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Fronteiras: Revista Catarinense de História. Dossiê História Indígena e estudos decoloniais, N.

31, 2018/01

Mito e o Ensino de História e Cultura Indígena em perspectiva decolonial

Myth and the Teaching of Indigenous History and Culture in a decolonial perspective

Renata Carvalho Silva1

Resumo: O texto a seguir tem como Abstract: The following text aims to
proposta analisar como as narrativas analyze how amerindian mythological
mitológicas ameríndias podem auxiliar no narratives can assist in the teaching of
ensino de História e Cultura Indígena em Indigenous History and Culture in the
sala de aula buscando perceber de que forma classroom in order to understand how the
as mudanças de perspectiva nas changes of perspective in representations
representações acerca das identidades about ethnic identities in Latin America, as
étnicas na América Latina, bem como a well as opposition between the Eurocentric
oposição entre os pressupostos epistemological assumptions and the
epistemológicos eurocentrados e as multiethnic emergencies in the postcolonial
emergências pluriétnicas nos contextos pós- contexts aim to undertake a critique of
coloniais visam empreender uma crítica aos modern paradigmatic models in favor of an
modelos paradigmáticos modernos para uma education focused on interculturality.
educação com foco na interculturalidade. Keywords: Indigenous history,
Palavras-chave: História indígena, mythologies, teaching
mitologias, ensino.

Introdução
Quando se pensa a variedade das experiências religiosas em um contexto tão pluri
e multifacetado quanto o da diversidade étnica no Brasil, vários são os códigos e símbolos
rapidamente acionados pelo imaginário social 1 na identificação das muitas matrizes e
contextos ditos sagrados: os santos da Igreja Católica Romana, os orixás do Candomblé e da
Umbanda, os mestres e guias espirituais no Espiritismo kardecista, os guias e encantados da
Mina maranhense. Dentre estes, os chamados deuses indígenas nos remeteriam a um passado
idílico, ao mesmo tempo original e autêntico, testemunho de um tempo primitivo onde
natural e sobrenatural se confundiam e do qual apenas restaram as narrativas em forma de
lendas e relatos míticos desprovidos de qualquer conhecimento ou racionalidade lógica.
Partimos do argumento, no presente texto, que tal conceituação é fruto de uma
herança colonial refletindo diretamente os pressupostos teóricos e epistemológicos das
sociedades lógico-científicas europeias, estabelecidos em contexto global enquanto padrão
cultural hegemônico nas sociedades colonizadas. Tais pressupostos parecem-nos atualmente

1
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em História, Ensino e Narrativas, Mestrado Profissional da
Universidade Estadual do Maranhão. Especialista em História e Cultura Afro-brasileira. Graduada em
História Licenciatura Plena pela Universidade Estadual do Maranhão.
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estar na ordem do dia de uma série de questionamentos quanto a permanência da sua validade
numa conjuntura de intensificação das demandas de grupos étnicos e movimentos sociais
que, muito além de direitos sociais e políticos, também questionariam as imposições e
hierarquias estabelecidas e, a despeito do fim do colonialismo moderno, mantém-se na
atualidade naquilo que os teóricos do descolonialismo nomeiam como “colonialidade
global”
Asistimos, más bien, a una transición del colonialismo moderno a la colonialidad
global, proceso que ciertamente ha transformado las formas de dominación
desplegadas por la modernidad, pero no la estructura de las relaciones centro-
periferia a escala mundial. [...] Después de la Segunda Guerra Mundial y del
supuesto fin del colonialismo, mantienen a la periferia en una posición subordinada.
El fin de la guerra fría terminó con el colonialismo de la modernidad, pero dio inicio
al proceso de la colonialidad global. (GROSFOGUEL, 2007, p. 13)

Tal paradigma epistemológico estabelece, hierarquiza e define uma noção de


conhecimento ligada estritamente a uma tradição lógico racional e materialista,
privilegiando a ordem objetiva, subordinando e relegando a um segundo plano as
subjetividades em busca de um desvelamento e domínio da ordem natural. Tais conceitos e
noções estão assim relacionados a um marco temporal definidor, onde o conhecimento se
constrói a partir do estabelecimento da modernidade, com base nas premissas iluministas
dos séculos XVII-XVIII e que se impõem no jogo das relações de força dos processos
coloniais. Seriam, assim, desafios dos contextos pós-coloniais, buscar ressignificações e
novos conceitos para discutir, a partir de um olhar interno, a complexidade dos processos de
mestiçagens e reafirmação de identidades específicas no contexto das sociedades ditas
periféricas.
Um exemplo sintomático dessa classificação hierarquizante da tradição colonial e
que pretendemos observar mais detidamente, diz respeito à noção de religião/religiosidade.
Herdeira da tradição cientificista do século XIX, o conceito de religião surgiu como uma
forma de buscar compreender uma esfera da sociabilidade humana partindo das noções de
Natureza e extra Natureza e como as noções de sacralidade interferem, fundam e
estabelecem modos, habitus e costumes, bem como valores éticos e morais que extrapolam
os limites da crença e passam a definir e instituir a vida e as relações materiais dos diversos
grupos humanos.
Teóricos da Sociologia como Emile Durkheim, Max Weber, Karl Marx e Mircea
Eliade, que lançaram as bases de uma Sociologia da Religião ao construírem suas reflexões
acerca das sociedades modernas à luz do conceito de pensamento religioso, perpassando os

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estudos etnográficos sobre as religiosidades nativas da Antropologia e os recortes culturais


que abordam o conhecimento da história a partir das noções de devoção e crença, em comum
apresentam os anseios de debruçarem-se em busca do entendimento dos mecanismos pelos
quais os indivíduos estabelecem suas relações com a experiência do sagrado. Apesar das
múltiplas orientações metodológicas que distanciam e atraem os autores aqui elencados, a
perspectiva de apreensão lógica das experiências do sagrado para as sociedades humanas em
uma dimensão universalizante é um traço comum para os clássicos do pensamento
sociológico sobre o fenômeno religioso como A Ética Protestante e o Espírito do
Capitalismo de Max Weber ou As Formas Elementares da Vida Religiosa de Émile
Durkheim.
Nesse sentido, a ideia de mito designa as formas de explicação e classificação das
experiências concretas da vida social a partir de uma narrativa alegórica que é socializada e
se perpetua, na maioria das vezes, pelos relatos orais. Mircea Eliade, apesar de também
herdeiro de uma tradição evolucionista, transpôs tal barreira conceitual ao conceber o mito
enquanto referencial “vivo no sentido de que fornece os modelos para a conduta humana”
(ELIADE, 1972, p. 06). No entanto, apesar da apreensão de que a narrativa mitológica é
parte fundamental para a organização de determinadas sociedades, inclusive fundamentando
valores éticos e morais das diversas sociedades ocidentais, o mito ainda é visto e
compreendido enquanto um relato fantasioso, desprovido de sentido posto que destituído de
um ordenamento lógico e objetivo.
Essa concepção acerca das narrativas mitológicas dos diferentes povos originários
em que os relatos são analisados a partir de uma perspectiva teórico-metodológica ocidental
perpassa por diversas e consagradas etnografias do século XX e ainda persistem em muito
no século XXI, vindo lentamente a buscar uma alternativa ao discurso fundante da
Modernidade. A seguir, como escolha metodológica, em um primeiro momento,
analisaremos três monografias que em diferentes tempos e a partir de diferentes autores e
propostas, ocuparam-se no trabalho etnográfico dos Tenetehara do Maranhão sob diferentes
perspectivas metodológicas regidas por uma maior ou menor inserção nos pressupostos
coloniais de orientação na tentativa de apreender o fenômeno da alteridade. Assim o faremos
como forma de exemplificar o que pretendemos discutir com maior atenção na segunda parte
do texto.

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Wagley e Galvão, Carlos Zanoni e Pereira Gomes: três vertentes interpretativas da


mitologia Tenetehara

Apesar da unânime compreensão de que as narrativas mitológicas exercem papel


fundamental de caráter conceitual e normativo nas sociedades que delas se utilizam como
conhecimento fundante é bastante sintomático a forma como diversos autores, dentro de seus
objetivos de desenvolver uma etnografia das sociedades ditas primitivas, como afirmou
Mércio Pereira Gomes, acabam construindo uma antropologia que:

[...] intencionada a falar sobre o índio, tende a falar primordialmente de si mesma e


para si. Ela [reflexão antropológica] surge de uma problemática cultural interna, a
dinâmica da civilização ocidental, e a reflete. Sendo produto do desenvolvimento do
mundo ocidental, vagueia com os movimentos que lhe dão impulso e participa de
suas mais acirradas disputas. Privilegiando a si mesma como temática primordial, o
outro no mais das vezes só existe como sua ancila, às vezes seu oposto, às vezes o
que restou de seu passado (GOMES, 2002, p. 18-19).

Assim é que, baseada em uma ampla pesquisa de campo na década de 1940, acerca
dos Tenetehara situados ao longo do vale do rio Pindaré, mais precisamente “as aldeias
situadas ao longo do rio Pindaré e marginais à estrada de gado entre os rios Mearim e
Pindaré” (WAGLEY E GALVÃO, 1961, p. 14), no estado do Maranhão, nordeste brasileiro,
Charles Wagley (orientador da Tese) e Eduardo Galvão construíram um significativo e
extenso trabalho etnográfico sobre os hábitos e costumes da etnia Tenetehara do Maranhão.
A começar pelo título da tese: “Os índios Tenetehara. Uma cultura em transição” onde já é
bastante sintomático o tom e a proposta teórica apresentados pelos autores, a preocupação
em mapear uma cultura que se percebia em vias de integralização total pela sociedade
nacional. Tendo por base um roteiro bem desenhado e rigorosamente técnico do que se
entendia por um bom trabalho etnográfico, não é incomum percebermos no texto em questão
a forma como os autores se assombravam com a manutenção, nos indivíduos estudados, de
seus traços culturais originais: “descobrimos, em pouco, que embora vestidos à nossa moda
e não poucos dominassem o português com facilidade, guardavam muito de seus costumes
e atitudes tradicionais” (WAGLEY E GALVÃO, 1961, p. 15).
Tal afirmativa demonstra a forte influência da noção de aculturação pautadas nas
concepções teóricas de evolucionismo cultural, ainda muito viva em inícios do século XX e
que partia da ideia não só de aproximação entre as estruturas sociais tomadas a partir de
concepções tidas como universais do ser humano, como igualmente a crença de que, estando

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em um estágio anterior de desenvolvimento humano, tais sociedades, mais cedo ou mais


tarde, seriam assimiladas pela sociedade nacional em contato. Tal testemunho demonstra de
forma bastante incisiva a inadmissibilidade de uma dinâmica própria de ressignificação e
readequação do fenômeno do contato em termos específicos de autorreferenciação. Apesar
da compreensão das noções de alteridade e especificidade das sociedades estudadas é clara
a visão de que, uma vez em um estágio anterior na longa e extensa linha temporal do
evolucionismo ocidental, nada poderia livrá-los de serem engolfados pelo contexto cultural
hegemônico:
O Tenetehara, a despeito das modificações que sua cultura sofreu em direção ao que
se poderia chamar de “abrasileiramento”, é ainda um índio tribal cuja sociedade
nativa mantém-se individualizada, separada da brasileira, por características como a
linguagem e tradições próprias. Se o processo não vier a sofrer interrupção ou
reorientação por circunstâncias que fogem à possibilidade de previsão, a distância
cultural diminuirá ao ponto de permitir a transformação desses índios em caboclos.
Não será uma transformação brusca, porém gradual, de índios que “passam” para a
sociedade brasileira (WAGLEY E GALVÃO, 1961, p. 12).

É nessa concepção fatalista de aproximação e adequação das estruturas mentais


indígenas aos paradigmas de apreensão da realidade nos moldes ocidentais que as narrativas
mitológicas são relacionadas no Capítulo V dedicado à Religião. Em subtópicos
denominados como Xamanismo, Feitiçaria, Cura, Pajelança, entre outros, o capítulo é um
longo e detalhado relato das várias experiências ditas sobrenaturais ouvidas pelos autores de
“informantes” que pouco aparecem ao longo do texto e quando aparecem são designados
apenas pelo nome e alcunha de “moradores” dessa ou daquela aldeia, sem uma apresentação
que dê ao leitor maiores informações seja sobre a idade, seja o lugar que lhes atribua alguma
função ou posicionamento na sociedade estudada.
Apesar de descrever determinadas especificidades dos principais mitos ouvidos e
compilados, como a noção dos heróis culturais e fundadores que nas origens dos tempos
criaram e transformaram o mundo tal qual o Tenetehara o conhece, no relato da pesquisa de
campo bem como a superação da ideia de divinização de Tupã enquanto correlato direto do
deus cristão, prática realizada pelos primeiros missionários em uma tentativa bastante
específica de assimilação dos códigos interpretativos das sociedades indígenas no contexto
da catequese e civilização do nativo, pouco ou nada se analisa do que é transcrito em termos
de como tais mitologias baseiam e estruturam a sociedade analisada, muito menos a forma
como as mesmas se fundamentam enquanto conceitos normativos, um logos de construção,
disseminação e estruturação do conhecimento de si e do mundo para o ser Tenetehara. Não
queremos, com isso, desconsiderar o inestimável trabalho antropológico empreendido pelos
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autores, mas tão somente ressaltar como os paradigmas fundantes de uma determinada época
postulam as chaves de leitura fundamentais para a aproximação ou o afastamento entre
pesquisador e objeto.
Outro autor que analisamos, o professor e pesquisador Cláudio Zannoni,
antropólogo e professor da Universidade Federal do Maranhão, que empreendeu pesquisa
entre os Tenetehara de Barra do Corda entre os anos de 1994 e 1997, a fim de “reconstruir a
memória oral dos conflitos interétnicos da região de Barra do Corda” (ZANNONI, 1999, p.
11), relatou ter percebido a necessidade de aprofundar ainda mais a pesquisa acerca das
relações societárias a partir do momento em que, mesmo admitindo terem sido bastante
exploradas, em outros trabalhos, as ditas bases nas quais se assentariam as estruturas sociais
Tenetehara, acreditando ter percebido a adição de um novo elemento, a saber, a noção do
“conflito como regulador das relações sociais, políticas, econômicas e religiosas”
(ZANNONI ,1999, p.12) levando-o assim a repensar as bases do desenvolvimento e
continuação do trabalho, resultando assim, no livro intitulado Conflito e Coesão: o
dinamismo Tenetehara (1999).
Ao contrário do texto dos primeiros pesquisadores, o texto do professor Cláudio
Zannoni visa perceber de que forma as relações interétnicas entre as aldeias Tenetehara e as
populações nacionais imprime uma profunda ordem de transformação e dinamização das
estruturas sociais das primeiras a partir das noções de conflitos e permanências. Alguns
pontos mais marcantes nos chamaram a atenção. Inicialmente, também ao contrário do relato
empreendido por Wagley e Galvão, o autor buscou nomear todos os seus informantes
indígenas pontuando idade, aldeia de origem e apresentando sobre cada um deles um breve
histórico na trajetória do grupo e o papel desempenhado no trabalho de campo realizado.
Assinalando nessa apresentação que os atores entrevistados foram escolhidos por suas
posições de lideranças no povo Tenetehara, seja por serem lideranças políticas no processo
de mediação e contato, seja por serem depositários do conjunto cultural do grupo, dentre os
quais identificamos apenas 3 como sendo mulheres.
Importante ressaltar a forma de construção do texto do pelo autor no sentindo que,
além de iniciar com um levantamento bibliográfico relacionado ao tema, buscou empreender
uma análise em regressão do histórico de contato do grupo analisado partindo de dados do
presente da escrita até as primeiras narrativas. Igualmente baseando-se em uma perspectiva
de uma boa escrita etnográfica, o segundo capítulo do trabalho se referiu a efetuar uma
minuciosa descrição das fases e dos rituais Tenetehara que fundamentam e dão sentido ao

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cotidiano e às práticas sociais dos mesmos, desde os ritos de gestação e concepção, passando
pelos de iniciação da vida adulta dos mais jovens até os ritos de matrimônio e
estabelecimento dos laços de parentesco. Esse último demarcando de forma bastante
simbólica a orientação estruturalista do texto, igualmente perceptíveis na divisão e definição
dos capítulos seguintes: Vida Social Econômica e Política; Vida Religiosa e Mitos; e
Conflito na Cultura Tenetehara.
Com maior enfoque à questão da mitologia, também entendida pelo autor como
traço eminentemente religioso, apesar de afirmar ser “a vida religiosa é importante para a
sobrevivência desse povo. Ele detém uma concepção religiosa/cultural que se pode chamar
de ‘interiorizada’. De fato, sua relação com o sobrenatural é pessoal e dele depende sua
existência. Não é, portanto, algo distante” (ZANNONI, 1999, p. 125), é possível
percebermos um grande esforço em se adequar a compreensão das narrativas mitológicas a
partir de uma matriz materialista de interpretação, com especial atenção às leituras que usam
as noções de modo de produção, efeito e causalidade e principalmente a noção/conceito de
conflito como motor de transformação da sociedade Tenetehara:
Carvalho S. entende que os mitos precisam ser decodificados “a começar pela busca
de uma razão para a própria existência” (1985, p. 177), razão essa que é identificada
com a relação estreita entre mito (formas de pensar) e o processo de trabalho (modo
de produção).
A primeira questão que se coloca é saber se podemos estabelecer, com critérios
científicos, uma correspondência entre certos fundamentos de um modo de produção
e de formas de pensar; ou, se quisermos, se há uma correspondência entre a práxis e
o “pensamento selvagem”. Lembramos que, para Lévi-Strauss o “pensamento
selvagem” se opõe ao pensamento “domesticado para acumulação”. Assim, mesmo
se Lévi-Strauss não explora este caminho, estabelece, com essa distinção fundada na
práxis (acumular ou não acumular) uma correspondência clara entre a falta de
interesse por uma acumulação e o pensamento selvagem (Carvalho S., 1993, p. 259).
Ao estudar a mitologia Tenetehara, especialmente no que se refere a seu mito
principal, dos “gêmeos Maíra-ira e Mucura-ira”, pode-se certamente encontrar ali as
referências ao mundo mítico de caçadores-coletores e entender as relações
econômico-sócio-políticas dessa mesma cultura. O conflito, que aparece na maioria
dos mitos Tenetehara, ajudará a entender a “mola propulsora” da vida desse povo
(ZANNONI, 1999, p.125).

Dessa leitura de construção do texto podemos inferir que houve um empenho por
parte do autor de adequar a compreensão dos mitos Tenetehara apreendidos a uma lógica
científica de matriz ocidental que traduzisse numa dimensão organizada e bem delimitada –
mas que em certa medida distanciada em muito da perspectiva lógico comunicacional do
grupo estudado/vivenciado – toda a sua dinâmica sócio relacional. Percebemos nesse sentido
que, assim como no trabalho anterior relacionado, também a etnografia realizada pelo
professor Claudio Zannoni buscou na fala dos atores/sujeitos do grupo apenas uma
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interlocução narrativa dos mitos utilizando para a sua interpretação agentes externos, visto
que esses sim teriam as bases lógico racionais para organizar e tornar compreensíveis, leia-
se “científicas”, as múltiplas dimensões do arcabouço mítico cosmológico ameríndio.
Em trabalho bastante elucidativo, o antropólogo Vagner Gonçalves da Silva (2000),
quando analisou a complexidade de construção dos textos etnográficos e em que medida as
condições de produção do trabalho de campo apareciam (ou não) descritas nas obras
relacionadas às religiões de matriz afro-brasileira, empreendendo uma dedicada análise das
limitações reflexivas no campo da Antropologia ressaltando serem, bastante frágeis e
interseccionadas as relações de poder entre o discurso acadêmico, discurso que se pretende
ser a tradução racional de uma prática social, e o conhecimento/saber orgânico dos
indivíduos que a experienciam. Nesse sentido, o autor pontuou ao longo do texto uma
reflexão sobre a incompletude das teorias e do método etnográfico, bem como de que modo
– a partir da análise da própria trajetória como pesquisador e praticante das religiosidades de
matriz afro e de outras experiências similares – e em que medida os dois universos analisados
se imbricam e se relacionam: pesquisadores aderindo à religião, religiosos aderindo à
pesquisa etnográfica.
Os antagonismos entre os pesquisadores muitas vezes refletem rivalidades e rupturas
de origens diversas. Os antropólogos, como todos os seres humanos, têm suas
idiossincrasias e não estão imunes aos imponderáveis das relações pessoais que
envolvem sentimentos de aproximação e de distanciamento, frequentemente
induzidos ou exacerbados por situações concretas de trabalho. É o que muitas vezes
acontece entre membros de uma mesma equipe de pesquisa, mas que dela participam
com diferentes “capitais” – conhecimento prévio do campo ou da rede de
“informantes”, manejo de conceitos teóricos e técnicas de pesquisa, acesso a fontes
de financiamento. (SILVA, 2000, p. 34)

Ou seja, o autor partiu da prerrogativa de que a premissa de objetividade pretendida


pelos paradigmas das Ciências Sociais, tal como a necessidade de distanciamento do objeto
de estudo, tem sérias e irreconciliáveis limitações, uma vez que toda e qualquer pesquisa é
atravessada por múltiplos vetores e das mais variadas circunstâncias, e que desta feita o que
denominou de a “magia” do antropólogo, ou seja, os dados apresentados enquanto resultado
de seu empreendimento, fazendo “desaparecer” da visão do leitor o campo no qual o mesmo
atuou e foi em contrapartida alterado.
A nossa pergunta é: em que medida os pressupostos metodológicos de uma
cientificidade originária de um arcabouço teórico epistemológico ocidental, herdeiro de uma
tradição moderna imposta e tornada hegemônica através do processo colonial, são os únicos
e considerados válidos para descrever e narrar as múltiplas experiências socioculturais em

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contextos de alteridade/diversidade? Até que ponto não seria possível partir das próprias
construções ontológicas e cosmológicas das sociedades estudadas como conhecimentos
válidos para uma tentativa de um diálogo transcultural2, a partir de seus próprios paradigmas
e etimologias específicas enquanto concepções de mundo, fora dos eixos descritivos das
Ciências Sociais tradicionais?
É partindo de argumento semelhante que o último autor que citamos propôs uma
alternativa semântica às propostas teóricas clássicas nas interpretações culturais. Mércio
Pereira Gomes no estudo O índio na História: o povo Tenetehara em busca de liberdade
(2002), buscou a construção da categoria analítica intitulada Antropologia Ontossistêmica,
definida pelo mesmo como aquela “que toma o ser como estando dentro e ao mesmo tempo
acima da totalidade” (GOMES, 2002, p. 20). E ao traçar um paralelo entre o conhecimento
dito legítimo e aquele entendido como “exótico”, posto que construído pelo nativo, assim a
definiu:
A compreensibilidade mútua entre essas duas formas de pensamento, se é que elas
existem nessa dicotomia, constitui uma das principais tarefas que a Antropologia
Ontossistêmica deveria tomar para si. Antes de ser um ato de dominação, de fazer o
discurso sobre o outro, seria um ato de reconciliação e transcendência em relação a
uma situação criada pela modernidade que estabeleceu duas formas de humanidade,
uma real contradição dos termos de constituição dessa humanidade (GOMES,
2002, p. 20).

Dessa forma, partindo de uma ousada proposta epistemológica e empreendendo


uma dura crítica aos pressupostos acadêmicos ocidentais, em especial àqueles do
estruturalismo clássico, Pereira Gomes construiu uma obra preocupada em perceber as
múltiplas dinâmicas e reordenamentos pelos quais passaram as sociedades Tenetehara ao
longo do seu histórico de contato com a sociedade nacional. Mais que isso, o livro de Gomes
fez, através de um riquíssimo e diversificado levantamento documental, uma revisão do que
pode ser denominado como o “paradigma de aculturação”, ainda um tabu para muitos
antropólogos e também historiadores das sociedades indígenas, assim como nos faz refletir
acerca das construções narrativas feitas sobre o passado que muitas das vezes, dizem mais
respeito ao presente do que ao passado a que buscam representar.
Porém, mesmo com todo esforço de compreensão das limitações teóricas e
metodológicas e das hierarquias estabelecidas pela tradição epistemológica ocidental, é
ainda na perspectiva de interpretação marxista que será desenvolvido o raciocínio e a
construção da escrita antropológica do autor, principalmente quando descreveu a noção de
economia de troca dos Tenetehara que lenta e gradualmente transformou-se no processo de

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contato, mudando, assim, aspectos das relações de sociabilidade dos indígenas entre si e com
os nacionais. Em contrapartida aos autores citados anteriormente, Mércio Pereira ampliou o
espaço de voz dos seus informantes indígenas, em especial, quanto às memórias do contato
e das mudanças nas relações intersocietárias apresentadas no último, sendo bastante
simbólico, capítulo XV, intitulado Os Tenetehara falam. Neste capítulo, somos finalmente
apresentados a um olhar que tenta partir de uma aproximação da perspectiva de construção
mitológica narrativa dos Tenetehara, através da descrição literal das entrevistas concedidas
por seus interlocutores indígenas. No entanto, a título do que aqui se pretende argumentar,
ainda são as premissas conceituais de base externa, que tem na universalidade do conceito
de humanidade e sua base materialista de compreensão e ordenamento do mundo sensível,
para o alinhavo final à tessitura do texto de Gomes:
Nos capítulos precedentes, a história dos Tenetehara foi analisada como um processo
que se desenvolve pelo relacionamento desse povo com a sociedade maranhense em
formação. A análise conceituou os tipos de relações que se constituíram entre essas
duas sociedades ao longo dos séculos como resultado das condições econômicas e
sociais prevalentes e da reação dos Tenetehara tanto em termos de aceitação e
adaptação como de resistência e conflito. É fácil perceber que essas relações têm
como base as estruturas socioeconômicas de cada sociedade e que essas estruturas
estão em um constante processo de mudança devido a causas internas e externas
(GOMES, 2002, p. 423).

Reiteramos mais uma vez que não é intenção de nossa parte desmerecer ou
deslegitimar a incontestável validade e importância dos estudos analisados, mas, antes e ao
contrário, demarcar como em diferentes épocas, a partir de diferentes contextos e parâmetros
de observações e análises, foram se configurando diferentes perspectivas de estudo sobre as
populações nativas e salientar, que desde inícios do século XXI vem se delineando uma
tentativa de interpretação das sociedades construídas a partir dos processos coloniais que
procurem dar conta da complexidade dos processos, com o uso de novos conceitos e
epistemologias específicas, sem, contudo, descartar as contribuições teóricas anteriores, mas
compreendendo as suas limitações para um amplo entendimento das experiências diversas,
fruto dos fenômenos e processos na pós-colonialidade3.

Mitologias indígenas em perspectiva decolonial: interculturalidade e ensino

“Antigamente, nossos maiores não contavam nenhuma dessas coisas, porque sabiam que
os brancos não entendiam sua língua. Por isso minha fala será algo de novo, para aqueles que a
quiserem escutar“

(Davi Kopenawa – A queda do céu, 2015).

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Seria então Tupã o “Deus” dos índios? Essa pergunta pode parecer, à primeira vista,
deslocada, porém faz referência à noção nada incomum que se tem, fruto de uma leitura
baseada numa interpretação equivocada e homogeneizadora das expressões socioculturais e
cosmologias indígenas, pelos agentes coloniais sobre o que aparentava ser um provável
“panteão religioso” indígena. Parte então da ideia de que, para as sociedades indígenas no
Brasil, Tupã seria a principal e mesmo única referência de “divindade” e, assim como o
“Deus” cristão, seria, para todos os “índios” no território, o responsável pela criação do
mundo e de toda Natureza que nele há.
Essa ideia, construída a partir das primeiras narrações empreendidas por cronistas
e missionários no contexto do contato, apesar de ter sido ampla e continuamente debatida,
ainda é bastante comum no contexto da educação formal brasileira. Partindo da noção de
que os mitos indígenas nada mais eram do que a expressão de crenças que, em um processo
de assimilação, deveriam ser substituídas pelo conhecimento racional ou ressignificadas pela
religiosidade do colonizador, os mitos e ritos dos povos indígenas no Brasil continuam sendo
acionados no contexto pedagógico da escola nacional com vistas a alegorizar uma
perspectiva de educação para a diversidade bastante limitada e, muitas das vezes, expressiva
da situação de subalternidade do universo de conhecimentos dessas mesmas populações.
No contexto escolar brasileiro, mitos indígenas têm sido frequentemente utilizados
como recurso pedagógico e como material primário para a publicação de coletâneas
de "lendas indígenas" ou de livros de histórias para crianças. Raros são os autores
que se identificam com o pensamento indígena e, respeitando-o, nele exercitam sua
própria capacidade de criação literária; raros também são os que se contentam em
transmitir os textos míticos sem adulterá-los ou "corrigi-los" segundo o que
consideram moral ou ideologicamente correto e adequado a seus pequenos leitores
(SILVA, 1995, p. 317-318).

Foi somente a partir da promulgação da Lei nº 11.645/2008 determinando a


obrigatoriedade do ensino da História e Culturas Indígenas nas aulas de História, Artes e
Literatura, que observou-se uma maior abertura às discussões acerca das populações nativas,
assunto primordial para um aprofundamento dos estudos sobre os múltiplos processos de
constituição sociocultural no país que até então só vinha sendo escrita a partir da lógica dos
intitulados “vencedores da história”, aparecendo apenas de forma eventual ou subalterna em
nossa historiografia, ou, como nas palavras da antropóloga Manuela Carneiro da Cunha: “a
História do Brasil, a canônica, começa invariavelmente pelo ‘descobrimento’. São os
‘descobridores’ que a inauguram e conferem aos gentios uma entrada – de serviço – no
grande curso da História” (CUNHA, 2012, p. 08).

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Assim é que, tradicionalmente, as referências à história indígena são apresentadas,


sempre pós evento da chegada de colonizadores europeus à América no ano de 1492, onde
as representações mais comuns desses sujeitos se dão a partir de sua subordinação à empresa
colonial, agindo como meras peças no tabuleiro dos interesses metropolitanos. Em geral,
com uma ou outra tentativa de atualização e correção, é esse o perfil que ilustra, ainda na
atualidade, os livros didáticos e materiais de apoio pedagógico utilizados na maioria dos
estabelecimentos escolares, muita das vezes reforçando estereótipos que tais povos ainda
vivem estagnados no tempo e no espaço.
Sintomático para isso é perceber que nos livros de História os espaços reservados
às populações nativas estão quase que exclusivamente nos primeiros capítulos de chegada e
povoação do continente americano, período colonial e quando conseguem avançar, no
máximo ainda são apontados no período imperial, quando são escolhidos enquanto símbolos
máximos do romance indianista.
Buscando romper essa limitação na forma como se concebe a História dos povos
indígenas, ora como simples vítimas do violento processo de implementação e consolidação
colonial, procuramos evidenciar que tal contexto operou significativas mudanças não
implicando diretamente que tais culturas tenham desaparecido, mas que as mesmas tenham
empreendido profundas modificações em suas estruturas sociais e culturais, reconfigurando
a sua existência à medida que novos desafios e ameaças se punham às suas permanências
étnicas, ou como afirmou Janice Theodoro (1992) que é necessário compreender que as
culturas nativas são “viventes e não “sobreviventes” na trama dos eventos históricos
(THEODORO, 1992, p. 64).
Assim é que pretendemos examinar de que forma as mitologias indígenas podem
ser discutidas no ensino de história e culturas indígenas de maneira a entendê-las enquanto
constitutivas de todo um arcabouço teórico e linguístico específico que pode ser infimamente
intelegível a partir de uma abordagem intercultural, fazendo assim atender às demandas da
Lei nº 11.645/2008, buscando efetivar um processo de reconhecimento de toda a pluralidade
étnica e cultural em nosso país.
No atual espaço de disputas por afirmação de identidades, conquistas políticas e
sociais pelos diversos grupos no Brasil, Edison Silva (2012) afirmou que inúmeros são os
grupos e expressões socioculturais que alcançaram reconhecimento e isso tem exigido cada
vez mais empenho na busca por debates que possam auxiliar na construção de políticas
públicas respondendo a exigências sociais específicas, ou seja, “a Lei 11.645/2008, que

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determinou a inclusão da história e culturas indígenas nos currículos escolares, possibilitará


o respeito aos povos indígenas e o reconhecimento das sociodiversidades no Brasil”
(SILVA, 2012, p.32).
Além disso, ainda segundo Silva, é possível com o estabelecimento da referida Lei,
propor um reexame na ideia geral de uma identidade nacional hegemônica, uma vez que a
mesma oculta uma série de distinções de classe, de raça, de gênero em busca de uma
uniformização que exclui do cenário principal inúmeros embates e violências perpetrados
por grupos dominantes a exemplo dos povos originários da África e aos nativos americanos
sujeitos a experiência colonial à revelia dos próprios anseios e vontades.
Portanto, uma efetiva aplicação das políticas educacionais de valorização das
tradições indígenas e africanas para o conhecimento dos processos de construção do que se
compreende na atualidade como nação brasileira, em busca de se impedir a reprodução de
preconceitos, parte justamente da atitude de não só se repensar um tradicional conceito de
que os grupos indígenas seriam apenas receptores passivos num processo de dominação
física e simbólica, inseridos num contexto de conquista e colonização, assim como também
tentar uma aproximação às abordagens realizadas e que identificam o indígena enquanto
sujeito/ator da sua própria permanência étnica, além de questionar outros conceitos como o
de vitimização, subjugação e aniquilamento dos mesmos, tão ainda em voga nas
bibliografias sobre História do Brasil, que tendem a projetar um suposto desaparecimento
dos “índios” por conta de uma total inserção na cultura não-indígena (SILVA, 2005, p. 03).
Com esse intuito, e pensando a própria contradição inerente à formulação das novas
legislações que defendem o direito à liberdade e à pluralidade étnico-cultural da população
brasileira, que, apesar de apontarem para uma esperança no que concerne às políticas de
erradicação dos preconceitos raciais, étnicos e culturais, em especial aqui as leis acima
mencionadas, é necessário se pensar estratégias de como promover uma educação que
reconheça e valorize a diversidade, comprometida com as origens do povo brasileiro, e que
busque a inclusão dos saberes e tradições dos grupos nativos como base importante para se
pensar a constituição tanto de uma identidade nacional quanto das múltiplas identidades
regionais e específicas.
A importância tanto da lei nº 10.639/2003 quanto da lei nº 11.645/2008 se inscreve
no reconhecimento da escola como lugar de construção, não só do conhecimento, mas
também de identidades, valores, afetos, ou seja, lugar onde o ser humano é moldado de
acordo com sua sociedade. Historicamente, o Brasil, sabidamente formado a partir de

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diferentes matrizes e heranças culturais, europeias, indígenas e africanas, ainda não


contempla, de maneira equilibrada e eficaz, o conjunto de suas referências formativas no
sistema educacional. A pedagogia e os livros didáticos apresentam, ainda na atualidade, uma
visão eminentemente eurocêntrica, perpetuando assim estereótipos e preconceitos
(BORGES, 2015, p. 06).
Desse modo, consideramos ser de fundamental importância pensar o uso ou o
estudo das mitologias indígenas em sala de aula, a partir da análise empreendida, segundo
seus códigos próprios de elaboração e linguagem que favoreçam uma dimensão aproximada
de leitura desde um campo semântico específico e diferenciado. Dessa forma, o termo
decolonial, aqui utilizado como uma categoria chave de entendimento, parte de uma escolha
teórica baseada nos pressupostos epistemológicos advindos dos debates do grupo de
pesquisadores latino-americanos intitulado Modernidade/Colonialidade, surgido entre os
anos 2000, e que visa, entre outras coisas, “se posicionar de forma mais radical no debate
pós colonial visando transcender a colonialidade, a face obscura da modernidade, que
permanece operando ainda nos dias de hoje em um padrão mundial de poder”
(BALLESTRIN, 2013, p. 01).
Nesse sentido, o termo decolonial, grafado sem o “s”, tem um aspecto de escolha
política e epistemológica, uma vez que “marca uma distinção com o significado de
descolonizar em seu sentido clássico. Deste modo ‘a intenção não é desfazer o colonial ou
revertê-lo, ou seja, superar o momento colonial pelo momento pós-colonial. A intenção é
provocar um posicionamento contínuo de transgredir e insurgir. O decolonial implica,
portanto, uma luta contínua” (WALSH, 2009, p. 15-16). Os teóricos do
de(des)colonialismo4, ao proporem novas epistemologias versadas na proposta intercultural,
pretendem, dentre outras coisas, chamar a atenção para a incompletude e as limitações das
categorias universalizantes das grandes matrizes interpretativas ocidentais, coadunando-se a
propostas de compreensão das constituições identitárias no contexto dos contatos
pluriétnicos e de mestiçagem/hibridização, a partir de pressupostos conceituais específicos,
dando ênfase a novas perspectivas de classificação e compreensão da experiência humana.
Ou como apontou Walter Mignolo:
El giro decolonial consiste en desprenderse del chaleco de fuerza de las categorías
de pensamiento que naturalizan la colonialidad del saber y del ser y la justifican en
la retórica de la Modernidad, el progreso y la gestión “democrática” imperial. El
control actual del conocimiento opera fundamentalmente en la economía y en la
teoría política. [...]
La decolonialidad del ser y del saber requiere pensar, como lo hizo [Franz] Fanon,
en las fronteras del liberalismo-economicista imperial, del cristianismo salvacionista
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y del marxismo revolucionario. Estas tres grandes líneas constituyen el pensamiento


único, al constituirse como único, redujo a silencio, al pasado, a la tradición, al
demonio, a lo superado, a lo no sostenible, a lo no existente. [...] Ya no es posible
ignorar las contribuciones de occidente a la historia de la humanidad como tampoco
se puede ignorar que tales contribuciones no son soluciones para toda la humanidad
(MIGNOLO, 2014, p. 13).
Nesse sentido, entendermos as mitologias indígenas a partir de seus respectivos
construtos e códigos de linguagem, dentro de uma perspectiva intercultural, vai além de
apresentar as mitologias indígenas como ilustrações daquilo que histórica e comumente
convencionamos chamar de “religiosidades”, mas compreender que as mesmas encerram em
si noções maiores, semelhantes àquelas que denominamos de filosofia, teoria do
conhecimento, cosmologia, astronomia e outros pressupostos de conhecimento construídos
em parâmetros unilaterais e hegemônicos. A lógica intercultural encerraria, como assinalou
Walsh (2014), um pensamento que não se encontra isolado aos paradigmas ou estruturas
dominantes, mas conhecendo suas dimensões e através dele consegue gerar um pensamento
outro, diverso.

Outra noção chave para o entendimento do trabalho aqui proposto é a noção de


perspectivismo e multinaturalismo ameríndio desenvolvida pelo antropólogo Eduardo
Viveiros de Castro, onde é possível percebermos um grande alinhamento com os
pressupostos do de(des)colonialismo, uma vez que o mesmo propõe uma leitura que rompa
com as oposições natureza X humanidade/cultura; racionalidade X subjetividade, clássicos
dos pressupostos epistemológicos eurocentrados, propondo em seu lugar as noções de
múltiplas humanidades a partir de uma imersão profunda na experiência de conceituação e
construção do conhecimento, fruto das experiências vividas de sociedades indígenas
amazônicas (CASTRO, 2002).
Assim, pela noção de perspectivismo ameríndio, segundo Viveiros de Castro, as
sociedades ameríndias compreenderiam os agrupamentos animais enquanto organizações
sociais humanamente equivalentes e ao contrário de nós ocidentais que entendemos ter uma
ideia de natureza biológica comum com os mesmos e nos diferenciarmos por sermos os
únicos portadores do que entendemos por cultura, aos ameríndios aconteceria justamente o
contrário. O elemento partilhado é justamente a condição humana de portar-se culturalmente
a partir de suas especificidades, uma vez que o que nos separaria seria justamente a
concepção diferenciada de natureza.
Essa proposição elaborada por Castro tem implicações bem mais profundas nas
divisões estabelecidas pelas diferentes sociedades indígenas e são operacionalizadas

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mediante uma série de variantes que se encontram representadas em suas narrativas


mitológicas, artefatos e caracterizações corporais tão variados quanto os povos indígenas
existentes e igualmente variados dada as aproximações e distanciamentos das mesmas em
suas respectivas trajetórias históricas igualmente específicas.
Logo, tentando responder à pergunta que intitula esse texto, sem uma imersão
profunda no universo comunicacional e cosmológico nativo, determinadas concepções
generalizantes como a de que Tupãs seria o principal “Deus” dos povos indígenas como um
todo continuarão a perdurar no imaginário social brasileiro, a despeito de ser “Tupã” um ser
sobrenatural em que eminentemente povos de línguas da família tupi-guarani acreditam,
além daqueles povos do Nordeste e Leste do Brasil que vem, ao longo das últimas décadas,
vivenciando processos de emergência e resistência étnica e cultural (OLIVEIRA, 1998).
Dessa forma o ensino de História e Cultura Indígena em uma perspectiva
intercultural pressupõe uma compreensão de que as cosmologias indígenas são “teorias do
mundo” que buscam não só explicar e compreender as lógicas intrínsecas da Natureza, mas
estabelecer junto a mesma uma relação de intervenção e ordenamento, uma coparticipação
que dada uma mútua ação reflexiva, mantém o seu equilíbrio. Kaká Werá Jecupé, indígena
autodenominado Tapuia, na obra Tupã Tenondé e a Terra dos mil povos (2001) apresentou
um importante trabalho de tradução das Cosmologias Tupi-Guarani, bem como dos cantos
sagrados dos Mbyá-Guarani, incluindo a Ayvu Rapyta, cantos sagrados da sua cosmogonia
ancestral. É importante perceber como a construção da narrativa evidencia um
posicionamento onde subjetividade poética e objetividade de conhecimento não se
dissociam. Para o léxico Tupi-Guarani:

[...] toda palavra possui um espírito. Um nome é uma alma provida de um assento.
É uma vida entoada em uma forma. Vida é o espírito em movimento. Espírito é
silêncio e som. O silêncio-som tem um ritmo, um tom, cujo corpo é a cor. Quando o
espírito é entoado, passa a ser, ou seja, possui um tom (JECUPÉ, 2001, p. 05).
Sobre a importância do conhecimento linguístico enquanto fundamental para o
estabelecimento de uma educação que se quer efetivamente intercultural, o indígena Baniwa,
Gersem José dos Santos Luciano, ou Gersem Baniwa, chamou a atenção sobre a importância
do papel da língua para a compreensão dos pressupostos teóricos e analíticos de construção
de mundo das diversas sociedades ameríndias. Assim, ao discutir linguagem e educação
intercultural a partir do ponto de vista indígena faz saber que para além de uma ordem física
e eminentemente “humana” do processo comunicacional, a língua na perspectiva das
sociedades nativas que ainda resguardam essa dimensão lexical ou as que buscam, através

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dos processos de emergência étnica, recuperá-las, desempenha também o papel de


mantenedora de uma ordem cósmica e natural da qual a fala, os cantos e os ritos, em suma
seus mitos e cosmologias, desempenhando, assim, importante papel na estruturação
simbólica e social:

A linguagem é uma das capacidades criadoras mais impressionantes e impactantes


da humanidade. É o meio pelo qual os seres se humanizam entre si, ou seja, ao
mesmo tempo em que as identificam entre si, também as distinguem dos outros
animais. No entanto, essa distinção não significa, de modo algum, hierarquização,
uma vez que em termos de capacidade de comunicação ou linguagem, todos os seres
são iguais. Assim, para os Baniwa é também o meio pelo qual se comunicam com
outros seres do mundo e com o próprio mundo, uma vez que, para eles, a
comunicação entre os seres é o segredo para o equilíbrio do mundo cósmico.
Escassez de caça, por exemplo, pode ser resultado de uma falta ou uma ineficiência
de comunicação entre os pajés e os espíritos superiores das caças. Mas essa
comunicação com o universo não é exclusividade dos pajés. Todos os humanos,
segundo as cosmologias indígenas, devem permanentemente manter essa
comunicação. A comunicação, a linguagem e o diálogo são, portanto, essencialmente
da ordem espiritual e transcendental. (LUCIANO, 2017, p. 296)
Essa perspectiva de multinatureza ou multihumanidade também percebida por
Viveiros de Castro norteia basicamente a diversidade das narrativas cosmológicas
ameríndias fazendo-nos atentar para a importância disciplinar e comunicacional das línguas
e seus usos nas construções narrativas míticas indígenas. Estas vão por sua vez determinar o
espaço de expressão das noções que vão desempenhar papel significativo na relação de
interdependência que definem o lugar que ocupam no cenário total e expressam concepções
que revelam a correlação frequente e imutável e na correspondência mútua e constante das
trocas de conhecimentos, nas trocas de energias e forças vitais, de práticas e aptidões que
imprimem aos sujeitos sua inesgotável fonte de permanência e reatualização (SILVA, 1994,
p. 25). Davi Kopenawa, ao partilhar um pouco desse conhecimento ancestral na obra
intitulada A queda do céu, palavras de um xamã Yanomami (2015) apresentou um sinal
valioso da multidimensionalidade que a língua e por seu turno, o uso da palavra tem nas
culturas indígenas e não indígenas e, por conseguinte, seu espaço privilegiado na
constituição das noções do que denominamos de memórias e socializações orais para as
primeiras, bem como de seu papel fundante na perspectiva da sobrevivência étnica:

Eu não tenho livros como eles, nos quais estão desenhadas as histórias dos meus
antepassados. As palavras dos xapiris5 estão gravadas no meu pensamento, no mais
fundo de mim. São as palavras de Omama6. São muito antigas, mas os xamãs as
renovam o tempo todo. Desde sempre, elas vêm protegendo a floresta e seus
habitantes. Agora é minha vez de possuí-las. Mais tarde, elas entrarão na mente de
meus filhos e genros, e depois, na dos filhos e genros deles. Então será a vez deles
de fazê-las novas. Isso vai continuar pelos tempos afora, para sempre. Dessa forma,
elas jamais desaparecerão. Ficarão sempre no nosso pensamento, mesmo que os
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brancos joguem as peles de papel deste livro em que elas estão agora desenhadas;
mesmo que os missionários, que nós chamamos de “gente de Teosi”7, não parem de
dizer que são mentiras. Não poderão ser destruídas pelas águas ou pelo fogo. Não
envelhecerão como as que ficam coladas em peles de imagens tiradas de árvores
mortas. Muito tempo depois de eu já ter deixado de existir, elas continuarão tão
novas e fortes como agora. São essas palavras que pedi pra você fixar nesse papel,
para dá-las aos brancos que quiserem conhecer seu desenho. Quem sabe assim eles
finalmente darão ouvidos ao que dizem os habitantes da floresta, e começarão a
pensar com mais retidão e respeito? (KOPENAWA, 2015, p. 65-66).
Portanto uma efetiva dimensão educativa na perspectiva da interculturalidade
perpassa por: 1) entender que o próprio termo “índio” é em si uma invenção criada por um
agente externo no contexto do contato, muito embora assumida e ressignificada a partir de
uma dimensão de identificação étnica e diálogo com o diferente muitas das vezes em
situações de posicionamento político e organização/movimentação social (LUCIANO,
2012, p. 30-31)8 e 2) saber que para o ensino sobre a História e Cultura indígenas, assim, no
plural como são as inúmeras culturas nativas, faz-se necessário um complexo
posicionamento de negação dos parâmetros de hierarquização permanente a que
submetemos os intrincados universos de definição, apreensão e ordenamento do mundo a
partir de uma lógica eurocentrada onde a lógica racional de matriz cartesiana de domínio e
controle da natureza se sobrepõe a uma noção de coexistência e equilíbrio, muita das vezes
entendida como um discurso inferior da esfera do eminentemente fantástico e fantasioso ou
da crença ou de um sagrado que é qualquer outro que não o da realidade concreta.
Assim cada complexo cultural tem seu próprio léxico e arcabouço lógico normativo
que, nada mais é do que ato rasteiro de interpretação tentar imputar a lógica de um sobreposto
ao outro. Contudo, “infelizmente, a tendência mais comum é de considerar lógico apenas o
próprio sistema e atribuir aos demais um alto grau de irracionalismo” (LARAIA apud
CAMPELO FILHO e DIAS, 2015, p. 06).
Assim, ainda pensando nos usos das mitologias para o ensino da cultura indígena
em sala de aula e utilizando como exemplo a tradição oral Guarani traduzida por Kaká Werá
é preciso que entendamos que para esse complexo cultural a palavra é música, som e espírito
e dessa orquestração poética e multidimensional todas as coisas foram criadas em um tempo
ancestral da qual hoje apenas sobrevive o seu reflexo distante e pálido, mas socializados pela
expressão das palavras “originais”:
Nande Ru Papa Tenondé, Nosso Pai Primeiro criou-se por si só na Vazia Noite
Iniciada – era Imanifesto, a Suprema Consciência, nada existia. De si próprio iniciou
seu desdobrar.
Nosso Pai Primeiro sustentava-se no Vazio, antes que existisse o sol ele existia por
reflexo de seu próprio coração e fazia-se servir dentro de sua própria divindade.
Amor e Sabedoria contidos em sua própria divindade.
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Antes de existir a Noite Primeira, e antes de ter-se o conhecimento das coisas, o


Amor era.
Namandu, o Uno, o Imanifesto, o Vazio que se manifesta como espaço entoa sua
vida eterna como vento, música primeira e última, para logo tomar a forma de um
fogo-assento, algo como o trono divino.
Começa então o espaço-tempo.
Antes de existir a terra, em meio à Noite Primeira, antes de ter-se conhecimento das
coisas, criou o fundamento da linhagem linguagem humana que viria tornar-se alma-
palavra. E fez o Grande Espírito que se formara parte e todo.
Antes de existir a Noite Primeira, e antes de ter-se conhecimento das coisas, o amor
era. Concebeu como primeiro fundamento o amor (JECUPÉ, 2001, p. 25).

Portanto, ao contrário da tradição cultural eurocêntrica a partir da qual existe apenas


um único e universal conceito de “verdade”, aquele do qual se atinge a partir de complexos
mecanismos de indução lógica e cognitiva e da qual também se irradia uma noção única e
central de Deus, para o complexo cultural Guarani, fundamentalmente poético e musical,
uma correlação conceitual em perspectiva aproximada de “Deus”, seria Tupã Tenondé, o
Grande Som Primeiro, de onde se abstrai tu (som), pan (sufixo indicador de totalidade) e
Tenondé (primeiro, o início). Logo, Tupã Tenondé seria essa nota inicial, esse som que nos
primeiros tempos rege e ordena o mundo, ou a “Suprema Consciência manifestada em forma
de ritmo gerador de vida” (CAMPELO FILHO e DIAS, 2015, p. 06).

Considerações Finais

Vimos observando com muita intranquilidade no mundo ao qual conhecemos na


atualidade o intensificar de um profundo e complexo processo de fragmentação e
arrefecimento das lógicas conservadoras de uma matriz lógica ocidental que tenta a todo
custo negar as diversidades locais e regionais ao redor do globo. Os fenômenos étnicos e
sociais desencadeados na esteira dos processos de descolonização global puseram em cheque
verdades únicas e paradigmas norteadores de uma tradição lógico formal forjada no
caldeirão da chamada Modernidade. Noções como território, pertencimento étnico,
identidade nacional e tantas outras ao vem, ao longo do tempo, ocupando o centro dos
debates políticos e acadêmicos, mesmo que de maneira inconclusa e bastante polifônica.
Ao contrário da sensação de insegurança e desorientação que tal perspectiva
aparenta representar, as breves linhas até aqui apresentadas tem por finalidade não alimentar
ainda mais tal sensação de desesperança e desassossego, mas apontar para uma dimensão
rica e diversificada dos complexos de conhecimento e apreensão da existência humana e que
o parâmetro universalizante da mesma nunca ultrapassou a linha de suas matrizes teóricas

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originais. A emergência dos anseios cognitivos de orientação de(des)colonial na América


Latina contemporânea chamam a um importante projeto de se repensar as bases teóricas e
nominativas que construíram as experiências de base local, regional e nacional no contexto
dos processos pós-coloniais. Chamado esse que não pode mais ser ignorado, às custas de se
silenciar,ainda mais, as lutas dos grupos e movimentos, quer sejam étnicos ou políticos,
posicionados nas entranhas de uma subalternidade que a lógica hegemônica tenta, a todo
custo, manter inalterada.
Na esteira dessas discussões, as legislações que se apresentam como alternativas
simbólicas à inclusão de tais perspectivas cunhadas pela valorização e garantia do direito a
diversidade não podem apenas continuar no campo da retórica abstrata, esvaziadas de
qualquer ação de ordem efetivamente intercultural e que consiga minimamente apontar para
uma ação pedagógica crítica que de fato possa vir a contribuir com a quebra de estereótipos
e preconceitos forjados a partir de um único modelo lógico e representacional de ordem
eurocentrada.
Nesse sentido, nossa intenção ao sugerir aqui algumas possibilidades para se
trabalhar o ensino das mitologias indígenas não a partir do que impõe o senso comum, mas
a partir da construção de outras referências que se distanciem das identificações que
segregam e relegam a um longínquo lugar no passado os inúmeros povos e nações indígenas,
propondo assim uma direção que caminhe para um efetivo imergir nos constructos sócio
simbólicos que arquitetam toda a noção de sabedoria e conhecimento de mundo tanto de
sociedades forjados no uso e na valorização das suas línguas e identidades como daquelas
que, dada trajetórias específicas do contato com o colonizador, tiveram que abrir mão desses
elementos e reconstruíram suas existências a partir de um ressignificar da língua portuguesa
por eles assimilada e tomada enquanto própria. É na esteira da admissão da multiplicidade
de processos e existências dos povos indígenas na trajetória de construção étnica e histórica
do Brasil que será possível a efetivação de uma educação diversificada e eminentemente
intercultural.

Referências

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ZANNONI, Claudio. Conflito e coesão: o dinamismo Tenetehara. Brasília: CIMI, 1999.

1
Entendido aqui a partir do conceito que lhe é conferido por Bronislaw Baczko enquanto conjunto de
representações imagéticas queproporcionam memória afetiva e social a um determinado grupo, designando
identidades sobre si e sobre o outro, demandando o estabelecimento de hierarquias e funções sociais,
expressando crenças comuns e modelos coletivos (BACZKO, 1991).
2
Entende-se aqui transcultural enquanto mediação, diálogo que se dá no encontro onde “negociação e
mudança operam ao lado do conflito” (BENESSAEIH, 2010, p.19).
3
Por pós-colonialismo se entende a vertente analítica que intenta compreender como conceitos específicos de
sujeitos e espaços são construídos a partir de uma lógica de subalternidade relativamente àqueles vistos como
hegemonicamente superiores em termos tecnológico e intelectualmente e identificados às separações entre
“norte” e “sul” global. Inicialmente, tal entendimento se ateve à análise dos efeitos do colonialismo europeu.
Atualmente, o conceito passa a considerar, igualmente, o avanço da influência e hegemonia norte americana e
a marginalização dos grupos minoritários enquanto processos também caudatários de uma espécie de
“colonialismo contemporâneo” (PEZZODIPANE, 2013); (ALMEIDA, MIGLIEVICH-RIBEIRO e GOMES,
2013).
4
Optamos aqui pela grafia “de(des)colonial” tendo em vista ainda não nos ser possível detectar um consenso
acerca do uso do termo entre os teóricos do movimento Modernidade/Colonialidade aqui sugeridos. Assim é
que autores como Walter Mignolo (2007; 2014) e Ramon Grosfóguel (2007) utilizam sem grandes elaborações

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Fronteiras: Revista Catarinense de História. Dossiê História Indígena e estudos decoloniais, N. 31, 2018/01

o termo gravado com o “s”, descolonialismo, enquanto Catherine Walsh (2009) dá preferência ao termo sem o
“s”, decolonialismo, enquanto posicionamento político de insurgência ao paradigma Moderno.
5
Espírito auxiliar, ente imagem dos tempos de origem. Seres-imagens primordiais descritos como humanoides
minúsculos paramentados com ornamentos e pinturas corporais que são “chamados” pelos Xamãs para auxiliar
nas práticas rituais cotidianas (KOPENAWA e ALBERT, 2015, p. 610)
6
O espírito fundador da mitologia Yanomami, princípio organizador do universo, aquele que modela e organiza
a realidade e a natureza e tudo que nela existe. (Op. Cit).
7
Teosi vem do português “Deus” e se refere aos missionários evangélicos atuantes nas aldeias indígenas
amazônicas (Op. Cit.).
8
Para uma maior compreensão da noção de construção e ressignificação do termo “índio”, ver Paula Caleffi
(2003).

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