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DOI: 10.4025/revpercurso.v7i2.29462
RESUMO: A questão da liberdade, amplamente discutida por diversas áreas do saber, merece
ser, mesmo que de forma breve, discutida à luz do pensador francês Michel Foucault. A
liberdade, que nos tempos atuais, por vezes parece estar sendo entendida como um
desimpedimento para qualquer tipo de ato, ou ainda, um agir livremente como condição para a
vivência do prazer e do descompromisso, por meio de Foucault passa a tomar uma forma
aparentemente contraditória. Neste sentido, ele trata da liberdade como algo que vai além do
“processo de liberação”, como algo que traz consigo a exigência de determinadas práticas, as
chamadas “práticas de liberdade”, como condição de uma vivência ética. O presente ensaio
apresenta um recorte que fará menção a dois aspectos discutidos pelo filósofo: a temperança
sexual e o cuidado de si. Por fim, as considerações pertinentes à discussão permeiam o aspecto da
liberdade como um trabalho, como esforço individual, que vai além do coletivo, em busca de
equilíbrio e autodomínio como forma de manter e assegurar a própria liberdade.
Palavras-chave: Foucault; Liberdade; Ética; Temperança; Cuidado de si.
ABSTRACT: The issue of freedom, widely discussed in various areas of knowledge, worth,
even if briefly, be discussed in the light of French thinker Michel Foucault. The freedom, that in
modern times sometimes seems to be understood as a way to allow people to do any kind of act
or even an act freely as a condition for the experience of pleasure and disengagement through
Foucault starts to take a seemingly contradictory. In this sense, he deals with freedom as
something that goes beyond the "freedom process" as something that brings with it the
requirement of certain practices, the so-called "practice of freedom" as a condition of ethical
living. This essay presents a cut that will make mention of two issues discussed by the
philosopher: the sexual temperance and self-care. Finally, relevant considerations permeate the
discussion of freedom as an aspect of work, as individual effort that goes beyond the collective,
in search of balance and self-dominance in order to maintain and secure their own freedom.
Key words: Foucault; Freedom; Ethics; Temperance; Self-care.
INTRODUÇÃO
Existem muitos meios de se pensar uma explicação para a palavra liberdade. De alguma
forma, quando se pensa em liberdade nos vem à mente um sentimento de posse de direitos e que
de certa forma também levaria à uma isenção no cumprimento de deveres. Pensando assim, se
cada indivíduo decidisse simultaneamente exercer sua liberdade plenamente, agindo e/ou
praticando todo e qualquer tipo de ação que considerasse conveniente, em algum momento estas
ações poderiam desencadear consequências não desejáveis, tanto em relação ao outro, uma vez
que vivemos num contexto social, tanto em relação ao próprio indivíduo.
Exercer de forma plena nossas vontades nos remete à uma ideia de inconsequência, já
que o acesso a qualquer ação nos seria concedido, e qual o motivo teríamos de ponderar suas
consequências e reflexos? Estar livre para decidir e agir sem pensar nas consequências poderia
levar o indivíduo a um estado diferente daquele pretendido. Portanto, pensar a liberdade como
isenção de cumprimento de deveres e como um passaporte para fazer o que se quer, pode não ser
a melhor opção. O exercício de reflexão e ponderação deve ser visto como condição de uma
vivência social possível e, na medida do possível, levar esta mesma sociedade a uma vivência
ética.
E certamente, ainda que seja difícil traçar a linha divisória entre o normal e o
anormal (ou doentio) no comportamento dos seres humanos, é evidente que as
pessoas que costumamos considerar normais não agem sob uma coação
irresistível, embora seja indiscutível que sempre se encontram sob uma coação
interna relativa (de desejos, impulsos ou motivações inconscientes em geral).
Mas, normalmente, esta coação interna não é tão forte que anule a vontade do
agente e o impeça de uma opção e, portanto, de contrair uma responsabilidade
moral na medida em que mantém certo domínio e controle sobre seus atos
pessoais (VAZQUEZ, 2006, p. 117).
Somos livres para inventar estilos, resistir, ser soberanos e donos de nossos atos
e modos de pensar. Isso é possível pela constituição de uma subjetividade
ético/estética, cuja medida é estabelecida por si mesmo, numa espécie de luta
interna, uma agonística. Ela não serve para apagar desejos e prazeres, mas para
estabelecer para si mesmo, o que se quer, como se quer e o quanto se quer. Esse
domínio exercido sobre si, não vem do saber e nem do poder de outro, não é
ditado de fora, não é imposto. É guiado e sugerido por técnicas de si (desde a
meditação, o diário pessoal, a condução de si próprio por escolhas, invenção de
estilo de vida) que podem levar a uma transformação da pessoa, e que são atos
de liberdade, criatividade, enfim, uma boa e bela vida. (ARAÚJO apud
ARAÚJO, 2010, p. 137).
Neste ponto percebemos que o ser, enquanto sujeito da própria história, possui a
capacidade necessária para travar esse embate, criar métodos e encontrar meios de defender e
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manter sua escolha. Os métodos de autocontrole podem ser entendidos como esses meios
utilizados para a manutenção da própria liberdade. Diferente do entendimento de liberdade como
liberação, voltado para uma vivência sem imposições ou cumprimento de regras e normas, com
um corpo relaxado e “livre” para sentir e usufruir sem medida de toda e qualquer oportunidade de
prazer, a noção foucaultiana nos leva a exercícios mentais e corporais com intenção de, não
somente, controlar os impulsos e condicionar mente e corpo, mas construir a opção do sujeito
enquanto atitude rumo a um processo de liberdade.
A moderação exercida pelo homem livre não corresponde a uma lei, à qual o
indivíduo se submete, nem a um código que se tenta definir, mas à procura de
um estilo, de uma estilização do comportamento configurada segundo os
critérios de uma estética da existência, ou seja, das formas “por meio das quais o
homem se apresenta e se esboça, se esquece ou se desmente ante seu destino de
ser vivo e mortal (ORTEGA, 1999, p. 75).
Um dos traços essenciais da ética da carne será tanto o vínculo de princípio entre
o movimento da concupiscência, sob suas mais insidiosas e secretas formas,
como a presença do Outro, com suas artimanhas e seu poder de ilusão. Na ética
dos aphrodisia, a necessidade e a dificuldade do combate se deve, ao contrário, a
que ele se desenrola como uma justa consigo mesmo: lutar contra “os desejos e
os prazeres” é se medir consigo. (FOUCAULT, 1984, p.84).
Assim, impor a si mesmo a obrigação de lutar, de estar num estado de constante reflexão
e opção por uma liberdade reflexiva e autônoma não é tarefa fácil, uma vez que o indivíduo é
composto por diversos desejos e aspirações que ele mesmo não consegue compreender ou julgar
de maneira natural em razão de inúmeras limitações.
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se deixa levar por eles, trava uma luta e terá mais mérito quanto maiores forem os desejos
dominados. Neste sentido a enkrateia é uma forma de trabalho e de controle para que se alcance a
temperança (FOUCAULT, 1984).
Desse modo, o domínio de si torna-se uma virtude essencial no exercício da liberdade.
Um domínio de si não consiste em inércia ou isenção de desejos, e sim numa postura de combate
motivada pela não-escolha dos prejuízos que podem causar os excessos. Estes apetites precisam
ser combatidos, uma vez que podem estender sua dominação sobre todo o indivíduo, reduzindo-o
à escravidão. No entanto, faz-se necessário uma preparação específica, e como um soldado se
prepara para a batalha, o indivíduo precisa se preparar para evitar esta escravidão, e aqui o
adversário é ele mesmo, não está fora, mas em si. Num mesmo corpo acontece o duelo entre
forças que se opõem, e eis a dificuldade desta batalha: “Na ética dos aphrodisia, a necessidade e
a dificuldade do combate se deve, ao contrário, a que ele se desenrola como justa consigo
mesmo: lutar contra “os desejos e os prazeres” é se medir consigo (FOUCAULT, 1984, p. 84).
Neste contexto, Foucault passa a expor o dilema de quando se é mais forte ou mais fraco
que si mesmo. Uma vez travada esta luta de domínio de si, o indivíduo passa a combater as
próprias fraquezas por meio da reflexão e do exercício, e quando alcança a continência passa a
ser considerado mais forte que si mesmo, ao passo que se ele não travar esta luta, ou ao travá-la
não se apresentar suficientemente forte e determinado e fraquejar diante dos desejos e prazeres,
passa a ser considerado mais fraco que si mesmo, escravo de si e intemperante. Desta forma, o
filósofo atenta para o fato de que assim como nações podem estar em guerra umas contra as
outras, na vida privada “cada um, face a si próprio, é um inimigo de si mesmo” (FOUCAULT,
1984, p. 85).
Um aspecto a ser considerado é que, ao demonstrar domínio de si, não significa que o
indivíduo esteja purificado de todo desejo, mas que tenha conseguido dominar seus apetites.
Portanto, o domínio de si apresenta-se não como uma supressão dos desejos, mas em sua
dominação. Diferente da espiritualidade cristã, esta dominação se aproxima mais do tipo
“obediência”, comando e submissão, do que renúncia e purificação.
Contudo, não se pode interpretar essa necessidade de dominação e controle como uma
legitimação de um estado de opressão. É importante que nesta busca por equilíbrio o sujeito
experimente e se descubra, tendo acesso à sua sexualidade para, desse modo, adotar práticas que
possibilitem um comportamento ético e verdadeiramente livre:
E, como atingir este estado continente? Segundo o autor, são necessários exercícios. Em
comparação ao atleta e ao soldado, o continente precisa exercitar –se (askesis) de diferentes
formas (exercícios, meditação, provas de pensamento, exame de consciência, controle das
representações). Foucault cita Diógenes, que achava que se devia exercitar simultaneamente
corpo e alma e que acreditava que o exercício tudo poderia vencer. É este domínio de si que dá
condições para a condução do outro. Aqui, nota-se o valor da temperança para aquele que
desejava conduzir um povo, pois há como governar o outro se não possui condições de governar-
se a si mesmo. Afinal, “o mestre de si e dos outros se forma ao mesmo tempo” (FOUCAULT,
1984, p. 85).
A finalidade de se obter a virtude da temperança em face de uma continência dos
próprios desejos é se alcançar e se manter em liberdade. Ao contrário do que se poderia pensar, a
temperança permite uma liberdade em relação aos desejos, e o domínio de si livra o indivíduo da
escravidão de si para consigo. “Ser livre em relação aos prazeres é não estar a seu serviço, é não
ser seu escravo. O perigo que os aphrodisia trazem consigo é muito mais a servidão do que a
mácula” (FOUCAULT, 1984, p. 98).
Sendo assim, a liberdade nesta ótica é muito mais que uma liberação sexual, ou um
estado de isenção de impedimentos de ordem interior ou exterior, é um poder de domínio sobre
si. E a privação de liberdade seria o tornar-se escravo dos próprios desejos e não poder governar a
si e muito menos o outro.
Este movimento pelo exercício da continência em busca de uma temperança sexual leva
a uma reflexão acerca de outras áreas em que o indivíduo deva tornar-se sujeito da própria
história. O cuidado de si entra como uma necessidade de respeito a si mesmo, e uma vida austera
é vista como benéfica não apenas nos resultados de domínio dos desejos sexuais, mas também no
ganho de uma relação mais intensa consigo, em que o homem se constitui enquanto sujeito de
seus atos. Lembrando que constituir-se como sujeito envolve também outros aspectos que estão
interligados e podem refletir nas várias experiências do indivíduo.
O fato do indivíduo tornar-se sujeito na história de sua sexualidade, por meio de uma
prática de liberdade que se traduz em uma luta pela temperança, ou domínio de si próprio em
relação aos desejos sexuais, leva a crer que, mais do que atender à normas legais, regras políticas
ou religiosas, esta austeridade leva o sujeito a ter um contato maior consigo mesmo, a respeitar-
se. Abre caminho para uma vida de maior intensificação da relação consigo mesmo: o cuidado de
si. Na obra História da Sexualidade 3: o Cuidado de Si, Foucault destaca que este movimento
implica em uma análise do individualismo crescente no mundo helenístico e romano que abriram
espaço aos aspectos da vida privada, aos valores da conduta pessoal e o interesse por si próprio.
Os motivos levantados foram o enfraquecimento do quadro político e social na época, que teriam
de alguma forma desligado os indivíduos de suas participações tradicionais. No entanto, vale
lembrar que, a maioria dos que disseminavam uma vida austera (primeiramente os estóicos)
pregavam também uma vida mais comunitária, voltada ao convívio com a família e concidadãos
e reprovavam o isolamento, considerando-o atitude de frouxidão e egoísmo (FOUCAULT, 1985).
anotações importantes, conversação consigo mesmo, etc.). Ou seja, é um trabalho que requer
tempo e que não se faz em extrema solidão, mas que exige a comunicação com o outro, um outro
que seja franco, tenha boa reputação e tenha aptidão para dirigir e aconselhar, intensificando-se
assim as relações sociais transformando o cuidado de si em prática social.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O que poderia se pensar num primeiro momento sobre o papel da liberdade na vida da
sociedade ou do indivíduo seria uma condição ilimitada de ação, que permitisse ao homem ou à
coletividade atos sem impedimentos de qualquer ordem. A palavra liberdade, geralmente remete
uma idéia de plenitude, poder de escolha ou até mesmo ausência de obrigação. Ao contrário
disto, a noção Foucaultina de liberdade traz possibilidades que, aparentemente, parecem opostas,
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apresentando a verdadeira liberdade como condutora de uma trajetória ética, cercada de uma
conduta de auto-domínio e coerência com o papel assumido. “Ser livre é ser continente,
temperante”. Esta afirmação quanto ao uso dos prazeres poderia sugerir privação ao invés de
liberdade. Mas há de se considerar que uma liberdade absoluta, inconseqüente, ou um processo
de liberação isolado, o qual não consegue oferecer uma continuidade na escala de liberdade, não
leva o homem a ser sujeito de si. Não que Foucault demonstre reprovação pelo movimento de
liberação, pelo contrário, reconhece a importância do indivíduo se libertarem de uma moral
opressiva e amarras que venham estancar sentimentos ou desejos. O fato é que, somente as
práticas de liberdade, levariam o indivíduo a tornar-se sujeito, conduzir-se, escolher-se e desta
forma evitar cair novamente num quadro de escravidão.
Voltando a indagação que provocou a presente reflexão, que trata da ética como prática
refletida da liberdade, os pontos apresentados proporcionam um novo modo de vida, que podem
levar a transformação da pessoa por meio de escolhas conscientes e uma vida coerente e
verdadeiramente livre.
No que se refere ao cuidado de si, Foucault demonstra que somente por meio de atitudes
concretas de aproximação de si mesmo é que se chegará a este domínio próprio. Ao cuidar da
própria alma, ficar face a face consigo, ao unir-se a si mesmo é que o homem se faz, tem-se nas
mãos. Não que este estará eximido de todo e qualquer ato incoerente, mas será aquele que, apesar
de experimentar os prazeres, trava uma luta e consegue atingir uma soberania sobre si. Será capaz
fazer suas próprias escolhas e mais uma vez experimentar a liberdade. Liberdade esta, que o
impede de ser vitima de suas próprias mazelas.
Talvez, uma questão a ser levantada quanto à liberdade, seria a importância do
equilíbrio. O fato é que a discussão entre liberação e conduta ética, aponta para uma humanidade
que acaba por se conduzir pelos extremos. Ou se encontra num cenário opressor e idealiza a
liberação como salvação e torna-se novamente escravo do próprio desregramento, ou procura
uma vida extremamente imaculada por medo da morte da alma e também não chega a
experimentar a verdadeira liberdade. Desejar uma liberdade absoluta, uma libertação de valores
morais ou qualquer outro impedimento, por si só não levam o homem a uma vida plena. Por outro
lado, também uma moral opressora, seja por meio legal ou religioso não dão condições de
escolha livre e consciente do ser humano. Afinal, melhor seria “praticar” a liberdade, sem medo
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da mácula, mas pela escolha própria de não tornar-se escravo de forças externas e nem tão pouco
internas, o que representa uma alternativa viável e possível para o indivíduo ou para a
coletividade.
Sendo assim, a idéia seria desenvolver uma capacidade de reflexão acerca da verdadeira
liberdade, ou das práticas de liberdade que proporcionam mais que um resultado imediato, que
oferecem verdadeiras condições de uma vida autônoma e ao mesmo tempo pensar nos motivos
pelos quais se deseja a liberdade, é o que poderia fazer o indivíduo optar por tais práticas, ou em
Foucault, optar por uma vida ética, pois o que seria a ética, senão a prática refletida da liberdade.
REFERÊNCIAS
ARAÚJO, Inês Lacerda. Foucault e a ética dos atos de liberdade. In: Cesar Candiotto (org.).
Ética - abordagens e perspectivas. Curitiba: Editora Champagnat, 2010.
BRUNI, J. C. Foucault: O silêncio dos Sujeitos. In: Tempo social . São Paulo: USP, 1989.
________, Michel. História da Sexualidade 2: O uso dos prazeres. Rio de Janeiro: Edições
Graal, 1984.
FOUCAULT, M.; MOTTA, M. Ditos & Escritos, V.2.ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária,
2006.