Caboclo de Lanca Trabalho Corrigido

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CABOCLO DE LANÇA: O GUERREIRO SAÍDO DOS CANAVIAIS

Irany Emilly da Costa de Souza

RESUMO
O presente trabalho tem como objetivo analisar a construção histórico-cultural da figura do
Caboclo de Lança, presente no Maracatu de “baque solto”, da região canavieira da mata norte
de Pernambuco, através da análise das mudanças dos diferentes elementos em sua composição
e como se inscrevem como importantes representantes da cultura da zona canavieira do
Estado, intricando-se com as manifestações culturais e de resistência dos povos da região
desde a colonização portuguesa, no século XVI até a inserção nas festividades carnavalescas
em Pernambuco, inclusive na capital Recife.

Palavras-chave: Maracatu, Caboclo de lança, Maracatu Rural.

ABSTRACT
The present work aims to analyze the historical-cultural construction of the figure of the
“Caboclo de Lança”, present in the “Maracatu” of “baque solto”, from the sugarcane region of
the northern of Pernambuco, through the analysis of the changes of the different elements in
its composition and how they register themselves as important representatives of the culture
of the sugar cane zone of the State, being intricate with the cultural manifestations and
resistance of the peoples of the region since the Portuguese colonization, in the XVI century
until the insertion in the carnival festivities in Pernambuco, including in the capital Recife.

Keywords: Maracatu, Caboclo de lança, Maracatu Rural.

Introdução

Ao ouvir a frase " se você não ficar quietinho, vou chamar o caboclo", a figura que
provavelmente irrompe no imaginário dos moradores da mata norte é de um homem de óculos
escuros, flor na boca e roupas coloridas. O caboclo de lança é elemento característico do
folguedo do maracatu “rural” ou de “baque solto”, uma das manifestações culturais que
vieram a ser conhecidas como maracatu, em Pernambuco.
Carvalho (2007) entende as manifestações culturais como “formas de expressão da
cultura de um povo, constituindo movimentos de determinada cultura, em época e lugar
específicos” (p.64). No cotidiano é que ocorrem as relações que constituem as manifestações
culturais, dessa forma, o espaço cultural é o espaço de criação “natural” e espontânea das
manifestações (OLIVEIRA, 2011, p.59).
As manifestações culturais folclóricas, marcadas por essa espontaneidade e a
transmissão da experiência empírica ligada ao cotidiano, desenvolvem mecanismos de
adaptação e se modificam, pois também se entretecem pela aceitação coletiva,
tradicionalidade, dinamicidade, funcionalidade e regionalidade (AMORIM, 2004). A indústria
cultural, com a valorização turística e comercial das figuras representativas da cultura popular,
tem demandado mudanças nessas manifestações. Cabe-se a discussão de até que ponto são
impostas ou bem aceitas pela comunidade que produzem as manifestações. No entanto, o
presente trabalho busca ressaltar a construção histórico-cultural da figura do Caboclo de
Lança entrelaçada ao Maracatu de “baque solto” na região canavieira da mata norte de
Pernambuco.

O Maracatu de “Baque Solto” e o Caboclo de Lança

Durante o período de colonização, os primeiros habitantes desta terra foram os que


mais sofreram por verem sua destruição cultural e física. Morreram por não se renderem ao
português. Sentiram por suas tribos morrendo pelas doenças trazidas pelo branco. Morriam
sem entender por que não podiam louvar seus deuses. Em meio a tudo isso nascia os caboclos.
Uma mistura sem classificação. Um povo sem povo. Severino Vicente da Silva diz: "Durante
a colonização, surgiu a palavra caboclo. Era uma forma de desclassificar os filhos dos
indígenas. Não era índio, não era branco; não era livre, não era escravo; não era brasileiro,
não era português." (SILVA, 2012, p. 25)
O caboclo era a mistura da relação do branco com o nativo. Que teve tanto a presença
de portugueses como de espanhóis, franceses e holandeses. Foi preciso até mesmo que o El
Rei Dom José de Portugal em 1755, proibisse o uso da palavra caboclo por ser considerada
uma injúria contra os filhos dos índios com os brancos. Em certo trecho da carta ele diz:

E outrosim proibo que os ditos meus vassallos casados com Indias, ou seus
descendentes, sejaõ tratados com o nome de Caboucolos, ou outro
similhante, que possa ser injurioso; e as pessoas de qualquer condiçaõ ou
qualidade que praticarem o contrario, sendo-lhes assim legitimamente
provado perante os ouvidores das comarcas em que assistirem, seráõ por
sentença destes, sem apellaçaõ, nem aggravo, mandados sahir da dita
comarca dentro de um mez, e até mercê minha; o que se executará sem falta
alguma, tendo porém os ouvidores cuidado em examinar a qualidade das
provas e das pessoas que jurarem nesta materia, para que se naõ faça
violencia ou injustiça com este pretexto, tendo entendido que só haõ de
admittir queixa do injuruado, e naõ de outra pessoa (VARNHAGEN, vol. 2,
p. 242-245).

Os nativos indígenas e seus filhos caboclos foram as primeiras mãos de obra usadas no
Brasil, quando as capitanias hereditárias instalaram os primeiros engenhos de açúcar. Duarte
Coelho, por exemplo, foi um dos muitos donatários que usaram os indígenas como mão de
obra escrava tanto no plantio como na colheita da safra dos canaviais. "Dentre as inúmeras
atribuições que lhe competiam, estavam as de doar terras em sesmarias a pessoas cristãs e de
escravizar os índios a fim de usá-los no trabalho" (ANDRADE, 1998, p. 60).
Porém, por ser um trabalho pesado e cansativo para os indígenas, incluindo as mortes
que ocorreram nas guerras travadas pelo homem branco, os indígenas foram forçados a
fugirem do litoral e adentrar mais para o interior. O que fez com que Duarte Coelho enviasse
uma carta para o rei de Portugal informando sua condição financeira precária e solicitando
autorização para importar escravos negros de Guiné (ANDRADE,1995, p. 23).
A cana de açúcar é originária da Ásia e chega no Brasil por volta do século XVI, e a
Pernambuco justamente pelas mãos de Duarte Coelho, que formou o primeiro engenho de
açúcar do Brasil. Estes engenhos chamados de engenho banguê, receberam esse nome por
conta do bagaço da cana que era carregado nos banguês. Estes engenhos eram movidos tanto
por água como por tração animal (Cultura do Açúcar, 2011).
Até o século XVI, a escravização dos indígenas era presente nos engenhos, no entanto,
esta mão de obra não supria completamente as necessidades dos engenhos. Além do cultivo,
colheita e transporte da cana, precisava-se de escravos para serviços domésticos. Com o
decorrer do tempo esses engenhos começaram a aderir aos negros escravizados. Já que os
índios se rebelavam e fugiam para o sertão, o negro africano se tornou a principal mão de obra
escrava nos engenhos de açúcar (ANDRADE, 1998,p 64).
O crescimento dos engenhos de cana de açúcar se deu pelo clima propicio para seu
cultivo. As terras de massapê, a foz dos rios, propiciou, que entre 1550 e 1584, mais de
sessenta engenhos existissem no nordeste do país. Número que veio a aumentar em ocasião da
chegada dos holandeses, onde já se contavam cento e quarenta e quatro engenhos de cana no
Nordeste (ANDRADE, 1998, p 64). A dominação do colonizador estendia-se não só dos seus
corpos, mas também sobre a sua cultura.

Os seus líderes, suas leis e sua religião nunca foram reconhecidos ou


tolerados pelos europeus. Os habitantes da terra tiveram que aceitar a cultura
trazida pelos portugueses. Esconderam o que pensavam. Esconderam seus
deuses para sobreviver (SILVA,1998, p. 44).

Foi necessário para o indígena que guardasse para si mesmo quem realmente era. Ele
agora se vestia como branco; Agia como branco; Falava como o branco. Era agora necessário
encobrir suas crenças que eram vistas como "coisas do diabo". Impedidos, juntamente como o
negro, de adorar seus deuses.
No meio dos matos, dizem que reinavam certas histórias de curupiras,
caiporas, bois-tá-tá, comadres-fulozinhas, iaras, e tantos outros seres
imortais, protetores do mundo iluminado por Guaracy e Jacy. Nas
matas, durante os anos de nossa formação, ocorreram encontros de
tradições proibidas, quando negros fugidos dos engenhos eram
protegidos por tribos perdidas, escapadas das doenças e dos
massacres; nos quilombos, indios viviam com negros sedentos de
liberdade ; e nas senzalas, crentes de deuses perseguidos protegiam-se
e bebiam do caldo da jurema; e o saci peperê continuava a fumar ao
lado de uma Índia velha, esse vento das matas que tomou a forma de
um moleque negro e brincalhão que perdeu uma se suas pernas (
SILVA, 2012, p. 25).

Jurema esta, conhecida como Jurema Sagrada, é um movimento religioso ainda pouco
estudado. Mas pelo que se sabe é ligada às raízes indígenas com influência afros (OLIVEIRA,
p.1085). Os índios e negros com suas culturas e tradições distintas e singulares agora
partilhavam suas crenças e limitações com relação a suas raízes. Na segunda metade do século
XVI, no Nordeste, houve muita disputa por posses de terra. O que levou aos sobreviventes
descendentes de indígenas a deixarem de falar sua língua publicamente. Para poder se
preservar físico e culturalmente "começaram a se dizer e se chamar e ser conhecidos como
caboclos" (SILVA, 2012, p. 26).
Com o começo da produção do açúcar beterraba na Europa, o plantio de cana em
paises não propícios e a produção de açúcar nas Antilhas afetaram o preço do açúcar no
mercado. Com essa queda do açúcar no mercado intensificou-se a crise nos engenhos, que já
tinha muitos gastos com os escravos. Essa crise piorou com a criação dos engenhos centrais, o
que levou muitos dos pequenos engenhos a parar de produzir açúcar e fornecer apenas a cana
para os engenhos centrais e depois para as usinas (SILVA, 2012, p. 40). Com a crise do
açúcar, o fluxo de escravos era bem menor. O trabalho antes escravo começa a ser conhecido
como “trabalho de condição”. Esse declínio se dá antes na mata norte do estado de
Pernambuco do que no Sul (MELLO, 2001, p.70)
Em toda a mata já ocorriam os signos precursores da transição do trabalho escravo
para o trabalho livre, sob a forma dos chamados "condiceiros", homens livres a quem o senhor
de engenho concedia um terreno onde edificar mocambo e plantar lavouras de subsistência.
No Brasil, cresciam os movimentos abolicionistas. Em 1850, pela lei Eusébio de Queiroz, o
comércio internacional de escravos se tornava proibido. Com isso, o preço da mão de obra
escrava sobe, causado o esvaziamento das senzalas no norte do Brasil.
O aumento dos trabalhadores livres, que precisavam de lugar para ficar e uma forma
de se sustentar, se torna grande, mas a situação se acentua quando em 1875 é criada a Lei do
Ventre Livre. Com poucos escravos e as dificuldades em comprar outros, os donos de
engenhos passaram a permitir que homens livres trabalhassem nas suas terras. É nesse
momento que surge os moradores de condição. (SILVA, 2012, p. 40).
Com o fim oficial da escravidão em 1888, em fins do século XIX, os negros livres se
juntavam aos outros índios e caboclos libertos e pobres. Com a crise da cana de açúcar,
principal meio econômico de Pernambuco, que também aconteceu no final do século XIX,
empregou-se muitos negros libertos, indígenas e caboclos sobre diferentes formas de contrato
de trabalho nos engenhos que chamamos de engenhos de “fogo morto”.
Agora, sem proprietários para lhes dizer o que vestir nem como se divertir. Essa
situação não mudou apenas para os escravizados negros, mas também para os descendentes de
indígenas. Que foram expulsos da terra onde caçavam e viviam e as viu sendo transformadas
em canaviais. Os mestiços tinham de se adaptar a sua nova condição. Como os republicanos
haviam aderido aos ideais do Positivismo, alguns seguiam a ideia de criação de uma religião
que levasse o respeito a todos os homens e culturas.
Entre estes republicanos, estava Cândido Rondon, General e indígena, que propôs o
lema de nunca matar o índio. Segundo Severino Vicente da Silva (2012), essa atitude do
general Cândido Rondon, pode ter dado coragem aos caboclos da Zona da Mata Norte de
Pernambuco. E foi aí, que além da produção do açúcar, os caboclos produziam sua dança
rememorando vagas lembranças do seu passado (SILVA,2012, p. 26). Severino Vicente da
Silva chama de "uma festa de celebração de um passado guerreiro".
Nos terreiros, os caboclos se reuniam para trazer à memória as poucas lembranças de
seu passado. Algumas lembranças confusas, que faziam surgir movimento e sons. "Foi se
fazendo assim, um pouco de cada brinquedo que o povo conhecia; um cadinho de reisado, um
tanto de Cavalo Marinho, outro tanto de bumba meu boi e outro de Caboclinho"(SILVA,
2012, p. 27). No começo era brincadeira de homens. Homem vestido de mulher. Coisas de
cambinda (SILVA, 2012). Dançavam de cócoras, e aos poucos foi surgindo o maracatu de
“baque solto”. Também conhecido como maracatu rural para diferenciar do “baque virado”,
que eram os maracatus de negros de ganho que residiam na área urbana.
Nos terreiros dos engenhos, após uma semana no eito da cana, o maracatu era o
repouso e entretenimentos dos homens. Momento de lazer e treinamento das danças. Eram as
sambadas. Apesar da forte associação entre os maracatus e a figura do caboclo de lança, os
elementos componentes do maracatu são variados. Diferente do maracatu de baque virado, no
maracatu rural não havia corte. Como no começo do Brasil também não havia. A corte foi
trazida pelos reinos africanos e pelo europeu. A corte só começa a fazer parte do maracatu de
caboclo, quando o mesmo começa a participar dos festejos carnavalescos do Recife. A
introdução dessa corte faz parte do processo colonizador no processo de civilização e,
simbolicamente, é a representação do período de reis, vice-reis e imperadores do Brasil.
Nos maracatus de baque virado no Recife, há uma relação com a coroação dos Reis do
Congo. Com a perda dos prestígios e poder da irmandade, essa coroação transformou-se no
cortejo do baque virado. A introdução do rei e rainha nos maracatus foi feita por exigência da
Federação Carnavalesca Pernambucana, para que pudessem ser aceitos como maracatu e
pudessem receber apoio financeiro da federação. Foi necessário aceitar a corte para que
pudessem desfilar.

Para os organizadores do carnaval, o Maracatu Rural tinha que se adequar


aos padrões dos tradicionais maracatus originários das Irmandades que
congregavam as comunidades negras do século XIX. Foi mãos uma ação
para negara tradição dos primeiros senhores dessa terra (SILVA, 2012, p.
54).

Os caboclos tiveram que criar uma realeza que seus ancestrais não tinham.
Imaginaram uma corte francesa. Este povo foi obrigado a assumir mais uma influência. A
corte no Maracatu Rural tem a mesma formação que o Maracatu Urbano: um rei, rainha, a
dama de paço, que tem a boneca nas mãos, a dama de buquê; e o valete. E também o
Cavaleiro, que protege e acompanha a dama. As palavras "Valete" e "Buquê" são palavras que
indicam a origem francesa da corte. A boneca que a dama carrega nas mãos veio com a corte,
e hoje ela é "dona" do maracatu. Ela é um símbolo de proteção da tribo. A presença das
baianas também é marcante nos maracatus. Antes eram homens vestidos de mulher, contudo,
nos dias atuais é raro encontrar homens vestidos de baiana. A presença das mulheres no
maracatu, datada de meados dos anos 1950, segundo relatos de moradores da zona da mata
norte, tornou-se a partir de então presença constante.
A bandeira do maracatu é o seu símbolo de apresentação. É em torno dela que a tribo
se aglomera. E onde se encontra o nome do maracatu, sua data de fundação e seu símbolo.
Quando o caboclo chega para participar do cortejo, se ajoelha perante a bandeira. O
bandeirista é quem a carrega. Posição de responsabilidade no maracatu. Ele é responsável por
guiar o maracatu e saudar quando se encontram com a bandeira que outro maracatu. Ele deve
cruzar a bandeira, que passa orgulhosa pela outra tribo. Seu manuseio deve ser cuidadoso,
para que não tombe e muito menos seja derrubada. Os encontros de anos anteriores, povoados
por brigas e confusões foram deixando espaço para um acordo entre os maracatus e a
associação de maracatus de baque solto para que não exista mais brigas e confusões entre os
maracatus. Fazendo com que os encontros e apresentações possam ser apreciados pela
população.
O maracatu de “baque solto” também pode ser conhecido como maracatu de orquestra,
sendo sua orquestra chamada de “terno”. Diferenciando-o do maracatu de baque virado, como
o Maracatu Nação, que é todo baseado em percussão. No início, os instrumentos eram muito
simples: a porca, que é uma lata coberta com couro de animal mais precisamente de couro de
boi, tendo uma madeira no centro. O som é tirado pelas mãos do tocador, que se movimento
subindo e descendo com um pano molhado. O som vai depender da mão de quem o toca.
Temos também o surdo, instrumento presente em todos os movimentos populares nordestinos,
também conhecido como zabumba. O taró, também conhecido como tarol. Que é um tambor
estreito, tocado por duas baquetas. Ele dá o ritmo que vem acompanhado pelo gonguê. Este
último é o único instrumento desconhecido dos indígenas, pois os mesmos não conheciam o
metal. Este instrumento é conhecido pelos grupos afro como agogô. E ainda o mineiro,
conhecido como ganzá. Que é um cilindro com folhas de flanges fechado, que dentro é
colocado grãos ou seixos para fazer som ao ser balançado.
O mestre do maracatu caminha com um bastão, que simboliza sua autoridade. Seu uso
é de privilégio do mestre. Podendo ser enfeitado com fitas ou metais. O mestre está sempre
próximo da bandeira ou da orquestra. Seu apito é quem manda e desmanda. Indicando
mudança de movimentos e entrada do terno. Ele faz suas “emboladas” e “loas”, e tem por
perto as baianas que repetem sempre seu último verso do improviso. O improviso adentra os
maracatus provavelmente por influência dos tocadores de viola apreciados pelas pessoas do
interior. Os mestres mais respeitados são aqueles que não repetem seu improviso, ao som de
seu apito o terno para, os caboclos se ajoelham, e todos param para ouvi-lo. Ao lado do
mestre temos o contramestre, que repete juntamente com as baianas o que diz o mestre. Ele é
quem fica no lugar do mestre na sua ausência. Os dois são responsáveis para que o maracatu
se apresente bem e em disciplina.
Outro personagem interessante no maracatu é a burrinha. Como todos os personagens
do maracatu tem relação com o cotidiano canavieiro, a burra não poderia ficar sem ser
representada. Ela foi muito usada no período dos engenhos, o boi era um animal bom para a
tração, mas o burro era quem levava a carga. Muito usado para percorrer longas distâncias.
No maracatu muitas vezes ele que passa a frente para abrir passagem para a tribo. Ele usa um
relho, um tipo de chicote para dispersar quem estava impedindo o maracatu de passar.
Ainda pode-se encontrar a "catita" ou "catirina" que é a mulher do Mateus, que são
personagens do Cavalo Marinho. A Catita, é um homem com trajes femininos que anda
sempre com um “jereré”. Nos tempos que o maracatu não recebia apoio governamental, a
Catita e o Mateus iam à frente do maracatu pedindo dinheiro para comprar pedida e comida
para os caboclos. Era assim que ganhavam dinheiro para ajudar na saída do maracatu. Mateus
é como um bobo; passa o tempo todo correndo atrás da sua mulher, a Catirina. Ele se
diferencia do cavalo marinho pela sua indumentária. Ele se veste como caboclo; um surrão
com um chocalho nas costas, uma lança sem ponta nas mãos, o rosto manchado de carvão, um
chapéu afunilado e uma bexiga de porco na mão para espantar os meninos levados que tentam
se aproximar da Catirina.
Um personagem secundário, mas que também tem sua importância, é o caçador.
Representação de uma atividade que era constante entre os indígenas nas matas para levar
comida para tribo. A caça no estado de Pernambuco, até os anos sessenta, era muito praticada,
contudo com a diminuição das matas, sendo conhecidas como reservas ambientais, houve a
proibição da caça. O caçador representa o homem que ia buscar alimento para sua família.
Um personagem bem conhecido dos que acreditam na sorte é o "bicheiro". A figura do
vendedor de jogo do bicho, que é uma atividade comum e remete à esperança de algum
momento tirar a sorte grande. Como figura principal apresenta-se o Caboclo de lança. Ele é o
responsável pela proteção de sua tribo. O guerreiro que protege a orquestra/terno, protetor de
um povo que perdeu seu cacique. " O habitante da terra era guerreiro, mas recebeu o europeu
em paz. Entretanto, o guerreiro armou-se para guerra no momento em que percebeu que não
seria possível uma convivência pacífica com aquele que chegou para colonizá-lo" (SILVA,
2012, p, 36). O caboclo é representado como um guerreiro, tanto quando sai sozinho como o
índio bravo saindo dos canaviais, como quando sai com o maracatu protegendo a sua tribo.
Os moradores dos engenhos não viviam em casas conjugadas feitas pelo senhor do
engenho para os trabalhadores. Eles viviam em sítios, isolados e distantes. Do meio dos
canaviais foi se formando uma brincadeira. Quando os trabalhadores se reuniam nos terreiros,
mostravam suas habilidades e movimentos. Onde travavam batalhas como guerreiros de lutas
ancestrais e roupas diferentes do seu cotidiano. Quando saia do canavial para a rua, o caboclo
fazia medo. Parecia que o índio bravo estava de volta. “A rua temia que esses homens das
matas, dos canaviais, viessem a pôr em risco a tranquilidade da vida urbana” (SILVA,2012, p.
36).
Tudo na figura do caboclo é uma forma de ligar o seu cotidiano à sua brincadeira. O
rosto pintado lembrando a pele queimada de passar o dia no sol a cortar as canas, e as lanças
nas mãos. Os caboclos protegiam a sua bandeira. A roupa que usa o caboclo é chamada de
arrumação. Essa arrumação veio mudando através dos tempos. Antes os caboclos usavam um
chapéu colorido com o formato de funil. Hoje em dia só quem usa um chapéu afunilado é o
Mateus. Com o tempo sua cabeleira foi mudando, passou por um chapéu estilo canoa com
flores artesanais de ornamento. Inicialmente eram enfeitadas de papel celofane coberto com
palha. Hoje a tiara pode chegar a ter mais de 700 pedaços de fita com seu perfil arredondado.
A figura chama atenção onde passa. Chegando a conquistar todos onde passa. Porque é a
imagem de um Brasil mestiço, assim como os caboclos. Nada na composição da figura do
caboclo está lá pelo mero acaso ou por pura estética. Tanto sua arrumação quanto seus
movimentos remetem ao canavial onde se iniciaram (ANDRADE, 1998, p. 64).
Mal vemos o rosto e muito menos o corpo dos caboclos. Seu rosto quase não é visto,
pois está sempre parcialmente coberto pela cabeleira ou pelo lenço em suas cabeças. Uma
pequena parte que fica a mostra é pintada com urucum. Acrescentasse os óculos escuros nos
olhos e um cravo em sua boca. Segundo Severino Vicente, " dizem ser uma flor preparada;
alguns a levam para ser calçada na Jurema Sagrada; outros caboclos a colocam em um copo
d'agua. Mas é um segredo, e o Mestre Salustiano dizia que se dissesse o que é deixa de ser
segredo" (SILVA, 2012, p. 41).
Toda essa figura tem ligação com seu trabalho cotidiano. Sua cabeleira e lenço faz
menção ao chapéu que envolve a cabeça do cortador de cana para que se proteja dos raios do
sol. A pintura de urucum é o manchado que se apresenta no rosto do cortador que volta do
corte para casa com o rosto sujo pelo carvão da cana queimada. Sua arrumação cobre seu
corpo por inteiro, deixando de fora apenas suas mãos, para que entre em contato com sua
arma. Sua lança. Sua arrumação é uma releitura das roupas no canavial para proteger a pele
do sol. Nos seus ombros tem o surrão, com chocalhos que avisam quando os caboclos estão
chegando. "Bunda Alegre!", " Bunda de Guizo!", assim era também chamado o caboclo,
quando passava nas ruas, os se escutava o som ao longe (SILVA, 2012, p. 42).
Por cima do surrão temos a gola, a peça de orgulho do caboclo. Um trunfo,
representação da grandeza do guerreiro. Uma armadura como cavaleiros medievais, só que
nesta quem se guardava eram os descendentes dos nativos da terra. A preparação da gola dura
o ano todo. Cada desenho estampado cada bordado naquela gola é de significância para o
caboclo. Por último, vem a sua lança. Os movimentos e manuseio que o caboclo tem com a
sua lança é o que o faz ser respeitado pelos outros caboclos da sua tribo e das outras.
O uso da lança, também conhecida como guiada, é vivenciado no dia-a-dia do corte de
cana e nas noites de sambada. Quem realmente observa o maracatu, não só nas apresentações
como também nos ensaios no terreiro, vê como a sua guiada lembra a foice usada no corte de
cana. Seu vai e vem, subindo e descendo, mostra como a guiada é familiar ao seu trabalho no
canavial.
E como toda tribo tem o seu pajé, no maracatu rural não é diferente. No maracatu
temos o chefe dos guerreiros, o mestre dos caboclos. O mestre dos caboclos não é difícil de
ser identificado quando a tribo está formada. Ele fica no centro da fileira de frente do
maracatu. Responsáveis por abrir caminho para que sua tribo possa passar, e é formada pelo
mestre dos caboclos no centro e mais quatro caboclos ao seu lado. Os movimentos do chefe é
o que indica o que os caboclos guias que ficam nas extremidades do cordão devem fazer.
Nas sambadas eles se preparam para o carnaval. Este caboclo vai e vem por entre a
tribo, vendo se todos estão protegidos e em seus lugares. Os caboclos formam uma corrente
humana ao redor do maracatu, jogando suas lanças para o alto mostrando a familiaridade com
a arma e intimidando o inimigo. Há também os caboclos boca de trincheira, que dão cobertura
para os caboclos guias. O chefe dos caboclos tem que prestar atenção no apito do mestre,
ajoelham-se quando ele apita para ouvi-lo fazer sua loa. Temos também o Arreiamá, que é um
caboclo sem lança, carregando um machado em suas mãos. Seus cabeça é ornada por um
grande cocar de penas. Mas quem é esse caboclo que não parece pronto para batalha?
O Arreiamá é a representação da inocência da tribo. Sua ligação com os espíritos da
natureza. O machado em sua mão representa os índios que ajudaram os portugueses.
Oferecendo-lhes água e até fazendo referência ao corte do pau brasil. Ele é a representação do
primeiro contato, já que não havia necessariamente resistência na chegada do homem branco.
Seu mal foi quando quiseram escravizar o índio. A função do caboclo Arreiamá também
chamado de Tuxaua, é proteger a corte: rei, rainha, baianas e a dama do paço. Com o seu
penacho ele traz a proteção dos espíritos da natureza, representa a riqueza da tribo (SILVA,
2012)
O maracatu é a representação da singularidade de um povo, lembranças resgatadas
parcialmente de uma memória passada de pai para filho. Dos tempos que se abafou uma
cultura que são as raízes de um Brasil construído como se fosse uma terra branca. Até nos
dias de hoje, há a dificuldade de se enxergar miscigenado. Tentando-se branquear nosso
passado e se esconder, abstendo-se de participar de um movimento cultural tão importante
quanto o maracatu. Mais que isso, há quem pense que esse tipo de manifestação cultural está
distante. Esquecendo-se que o povo da mata norte de Pernambuco é tão caboclo quanto os
brincantes dos maracatus, sejam de baque solto ou virado.
Considerações finais

O objetivo do presente trabalho foi ressaltar a construção histórico-cultural da figura


do Caboclo de Lança entrelaçada ao Maracatu de “baque solto”, na região canavieira da mata
norte de Pernambuco, através da análise das mudanças dos diferentes elementos em sua
composição e como inscrevem-se como importantes representantes da cultura da zona
canavieira do Estado, intrincando-se com as manifestações culturais e de resistência dos
povos marginalizados e trabalhadores desde a colonização portuguesa, no século XVI.
Com este trabalho pode-se observar como essas figuras são importantes para formação
cultural das comunidades. Para além do uso como entretenimento turístico, o dinamismo das
tradições deve ser incentivado pela continuidade das trocas de experiências entre diferentes
gerações. Analisar a construção e as mudanças das manifestações culturais envolve não só a
manutenção financeira das manifestações culturais, mas a conscientização de que as
comunidades são responsáveis pela construção dos movimentos culturais. Torna-se de
extrema importância o desenvolvimento de estudos ligados à cultura e aos movimentos
culturais, pois podem significar uma de resistência das tradições passadas de pais para filhos e
que precisam ter visibilidade para que não desapareçam, como muitas manifestações pelo
mundo.

Referências

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SILVA, Severino Vicente da, 1950 – Maracatu Estrela de Ouro de Aliança: A saga de uma
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VARNHAGEN, Francisco Adolfo de. Historia Geral do Brazil. 2. ed. muito aumentada e
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