Aparalho Do Estado

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INTRODUÇÃO

Todo sistema que deseja manter sua existência por um longo período de tempo
deve ambicionar reproduzir os próprios meios e condições que garantam a sua
existência.

A meta deve ser “reproduzir suas condições de produção enquanto produz” , para
que seja possível a sobrevivência desse sistema. Essa é a essência a partir da
qual toda luta em redor do Poder de Estado se organiza. Uma vez que um grupo
social detém e concentra em suas mãos a potência de reger os aparelhos de
Estado para um determinado fim coerente com seu próprio projeto, deve articular
estratégias para fomentar a manutenção desse poder em suas mãos. O conjunto
de estratégias ao redor do Poder de Estado, as articulações para mantê-lo
concentrado nas mãos de determinado grupo, têm por objetivo criar um sistema no
qual esse mesmo poder se aprofunde na trama social. Para que isso aconteça, é
necessário constituir uma cultura que justifique a posse desse Poder de Estado nas
mãos do grupo que o detém, e que crie uma lógica coerente entre o exercício
desse poder e os efeitos que produz na sociedade. Algumas teorias marxistas
sobre o funcionamento do Estado, as lutas em redor da hegemonia cultural e os
processos articulados pelos distintos Aparelhos estatais podem estabelecer alguns
pressupostos para a compreensão da constituição de certos aspectos da cultura
salazarista e, principalmente, identificar o funcionamento de alguns mecanismos de
articulação estatais que iluminariam hipóteses acerca de sua imensa longevidade e
eficácia no controle da sociedade.

A tomada do Poder de Estado não garante o reconhecimento geral da autoridade,


nem a hegemonia no uso dos Aparelhos de Estado. O poder é muito mais
complexo que a concentração do exercício das escolhas dos usos específicos dos
mecanismos estatais para determinado fim em sintonia com o interesse do grupo
que detém esse Poder de Estado. Para entender o poder em toda sua
complexidade é necessário avançar sobre suas estruturas, seus Aparelhos,
compreender como produzem repressão, mas também como produzem saberes,
tecnologia, prazer, desejos, relatos. É preciso captá-lo “em suas extremidades, em
suas últimas ramificações, lá onde ele se torna capilar” .

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CONCEITO: APARELHOS IDEOLÓGICOS DE ESTADO.
O Estado para o marxismo clássico – que compreende governo, administração,
forças armadas, polícia, tribunais, prisões – “é concebido explicitamente como
aparelho repressor” porque em suas práticas de dominação da ideologia burguesa
na sociedade é “sempre força de execução e de intervenção repressora” . O
horizonte político do marxismo clássico é a tomada do Poder de Estado pela classe
proletária e a transformação ideológica total desses aparelhos estatais, a reforma
completa desses aparelhos. Com tal reforma espera-se que não sejam mais
exclusivamente instrumentos de repressão da burguesia sobre a classe proletária,
e que passem a produzir em seus efeitos de poder e conteúdos socialistas.

No geral, os teóricos do marxismo clássico – Lênin, Trotsky, Luxemburgo, Gramsci,


por exemplo – articularam seu pensamento sobre o funcionamento do Estado com
uma agenda francamente revolucionária. Preocuparam-se com os termos da
transição de Estado burguês para Estado socialista e com as inúmeras e imensas
dificuldades dessa mudança. Dedicaram-se a pensar como seria esse Estado
proletário não mais como repressor, e quais os efeitos de poder que esse novo
Estado transitório deveria provocar na sociedade para produzir o novo sujeito
social, capaz de ser parte ativa dessa mudança de um poder em que existiria ainda
a forte figura do Estado para um poder comunista, uma sociedade comunista na
qual cada indivíduo é gestor igualitário de um poder repartido por todos. Os
teóricos do marxismo clássico, desse modo, pensaram os termos desse novo
contrato social em que o poder de cada um não fosse mais concentrado legalmente
por uma instituição gestora, como pensou Rousseau, e sim repartido por todos e
produzido por todos de forma igualitária e com efeitos de poder não opressores.

Dividindo com os marxistas clássicos todas essas preocupações, Gramsci aponta,


no entanto, para uma urgente necessidade teórica de desenvolver conceitos que
dêem conta dos aspectos do poder que escapam da clássica relação meramente
repressora dos aparelhos estatais com a sociedade. Outras estruturas assumem
aspectos que a repressão não alcança: a sociedade não acaba onde as
intervenções da polícia e do Exército terminam. A violência não é o único efeito de
poder que o Estado produz na sociedade. Gramsci é bem alusivo quanto ao que
são essas estruturas ao lado dos Aparelhos de Estado clássicos, mas aponta que
sua função essencial é criar um sistema de valores que facilite a conjugação

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sempre tensa entre Autoridade e Poder de Estado, e que torne os efeitos de poder
provocados pelas articulações dentro do Estado na sociedade culturalmente
aceitáveis. Não bastaria conquistar apenas o Poder de Estado, ponto inicial de
ação delimitado pelo marxismo clássico. Seria preciso, para Gramsci, articular
meios de garantir a hegemonia ideológica dentro do corpo do Estado criando um
sistema que aproxime todas as esferas de autoridade ao grupo que legalmente
detém o Poder de Estado. A tomada do Poder de Estado, que numa leitura
apressada do marxismo clássico é o horizonte primordial da luta revolucionária,
para Gramsci seria o ponto a partir do qual o exercício do poder se torna ainda
mais complexo porque passará a envolver certos aspectos do poder que escapam
da epidérmica relação repressora, mas que a alimentam e fazem parte dela
gerando outros efeitos de poder mais sutis que a justificam e legitimam. Seguindo
essa sugestão de Gramsci em seus ensaios sobre hegemonia, Louis Althusser irá
desenvolver uma revisão profunda na maneira clássica de organizar a estrutura
estatal.

Uma vez que o pensamento político moderno, com Marx, Lênin, Luxemburgo,
Gramsci, entre outros, se debruçou sobre os Aparelhos de Estado e seus efeitos
repressores para estabelecer os termos dos processos para modificar essa
repressão que produz uma vez que o grupo revolucionário estiver em posse do
Poder de Estado, o pensamento político mais contemporâneo, com Weber,
Althusser, Foucault, Canetti, Bobbio, entre outros, irá se ocupa com os mais tênues
e simbólicos efeitos dessas estruturas alusivas que exercem e produzem efeitos de
poder na sociedade de fora da esfera dos Aparelhos repressores de Estado
clássicos.

Para poder construir uma teoria do Estado, é indispensável levar em consideração


não só a distinção entre Poder de Estado (e seus detentores) e Aparelho de
Estado, mas também uma outra ‘realidade’ que se encontra, manifestadamente, do
lado do Aparelho Repressor de Estado, mas não se confunde com ele. São essas
estruturas que produzem saber e geram discursos, são elas que alimentam o
sistema político com os mais diversos conteúdos culturais necessários para
justificar o exercício do Poder de Estado nas mãos do grupo que o detém. São
essas estruturas que, com ações mais alusivas, invadem a própria intimidade dos
indivíduos tornando-os, através de sua incidência, sujeitos sociais coniventes com

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o sistema político. Althusser desenvolve, em um breve ensaio publicado no calor de
debates após a primavera de maio de 68 na polêmica revista La Pensée de junho
de 1970, uma radical e polêmica revisão das estruturas clássicas do pensamento
marxista.

O giro operado por Louis Althusser parece óbvio após quatro décadas, mas no
momento de sua publicação representou uma violentíssima ruptura com todo
pensamento de esquerda hegemônico da época. Ele criou todo um novo horizonte
para os debates sobre o Estado. Althusser classificou como Aparelho repressor de
Estado todas as instituições que o marxismo clássico reunia como Aparelhos de
Estado. Mas as estruturas difusas que Gramsci sugeriu como concomitantes aos
Aparelhos clássicos, sem nunca se confundirem com eles, Althusser nomeou de
Aparelhos ideológicos de Estado. Althusser desenvolveu uma persuasiva teoria
interrompida por sua morte precoce, mas reunida com toda sua teoria política no
livro póstumo Sobre a reprodução, de 1995. A imensa maioria dos trabalhos de
Althusser se ocupa de releituras dos clássicos da ciência política – principalmente
Maquiavel e Hobbes – , e mesmo que seu pensamento original ocupe tão poucas
páginas ele é ainda assim demasiado seminal e influente. Para essa dissertação,
no entanto, apenas alguns aspectos bem delimitados de sua teoria são pertinentes:
delimitar o que é cada um dos Aparelhos de Estado, seus objetivos e suas
principais ações no corpo da sociedade para servirem de suporte teórico para
estudar os diversos efeitos de poder produzidos por um regime ditatorial. Dessa
forma, tentar estabelecer algumas pontes e pressupostos para pensar a cultura
salazarista.

Os Aparelhos repressores de Estado possuem uma função muito específica: são


os elementos constitutivos do próprio Estado. São compostos por suas instituições
políticas e órgãos de segurança, os departamentos de governo que delimitam
conteúdos educacionais, os inúmeros tribunais de justiça. Todos os órgãos
estatais, grosso modo, são membros dos Aparelhos repressores de Estado (ARE).
Por outro lado, os órgãos de natureza privada são Aparelhos ideológicos de Estado
(AIE). Althusser lista os seguintes AIE: Escolar, Familiar, Religioso, da Informação,
Edição-Difusão, Cultural, Sindical e Político. Esses AIE podem ser tanto privados
individuais (editora ou jornal) como privados e coletivos (ordens religiosas ou
associações de pais, por exemplo). No corpo de cada Aparelho ideológico de

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Estado corresponde o que se chama de instituições e organizações. Althusser faz a
seguinte descrição dessa natureza plural:

Para o AIE escolar: as diferentes escolas, os diferentes graus, do Primário ao


Superior, os diferentes Institutos, etc. Para o AIE religioso: as diferentes Igrejas e
18 suas organizações especializadas (ex de juventude). Para o AIE político: o
Parlamento, os Partidos Políticos, etc. Para o AIE da Informação: a Imprensa (os
diferentes jornais ou Grupos de jornais, o canal de tevê estatal, e uma quantidade
de publicações e organizações). Para o AIE Familiar, todas as instituições que
dizem à Família, incluindo Associações de Pais de Alunos, etc. Para o AIE cultural,
todos os espetáculos, incluindo o esporte, assim como toda uma série de
instituições que têm, talvez, atividades em comum com o que designamos por AIE
da Edição.

Como se tornará claro, a ação de todos esses aparelhos é conjunta e coerente com
um sistema determinado, construído ao redor de uma Ideologia de Estado,
funcionam de forma integrada. Segundo Althusser, “todos os AIE, sejam eles quais
forem, concorrem para o mesmo resultado: a reprodução das relações de
produção”. Ou seja: reforçam esses aspectos de reprodução das relações de
produção, mas com articulações e estratégias menos epidérmicas como as
repressoras. Em qualquer sistema político todos esses diferentes AIE integram um
sistema, cuja finalidade é manter a coesão e coerência das práticas do poder e de
sua recepção na sociedade; numa ditadura, tão longa e profunda como o Estado
Novo Salazarista, esse sistema integrador é ainda mais organizado e amarrado, e
sua ação mais intensa e coercitiva.

A maior diferença entre as distintas práticas do Aparelho repressor do Estado e dos


Aparelhos ideológicos do Estado está no predomínio de certos efeitos específicos
no conjunto de seus efeitos produzidos na sociedade. Enquanto o ARE age
predominantemente pela repressão e secundariamente pela ideologia, os AIE
agem pela ideologização, apesar de também agirem pela violência mais alusiva,
em nível simbólico e disciplinar.

VISIBILIDADE DO APARELHO DO ESTADO


O Estado se torna visível através da ação do Aparelho repressor de Estado. Suas
estruturas dão um rosto ao poder, e é por suas práticas que a ação física do Poder

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de Estado, o corpo do Estado, fica evidenciado. A repressão é a esfera de ação
estatal mais destacável. No entanto, deve-se considerar que nenhum Poder se
mantém apenas pela dominação e repressão por um longo período. Como a
repressão sempre produz deformações ideológicas tanto no corpo do próprio ARE
quanto na sociedade, o custo de manutenção da hegemonia no uso do Poder de
Estado torna-se demasiado elevado se a repressão for a principal manifestação de
controle estatal. O poder, mesmo um poder ditatorial como o salazarista, precisa
produzir formas de agir na sociedade além da repressão direta nos corpos. É
capital, para a manutenção do poder, a construção dos mais diversos discursos e
saberes em redor desse mesmo poder. Necessita “inventar uma tecnologia que
assegure a irrigação dos efeitos do poder por todo o corpo social, até mesmo em
suas menores partículas”, que não passem sempre pela repressão e tortura. Para
um sistema alcançar uma hegemonia social, para que a resistência de certos
grupos da sociedade aos efeitos de poder que produz seja mínima e suportável, é
necessário que essa mesma sociedade veja esse sistema como viável. É nesse
processo de viabilização cultural do sistema ditatorial que surge, para o
Salazarismo, a urgência de utilizar todos os Aparelhos ideológicos de Estado de
forma integrada e coerente. É pela integração dos AIE a um sistema cultural
produtor de conteúdos articulados com a Ideologia de Estado salazaristas que o
Poder de Estado nas mãos do grupo de Salazar pôde construir uma essencial e
natural, como Althusser classifica os efeitos de ideologização hegemônicos no
corpo da sociedade, “missa ideológica perpétua” em redor de seus valores. O
Salazarismo esteve presente em todos os Aparelhos ideológicos de Estado. Não
apenas a Igreja Católica foi um dos seus braços mais forte e fiel. O Estado
salazarista foi eminentemente católico e usou os preceitos católicos e as estruturas
das igrejas para dar sentido moral às suas práticas políticas e para propagar suas
idéias. Também foi capital, para o Salazarismo, estabelecer de forma inegociável a
hegemonia da Ideologia de Estado, tanto no sistema escolar, principalmente nas
universidades, quanto na esfera da informação, pela censura a jornais e revistas e
no inteligente uso do rádio como instrumento de difusão direta de seu pensamento
junto à sociedade.

O Poder deve se explicar constantemente enquanto Poder de Estado e, para isso,


conta com os mais diversos e sofisticados instrumentos, aparelhos e saberes para

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produzir veracidade na ordem discursiva dessa sua explicação constante. Todo
esse movimento se organiza em redor do desejo de controlar as construções na
imaginação social daquilo que as condições de vida da sociedade portuguesa
representa. A partir da definição de Althusser de Ideologia como “representação da
relação imaginária dos indivíduos com as suas condições reais de existência, pode-
se afirmar que o Estado salazarista não agiu apenas nos corpos, na ação
disciplinar sobre os corpos, mas atuou também nessa relação eminentemente
fictícia que transforma o indivíduo em sujeito social, estabelecendo quais são os
termos das condições reais de existência desses sujeitos, dessas condições
materiais que os cercam, dentro de um sistema em conjunção com a Ideologia de
Estado Salazarista. Althusser indica que a Ideologia de Estado “reagrupa um certo
número de temas importantes, extraídos dos diferentes domínios da ideologia
(religiosa, jurídica, moral, política etc), em um sistema que resume os valores
essenciais de quem tem necessidade a dominação. E são exatamente esses
valores que os inúmeros processos de ideologização dos Aparelhos ideológicos de
Estado difundem. Controlar as mentalidades e como essas mentalidades se
relacionam com seu próprio corpo e as instituições ao seu redor foi a ambição
salazarista. Dessa forma, a continuidade da cultura salazarista depende não
exclusivamente de um sistema cultural que produza os conteúdos e produtos
culturais necessários à formação e consolidação dessa própria cultura, mas
também precisa produzir com eficácia as próprias condições de produção desses
conteúdos e produtos culturais. Precisa fazer com que essas condições de
produção se expandam por toda sociedade e se adaptem às conjunturas diversas
surgidas no âmago da própria sociedade que alimenta com conteúdos essenciais
para sua reprodução. Assim, o exercício do Poder de Estado Salazarista se torna
um conjunto complexo de articulações institucionais que não produzem, na sua
prática política cotidiana, apenas repressão. O Poder, mesmo em um sistema
ditatorial, deve produzir efeitos de maior sutileza para que se justifique. Deve ainda
investir em estratégias menos desgastantes para seu exercício, como o olhar
vigilante, a ideologização pelo lazer e esporte, as ficções estatais, e investir
também numa imagem que seja consumida culturalmente e se propague pela
trama social por meio da veiculação de filmes, quadros, peças e livros. A questão é
que, no caso do Salazarismo, a incidência de sua ação ao longo de um período tão
longo só poderia ser onerosa para o exercício desse Poder. E são justamente as

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conseqüências do acúmulo de todos esses processos, do desgaste acumulado por
esse processo contínuo e por mais de três décadas, em 1960.

O ESTADO COMO NARRADOR


O Estado produz incessantemente efeitos de poder no corpo da sociedade, nem
todos são repressores e coercitivos, pois alguns pertencentes à inesperada esfera
da sedução. O Poder envolve os indivíduos na sua litania e é capaz de transformar,
pelo seu assédio e insistência, por diversas pormenorizadas estratégias narrativas
e de circulação de seus valores culturais, sua calculada missa ideológica num
mantra fundamental à permanência e existência cotidiana de seus efeitos na
sociedade: os valores salazaristas como música interior embalando os sentidos das
ações sociais; um encontro do português comum com o mítico Portugal profundo; o
Estado Novo como ponta de lança de um Império Ultramarino. A mesma mão
pesada que no sigilo espanca, flagela e desmantela os núcleos ocultos da
sociedade, pelo afago de sua litania e missa ideológica também conquista o apoio
da sociedade, torna-se importante e essencial para manutenção de sua saúde e
ordem. As escolas ensinam os sacrifícios de sua necessária “missão redentora”, as
Igrejas abençoam Salazar em suas missas e festividades, os fados oficiais
constroem a imagem do Português melancólico e os discursos proferidos nas
difusões radiofônicas inspiram tempos melhores e orgulho. Estes são os espaços
em que o Estado produz seus envolventes efeitos narrativos de sedução,
estabelecendo os limites de circulação de seus relatos e fomentando a incidência
amena e discreta de seus conteúdos ideológicos.

O poder que não gere crença, o poder que não possua carisma e que não trabalhe
com o emocional da sociedade, não sobrevive nem se mantém. “O Estado é uma
máquina de produzir crenças”, afirma o crítico argentino Ricardo Piglia. Ele
“necessita construir consenso, necessita construir histórias, gerar crença na
veracidade de certas versões dos acontecimentos”. O Poder necessita instituir
personagens próprios que existam e circulem pelos relatos sociais e, assim, a partir
desses núcleos simbólicos construídos, consiga entranhar seus efeitos e se
ramificar em uma parcela significativa do imaginário nacional. Para favorecer seu
pleno exercício político, o Estado necessita criar espaços para que os conteúdos
de sua Ideologia de Estado dialoguem abertamente com os desejos da sociedade e
com suas demandas cifradas nas narrativas sociais.

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que eles também lêem a sociedade. Lêem os relatos que lhes chegam e tudo que
acontece ao seu redor a partir da contaminação de uma narrativa estatal
persecutória, cujo assédio incessante e invisível da PIDE é o elemento deformador
e perturbante central. Todo ambiente social descrito no romance – as ruas de
Lisboa, as leitarias e bares, os corredores escuros da Judiciária, o apartamento
atulhado de papéis e fotos de Elias – organiza-se em redor das deformações
imaginárias do conflito velado e impreciso entre visibilidade e invisibilidade,
provocado tanto pela ausência física da PIDE na trama, quanto pela asfixiante
presença cultural desse olhar vigilante construído pelo poder. Os núcleos ocultos
da sociedade, como a Casa da Vereda, são tencionados constantemente por uma
ameaça sorrateira que nunca chega, mas que na imaginação das personagens
está sempre espreitando, sempre pendente em sua ação violenta. A investigação
de Elias, meticulosa e detalhista, sofre o risco constante e sempre iminente de ser
interrompida pela ação da PIDE no momento impreciso que ela considerar mais
conveniente para assumir o caso. Otero sente constante pavor pelas
conseqüências de um escândalo que as notícias veiculadas nos jornais sobre o
assassinato do major Dantas possam provocar na sua trajetória política dentro da
polícia. E Mena é presa e encarcerada sem que a sociedade e seus parentes
saibam que está sob custódia e interrogatório da Judiciária. Todos esses olhares
têm experiências diferentes e formas peculiares e intensidades próprias, mas cada
um deles está contaminado pela onipresente narrativa persecutória estatal. Todas
as personagens estão reagindo, lendo e especulando, no corpo das narrativas que
circulam em seu redor e que fluem na trama de relatos de que fazem parte, cifras
dessa ameaça sempre preste a lhes cair em cima.

OS EFEITOS POSITIVOS DO PODER


É praticamente impossível pensar um sistema ditatorial pela ótica de seus efeitos
positivos porque demanda um delicado esforço de construção de um espaço
teórico carregado de sutis ambigüidades. Todos os traumas provocados pela
repressão, as suas perseguições, abusos e ingerências, em retrospecto, são
demasiado epidérmicos e nevrálgicos para que qualquer visada e abordagem, que
não os coloquem em relevo como foco principal de debates e pensamento crítico,
não seja tomada, pelas testemunhas e vítimas diretas dessa violência, como uma
condenável apropriação antiética de uma memória coletiva e passado político

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radicalmente imputado à vida dos que sobreviveram. Em um momento pós-
ditatorial, quando se levantam as coxias antes impenetráveis e todos os
mecanismos de Poder ficam expostos, os calabouços sombrios do Aparelho
repressor de Estado, todas as sobras da materialidade de suas práticas políticas,
despojadas à luz do olhar do historiador e intelectual, tornam-se demasiado ativas
e visíveis para não tomá-las como o eixo central do investimento do sistema
político ditatorial, como o efeito principal e capital da ação totalitária do Poder de
Estado antidemocrático. A queda de um Estado ditatorial sempre traz à superfície
um agitado aluvião de relatos tenebrosos de tortura e violência e, na compilação
dessas narrativas testemunhais, não há maior efeito persuasivo de verdade que a
força moral da cicatriz. Assim como, suportar a tortura até o seu limite traz
veracidade ao relato do suplicado na lógica da legalidade penal em um Estado
ditatorial, essas mesmas marcas e cicatrizes trazem, numa situação democrática,
uma forte qualidade de autoridade de discurso para as vozes dessas vítimas: quem
sobreviveu tem a sabedoria dos fatos em si, e é detentor legítimo e inquestionável
da verdade.

Essa é uma questão crítica e delicada porque nenhum sistema político que não
possua e produza tecnologia sofisticada ao lado de seu ARE conseguiria manter,
por quatro décadas, o mesmo sistema político, como ocorreu com o Estado Novo
salazarista. O discurso testemunhal, construído apenas ao redor da cicatriz, não
leva em conta alguns dos processos mais profundos da violência de 35 um Estado
de exceção: a incessante e, muitas vezes, sutil coerção ideológica diária no interior
dos próprios espaços da intimidade. Quando a crítica ao sistema totalitário, em
retrospecto, se prende somente à face anônima do carrasco, articula-se apenas em
redor do símbolo mais emblemático de todo processo, ela confunde o funcionário
que coloca sua força de trabalho à disposição de movimentar a tecnologia de
tortura com o próprio produtor dessa tecnologia de tortura. No entanto, a face mais
perturbadora do passado político ditatorial não é anônima. Essa face está nas
repartições públicas, nos inspetores dos corredores dos colégios, na voz dos
locutores dos programas de rádio, nos padres em altares de igrejas consagrando
missas. Essa face perturbadora ocupa a tranqüilidade amena dos espaços
públicos, preenche todos seus mais ingênuos recantos. As marcas do poder
ditatorial estão gravadas e sulcadas nos rostos dos sujeitos sociais, incorporados

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ao sistema político pelas cadências envolventes da intermitente missa ideológica
estatal. São produtores, muitas vezes inconscientes, de seus valores, conteúdos e
efeitos de poder; fomentadores da permanência e do aprofundamento progressivos
na própria trama social de sua cultura. O poder é um fenômeno sempre mais
complexo e amplo que o grafismo da tortura infligida, e sua essência deve ser
buscada além da apreciação isolada da cicatriz que esse golpe desferido marcou
nos corpos dos sobreviventes.

A repressão, ao contrário do se pensa, caso não leve o torturado à morte, produzirá


efeitos de grande desgaste no constante combate pela hegemonia cultural e
ideológica. Numa situação política ditatorial como a salazarista, qualquer tortura
aplicada radicaliza ainda mais no esquema ideológico do sobrevivente a sua
posição contrária ao governo. O contato do opositor com o governo, com a face
oculta do Poder, dá corporeidade a esse sistema combatido. A tortura gera,
inclusive, a possibilidade de uma forte articulação de sujeitos onde antes só existia
dispersão pelo efeito paranóico da cultura persecutória. Os capturados pela PIDE
que voltam à sociedade se encontram na cicatriz e na memória do trauma. Essas
marcas da violência que trazem no corpo são, por si, fortes elementos de
articulação entre indivíduos que antes possuíam agendas de ações em oposição
ao governo salazarista distintas e inclusive, em muitos casos, até mesmo
antagônicas. Assim como no próprio corpo do Estado trava-se um permanente
combate interno para que o grupo que detém o Poder de Estado 36 mantenha sua
hegemonia política, nos movimentos clandestinos revolucionários existe uma luta,
também de hegemonia ideológica, para definir o melhor processo de tomada do
Poder de Estado. A cicatriz dilui essas diferenças e estreita as distâncias, abrindo
assim espaço para insuspeitadas articulações que não surgiriam e nem se
fundamentariam sem sua incômoda presença, criando laços e gerando
comunidades onde só existia dispersão e fuga paranóica. O Estado ditatorial que
não operar sua Economia de Verdade com inteligência e sofisticação não poderá
durar por um longo período pelo desgaste progressivo de sua legitimidade. Esse é
um dos motivos para que no romance Balada da Praia dos Cães, uma narrativa
que se constrói a partir do pavor e paranóia e que tem como uma de suas
consciências centrais o olhar implicado de um membro de destaque da polícia
judiciária, a PIDE ser invisível. É um romance agressivo sobre a voracidade da

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violência totalitária em que o personagem, cuja visão de mundo conduz a trama,
membro direto e sem crise do governo, não desfere qualquer golpe de tortura. Uma
narrativa na qual a grande força motora dos sentimentos e angústias das
personagens, que se faz presente nos temores e surtos de autodestruição, não
aparece corporificada uma única vez. José Cardoso Pires constrói Balada tendo
em mente justamente esse não tão evidente e discernível aspecto essencial da
economia da vigilância repressiva. Sempre que ela escapa de sua invisibilidade, a
ação repressora gera, em conseqüência, um desgaste do exercício do Poder de
Estado. E esse desgaste pode, em cadeia, ser crescente e escalonado conforme
caso essa ação repressora se torne freqüente e fora de controle.

O poder de Estado é mais eficaz, capilar e efetivo, e atinge com mais profundidade
os núcleos ocultos da trama social, quando concentrado em sua ação coercitiva de
ideologização, imputada através das inúmeras instituições que compõem os
Aparelhos ideológicos de Estado. Notadamente, o escolar, que garante “a
distribuição dos sujeitos que falam nos diferentes tipos de discursos e a
apropriação dos discursos por certas categorias de sujeitos”. Ou seja, o AIE
escolar, pelos seus diversos programas curriculares, fomenta diretamente e por um
longo período a Ideologia de Estado na fatia populacional mais jovem e
influenciável. Nas universidades, principalmente, a ideologização garante a
“distribuição dos sujeitos que falam nos diferentes tipos de discursos e a
apropriação dos discursos por certas categorias de sujeitos”, incidindo diretamente
nas mentalidades. Dessa forma, é um processo que prepara os futuros funcionários
que alimentarão os quadros nos AIE e produzirão saberes, discursos e tecnologia
para própria fomentação e reprodução da cultura salazarista.

Dessa forma, a maneira como se aborda criticamente os efeitos de poder numa


perspectiva pós-ditatorial deve ir além da catalogação testemunhal de sua ação
diretamente repressora. Isto porque os maiores efeitos coercitivos produzidos por
esse mesmo poder de Estado totalitário estão nos sentidos e conteúdos
ideológicos que as narrativas e discursos do Poder constroem nas representações
imaginárias dos sujeitos sociais com suas próprias condições de existência. O
poder não se resume a um conjunto de leis, não se concentra apenas em seus
Aparelhos repressores de Estado, não se alimenta somente dos efeitos dos
Aparelhos ideológicos de Estado. O poder é “mais complicado, denso e difuso”. O

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poder é corporal, notadamente espacializante e disciplinar. Ele cria um sistema,
uma cultura. Funciona e opera de forma integrada, como uma máquina que
“circunscreve todo mundo, tanto aqueles que exercem o poder quanto aqueles
sobre os quais o poder se exerce”. O processo de ideologização atinge tanto a
sociedade quanto os próprios membros dos Aparelhos de Estado. O mesmo poder
incidente e coercitivo que afeta, deforma e disciplina os indivíduos na sociedade,
atinge aqueles que o exercem. Sua capilaridade, circulação e estrutura produzem
efeitos de poder em todos os sujeitos sociais que vivem dentro do espaço de
atuação do ARE, inclusive aqueles que são funcionários efetivos do Estado, os
próprios agentes repressores do Estado, e também seus intelectuais e técnicos.
Assim, o poder deve ser pensado em sua competência holística, na sua ação total
dentro do sistema político. “circunscreve todo mundo, tanto aqueles que exercem o
poder quanto aqueles sobre os quais o poder se exerce”. O processo de
ideologização atinge tanto a sociedade quanto os próprios membros dos Aparelhos
de Estado. O mesmo poder incidente e coercitivo que afeta, deforma e disciplina os
indivíduos na sociedade, atinge aqueles que o exercem. Sua capilaridade,
circulação e estrutura produzem efeitos de poder em todos os sujeitos sociais que
vivem dentro do espaço de atuação do ARE, inclusive aqueles que são
funcionários efetivos do Estado, os próprios agentes repressores do Estado, e
também seus intelectuais e técnicos. Assim, o poder deve ser pensado em sua
competência holística, na sua ação total dentro do sistema político.

No caso de uma ditadura militar como a salazarista, a gestão dessa Economia do


Poder deve se tornar ainda mais sofisticada e complexa para que consiga atingir
uma pouco onerosa integração e incidência efetiva dos efeitos de seu poder na
sociedade. Quanto maior e mais concentrado o Poder de Estado concentrados nas
mãos de determinado grupo, mais bem construídas devem ser suas estratégias
narrativas para justificar e explicar esse poder nas mãos do grupo que o detém.
São justamente nos pontos em que seus discursos não produzem os efeitos
esperados que a repressão atua. Mas já se tornou bastante evidente que o
investimento estatal no aspecto repressor do poder é o mais oneroso e menos
efetivo para um sistema que ambiciona se manter por longo período de tempo de
forma antidemocrática, porque gera um desgaste ao próprio Poder de Estado e
intervém na trama de relatos e na imaginação social de uma forma que apenas

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gera um custoso escalonamento da violência. A força do poder está na “lógica de
estratégias que se opõem umas às outras”38, na lógica de sua articulação ao redor
da eficácia coercitiva de seu discurso nos próprios saberes e relatos produzidos
pela sociedade, na incidência de seu saber sobre a imaginação social.

CONCLUSÃO

No entanto, essa Economia do Poder está sempre em mudança e se adequando


aos conteúdos novos que a sociedade produz longe da sua esfera de influência. No
caso do Estado Novo português, a incidência de três décadas de seus efeitos de
poder, no momento em que transcorre Balada da Praia dos Cães, o processo
contínuo e incessante de ideologização por meio dos AIE, o acúmulo de
intervenções da PIDE no corpo social, a gestão estatal da malha de relatos, a
projeção ininterrupta da veiculação da mitologia salazarista, o rosto de Salazar
reproduzido em todas as repartições públicas e escolas, a própria degeneração da
cultura portuguesa, sitiada e autopersecutória, asfixiada na sua intimidade,
disciplinada em seu discurso, só poderiam gerar a atmosfera prisional.

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REFERENCIA BIBLIOGRAFICAS

FOUCAULT, Michel. “Poder – Corpo”. In: Microfísica do Poder. São Paulo: Graal
Edições, 2006. p. 150.

https://www.maxwell.vrac.puc-rio.br/13050/13050_3.PDF

https://edisciplinas.usp.br/mod/resource/view.php?id=3327562

https://revistas.pucsp.br/index.php/ls/article/download/25745/18380/67155

http://www.ia.ufrrj.br/ppgea/conteudo/conteudo-2007/T1-3SF/Suemy/Apar_Ideol.pdf

https://ria.ufrn.br/handle/123456789/1649

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ÍNDICE
Introdução...............................................................................................................................1
conceito: aparelhos ideológicos de estado.............................................................................2
visibilidade do aparelho do estado.........................................................................................5
o estado como narrador.........................................................................................................8
os efeitos positivos do poder..................................................................................................9
conclusão.............................................................................................................................14
referencia bibliograficas........................................................................................................15

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