10560-Texto do artigo-35731-1-10-20181022
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Myth and the Teaching of Indigenous History and Culture in a decolonial perspective
Resumo: O texto a seguir tem como Abstract: The following text aims to
proposta analisar como as narrativas analyze how amerindian mythological
mitológicas ameríndias podem auxiliar no narratives can assist in the teaching of
ensino de História e Cultura Indígena em Indigenous History and Culture in the
sala de aula buscando perceber de que forma classroom in order to understand how the
as mudanças de perspectiva nas changes of perspective in representations
representações acerca das identidades about ethnic identities in Latin America, as
étnicas na América Latina, bem como a well as opposition between the Eurocentric
oposição entre os pressupostos epistemological assumptions and the
epistemológicos eurocentrados e as multiethnic emergencies in the postcolonial
emergências pluriétnicas nos contextos pós- contexts aim to undertake a critique of
coloniais visam empreender uma crítica aos modern paradigmatic models in favor of an
modelos paradigmáticos modernos para uma education focused on interculturality.
educação com foco na interculturalidade. Keywords: Indigenous history,
Palavras-chave: História indígena, mythologies, teaching
mitologias, ensino.
Introdução
Quando se pensa a variedade das experiências religiosas em um contexto tão pluri
e multifacetado quanto o da diversidade étnica no Brasil, vários são os códigos e símbolos
rapidamente acionados pelo imaginário social 1 na identificação das muitas matrizes e
contextos ditos sagrados: os santos da Igreja Católica Romana, os orixás do Candomblé e da
Umbanda, os mestres e guias espirituais no Espiritismo kardecista, os guias e encantados da
Mina maranhense. Dentre estes, os chamados deuses indígenas nos remeteriam a um passado
idílico, ao mesmo tempo original e autêntico, testemunho de um tempo primitivo onde
natural e sobrenatural se confundiam e do qual apenas restaram as narrativas em forma de
lendas e relatos míticos desprovidos de qualquer conhecimento ou racionalidade lógica.
Partimos do argumento, no presente texto, que tal conceituação é fruto de uma
herança colonial refletindo diretamente os pressupostos teóricos e epistemológicos das
sociedades lógico-científicas europeias, estabelecidos em contexto global enquanto padrão
cultural hegemônico nas sociedades colonizadas. Tais pressupostos parecem-nos atualmente
1
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em História, Ensino e Narrativas, Mestrado Profissional da
Universidade Estadual do Maranhão. Especialista em História e Cultura Afro-brasileira. Graduada em
História Licenciatura Plena pela Universidade Estadual do Maranhão.
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estar na ordem do dia de uma série de questionamentos quanto a permanência da sua validade
numa conjuntura de intensificação das demandas de grupos étnicos e movimentos sociais
que, muito além de direitos sociais e políticos, também questionariam as imposições e
hierarquias estabelecidas e, a despeito do fim do colonialismo moderno, mantém-se na
atualidade naquilo que os teóricos do descolonialismo nomeiam como “colonialidade
global”
Asistimos, más bien, a una transición del colonialismo moderno a la colonialidad
global, proceso que ciertamente ha transformado las formas de dominación
desplegadas por la modernidad, pero no la estructura de las relaciones centro-
periferia a escala mundial. [...] Después de la Segunda Guerra Mundial y del
supuesto fin del colonialismo, mantienen a la periferia en una posición subordinada.
El fin de la guerra fría terminó con el colonialismo de la modernidad, pero dio inicio
al proceso de la colonialidad global. (GROSFOGUEL, 2007, p. 13)
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Assim é que, baseada em uma ampla pesquisa de campo na década de 1940, acerca
dos Tenetehara situados ao longo do vale do rio Pindaré, mais precisamente “as aldeias
situadas ao longo do rio Pindaré e marginais à estrada de gado entre os rios Mearim e
Pindaré” (WAGLEY E GALVÃO, 1961, p. 14), no estado do Maranhão, nordeste brasileiro,
Charles Wagley (orientador da Tese) e Eduardo Galvão construíram um significativo e
extenso trabalho etnográfico sobre os hábitos e costumes da etnia Tenetehara do Maranhão.
A começar pelo título da tese: “Os índios Tenetehara. Uma cultura em transição” onde já é
bastante sintomático o tom e a proposta teórica apresentados pelos autores, a preocupação
em mapear uma cultura que se percebia em vias de integralização total pela sociedade
nacional. Tendo por base um roteiro bem desenhado e rigorosamente técnico do que se
entendia por um bom trabalho etnográfico, não é incomum percebermos no texto em questão
a forma como os autores se assombravam com a manutenção, nos indivíduos estudados, de
seus traços culturais originais: “descobrimos, em pouco, que embora vestidos à nossa moda
e não poucos dominassem o português com facilidade, guardavam muito de seus costumes
e atitudes tradicionais” (WAGLEY E GALVÃO, 1961, p. 15).
Tal afirmativa demonstra a forte influência da noção de aculturação pautadas nas
concepções teóricas de evolucionismo cultural, ainda muito viva em inícios do século XX e
que partia da ideia não só de aproximação entre as estruturas sociais tomadas a partir de
concepções tidas como universais do ser humano, como igualmente a crença de que, estando
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autores, mas tão somente ressaltar como os paradigmas fundantes de uma determinada época
postulam as chaves de leitura fundamentais para a aproximação ou o afastamento entre
pesquisador e objeto.
Outro autor que analisamos, o professor e pesquisador Cláudio Zannoni,
antropólogo e professor da Universidade Federal do Maranhão, que empreendeu pesquisa
entre os Tenetehara de Barra do Corda entre os anos de 1994 e 1997, a fim de “reconstruir a
memória oral dos conflitos interétnicos da região de Barra do Corda” (ZANNONI, 1999, p.
11), relatou ter percebido a necessidade de aprofundar ainda mais a pesquisa acerca das
relações societárias a partir do momento em que, mesmo admitindo terem sido bastante
exploradas, em outros trabalhos, as ditas bases nas quais se assentariam as estruturas sociais
Tenetehara, acreditando ter percebido a adição de um novo elemento, a saber, a noção do
“conflito como regulador das relações sociais, políticas, econômicas e religiosas”
(ZANNONI ,1999, p.12) levando-o assim a repensar as bases do desenvolvimento e
continuação do trabalho, resultando assim, no livro intitulado Conflito e Coesão: o
dinamismo Tenetehara (1999).
Ao contrário do texto dos primeiros pesquisadores, o texto do professor Cláudio
Zannoni visa perceber de que forma as relações interétnicas entre as aldeias Tenetehara e as
populações nacionais imprime uma profunda ordem de transformação e dinamização das
estruturas sociais das primeiras a partir das noções de conflitos e permanências. Alguns
pontos mais marcantes nos chamaram a atenção. Inicialmente, também ao contrário do relato
empreendido por Wagley e Galvão, o autor buscou nomear todos os seus informantes
indígenas pontuando idade, aldeia de origem e apresentando sobre cada um deles um breve
histórico na trajetória do grupo e o papel desempenhado no trabalho de campo realizado.
Assinalando nessa apresentação que os atores entrevistados foram escolhidos por suas
posições de lideranças no povo Tenetehara, seja por serem lideranças políticas no processo
de mediação e contato, seja por serem depositários do conjunto cultural do grupo, dentre os
quais identificamos apenas 3 como sendo mulheres.
Importante ressaltar a forma de construção do texto do pelo autor no sentindo que,
além de iniciar com um levantamento bibliográfico relacionado ao tema, buscou empreender
uma análise em regressão do histórico de contato do grupo analisado partindo de dados do
presente da escrita até as primeiras narrativas. Igualmente baseando-se em uma perspectiva
de uma boa escrita etnográfica, o segundo capítulo do trabalho se referiu a efetuar uma
minuciosa descrição das fases e dos rituais Tenetehara que fundamentam e dão sentido ao
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cotidiano e às práticas sociais dos mesmos, desde os ritos de gestação e concepção, passando
pelos de iniciação da vida adulta dos mais jovens até os ritos de matrimônio e
estabelecimento dos laços de parentesco. Esse último demarcando de forma bastante
simbólica a orientação estruturalista do texto, igualmente perceptíveis na divisão e definição
dos capítulos seguintes: Vida Social Econômica e Política; Vida Religiosa e Mitos; e
Conflito na Cultura Tenetehara.
Com maior enfoque à questão da mitologia, também entendida pelo autor como
traço eminentemente religioso, apesar de afirmar ser “a vida religiosa é importante para a
sobrevivência desse povo. Ele detém uma concepção religiosa/cultural que se pode chamar
de ‘interiorizada’. De fato, sua relação com o sobrenatural é pessoal e dele depende sua
existência. Não é, portanto, algo distante” (ZANNONI, 1999, p. 125), é possível
percebermos um grande esforço em se adequar a compreensão das narrativas mitológicas a
partir de uma matriz materialista de interpretação, com especial atenção às leituras que usam
as noções de modo de produção, efeito e causalidade e principalmente a noção/conceito de
conflito como motor de transformação da sociedade Tenetehara:
Carvalho S. entende que os mitos precisam ser decodificados “a começar pela busca
de uma razão para a própria existência” (1985, p. 177), razão essa que é identificada
com a relação estreita entre mito (formas de pensar) e o processo de trabalho (modo
de produção).
A primeira questão que se coloca é saber se podemos estabelecer, com critérios
científicos, uma correspondência entre certos fundamentos de um modo de produção
e de formas de pensar; ou, se quisermos, se há uma correspondência entre a práxis e
o “pensamento selvagem”. Lembramos que, para Lévi-Strauss o “pensamento
selvagem” se opõe ao pensamento “domesticado para acumulação”. Assim, mesmo
se Lévi-Strauss não explora este caminho, estabelece, com essa distinção fundada na
práxis (acumular ou não acumular) uma correspondência clara entre a falta de
interesse por uma acumulação e o pensamento selvagem (Carvalho S., 1993, p. 259).
Ao estudar a mitologia Tenetehara, especialmente no que se refere a seu mito
principal, dos “gêmeos Maíra-ira e Mucura-ira”, pode-se certamente encontrar ali as
referências ao mundo mítico de caçadores-coletores e entender as relações
econômico-sócio-políticas dessa mesma cultura. O conflito, que aparece na maioria
dos mitos Tenetehara, ajudará a entender a “mola propulsora” da vida desse povo
(ZANNONI, 1999, p.125).
Dessa leitura de construção do texto podemos inferir que houve um empenho por
parte do autor de adequar a compreensão dos mitos Tenetehara apreendidos a uma lógica
científica de matriz ocidental que traduzisse numa dimensão organizada e bem delimitada –
mas que em certa medida distanciada em muito da perspectiva lógico comunicacional do
grupo estudado/vivenciado – toda a sua dinâmica sócio relacional. Percebemos nesse sentido
que, assim como no trabalho anterior relacionado, também a etnografia realizada pelo
professor Claudio Zannoni buscou na fala dos atores/sujeitos do grupo apenas uma
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interlocução narrativa dos mitos utilizando para a sua interpretação agentes externos, visto
que esses sim teriam as bases lógico racionais para organizar e tornar compreensíveis, leia-
se “científicas”, as múltiplas dimensões do arcabouço mítico cosmológico ameríndio.
Em trabalho bastante elucidativo, o antropólogo Vagner Gonçalves da Silva (2000),
quando analisou a complexidade de construção dos textos etnográficos e em que medida as
condições de produção do trabalho de campo apareciam (ou não) descritas nas obras
relacionadas às religiões de matriz afro-brasileira, empreendendo uma dedicada análise das
limitações reflexivas no campo da Antropologia ressaltando serem, bastante frágeis e
interseccionadas as relações de poder entre o discurso acadêmico, discurso que se pretende
ser a tradução racional de uma prática social, e o conhecimento/saber orgânico dos
indivíduos que a experienciam. Nesse sentido, o autor pontuou ao longo do texto uma
reflexão sobre a incompletude das teorias e do método etnográfico, bem como de que modo
– a partir da análise da própria trajetória como pesquisador e praticante das religiosidades de
matriz afro e de outras experiências similares – e em que medida os dois universos analisados
se imbricam e se relacionam: pesquisadores aderindo à religião, religiosos aderindo à
pesquisa etnográfica.
Os antagonismos entre os pesquisadores muitas vezes refletem rivalidades e rupturas
de origens diversas. Os antropólogos, como todos os seres humanos, têm suas
idiossincrasias e não estão imunes aos imponderáveis das relações pessoais que
envolvem sentimentos de aproximação e de distanciamento, frequentemente
induzidos ou exacerbados por situações concretas de trabalho. É o que muitas vezes
acontece entre membros de uma mesma equipe de pesquisa, mas que dela participam
com diferentes “capitais” – conhecimento prévio do campo ou da rede de
“informantes”, manejo de conceitos teóricos e técnicas de pesquisa, acesso a fontes
de financiamento. (SILVA, 2000, p. 34)
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contextos de alteridade/diversidade? Até que ponto não seria possível partir das próprias
construções ontológicas e cosmológicas das sociedades estudadas como conhecimentos
válidos para uma tentativa de um diálogo transcultural2, a partir de seus próprios paradigmas
e etimologias específicas enquanto concepções de mundo, fora dos eixos descritivos das
Ciências Sociais tradicionais?
É partindo de argumento semelhante que o último autor que citamos propôs uma
alternativa semântica às propostas teóricas clássicas nas interpretações culturais. Mércio
Pereira Gomes no estudo O índio na História: o povo Tenetehara em busca de liberdade
(2002), buscou a construção da categoria analítica intitulada Antropologia Ontossistêmica,
definida pelo mesmo como aquela “que toma o ser como estando dentro e ao mesmo tempo
acima da totalidade” (GOMES, 2002, p. 20). E ao traçar um paralelo entre o conhecimento
dito legítimo e aquele entendido como “exótico”, posto que construído pelo nativo, assim a
definiu:
A compreensibilidade mútua entre essas duas formas de pensamento, se é que elas
existem nessa dicotomia, constitui uma das principais tarefas que a Antropologia
Ontossistêmica deveria tomar para si. Antes de ser um ato de dominação, de fazer o
discurso sobre o outro, seria um ato de reconciliação e transcendência em relação a
uma situação criada pela modernidade que estabeleceu duas formas de humanidade,
uma real contradição dos termos de constituição dessa humanidade (GOMES,
2002, p. 20).
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contato, mudando, assim, aspectos das relações de sociabilidade dos indígenas entre si e com
os nacionais. Em contrapartida aos autores citados anteriormente, Mércio Pereira ampliou o
espaço de voz dos seus informantes indígenas, em especial, quanto às memórias do contato
e das mudanças nas relações intersocietárias apresentadas no último, sendo bastante
simbólico, capítulo XV, intitulado Os Tenetehara falam. Neste capítulo, somos finalmente
apresentados a um olhar que tenta partir de uma aproximação da perspectiva de construção
mitológica narrativa dos Tenetehara, através da descrição literal das entrevistas concedidas
por seus interlocutores indígenas. No entanto, a título do que aqui se pretende argumentar,
ainda são as premissas conceituais de base externa, que tem na universalidade do conceito
de humanidade e sua base materialista de compreensão e ordenamento do mundo sensível,
para o alinhavo final à tessitura do texto de Gomes:
Nos capítulos precedentes, a história dos Tenetehara foi analisada como um processo
que se desenvolve pelo relacionamento desse povo com a sociedade maranhense em
formação. A análise conceituou os tipos de relações que se constituíram entre essas
duas sociedades ao longo dos séculos como resultado das condições econômicas e
sociais prevalentes e da reação dos Tenetehara tanto em termos de aceitação e
adaptação como de resistência e conflito. É fácil perceber que essas relações têm
como base as estruturas socioeconômicas de cada sociedade e que essas estruturas
estão em um constante processo de mudança devido a causas internas e externas
(GOMES, 2002, p. 423).
Reiteramos mais uma vez que não é intenção de nossa parte desmerecer ou
deslegitimar a incontestável validade e importância dos estudos analisados, mas, antes e ao
contrário, demarcar como em diferentes épocas, a partir de diferentes contextos e parâmetros
de observações e análises, foram se configurando diferentes perspectivas de estudo sobre as
populações nativas e salientar, que desde inícios do século XXI vem se delineando uma
tentativa de interpretação das sociedades construídas a partir dos processos coloniais que
procurem dar conta da complexidade dos processos, com o uso de novos conceitos e
epistemologias específicas, sem, contudo, descartar as contribuições teóricas anteriores, mas
compreendendo as suas limitações para um amplo entendimento das experiências diversas,
fruto dos fenômenos e processos na pós-colonialidade3.
“Antigamente, nossos maiores não contavam nenhuma dessas coisas, porque sabiam que
os brancos não entendiam sua língua. Por isso minha fala será algo de novo, para aqueles que a
quiserem escutar“
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Seria então Tupã o “Deus” dos índios? Essa pergunta pode parecer, à primeira vista,
deslocada, porém faz referência à noção nada incomum que se tem, fruto de uma leitura
baseada numa interpretação equivocada e homogeneizadora das expressões socioculturais e
cosmologias indígenas, pelos agentes coloniais sobre o que aparentava ser um provável
“panteão religioso” indígena. Parte então da ideia de que, para as sociedades indígenas no
Brasil, Tupã seria a principal e mesmo única referência de “divindade” e, assim como o
“Deus” cristão, seria, para todos os “índios” no território, o responsável pela criação do
mundo e de toda Natureza que nele há.
Essa ideia, construída a partir das primeiras narrações empreendidas por cronistas
e missionários no contexto do contato, apesar de ter sido ampla e continuamente debatida,
ainda é bastante comum no contexto da educação formal brasileira. Partindo da noção de
que os mitos indígenas nada mais eram do que a expressão de crenças que, em um processo
de assimilação, deveriam ser substituídas pelo conhecimento racional ou ressignificadas pela
religiosidade do colonizador, os mitos e ritos dos povos indígenas no Brasil continuam sendo
acionados no contexto pedagógico da escola nacional com vistas a alegorizar uma
perspectiva de educação para a diversidade bastante limitada e, muitas das vezes, expressiva
da situação de subalternidade do universo de conhecimentos dessas mesmas populações.
No contexto escolar brasileiro, mitos indígenas têm sido frequentemente utilizados
como recurso pedagógico e como material primário para a publicação de coletâneas
de "lendas indígenas" ou de livros de histórias para crianças. Raros são os autores
que se identificam com o pensamento indígena e, respeitando-o, nele exercitam sua
própria capacidade de criação literária; raros também são os que se contentam em
transmitir os textos míticos sem adulterá-los ou "corrigi-los" segundo o que
consideram moral ou ideologicamente correto e adequado a seus pequenos leitores
(SILVA, 1995, p. 317-318).
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[...] toda palavra possui um espírito. Um nome é uma alma provida de um assento.
É uma vida entoada em uma forma. Vida é o espírito em movimento. Espírito é
silêncio e som. O silêncio-som tem um ritmo, um tom, cujo corpo é a cor. Quando o
espírito é entoado, passa a ser, ou seja, possui um tom (JECUPÉ, 2001, p. 05).
Sobre a importância do conhecimento linguístico enquanto fundamental para o
estabelecimento de uma educação que se quer efetivamente intercultural, o indígena Baniwa,
Gersem José dos Santos Luciano, ou Gersem Baniwa, chamou a atenção sobre a importância
do papel da língua para a compreensão dos pressupostos teóricos e analíticos de construção
de mundo das diversas sociedades ameríndias. Assim, ao discutir linguagem e educação
intercultural a partir do ponto de vista indígena faz saber que para além de uma ordem física
e eminentemente “humana” do processo comunicacional, a língua na perspectiva das
sociedades nativas que ainda resguardam essa dimensão lexical ou as que buscam, através
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Eu não tenho livros como eles, nos quais estão desenhadas as histórias dos meus
antepassados. As palavras dos xapiris5 estão gravadas no meu pensamento, no mais
fundo de mim. São as palavras de Omama6. São muito antigas, mas os xamãs as
renovam o tempo todo. Desde sempre, elas vêm protegendo a floresta e seus
habitantes. Agora é minha vez de possuí-las. Mais tarde, elas entrarão na mente de
meus filhos e genros, e depois, na dos filhos e genros deles. Então será a vez deles
de fazê-las novas. Isso vai continuar pelos tempos afora, para sempre. Dessa forma,
elas jamais desaparecerão. Ficarão sempre no nosso pensamento, mesmo que os
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brancos joguem as peles de papel deste livro em que elas estão agora desenhadas;
mesmo que os missionários, que nós chamamos de “gente de Teosi”7, não parem de
dizer que são mentiras. Não poderão ser destruídas pelas águas ou pelo fogo. Não
envelhecerão como as que ficam coladas em peles de imagens tiradas de árvores
mortas. Muito tempo depois de eu já ter deixado de existir, elas continuarão tão
novas e fortes como agora. São essas palavras que pedi pra você fixar nesse papel,
para dá-las aos brancos que quiserem conhecer seu desenho. Quem sabe assim eles
finalmente darão ouvidos ao que dizem os habitantes da floresta, e começarão a
pensar com mais retidão e respeito? (KOPENAWA, 2015, p. 65-66).
Portanto uma efetiva dimensão educativa na perspectiva da interculturalidade
perpassa por: 1) entender que o próprio termo “índio” é em si uma invenção criada por um
agente externo no contexto do contato, muito embora assumida e ressignificada a partir de
uma dimensão de identificação étnica e diálogo com o diferente muitas das vezes em
situações de posicionamento político e organização/movimentação social (LUCIANO,
2012, p. 30-31)8 e 2) saber que para o ensino sobre a História e Cultura indígenas, assim, no
plural como são as inúmeras culturas nativas, faz-se necessário um complexo
posicionamento de negação dos parâmetros de hierarquização permanente a que
submetemos os intrincados universos de definição, apreensão e ordenamento do mundo a
partir de uma lógica eurocentrada onde a lógica racional de matriz cartesiana de domínio e
controle da natureza se sobrepõe a uma noção de coexistência e equilíbrio, muita das vezes
entendida como um discurso inferior da esfera do eminentemente fantástico e fantasioso ou
da crença ou de um sagrado que é qualquer outro que não o da realidade concreta.
Assim cada complexo cultural tem seu próprio léxico e arcabouço lógico normativo
que, nada mais é do que ato rasteiro de interpretação tentar imputar a lógica de um sobreposto
ao outro. Contudo, “infelizmente, a tendência mais comum é de considerar lógico apenas o
próprio sistema e atribuir aos demais um alto grau de irracionalismo” (LARAIA apud
CAMPELO FILHO e DIAS, 2015, p. 06).
Assim, ainda pensando nos usos das mitologias para o ensino da cultura indígena
em sala de aula e utilizando como exemplo a tradição oral Guarani traduzida por Kaká Werá
é preciso que entendamos que para esse complexo cultural a palavra é música, som e espírito
e dessa orquestração poética e multidimensional todas as coisas foram criadas em um tempo
ancestral da qual hoje apenas sobrevive o seu reflexo distante e pálido, mas socializados pela
expressão das palavras “originais”:
Nande Ru Papa Tenondé, Nosso Pai Primeiro criou-se por si só na Vazia Noite
Iniciada – era Imanifesto, a Suprema Consciência, nada existia. De si próprio iniciou
seu desdobrar.
Nosso Pai Primeiro sustentava-se no Vazio, antes que existisse o sol ele existia por
reflexo de seu próprio coração e fazia-se servir dentro de sua própria divindade.
Amor e Sabedoria contidos em sua própria divindade.
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Considerações Finais
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Referências
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Entendido aqui a partir do conceito que lhe é conferido por Bronislaw Baczko enquanto conjunto de
representações imagéticas queproporcionam memória afetiva e social a um determinado grupo, designando
identidades sobre si e sobre o outro, demandando o estabelecimento de hierarquias e funções sociais,
expressando crenças comuns e modelos coletivos (BACZKO, 1991).
2
Entende-se aqui transcultural enquanto mediação, diálogo que se dá no encontro onde “negociação e
mudança operam ao lado do conflito” (BENESSAEIH, 2010, p.19).
3
Por pós-colonialismo se entende a vertente analítica que intenta compreender como conceitos específicos de
sujeitos e espaços são construídos a partir de uma lógica de subalternidade relativamente àqueles vistos como
hegemonicamente superiores em termos tecnológico e intelectualmente e identificados às separações entre
“norte” e “sul” global. Inicialmente, tal entendimento se ateve à análise dos efeitos do colonialismo europeu.
Atualmente, o conceito passa a considerar, igualmente, o avanço da influência e hegemonia norte americana e
a marginalização dos grupos minoritários enquanto processos também caudatários de uma espécie de
“colonialismo contemporâneo” (PEZZODIPANE, 2013); (ALMEIDA, MIGLIEVICH-RIBEIRO e GOMES,
2013).
4
Optamos aqui pela grafia “de(des)colonial” tendo em vista ainda não nos ser possível detectar um consenso
acerca do uso do termo entre os teóricos do movimento Modernidade/Colonialidade aqui sugeridos. Assim é
que autores como Walter Mignolo (2007; 2014) e Ramon Grosfóguel (2007) utilizam sem grandes elaborações
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o termo gravado com o “s”, descolonialismo, enquanto Catherine Walsh (2009) dá preferência ao termo sem o
“s”, decolonialismo, enquanto posicionamento político de insurgência ao paradigma Moderno.
5
Espírito auxiliar, ente imagem dos tempos de origem. Seres-imagens primordiais descritos como humanoides
minúsculos paramentados com ornamentos e pinturas corporais que são “chamados” pelos Xamãs para auxiliar
nas práticas rituais cotidianas (KOPENAWA e ALBERT, 2015, p. 610)
6
O espírito fundador da mitologia Yanomami, princípio organizador do universo, aquele que modela e organiza
a realidade e a natureza e tudo que nela existe. (Op. Cit).
7
Teosi vem do português “Deus” e se refere aos missionários evangélicos atuantes nas aldeias indígenas
amazônicas (Op. Cit.).
8
Para uma maior compreensão da noção de construção e ressignificação do termo “índio”, ver Paula Caleffi
(2003).
48