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ENSAIO SOBRE A NOÇÃO FOUCAULTIANA DE LIBERDADE

DOI: 10.4025/revpercurso.v7i2.29462

Viviani Teodoro Santos


Especialista em Gestão Empresarial
vsantos@utfpr.edu.br

Marcio Pascoal Cassandre


Doutor em Administração e professor do Programa de Mestrado e Doutorado em Administração
da Universidade Estadual de Maringá
mcassandre@hotmail.com

RESUMO: A questão da liberdade, amplamente discutida por diversas áreas do saber, merece
ser, mesmo que de forma breve, discutida à luz do pensador francês Michel Foucault. A
liberdade, que nos tempos atuais, por vezes parece estar sendo entendida como um
desimpedimento para qualquer tipo de ato, ou ainda, um agir livremente como condição para a
vivência do prazer e do descompromisso, por meio de Foucault passa a tomar uma forma
aparentemente contraditória. Neste sentido, ele trata da liberdade como algo que vai além do
“processo de liberação”, como algo que traz consigo a exigência de determinadas práticas, as
chamadas “práticas de liberdade”, como condição de uma vivência ética. O presente ensaio
apresenta um recorte que fará menção a dois aspectos discutidos pelo filósofo: a temperança
sexual e o cuidado de si. Por fim, as considerações pertinentes à discussão permeiam o aspecto da
liberdade como um trabalho, como esforço individual, que vai além do coletivo, em busca de
equilíbrio e autodomínio como forma de manter e assegurar a própria liberdade.
Palavras-chave: Foucault; Liberdade; Ética; Temperança; Cuidado de si.

ESSAY ON NOTION OF FOUCAULTIAN FREEDOM

ABSTRACT: The issue of freedom, widely discussed in various areas of knowledge, worth,
even if briefly, be discussed in the light of French thinker Michel Foucault. The freedom, that in
modern times sometimes seems to be understood as a way to allow people to do any kind of act
or even an act freely as a condition for the experience of pleasure and disengagement through
Foucault starts to take a seemingly contradictory. In this sense, he deals with freedom as
something that goes beyond the "freedom process" as something that brings with it the
requirement of certain practices, the so-called "practice of freedom" as a condition of ethical
living. This essay presents a cut that will make mention of two issues discussed by the
philosopher: the sexual temperance and self-care. Finally, relevant considerations permeate the

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discussion of freedom as an aspect of work, as individual effort that goes beyond the collective,
in search of balance and self-dominance in order to maintain and secure their own freedom.
Key words: Foucault; Freedom; Ethics; Temperance; Self-care.

INTRODUÇÃO

Existem muitos meios de se pensar uma explicação para a palavra liberdade. De alguma
forma, quando se pensa em liberdade nos vem à mente um sentimento de posse de direitos e que
de certa forma também levaria à uma isenção no cumprimento de deveres. Pensando assim, se
cada indivíduo decidisse simultaneamente exercer sua liberdade plenamente, agindo e/ou
praticando todo e qualquer tipo de ação que considerasse conveniente, em algum momento estas
ações poderiam desencadear consequências não desejáveis, tanto em relação ao outro, uma vez
que vivemos num contexto social, tanto em relação ao próprio indivíduo.
Exercer de forma plena nossas vontades nos remete à uma ideia de inconsequência, já
que o acesso a qualquer ação nos seria concedido, e qual o motivo teríamos de ponderar suas
consequências e reflexos? Estar livre para decidir e agir sem pensar nas consequências poderia
levar o indivíduo a um estado diferente daquele pretendido. Portanto, pensar a liberdade como
isenção de cumprimento de deveres e como um passaporte para fazer o que se quer, pode não ser
a melhor opção. O exercício de reflexão e ponderação deve ser visto como condição de uma
vivência social possível e, na medida do possível, levar esta mesma sociedade a uma vivência
ética.

O domínio de si entre os gregos distingue-se pela liberdade, a qual toma forma


na moderação. Por isso, Foucault afirma que “a liberdade é a condição
ontológica da ética”, pois “no mundo greco-romano o cuidado de si foi a forma
na qual a liberdade individual – ou até um certo ponto a liberdade civil –
refletiu-se como ética (ORTEGA, 1999, p.77).

Estar completamente liberado para agir não isenta o indivíduo de assumir as


responsabilidades provenientes de suas ações. É ilusório pensar que para exercer a liberdade
basta optar por ela e seguir a vida naturalmente, como se esta opção não fosse trazer

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consequências positivas ou negativas. A vida é composta de inúmeras oportunidades que


necessitam de que o indivíduo não haja somente de maneira pré-reflexiva, pois sua vida está
interconectada com muitos outros elementos que precisam ser considerados neste processo.
Portanto, o indivíduo não pode simplesmente isentar-se de uma profunda reflexão e ponderação
de seus atos para viabilizar o convívio social.

E certamente, ainda que seja difícil traçar a linha divisória entre o normal e o
anormal (ou doentio) no comportamento dos seres humanos, é evidente que as
pessoas que costumamos considerar normais não agem sob uma coação
irresistível, embora seja indiscutível que sempre se encontram sob uma coação
interna relativa (de desejos, impulsos ou motivações inconscientes em geral).
Mas, normalmente, esta coação interna não é tão forte que anule a vontade do
agente e o impeça de uma opção e, portanto, de contrair uma responsabilidade
moral na medida em que mantém certo domínio e controle sobre seus atos
pessoais (VAZQUEZ, 2006, p. 117).

Liberdade apresenta-se como tema amplamente discutido pelos grandes nomes da


doutrina filosófica. Desse modo, o objetivo deste ensaio está em rever e refletir alguns aspectos
do pensamento de Michel Foucault sobre o tema. Conforme Comte-Sponville a liberdade é um
mistério, mas nem por isso deixaria de ser um objetivo, um ideal (COMTE-SPONVILLE, 2002).
O que desperta esta reflexão é a afirmação de Foucault quando interrogado sobre a
prática ética da liberdade: “Pois o que é a Ética senão a prática da liberdade, a prática refletida da
liberdade?” (FOUCAULT; MOTTA, 2006, p. 267). Aqui surge o interesse de entendimento sobre
o que representam estas tais “práticas de liberdade”. Nesse momento, Foucault entrega ao
indivíduo a oportunidade ou a obrigação de, como sujeito livre e autônomo, construir,
transformar, ser sujeito da própria trajetória. São atitudes que revelam a liberdade e ao mesmo
tempo dão condições para o indivíduo conservá-la, desenvolvendo um estilo de vida isento de
repressão ou escravidão.
Longe de ser abrangente e conclusivo, o presente trabalho tem a pretensão de levantar o
interesse pela temática, refletir aspectos específicos e lançar reflexões acerca do que o Filósofo
apresenta. Os aspectos destacados serão a temperança sexual e o cuidado de si como práticas de
liberdade.

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PROCESSO DE LIBERTAÇÃO VERSUS PRÁTICAS DE LIBERDADE

Quando interrogado em entrevista para a Revista Internacional de Filosofia, em 1984,


sobre se o trabalho de si sobre si mesmo consistiria em um processo de liberação, Foucault expõe
que, realmente, o processo de liberação faz parte de uma conquista da liberdade. No caso de um
povo oprimido, a liberação é o primeiro passo neste processo, mas esta liberação em si mesma
não dá condições para que este povo antes oprimido tenha agora uma existência plena
(FOUCAULT; MOTTA, 2006). Esta transformação, felicidade ou existência plena que se deseja
alcançar, Foucault afirma que só se conhecerá por meio das práticas de liberdade. No caso da
sexualidade, por exemplo, o processo de liberação é válido, uma vez que, simplesmente reprimir
os desejos por meio de punição não atinge resultados eficientes. Mas o processo de liberação
sexual não leva o indivíduo a uma vivência livre, pois o desregramento e os excessos podem
torná-lo novamente escravo, agora não mais de uma lei opressora, mas dos próprios desejos não
dominados.
A que se refere Foucault quando menciona o termo “práticas de liberdade”? Refere-se a
atitudes específicas como, por exemplo, a busca pela temperança no uso dos prazeres e também
no cuidado de si, tudo isso como forma de tornar mais sólida a liberdade, de tornar o homem
sujeito, de fazê-lo atingir um determinado modo de ser.

Somos livres para inventar estilos, resistir, ser soberanos e donos de nossos atos
e modos de pensar. Isso é possível pela constituição de uma subjetividade
ético/estética, cuja medida é estabelecida por si mesmo, numa espécie de luta
interna, uma agonística. Ela não serve para apagar desejos e prazeres, mas para
estabelecer para si mesmo, o que se quer, como se quer e o quanto se quer. Esse
domínio exercido sobre si, não vem do saber e nem do poder de outro, não é
ditado de fora, não é imposto. É guiado e sugerido por técnicas de si (desde a
meditação, o diário pessoal, a condução de si próprio por escolhas, invenção de
estilo de vida) que podem levar a uma transformação da pessoa, e que são atos
de liberdade, criatividade, enfim, uma boa e bela vida. (ARAÚJO apud
ARAÚJO, 2010, p. 137).

Neste ponto percebemos que o ser, enquanto sujeito da própria história, possui a
capacidade necessária para travar esse embate, criar métodos e encontrar meios de defender e
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manter sua escolha. Os métodos de autocontrole podem ser entendidos como esses meios
utilizados para a manutenção da própria liberdade. Diferente do entendimento de liberdade como
liberação, voltado para uma vivência sem imposições ou cumprimento de regras e normas, com
um corpo relaxado e “livre” para sentir e usufruir sem medida de toda e qualquer oportunidade de
prazer, a noção foucaultiana nos leva a exercícios mentais e corporais com intenção de, não
somente, controlar os impulsos e condicionar mente e corpo, mas construir a opção do sujeito
enquanto atitude rumo a um processo de liberdade.

A moderação exercida pelo homem livre não corresponde a uma lei, à qual o
indivíduo se submete, nem a um código que se tenta definir, mas à procura de
um estilo, de uma estilização do comportamento configurada segundo os
critérios de uma estética da existência, ou seja, das formas “por meio das quais o
homem se apresenta e se esboça, se esquece ou se desmente ante seu destino de
ser vivo e mortal (ORTEGA, 1999, p. 75).

Por esta perspectiva, o exercício da liberdade se mostra contrário daquele inicialmente


idealizado, longe de ser um estado de descomprometimento e inconsequência, a opção pela
liberdade carrega consigo a necessidade de um trabalho físico e mental contínuo no sentido de
garantir um benefício positivo individual e social. É como se este conceito apresentasse a
urgência de subir de nível, pensá-lo de maneira perene, pensar em liberdade não apenas como
algo a ser adquirido, mas também algo que deva ser mantido através de uma atitude consciente e
um esforço contínuo.

Um dos traços essenciais da ética da carne será tanto o vínculo de princípio entre
o movimento da concupiscência, sob suas mais insidiosas e secretas formas,
como a presença do Outro, com suas artimanhas e seu poder de ilusão. Na ética
dos aphrodisia, a necessidade e a dificuldade do combate se deve, ao contrário, a
que ele se desenrola como uma justa consigo mesmo: lutar contra “os desejos e
os prazeres” é se medir consigo. (FOUCAULT, 1984, p.84).

Assim, impor a si mesmo a obrigação de lutar, de estar num estado de constante reflexão
e opção por uma liberdade reflexiva e autônoma não é tarefa fácil, uma vez que o indivíduo é
composto por diversos desejos e aspirações que ele mesmo não consegue compreender ou julgar
de maneira natural em razão de inúmeras limitações.
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A TEMPERANÇA SEXUAL COMO EXERCÍCIO DA LIBERDADE

Na obra História da Sexualidade 2: O Uso dos Prazeres, quando trata da


problematização moral dos prazeres, Foucault lança uma reflexão acerca da liberdade no campo
da sexualidade. Uma reflexão que não se prende apenas às questões sexuais, mas que, segundo o
filósofo, também reflete em outras áreas da existência humana, inclusive na atividade política.
Mais uma vez a liberdade em Foucault não se refere exclusivamente à uma espécie de
liberação, neste caso a sexual. Longe de parecer uma moral opressora, uma vez que o próprio
filósofo condena este tipo de pensamento, o que ordena a reflexão é a escravidão que se
desencadeia no processo de extrapolação na busca pelo prazer. Um tornar-se escravo dos próprios
prazeres, refém das próprias mazelas, não estar consciente dos próprios atos e, portanto, privado
de gozar do governo de si. Diferente da abordagem cristã, a indicação não seria afasta-se, ter
repulsa aos prazeres para desta forma permanecer imaculado, mas ao experimentar estes prazeres
e saber exatamente seus limites, treinar o corpo e a alma, travar uma batalha pelo domínio de si,
não por medo da mácula, mas pela opção da não-escravidão e, por conseguinte, pela busca da
própria liberdade. Ter-se nas mãos, ser mestre de si mesmo.

Em outras palavras, para se constituir como sujeito virtuoso e temperante no uso


de seus prazeres, o indivíduo deve instaurar uma relação de si para consigo que
é do tipo “dominação-obediência”, “comando-submissão”, “domínio-
docilidade” (e não, como será o caso na espiritualidade cristã, uma relação do
tipo “elucidação-renúncia”, “decifração-purificação”) (FOUCAULT, 1984,
p.87).

As palavras utilizadas para iniciar a reflexão sobre temperança são sophrosune e


enkrateia, que num primeiro momento podem parecer sinônimas, fazendo menção à virtude da
temperança, ou um comando dos prazeres e dos desejos em si próprio. Mas, na análise
apresentada, a palavra sophrosune é a temperança por meio de uma espécie de ordem e de
império sobre certos prazeres e desejos, enquanto a temperança enkrateia é uma forma ativa de
domínio de si, uma luta pelo domínio e resistência aos prazeres sexuais. A diferença está no
exercício da temperança, na qual o temperante (sophrosune) escolhe sua conduta e se afasta das
ocasiões que representam ameaça. Já o continente (enkrateia) experimenta os prazeres, mas não
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se deixa levar por eles, trava uma luta e terá mais mérito quanto maiores forem os desejos
dominados. Neste sentido a enkrateia é uma forma de trabalho e de controle para que se alcance a
temperança (FOUCAULT, 1984).
Desse modo, o domínio de si torna-se uma virtude essencial no exercício da liberdade.
Um domínio de si não consiste em inércia ou isenção de desejos, e sim numa postura de combate
motivada pela não-escolha dos prejuízos que podem causar os excessos. Estes apetites precisam
ser combatidos, uma vez que podem estender sua dominação sobre todo o indivíduo, reduzindo-o
à escravidão. No entanto, faz-se necessário uma preparação específica, e como um soldado se
prepara para a batalha, o indivíduo precisa se preparar para evitar esta escravidão, e aqui o
adversário é ele mesmo, não está fora, mas em si. Num mesmo corpo acontece o duelo entre
forças que se opõem, e eis a dificuldade desta batalha: “Na ética dos aphrodisia, a necessidade e
a dificuldade do combate se deve, ao contrário, a que ele se desenrola como justa consigo
mesmo: lutar contra “os desejos e os prazeres” é se medir consigo (FOUCAULT, 1984, p. 84).
Neste contexto, Foucault passa a expor o dilema de quando se é mais forte ou mais fraco
que si mesmo. Uma vez travada esta luta de domínio de si, o indivíduo passa a combater as
próprias fraquezas por meio da reflexão e do exercício, e quando alcança a continência passa a
ser considerado mais forte que si mesmo, ao passo que se ele não travar esta luta, ou ao travá-la
não se apresentar suficientemente forte e determinado e fraquejar diante dos desejos e prazeres,
passa a ser considerado mais fraco que si mesmo, escravo de si e intemperante. Desta forma, o
filósofo atenta para o fato de que assim como nações podem estar em guerra umas contra as
outras, na vida privada “cada um, face a si próprio, é um inimigo de si mesmo” (FOUCAULT,
1984, p. 85).
Um aspecto a ser considerado é que, ao demonstrar domínio de si, não significa que o
indivíduo esteja purificado de todo desejo, mas que tenha conseguido dominar seus apetites.
Portanto, o domínio de si apresenta-se não como uma supressão dos desejos, mas em sua
dominação. Diferente da espiritualidade cristã, esta dominação se aproxima mais do tipo
“obediência”, comando e submissão, do que renúncia e purificação.
Contudo, não se pode interpretar essa necessidade de dominação e controle como uma
legitimação de um estado de opressão. É importante que nesta busca por equilíbrio o sujeito

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experimente e se descubra, tendo acesso à sua sexualidade para, desse modo, adotar práticas que
possibilitem um comportamento ético e verdadeiramente livre:

Se tomamos o exemplo da sexualidade, é verdade que foi necessário um certo


número de liberações em relação ao poder do macho, que foi preciso se liberar
de uma moral opressiva relativa, tanto à heterossexualidade, quanto à
homossexualidade, mas essa liberação não faz surgir o ser feliz e pleno de uma
sexualidade na qual o sujeito tivesse atingido uma relação completa e
satisfatória. A liberação abre um campo para novas relações de poder, que
devem ser controladas por práticas de liberdade (FOUCAULT, 2006, p. 267).

E, como atingir este estado continente? Segundo o autor, são necessários exercícios. Em
comparação ao atleta e ao soldado, o continente precisa exercitar –se (askesis) de diferentes
formas (exercícios, meditação, provas de pensamento, exame de consciência, controle das
representações). Foucault cita Diógenes, que achava que se devia exercitar simultaneamente
corpo e alma e que acreditava que o exercício tudo poderia vencer. É este domínio de si que dá
condições para a condução do outro. Aqui, nota-se o valor da temperança para aquele que
desejava conduzir um povo, pois há como governar o outro se não possui condições de governar-
se a si mesmo. Afinal, “o mestre de si e dos outros se forma ao mesmo tempo” (FOUCAULT,
1984, p. 85).
A finalidade de se obter a virtude da temperança em face de uma continência dos
próprios desejos é se alcançar e se manter em liberdade. Ao contrário do que se poderia pensar, a
temperança permite uma liberdade em relação aos desejos, e o domínio de si livra o indivíduo da
escravidão de si para consigo. “Ser livre em relação aos prazeres é não estar a seu serviço, é não
ser seu escravo. O perigo que os aphrodisia trazem consigo é muito mais a servidão do que a
mácula” (FOUCAULT, 1984, p. 98).
Sendo assim, a liberdade nesta ótica é muito mais que uma liberação sexual, ou um
estado de isenção de impedimentos de ordem interior ou exterior, é um poder de domínio sobre
si. E a privação de liberdade seria o tornar-se escravo dos próprios desejos e não poder governar a
si e muito menos o outro.

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O cuidado de si como prática de liberdade

Este movimento pelo exercício da continência em busca de uma temperança sexual leva
a uma reflexão acerca de outras áreas em que o indivíduo deva tornar-se sujeito da própria
história. O cuidado de si entra como uma necessidade de respeito a si mesmo, e uma vida austera
é vista como benéfica não apenas nos resultados de domínio dos desejos sexuais, mas também no
ganho de uma relação mais intensa consigo, em que o homem se constitui enquanto sujeito de
seus atos. Lembrando que constituir-se como sujeito envolve também outros aspectos que estão
interligados e podem refletir nas várias experiências do indivíduo.

Ponto de partida do saber moderno, o Homem é concebido como sujeito ativo,


autor de seu próprio ser, seja destinado à revolução, à liberdade ou à conquista
da natureza. É no interior de um projeto em que seu ser deve se realizar que o
Homem se revela como sujeito, construindo-se a si próprio. É no interior do
projeto que os obstáculos à realização do homem deverão ser analisados, como
outras tantas figuras de sua finitude: a alienação, a morte, o inconsciente [...]
(BRUNI, 1989, p. 200).

O fato do indivíduo tornar-se sujeito na história de sua sexualidade, por meio de uma
prática de liberdade que se traduz em uma luta pela temperança, ou domínio de si próprio em
relação aos desejos sexuais, leva a crer que, mais do que atender à normas legais, regras políticas
ou religiosas, esta austeridade leva o sujeito a ter um contato maior consigo mesmo, a respeitar-
se. Abre caminho para uma vida de maior intensificação da relação consigo mesmo: o cuidado de
si. Na obra História da Sexualidade 3: o Cuidado de Si, Foucault destaca que este movimento
implica em uma análise do individualismo crescente no mundo helenístico e romano que abriram
espaço aos aspectos da vida privada, aos valores da conduta pessoal e o interesse por si próprio.
Os motivos levantados foram o enfraquecimento do quadro político e social na época, que teriam
de alguma forma desligado os indivíduos de suas participações tradicionais. No entanto, vale
lembrar que, a maioria dos que disseminavam uma vida austera (primeiramente os estóicos)
pregavam também uma vida mais comunitária, voltada ao convívio com a família e concidadãos
e reprovavam o isolamento, considerando-o atitude de frouxidão e egoísmo (FOUCAULT, 1985).

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Nesta discussão sobre “individualismo”, Foucault traz a distinção de três aspectos: a


atitude individualista (grau de independência do indivíduo em relação ao grupo), a valorização da
vida privada (o valor das relações familiares) e a intensidade das relações consigo (como o poder
de transformar-se a si próprio, corrigir-se, purificar-se e promover a própria salvação). Não
necessariamente estes aspectos estarão ligados entre si, inclusive estes vínculos também podem
não ser constantes, e cada sociedade irá conferir-lhes diferentes pesos. O fato é que, ao menos a
questão da austeridade sexual, não foi consequência deste individualismo crescente, e sim o
apogeu que o filósofo denomina “cultura de si”, na qual as relações para consigo foram
intensificadas, seguindo o princípio que é preciso “ter cuidados consigo” (FOUCAULT, 1985).
O “ocupar-se consigo mesmo” já era difundido na cultura grega, mas passa a ser
utilizado num novo sentido no Alcebíades, no qual, segundo Foucault, Sócrates mostrava ao
jovem que pretendia governar a cidade que, antes de encampar este objetivo, deveria aprender a
ocupar-se de si próprio. Noutra ocasião, Sócrates lembrava aos homens que mais importante que
cuidar de riquezas e honras seria cuidarem de si próprios e de suas almas (FOUCAULT, 1985, p.
47), sentido este retomado pela filosofia, adquirindo um alcance mais amplo que o de origem.
O cuidado de si torna-se, portanto, uma atitude, um comportamento, e desdobra-se em
ensinamentos, prática social e, por fim, num certo modo de conhecimento e elaboração de um
saber. Nos escritos platônicos, epicuristas e de grandes nomes da doutrina filosófica, começa-se
encontrar menções como: a importância do cultivo da alma, a filosofia como exercício
permanente do cuidado consigo, o cultivo da saúde da alma, o cuidado da alma como garantia de
salvação, tornar-se disponível para si próprio, formar-se, transformar-se, voltar a si e unir-se a si
mesmo, entre outros.
E, porque entender o cuidado de si como prática de liberdade? Segundo Foucault, é em
Epicteto que se encontra a melhor elaboração filosófica do tema, no qual numa comparação entre
os animais e o homem, este uma vez sendo dotado de razão e, portanto, com liberdade para fazer
uso de si próprio, recebe o dever de se ocupar consigo, pois na medida em que é livre e racional,
fica encarregado deste dever. Sendo assim, para Epicteto, o cuidado de si nos assegura a
liberdade (FOUCAULT, 1985, p. 47).
Este cuidado de si, ou aplicação de si, é mais que simplesmente uma preocupação, mas
um conjunto de ações, (leitura, composição, cuidados com a saúde, exame de consciência,
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anotações importantes, conversação consigo mesmo, etc.). Ou seja, é um trabalho que requer
tempo e que não se faz em extrema solidão, mas que exige a comunicação com o outro, um outro
que seja franco, tenha boa reputação e tenha aptidão para dirigir e aconselhar, intensificando-se
assim as relações sociais transformando o cuidado de si em prática social.

Ocupar-se de si não é uma sinecura. Existem os cuidados com o corpo, Oe


regimes de saúde, os exercícios físicos sem excesso, a satisfação, tão medida
quanto possível, das necessidades. Existem as meditações, as leituras, as
anotações que se toma sobre livros ou conversações ouvidas, e que mais tarde
serão relidas, a rememoração das verdades que já se sabe mas de que convém
apropriar-se ainda melhor (FOUCAULT, 1985, p.56).

Ao apresentar as práticas de si, Foucault chama a atenção sobre a necessidade do exame.


Exame no sentido de que quando uma representação surge na mente, se deva saber discernir o
que não depende e o que depende de nós. Mais uma vez, o fato de se saber que o que não
depende de nós não pode tornar-se objeto de preocupação (desejo ou aversão) e, portanto, este
controle seria uma prova de poder e garantiria a liberdade. Quando o sujeito volta-se a si rompe
com as dependências e sujeições e torna-se possuidor de domínio próprio. Portanto, livre, e nada
limita nem ameaça o poder que se exerce sobre si. “E, finalmente, o ponto de chegada dessa
elaboração é ainda e sempre definido pela soberania do indivíduo sobre si mesmo; mas essa
soberania amplia-se numa experiência onde a relação consigo assume a forma, não somente de
uma dominação mas de um gozo sem desejo e sem perturbação” (FOUCAULT, 1985, p. 72).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O que poderia se pensar num primeiro momento sobre o papel da liberdade na vida da
sociedade ou do indivíduo seria uma condição ilimitada de ação, que permitisse ao homem ou à
coletividade atos sem impedimentos de qualquer ordem. A palavra liberdade, geralmente remete
uma idéia de plenitude, poder de escolha ou até mesmo ausência de obrigação. Ao contrário
disto, a noção Foucaultina de liberdade traz possibilidades que, aparentemente, parecem opostas,
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apresentando a verdadeira liberdade como condutora de uma trajetória ética, cercada de uma
conduta de auto-domínio e coerência com o papel assumido. “Ser livre é ser continente,
temperante”. Esta afirmação quanto ao uso dos prazeres poderia sugerir privação ao invés de
liberdade. Mas há de se considerar que uma liberdade absoluta, inconseqüente, ou um processo
de liberação isolado, o qual não consegue oferecer uma continuidade na escala de liberdade, não
leva o homem a ser sujeito de si. Não que Foucault demonstre reprovação pelo movimento de
liberação, pelo contrário, reconhece a importância do indivíduo se libertarem de uma moral
opressiva e amarras que venham estancar sentimentos ou desejos. O fato é que, somente as
práticas de liberdade, levariam o indivíduo a tornar-se sujeito, conduzir-se, escolher-se e desta
forma evitar cair novamente num quadro de escravidão.
Voltando a indagação que provocou a presente reflexão, que trata da ética como prática
refletida da liberdade, os pontos apresentados proporcionam um novo modo de vida, que podem
levar a transformação da pessoa por meio de escolhas conscientes e uma vida coerente e
verdadeiramente livre.
No que se refere ao cuidado de si, Foucault demonstra que somente por meio de atitudes
concretas de aproximação de si mesmo é que se chegará a este domínio próprio. Ao cuidar da
própria alma, ficar face a face consigo, ao unir-se a si mesmo é que o homem se faz, tem-se nas
mãos. Não que este estará eximido de todo e qualquer ato incoerente, mas será aquele que, apesar
de experimentar os prazeres, trava uma luta e consegue atingir uma soberania sobre si. Será capaz
fazer suas próprias escolhas e mais uma vez experimentar a liberdade. Liberdade esta, que o
impede de ser vitima de suas próprias mazelas.
Talvez, uma questão a ser levantada quanto à liberdade, seria a importância do
equilíbrio. O fato é que a discussão entre liberação e conduta ética, aponta para uma humanidade
que acaba por se conduzir pelos extremos. Ou se encontra num cenário opressor e idealiza a
liberação como salvação e torna-se novamente escravo do próprio desregramento, ou procura
uma vida extremamente imaculada por medo da morte da alma e também não chega a
experimentar a verdadeira liberdade. Desejar uma liberdade absoluta, uma libertação de valores
morais ou qualquer outro impedimento, por si só não levam o homem a uma vida plena. Por outro
lado, também uma moral opressora, seja por meio legal ou religioso não dão condições de
escolha livre e consciente do ser humano. Afinal, melhor seria “praticar” a liberdade, sem medo
Revista Percurso - NEMO Maringá, v. 7, n. 2 , p. 135- 147, 2015
ISSN: 2177- 3300
Ensaio sobre a noção foucaultiana... 147

da mácula, mas pela escolha própria de não tornar-se escravo de forças externas e nem tão pouco
internas, o que representa uma alternativa viável e possível para o indivíduo ou para a
coletividade.
Sendo assim, a idéia seria desenvolver uma capacidade de reflexão acerca da verdadeira
liberdade, ou das práticas de liberdade que proporcionam mais que um resultado imediato, que
oferecem verdadeiras condições de uma vida autônoma e ao mesmo tempo pensar nos motivos
pelos quais se deseja a liberdade, é o que poderia fazer o indivíduo optar por tais práticas, ou em
Foucault, optar por uma vida ética, pois o que seria a ética, senão a prática refletida da liberdade.

REFERÊNCIAS
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VAZQUEZ, Adolfo. Ética. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006.

Submissão em: 07/04/2015


Aceito em: 02/11/2015
Revista Percurso - NEMO Maringá, v. 7, n. 2 , p. 135- 147, 2015
ISSN: 2177- 3300

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