Foucault - Zé Tiago
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Prática da Liberdade
Michel Foucault, Pensadores 3 comentários 52,007 Visualizações
Será que esse cuidado de si que possui um sentido ético positivo, poderia
ser compreendido como uma espécie de conversão do poder? [p.272]
Uma conversão, sim, É efetivamente uma maneira de controlá-lo e limitá-lo. Pois
se é verdade que a escravidão é o grande risco contra o qual se opõe a liberdade
grega, há também um outro perigo que à primeira vista, parece ser o inverso da
escravidão; o abuso de poder. No abuso de poder, o exercício legítimo do seu
poder é ultrapassado e se impõem aos outros sua fantasia, seus apetites, seus
desejos. Encontramos aí a Imagem do tirano ou simplesmente a do homem
poderoso e rico, que se aproveita desse poder e de sua riqueza para abusar dos
outros, para lhes impor um poder indevido. Percebemos, porém, em todo caso,
é o que dizem os filósofos gregos, que esse homem é na realidade escravo dos
seus apetites. E o bom soberano é precisamente aquele que exerce seu poder
adequadamente, ou seja, exercendo ao mesmo tempo seu poder sobre si
mesmo. É o poder sobre si que vai regular o poder sobre os outros.
O cuidado de si, separado do cuidado dos outros, não corre o risco de "se
absolutizar"? Essa absolutização do cuidado de si não poderia se tornar
uma forma de exercício de poder sobre os outros, no sentido da dominação
do outro?
Não, porque o risco de dominar os outros e de exercer sobre eles um poder
tirânico decorre precisamente do fato de não ter cuidado de si mesmo e de ter
se tornado escravo dos seus desejos. Mas se você se cuida adequadamente, ou
seja, se sabe ontologicamente o que você é, se também sabe do que é capaz,
se sabe o que é para você ser cidadão em uma cidade, ser o dono da casa em
um oikos, se você sabe quais são as coisas das quais deve duvidar e aquelas
das quais não deve duvidar, se sabe o que é conveniente esperar e quais são
as coisas, pelo contrário, que devem ser para você completamente indiferentes,
se sabe, enfim, que não deve ter medo da morte, pois bem, você não pode a
partir deste momento abusar do seu poder sobre os outros. Não há, portanto,
perigo. Essa ideia aparecerá muito mais tarde, quando o amor por si se tornar
suspeito e for percebido como uma das possíveis origens das diferentes faltas
morais. Neste novo contexto, o cuidado de si assumirá inicialmente a forma da
renúncia a si mesmo. Isso se encontra de uma maneira bastante clara no Traité
de la virginité de Gregório de Nisa, no qual se vê a noção de cuidado de si, a
epimeleia heautou, basicamente definida como a renúncia a todas as ligações
terrestres: renúncia a tudo o que pode ser amor de si, apego ao si mesmo
terrestre. Mas acredito que, no pensamento grego e romano, o cuidado de si não
pode em si mesmo tender para esse amor exagerado a si mesmo que viria a
negligenciar os outros ou pior ainda, a abusar do poder que se pode exercer
sobre eles.
Será que a partir disso seria possível pensar uma ligação fundamental
entre filosofia e politica?
Sim, com certeza. Acredito que as relações entre filosofia e política são
permanentes e fundamentais. Certamente, se considerarmos a história do
cuidado de si no pensamento grego, a relação com a política é evidente. E de
uma forma, aliás, muito complexa: por um lado, vê-se, por exemplo, Sócrates
tanto em Platão, no Alcibíades, quanto em Xenofonte, nas Mémorables, que
interpela os Jovens dizendo-lhes: "Não, mas então me diga, queres te tornar um
homem político, governar a cidade, ocupar-te dos outros, mas tu não te ocupaste
de ti mesmo, e se não te ocupas de ti mesmo, serás um mau governante": dentro
dessa perspectiva, o cuidado de si aparece como uma condição pedagógica,
ética e também ontológica para a constituição do bom governante. Constituir-se
como sujeito que governa implica que se tenha se constituído como sujeito que
cuida de si. Mas, por outro lado, vemos Sócrates dizer na Apologia:6 "Eu
interpelo todo mundo", pois todo mundo deve se ocupar de si mesmo: mas logo
acrescenta:7 "Fazendo isso, presto o maior serviço à cidade e, em vez de me
punir, vocês deveriam me recompensar ainda mais do que vocês recompensam
um vencedor dos Jogos olímpicos." Há, portanto, uma articulação muito forte
entre filosofia e política, que se desenvolverá a seguir, justamente quando o
filósofo tiver não somente que cuidar da alma dos cidadãos, mas também
daquela do príncipe. O filósofo se torna o conselheiro, o pedagogo, o diretor de
consciência do príncipe.
Isso nos faz propor a questão: por que s e deveria atualmente ter acesso à
verdade, no sentido político, ou seja, no sentido da estratégia política,
contra os diversos pontos de "bloqueio" do poder no sistema relacional?
Este é efetivamente um problema: afinal, por que a verdade? Por que nos
preocupamos com a verdade, aliás, mais do que conosco? E por que somente
cuidamos de nós mesmos através da preocupação com a verdade? Penso que
tocamos aí em uma questão fundamental e que é, eu diria, a questão do
Ocidente: o que fez com que toda a cultura ocidental passasse a girar em torno
dessa obrigação de verdade, que assumiu várias formas diferentes? Sendo as
coisas como são, nada pôde mostrar até o presente que seria possível definir
uma estratégia fora dela. È certamente, nesse campo da obrigação de verdade
que é possível se deslocar, de uma maneira ou de outra, algumas vezes contra
os efeitos de dominação que podem estar ligados às estruturas de verdade ou
às instituições encarregadas da verdade. Para dizer as coisas muito
esquematicamente, podemos encontrar numerosos exemplos: houve todo um
movimento dito "ecológico" aliás, muito antigo, e que não remonta apenas ao
século XX que manteve em um certo sentido e frequentemente uma relação de
hostilidade com uma ciência, ou em todo caso com uma tecnologia garantida em
termos de verdade. Mas, de fato, essa ecologia também falava um discurso de
verdade: era possível fazer a crítica em nome de uni conhecimento da natureza,
do equilíbrio dos processos do ser vivo. Escapava-se então de uma dominação
da verdade, não jogando um jogo totalmente estranho ao jogo da verdade, mas
jogando-o de outra forma ou jogando um outro Jogo, uma outra partida, outros
trunfos no jogo da verdade. Acredito que o mesmo aconteça na ordem da
política, na qual era possível fazer a crítica do político a partir, por exemplo, das
consequências do estado de dominação dessa política inconveniente, mas só
era possível fazê-lo de outra forma jogando um certo jogo de verdade, mostrando
quais são suas consequências, mostrando que há outras possibilidades
racionais, ensinando às pessoas o que elas ignoram sobre sua própria situação,
sobre suas condições de trabalho, sobre sua exploração.
O senhor não acha que, a respeito da questão dos Jogos de verdade e dos
Jogos de poder; se pode constatar na história a presença de uma
modalidade particular desses jogos de verdade, que teria um status
particular em relação a todas as outras possibilidades de jogos de verdade
e de poder e que se caracterizaria por sua essencial abertura, sua oposição
a qualquer bloqueio do poder, ao poder portanto, no sentido da
dominação/submissão?
Sim, é claro. Mas, quando falo de relações de poder e de Jogos de verdade, não
quero de forma alguma dizer que os jogos de verdade não passem, tanto um
quanto o outro, das relações de poder que quero mascarar esta seria uma
caricatura assustadora. Meu problema é, como já disse, saber como os jogos de
verdade podem se situar e estar ligados a relações de poder. Pode-se mostrar,
por exemplo, que a medicalização da loucura, ou seja, a organização de um
saber médico em torno dos indivíduos designados como loucos, esteve ligada a
toda uma série de processos sociais, de ordem econômica em um dado
momento, mas também a instituições e a práticas de poder. Esse fato não abala
de forma alguma a validade científica ou a eficácia terapêutica da psiquiatria: ele
não a garante, mas tampouco a anula. Que a matemática, por exemplo, esteja
ligada de uma maneira alias totalmente diferente da psiquiatria às estruturas de
poder, é também verdade, não fosse a maneira como ela é ensinada, a maneira
como o consenso da matemática se organiza, funciona em circuito fechado, tem
seus valores, determina o que é bem (verdade) ou mal (falso) na matemática etc.
Isso não significa de forma alguma que a matemática seja apenas um jogo de
poder, mas que o jogo de verdade da matemática esteja de uma certa maneira
ligado, e sem que Isso abale de forma alguma sua validade, a Jogos e a
instituições de poder. É claro que, em um certo número de casos, as ligações
são tais que é perfeitamente possível fazer a história da matemática sem levar
isso em conta, embora essa problemática seja sempre interessante e os
historiadores da matemática tenham começado a estudar a história de suas
instituições. Enfim, é claro que essa relação que é possível haver entre as
relações de poder e os jogos de verdade na matemática é totalmente diferente
daquela que é possível haver na psiquiatria; de qualquer forma, não é possível
de forma alguma dizer que os jogos de verdade não passem nada além de jogos
de poder.
Esta questão remete ao problema do sujeito, uma vez que, nos Jogos de
verdade, trata-se de saber quem diz a verdade, como a diz e por que a diz
Pois, no jogo de verdade, pode-se jogar dizendo a verdade: há um jogo.
Joga-se à vera ou a verdade é um jogo.
A palavra "jogo" pode induzir em erro: quando digo "jogo", me refiro a um
conjunto de regras de produção da verdade. Não um Jogo no sentido de imitar
ou de representar... ; é um conjunto de procedimentos que conduzem a um certo
resultado, que pode ser considerado, em função dos seus princípios e das suas
regras de procedimento, válido ou não, ganho ou perda.
Há sempre o problema do "quem": trata-se de um grupo, de um conjunto?
Pode ser um grupo, um indivíduo. Existe aí de fato um problema. Pode-se
observar, no que diz respeito a esses múltiplos jogos de verdade, que aquilo que
sempre caracterizou nossa sociedade, desde a época grega, é o fato de não
haver uma definição fechada e imperativa dos jogos de verdade que seriam
permitidos, excluindo-se todos os outros. Sempre há possibilidade, em
determinado Jogo de verdade, de descobrir alguma coisa diferente e de mudar
mais ou menos tal ou tal regra, e mesmo eventualmente todo o conjunto do jogo
de verdade, isso foi som dúvida o que deu ao Ocidente, em relação às outras
sociedades, possibilidades de desenvolvimento que não se encontram em outros
lugares. Quem diz a verdade? Indivíduos que são livres, que organizam um certo
consenso e se encontram inseridos em uma certa rede de práticas de poder e
de instituições coercitivas.
O senhor está muito distante de Sartre, que nos dizia: "O poder é o mal”
Sim, e frequentemente me atribuíram essa ideia, que está muito distante do que
penso. O poder não é o mal. O poder são jogos estratégicos. Sabe-se muito bem
que o poder não é o mal! Considerem, por exemplo, as relações sexuais ou
amorosas: exercer poder sobre o outro, em uma espécie de jogo estratégico
aberto, em que as coisas poderão se inverter, não é o mal; isso faz parte do
amor, da paixão, do prazer sexual. Tomemos também alguma coisa que foi
objeto de críticas frequentemente justificadas; a instituição pedagógica. Não vejo
onde está o mal na prática de alguém que, em um dado jogo de verdade,
sabendo mais do que um outro, lhe diz o que é preciso fazer, ensina-lhe,
transmite-lhe um saber, comunica-lhe técnicas: o problema é de preferência
saber como será possível evitar nessas práticas nas quais o poder não pode
deixar de ser exercido e não é ruim em si mesmo os efeitos de dominação que
farão com que um garoto seja submetido à autoridade arbitrária e inútil de um
professor primário; um estudante, à tutela de um professor autoritário etc.
Acredito que é preciso colocar esse problema em termos de regras de direito, de
técnicas racionais de governo e de êthos, de prática de si e de liberdade.
Quando Sartre fala de poder como mal supremo, parece fazer alusão à
realidade do poder como dominação; provavelmente, o senhor concorda
com Sartre.
Sim, acredito que todas essas noções tenham sido mal definidas e que não se
saiba muito bem do que se fala. Eu mesmo não tenho certeza, quando comecei
a me interessar por esse problema do poder, de ter falado dele muito claramente
nem de ter empregado as palavras adequadas. Tenho, agora, uma visão muito
mais clara de tudo isso; acho que é preciso distinguir as relações de poder como
jogos estratégicos entre liberdades jogos estratégicos que fazem com que uns
tentem determinar a conduta dos outros, ao que os outros tentam responder não
deixando sua conduta ser determinada ou determinando em troca a conduta dos
outros e os estados de dominação, que são o que geralmente se chama de
poder. E entre os dois, entre os jogos de poder e os estados de dominação,
temos as tecnologias governamentais, dando a esse termo um sentido muito
amplo trata-se tanto da maneira com que se governa sua mulher, seus filhos,
quanto da maneira com que se dirige uma instituição. A análise dessas técnicas
é necessária, porque muito frequentemente é através desse tipo de técnicas que
se estabelecem e se mantêm os estados de dominação. Em minha análise do
poder, há esses três níveis: as relações estratégicas, as técnicas de governo e
os estados de dominação.
O senhor pensa que a filosofia tem alguma coisa a dizer sobre o porquê
dessa tendência a querer determinar a conduta do outro?
Essa maneira de determinar a conduta dos outros assumirá formas muito
diferentes, suscitará apetites e desejos de intensidades muito variadas segundo
as sociedades. Não conheço absolutamente antropologia, mas é possível
imaginar que há sociedades nas quais a maneira com que se dirige a conduta
dos outros é tão bem regulada antecipadamente que todos os jogos são, de
qualquer forma, realizados. Em compensação, em uma sociedade como a nossa
isso é muito evidente, por exemplo, nas relações familiares, nas sexuais ou
afetivas, os jogos podem ser extremamente numerosos e, consequentemente, o
desejo de determinar a conduta dos outros é muito maior. Entretanto, quanto
mais as pessoas forem livres umas em relação às outras, maior será o desejo
tanto de umas como de outras de determinar a conduta das outras. Quanto mais
o jogo é aberto, mais ele é atraente e fascinante.