Pec05 Aula 1 Leitura 1

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Ideias de Canário, conto de Machado de Assis

U m homem dado a estudos de ornitologia, por nome Macedo, referiu a


alguns amigos um caso tão extraordinário que ninguém lhe deu crédito. Alguns
chegam a supor que Macedo virou o juízo. Eis aqui o resumo da narração.
No princípio do mês passado, — disse ele, — indo por uma rua, sucedeu que um
tílburi [carro de duas rodas com tração animal] à disparada quase me atirou ao
chão. Escapei saltando para dentro de uma loja de belchior [loja de objetos
usados]. Nem o estrépito do cavalo e do veículo, nem a minha entrada fez levantar
o dono do negócio, que cochilava ao fundo, sentado numa cadeira de abrir. Era
um frangalho de homem, barba cor de palha suja, a cabeça enfiada em um gorro
esfarrapado, que provavelmente não achara comprador. Não se adivinhava nele
nenhuma história, como podiam ter alguns dos objetos que vendia, nem se lhe
sentia a tristeza austera e desenganada das vidas que foram vidas.
A loja era escura, atulhada das cousas velhas, tortas, rotas, enxovalhadas,
enferrujadas que de ordinário se acham em tais casas, tudo naquela meia
desordem própria do negócio. Essa mistura, posto que banal, era
interessante. Panelas sem tampa, tampas sem panela, botões, sapatos,
fechaduras, uma saia preta, chapéus de palha e de pelo, caixilhos, binóculos,
meias casacas, um florete, um cão empalhado, um par de chinelas, luvas, vasos
sem nome, dragonas, uma bolsa de veludo, dois cabides, um bodoque, um
termômetro, cadeiras, um retrato litografado pelo finado Sisson, um gamão, duas
máscaras de arame para o carnaval que há de vir, tudo isso e o mais que não vi
ou não me ficou de memória, enchia a loja mas imediações da porta, encostado,
pendurado ou exposto em caixas de vidro, igualmente velhas. Lá para dentro,
havia outras coisas mais e muitas, e do mesmo aspecto, dominando os objetos
grandes, cômodas, cadeiras, camas, uns por cima dos outros, perdidos na
escuridão.
Ia a sair quando vi uma gaiola pendurada da porta. Tão velha como o resto, para
ter o mesmo aspecto da desolação geral, faltava-lhe estar vazia. Não estava
vazia. Dentro pulava um canário. A cor, a animação e a graça do passarinho
davam àquele amontoado de destroços uma nota de vida e de mocidade. Era o
último passageiro de algum naufrágio, que ali foi parar íntegro e alegre como
dantes. Logo que olhei para ele, entrou a saltar mais abaixo e acima de poleiro em
poleiro, como se quisesse dizer que no meio daquele cemitério brincava um raio
de sol. Não atribuo essa imagem ao canário, senão porque falo a gente retórica;
em verdade, ele não pensou em cemitério nem sol, segundo me disse depois. Eu,
de envolta com o prazer que me trouxe aquela vista, senti-me indignado do
destino do pássaro, e murmurei baixinho palavras de azedume.
— Quem seria o dono execrável deste bichinho, que teve ânimo de se desfazer
dele por alguns pares de níqueis? Ou que mão indiferente, não querendo guardar
esse companheiro de dono defunto, o deu de graça a algum pequeno, que o
vendeu para ir jogar uma quiniela [jogo de sorte em que se tenta prever o
resultado de jogos de futebol]?
E o canário, quedando-se em cima do poleiro, trilou isto:
— Quem quer que sejas tu, certamente não estás em teu juízo. Não tive dono
execrável, nem fui dado a nenhum menino que me vendesse. São imaginações
de pessoa doente; vai-te curar, amigo...
— Como — interrompi eu, sem ter tempo de ficar espantado. — Então o teu dono
não te vendeu a esta casa? Não foi a miséria ou a ociosidade que te trouxe a este
cemitério, como um raio de sol?
— Não sei que seja sol nem cemitério. Se os canários que tens visto usam do
primeiro desses nomes, tanto melhor, porque é bonito, mas estou que confundes.
— Perdão, mas tu não vieste para aqui à toa, sem ninguém, salvo se o teu dono
foi sempre aquele homem que ali está sentado.
— Que dono? Esse homem que aí está é meu criado, dá-me água e comida
todos os dias, com tal regularidade que eu, se devesse pagar-lhe os serviços, não
seria com pouco; mas os canários não pagam criados. Em verdade, se o mundo
é propriedade dos canários, seria extravagante que eles pagassem o que
está no mundo.
Pasmado das respostas, não sabia que mais admirar, se a linguagem, se as
ideias. A linguagem, posto me entrasse pelo ouvido como de gente, saía do bicho
em trilos engraçados. Olhei em volta de mim, para verificar se estava acordado; a
rua era a mesma, a loja era a mesma loja escura, triste e úmida. O canário,
movendo a um lado e outro, esperava que eu lhe falasse. Perguntei-lhe então se
tinha saudades do espaço azul e infinito...
— Mas, caro homem — trilou o canário —, que quer dizer espaço azul e infinito?
— Mas, perdão, que pensas deste mundo? Que cousa é o mundo?
— O mundo — redarguiu o canário com certo ar de professor —, o mundo é uma
loja de belchior, com uma pequena gaiola de taquara, quadrilonga, pendente de
um prego; o canário é senhor da gaiola que habita e da loja que o cerca. Fora daí,
tudo é ilusão e mentira.
Nisto acordou o velho, e veio a mim arrastando os pés. Perguntou-me se queria
comprar o canário. Indaguei se o adquirira, como o resto dos objetos que vendia, e
soube que sim, que o comprara a um barbeiro, acompanhado de uma coleção de
navalhas.
— As navalhas estão em muito bom uso — concluiu ele.
— Quero só o canário.
Paguei-lhe o preço, mandei comprar uma gaiola vasta, circular, de madeira e
arame, pintada de branco, e ordenei que a pusessem na varanda da minha casa,
donde o passarinho podia ver o jardim, o repuxo e um pouco do céu azul.
Era meu intuito fazer um longo estudo do fenômeno, sem dizer nada a
ninguém, até poder assombrar o século com a minha extraordinária descoberta.
Comecei por alfabetar a língua do canário, por estudar-lhe a estrutura, as relações
com a música, os sentimentos estéticos do bicho, as suas ideias e reminiscências.
Feita essa análise filológica e psicológica, entrei propriamente na história dos
canários, na origem deles, primeiros séculos, geologia e flora das ilhas Canárias,
se ele tinha conhecimento da navegação, etc. Conversávamos longas horas, eu
escrevendo as notas, ele esperando, saltando, trilando.
Não tendo mais família que dois criados, ordenava-lhes que não me
interrompessem, ainda por motivo de alguma carta ou telegrama urgente, ou visita
de importância. Sabendo ambos das minhas ocupações científicas, acharam
natural a ordem, e não suspeitaram que o canário e eu nos entendíamos.
Não é mister dizer que dormia pouco, acordava duas e três vezes por noite,
passeava à toa, sentia-me com febre. Afinal tornava ao trabalho, para reler,
acrescentar, emendar. Retifiquei mais de uma observação — ou por havê-la
entendido mal, ou porque ele não a tivesse expresso claramente. A definição do
mundo foi uma delas. Três semanas depois da entrada do canário em minha
casa, pedi-lhe que me repetisse a definição do mundo.
— O mundo, respondeu ele, é um jardim assaz largo com repuxo no meio, flores e
arbustos, alguma grama, ar claro e um pouco de azul por cima; o canário, dono do
mundo, habita uma gaiola vasta, branca e circular, donde mira o resto. Tudo o
mais é ilusão e mentira.
Também a linguagem sofreu algumas retificações, e certas conclusões, que me
tinham parecido simples, vi que eram temerárias. Não podia ainda escrever a
memória que havia de mandar ao Museu Nacional, ao Instituto Histórico e às
universidades alemãs, não porque faltasse matéria, mas para acumular primeiro
todas as observações e ratificá-las. Nos últimos dias, não saía de casa, não
respondia a cartas, não quis saber de amigos nem parentes. Todo eu era
canário. De manhã, um dos criados tinha a seu cargo limpar a gaiola e por-lhe
água e comida. O passarinho não lhe dizia nada, como se soubesse que a esse
homem faltava qualquer preparo científico. Também o serviço era o mais sumário
do mundo; o criado não era amador de pássaros.
Um sábado amanheci enfermo, a cabeça e a espinha doíam-me. O médico
ordenou absoluto repouso; era excesso de estudo, não devia ler nem pensar, não
devia saber sequer o que se passava na cidade e no mundo. Assim fiquei cinco
dias; no sexto levantei-me, e só então soube que o canário, estando o criado a
tratar dele, fugira da gaiola. O meu primeiro gesto foi para esganar o criado; a
indignação sufocou-me, caí na cadeira, sem voz, tonto. O culpado defendeu-se,
jurou que tivera cuidado, o passarinho é que fugira por astuto...
— Mas não o procuraram?
— Procuramos, sim, senhor; a princípio trepou ao telhado, trepei também, ele
fugiu, foi para uma árvore, depois escondeu-se não sei onde. Tenho indagado
desde ontem, perguntei aos vizinhos, aos chacareiros, ninguém sabe nada.
Padeci muito; felizmente, a fadiga estava passada, e com algumas horas pude
sair à varanda e ao jardim. Nem sombra de canário. Indaguei, corri, anunciei, e
nada. Tinha já recolhido as notas para compor a memória, ainda que truncada e
incompleta, quando me sucedeu visitar um amigo, que ocupa uma das mais belas
e grandes chácaras dos arrabaldes. Passeávamos nela antes de jantar, quando
ouvi trilar esta pergunta:
— Viva, Sr. Macedo, por onde tem andado que desapareceu?
Era o canário; estava no galho de uma árvore. Imaginem como fiquei, e o que lhe
disse. O meu amigo cuidou que eu estivesse doudo; mas que me importavam
cuidados de amigos? Falei ao canário com ternura, pedi-lhe que viesse continuar
a conversação, naquele nosso mundo composto de um jardim e repuxo, varanda e
gaiola branca e circular...
— Que jardim? — perguntou ele. — Que repuxo?
— O mundo, meu querido.
— Que mundo? Tu não perdes os maus costumes de professor. O mundo —
concluiu solenemente — é um espaço infinito e azul, com o sol por cima.
Indignado, retorqui-lhe que, se eu lhe desse crédito, o mundo era tudo; até já
fora uma loja de belchior...
— De belchior? — trilou ele às bandeiras despregadas. — Mas há mesmo lojas de
belchior?

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