessoas. As
pessoas são o motivo do universo. O universo foi criado para carregar
‘pessoas’ como o ramo foi feito para carregar as flores.”
“E o objetivo de Israel, nessa humanidade, é ser o segundo ventre, o
ventre dentro do ventre do mundo. E o ponto e o produto máximos desse
ventre escolhido é o Messias, e este, neste momento, fala face a face com
você. Eu sou todo o sentido de Israel, e você, o mestre de Israel, não me
conhece. Que ironia!”
“E em Israel existe um terceiro ventre, o de minha mãe. Nela, toda a
nação de Israel chega a um único e decisivo ponto: uma jovem virgem
ajoelhada para orar é abordada por um anjo, e este prende a respiração à
espera de saber se a porta escolhida para eu entrar na humanidade e na
salvação desta se abriria livremente ou não. E a porta se abriu. Ela disse
sim. Eu sabia que ela diria sim. Sou o único homem da história que
escolheu a própria mãe.”
“Assim, o universo foi o ventre para a humanidade, a humanidade foi
o ventre para Israel, Israel foi o ventre para Maria, e Maria foi o ventre para
mim. Por isso, Maria é o ponto do universo, e eu sou o ponto desse ponto.”
Tudo isso, nem uma vírgula a menos, está implícito na declaração de
Jesus. Desvelar esse tanto levou 2.000 anos, e desvelar tudo levará mais
milhares de anos — não: levará a eternidade. A Igreja apenas começou a
desempacotar sua mala santa, seu “depósito de fé”. Da perspectiva do ano
5000 d.C., nós seremos “os cristãos primitivos”.
A cada estágio do desígnio de Deus, o Espírito tem um papel
fundamental. O Espírito soprou ordem no caos (Gênesis 1:2) e vida no
homem (Gênesis 2:7). Somos feitos à imagem de Deus porque temos o
sopro de Deus (Espírito). E quando desfiguramos a imagem dele em nós
com o pecado, a resposta de Deus foi enviar o Espírito para evocar o
milagre de Israel e para, por fim, conceber Maria, sem o pecado original,
no ventre de sua mãe Ana e, depois, conceber Cristo, sem pai humano, no
ventre de Maria. O Espírito foi o alimento, a força e a sabedoria de Cristo
durante toda a sua vida terrena. E a dádiva de Cristo de si mesmo e do
Espírito de seu Pai para nós foi o ponto culminante do ministério terreno
dele (veja João 16:7). A obra do Espírito é o novo nascimento do qual Jesus
fala para Nicodemos. O Espírito cumpre a oração profética de Davi em
Salmo 51: “Cria em mim um coração puro, ó Deus, e renova dentro de
mim um espírito estável.” Só Deus pode criar (bara’ ), fazer algo do nada,
transpor o abismo infinito entre o não-ser e o ser. Na concepção, Deus cria
um novo espírito humano (uma alma) toda vez que o amor físico provê um
corpo receptivo; e ele cria um novo espírito, a verdadeira participação
humana na vida divina dele, toda vez que do amor espiritual e da fé
provêm uma alma receptiva. A porta para a nova vida humana natural
(bios) entrar no mundo é uma mulher dizer sim a um homem por meio da
relação sexual; a porta para a nova vida eterna sobrenatural (zoe) entrar no
mundo é a alma dizer sim a Deus pela fé, como o fez Maria. A promessa
feita a Maria também é para nós: “O Espírito Santo virá sobre você, e o
poder do Altíssimo a cobrirá com a sua sombra. Assim, aquele que há de
nascer será chamado Santo, Filho de Deus” (Lucas 1:35).
Este é o verdadeiro sentido e propósito da história; esta é a verdadeira
“breve história do tempo”: nosso novo nascimento na vida eterna, nossa
transformação em pequenos Cristos, filhos de Deus, com a natureza divina
do nosso Pai divino e também com a natureza humana de nossos pais
humanos — em suma, ter, como Cristo, duas naturezas, a humana e a
divina (embora nossa natureza divina seja só pela Graça, pela adoção e pela
participação). Pois esta é a primeira e principal dádiva dos pais para o filho:
a própria natureza dos pais. Essa dádiva é o fundamento de todas as outras:
amor, tempo e educação.
E esse é o ponto da religião que Nicodemos não conhecia. Ele sabia
tudo, menos a coisa mais importante: a razão para tudo o mais que já
aconteceu e acontece. E essa razão estava sentada bem diante dele.
E está diante de nós.
IV
A ÉTICA DE JESUS
De todas as grandes perguntas da filosofia que, por natureza, todos os
homens fazem em todos os tempos, lugares e culturas, a pergunta ética ou
moral é a mais necessária, a mais prática, a mais interessante, a mais
pessoal, é aquela que nos encara olho no olho e exige resposta. Como,
então, devemos viver? Qual é o maior bem, o mais alto valor, o sentido da
vida? Como posso evitar a tragédia de tirar “A” em todas as matérias, mas
ser reprovado na vida?
Essa, das quatro grandes perguntas filosóficas, é a que todos sabem
que tem algo a ver com Cristo. Até mesmo as pessoas que não creem na
afirmação de Ele ser o Senhor, em geral, elogiam a moralidade em sua
pregação e em sua prática. Ele é, com larga margem de vantagem, o
professor da moral mais admirada, aquele que, em todos os tempos, exerce
mais influência. Contudo, o que é ímpar, o que é diferente, o que é novo
na resposta dele à pergunta moral?
A moralidade dele não era nova. Não existe essa coisa de nova
moralidade, existem apenas novas imoralidades. Todo mundo sempre
soube o que era bom e o que era mau. Nenhum indivíduo sadio e
nenhuma sociedade sã jamais acreditaram que justiça, caridade,
honestidade, autocontrole, misericórdia, lealdade e sabedoria eram coisas
ruins ou imorais, nem que injustiça, ódio, mentira, vício, crueldade, traição
e insensatez fossem boas ou obrigações morais. A moralidade de Jesus foi
apenas a flor mais plena da planta que Deus já semeara na natureza do
homem, em todo coração e toda consciência humana ao nos criar à sua
imagem.
A consciência é universal. Todos os homens a têm. Em alguns, ela é
terrivelmente fraca; em outros, ela parece estar quase morta, mas nunca está
morta. O homem totalmente sem consciência não é homem, da mesma
forma que o homem sem mente alguma não é homem. (O homem com Q.
I. 45 é homem; o homem com Q. I. 0 não o é.)
Portanto, o apelo da moral de Jesus é um apelo para a consciência
moral que já existe. A terra já fora adubada. E outro semeador plantara
sementes morais naquele campo, e muitas sementes criaram raízes
profundas e germinaram vivamente, embora ninguém tenha plantado
sementes tão profundas com tão poucas palavras como Jesus o fez. É difícil
que você encontre, ao ler a tradição judaica de Jesus, algum dito moral
dele, registrado nos Evangelhos, cujo equivalente não esteja em alguma
passagem das Escrituras ou das falas dos rabinos. Boa parte dessas falas, até
mesmo alguns dos pontos mais surpreendentes a respeito de humildade, e
autossacrifício, e o poder da fraqueza, também são encontrados fora do
judaísmo; em Lao Tse, Buda, Confúcio ou Sócrates. Então, o que é novo?
Que nova porta moral a chave de ouro abre?
Existem de fato três perguntas morais, três partes básicas da
moralidade: como devemos nos relacionar uns com os outros, conosco e
com Deus? Como meu barco coopera com os outros barcos da frota, como
ele deve ser mantido em forma? E qual é a missão da frota? Essas três
perguntas referem-se à questão da moralidade social, à questão da
moralidade individual e à questão do sentido da vida. A última é a mais
importante porque a resposta a ela influencia a resposta para todas as
outras. É a questão do fim derradeiro de tudo o mais. Tudo o mais, em
última instância, é um meio para esse final derradeiro. E embora “o fim não
justifique os meios” — ou seja, o fim bom não justifica o meio mau — o
fim bom justifica os meios bons, pois os meios estão relacionados com o
fim. Isto é o que quer dizer meios: um “meio” para alcançar um fim.
Então, qual é a resposta de Jesus para o sentido da vida, o fim
supremo, o bem maior?
A resposta é o próprio Cristo. Cristo é o bem maior.
Como, então, devemos viver? Que tipo de pessoa devemos ser?
Devemos ser Cristos. Devemos ser pequenos Cristos. Devemos “atingi[r] a
medida da plenitude de Cristo” (Efésios 4:13).
E como devemos tratar uns aos outros? Como Cristos. “Digo-lhes a
verdade: O que vocês fizeram a algum dos meus menores irmãos, a mim o
fizeram” (Mateus 25:40).
Veja que Cristo, em vez de dizer a resposta, mostra-nos a resposta,
pois Ele é a resposta. Ele se revela a nós.
Isso é que é novo, esse novo homem. Todos nós sabemos as outras
respostas. Jamais vivemos muito bem a moralidade, mas sempre a
conhecemos bastante bem, de forma bem adequada. Compare o quão bem
conhecemos a moralidade com o quão bem conhecemos a metafísica, a
epistemologia ou a antropologia — ou, com certeza, a teologia. Deus nos
deixa cometer muitos erros nessas outras áreas, mas Ele não deixou de, Ele
mesmo, dar um claro testemunho na área da moralidade. Ele concede a
cada um de nós dois profetas celestiais da moralidade que, se escutarmos,
falam poderosamente a nós. Cada um de nós tem consciência, e cada um
de nós tem um anjo. Cada um de nós tem dois profetas de Deus, um
profeta interior e outro exterior.
Com toda essa ajuda, o mapa dos princípios morais está tão claro
que até um tolo pode lê-lo. (Aplicar esses princípios a situações complexas e
variáveis, sem dúvida, é uma tarefa complexa, variável e não tão simples.)
Não temos princípios de menos em nossas muitas filosofias morais, temos
princípios demais. Precisamos descobrir a unidade de todos eles. E
descobrimos isso quando observamos Jesus. Descobrimos que “apenas uma
[coisa] é necessária” (Lucas 10:42), e essa “coisa” é Ele. Não precisamos de
“Jesus e”, mas de “mais ninguém a não ser Jesus” (Mateus 17:8). Nele estão
todos os bens, todas as dádivas, absolutamente tudo de que precisamos
(Filipenses 4:19). Pois quando conhecemos Jesus, aprendemos que não
precisamos de fato das pequenas coisas boas que achávamos que
precisávamos; as muitas coisas ao estilo de Marta, como garantir que o
jantar sempre seja servido na hora certa. E quando o conhecemos,
aprendemos que precisamos de uma coisa que não sabíamos que
precisávamos: a coisa ao estilo de Maria, apenas sentar aos pés dele, e ouvi-
lo e amá-lo. Ele é, de fato, tudo de que precisamos; literalmente. Além dele,
a única outra questão que precisamos saber é que não existe outra coisa a
conhecer além dele.
São Paulo ensina essa ideia escandalosamente simples de que a vida
boa é só Cristo. A fórmula para a vida boa de Paulo não poderia ser mais
simples: “Para mim o viver é Cristo” (Filipenses 1:21). Por isso, ele
prossegue e diz: “E o morrer é lucro”, pois se a vida é Cristo, a morte é
apenas mais Cristo.
Cerca de metade das palavras proferidas por Jesus nos Evangelhos
fala de ética. Contudo, a obra ética de Jesus mais transformadora do
mundo não está nas palavras dele, que são muitas, mas nele mesmo, que é
um. Ele não é chamado “as palavras de Deus”, mas “a Palavra de Deus”.
Ele é o maior mestre de moral do mundo, porém é mais que isso. Ele
é o exemplo moral mais perfeito do mundo, porém é mais que isso. Ele é o
maior profeta do mundo, porém é mais que isso. Ele é mais que alguém
que ensinou bondade, e viveu bondade, e exigiu bondade. Ele é bondade.
Certa ocasião, alguém se dirigiu a Ele como “Bom Mestre”, e Jesus
perguntou à pessoa: “Por que me chamas bom?” (Mateus 19:17; ARC). Ele
não estava negando que era Deus, mas afirmando isso e, assim, afirmava
que era mais que um homem bom, mais até mesmo que um “Bom
Mestre”. Ele não é apenas um homem bom, é a totalidade da bondade, a
bondade encarnada, o bem universal; não o bem apenas parcial ou
particular. Ele não é apenas o melhor mestre do sentido da vida, ele é o
sentido da vida. Buda diz: “Não olhe para mim, olhe para meu
ensinamento”; Jesus diz: “Venham a mim” (Mateus 11:28). Ele não é
apenas aquele que personifica perfeitamente o sentido da vida, ele é o
sentido da vida. Ele não é o exemplo de alguma coisa. Os exemplos
apontam para além de si mesmos, mas ele não aponta apenas o bom
caminho, ele é o bom caminho. Ele não fala apenas a verdade a respeito da
bondade, ele é a verdade a respeito da bondade. Ele não vive apenas a vida
boa, ele é a vida boa. “Eu sou o caminho, a verdade e a vida” (João 14:6).
Isso é tão chocante que se parece com o que os filósofos analíticos da
linguagem chamariam de “confusão de categoria”, como se Platão tivesse
dito que a própria essência da beleza eterna estava em sua cozinha
preparando o jantar, ou que a justiça tinha 1,82 metro de altura.
É difícil entender a questão justamente porque ela é tão simples, tão
singela. Uma vez que nossa mente e nosso coração não são simples, temos
mais facilidade de entender a questão se a tornamos mais complexa.
Portanto, vamos dividi-la em quatro partes, ou quatro pontos, ou quatro
dimensões: primeiro, o “personalismo” de seguir Jesus, em vez de seguir um
conjunto de princípios impessoais; segundo, a superação do legalismo por
essa simplicidade; terceiro, a refutação do relativismo moral, o oposto
aparente do legalismo; e quarto, o segredo do sucesso moral.
1. PERSONALISMO CRISTÃO: VER “SÓ JESUS”

Seis dias depois, Jesus tomou consigo Pedro, Tiago e João, irmão de Tiago, e os
levou, em particular, a um alto monte. Ali ele foi transfigurado diante deles. Sua
face brilhou como o sol, e suas roupas se tornaram brancas como a luz. Naquele
mesmo momento, apareceram diante deles Moisés e Elias, conversando com
Jesus. Então Pedro disse a Jesus: “Senhor, é bom estarmos aqui. Se quiseres, farei
três tendas: uma para ti, uma para Moisés e outra para Elias.” Enquanto ele
ainda estava falando, uma nuvem resplandecente os envolveu, e dela saiu uma
voz, que dizia: “Este é o meu Filho amado em quem me agrado. Ouçam-no!”
Ouvindo isso, os discípulos prostraram-se com o rosto em terra e ficaram
aterrorizados. Mas Jesus se aproximou, tocou neles e disse: “Levantem-se! Não
tenham medo!” E erguendo eles os olhos, não viram mais ninguém a não ser
Jesus (Mateus 17:1-8).

A primeira coisa a esclarecer a respeito da “transfiguração” é que ela


não foi a transfiguração da realidade de Jesus, mas da visão dos discípulos.
Jesus não mudou e brilhou mais que a luz. Ele sempre foi, e é, mais
brilhante que a luz. (Ele não é um pouco parecido com a luz; a luz se
parece um pouco com Ele.) Os olhos dos discípulos é que foram mudados.
Deus capacitou-os a ver o que é, em vez de apenas o que parece ser. Ele
levantou a cortina.
É exatamente igual à cena de 2 Reis 6, na qual o perverso rei da Síria
descobre onde Eliseu está e envia tropas para matá-lo:

Quando lhe informaram que o profeta estava em Dotã, ele enviou para lá uma
grande tropa com cavalos e carros de guerra. Eles chegaram de noite e cercaram
a cidade. O servo do homem de Deus levantou-se bem cedo pela manhã e,
quando saía, viu que uma tropa com cavalos e carros de guerra havia cercado a
cidade. Então ele exclamou: “Ah, meu senhor! O que faremos?” O profeta
respondeu: “Não tenha medo. Aqueles que estão conosco são mais numerosos
do que eles”. E Eliseu orou: “SENHOR, abre os olhos dele para que veja”.
Então o SENHOR abriu os olhos do rapaz, que olhou e viu as colinas cheias de
cavalos e carros de fogo ao redor de Eliseu.

Deus não pôs essa visão do exército de anjos em carros de fogo nos
olhos do servo de Eliseu. Ele apenas removeu as travas dos olhos do servo.
(Os anjos não estão presentes apenas quando os vemos!)
No monte da transfiguração, Deus fez algo semelhante com Pedro,
Tiago e João. Pouco antes da transfiguração, Pedro achara difícil, quando
andou sobre as escuras e amedrontadoras águas da tempestade no mar
(Mateus 14), ver só a Jesus; e ele começou a afundar quando tirou os olhos
de Jesus. Aqui, Pedro também acha difícil ver só a Jesus no alto do monte
em meio à resplandecente glória celestial (Mateus 17). Pois ele faz, sem
pensar, uma proposta ridícula, mas que soa razoável, de montar três
santuários. Se Jesus tivesse permitido isso, o local, em poucos séculos, teria
se tornado uma armadilha turística, e Pedro ficaria famoso como
incorporador, não como discípulo. O ridículo não é a ideia de construir os
santuários, mas de fazer três deles, pondo Jesus na mesma categoria de
Moisés e Elias. E é provável que Pedro pensasse que isso era uma lisonja!
Deus corrige Pedro por meio de uma voz vinda do céu que, em essência,
diz: “O que você está pensando? Tenho muitos servos, mas apenas um
Filho” (Mateus 17:5).
Como o insensato Pedro e os outros conseguiram ficar tão sábios a
ponto de ver só a Jesus? Muito simples: no mesmo instante em que a voz de
Deus ordenou: “Ouçam-no”, eles obedeceram. “Os discípulos prostraram-
se com o rosto em terra e ficaram aterrorizados” (Mateus 17:6). (Vivemos
em uma era terrivelmente empobrecida na qual essa emoção religiosa mais
básica surpreende nossos professores, por considerá-la primitiva; e nossos
estudantes, por considerá-la incompreensível.) Só porque obedeceram, os
discípulos sentiram o medo santo, e só porque sentiram o medo santo,
Jesus pôde se aproximar, tocá-los e dizer: “Não tenham medo!” O medo é
pré-condição necessária para o “não-medo”. “O temor do Senhor é o
princípio da sabedoria” (Provérbios 9:10). E essa é a sabedoria moral, a
sabedoria da santidade. (Ver Jó 28:28.)
Em geral, achamos que a sabedoria vem primeiro e leva à santidade,
mas acontece o oposto. Acreditamos que temos primeiro de ver e, depois,
agir, mas acontece o oposto. Achamos que a vontade segue a mente, mas
acontece o oposto. Somos gregos, não judeus. Os judeus sabiam que a
sucessão de fatos era a outra, que primeiro vem a obediência moral e,
depois de obedecermos, nossa percepção é esclarecida. Apenas a vontade
receptiva à obediência pode abrir nossos olhos para a sabedoria. Por isso,
Jesus diz: “Se alguém decidir fazer a vontade de Deus, descobrirá se o meu
ensino vem de Deus ou se falo por mim mesmo” (João 7:17).
E a percepção dos discípulos foi esclarecida pela obediência deles.
Qual foi o esclarecimento? Apenas que quando eles levantaram “os olhos,
não viram mais ninguém a não ser Jesus.” Isto é sabedoria: não ver “mais
ninguém a não ser Jesus”. A única forma de alcançar essa sabedoria
aprimorada de não ver “mais ninguém a não ser Jesus” é começar com a
sabedoria inicial de temer ao Senhor e obedecer à voz dele.
O que quer dizer não ver “mais ninguém a não ser Jesus”? Aqui, o “a
não ser” não é o “a não ser” exclusivo, mas o inclusivo. Não é Jesus fora de
todas as coisas, mas Jesus em todas as coisas; não é Jesus excluindo todas as
coisas, mas incluindo todas as coisas. Pois a “Graça aperfeiçoa a natureza”,
em vez de destruí-la. Deus capacita seus filhos, como o ótimo pai que está
disposto a parecer pequeno para que seus filhos pareçam grandes. Ele não
rivaliza com seus filhos, como o pai egoísta que está preocupado em parecer
grande e, por isso, faz com que seus filhos pareçam insignificantes. Deus
não nos diminui, Ele nos faz grandes.
O motivo máximo por que a Graça aperfeiçoa a natureza é Deus ser
amor, e o amor não fere, não rivaliza, não destrói nem destitui nada de
forma alguma. Jesus não destitui Moisés, Elias, Pedro ou o judaísmo (“Não
pensem que vim abolir a Lei ou os Profetas; não vim abolir, mas cumprir”;
Mateus 5:17). A prova concretíssima desse princípio é o próprio Cristo, no
qual a divindade (Graça) aperfeiçoa perfeitamente a humanidade
(natureza).
Não obstante, Ele veio para destruir algo: o pecado. Ele é o Senhor
da vida e, portanto, inimigo do inimigo da vida, o pecado. Ele só mata
aquele que mata e, por isso, precisa ser morto. Todos nós sabemos que
abrigamos e afagamos alguns inimigos da vida, da nossa vida, algum pecado
habitual ou até mesmo alguma coisa inocente em si mesma, mas que Jesus
sabe que nos leva a pecar ou nos impede de ter a vida plena: algum
conforto, alguma segurança, alguma alegria terrena — talvez a própria vida
biológica — que levanta uma redoma ao nosso redor dificultando a entrada
dele, que torna mais difícil receber a plenitude de vida e de alegria no fim,
por causa dessa vida inferior atual. Por isso, o jardineiro divino poda-nos,
matando a vida inferior para que a superior cresça.
Por Ele matar a vida inferior, parte da natureza, parece que a Graça
dele não aperfeiçoa a natureza, mas a destrói. Mas essa morte aperfeiçoa a
natureza, pois o resultado da morte é uma vida superior. Naturalmente, o
ramo podado duvida das boas intenções do jardineiro. Contudo, se Ele,
pela fé, deixar-se podar agora, descobrirá, no ano seguinte, por que foi
certo confiar no jardineiro. Não é verdade que “ver é crer”, mas que “crer é
ver”. Conforme Jesus disse no túmulo de Lázaro: “Não lhe falei que, se
você cresse, veria a glória de Deus?” (João 11:40).
É claro que nós não conseguimos, como Ele, ver o fim quando
estamos no início. Não vemos a planta perfeita que nos tornaremos com a
poda que Ele faz nem vemos o jardineiro: “Ninguém jamais viu a Deus”
(João 1:18). “Vemos, todavia, [...] Jesus” (Hebreus 2:9). Não vemos “mais
ninguém a não ser Jesus” (Mateus 17:8). E se tiramos nosso olho dele,
somos como a criancinha que apenas vê a bola de sorvete cair da casquinha
e chora inconsolável, como se isso fosse uma tragédia irremediável. A
criança precisa apenas afastar os olhos do sorvete e voltá-los confiantes para
o pai que foi quem deu.
Esta é a melhor coisa que podemos fazer: olhar para Jesus. Foi isso
que Maria fez, mas Marta não. E quando olhamos para Ele em busca de
ajuda para nossa necessidade real ou aparente, quer grande quer pequena,
quer a queda do World Trade Center quer a queda do sorvete da
casquinha, o melhor que temos a fazer é repetir as palavras que Ele disse
para Jó: “Apenas confie em mim, filho. Você conhece a si mesmo e conhece
a mim. Eu sou aquele de quem vem ‘toda boa dádiva e todo dom perfeito’
(Tiago 1:17), e você é apenas uma criança que não pode entender meus
desígnios. A sua sabedoria é a confiança, a minha sabedoria é a providência.
Pois você é apenas você, e eu sou eu. Não sou homem, e você não é Deus.
Por que você tem tanta dificuldade para se lembrar desse fato elementar?
Deixe-me ajudá-lo a se lembrar, diga-me: ‘Onde você estava quando lancei
os alicerces da terra?’” (Jó 38:4).
Esta é a primeira lição: o que nós não sabemos. Se não soubermos
isso, não sabemos nada mais. Deus ensinou a primeira lição para Jó e
também para Sócrates.
Depois, Jesus nos ensinou a segunda lição, a resposta da primeira
lição: “Onde você estava quando lancei os alicerces da terra?” Ele diz: “Vou
dizer onde você estava: você estava no centro da minha visão e do meu
coração. Planejei o universo para você, para sua maior glória e sua maior
alegria, e essa também é minha maior glória e minha maior alegria. Você é
minha maior alegria, e sua maior alegria sou eu. Sua alegria foi todo o
motivo para eu realizar o Big Bang. Você acha que eu tinha estrelas em
vista, em vez de almas? Você acha que sou mais glorificado por queimar
hidrogênio que por queimar corações? Pelos grandes atos de explosões de
supernovas que pelos pequenos atos de amor?
“Você não entende sua vida porque você não é simples. O sentido da
vida para você sou Eu; e o sentido da vida para Mim, você. O amado está
sempre no centro da percepção do amante. Isso é o que amor quer dizer.
Esperei bilhões de anos por você, enquanto as galáxias esfriavam; e aqueles
anos não foram nada para Mim por causa do meu amor. Eu era como Jacó
à espera de Raquel: ‘Então Jacó trabalhou sete anos por Raquel, mas lhe
pareceram poucos dias, pelo tanto que a amava’ (Gênesis 29:20). Por isso,
‘mil anos [...] são como o dia de ontem’ para mim (Salmo 90:4): porque
sou amor.
“Seja como eu. Seja amor. Veja todas as outras coisas como
relacionadas com o amor e como minhas cartas de amor para você. Veja as
coisas como elas são: todas as coisas do universo e todas as coisas da sua
vida são a escada de Jacó, vias para a troca entre dois amantes, Eu e você. Se
você vir isso, então verá todas as suas tempestades terríveis e os seus
sofrimentos semelhantes ao de Jó caindo como o sorvete cai da casquinha.
Melhor ainda, você as verá como a minha Cruz. E uma vez que é a minha
Cruz, você a verá como uma Cruz de amor e de vida. Seus próprios
sofrimentos serão como o monte da transfiguração: através do prisma da
sua fé em Mim e do poder das Minhas feridas de amor, suas feridas
refletirão minha luz de Filho e se transformarão em ouro e glória. Eu, Jesus,
sou seu toque de Midas.”
Achamos que cremos nas boas novas de que “Deus é amor” (1 João
4:8), e de que ele “age em todas as coisas para o bem daqueles que o amam”
(Romanos 8:28) — e cremos, mas nossa fé é principalmente o que
Newman chamou “aceitação nocional”, e não “aceitação real”. É mais a
aceitação da verdade da ideia que da realidade. É fácil dizer um sim
completo para a verdade de Cristo. Fazer isso é simplesmente ser cristão.
Mas é difícil dizer um sim completo para Cristo. Fazer isso é ser santo.
Nossa fé é verdadeira, preciosa e inestimável, mas não é firme o
bastante. É como uma linda nuvem de ouro. Quando a vida deposita um
fardo pesado sobre nós, ele atravessa a nuvem como uma bola de canhão
porque é mais pesado que qualquer nuvem, até mesmo de uma de ouro.
Nossa fé tem de se tornar mais que uma nuvem, tem de se tornar uma
coisa, uma coisa mais real, mais sólida e mais substancial que qualquer
fardo. E essa coisa só pode ser não ver “mais ninguém a não ser Jesus”. Não
pode ser “Jesus, se”, “Jesus e” nem “Jesus, mas”. Em Cristo não há se, e ou
mas (2 Coríntios 1:20).
2. A superação do legalismo

Atualmente, ninguém defende o legalismo, embora poucos escapem dele.


A única forma de escapar dele é a verdade, a verdade a respeito da
Lei. E essa verdade é que o propósito da Lei é levar a Cristo (“A Lei foi o
nosso tutor até Cristo”; Gálatas 3:24).
A Lei é boa (Romanos 7:12). Precisamos dela para ter mais
discernimento moral, para definir o bem e o mal. Isso é verdade em relação
à lei moral e à lei civil. Mas enquanto apenas os criminosos precisam se
preocupar com a lei civil, todos nós temos de nos preocupar com a lei
moral. Apenas poucas pessoas transgridem a lei civil, mas todos nós somos
transgressores da lei moral.
Preocupamo-nos muitas vezes com a transgressão de muitas leis
morais, pois sabemos que somos muito criativos em inventar novas
maneiras de pecar e novas desculpas para repetir pecados antigos. Cristo é a
única solução para todos os nossos pecados. Existem muitos pecados e
muitas leis, mas só um Cristo.
Nossa vida moral interior parece complexa. Existem muitas leis,
muitas tentações e muitos pecados. Nossa vida social externa também é
complexa, cada vez mais complexa e, às vezes, esmagadora. Por isso,
corremos tanto: estamos tentando fazer o impossível — tudo. Talvez em
algum lugar haja poucas pessoas, escondidas em árvores, que são saudáveis
o bastante para não se deixarem contagiar pela nossa adoração pelo relógio
e, por essa razão, ainda têm e sentem a liberação, lazer e liberdade em sua
vida — mas nunca as encontramos. Temos tantas angústias e preocupações,
espirituais e físicas, internas e externas. Somos complexos e nos
preocupamos externamente apenas porque somos complexos e nos
preocupamos internamente, da mesma forma que existem guerras externas
porque existem guerras internas. (Ver Tiago 4:1-3.) A simplicidade seria a
liberação. Mas a simplicidade parece estar impraticável e impossivelmente
distante.
Ouçamos a palavra radical e liberadora de Cristo, que nos liberta da
complexidade física e espiritual e, desse modo, do legalismo; a palavra
liberadora que Ele dirigiu a Marta. (Nós somos Marta.) “Marta! Marta!
Você está preocupada e inquieta com muitas coisas, todavia apenas uma é
necessária” (Lucas 10:41,42).
Ó Evangelho! Ó novas de um bem acima da esperança! Ó segredo do
sucesso para a sanidade e a santidade! Ó doce substituto da psiquiatria! Isso
pode ser verdade? O que essa única coisa “necessária” pode ser?
Cristo não nos diz a resposta, Ele nos mostra a resposta: “Maria
escolheu a boa parte.” O que Maria escolheu? Ela escolheu Jesus. Só Jesus.
Maria renunciou a tudo o mais para se sentar aos pés de Jesus. Essa “[coisa]
necessária” é Jesus. Ele é o Messias prometido por todas as leis e profetas, e
Ele foi prometido para todos nós e para todas as nossas necessidades.
Em especial, nossas necessidades morais. Para o cristão, a vida moral
é simplesmente Cristo vivo por intermédio dos membros do corpo dele,
sua Igreja, seu povo. A lei moral descreve e prescreve apenas essa vida; Cristo
é essa vida, e ele a concede. Ele dá o que é. Ele dá a si mesmo.

Ele dá sua vida, em especial, na Eucaristia. A Eucaristia é o corpo


dele e também a Igreja. E da mesma forma como a Eucaristia não é um
mero símbolo ou imagem de Cristo, mas o próprio Cristo, também a vida
moral dos cristãos, ou seja, da Igreja de Cristo, não é uma mera imagem,
mas a presença real de Cristo atuando por intermédio de seu povo pecador,
tolo e insensato.
A diferença entre a presença secreta dele na Eucaristia e a presença
secreta em seu povo é que a Eucaristia não tem duas naturezas. Ela é
perfeita. Ela é 100% Cristo, e 0% pão e vinho, enquanto nós somos
misturados e imperfeitos. Nós somos 99% Adão e 1% Cristo. Por essa
razão, não devemos adorar o povo imperfeito dele, mas a Eucaristia. O que,
na Eucaristia, parece ser não-Cristo é Cristo, mas o que parece ser não-
Cristo na humanidade caída e pecaminosa é realmente não-Cristo. O pão
da Eucaristia é transubstanciado, enquanto nós somos consubstanciados. A
teologia luterana da Eucaristia está certa, mas está certa a nosso respeito,
não quanto à Eucaristia. (“Consubstanciação” representa a crença de que
Cristo e o pão e o vinho estão realmente presentes na Eucaristia depois da
Consagração.)
Mas a presença de Cristo em nós, embora minúscula e imperfeita, é
real. Pois ser cristão quer dizer verdadeira incorporação no corpo real de
Cristo. E esse corpo é vivo! É um corpus, não um cadáver. E este é todo o
ponto da moralidade: Cristo e seu corpo. Da mesma forma como o motivo
completo da existência das casas é abrigar; e o da medicina, curar; e o da
ciência, o conhecimento; o motivo da religião é nos tornar pequenos
Cristos, nos tornar noivas de Cristo, nos tornar a Igreja, nos tornar o corpo
Dele, nos tornar um com Ele em corpo e em espírito. (Como existem
várias maneiras de dizer a mesma coisa!) Cristo transforma a moralidade, a
coisa mais distante do mundo do legalismo: é um romance, casamento,
caso de amor com o Senhor. Como pudemos achar que a moralidade fosse
algo maçante, sombrio, desumanizador, repressivo e limitante? Apenas
porque não sabíamos qual era o completo sentido dela: Ele.

*
Esse segundo ponto (superar o legalismo) é a conse-quência imediata
do primeiro ponto (personalismo). O personalismo cristão representa mais
do que a mera ideia de que as pessoas são importantes, mesmo
intrinsecamente valiosas; e representa mais que a ideia de que os princípios
são para as pessoas, em vez de as pessoas serem para os princípios; e mais
que a ideia de que devemos observar o sujeito individual que escolhe e age
moralmente, em vez de observar o objeto do pensamento, da escolha e da
atuação dessa pessoa. O personalismo cristão também representa todas essas
coisas, mas não precisamos ser cristãos para conhecer todos esses princípios.
O personalismo cristão, acima de todo objeto último do pensamento, da
escolha e da atuação cristã, é uma pessoa: Cristo. “Apenas uma vida; ela
logo passará. Apenas o que é feito por Cristo perdura.” Minha avó bordou
essas palavras em um tecido e pendurou na parede da sala de jantar da casa
dela e também nas paredes da minha mente e coração. Obrigado, vovó. Faz
mais de sessenta anos que vi as palavras bordadas, mas não as esqueci.
Jesus resume a vida moral em duas palavras: “Siga-me” (João 1:43).
Todos os outros grandes mestres da moral — Moisés, Buda, Confúcio, Lao
Tsé, Sócrates, Maomé — dizem: “Siga meu ensinamento.” Mas Cristo
disse: “Siga-me.” Eles disseram: “Eu ensino o caminho”; mas Cristo disse:
“Eu sou o caminho.” Buda disse: “Não olhe para mim, olhe para meu
darma (doutrina).” Cristo disse: “Venham a mim” (Mateus 11:28). Buda
disse: “Sejam lâmpadas para vocês mesmos.” Cristo disse: “Eu sou a luz do
mundo” (João 8:12).
Os filósofos buscam a sabedoria. Cristo é a sabedoria (1 Coríntios
1:30). Por essa razão, Cristo é a realização da filosofia.
Os moralistas buscam a justiça. Cristo é justiça (1 Coríntios 1:30).
Por essa razão, Cristo é a realização da moralidade.
A diferença entre “siga meu ensinamento” e “siga-me” é a mesma
diferença entre seguir um mapa rodoviário e seguir um carro. Ser cristão é
não se preocupar em pegar todos os detalhes corretos do caminho nas
indicações do mapa; é uma caçada em um carro em alta velocidade. “Siga-
me!”
E quando a caçada termina, e encontramos a Cristo, descobrimos
que Ele é “o cão de caça do Céu” que nos caçava muito antes de
começarmos a caçá-lo. Na verdade, nossa própria busca por Ele é resultado
da busca dele por nós. Nas palavras de um antigo hino:

Busquei o Senhor, depois, soube


Que Ele moveu minha alma a buscá-lo, em sua busca por mim.
Não fui eu quem o encontrou, Ó verdadeiro Salvador,
Não, eu fui encontrado por Ti.

Cristo é o único critério de moralidade. Não é possível encontrar um


ato inocente que não acolha bem o nome de Cristo, nem um ato
pecaminoso que o acolha. Mas Ele é mais que o critério, também é a meta,
o bem que buscamos, o “sentido da vida”, o summum bonum, o fim, a
“[coisa] necessária”. Nosso coração não pode ser enganado a respeito do
nosso bem supremo, mesmo que nossa mente possa. Sabemos, e não
podemos não saber, que nada mais é suficiente, que nenhum dos outros
candidatos ao cargo de rei da nossa vida é realmente real. Nosso coração
fica desassossegado até que descanse nele.
Temos um “divino descontente”, uma “disputa de amante com o
mundo”, um anseio misterioso por um não sabemos o quê. Esse anseio se
parece com o belo som de partir o coração da voz abafada de um pássaro,
um anseio tão fundo em nosso coração que parece infinitamente distante e
infinitamente próximo. É como a estrela de Belém, um dedo que se move
desassossegado pelo céu e só descansa sobre o berço do verdadeiro Cristo.
Esta é a nossa glória suprema: o fato de nosso anseio mais profundo
ser a glória divina, mesmo que ela pareça inalcançável, inacessível,
inimaginável, impossível, inefável, indefinível e infinita. Este também é
nosso fracasso supremo: o fato de ansiarmos por uma glória inalcançável. A
vida é este koan: o fato de que a coisa que mais queremos é a que menos
podemos conseguir; o fato de que, de um lado, a coisa gloriosa que
queremos não é nada menos que a glória de Deus e de que, de outro lado,
“todos [...] estão destituídos da glória de Deus” (Romanos 3:23). O fim —
Deus — excede infinitamente o meio — todo esforço humano.
A seguir, ouvimos “o resto da história”, as boas novas de que Deus fez
o impossível porque “para Deus todas as coisas são possíveis” (Mateus
19:26); as boas novas de que Deus baixou uma escada do Céu pela qual
podemos subir até Ele (João 1:51; Gênesis 28:12). Fomos destituídos da
glória de Deus, então a glória de Deus desceu até nós.
O que é a “glória de Deus” da qual todos nós fomos destituídos? É
Cristo. Cristo é a glória de Deus, a maior glória de Deus. “Pois foi do
agrado de Deus que nele habitasse toda a plenitude” (Colossenses 1:19). O
Catecismo da Igreja Católica apresenta de forma clara essa equação simples:
“A glória de Deus é Jesus Cristo.”
3. A refutação do relativismo

A presença real de Cristo na vida moral liberta a moralidade não só do


legalismo, mas também do relativismo. Os dois são erros opostos: o
legalismo sacrifica as pessoas pelos princípios, enquanto o relativismo
sacrifica os princípios pelas pessoas. Contudo, Cristo é mais absoluto que
qualquer princípio, e é Cristo, é esse absoluto pessoal, não o legalismo
impessoal, que refuta o relativismo moral.
Relativismo moral é a ortodoxia do “politicamente correto” da nossa
cultura mofada. Na cabeça dos modeladores de mente, nada é pior que a
“intolerância”, e o absolutismo moral é intolerante. Daí a popularidade de
dizer coisas como “Não imponha seus valores a mim”; “Diferentes ritmos
para diferentes povos”; e “Viva e deixa viver”.
Na história mundial, nenhuma cultura que abraçou o relativismo
moral sobreviveu. Portanto, nossa cultura ou (1) será a primeira a fazer isso
e a refutar a lição mais clara da história, ou (2) persiste nesse relativismo e
morre, ou (3) arrepende-se de seu relativismo e vive. Não há outra opção.
O homem mais extraordinário do pior século da história chamou
nossa cultura de “cultura da morte”. É uma cultura que cada vez mais é
indulgente com os “matadores misericordiosos” como o “Doutor”
Kevorkian, porque a própria cultura está no processo de se “kevorkianizar”.
Nossa cultura tolera o aborto porque está abortando a si mesma. Por essa
razão, ela precisa de uma terapia muito mais profunda que de bons
argumentos filosóficos refutando o relativismo. Esse é apenas um raio X da
situação, e nós precisamos da cura para ela. O raio X fornece apenas a
observação dos sintomas, os efeitos da doença; precisamos do diagnóstico
da doença que está causando os sintomas antes de prescrever a cura. E o
diagnóstico mais profundo da principal causa da doença da nossa cultura,
em uma palavra, é a descrença em Cristo. Pior, é a Cristofobia.
A resposta mais firme ao relativismo moral não é o argumento
perfeito, mas a pessoa perfeita: Cristo. Pois Ele é evidência concreta, dado
real, presença real. Encontre-o, e o relativismo, no mesmo instante,
murcha, como o vampiro, na luz do sol. Os argumentos mais irrefutáveis
sempre são fatos, dados, realidade concreta. Por exemplo, o argumento
mais eficaz contra o aborto é simplesmente assistir a um aborto. Por isso, a
operação mais comum nos Estados Unidos é a única nunca vista em
nenhuma emissora de televisão ou tela de cinema.
As duas coisas que mais convencem as pessoas são os fatos e as
pessoas. Cristo é ambos.
Nossa cultura rejeita a moralidade cristã porque rejeita Cristo. Nossa
cultura, em geral, acha a moralidade útil em várias áreas, mas desagradável
e repressiva em uma área: o sexo. Ela não sabe que a moralidade é atraente:
são as preliminares espirituais, o namoro espiritual, a preparação do
casamento espiritual na terra para nossa enlevada consumação na
eternidade. Nossa cultura não sabe que, em última instância, a questão da
moralidade é a união matrimonial com Deus em Cristo, união essa que é
um êxtase eterno, ilimitado e inimaginável de amor que entrega a si
mesmo, que esquece a si mesmo. Isso se parece com o que nossa cultura
entende por moralidade? Por que não? Porque nossa cultura não conhece
Cristo. Por isso, ela pensa na moralidade em termos de regras humanas,
necessárias, mas desagradáveis, como a inspeção de bagagem nos
aeroportos. Nossa cultura pensa que o bem necessário é o mal necessário!
As imagens que a nossa cultura tem da vida moral são imagens de sujeição:
marchar em fileira cerrada em um desfile, colorir dentro do contorno do
desenho ou até mesmo ficar atrás das barras de uma prisão.
Se nossa cultura conhecesse Cristo, saberia que a moralidade é mais
como lições de navegação para iniciantes, em pequenos veleiros Sunfish em
águas rasas. Mas essas águas rasas são as mesmas águas, o mesmo elemento
santo, sobre as quais estamos destinados a velejar para sempre em grandes e
altas embarcações, selvagens e livres, com o vento do Espírito Santo em
nossas velas e a mente de Deus no leme. Pois nosso destino é navegar pela
grande profundidade de Deus, e isso não é mais impossível porque o
próprio Deus se tornou homem e subiu a bordo do barco. Ser um
relativista moral quando o ele absoluto está ao seu lado no barco é tão
absurdo quanto ser tão cético em relação à verdade a ponto de perguntar
cinicamente: “O que é verdade?”, para a própria verdade, de pé diante de
você, e, depois, autorizar a morte dele.
4. O segredo do sucesso moral

Conhecemos o bem; não o praticamos. C. S. Lewis declara, com acerto,


que é simplesmente impossível pensar de forma clara sobre a vida sem
admitir esses dois fatos primordiais. (Veja o fim da parte I de Mero
Cristianismo.) Conhecemos o bem porque não podemos não conhecê-lo.
Deus continua a iluminar nossa consciência. Mas nós não praticamos o bem
porque não somos santos. O bem que deveríamos praticar, não praticamos,
e o mal que não deveríamos praticar, nós praticamos (Romanos 7:15).
Somos moralmente impotentes. Temos conhecimento moral, mas não
poder moral.
A chave de ouro da presença real de Cristo também destranca essa
porta. Cristo nos concede não só a mais profunda compreensão da
moralidade, mas também o poder para praticá-la. Ele faz as duas coisas ao
entregar a si mesmo para nós.
As primeiras palavras da seção sobre moralidade do Catecismo da
Igreja Católica explicam isso: “Cristão, reconheça sua dignidade e, agora,
que compartilha a própria natureza de Deus, não retorne à sua antiga
condição pelo ato de pecar. Lembre-se de quem é sua Cabeça e de cujo
corpo você é membro.” O segredo do sucesso moral é apenas praticar a
presença de Cristo, o que é “conheça a si mesmo”. Cristo não é apenas
nossa autoridade moral, mas é nossa identidade moral. Não somos apenas
membros da sua organização; somos membros do organismo dele, do seu
corpo. “Membros” quer dizer “órgãos”!
Observe a forma literal como S. Paulo usa a palavra (“membros”)
para falar aos cristãos coríntios o que, agora, a imoralidade sexual
representa para o cristão: “Tomarei eu os membros de Cristo e os unirei a
uma prostituta [ou seja, farei dele uma também]?” (1 Coríntios 6:15)
Da mesma forma que o que fazemos a nossos irmãos fazemos a
Cristo, o que fazemos a nós mesmos fazemos a Cristo. Pois nós somos
membros dele da mesma forma que nossos irmãos também o são.
Pensar nos ensinamentos dele e tentar praticá-los é como pensar em
tirar “A” em uma prova difícil e tentar responder certo a todas as perguntas.
Mas praticar a presença dele é admitir que Ele está sentado bem ao seu lado
fazendo a prova com você. A presença dele é para o pecado o que a luz é
para a escuridão, o que o sol é para os vermes, e o que o crucifixo é para os
vampiros.
Não existe nada, nem mesmo remotamente, comparável a isso em
nenhuma moralidade secular. Cristãos e se-cularistas concordam que a
autoestima é uma causa do bom comportamento moral, uma vez que
agimos a partir da nossa identidade concebida; todavia, nenhum secularista
conhece o principal motivo para a autoestima: o extraordinário fato de que
pela Graça de Cristo não somos apenas dele, mas Ele. (Lembre-se de 2
Pedro 1:4.)
Moralistas e filósofos podem nos convencer de que é bom ser bom,
mas eles não podem nos tornar bons. Psicólogos podem afastar nossos
sentimentos de culpa, mas não podem afastar nossa culpa.
Não obstante, pecadores tornam-se santos. Isso acontece. Algumas
pessoas superam a impotência moral. Existem santos. E santos são sempre
feitos da mesma matéria-prima: pecadores. Não existe outra matéria-prima.
Observe S. Paulo, Sto. Agostinho, S. Francisco de Assis, Sto. Inácio de
Loyola: um perseguidor fanático, um playboy viciado em sexo, um janota
rico e um matador profissional, e todos eles se tornaram grandes santos.
Como isso pode acontecer? Qual é a causa eficaz disso? Pergunte a eles.
Todos eles darão a mesma resposta: a chave de ouro, Jesus Cristo.
*

Todos sabem que um santo é um grande amante de Deus e do


homem. E todos sabem que amar é a melhor coisa do mundo. Mas nem
todos sabem que tipo de amor é esse e em que lugar consegui-lo. A resposta
para as duas perguntas é Cristo.
Primeiro, o amor é definido por Cristo. Em 1 Coríntios 13, o
capítulo mais famoso da Bíblia, o capítulo sobre amor, é uma definição de
Cristo. Mas ele é uma realidade, não apenas uma potencialidade ou ideal.
Os Evangelhos são uma “exposição e narração” de Cristo: pois Cristo não
nos conta apenas o que é o amor, mas mostra o que é o amor. A Cruz é a
“definição-chave” de amor. É o que acontece quando o amor perfeito
encontra o mundo caído. Isso não foi um acidente.
Segundo, Cristo não é só o que o amor é, mas Cristo também é onde
você obtém o amor. Para encontrar crocodilos, você tem de ir aonde eles
estão. Para se molhar você tem de ir aonde a água está. Para conseguir se
queimar, você precisa ir aonde a luz do sol está. Para conseguir se inflamar
com o amor do Filho, você tem de ir aonde está a luz Dele. Isso é tudo. Aos
que estão cansados e sedentos de amor, ele diz: “Venham a mim todos os
que estão cansados e sobrecarregados, e eu lhes darei descanso” (Mateus
11:28). Esta é a fórmula mais simples e perfeita para se tornar santo: vá a
Cristo.
A única coisa que sempre pode salvar nosso mundo do desastre, de
todas as consequências do pecado, são os santos. E Jesus é o criador de
santos. Ele não foi chamado “Jesus” (“Salvador”) porque podia nos salvar
da punição devida para nossos pecados. A ordem do anjo foi: “Você deverá
dar-lhe o nome de Jesus, porque ele salvará o seu povo dos seus pecados”
(Mateus 1:21).
Deus não descansará enquanto você não for santo. Ele ordena:
“Sejam perfeitos como perfeito é o Pai celestial de vocês” (Mateus 5:48).
Mas nós não somos santos. Por quê?
É muito fácil encontrar a resposta. Olhe no espelho do seu coração.
Seja totalmente honesto com você mesmo. Você não acredita que (para
citar William Law) o único motivo pelo qual não é santo neste exato
momento é porque você não deseja isso inteiramente?
— Oh, mas eu quero ser santo — responde você, com bastante
honestidade.
Sim, você quer, mas não por inteiro, de corpo e alma.
O que pode tornar nossa vontade completa? Qual é o segredo dos
santos? Temos os mesmos ideais, os mesmos princípios, as mesmas crenças,
as mesmas aspirações que eles. Por que os santos os vivem tão melhor que
nós? Qual é o segredo do sucesso deles?
Paradoxalmente, não fazemos o bem suficiente porque fazemos o
bem em excesso. Isso quer dizer duas coisas: primeiro, nós somos Martas,
estamos preocupados com muitas coisas, em vez de sermos Marias,
simplesmente amando só Jesus. Segundo, tentamos ser santos por nós
mesmos, procurando Deus para pedir “ajuda”, em vez de seguirmos o
primeiro passo, de qualquer programa de ajuda de 12 passos, que
determina que não conseguimos sozinhos. Jesus tem de fazer isso. Nossos
recursos são parcos; os dele, ilimitados.
O santo é um soldado que pôs fogo em todas as pontes que existiam
atrás dele e que não vê “mais ninguém [à sua frente] a não ser Jesus”.
Essa atitude não indica mais passividade do que indica atividade
semelhante à de Marta. Entregar-se a Deus é a coisa menos passiva que,
possivelmente, você pode fazer. São Paulo, aquele dínamo de atividade, foi
quem disse: “Já não sou eu quem vive, mas Cristo vive em mim” (Gálatas
2:20). João Batista, outro dínamo, disse: “É necessário que Ele cresça e que
eu diminua” (João 3:30).
5. Jesus e o sexo

Hoje, quando ouvimos a palavra “moralidade” pensamos


automaticamente em moralidade sexual. Isso se deve ao fato de que
sabemos que o sexo é de longe o maior campo de batalha moral do mundo.
Todos falam da “revolução sexual”; ninguém fala de uma revolução moral
correspondente em alguma outra área. Na verdade, o resto da lei moral
ainda está bem no lugar na mente e no coração das pessoas. Nenhum
presidente dos Estados Unidos teria sobrevivido a revelações de que é
sádico, ladrão, homicida ou até mesmo mentiroso deliberado a respeito de
nenhuma outra coisa que não o sexo.
O relativismo moral é a nova ortodoxia entre nossos formadores de
opinião da mídia e da área de educação. E quase todas as justificativas para
o novo relativismo moral são sexuais. Ninguém quer uma moralidade do
tipo “vale tudo”, “diferentes ritmos para diferentes povos”, “viva e deixe
viver” ou “não julgue” no que se refere à ecologia, à economia, à penologia,
ao terrorismo ou, até mesmo, ao tabagismo. Só para o sexo.
Não justificamos matar inocentes indefesos, a não ser em nome do
sexo. Se as cegonhas trouxessem os bebês, não haveria aborto. O aborto é a
cópia de segurança do controle da natalidade; e o controle da natalidade, a
exigência do sexo sem bebês. A força motriz do holocausto abortivo é
sexual.
Não justificamos outra prática cujos resultados evidentes são (1) trair
seu amigo mais íntimo e a mais solene promessa que fez a ele; (2)
prejudicar a felicidade de seus filhos de forma profunda pelo resto da vida
deles; e (3) destruir o mais fundamental pilar da sociedade humana.
Todavia, justificamos o divórcio, embora ele acarrete esses três resultados,
pois o divórcio acontece em nome do sexo. Não podemos roubar o
dinheiro de outro homem sem ir para a cadeia, mas podemos roubar a
esposa de outro homem. Não podemos trair nosso advogado sem sermos
castigados, mas podemos trair nossa esposa, e ela é castigada. Não podemos
destruir o ovo fecundado da águia-careca nem matar a baleia azul sem
infringir a lei, mas podemos matar nossos filhos não nascidos sem infringir
a lei.
Evidentemente, esta sociedade não tem em estoque muita sabedoria
filosófica nem consistência lógica. Todavia, há pouca esperança de repor
essas mercadorias apenas com argumentos, por mais irrefutáveis que sejam.
Tente convencer um maconheiro de que ele precisa arrumar seu cérebro. O
cérebro dele já está bagunçado; portanto, a mensagem não encontra solo
fértil. O viciado em sexo não pensa com mais clareza que o viciado em
drogas.
Contudo, apesar do ato de pensar não ser suficiente, é algo
necessário. Pensar “desconfunde” as coisas. Temos de encontrar a essência
da nossa confusão e, depois, achar a chave de ouro para sair da confusão.
A essência da confusão é que confundimos sexo com amor. E Cristo
é a saída para essa confusão. Agora, veja como isso funciona.
Eis a confusão: os Beatles cantavam: “All you need is love” [“Tudo de
que você precisa é amor”]. Mas não é verdade. Alguém escreveu uma
história romântica com o título “Love Is Enough” [“O Amor é Suficiente”].
Mas isso não é verdade. Não o tipo de amor a que eles se referem. Por sua
vez, é verdade que “tudo de que você precisa é amor”, e que “o amor é
suficiente”, pois “Deus é amor”, e Deus é suficiente.
E eis a limpeza da confusão, a aparente contradição: que tipo de
amor Deus é? A resposta é Cristo. Você quer saber o que, em última
instância, é o amor? Olhe para lá. Olhe para Cristo. Lá está o amor. A
definição não é abstrata, mas tão concreta quanto um crucifixo.
Ninguém da civilização ocidental pode ignorar a sabedoria que
recebemos de Cristo, nem que a coisa mais valiosa que existe é o amor. O
que talvez ignoremos é o quão distinto esse amor é de todos os amores
humanos naturais; o quão desafiador é esse amor; o quão radical é a
transformação que esse amor exige. Cristo explica isso com uma analogia,
Ele chamou essa transformação de “nascer de novo”, usando como imagem
a mudança mais radical que vivenciamos em nossa vida natural.
Confundimos o amor do qual Ele falava (ágape) com amor sexual (eros),
com compaixão e bondade subjetivas ou com filantropia, as obras objetivas
que esses sentimentos nos motivam a praticar. A confusão com amor sexual
não é defensável de forma racional e, portanto, ela é inconsciente; a
confusão com sentimentos interiores de compaixão ou com obras exteriores
de filantropia parecem defensáveis e, portanto, essa confusão, em geral, é
consciente. Todavia, 1 Coríntios 13 refuta de forma explícita as duas coisas.
O amor de Cristo, ao contrário de todas as outras formas de amor,
não é fácil, natural nem emocional; ele é difícil, sobrenatural e um ato de
vontade, algumas vezes contra a forma como gostaria que esse sentimento
fosse expresso. O trabalho da Madre Teresa de recolher das ruas de Calcutá
pessoas desamparadas morrendo por contaminação de mosquitos baseava-
se em algum sentimento meigo e doce que ela sentia por elas? Ela era
necrófila? Jesus tinha o mesmo sentimento em relação a Judas que tinha por
João? Quando os sentimentos dele mudaram, o amor dele mudou?
Em geral, não ignoramos a ordem de Cristo para que amemos, mas,
em geral, ignoramos como esse amor é distinto de todo amor meramente
humano. O pensamento revela as diferenças. Nós não pensamos a respeito
do que Ele disse: “Com isso todos saberão que vocês são meus discípulos,
se vocês se amarem uns aos outros” (João 13:35). Se esse amor fosse o amor
natural, genérico e universal já existente no homem, essas palavras seriam
uma contradição. Elas diriam: “O mundo verá a diferença entre vocês e eles
pelo fato de que todos compartilham o mesmo tipo de amor.” Claro que
elas querem dizer exatamente o oposto disso.
Bem, que diferença Cristo e seu amor (ágape) fazem para o sexo
(eros)? Que luz a Luz do mundo derrama sobre o deus do mundo, o sexo, e
sobre nossa revolução sexual?
O sexo é o deus do mundo, da nossa cultura. É nossa exigência mais
não negociável. O ensinamento da Igreja fiel de Cristo a respeito do sexo é
o principal motivo pelo qual o mundo odeia e teme a Igreja, pois ela tem
uma atitude “julgadora” em relação ao vício e à real religião da nossa
sociedade.
Cristo modifica radicalmente a revolução sexual. Como ele faz isso?
Não ao contrapor religião e sexo, mas ao contrapor a verdadeira e a falsa
religião.
Do ponto de vista de Freud, a religião é um substituto do sexo; da
perspectiva de Cristo, o sexo é um substituto da religião. E um substituto
bastante bom. De todas as coisas que Deus criou, o sexo é a melhor e um
ícone natural do amor sobrenatural e de nosso destino sobrenatural. Apenas
coisas muito boas podem ser cultuadas. Você não pode fazer uma religião a
partir do encanamento ou do seguro.
Examinemos quão próximo da religião o amor está. O cerne da
religião, o fim supremo da religião, o “Santo dos Santos” da religião é o
casamento espiritual com Deus. De acordo com a Bíblia, no fim do livro
do Apocalipse, o último evento da história humana é o casamento do
Cordeiro com sua noiva, sua Igreja. E o cerne do sexo e sua grande emoção
é a intimidade da relação sexual, a superação quase mística da separação e
do egotismo; a identificação, em corpo e em mente, um com o outro; o
fato de que o ente amado o admite em seu “Santo dos Santos”. Isso é ícone,
imagem, vulto, profecia, aperitivo e antecipação naturais do êxtase infinito
e inimaginável do Céu para o qual fomos todos feitos. Somos preparados
para nos tornar um com Deus; por isso, vibramos tanto por nos tornar um
com nosso parceiro e vice-versa. Por isso, o autoesquecimento, o
transcender o egoísmo e o perder o controle no orgasmo sexual são tão
misteriosamente satisfatórios. Não é apenas a mera sensação física; é o
sentido místico. Os animais superiores sentem a mesma sensação física
(observe os cachorros!), mas eles não escrevem poemas de amor místicos e
românticos a respeito disso, e eles não escreveriam mesmo que pudessem
escrever.
O sexo animal é apenas uma remota imagem do romance humano, e
o romance humano é uma remota imagem do êxtase celestial. A intimidade
terrena com o ente amado é uma faísca mínima, distante da fogueira que é
a intimidade celestial com Deus. O sexo é uma imagem desbotada da visão
beatífica.
A Era da Fé investiu sua fé, sua esperança e seu amor no êxtase
celestial. Nossa era da apostasia perdeu isso, assim, tornou-se bastante
natural ligar o sexo humano à imagem do êxtase celestial. A revolução
sexual não aconteceria sem duas causas ou condições: (1) declínio da paixão
religiosa; e (2) a pílula capacitou-nos a separar o sexo da procriação e da
responsabilidade que dura a vida toda.
A religião não é um pálido substituto do sexo, mas o sexo é um
pálido substituto da verdadeira religião; porque, como Tomás de Aquino
diz: “Nenhum homem pode viver sem alegria; por isso, um homem
privado da alegria espiritual volta-se para os prazeres carnais” (ST II-II, 35,
4 e 2). A origem da revolução sexual é religiosa. Por essa razão, as exigências
dela são tão inegociáveis.
Contudo, quando você tem a coisa verdadeira, fica livre do vício da
imagem dela. Quando você tem um relacionamento de amor (ágape) com
Deus, liberta-se do relacionamento de amor (eros) com as criaturas. E
apenas aí, apenas quando não precisamos tão desesperadamente das
criaturas, podemos usufruir e apreciar as criaturas livremente. O alcoó-latra
não está livre para apreciar o álcool, o viciado em sexo não está livre para
apreciar o sexo.
O que Cristo tem a ver com isso? Tudo. Pois apenas Cristo nos
fornece intimidade com Deus. Portanto, só Cristo é a resposta para a
revolução sexual.
Para muitas pessoas, essa conexão parecerá bizarra. A pergunta: “O
que Cristo tem a ver com sexo?”, parecerá suspeita, semelhante à que um
dos demônios fez a Cristo quando ele estava para expulsá-los de um
homem endemoninhado: “O que queres conosco, Jesus de Nazaré?”
(Marcos 1:24; Lucas 4:34). Como ousamos juntar essas duas coisas? Nós
devemos juntar, pois elas são as duas coisas mais veementes de nossa vida.
Repassemos isso de forma mais meticulosa. Observe o sentido mais
profundo da revolução sexual. Vivemos em uma época revolucionária.
Aconteceram mais mudanças, e as mais profundas, na história humana na
última metade do milênio que na primeira metade, e ainda mais no último
século que em qualquer outro. E a revolução sexual, com certeza, é a
revolução mais radical da nossa época. Pois “radical” quer dizer “sobre
raízes (radix), e o sexo é a raiz da própria vida humana.
O fruto mais radical da revolução sexual não é a ação, mas o
pensamento. Não é o que os inimigos dela, à direita, em geral, dizem que é,
a saber, cada vez mais imoralidade ou promiscuidade sexual, embora as
consequências disso sejam desastrosas para a família e, portanto, para toda a
sociedade, em especial para as mulheres. Nem o que os simpatizantes dela,
à esquerda, em geral, dizem que é, a saber, cada vez mais conhecimento e
poder por meio da “educação sexual” e da experimentação e experiência
sexual. Mas exatamente o contrário disso; o fruto mais radical da revolução
sexual é a ignorância: a ignorância da verdade mais básica de todas em
relação ao sexo, à relevância básica do sexo, ou seja, de qual é o sentido, ou
significado, mais básico do sexo, ou seja, “a que se refere o sexo”. O sexo se
refere a gerar bebês. O sexo é a origem de uma nova vida humana. Por isso,
ele é tão extasiante! O sexo se destina à procriação, o mais próximo que
podemos chegar do êxtase divino da Criação. E é isso que a revolução
sexual esquece, nega, oculta ou proíbe.
A mudança mais radical acarretada pela revolução sexual não foi no
comportamento. Já ocorreu todo tipo de explosão violenta de
comportamento sexual antes na história, notavelmente na agonizante
Roma. A verdadeira revolução foi no pensamento. No início do
Dhammapada, Buda diz: “Tudo que fazemos é a partir dos nossos
pensamentos.” O que o Papa Paulo VI, profeticamente, chamou de
“mentalidade contraceptiva” foi a mudança mais radical que qualquer outra
prevista, com exceção da de Aldous Huxley em Admirável mundo novo. A
contracepção separa o sexo dos bebês. Isso é como separar o alimento da
nutrição, os olhos da função de ver, os congeladores do gelo, as igrejas dos
santos. (Nós também fazemos isso; quantos de nós não vemos a Igreja,
primeiro de tudo, como uma máquina de fazer santos? Mas era assim que
S. Paulo a via. Lembre-se disso, e todas as epístolas se tornarão claras.)
Os simpatizantes e os inimigos da revolução sexual, em geral, dizem
que ela consistiu na remoção da censura e da restrição no comportamento
sexual. Os simpatizantes dizem que isso foi bom; e os inimigos, que não.
Todavia, ambos estão errados. Muito mais radical foi a imposição de uma
nova censura, a censura da essência do sexo, do sentido do sexo. Eles
ficaram tão obcecados com o fato de que as pessoas devem fazer sexo que se
esqueceram de que o sexo faz as pessoas. Eles ficaram tão absortos na
psicologia que se esqueceram da biologia.
Devemos expor as mentiras da revolução sexual. O divórcio e o
aborto são duas delas. A revolução justifica o divórcio com um apelo à
“compaixão”, mas, na verdade, o divórcio é uma tremenda falta de
compaixão para com suas vítimas inocentes, as crianças. Nesse aspecto, é
igual ao aborto. Na verdade, o divórcio é um aborto: da nova pessoa, de
“uma carne” criada pelo casamento. E esta é a segunda mentira: o aborto, o
principal sacramento da revolução sexual e seu fruto mais assombroso.
Uma vez que a revolução sexual se fundamenta em uma mentira, ela
só pode ser derrotada ao contarmos a verdade, toda a verdade e nada mais
que a verdade a respeito do sexo. Isso quer dizer não apenas o “não” da
revolução, mas um “sim”: substituir a fantasia pela realidade, expondo toda
a verdade, o panorama geral. (Foi isso que João Paulo II fez em sua
“teologia do corpo”.)
O “panorama geral” inclui duas das verdades mais básicas da teologia
cristã, a Criação e a Encarnação. Cristo, como judeu, acreditava na
primeira, e ele era a segunda.
A Criação quer dizer que o amor de Deus deu existência a todo o
universo material, incluindo o corpo humano e sua sexualidade. O
cristianismo é a religião mais materialista da história. A matéria é muito
boa. Deus ama a matéria. Observe quanta matéria Ele criou!
A Encarnação quer dizer que Deus não só criou a matéria, mas se
tornou matéria! Deus tornou-se um ser material! E Ele ainda é. Ele não
deixou seu corpo humano para trás quando ascendeu ao Céu. A ascensão
não representou o desfazer da Encarnação. Cristo levou sua natureza, seu
corpo e sua alma humanos com ele para o Céu, onde os tem para sempre.
A doutrina da Criação indica que toda matéria é santa porque Deus a
criou, mas a doutrina da Encarnação indica que o corpo humano é a
matéria mais santa, pois Deus a tomou sobre seu ser, casou-se com ela em
uma união indissolúvel. (O que Deus uniu, nenhum homem pode separar.)
Cristo encarnou-se para nos salvar, e a redenção foi física. Ela não
aconteceu apenas por meio de ensinamento e de dar bom exemplo. A
redenção aconteceu com Cristo entregando-nos fisicamente seu sangue na
Cruz, não estando apenas mentalmente disposto a fazer isso. Tertuliano
disse: “A carne é o eixo da salvação.” “Nenhum outro sangue fará isso.”
Criação (de matéria), Encarnação (em matéria humana), ascensão
(do corpo humano material dele) e Eucaristia, “novos céus e nova terra” —
Deus aprecia a matéria como um artista. Apenas uma religião como essa
produziria uma “teologia do corpo” como a de João Paulo. Essa teologia
será a marca registrada dele para sempre, da mesma forma que “coração
desassossegado” é a de Sto. Agostinho, como a pobreza santa é a de S.
Francisco de Assis e como o casamento de fé e razão é a de S. Tomás de
Aquino.
A teologia do corpo é totalmente cristocêntrica. Cristo não ensina a
teologia do corpo; Cristo é a teologia do corpo.
O cerne da teologia do corpo é a visão do sexo como um ícone da
Trindade e do nosso destino celestial final e místico de nos casar com Deus.
Deus não é apenas um indivíduo; Ele é uma família, uma Trindade, uma
família formada de Pai, Filho e Espírito. Por isso, a família é semelhante a
Deus, porque Deus é uma família.
Deus é uma Trindade porque Ele é amor, o amor completo e,
portanto, amante, amado e amoroso. Ele não é apenas um amante, mas
“Deus é amor” (1 João 4:8). E, por isso, o amor humano, em especial, o
amor humano sexual, é semelhante a Deus: porque Deus é amor.
Isso é cristocêntrico porque só Cristo revela a Trindade. (Só os
cristãos creem nisso.) Cristo é nosso dado fundamental para a doutrina da
Trindade. Cristo é o motivo pelo qual sabemos que Deus não é apenas uma
única pessoa, mas Pai, Filho e Espírito: Cristo chama a seu Pai de Deus e a
si mesmo de Deus, e chama o Espírito que enviariam de Deus; contudo,
Ele, como judeu, sabia que existia apenas um Deus. Portanto, Deus é Pai,
Filho e Espírito Santo.
E a Trindade é o sentido supremo do sexo. Pois fomos feitos à
imagem de Deus, e isso quer dizer sexo. Na exata primeira vez que a Bíblia
usa a expressão “à imagem de Deus” (Gênesis 1:27), ela a identifica como
“homem e mulher”.
Quão importante é a teologia do corpo? Isso depende de quão
importante é a revolução sexual. A importância de São Jorge depende da
importância do dragão. A importância do Dr. Van Helsing depende da
importância de Drácula.
E quão importante é a revolução sexual? Isso depende de quão
importante é a família — exatamente pela mesma razão.
E quão importante é a família? Ela é apenas o fundamento de toda a
sociedade humana; na verdade, de toda a existência humana.
As quatro sociedades mais estáveis, bem-sucedidas, pacíficas em seu
interior e duradouras da história foram a judaica (mosaica), a confuciana, a
islâmica e a romana. Elas duraram cerca de 35, 21, 14 e 7 séculos,
respectivamente, por um motivo dominante: todas elas respeitavam
muitíssimo a família.
Acho que a família é mais importante para Deus até mesmo que a
ortodoxia doutrinal, pois a família diz respeito à própria imagem de Deus
no homem. O islamismo e o mormonismo são heresias teológicas, mas
Deus os está abençoando, e, hoje, eles estão se expandindo mais depressa
que o cristianismo, porque os muçulmanos e os mórmons são muito mais
fiéis à família, ao casamento, à moralidade sexual e à procriação que os
cristãos. Eles resistem à revolução sexual. Nós sucumbimos a ela.
Isso é ultrajante, pois a resposta definitiva para a revolução sexual não
é Maomé nem Joseph Smith, mas Jesus, que não só revela, como também
encarna, o mistério da santidade do sexo, do casamento e da família como
sinais sagrados de nosso destino supremo: o casamento espiritual com
Deus. Jesus não nos conta apenas sobre o panorama geral, Ele é o
panorama geral. Ele não nos ensina apenas a Palavra de Deus a respeito de
sexo; Ele é a Palavra de Deus a respeito de sexo. Ele não revela apenas o
casamento espiritual; Ele é o casamento espiritual. Em Cristo, temos mais
que o panorama geral, temos a Pessoa toda.
6. Jesus e a ética social: solidariedade

O problema fundamental da sociedade é o aglutinante. O que aglutina


naturalmente indivíduos egoístas? Somos naturalmente egoístas. Essa é a
formulação, verificável de forma empírica, da doutrina do pecado original.
O egoísmo divide, a comunidade une. O que funde o egoísmo na
comunidade? Sua força? Ou sua justiça social?
Nada disso. É a solidariedade. A solidariedade (sobornost, em russo,
solidarinosc, em polonês), como aglutinador humano, sempre foi mais
poderosa que a justiça, pois a justiça é abstrata e racional; enquanto a
solidariedade, concreta e mística.
Mas qual é o fundamento da solidariedade? Não é apenas nossa
origem comum em Adão, mas nosso fim comum em Cristo.
Os secularistas dizem que nossa origem comum é o macaco, e que
nosso fim comum é a morte. Um fundamento não muito bom para a
solidariedade!
O mundo, com acerto, louva (quando é sadio) e pratica (quando é
moral) o respeito por toda vida humana, incluindo a menor, a mais fraca, a
mais necessitada, a mais vulnerável, a mais “inútil”. Mas, por quê? Baseado
em quê? Intuição e sentimento? Eles são tão inconstantes, imprevisíveis e
incontroláveis quanto o vento ou os ventos da moda, quando manipulados
pela mídia. A Igreja de Cristo fornece a verdadeira resposta: o verdadeiro
fundamento para a solidariedade humana é Cristo. É em Cristo que todos
os homens são irmãos. Tudo que fazemos a uma moradora de rua, a um
bebê, nascido ou não nascido, a um paciente terminal de câncer ou a um
inimigo político ou militar, fazemos a Cristo.
Pois Cristo, na Encarnação, não se tornou apenas um homem, mas o
Homem, a Humanidade. E não a “humanidade” como uma ideia abstrata,
mas como uma família concreta. Estas palavras não são uma ficção jurídica:
“O que vocês deixaram de fazer a alguns destes mais pequeninos, também a
mim deixaram de fazê-lo” (Mateus 25:45). Elas são uma verdade literal. No
casamento físico, o casal “se torna [...] uma só carne”, um só corpo, uma
nova pessoa; e se você entender isso, não mais competirá, nem rebaixará,
nem ferirá seu cônjuge, pois ele é você mesmo, seu próprio corpo (Efésios
5:28). Todavia, nós, em Cristo, somos casados com todos os homens, pois
somos membros (órgãos, mãos) do corpo dele. Se entendermos isso,
entendemos a solidariedade. A solidariedade, à parte de Cristo, é apenas
um belo ideal. Em Cristo, ela é um belo fato.
Esse belo ideal, à parte de Cristo, tem de ser realizado pelo esforço
humano. Mas o esforço humano está comprometido com o pecado. Por
isso, muitos dos regimes políticos que demonstram solidariedade humana
apaixonada e de autossacrifício, da Alemanha da década de 1930 ao Al
Qaeda, também são regimes que demonstram pecaminosidade e ódio
apaixonados.
A solidariedade é a resposta fundamental para o problema social e
político fundamental. O problema é como conseguir que indivíduos
egoístas cooperem sem perder sua individualidade. Este é o problema da
polis, da civitas, da comunidade: qual é a unidade comum da “com-
unidade”? Como podemos viver em paz, em vez de em guerra?
A guerra é a ideia mais estúpida da história: “Temos problemas.
Vamos resolvê-los matando uns aos outros.” Todavia, há muitos exemplos
dessa brilhante ideia na história, e a paz é a exceção. Pois, na topografia do
nosso mundo, para acontecer a paz, ela precisa primeiro acontecer na
topografia da nossa mente, pois nossos pensamentos governam nossos atos.
Nossa percepção tem de ser mudada da guerra para a paz, de “nós versus
eles” para “nós inclui eles”. Como “eles” podem se tornar “nós”? Como
podemos identificar o bem particular com o bem comum? Como podemos
superar esse “estado da natureza (caída)”, que Hobbes descreve de forma
memorável como o estado de guerra de cada um contra todos, e de todos
contra cada um, um estado de vida que é “solitário, pobre, sórdido, bestial
e curto”? Não apenas com os contratos sociais e tecnológicos. A Alemanha
de Hitler, a Rússia de Stalin e a China de Mao tinham os dois, e a vida
continuou solitária, pobre, sórdida, bestial e curta.
Mais uma vez, Cristo não ensina apenas a resposta, Ele é a resposta.
Ele não nos direciona para a nossa paz, Ele é nossa única forma de paz.
7. Jesus e a política: Ele é de esquerda ou de
direita?
Hoje, vemos todas as questões políticas pelo prisma direita versus
esquerda, o “nós versus eles” político. As categorias são abrangentes e dizem
respeito à economia de pensamento, a resposta automática que nos permite
evitar ponderar sobre o mérito de cada questão. Contudo, as categorias, e a
polarização que elas criam, são ainda mais indefensáveis quando aplicadas a
Cristo, pois isso representa o mundo caído julgar a Cristo, em vez de vice-
versa.
A polarização também é prejudicial à moralidade porque nos permite
ser seletivamente morais, seletivamente idealistas — o que quer dizer
seletivamente imorais e pragmáticos. Se pegarmos o caminho mais fácil do
aborto, da eutanásia e da sexualidade, podemos pegar o caminho mais
difícil da guerra, da pobreza e da poluição; ou vice-versa. Mesmo quando
focamos uma questão específica, como se toda vida humana é
intrinsecamente valiosa ou não, essas categorias permitem-nos chegar à
esquizofrenia moral de dizer sim quando tratamos do aborto e dizer não a
essa mesma questão quando tratamos de guerra e de pena capital — ou
vice-versa. Isso não quer dizer que nós simplesmente respondemos da
forma errada (não tenho certeza de qual é a resposta certa específica a
respeito de uma guerra específica ou a pena capital para um caso
específico), mas aponta para o fato de que temos princípios
autocontraditórios.
Apenas do ponto de vista daquele que é reto podemos julgar o
distorcido. Cristo é o reto, a linha de prumo — quando Ele é conhecido de
forma explícita, por meio da revelação divina, e quando Ele é conhecido de
forma implícita, por meio da consciência e da lei natural. Ele faz todas as
questões voltarem à ordem natural de Deus para julgar as desordens não
naturais do homem. Por essa razão, Ele também faz isso com a política.
Ele também une os interesses apropriados da direita e da esquerda,
pois Ele é o caminho reto (“Eu sou o caminho”) do qual a direita e a
esquerda partem. Ele fornece motivos mais sólidos para os interesses
legítimos da direita e da esquerda do que elas podem fornecer.
Por exemplo, por que alimentar o pobre? Porque o pobre é Cristo
disfarçado. E não só por ser correto do ponto de vista político ou por
sentimento individual.
Por que amar o pecador, como faz a esquerda, e por que odiar o
pecado, como faz a direita? Por que amar o viciado em drogas, a violência,
o dinheiro ou o sexo? E por que odiar o vício deles? Pela mesma razão.
Porque Cristo ama. Por isso, devemos ser mais compassivos com os
pecadores do que os liberais o são, e mais incompassíveis com os pecados
do que os conservadores o são. Pela mesma razão: Cristo.
Por que insistir na ortodoxia doutrinal? Não só pela correção, mas
também por lealdade a Cristo. Por que falar de pecado e salvação, duas
palavras que escandalizam os secularistas? Não apenas para refutar o
secularismo, mas por causa de Cristo. Cristo não fala apenas de pecado e de
salvação, Cristo é a salvação.
Por que pregar e praticar o “evangelho social”? Não para ser
politicamente correto nem para refutar os fundamentalistas, mas porque
Cristo o pregou e o praticou.
Por que ser universalista, inclusivo e ecumênico? Não para escarnecer
da xenofobia, do isolacionismo e do provincianismo, mas porque Cristo
foi, e é, universalista. Cristo não é uma divindade tribal.
Por que insistir no “escândalo da particularidade” e nas afirmações
concretas, visíveis, particulares e exclusivas de Cristo de ser o único
Salvador? Não para confundir os liberais, mas porque Cristo é particular,
concreto, visível, exclusivo e literal.
Por que ser progressista, radical, criativo e ser apaixonado pelo novo?
Por que se abrir para o vento como o veleiro? Porque Cristo é e faz isso.
Por que ser fiel e ficar preso, como âncora, na lama tradicionalista?
Porque Cristo “é o mesmo, ontem, hoje e para sempre”.
Por que ser um “liberal de coração mole”? Porque Cristo o é. Por que
ser um “conservador cabeça-dura”? Porque Cristo é.
Muitos substituíram o liberalismo, o conservadorismo ou algum
outro “ismo” por Cristo e cooptam Cristo para a causa deles. Cristo não
pode ser cooptado por nenhuma causa; todas as causas têm de ser
cooptadas por Ele. Todos os “ismos” são abstrações. Até mesmo o “ismo”
perfeito, se houver algum, não pode nos salvar nem nos amar.
O perigo especial da direita religiosa é adorar as doutrinas de Cristo
em vez de adorar a Cristo, confundindo o sinal com a coisa representada. A
direita está absolutamente certa em insistir em ser correta e em insistir nos
absolutos. Mas o dedo aponta para a lua; devemos ter compaixão do tolo
que confunde o dedo com a lua.
O perigo específico da esquerda religiosa é adorar os valores de Cristo
em vez de adorar a Cristo. Isso é tão abstrato quanto a substituição de
Cristo pelas suas doutrinas feita pela direita. Os valores de Cristo também
são apenas o dedo que aponta para Ele.
A direita argumenta que a esquerda é vaga, mas até mesmo as
doutrinas reais e precisas da direita são vagas quando comparadas com
Cristo. Tudo é. A esquerda argumenta que a direita é inflexível, mas até
mesmo o coração terno e compassivo de um liberal é inflexível quando
comparado com Cristo. Tudo é inflexível.
Direita e esquerda não podem convencer e converter uma à outra
pela mesma razão que os fariseus e os saduceus não podiam convencer e
converter uns aos outros. Pois os fariseus não precisam abrandar um pouco
o coração, não precisam de uma pequena dose de mundanidade, de
psicologia pop, de relativismo e de subjetivismo. Eles precisam de Cristo. E
os saduceus não precisam endurecer um pouco o coração, não precisam de
um pouco de arrogância, um bocadinho de avareza, como a do personagem
de Charles Dickens, Scrooge, não precisam de Maquiavel, nem da
“sobrevivência do mais forte” darwiniana. Eles precisam de Cristo.
E nossa sociedade, dividida como está hoje entre direita e esquerda,
da mesma forma que a sociedade da época de Jesus estava dividida entre
saduceus e fariseus, só precisa de Cristo.
As sociedades terrenas não são eternas, as almas o são. Ainda assim,
Cristo é o Salvador das sociedades, como também das almas. Nossa
sociedade está morrendo porque transformou o nome santo de seu
Salvador em uma imprecação. A Cristofobia está matando nossa sociedade.
Nossos secularistas estão nos fazendo esquecer Cristo mais depressa do que
os fazemos se lembrar dele, por isso nossa sociedade está morrendo. Seu
estoque de sangue está secando. O sangue precioso está evaporando. A cada
dia, perdemos mais sangue.
A resposta a isso é escandalosamente simples: a menos que Cristo, o
cristianismo, a Bíblia, a Igreja, os apóstolos de Cristo e todos os santos
sejam mentirosos. A resposta é que existe apenas uma esperança para as
sociedades e para as almas: “Ele lhe trará uma mensagem por meio da qual
serão salvos você e todos os da sua casa” (Atos 11:14).
Isso é simples e infantil demais para você? Você é muito “avançado” e
“adulto” para isso? Lembre-se do que significa uma cárie dentária em estado
avançado. Lembre-se do que nossa sociedade entende por “adulto”.
Lembre-se do que quer dizer filme “adulto”. E, depois, o compare com A
Paixão de Cristo. Então, “escolham hoje a quem irão servir” (Josué 24:15).
Faça apenas isso.
Conclusão
Você não esperava que um livro sobre filosofia terminasse desta forma,
não é mesmo? Contudo, esta foi a maneira que o maior filósofo do mundo
terminou sua filosofia. As últimas palavras de Cristo, registradas na Bíblia
por intermédio de seu profeta João, no livro do Apocalipse, dizem a mesma
coisa. (Leia Apocalipse 22.) Pois essa é a coisa mais importante que alguém
já disse, é a escolha mais séria que fazemos, a escolha entre tudo e nada, ser
e não-ser, luz e trevas, Céu e Inferno, Cristo e anticristo — e se a filosofia
não tiver nada a dizer a respeito disso: então para o Inferno com ela.
DIREÇÃO GERAL
Antônio Araújo

DIREÇÃO EDITORIAL
Daniele Cajueiro

EDITOR RESPONSÁVEL
Hugo Langone

PRODUÇÃO EDITORIAL
Adriana Torres
Mônica Surrage

REVISÃO
Gustavo Nogy

PRODUÇÃO DO EBOOK
Ranna Studio

Você também pode gostar