Borges Utopia de Um Homem
Borges Utopia de Um Homem
Borges Utopia de Um Homem
Quevedo
Não há dois cerros iguais, mas em qualquer lugar da terra a planícia é só uma e a mesma. Eu ia
por um caminho da planície. Perguntei-me sem muita curiosidade se estava em Oklahoma ou
Texas ou na região que os literatos chamam o pampa. Nem à direita nem à esquerda vi uma
cerca. Como outras vezes repeti devagar estas linhas, de Emilio Oribe:
Em meio à pânica* planície interminável. E próximo ao Brasil, que vai crescendo e agrandando-
se.
O caminho era desparelho. Começou a cair a chuva. A uns duzentos ou trezentos metros vi a
luz de uma casa. Era baixa e retangular e cercada de árvores. Abriu-me a porta um homem tão
alto que quase me deu medo. Estava vestido de cinza. Senti que esperava alguém. Não havia
fechadura na porta. Entramos em uma peça grande com as paredes de madeira. Pendia do
teto uma lâmpada de luz amarelenta. Estranhei a mesa, por alguma razão. Na mesa havia uma
clepsidra, a primeira que vi, além de uma gravura em aço. O homem me indicou uma das
cadeiras.
Ensaiei diversos idiomas e não nos entendemos. Quando ele falou, o fez em latim. Juntei
minhas já remotas memórias de secundarista e preparei-me para o diálogo.
-Pela roupa -disse-me-, vejo que chegas de outro século. A diversidade das línguas favorecia a
diversidade dos povos e das guerras; a terra regressou ao latim. Há os que temem que volte a
se degenerar em francês, em limosino ou em papiamento, mas o risco não é imediato. Aliás,
nem o que foi nem o que será me interessam.
Atravessamos um corredor com portas laterais, que dava para uma pequena cozinha onde
tudo era de metal. Voltamos com a janta em uma bandeja: tigelas com flocos de milho, um
cacho de uvas, uma fruta desconhecida cujo sabor me lembrou o do figo, e uma grande jarra
de água. Acho que não havia pão. Os traços de meu anfitrião eram agudos e havia algo de
singular em seus olhos. Não esquecerei este rosto severo e pálido que não voltarei a ver. Não
gesticulava ao falar.
-Não -replicou-me-, tais visitas ocorrem de século em século. Não duram muito; o mais tardar
estarás amanhã em tua casa.
-Sou Eudoro Acevedo. Nasci em 1897, na cidade de Buenos Aires. Tenho já setenta anos. Sou
professor de literatura inglesa e americana e escritor de contos fantásticos.
-Lembro de ter lido sem desagrado -respondeu-me- dois contos fantásticos. As Viagens do
Capitão Lemuel Gulliver, que muitos consideram verídicas, e a Suma Teológica. Mas não
falemos de fatos. Ninguém mais importa-se com os fatos. São meros pontos de partida para a
invenção e o raciocínio. Nas escolas ensinam-nos a dúvida e a arte do esquecimento. Antes de
tudo o esquecimento do pessoal e do local. Vivemos no tempo, que é sucessivo, mas tratamos
de viver sub specie aeternitatis. Do passado restam-nos alguns nomes, que a linguagem tende
a esquecer. Eludimos as precisões inúteis. Não há cronologia nem história. Não há estatísticas,
tampouco. Disseste que te chamas Eudoro; eu não posso dizer-te como me chamo, porque me
dizem alguém.
-Não se chamava.
Em uma das paredes vi uma estante. Abri um volume ao acaso; as letras eram claras e
indecifráveis e traçadas à mão. Suas linhas angulares me recordaram o alfabeto rúnico, que, no
entanto, só se empregou para a escritura epigráfica. Pensei que os homens do porvir não só
eram mais altos senão mais destros. Instintivamente olhei os dedos longos e finos do homem.
Este disse-me:
-É um livro impresso. Em casa há mais de dois mil, ainda que não tão antigos nem tão
preciosos.
O outro riu.
-Ninguém pode ler dois mil livros. Nos quatro séculos que vivo não devo ter passado de uma
meia dezena. Além disso, não importa ler senão reler. A imprensa, agora abolida, foi um dos
piores males do homem, já que tendia a multiplicar vertiginosamente textos desnecessários.
-No meu curioso passado -respondi-, prevalecia a superstição de que entre cada tarde e cada
manhã ocorrem fatos que é uma vergonha ignorar. O planeta estava povoado de espectros
coletivos, o Canadá, o Brasil, o Congo Suíço e o Mercado Comum. Quase ninguém sabia a
história prévia destes entes platônicos, mas sim os mais ínfimos pormenores do último
congresso de pedagogos, a iminente ruptura de relações e as mensagens que os presidentes
enviavam, elaboradas pelo secretário do secretário com a prudente imprecisão que era
própria do gênero.
Tudo isto lia-se para o esquecimento, porque em poucas horas seria apagado por outras
trivialidades. De todas as funções, a do político era sem dúvida a mais pública. Um embaixador
ou um ministro era um tipo de aleijado que era preciso trasladar em veículos grandes e
barulhentos, cercado de ciclistas e granadeiros e aguardado por ansiosos fotógrafos. Parece
que lhes cortaram os pés, dizia minha mãe. As imagens e a letra impressa eram mais reais que
as coisas. Só o publicado era verdadeiro. Esse est percipi (ser é ser retratado) era o princípio, o
meio e o fim de nosso singular conceito de mundo. No passado que me foi incumbido, as
pessoas eram ingênuas; acreditavam que uma mercadoria era boa porque assim afirmava e
repetia seu próprio fabricante. Também eram freqüentes os roubos, ainda que ninguém
ignorasse que a posse de dinheiro não trazia maior felicidade nem maior quietude.
-Dinheiro? -repetiu-. Já não há quem padeça de pobreza, que seria insuportável, nem de
riqueza, que seria a forma mais incômoda de vulgaridade. Cada qual exerce um ofício.
-Tampouco há cidades. A julgar pelas ruínas de Bahía Blanca, que tive a curiosidade de
explorar, não perdemos muito. Já que não há posses, não há heranças. Quando o homem
amadurece aos cem anos, está pronto para enfrentar a si mesmo e à sua solidão. Já engendrou
um filho.
-Sim. Um só. Não convém fomentar o gênero humano. Há quem pense que é um órgão da
divindade para ter consciência do universo, mas ninguém sabe com certeza se há tal
divindade. Creio que agora se discutem as vantagens e desvantagens de um suicídio gradual ou
simultâneo de todos os homens do mundo. Mas voltemos ao assunto.
Assenti.
-Aos cem anos, o indivíduo pode prescindir do amor e da amizade. Os males e a morte
involuntária não o ameaçam. Exerce alguma das artes, a filosofia, a matemática ou joga um
xadrez solitário. Quando quer, se mata. Dono o homem de sua vida, também o é de sua morte.
-Certamente. Não nos restam mais que citações. A língua é um sistema de citações.
-Há séculos renunciamos a estes traslados, que foram certamente admiráveis. Nunca pudemos
evadir-nos do aqui e agora.
-Afinal, toda viagem é espacial. Ir de um planeta a outro é como ir à granja em frente. Quando
o senhor entrou neste quarto estava executando uma viagem espacial.
-Neste caso, cada qual deve ser seu próprio Bernard Shaw, seu próprio Jesus Cristo e seu
próprio Arquimedes.
-Construí esta casa, que é igual a todas as outras. Fiz estes móveis e estes utensílios. Trabalhei
o campo, que outros cuja cara não vi trabalharão melhor que eu. Posso mostrar-te algumas
coisas.
Segui-o a uma peça contíngua. Acendeu uma lâmpada, que também pendia do forro. Em um
canto vi uma harpa de poucas cordas. Nas paredes havia telas retangulares onde
predominavam os tons da cor amarela. Não pareciam proceder de uma mesma mão.
Examinei as telas e me detive diante da menor delas, que figurava ou sugeria um pôr-do-sol e
que encerrava algo infinito.
-Se te agradou podes levá-la, como uma lembrança de um amigo futuro -disse com palavra
tranquila. Agradeci-lhe, mas outras telas me inquietaram. Não direi que estavam em branco,
mas sim quase em branco.
-Estão pintadas com cores que teus antigos olhos não podem ver.
As delicadas mãos tocaram as cordas da harpa e mal percebi um que outro som. Foi então que
se ouviram as batidas.
Uma alta mulher e três ou quatro homens entraram na casa. Diria-se que eram irmãos ou que
o tempo os havia igualado. Meu anfitrião falou primeiro com a mulher.
A mulher trabalhou a par com os homens. Envergonhei-me de minha fraqueza que quase não
permitia-me ajudá-los. Ninguém fechou a porta e saímos, carregados com as coisas. Notei que
o teto era de duas águas. Aos quinze minutos de caminhada, dobramos à esquerda. Ao fundo
divisei um tipo de torre, coroada por uma cúpula.
-É o crematório -alguém disse-. Dentro está a câmara letal. Dizem que a inventou um
filantropo cujo nome, creio, era Adolf Hitler.
Meu hóspede sussurou umas palavras. Antes de entrar no recinto se despediu com um gesto.
Em minha escrivaninha da rua México guardo a tela que alguém pintará, dentro de milhares de
anos, com materiais hoje dispersos pelo planeta.
*Nota do Tradutor: pânico se refere a Pan, divindade grega dos bosques e da vida selvagem. Neste caso, o adjetivo
pânico não diz respeito ao pavor, mas à característica rústica e cheia de vida das planícies que ligam o Uruguai ao
Rio Grande do Sul, os pampas. O autor das linhas, Emilio Oribe, é um poeta, ensaísta e filósofo uruguaio.